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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Departamento de Estudos Clássicos O MITO DE HÉRCULES RECRIADO: DA LOUCURA TRÁGICA DE EURÍPIDES À SERENIDADE ESTÓICA DE SÉNECA Ana Filipa Isidoro da Silva MESTRADO EM ESTUDOS CLÁSSICOS LITERATURA COMPARADA 2008

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Departamento de Estudos Clssicos

O MITO DE HRCULES RECRIADO: DA LOUCURA TRGICA DE EURPIDES SERENIDADE ESTICA DE SNECA

Ana Filipa Isidoro da Silva

MESTRADO EM ESTUDOS CLSSICOS LITERATURA COMPARADA

2008

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Departamento de Estudos Clssicos

O MITO DE HRCULES RECRIADO: DA LOUCURA TRGICA DE EURPIDES SERENIDADE ESTICA DE SNECA

Ana Filipa Isidoro da Silva

DISSERTAO DE MESTRADO EM ESTUDOS CLSSICOS LITERATURA COMPARADA

orientada pelos Professores Doutores

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel

Frederico Maria Bio Loureno

2008

Para o meu pai, j ausente desta jornada que a vida, para minha me, irmo e afilhado

i

NDICE

AGRADECIMENTOS iii

RESUMO / ABSTRACT iv

LISTA DE ABREVIATURAS vi

INTRODUO 1

Captulo I EURPIDES, SNECA E O ESTOICISMO: UM ESTUDO PRELIMINAR 5

1. Eurpides, Heracles 5

1.1. Data e Estrutura da Tragdia 5

1.2. Os Deuses 7

1.3. Inovaes em Eurpides 9

2. Sneca, Hercules Furens 11

2.1. Data e Estrutura da Tragdia 11

2.2. Os Deuses 13

2.3. Doutrina Estica 14

2.3.1. Os trs ramos da Filosofia: Fsica, Lgica e Moral 15

a) A Lgica 15

b) A Fsica 17

c) A Moral 23

Captulo II HERACLES E HERCULES FURENS: ANLISE DAS PERSONAGENS 36

1. Anfitrio 36

1.1. Caracterizao da personagem na tragdia de Eurpides 36

1.2. Caracterizao da personagem da tragdia de Sneca 39

2. Mgara 43

2.1. Caracterizao da personagem na tragdia de Eurpides 43

2.2. Caracterizao da personagem da tragdia de Sneca 45

3. Lico 50

3.1. Caracterizao da personagem na tragdia de Eurpides 50

3.2. Caracterizao da personagem da tragdia de Sneca 52

4. Teseu 58

4.1. Caracterizao da personagem na tragdia de Eurpides 58

4.2. Caracterizao da personagem da tragdia de Sneca 59

5. Coro 63

5.1. Caracterizao da personagem na tragdia de Eurpides 63

5.2. Caracterizao da personagem da tragdia de Sneca 70

6. Divindades 84

ii

6.1. Caracterizao de ris e Lissa na tragdia de Eurpides 84

6.2. Caracterizao de Juno na tragdia de Sneca 86

Captulo III HRACLES E HRCULES: A (DES)CONSTRUO DO HERI 95

1. Caracterizao de Hracles na tragdia de Eurpides 95

1.1. Imortalidade e Mortalidade: a ambivalncia do heri 96

1.2. Luz e Trevas 97

1.3. Individualidade e Colectivismo 98

1.4. Solido e Amizade 100

1.5. Outras caractersticas na construo do heri 102

1.6. Manifestaes da loucura de Hracles 106

1.7. e , Lico e Hracles: pontos semelhantes entre um tirano e o

heri

112

2. Caracterizao de Hrcules na tragdia de Sneca 114

Captulo IV HERCULES FURENS E HERCULES OEATEUS 135

1. Meditatio Mortis um estudo preliminar 135

2. Hrcules a ascese do proficiens 140

2.1. Hrcules sob o domnio da ira (estudo sobre o seu comportamento da

personagem no Hercules Furens e no Hercules Oetaeus)

140

2.1.1. Linguagem da emoo 144

2.1.2. Da decadncia da uirtus fsica de Hrcules elevao

categoria de sapiens

147

2.2. Hercules Furens e Hercules Oetaeus o suicdio 149

CONCLUSO 155

BIBLIOGRAFIA 169

INDEX NOMINUM 172

INDEX LOCORUM 190

iii

AGRADECIMENTOS

Chegou o momento de recordar e agradecer a todos que, de algum

modo, contriburam para a concluso deste trabalho. Em primeiro lugar,

agradeo aos Professores Doutores Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa

Pimentel e Frederico Maria Bio Loureno pelos seus sbios conselhos e

pelas sugestes que deram. A amabilidade e simpatia com que me

acolheram e afortunadamente me orientaram permitiram que esta

dissertao chegasse a bom porto.

Ao Professor Doutor Arnaldo do Esprito Santo, que desde sempre

muito admiro, e ao Prof. Doutor Jos Eduardo Franco, pela sua amizade e

simpatia.

Prof. Doutora Serafina Martins, pelos seus conselhos e algumas

sugestes bibliogrficas.

Dr. Eduarda Osrio Lopes e Dr. Fernanda Santos, pela boa

disposio que tornaram os dias da redaco da dissertao mais alegres e

suaves.

Umas ltimas palavras restam para a minha famlia, que muito amo,

em especial, para a minha me, irmo e av; e a bons amigos: Bruna

Ferreira, Gonalo Henriques, Helena Sofia Santos, Joana Cardoso, Dona

Manuela Domingues, Marli Vitorino, Nuno Carvalho. Patrcia, Nuno e

Helder Filipe, por estarem sempre presentes na minha vida. Finalmente,

Cristiana Lucas, Paula Carreira, Susana Alves e, em especial, Ana

Matafome, Hlio Vale e Ricardo Nobre, por terem estado sempre presentes

e disponveis e por terem sido incansveis comigo, os meus gratos

agradecimentos.

iv

RESUMO / ABSTRACT

Este estudo pretende analisar as tragdias Heracles, de Eurpides, e Hercules

Furens, de Sneca, numa perspectiva comparativa. Alm de ver as semelhanas,

procura-se descrever os aspectos que tornam as duas tragdias diferentes e nicas,

vendo a forma como so tratadas e desenvolvidas as personagens e o tema da loucura de

Hracles/ Hrcules.

O primeiro captulo, mais terico, aborda alguns traos gerais que caracterizam

as tragdias dos dois autores; nele se inclui tambm um estudo que sintetiza a doutrina

estica, com especial incidncia nos aspectos que melhor ajudam a compreender a

funo e objectivos parenticos do corpus trgico de Sneca. No segundo captulo, so

contempladas as personagens das duas tragdias, excepto Hracles/Hrcules e o

Mensageiro, que so estudadas no captulo seguinte. No terceiro captulo, o protagonista

analisado em trs momentos: antes, durante e depois da loucura. O quarto captulo

cinge-se ao estudo sobre a ascese de um proficiens e sobre a meditatio mortis nas

tragdias Hercules Furens e Hercules Oetaeus.

Palavras-chave: Tragdia de Eurpides, Tragdia de Sneca, Estoicismo,

Hracles/Hrcules, Literatura Comparada

This study aims to analyse in a comparative perspective Euripides Heracles and

Senecas Hercules Furens. Besides recognising the similitude between the two

tragedies, we describe the aspects that make them different and unique, understanding

how the characters and the theme of madness of Heracles/Hercules are treated and

developed. The first chapter is more theoretic; it deals with some general features that

characterise Euripides and Senecas tragedies, and studies the Stoic philosophy with

special attention to the aspects that enable the understanding of the paraenetic function

and its objectives. In the second chapter characters from both plays are covered, except

Heracles/Hercules and the Messenger that are studied in next chapter. In the third

chapter the main character is analysed in three moments: before, during, and after

madness. The fourth chapter studies the meditatio mortis in the plays Hercules Furens

and Hercules Oetaeus, reasoning on the ascesis of the proficiens.

v

Keywords: Euripides Tragedy, Senecas Tragedy, Stoicism, Heracles/Hercules,

Comparative Literature

vi

LISTA DE ABREVIATURAS

Barlow = Euripides Heracles, intr., trad. e comentrio Shirley Barlow (Warminster: Aris and Philips, 1996). Bond = Euripides Heracles, intr. e comentrio Godfrey W. Bond (2. Edio, Oxford: Clarendon Press, 1988). Duclos = EURIPIDE, Thtre, III, trad. Henri Berguin, Georges Duclos (Paris: Garnier, 1955). ErnoutMeillet = ERNOUT, Alfred e Antoine Meillet, Dictionnaire tymologique de la Langue Latine: Histoire des Mots (4. ed., Paris: Klincksieck, 1959; reimpr. 1967). Fitch (1) = Senecas Hercules Furens, a Critical Text with Introduction and Commentary, ed. John G. Fitch (Ithaca and London: Cornell University Press, 1987). Fitch (2) = SENECA, Tragedies, I (Hercules, Trojan Women, Phoenician Women, Medea, Phaedra), ed. e trad. John G. Fitch (Cambridge, Massachusetts, Londres: Harvard University Press, 2002). Giardina = L. Anneo Seneca, Tragedie, trad. G. C. Giardina, Rita Cuccioli Melloni (Torino: Editrice Torinese, 1987). Herrmann = SNQUE, Tragdies, I (Hercule Furieux, Les Troyennes, Les Phniciennes, Mde, Phdre), ed. e trad. Lon Herrmann (Paris: Les Belles Lettres, 1968). Miller = SENECA, Tragedies, I-II, ed. Frank Justus Miller (Londres, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1917; reimpr. 1968). Parmentier = EURIPIDE, Hracls Les Suppliants Ion, III, trad. Lon Parmentier, Henri Gregoire (Paris: Les Belles Lettres, 1976). Viansino = L. Annaei Senecae, Hercules Furens, Troades, Phoenissae, Medea, Phaedra, recensuit Ioannes Viansino (Torino: Paravia, 1968).

1

INTRODUO

Hracles um dos heris que mais popularidade teve ao longo da histria da

humanidade. Os trabalhos a que se submeteu fizeram da sua figura um modelo de

civilizador e protector do Homem: destruiu todos os monstros que habitavam a terra e

assolavam o mar. Porm, a megalomania, a insolncia e a excessiva confiana na sua

fora fazem dele uma personagem violenta e cruel, que chega a desafiar os deuses e a

lutar contra eles1. Segundo Fitch, From the earliest times Hercules heroism is

ambivalent. On the one hand he is the best of men, endowed with invincible strength

and courage. On the other hand, any strength that goes so far beyond the human norm is

potentially dangerous and unpredictable2. Como observou Susan Deacy, a respeito de

Hracles, ele caracteriza-se por his tendency to move between opposite categories

including mortal and immortal, salvation and destruction, masculine and feminine, and

sanity and madness3. Esta confluncia de estados psicolgicos permitiu que, ao longo

dos tempos, esta personagem mitolgica tivesse recebido um tratamento diverso. Walter

Burkert refere:

A figura de Hrcules foi moldada primeiramente pelo mito, por um conglomerado de contos populares em que a grande poesia s interveio de modo secundrio: no existe qualquer poesia grega dedicada exclusivamente a Hrcules. S mais tarde, os poetas analisaram o fenmeno Hrcules, envolvendo assim o mito numa atmosfera trgica, herica e humana, em contraste com a sua tendncia prpria que transcende despreocupadamente o humano.4

Foram poucos os autores gregos que fizeram de Hracles o protagonista dos seus

poemas, decerto dado o seu carcter atpico e ambivalente entre os heris mticos. Em

toda a sua histria mitogrfica, Hracles possui uma fora invulgar, um heri-deus

solitrio, que ocupa the no-mans-land that is also no-gods-land; he is a marginal,

transitional or, better, interstitial figure5, como diz Silk.

1 Vide Homero, Ilias 5.392-397; 403-404. 2 Fitch (1), 15. 3 Susan Deacy, Herakles and his girl Athena, heroism and beyond, in Louis Rawlings and Hugh Bowden (ed.), Herakles and Hercules, Exploring a Graeco-Roman Divinity, (Swansea [Pas de Gales]: The Classical Press of Wales, 2005), 37. 4 Walter Burkert, Religio Grega na poca Clssica e Arcaica (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993), 405-406. 5 Silk, Heracles and the Greek Tragedy, Greece and Rome, 32, n. 1 (1985), 6.

2

Temos apenas o testemunho de Sfocles e Eurpides que descreveram um

momento especfico da vida deste heri nas tragdias. Sfocles fez representar a

preparao para a morte, nas Trachiniae, e Eurpides o momento da loucura, que vem

depois de finalizado o ltimo trabalho, a captura de Crbero. O modo como a figura

apresentada nos dois tragedigrafos difere substancialmente. Para Carlos Santos,

Eurpides ter procurado apresentar um Hracles modernizado pelos valores do homem

do sculo V a.C., moldado pela virtude e pela razo, enquanto que o heri de Sfocles

se move num mundo onde domina a fora fsica, com valores semelhantes aos da

sociedade homrica.6.

Partindo da forma como Eurpides criou a personagem no Heracles, o presente

estudo tem como objecto a anlise comparativa desta tragdia com o Hercules Furens

de Sneca, o filsofo, estabelecendo pontos de contacto, mas, essencialmente,

apontando as diferenas na construo do protagonista. Conscientes de que o tema a

loucura do Alcida e as personagens so as mesmas7, queremos demonstrar que as

caractersticas que lhes so apontadas as tornam diferentes. Esta mudana deve-se

principalmente doutrina que Sneca pretende divulgar nas tragdias ao representar as

paixes humanas e as consequncias destrutivas que esses affectus implicam quando

no so evitados e quando fogem do controlo das personagens. Com a sua encenao8, o

filsofo consegue mostrar, por meio de exempla, o resultado de algumas passiones que

dominam o homem e que o levam, pelo caminho do uitium, a trazer a desgraa aos

outros e, em ltima instncia, a causar a sua prpria runa.

O estudo est dividido em quatro captulos. No primeiro, mais terico, feita

uma sinopse da filosofia estica, de Zeno a Sneca, passando por Crisipo, Epicteto e

Marco Aurlio, e pelos testemunhos de Ccero, de Digenes Larcio e de Sexto

Emprico. Este estudo preliminar uma preparao para a leitura das peas Hercules

Furens e Hercules Oetaeus, que decorrer nos captulos seguintes, comprovando que as

tragdias so um outro meio de divulgao desta doutrina filosfica. Para esse efeito,

6 Carlos Ferreira Santos, Eurpides, Hracles: Introduo, Traduo e Notas (Coimbra: diss. de Mestrado em Literaturas Clssicas apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996), 7. 7 So excepo: ris, Lissa, Mensageiro e Juno. As trs primeiras aparecem apenas em Eurpides, enquanto Juno de Sneca. 8 Tendo por base a ideia de que Filosofia do Prtico podia ensinar o homem a enveredar pelo caminho da uirtus, Sneca procura dar a conhecer esse caminho ao maior nmero de pessoas. Essa ter sido uma das razes que o levou a escrever tragdias, uma vez que as obras filsoficas em prosa se destinavam a um grupo mais restrito.

3

no pudemos deixar de contextualizar, ainda que sumariamente, a tragdia Heracles e

Hercules Furens, observando os aspectos semelhantes e divergentes das duas peas.

No segundo captulo analisamos e comparamos as personagens da tragdia grega

e da tragdia latina. Identificamos e reflectimos sobre todas as personagens que entram

em cena nas respectivas peas, excepto o protagonista e o Mensageiro o heri

mereceu um estudo mais desenvolvido no captulo seguinte. Comeamos por Anfitrio,

por ser a primeira personagem a entrar em cena no Heracles de Eurpides, mas tambm

por ser a nica a estar presente em todos os episdios (em Sneca entra no Acto II).

Seguimos com Mgara, Lico e Teseu a ordem respeita, novamente, a entrada de cada

uma das personagens em cena. Depois vemos o comportamento do Coro, terminando o

captulo com a anlise das divindades, ris, Lissa e Juno. Deixamos estas figuras para o

final deste captulo porque marcam uma diferena entre as duas tragdias: as deusas ris

e Lissa, que entram em cena na pea de Eurpides, so substitudas por Juno na de

Sneca.

Num primeiro momento, apresentamos a descrio que Eurpides faz de cada

uma destas personagens, observando, em seguida, como Sneca as representa em

Hercules Furens. Nesta perspectiva, ser possvel estabelecer alguns pontos de contacto

entre as duas tragdias, bem como identificar as significativas diferenas, tentando, na

medida do possvel, explic-las luz da doutrina estica. nosso propsito demonstrar,

neste captulo e nos seguintes, que os objectivos que norteiam Sneca na elaborao das

tragdias so as mesmas que esto presentes na sua obra em prosa.

O terceiro captulo centra-se nas personagens Hracles e Hrcules. A estrutura

deste captulo semelhante do anterior: comeamos por descrever as caractersticas de

Hracles, passando para as de Hrcules, comparando e mostrando os aspectos

divergentes. Optmos por integrar o Mensageiro neste captulo uma vez que ele quem

descreve as manifestaes fsicas e psicolgicas da loucura e as consequncias que

decorreram dela. Assim, poderemos dar uma viso completa do protagonista, isto ,

mostrar a forma como ele apresentado antes, durante e depois da loucura, avaliando a

transformao que o acto da demncia provocou no heri, para depois confrontar com

Hrcules.

Por fim, no ltimo captulo, ocupamo-nos da meditatio mortis nas tragdias

Hercules Furens e Hercules Oetaeus. Ainda que a autoria da ltima tragdia seja

4

incerta9, o nosso objectivo, ao inclu-la neste estudo, fazer uma anlise da evoluo da

figura de Hrcules e da forma como visto o suicdio nas duas peas. Nesse sentido,

comeamos por fazer uma sntese dos trs tipos de suicdio segundo Durkheim, vendo

qual deles se aproxima melhor dos propsitos esticos, da decorrendo um estudo sobre

o comportamento de Hrcules no final da tragdia Hercules Furens e no de Hercules

Oetaeus: nesta se observa a ascese do proficiens, que, no ltimo momento, aceita de

forma impassvel o seu Destino.

A edio adoptada para as tragdias de Eurpides a da Oxford Classical Texts,

preparada por James Diggle; para as de Sneca a da Loeb, preparada por John Fitch.

Seguiram-se os comentrios da Oxford Clarendon Press, de Bond, para a tragdia

Heracles de Eurpides, e da Cornell University Press, de Fitch, para Hercules Furens,

de Sneca.

Para tornar as notas de rodap mais leves e de mais fcil leitura, algumas obras

de uso mais frequente so citadas em abreviaturas cuja lista apresentamos. Foram

adaptadas as grafias e em vez de , no caso do grego, e u em vez de v, relativamente

ao latim. Apresentamos algumas tradues dos textos clssicos quando reconhecemos

que so boas, e quando no analisamos o passo ou no fazemos parfrase do mesmo. Os

ttulos das tragdias so apresentados em latim, seguindo as normas estabelecidas nos

dicionrios de Liddell-Scott e Glare, excepo de Heracles, que segue a prtica

adoptada nos estudos euripidianos de James Diggle. Quanto ao nome do Alcida,

achmos conveniente, por razes de clareza, manter Hracles quando se fala da tragdia

de Eurpides e Hrcules quando nos referimos de Sneca.

9 Para um estudo sobre esta problemtica vejam-se, por exemplo, Arthur Stanley Pease, On the Authenticity of the Hercules Oetaeus, Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 49 (1918), 3-26; Lon Herrmann, Le Thtre de Snque (Paris: Les Belles Lettres, 1924), 53-57; Francesco Giancotti, Saggio sulle Tragedie di Seneca (Roma: Societ Editrice Dante Alighieri, 1953), 7-16; R. G. Tanner, N. S. W. Newcastle, Stoic Philosophy and Roman Tradition in Senecan Tragedy, Aufstieg und Niedergang der Rmischen Welt, II, 32.2 (Berlim, Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1985), 1100-1133; Seneca, Tragedies, II, (Oedipus, Agamemnon, Thyestes [Seneca] Hercules Oetaeus, Octavia), ed. e trad. John G. Fitch (Cambridge, Massachusetts, Londres: Harvard University Press, 2004), 332-334.

5

Captulo I

EURPIDES, SNECA E O ESTOICISMO:

UM ESTUDO PRELIMINAR 1. Eurpides, Heracles

EURIPIDES Heracles is a great play with a serious theme, the sudden downfall of the good and glorious. (Bond, v)

1.1. Data e estrutura da tragdia

A tragdia Heracles de Eurpides ter sido representada entre 416 e 4141. A

aco dramtica comea com Anfitrio, Mgara e os seus trs filhos junto do altar de

Zeus, onde se refugiaram como suplicantes para tentar escapar morte (vv. 1-106). Sob

a ameaa de serem queimados vivos por Lico, que viola os direitos dos suplicantes, a

famlia heraclida abandona o altar e dirige-se para o palcio de Hracles (vv. 140-347).

No momento que antecede a sua morte, h uma reviravolta da Fortuna (),

com a chegada de Hracles a Tebas, regressado do Hades (vv. 451-522). Bond afirma

que Such sudden reversals, involving an obvious element of chance, are an exciting

feature of the later plays of Euripides.2

At vinda do protagonista, a aco desenrola-se de modo lento (o ritmo est

relacionado com a ansiedade das personagens porque foram condenadas morte, e pela

incerteza sobre se Hracles poder ou no sair do Hades). Com a entrada do Alcida em

cena, o ritmo da aco acelera. H uma rpida sucesso de acontecimentos: preparao

da morte de Lico (vv. 565-606), morte do tirano (vv. 749-754), canto de jbilo do Coro

(vv. 763-814), entrada das deusas em cena, anunciada pelo Coro nova (vv.

1 Sobre a datao de Heracles ver Bond, xxxi-xxxiii. O mesmo autor, partindo de sete tragdias cuja datao tradicional, e comparando o ndice de resoluo nos trmetros imbicos de cada uma delas Alcestis (438 a.C.) 6,2%, Medea (431) 6,6%, Hippolytus (428) 4,3%, Troades (415) 21,2%, Helena (412) 27,5%, Orestes (408) 39,4%, Bacchae (406) 37,6% aproxima a data da tragdia Heracles da de Troades, The figure for Heracles is 21.5% which indicates a date close to that of Troades (415). 416 and 414 are both possible. (idem, xxxi) 2 Bond, xvii.

6

815-874), Hracles mata os filhos e Mgara (vv. 887-909), entrada do Mensageiro (v.

910) que narra as mortes (vv. 922-1015), lamento do Coro (vv. 1016-1041).

A aco volta a ser mais lenta no momento em que Hracles acorda (vv. 1088-

1108) e descobre, com o auxlio de Anfitrio, que foi o autor do morticnio (vv. 1111-

1145). O heri deseja suicidar-se (vv. 1146-1152), mas a empresa travada com a

chegada de Teseu que, por sua vez, oferece a cidade de Atenas como lugar de exlio e

de purificao da mcula do Alcida (vv. 1163-1426).

Segundo Bond, During the past century many critics have complained that the

first part of the play (1-814), the supplication and rescuing of Heracles family, has no

real connection with what follows, his madness and the murders3. Entre os que assim

julgam, conta-se Ann Norris Michelini. Para a autora, a tragdia tem duas aces que

no esto intimamente ligadas, e que se contradizem completamente:

The first half builds to a happy ending, with Herakles triumphantly returning to rescue his family from the usurper Lykos, while the second half shows the savior as the murderer of his family. While in the other cases it is possible to trace the ways in which two actions have been interlaced, in this case we can only point to parallels and analogies between the actions. The central feature of the structure must remain the abrupt break that severs the play into two halves.4

Na perspectiva de Bond, The play is written around the contrast at lines 814/5

(...). It is this violent antithesis which holds Heracles together. The first part, which here

reaches its culmination, has been concerned with the threat to the children of Heracles

and their salvation by Heracles. They are now to be killed by their saviour 5. O mesmo

autor considera que os vv. 822-873, entrada das deusas, ris e Lissa, em cena, fazem

parte de um segundo prlogo6. Duclos, por sua vez, apresenta uma viso trptica da

aco dramtica: Hracles salvador (vv. 1-821); Hracles louco (vv. 822-1088);

Hracles triunfante (vv. 1089-1428)7. Esta diviso em trs partes est igualmente

presente em Parmentier8.

3 Bond, xviii. 4 Ann Norris Michelini, Euripides and Tragic Tradition (Londres: The University of Wisconsin Press, 1987), 232. 5 Bond, xxi. 6 Idem, 281. 7 Duclos, 123 ss. 8 Parmentier, 7-8.

7

No tocante a esta problemtica, optmos por seguir Barlow. Para a autora a

tragdia tem quatro momentos que correspondem a:

1. Ausncia de Hracles e a espera pelo seu regresso;

2. Regresso do heri e morte de Lico;

3. Loucura de Hracles, filicdio e uxoricdio;

4. Recuperao de Hracles com o auxlio de Teseu e de Anfitrio a amizade

triunfa no final da aco dramtica. Estes quatro momentos podem, ainda segundo

Barlow, agrupar-se em duas aces: os dois primeiros formam uma aco e os dois

ltimos a segunda aco, each setting a problem followed by a resolution. In the first,

the physical danger of Heracles family is followed by their rescue. In the second, their

destruction and the mental danger of Heracles himself is followed by a kind of

restoration.9 Em cada uma destas partes, Hracles assume-se como personagem

principal.

1.2. Os deuses

Como nota Ann Norris Michelini10, a tragdia de Heracles a que coloca mais

questes sobre o papel dos deuses. As personagens invocam-nos com alguma

frequncia: Anfitrio contesta a justia e a (i)moralidade de Zeus (vv. 339-347; vv. 498-

500) que sabe partilhar o leito dos humanos (vv. 344-346), mas indiferente quando

mais precisam dele. O Coro considera que os deuses no possuem nem

(vv. 655-656). Mgara sente que a forma como as divindades agem na vida dos homens

nem sempre so claros (v. 62).

Depois que Hracles regressa do Hades e castiga Lico, o Coro muda de opinio

relativamente aos deuses (vv. 772-814), elogiando-os por reconhecer que eles no

descuram a justia. Aparecem, ento, em cena ris e Lissa, que vm mudar o rumo dos

acontecimentos. A posio do Coro volta a ser de censura: critica a interveno dos

deuses na vida dos homens (vv. 1087-1088).

A entrada de Atena em cena sbita: aparece no preciso momento em que

Hracles se prepara para matar Anfitrio (vv. 1001-1006). A deusa interfere na aco,

9 Barlow, 6-7. 10 Ann Norris Michelini, Euripides and Tragic Tradition, 267.

8

para travar Hracles, lanando-lhe uma rocha contra o peito e adormecendo-o. Quanto

ao sbito aparecimento desta divindade, Emma Griffiths diz:

While she may be acting as an agent of Zeus, she may also be acting as Heracles protector, or because of a general concern for the rights and fathers. (...) There are also links between Athena and Zeus and Heracles which suggest a close relationship. However, her role as patron goddess of Athens gives the episode a more immediate link to the original audience, and connects her with Theseus, who arrives shortly afterwards. As Athena stops the physical harm, Theseus provides a solution to the emotional caos which ensues11.

A interveno da deusa poder, tambm, ter que ver com o prprio excesso do

heri, uma vez que ris (e Hera) pretendia, apenas, que Hracles matasse os seus filhos.

Ora, o heri mata Mgara e tem que ser impedido para no cometer um ltimo crime, o

parricdio esta violncia e excesso podero fazer parte da prpria caracterstica do

protagonista (vide vv. 565-573)12.

Quando Anfitrio conta ao Alcida que foi ele o autor da morte dos filhos e de

Mgara, o protagonista considera inaceitvel que uma deusa como Hera seja honrada,

uma vez que a divindade o perseguiu sempre e acabou por destru-lo quando lhe

suscitou a loucura (vv. 1303-1310). Teseu aceita a ideia que os poetas do dos deuses,

de que eles so imorais e injustos (vv. 1311-1319), e parte deste conceito da divindade

para dissuadir Hracles de se suicidar. Teseu lembra-lhe que o ser humano mais no

do que um joguete nas mos dos deuses (vv. 1314-1339). Apenas Hracles contesta a

imagem antropomorfizada das divindades, no acreditando que os deuses possam ter

exactamente as mesmas emoes que os homens (vv. 1340-1344). Neste sentido,

parece-nos justa a afirmao de Maria de Ftima Sousa e Silva relativamente tragdia

Heracles, Tornam-se inaceitveis os crimes e desonestidades que o mito atribua aos

deuses, o modelo religioso tradicional , a cada momento, posto em causa13.

Este sentimento de descrdito pelas divindades levou investigadores a sentir que

a prpria tragdia no seno uma fico, uma inveno do poeta: With the overt

reference to the possibility that the logoi of the poets may be false, we are forced to

11 Emma Griffiths, Euripides: Heracles (Londres: Duckworth, 2006), 98-99. 12 Vide o Captulo III, alnea a). 13 Maria de Ftima Sousa e Silva, Crtica Literria na Comdia Grega: Gnero Dramtico (Coimbra: diss. de Doutoramento em Literatura Grega, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1983), 226.

9

consider that Herakles itself, the play we are watching, is also a mere fiction, a tale told

by a poet who may be lying, explica Ann Norris Michelini14.

Bond sugere: In exhibiting and emphasizing these successive views about gods Heracles is mainly agnostic and negative in tone. But two positive features are brought out which serve as shafts of light in this deeply pessimistic tragedy. The first is the strength of human friendship. (...) The second positive feature is the decision of Heracles not to kill himself but to endure life as best he may15.

Este afastamento do homem dos deuses tem que ver com o interesse que os

sofistas tinham de estudar o homem por si, no sentido pleno. No se pode dizer,

contudo, que Eurpides no acreditasse nas divindades, assumiu, apenas, um juzo

crtico que procura ser consciente16.

1.3. Inovaes em Eurpides

Sendo o seu objectivo representar um heri mais humano, Eurpides

desenvolveu o mito de Hracles de uma forma peculiar, inovando em alguns aspectos:

a) A personagem Lico uma inovao de Eurpides17.

b) Episdio da loucura de Hracles e consequente morte dos filhos. Para Bond:

Before Euripides there is little evidence about the stories of the madness of Heracles and the murder of his children. The Cypria refer vaguely to . Stesichorus 230 PMG mentions a memorial to his children by Megara, who evidently died in a mad attack by Heracles; for our source implies clearly that Stesichorus did not include the attack on Amphitryon nor the stone hurled by Athene to stop Heracles (...). Pherecydes (F. Gr. Hist. 3 F 14) says simply that Heracles threw his five children into a fire.18

14 Ann Norris Michelini, Euripides and Tragic Tradition, 275. Vide ainda Emma Griffiths, Euripides: Heracles, 96-97; Thalia Papadopoulou, Heracles and Euripidean Tragedy (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), 100 ss. 15 Bond, xxii-xxiii. 16 Maria de Ftima Sousa e Silva, Crtica Literria na Comdia Grega: Gnero Dramtico, 227. 17 Voltaremos a focar este aspecto quando analisarmos a personagem (Captulo II, 3.a). 18 Idem, xxviii-xxix.

10

Segundo o mesmo autor, h trs escritores gregos, posteriores a Eurpides, que

trataram o tema da loucura antes do Alcida realizar os trabalhos. So eles, Damasco (F.

Gr. Hist. 90 F 13), Diodoro (4.10.6ss.) e Apolodoro (Bibl. 2.4.12)19. Este, por exemplo,

conta que a loucura do heri decorreu depois da guerra contra os Mnios, tendo sido

causada pelos cimes de Hera, por o Alcida ser filho de Zeus. Enlouquecido, o heri

mata no s os filhos como tambm dois dos seus sobrinhos, atirando-os ao fogo.

Depois de recuperada a razo, purificado pelo rei Tspio. Considerando a purificao

insuficiente para expiar os seus crimes, o Alcida procura o orculo de Apolo, com o

intuito de saber quais so os desgnios dos deuses. Do encontro que teve com a Pitonisa,

passa a chamar-se Hracles, sendo obrigado a submeter-se s ordens de Euristeu,

durante doze anos. Uma vez concludos os trabalhos, Hracles receberia como prmio a

imortalidade20.

Na perspectiva de Bond, no h certezas de que a descrio da loucura de

Hracles, quando localizada aps a concluso dos trabalhos, seja uma inovao de

Eurpides. Sendo ou no inovao, Eurpides d a imagem de um heri que, depois de

ter vencido todos os obstculos, derrotado por completo pelas divindades. Como Ann

Norris Michelini sublinha, The greatest of heroes is being transformed before our eyes

into something very like other Euripidean tragic protagonists, helpless and humiliated,

perhaps even awkward and ludicrous figures, whose endurance and suffering capture

audience sympathy in spite of these negative characteristics.21

Reverter a ordem dos acontecimentos (vindo o acto da loucura depois dos

trabalhos) significa para David Kovacs:

The Labors must be given another motivation: Heracles offers to work for Eurystheus so that he and his father, Amphitryon, may return to Argos, from which Amphitryon has been banished. In this way the killing of his family can be left as the final reversal of the heros good fortune.22

d) O aparecimento de Teseu no final da aco dramtica poder ser outra

inovao do poeta, j que, como sugere Bond, if in the pre-Euripidean tradition the

19 Apud Bond, xxix. 20 Apolodoro, Bibliotheca 2.4.12. 21 Ann Norris Michelini, Euripides and Tragic Tradition, 263. 22 Euripides, Suppliant Women, Electra, Heracles, ed. e trad. David Kovacs (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1998), 304.

11

murderers preceded the labours, Theseus cannot have played any part and there is a

strong likelihood of Euripidean invention here. 23

Parece-nos que o aparecimento de Teseu no final da tragdia permite a Eurpides

elogiar a cidade ateniense, em detrimento de Tebas. Esta cidade recusou ajudar a famlia

de Hracles no momento em que o heri estava ausente (v. 227; v. 560). Teseu, pelo

contrrio, assim que soube que a famlia do Alcida estava a ser ameaada por Lico,

dirigiu-se para Tebas, acompanhado de hoplitas (vv. 1164-1171). Hracles obrigado a

abandonar Tebas (governada por tiranos) por ter cometido um crime involuntrio.

Atenas (onde a democracia era a poltica vigente) a cidade acolhedora que julgar e

purificar Hracles do filicdio e do uxoricdio.

Para Francis M. Dunn, When he arrives with an army (1165), when he shows

concern for the polluted and exiled Heracles, when he offers him a place of refuge and

promises to settle him on Athenian soil, Theseus plays a familiar role as the statesman

who embodies Athenian values by protecting suppliants.24

2. Sneca, Hercules Furens

Sneca revela-se o mais moderno dos pensadores e dos escritores antigos.

(Padre Manuel Antunes25)

2.1. Data e Estrutura da Tragdia

Pensa-se que a tragdia Hercules Furens ter sido escrita antes de 54 d.C.26 A

aco dramtica afasta-se logo no Acto I da de Eurpides, o seu modelo, com a

introduo da personagem Juno, que, num solilquio, prepara a vingana contra 23 Bond, xxx. 24 Francis M. Dunn, Tragedys End: Closure and Innovation in Euripidean Drama (Oxford: Oxford University Press, 1996), 121. 25 Padre Manuel Antunes, sj, Obra Completa, tomo I, Theoria: Cultura e Civilizao, volume I, Cultura Clssica (Estudos), ed. crtica, coordenao cientfica Arnaldo do Esprito Santo (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007), 192. 26 Katharina Volk, Gareth D. Williams (ed.s), Seeing Seneca Whole: Perspectives on Philosophy, Poetry and Politics (Leiden, Boston: Brill, 2006), 199; Fitch (1), 50-53. Estes crticos sugerem que a tragdia ter sido escrita por volta do ano 54 pelos ecos que encontram da Apocolocyntosis.

12

Hrcules. Com a entrada da deusa no incio da tragdia, fica-se a conhecer o tema: a

loucura e o assassnio dos filhos do Alcida. J na pea de Eurpides o tema s revelado

quando entram em cena ris e Lissa (vv. 821-974).

O Acto II assemelha-se ao Prlogo e ao Episdio I de Eurpides. O cenrio

semelhante: Anfitrio e Mgara esto junto do altar de Jpiter (Zeus na tragdia grega),

como suplicantes, esperando pelo regresso do Alcida. Lico entra em cena no com o

objectivo de matar a famlia heraclida (como em Her.), mas de assegurar o seu poder,

querendo casar-se com Mgara. Recusada, com violncia, a proposta, Lico ameaa

queim-los vivos, acendendo uma fogueira ao redor do altar de Jpiter. Tal como na

tragdia de Eurpides, a famlia heraclida abandona o lugar e dirige-se ao palcio de

Hrcules.

O Acto III inicia-se com o monlogo do Alcida. Mgara uma personagem

muda, ao contrrio do que acontece em Eurpides. Hrcules vem acompanhado de Teseu

(na tragdia grega, o soberano de Atenas s aparece no episdio V). A permanncia do

protagonista em cena curta27 ao saber que Lico pretendia matar a sua famlia, deixa

Anfitrio, Mgara e os filhos com Teseu e vai ao encontro de Lico para mat-lo. Esta

sada rpida abre espao para que Teseu descreva as moradas das sombras, narrando a

luta de Hrcules com Crbero. Este Acto substancialmente diferente do Episdio II: na

pea de Eurpides, Hracles dialoga ora com Mgara ora com Anfitrio, dirige-se aos

filhos, encaminha-os para o palcio como um navio que conduz os botes para um porto

seguro, metfora que o heri usa; o Hades nunca descrito; Anfitrio e Hracles

preparam o assassnio de Lico.

O episdio da loucura, no Acto IV, decorre frente do leitor/espectador. A

descrio da alterao mental do Alcida permite ter uma viso em tempo real da

mudana que est a acontecer no protagonista. Na pea de Eurpides o Mensageiro (no

episdio IV) que conta essa transformao porque tudo se passou dentro do palcio, fora

do campo de viso dos espectadores.

O ltimo Acto, que corresponde ao episdio V do Heracles, o despertar de

Hrcules. O protagonista descobre que foi o autor do filicdio e do uxoricdio. O

suicdio surge, em ambas as tragdias, como a melhor opo para o Alcida, mas h uma

personagem que o dissuade: Teseu, em Eurpides, e Anfitrio, na tragdia latina.

27 De 237 vv., total de versos do Acto III, apenas 38,5 vv. dizem respeito fala do heri. Deste nmero, 11,5 vv. correspondem a Hrcules no momento em que se dirige a Anfitrio, a Mgara e a Teseu.

13

As inovaes mitolgicas que encontramos em Eurpides foram recuperadas

por Sneca, mas com uma viso e objectivos diferentes.

2.2. Deuses

Os deuses no tm, nas tragdias de Sneca, o mesmo desenvolvimento e

importncia que tm nas peas gregas. Em Hercules Furens, apesar de Juno entrar em

cena, deixando explcito o seu dio a Hrcules e afirmando que tudo far para destruir o

heri, perseguindo ad aeternum o fruto do adultrio de Jpiter, a sua funo e atitude

assemelham-se de uma mulher trada pelo marido. Ela prpria diz ter abandonado os

cus e passado a viver na terra (vv. 1-5), logo, junto de mortais. Mariana Matias afirma:

Os homens fazem uso do livre arbtrio, que a prpria Divindade lhes concedeu. O Mal

ou Bem advir do correcto ou inadequado uso que fizer da Razo e da fora de vontade

(uoluntas) que tiver para se afastar das paixes e dos conflitos que atraem o

sofrimento.28

Num ltimo aspecto, a aco de Hercules Furens desequilibrada, j que o

ritmo com que Sneca constri a aco das suas peas se caracteriza pelo desequilbrio,

visto que gasta a maior parte do texto em interminveis monlogos de anlise interior

das personagens, enquanto desenvolve os incidentes especficos da aco em cenas

concentradas de uma rapidez vertiginosa.29, diz Segurado e Campos. Essa falta de

proporo prende-se com o objectivo de Sneca em querer revelar as tendncias que as

personagens tm para enveredar pelo caminho do uitium. Ao faz-las falar, expondo as

suas dvidas, os seus receios; ao dar-lhes a capacidade de construrem um raciocnio

lgico e, aparentemente, correcto, Sneca mostra os erros de raciocnio e os resultados

que eles podem trazer.

Antes, porm, de passarmos anlise das personagens, sob um ponto de vista

comparativo, conveniente fazer um breve estudo sobre a doutrina do Prtico.

28 Mariana Montalvo Horta e Costa Matias, Paisagens Naturais e Paisagens da Alma no Drama Senequiano Troades e Thyestes (Coimbra: diss. de Mestrado em Literaturas Clssicas, especialidade de Literatura Latina, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2007), 32. 29 Jos Antnio Segurado e Campos, Sneca, Brecht e o Teatro pico, Classica, 23 (1999), 13.

14

2.3. Doutrina Estica

Fundado por Zeno de Ccio, que chega a Atenas por volta do ano 313 a.C. para

abraar o estudo da filosofia helnica, o estoicismo30 surge na Grcia por volta do ano

300 a.C. Pretende ser uma resposta ao momento conturbado que as cidades gregas

viviam no fim do sc. IV. Em contraste com a anterior hegemonia e individualismo,

caractersticas do esprito heleno, o povo grego confronta-se agora com uma abertura de

horizontes e uma nova cultura a invadir o seu espao, na sequncia da expanso de

Alexandre.

Zeno procurou ensinar um novo sentimento de comunidade, que se opunha por

completo ao individualismo defendido por Epicuro. Proferindo os seus discursos na

, lugar onde se reunia com um vasto pblico, e que acabou por dar nome

Escola, Zeno difundiu ainda a sua crena num poder que comanda todo o Universo.

Como sublinha Joseph Moreau, Zeno props a ideia da existncia de uma Razo

Universal (), que Destino e Providncia31. A partir deste conceito, pretende

libertar as almas de todo o tipo de inquietudes, medos, inseguranas, fazendo vingar a

ideia de que tudo o que acontece inevitvel e de acordo com a vontade de um Bem

Supremo, de tal modo que cabe ao homem aceitar tudo com resignao e confiana.

Assim, ao procurar viver bem e de acordo com o que a Natureza lhe enviava, uma vez

que provinha de deus, o homem conseguia alcanar a sabedoria: o estoicismo

desenvolve-se como um materialismo e como um racionalismo tico.32

30 O estoicismo compreende trs grandes momentos na sua histria. O primeiro perodo, correspondente ao do estoicismo antigo (finais do sc. IV a.C. a III a.C.), inaugurado por Zeno de Ccio e continuado por Cleantes e Crisipo (todos eles assumiram a direco da Escola). Num segundo momento, no perodo mdio (scs. II-I a.C.), o estoicismo chega a Roma, a tendo como representantes Pancio de Rodes, amigo de Cipio Emiliano e membro do chamado Crculo de Cipies, e Posidnio de Apameia, discpulo de Pancio e amigo e mestre de Ccero. Por ltimo, o terceiro perodo, denominado neo-estoicismo, estoicismo romano ou estoicismo imperial (I-II d.C.), tem como protagonistas Sneca, Musnio Rufo, Epicteto (escravo e depois liberto) e o imperador Marco Aurlio. 31 Vide Joseph Moreau, Stocisme picurisme: Tradition Hellnique (Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1979), 9. 32 Jean Brun, O Estoicismo, trad. Joo Amado (Lisboa: Edies 70, 1986), 32.

15

2.3.1. Os trs ramos da Filosofia: Fsica, Lgica e Moral

De modo geral, os esticos dividiam a Filosofia em trs ramos33: a Fsica, a

Moral e a Lgica o primeiro a fazer esta distino foi Zeno de Ccio34. Apesar desta

tripartio, os esticos consideram que esses trs ramos se conjugam num todo e

procuraram demonstr-lo por meio de diversas analogias. Uma delas entre o

estoicismo e o corpo de um animal, em que os ossos e os nervos tm como

correspondente a Lgica, a carne a Moral e a alma representa a Fsica. Um outro smile

que os esticos usam o ovo: a casca a Lgica, a clara a Moral e a gema, que est no

centro, a Fsica. Estabelecem ainda paralelismo entre esta doutrina e um campo frtil: a

Lgica seria a cerca que delimita toda a rea de cultivo, a Moral os frutos, e a Lgica a

terra ou as rvores. Por ltimo, entre o estoicismo e uma cidade bem fortificada e sob o

governo da Razo35. De todos estes exemplos se infere que nenhuma parte

independente, mas cada um dos elementos completa os outros formando um todo. De

facto, como refere Digenes Larcio, se todas as coisas so apreendidas por recurso

lgica, esta implicar a incluso de tudo o que entra no domnio da fsica e da tica36.

a) A Lgica

O estoicismo, tal como o aristotelismo, parte do empirismo. Contudo, as

perspectivas que esto na base de cada uma destas doutrinas filosficas diferem por

completo. Para Aristteles, o mundo esttico (porque traduz um movimento

incompleto, ou seja, ele no mais do que a passagem da potncia ao acto37) e

obedece a hierarquias (no sentido em que cada indivduo tem um lugar e funo

prprios no mundo).

33 Segundo Digenes Larcio, h esticos que elaboraram uma diviso mais minuciosa, como o caso de Cleantes, que dividiu a Filosofia em seis partes: Dialctica, Retrica, tica, Poltica, Fsica e Teologia. (vide Digenes Larcio, 7.41). No entanto, a tripartio parece ser a mais aceite entre os esticos. 34 Digenes Larcio, 7.39. 35 Vide Digenes Larcio, 7.40. 36 Digenes Larcio, 7.83. 37 Jean Brun, O Estoicismo, 35.

16

J os esticos entendiam o mundo como um ser vivo38. Deus, Mundo, Natureza,

todos so seres vivos. Como afirma Jean Brun,

O empirismo estico no um empirismo de mensagem qualitativa, como em Aristteles, mas um empirismo da compenetrao do homem e do mundo: sentir ter os sentidos e a alma modificados pelo que exterior; esta modificao pode ser em harmonia com o que a provoca, e neste caso estamos na verdade, ou pode estar em desacordo, e nesse caso estamos no erro e na paixo.39

Assim, o homem s vive bem quando em plena sintonia com o que faz parte da

natureza.

A doutrina do Prtico divide o estudo da Lgica em duas partes: retrica

() e dialctica () esta estrutura da cincia de bem falar herdeira

da sistematizao aristotlica. A primeira constitui a cincia de bem falar que, por sua

vez, tem trs gneros: deliberativo, judicial e demonstrativo ou epidctico. A retrica

divide-se em inuentio, dispositio, elocutio e actio, correspondendo cada uma dessas

partes s fases da elaborao do discurso (ainda sem a da memoria, que s mais tarde a

tratadstica retrica integrar). A dialctica a cincia que permite o uso correcto da

linguagem quer em perguntas quer nas respostas. Esta cincia divisvel em duas

partes: uma diz respeito ao discurso (, significado), a outra est

relacionada com a linguagem (, som). O discurso compreende a introductio, a

narratio, a refutatio e a conclusio40.

A dialctica necessria e considerada pelos esticos como uma virtude que

agrega em si todas as outras. pela dialctica que o sbio consegue discernir de modo

pleno a verdade da mentira, alm de lhe permitir um bom uso da argumentao e um

raciocnio claro. munido da dialctica que o homem obtm a capacidade de colocar

questes s quais consegue responder41.

38 Sneca considera que o mundo, tal como qualquer ser vivo, possui artrias e veias. Explica Pierre Grimal, Snque: sa Vie, son Oeuvre, avec un Expos de sa Philosophie (Paris: Presses Universitaires de France, 1966), 50, que a viso de Sneca de que o mundo um ser vivo no original, uma vez que j Empdocles e Posidnio tinham explorado o conceito. Contudo, diz-nos Grimal que o que se demarca em Sneca o estudo que ele desenvolve sobre o tema: Cette doctrine est pouss par lui jusque dans le dtail, la faon dune hypothse dont on cherche dvelopper les consquences, et surtout, elle lui permet de concevoir, selon un schma quasi mcanique, la solidarit interne du Monde, exige par le postulat de sa rationalit, et condition mme de toute connaissance. 39 Jean Brun, O Estoicismo, 36. 40 Digenes Larcio, 7.41-43. 41 Digenes Larcio, 7.46-48.

17

b) A Fsica

O termo Fsica vem do termo grego (natureza) que, por sua vez, deriva

da forma verbal , cujo sentido crescer. A Natureza contm em si o mundo e a

fonte directriz de tudo.

Na verdade, para os esticos, a palavra fsica tinha um significado mais amplo

do que aquele que comummente lhe atribumos nos nossos dias. Segundo Digenes

Larcio, os Esticos entendiam a Fsica como aquilo que detm o mundo e que provoca

as estaes. Definiam a natureza como uma fora que se desloca sobre si mesma e que

preserva a descendncia dos seres42.

A Fsica dividia-se em vrios ramos. Um relaciona-se com a diviso por espcies

e compreendia o que trata dos corpos ( ), o que trata dos princpios (

), o dos elementos ( ), o dos deuses ( ), o dos limites (

), o do lugar () e o do vazio (). Um outro ramo liga-se diviso por

gneros: do Cosmo, dos elementos e da etiologia43.

Relativamente aos gneros, em particular ao universo, este governado por dois

princpios, um passivo e um activo. O passivo ( ) identificado com a matria

(); e o activo ( ), que se relaciona com a Razo, designado . Este

princpio activo no sentido em que age sobre a matria, moldando-a e fazendo dela

forma. Sem este princpio, a matria jaz informe. Sneca identifica nas Ad Lucilium

Epistulae Morales estes dois princpios da natureza como causa e matria. deles que

tudo o resto deriva. Explica Sneca que materia iacet iners, res ad omnia parata,

cessatura si nemo moueat; causa autem, id est ratio, materiam format et quocumque

uult uersat, ex illa uaria opera producit.44 A causa o agente. Em termos prticos, o

corpo a matria e a alma a causa.

A matria , por sua vez, formada por quatro elementos: o fogo (proveniente do

ter), o ar (que est depois do ter), a gua e a terra. Destes quatro elementos, dois so

42 Digenes Larcio, 7.148-149. 43 Digenes Larcio, 7.132. 44 L. Annaei Senecae Ad Lucilium Epistulae Morales, 65.2: A matria jaz inerte, apta a tomar todas as formas, mas imvel para sempre se ningum a trabalhar; a causa, porm, que como quem diz, a razo, d forma matria, transforma-a naquilo que quer, realiza a partir dela vrios tipos de produtos. As tradues do latim seguem a edio de Lcio Aneu Sneca, Cartas a Luclio, trad. Jos Antnio Segurado e Campos (2. ed., Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004).

18

activos (o ar e o fogo), dois passivos (terra e gua). Estes elementos so perecveis pelo

facto de que esto em interminvel mutao, o que implica um fim e uma renovao.

H dois movimentos naturais que podemos identificar com a prpria vida e

morte de todos os que habitam o mundo: o primeiro a passagem do fogo para a terra,

passando pelo ar e pela gua (traduz-se na vida); o segundo movimento vai da terra para

o fogo, passando de novo pelos dois outros elementos, gua e ar (representao da

morte). Esta morte e ressurgimento natural das coisas, que os esticos comummente

designam por palingnese, acontece, no dizer de Jean Brun, por ocasio de uma

conflagrao universal durante a qual o mundo se dilata no vazio ilimitado que o

envolve e onde todas as coisas so transformadas em fogo ()45. O mesmo

autor explica que esta conflagrao universal no se traduz numa destruio total do

Universo. O que se d em concreto uma renovao dos seres e das coisas. Os esticos

acreditavam que a vida do mundo um crculo perfeito no sentido em que nasce, morre

e volta a nascer.

Sendo o visto como um ser vivo, que possui uma anima e a razo, os

esticos interpretam este Universo sob trs acepes diferentes: primeira, o Universo

imagem do Deus, nico ser que possui qualidades inerentes ( ); este, por sua

vez, um ser indestrutvel e arquitecto da ordem do Cosmo, uma vez que tem a

capacidade de destruir e recriar tudo a partir de si prprio (o que equivale a dizer que

tem mecanismos prprios que lhe permitem eliminar o que quiser e do nada voltar a

engendrar algo novo); segunda, o Universo considerado como a ordem dos astros;

terceira, o Universo visto como um todo, do qual Deus e os astros fazem parte46.

Consideravam ainda que o mundo constitudo por matria, ou seja, por corpos.

Esta uma noo panrealista, visto que, para os esticos, tudo , desde a noite, a

aurora, o minuto, a palavra, o prprio deus, at alma e as virtudes e os vcios. Dada a

viso de que tudo, ou quase tudo, corpo, permitido ao homem uma ligao estreita

com o Universo, do qual originrio e para o qual retorna. Diz Sneca: bonum agitat

animum et quodam modo format et continet, quae [ergo] propria sunt corporis. Quae

corporis bona sunt corpora sunt; ergo et quae animi sunt; nam et hoc corpus est.47

45 Jean Brun, O Estoicismo, 49. 46 Digenes Larcio, 7.138-139. 47 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 106.4: O bem move-nos a alma, de certa maneira d alma forma e limites, aces que so especficas dos corpos. Os bens do corpo so corpos; logo tambm os bens da alma o so uma vez que a alma um corpo.

19

Acrescenta tambm que as paixes so consideradas como corpos, dado que fazem

transparecer expresses no rosto do ser humano quando este se deixa levar por elas:

non puto te dubitaturum an adfectus corpora sint (...), tamquam ira, amor, tristitia, nisi dubitas an uultum nobis mutent, an frontem adstringant, an faciem diffundant, an ruborem euocent, an fugent sanguinem. (...) corpora ergo sunt quae colorem habitumque corporum mutant, quae in illis regnum suum exercent (...) numquid est dubium an id quo quid tangi potest corpus sit? (...) omnia autem ista quae dixi non mutarent corpus nisi tangerent; ergo corpora sunt. Etiam nunc cui tanta uis est ut inpellat et cogat et retineat et inhibeat corpus est. (...) denique quidquid facimus aut malitiae aut uirtutis gerimus imperio: quod imperat corpori corpus est, quod uim corpori adfert, corpus.48

No entanto, alguns filsofos consideram que nem tudo o que existe no cosmo

possui corpo. Sexto Emprico aponta quatro gneros de incorpreos: o exprimvel

(), o espao (), o vazio () e o tempo ()49 este ltimo infinito

nas duas extremidades, isto , no passado e no futuro, mas sempre contnuo. No que

diz respeito a este ltimo elemento, os esticos definem-no como um intervalo de

movimento que depende de dois elementos: a terra (e o mar, por extenso) e o vazio.

Os quatro elementos supramencionados so tomados como incorpreos por no

manifestarem qualquer transformao nos corpos. Na verdade, no possvel uma

interaco que fundamente uma mutao entre um incorpreo e um corpo, visto que o

primeiro no produz qualquer efeito no segundo50. O mesmo no acontece quando dois

corpos se tocam. H uma influncia no acto do confronto. Este contacto implica sempre,

ou quase sempre, uma transformao: h um agente e um paciente, um transformador e

um transformado. Ao encontro de corpos de que resulta uma alterao, os esticos

denominam amlgama total ( ). Segundo Jean Brun, A continuidade

da natureza, esta presena dos corpos num mundo de espao ocupado que ignora o

48 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 106.5, 7-10: Acho que tu no hesitars em reconhecer como corpos as paixes (...) tais como a clera, o amor, a tristeza, a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto, nos enrugam a testa, nos alongam a face, nos tornam a cara encarniada ou nos fazem ficar sem pinga de sangue. (...) Consequentemente, tudo quanto altera a cor e a forma dos corpos igualmente um corpo, o qual exerce naqueles a sua aco. (...) E ser possvel duvidar que seja corpo tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado? (...) Ora, tudo quanto referi no poderia alterar o nosso corpo se lhe no tocasse; por conseguinte, todos so corpos. Mais ainda: tudo quanto tenha em si fora suficiente para nos impelir, forar, deter ou impedir de nos movermos tem de ser um corpo. (...) Em suma, tudo quanto ns fazemos, fazemo-lo sob ordens ou da maldade ou da virtude, e tudo quanto exerce poder sobre um corpo, tudo um corpo! 49 Sexto Emprico, Aduersus Mathematicos 10.218. 50 Vide Ccero, Academica Posteriora, 2.39.

20

vazio, esta assimilao de Deus e do Cosmo, permitem-nos dizer que o todo est em

simpatia consigo mesmo, que tudo conspira, que existe uma simpatia universal das

coisas e dos seres.51 Esta simpatia () universal e conatural (),

sendo ainda uma outra forma de designar a identidade de Deus e do mundo.52 Tudo

provm de Deus, que representa uma fora anmica dotada de inteligncia, de tal modo

que a infinidade de corpos mais no so que parcelas dessa mesma divindade.

Deus e o Destino (53) assumem importncia relevante para a

compreenso da vida do homem, uma vez que todas as coisas tm o seu rumo prprio:

o destino uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo, no sentido em que o

conjunto, a , que liga os seres, testemunho de uma disposio imutvel na

ordem das coisas54.

Este poder conferido ao destino levou alguns filsofos (em especial os

epicuristas) a criticarem a concepo que os esticos tinham dele e do livre-arbtrio,

porque incongruente. O problema que se colocava era: em que medida ao homem era

dada liberdade de fazer as suas prprias escolhas se o Destino tinha poder absoluto

sobre todos os seres? Crisipo contribuiu, no mbito da reflexo estica, para a

compreenso desta questo: para ele o Destino um poder que governa todo o Cosmo,

nada acontece sem uma causa precedente. Considerando que tudo se rege por uma

causa, Crisipo defendia a teoria de que existem duas espcies de causas: as causas

perfeitas e principais ( ou causae perfectae, causae principales); e as

causas adjuvantes e prximas ( ou causae adiuuantes, causae

proximae). As primeiras dizem respeito a decises que o ser humano toma e as

segundas fora do Destino:

Si est motus sine causa, non omnis enuntiatio (quod dialectici appelant) aut uera aut falsa erit, causas enim efficientes quod non habebit id nec uerum nec falsum erit; omnis autem enuntiatio aut uera aut falsa est; motus ergo sine causa nullus est. Quod si ita est, omnia quae fiunt causis fiunt antegressis; id est, omnia fato fiunt; efficitur igitur fato fieri quaecumque fiant55.

51 Jean Brun, O Estoicismo, 53. 52 Idem, Ibidem, 54. 53 A palavra vem do particpio passado do verbo . A raiz *, usada em palavras como e , demonstra que o destino, a par das Moiras, comanda a vida de cada um dos seres. O destino estrutura mas tambm uma fora. Considerado como um sopro no s vital como divino, o destino, em conjunto com a providncia, a fora motora que comanda todas as coisas. 54 Idem, Ibidem, 56. 55 Ccero, De Fato 10.20-21. Ccero cita Crisipo.

21

A Providncia () , por sua vez, a causa que permite concatenar os seres

com a vontade divina. pela Providncia que os animais procuram criar relaes de

amizade e de interdependncia56. Contudo, esta concepo que os esticos tm da

Providncia (aquilo que Jean Brun designou como finalismo universal57) levanta

algumas questes sobre a existncia do mal. De facto, estando a Providncia em

sintonia com tudo o que existe no mundo, implica que haja uma ligao entre ela e o

bem, e entre ela e o mal. Este mal diz respeito ao que a Natureza cria e que nocivo

(como por exemplo, as tempestades, as epidemias, os animais ferozes, as plantas

venenosas) mas tambm s aces do homem (guerras, violncia). Este aspecto levou os

cpticos a criticarem os esticos. Crisipo contra-argumenta com a ideia de que tudo tem

um contrrio (por exemplo, a virtude tem como anttese o vcio). O mal permite criar

um certo equilbrio58 e, em simultneo, pode ser til, uma vez que pode ser necessrio

para o aparecimento de um bem maior.59

H que notar, contudo, que a Providncia, o Destino, a Natureza, a Razo

Universal e Deus mais no so do que sinnimos. Deus pensado no superlativo

porquanto um princpio que governa todos os outros. A divindade matria, mas no

possui qualquer forma humana. Tal como matria, Deus um sopro gneo, dotado de

inteligncia. Difere do homem por ser imortal e ignorar qualquer mal.

Quanto alma humana, ela , segundo Ren Hoven60, feita de elementos subtis,

em concreto, originada a partir do ar e do fogo. Zeno de Ccio, Antpatro e Posidnio

definem a alma como um sopro quente ( ) 61. Esta designao explica-

-se pelo facto de ser por meio deste que ns respiramos e nos movemos.

Os filsofos esticos, ao definirem a alma, comparam-na a um polvo. Apesar de

a tomarem como una, dividiram-na em oito partes: uma parte matriz () que

governa todas as outras partes, sendo a mais importante e dela saindo as outras sete;

destas, cinco dizem respeito aos sentidos naturais: a viso, o olfacto, o tacto, a audio e

o paladar; as ltimas duas partes so o aparelho reprodutor e a palavra. Esta concepo

56 Marco Aurlio, Meditationes, 4.40 ss. 57 Jean Brun, O Estoicismo, 60. 58 Em Hercules Furens de Sneca est bem delineada a ideia de que o bem e o mal permitem criar um certo equilbrio natural das coisas. S o insensato, protagonizado por Hrcules, que acredita na possibilidade de destruir todo o mal que existe na terra porque v nele um obstculo construo da ordem. notrio um erro de avaliao relativamente noo que o heri tem da natureza. 59 Jean Brun, O Estoicismo, 61. 60 Ren Hoven, Stocisme et Stociens face au problme de lau-del (Paris: Les Belles Lettres, 1971), 41. 61 Cf. Digenes Larcio, 7.157.

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de um corpo dividido em vrias partes vai ao encontro da concepo que os esticos

tinham do universo como ser contnuo e em plena harmonia consigo mesmo62.

a partir da alma que o corpo existe, visto ser um princpio vital. A funo que

desempenha no apenas de ordem biolgica e motora, mas representa, igualmente,

uma funo gnosiolgica. por meio da alma que o homem compreende o mundo. O

conhecimento e aceitao deste mesmo mundo permite-lhe viver bem e alcanar a

sabedoria. Segundo Jean Brun, a alma tem duas funes essenciais: a representao,

que nasce duma impresso do objecto exterior na substncia da alma, e a inclinao

() que a faculdade de experimentar o desejo e a averso.63

Quando o corpo morre, a alma subsiste ainda, mas perecvel64. Esta teoria da

sobrevivncia da alma depois da morte do corpo complexa entre os esticos. Para

Zeno, depois de o corpo perecer, a alma humana vivia durante um perodo de tempo,

mas acabava por desaparecer. J Cleantes considerava que a alma subsistia at

conflagrao total (). Para Crisipo apenas a alma dos sbios sobreviveria. A

dos mpios morreria com a destruio do corpo65.

Para Sneca, parece no haver uma resposta nica e simples, uma vez que, nas

suas obras, encontramos vrias perspectivas: Ses oeuvres nous fournissent en

abondance des rponses, mais celles-ci prsentent premire vue une telle diversit et

mme tant de contradictions que leur simple lecture laisse perplexe quant la pense

relle de notre philosophe, como refere Ren Hoven66. Assim, Sneca defende, por um

lado, que a alma subsiste at conflagrao universal67, ou durante um perodo mais

longo do que aquele que viveu na terra (Ep. 102.23). Identifica ainda a possibilidade de

haver uma vida num mundo supraterrestre68, rejeitando, tal como os outros filsofos

esticos, a existncia de um mundo inferior (Ep. 24.18). Sneca pe a hiptese de que a

morte possa ser um fim absoluto, pelo menos quando enuncia alternativas como mors

aut finis aut transitus (Ep. 65.24: a morte ou termo, ou passagem), ou mors aut

62 Vide Jean Brun, O Estoicismo, 66. 63 Jean Brun, O Estoicismo, 66. 64 Vide Ccero, Tusculanae Disputationes, 1.18, e Digenes Larcio, 7.157. 65 Digenes Larcio, 7.157. 66 Ren Hoven, Stocisme et Stociens face au problme de lau-del, 109. 67 Nos quoque, felices animae et aeterna sortitae, cum deo uisum erit iterum ista moliri, labentibus cunctis, et ipsae parua ruinae ingentis accessio, in antiqua elementa uertemur. (Sneca, Consolatio ad Marciam, 26.7). Vide tambm Ren Hoven, Stocisme et Stociens face au problme de lau-del, 109. 68 Neste caso, Ren Hoven, op. cit., 110, comenta que a ideia de que existe uma vida depois da morte no uma concepo exclusivamente estica. esta vida supraterrestre que vamos encontrar no final de Hercules Oetaeus: depois de o seu corpo ter sido consumido pelo fogo, Hrcules aparece a Alcmena para lhe dizer que a sua alma ascendeu s moradas celestes (vv. 1963-1976).

23

consumit aut exuit (Ep. 24.18: a morte, ou nos consome totalmente, ou nos despoja de

alguma coisa)69.

Importa, porm, ver que em qualquer dos casos o sapiens aceita a morte com

serenidade. Afinal, a morte como um outro nascimento:

Quemadmodum decem mensibus tenet nos maternus uterus et praeparat non sibi sed illi loco in quem uidemur emitti iam idonei spiritum trahere et in aperto durare, sic per hoc spatium quod ab infantia patet in senectutem in alium maturescimus partum. Alia origo nos expectat, alius rerum status.70

c) A Moral

Os esticos dividiam o ramo da filosofia que corresponde moral em vrios

tpicos: da tendncia (), do bem ( ) e do mal ( ), das paixes

( ), da virtude ( ), do fim ou do bem supremo (), do primeiro

valor e das aces ( ), das condutas convenientes e

dos encorajamentos e dissuases (

)71. Segundo testemunha Digenes Larcio, adoptaram esta diviso: Crisipo,

Arquedemo, Zeno de Tarso, Apolodoro, Digenes, Antpatro, Posidnio e os seus

discpulos. J Zeno de Ccio e Cleantes no deram ao ramo da Moral a mesma ateno

e desenvolvimento72.

A tendncia considerada como o primeiro dado natural do ser o primeiro

impulso espontneo () enquanto o prazer e a dor assumem posies secundrias.

O animal tende, em primeiro lugar, a conservar a sua prpria segurana e procura

conhecer-se. Como explica Lon Robin, 69 Ren Hoven, op. cit., 114, considera que esta uma segunda tendncia do filsofo, e designa-a de alternativa socrtica. O mesmo autor identifica ainda mais trs perspectivas: uma influncia epicurista, em que Sneca identificaria a morte como o no ser (mors est non esse Ep. 54.4-5), uma corrente mstica ou pitagrico-platnica (o corpo um fardo Ep. 24.17), e, por ltimo uma corrente mitolgica, baseada em crenas populares, que diz respeito crena num mundo inferior. Sobre esta ltima tendncia, no nos parece que Sneca acreditasse na sua existncia (vide Ep. 24.18). Ainda que os Infernos apaream com alguma frequncia nas tragdias do filsofo, a referncia s moradas inferiores a representao da tradio mitolgica e, tambm, das crenas e dos receios do povo relativamente morte e ao que vem depois dela. 70 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 102.23: Tal como o ventre materno nos guarda por dez meses e nos prepara, no para nele permanecer mas sim para sermos como que lanados no mundo assim que estamos aptos a respirar e a aguentar o ar livre, tambm ao longo do espao de tempo que vai da infncia velhice ns vamos amadurecendo com vista a um novo parto. Espera-nos um outro nascimento, uma outra ordem das coisas. 71 Digenes Larcio, 7.84. 72 Vide Digenes Larcio, 7.84.

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A ideia de constituio aqui capital: desde que o animal nasce, est originariamente apropriado (conciliatio) a essa constituio e conscincia que dela tem: est-lhes, de algum modo, confiado (commendatio). Assim velar-se- a si mesmo, rejeitar o que possa prejudicar a sua constituio, tender para o que prprio a favorec-la, afastar-se- do que a contraria. No homem, essa tendncia do ser para se conservar tem a particularidade de pertencer a uma constituio do ser racional: a espontaneidade original da sua natureza, com a conscincia que dela tem, fundamentalmente conforme Razo.73

Assim, estabelecem os filsofos uma diviso entre objectos de tendncia74: os

que podem ser adquiridos porque so bons e esto de acordo com a natureza; e os que

devem ser rejeitados porque so maus e opostos natureza.

O homem, ao conhecer a natureza e obedecer quilo que ela dita, tem a

capacidade de apreender e compreender as escolhas que ela proporciona e reflectir sobre

tudo o que dela provm. Ele deve, ento, orientar correctamente a sua vida. Esta

orientao passa pela aceitao da natureza, vivendo em harmonia com ela (

75), ou seja, est de acordo com tudo o que tem origem na

natureza conuenienter naturae. No entanto, para viver segundo a virtude, as aces e

os pensamentos do homem devem ser constantes, o que implica uma atitude de

perseverana na construo da uirtus. Sneca afirma:

Sic maxime coarguitur animus inprudens: alius prodit atque alius et, quo turpius nihil iudico, inpar sibi est. Magnam rem puta unum hominem agere. Praeter sapientem autem nemo unum agit, ceteri multiformes sumus. Modo frugi tibi uidebimur et graues, modo prodigi et uani; mutamus subinde personam et contrariam ei sumimus quam exuimus. Hoc ergo a te exige, ut qualem institueris praestare te, talem usque ad exitum serues; effice ut possis laudari, si minus, ut adgnosci. De aliquo quem here uidisti merito dici potest hic qui est?: tanta mutatio est.76

73 Lon Robin, A Moral Antiga, trad. Joo Morais Barbosa (Edies Despertar, s.d.), 108. 74 Vide Lon Robin, A Moral Antiga, 108. 75 Esta afirmao, apresentada por Digenes Larcio (7.87), do tratado (Sobre a natureza do Homem), de Zeno, de que apenas nos restam fragmentos. 76 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 120.22: Nada denuncia melhor a falta de princpios morais do que este assumir alternado de diferentes rostos que, para cmulo da desfaatez, so, cada um deles, sempre diversos de si mesmos. Deves aceitar como um caso de excepo algum que s desempenhe um papel na vida. Na realidade, para alm do sbio, ningum se contenta em fazer s uma personagem, todos estamos em constante mudana. Ora nos damos ares de gente frugal e austera, ora de dissipadores e libertinos, para logo a seguir pormos no rosto a mscara oposta quela que acabmos de tirar. Exige portanto, de ti prprio que sejas at ao fim da vida aquilo que decidiste ser, e faz com que os outros, se no te enaltecerem, possam pelo menos reconhecer-te. De indivduos que ainda ontem encontrmos j hoje podemos ter o direito de perguntar: Quem este?, tal a mudana que neles se operou.

25

Para Sneca, o ser humano deve governar a sua vida de modo a torn-la uma

concors uita sibi (Ep. 89.15), isto , a sua vivncia tem de estar, at ao fim da sua

existncia, em conformidade com aquilo que escolheu ser. O que Sneca pretende

mostrar que quem quer abraar a uirtus no pode andar hesitante e dividido entre o

bem e o mal, entre a uirtus e o uitium, balanando entre o percurso correcto e o que

conduz ao erro. A partir do momento em que o homem faz uma escolha, ter de ser

constante. Deste modo se atinge a felicidade, por um lado, e a sabedoria, por outro.

Para os esticos, o mal fazia parte da ordem csmica. A noo que eles tinham

de que a par do bem existe o mal (permitindo criar um certo equilbrio natural, como j

referimos) levava a ter como objectivo alcanar o Supremo Bem por isso se considera

a doutrina do Prtico como uma tica de ascese. O caminho que o sbio escolhe um

percurso que implica um aperfeioamento interior que no descura uma anlise crtica

diria e ininterrupta. Esta passa pela auto-anlise, ou exame de conscincia, dos seus

actos e pensamentos77, para poder alcanar a uirtus. Para Sneca a soluo : instemus

itaque et perseueremus; plus quam profligauimus restat, sed magna pars est profectus

uelle proficere78. Este exame crtico permite ao homem tomar conscincia de si e do que

o rodeia, verificando se est a enveredar pelo caminho da uirtus ou pelo do uitium79.

Assim, o encontro com a virtude passa pelo uso contnuo da Razo que permite ao

sbio disciplinar-se e evitar todo o gnero de affectus.

A virtude, por sua vez, considerada pelos esticos como uma perfeio comum

a todos: isto , todos a podem alcanar se para isso orientarem a vida e as suas escolhas.

Cabe assim ao sapiens uma vez que vive em conformidade com a natureza e tem a

capacidade de usar a Razo com constncia e consistncia, encontrando harmonia e paz

na alma ensinar aos outros o caminho para chegar uirtus, orientando-os,

aconselhando-os, levando-os a compreender as suas limitaes e, sobretudo, a aceitar as

suas fraquezas e a dos outros80, para melhor as poder corrigir.

77 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 13.6: Quando tiveres tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que s um desgraado pensa bem, no nas palavras que ouves, mas sim naquilo que tu prprio sentes; analisa a tua capacidade de resistncia (...), pois s o melhor conhecedor de ti mesmo. 78 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 71.36: S h uma soluo, portanto: ser firme e avanar sem descanso. O caminho que resta percorrer mais longo que o j percorrido, mas grande parte do progresso consiste na vontade de progredir. 79 Sneca, De Ira, 3.36; vide Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca (Lisboa: Edies Colibri, 1993), 12. 80 Cf. Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca, 13.

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Crisipo entende que o estoicismo uma medicina que permite alcanar a cura da

alma: est profecto animi medicina, philosophia; cuius auxilium non ut in corporis

morbis petendum est foris, omnibusque opibus uiribus ut nosmet ipsi nobis mederi

possimus elaborandum est81. Contudo, como sugere Sneca, a cura s possvel quando

qualquer indcio de paixo extrado por completo. No basta adormecer o uitium, h

que excis-lo: optimum est primum irritamentum irae protinus spernere ipsisque

repugnare seminibus et dare operam, ne incidamus in iram82.

A virtude , assim, um bem no qual se contemplam, em geral, dois gneros.

Digenes Larcio considera a virtude no-intelectual (), como o caso da

sade, e a intelectual (), como por exemplo a prudncia e a justia83. Esta

diferena entre virtudes intelectuais e no-intelectuais permite distinguir aquelas que so

naturais que os homens insensatos tambm possuem das que so exclusivas dos

sbios, porque implicam um percurso interior de ascese.

Entendendo que as virtudes so bens, o nmero total destes bens varia. Pancio

considera duas virtudes (terica e prtica), outros estabelecem trs (racional, natural e

moral), Apolfanes apenas uma (a prudncia). Cleantes, Crisipo e Antpatro, muitas.

Apesar desta divergncia, aceite pela generalidade dos esticos a diviso de todas as

virtudes em primrias e subordinadas porque estabelecem uma relao de

subordinao com as antecedentes.

As primrias so, seguindo os esticos, neste particular, a sistematizao

platnica, quatro: a sabedoria ( ou ), a coragem (), a justia

() e a prudncia (). Como virtudes subordinadas da sabedoria

temos a magnanimidade, a pacincia e a prudncia. A coragem implica sempre uma

aco que permita um acto de escolha, de fuga ou de indiferena84. A justia , como

refere Ccero, habitus animi communi utilitate conseruata suam cuique tribuens

dignitatem85. A prudncia leva ao estudo dos elementos constituintes da natureza

identificando, alm das virtudes, os indiferentes e as paixes. Sneca, porm, divide o

bem em trs classes: o da primeira diz respeito a manifestaes como o gaudium, a pax,

a salus patriae; o da segunda refere-se tormentorum patientia et in morbo graui

temperantia (resistncia tortura ou a firmeza de nimo durante uma doena grave); o

81 Ccero, Tusculanae Disputationes, 3.6. 82 Sneca, De Ira, 1.8.1. 83 Digenes Larcio, 7.90. 84 Digenes Larcio, 7.92-93. 85 Ccero, De Inuentione, 2.160.

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bem da terceira classe est relacionado com o modestus incessus et compositus ac

probus uultus et conueniens prudenti uiro gestus (modstia das atitudes, a serenidade e

a honestidade do rosto, os gestos adequados a uma pessoa de bom senso)86.

Em contraponto a estas quatro virtudes associam-se quatro vcios ou quatro

males: a insensatez, a cobardia, a injustia e a imprudncia. Igualmente a estes quatro

vcios se subordinam outros: incontinncia, torpeza relativamente mente e mau

conselho87. Digenes Larcio identifica o vcio como o desconhecimento de tudo o que

virtuoso. Este um aspecto que leva os esticos a afirmarem que as virtudes, visto

serem um saber, podem ser ensinadas. A vantagem daquele que se dedica ao estudo da

virtude , uma vez apreendida esta faculdade, no mais a perder.

Tambm a lgica e a fsica fazem parte das virtudes enumeradas pelos filsofos.

A fsica vista como uma moral e como um modus uiuendi que tem como princpio

fundamental a Razo. a virtude que conduz o homem sabedoria, mas, mais do que

isso, ela tida como a prpria sabedoria.

Nem tudo os esticos consideram como bens e males, virtudes e vcios.

Entendem que h os indiferentes ()88. So indiferentes tudo o que esteja

relacionado com o corpo, como por exemplo, a vida, a morte, a sade, a doena, a

beleza, a fora, a riqueza, o prazer, a dor, a glria89; ou com aquilo que vem do exterior,

visto no causar nem alegria nem tristeza em quem o experimenta. Apenas o uso que o

homem faz dos indiferentes permite torn-los teis ou malficos. Um exemplo

significativo o da fora, o elemento que melhor caracteriza a personagem Hrcules. O

uso que ele faz da fora, que passa por ser excessivo e violento, revela ser

inconveniente, uma vez que ele tanto a utiliza para as boas como para as ms aces.

Os esticos reconhecem, ainda, nos indiferentes dois valores: convenientes ou

inconvenientes ou, na designao de outros esticos, preferveis () ou

rejeitveis (), segundo o nosso prprio impulso (). Avaliando-os, o

homem deve aceitar o que for conveniente, ou evit-lo, caso seja inconveniente: os

indiferentes sade / doena, por exemplo, tornam-se assim opostos pois aquela

conveniente / prefervel e esta inconveniente / rejeitvel.

86 Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 66.5. Veja-se tambm Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca, 17. 87 Digenes Larcio, 7.93. 88 O termo indiferente usado para identificar trs distintos estados de esprito: em primeiro lugar designa aquilo que no causa nem desejo nem averso; segundo, indiferente o que causa em simultneo desejo e averso; por ltimo, aquilo que no concorre nem para a felicidade nem para o infortnio. 89 Vide Sexto Emprico, Aduersus Mathematicos 9.59 e ss.

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O que importa saber aceitar tudo o que acontece de bom e de mau, porque tem

origem na Providncia90. Esta tomada de conscincia e aceitao permite-lhe viver em

liberdade porque em harmonia com a Natureza. Ccero revela quais so os requisitos

para um sapiens:

Ergo, hic, quisquis est qui moderatione et constantia quietus animo est sibique ipse placatus, ut nec tabescat molestiis nec frangatur timore nec sitienter quid expetens ardeat desiderio nec alacritate futili gestiens deliquescat, is est sapiens quem quaerimus, is est beatus, cui nihil humanarum rerum aut intolerabile ad demittendum animum aut nimis laetabile ad ecferendum uideri potest. Quid enim uideatur ei magnum in rebus humanis, cui aeternitas omnis totiusque mundi nota sit magnitudo? Nam quid aut in studiis humanis aut in tam exigua breuitate uitae magnum sapienti uideri potest, qui semper animo sic excubat, ut ei nihil inprouisum accidere possit, nihil inopinatum, nihil omnino nouum?91

, ento, sbio todo o homem que moderado, que consegue manter uma

tranquilidade de esprito, vive em paz consigo mesmo, sem se deixar dominar por

qualquer tipo de affectus. Como explica Maria Cristina Pimentel, O sapiens , assim,

aquele que no se deixa atingir pela adversidade, que orienta os indiferentes no sentido

do bem, que procura as virtudes e afasta os vcios92. Apenas o insensato se revolta

contra o Destino, e todas as aces que aquele possa praticar, por mais nobres que

aparentem ser, no so mais do que falsas virtudes. Hrcules, no Hercules Furens,

revela ser o modelo de uma personagem insensata que no consegue controlar as suas

emoes.

As paixes (, affectus) so movimentos desordenados e impetuosos que

ocorrem ao nvel da alma, so corpos que nela se manifestam e que so contrrios

Natureza93. Paixo definida por Zeno, segundo testemunha Digenes Larcio, do

seguinte modo:

94. Ccero adaptou esta definio para latim: ut perturbatio

sit, quod ille dicit, auersa a recta ratione contra naturam animi commotio.

90 Cf. Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca, 18. 91 Ccero, Tusculanae Disputationes 4.17.37. 92 Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca, 19. 93 Ccero, Tusculanae Disputationes, 4.15. 34. 94 Digenes Larcio, 7.110.

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Quidam breuius perturbationem esse adpetitum uehementiorem, sed uehementiorem

eum uolunt esse qui longius discesserit a naturae constantia95.

O conceito de paixo assume para os esticos dois sentidos: ou originada por

um movimento contrrio razo, ou ento uma tendncia que no tem controlo (como

acontece com Hrcules). Em ambos os casos, mostra ser um sentimento que se

manifesta na alma e que se ope aos princpios da natureza. A alterao que a paixo

provoca na alma determinada por uma perturbatio, ou seja, por um movimento

desordenado e doentio96, que vai de encontro Razo.

Assim, consideram os esticos que, tal como o corpo est exposto a

adversidades exteriores que podem lev-lo a adoecer, tambm a alma pode ficar doente

e fraca. As paixes so as doenas da alma e Digenes Larcio sugere algumas a que a

alma fica sujeita: (inveja), (misericrdia) e (discrdia)97.

Entendidas como perturbationes98, elas so provocadas no ntimo do homem e

no tm como causa uma divindade, como os autores gregos clssicos acreditavam.

Estes julgavam que o ser humano era vtima das foras superiores (em particular, a

Necessidade99) com as quais ele no poderia combater ou sequer opor-se-lhes porque

eram uma fora que tudo controla. Assim se explicam a morte dos filhos de Hracles,

em Heracles, e a sua prpria morte, nas Trachiniae, ou mesmo a morte de Laio e o

incesto de dipo, no Oedipus Tyrannus.

Os uitia () so, assim, o resultado de uma m interpretao, de um juzo

errado por parte do homem, causando agitao e inconstncia, e acabam por escravizar

o prprio homem. Todo aquele que se deixa dominar pela mente sem controlo no

consegue discernir os perigos que se avizinham.

Tendo por base a ideia de que as paixes so erros de avaliao, os esticos

enumeram quatro uitia primrios: o desgosto (), o medo (), o desejo sensual

() e o prazer (). Cada um deles tem manifestaes fsicas no ser

humano100. Na tragdia em anlise, vemos que Anfitrio se deixa levar pelo medo (pela

ausncia do filho, pela falta de segurana) e pelo desgosto (sente terror pela morte dos

Heraclidas); Mgara, pelo medo e pelo desejo; Lico pelo prazer e Juno pelo desejo (o

95 Ccero, Tusculanae Disputationes, 4.6.11. 96 Vide Jos Pedro Serra, Pensar o Trgico: Categorias da Tragdia Grega, 80. 97 Digenes Larcio, 7.115. 98 Vide Ccero, Tusculanae Disputationes, 4.15. 99 Vide G. Rodis Lewis, La Morale Stocienne (Paris: Presses Universitaires de France, 1970), 109. 100 Vide Sneca, Ad Lucilium Epistulae Morales, 106.6.

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dio e a ira que nutre por Hrcules f-la procurar incessantemente um modo de destru-

-lo; a deusa movida ainda pela dolor por ter sido preterida por Jpiter).

Alm disso, estes quatro uitia podem ser divisveis segundo um par de binmios:

so erros de juzo em relao a um tempo presente ou a um tempo futuro; so erros de

valor entendendo que algo aparentemente bom ou mau. E cada uitium tem vrios

subordinados. Do sentimento desgosto101, que provoca na alma uma contraco

irracional (), vem a piedade, a inveja, o cime, a rivalidade, a angstia, a

perturbao, o desgosto, a aflio e a confuso. O medo est relacionado com uma

expectativa do mal102 e compreende a hesitao, a vergonha, o terror, o pnico e a

ansiedade. O prazer103, que um desejo irracional por algo que parece ser agradvel,

compreende a vaidade, o regozijo com a desgraa alheia, a voluptuosidade e a

devassido. O desejo104, tido como um apetite irracional, inclui o dio, a rivalidade, a

clera, o amor, o desejo de vingana, a fria105.

Por oposio s paixes106, os esticos tinham em conta trs estados emocionais

que julgavam como bons estados () e que eram: alegria () contrrio do

prazer, implica o contentamento, a jovialidade e o bom humor; prudncia (,

cautio) oposto ao temor, abrange o campo o pudor e a castidade; vontade (,

uoluntas), que se ope ao desejo, e tem como manifestaes a benevolncia, a calma,

doura e afecto107.

Estes estados emocionais so do domnio da Razo, por isso no so vistos como

uitia. A vontade, por exemplo, contrasta com o (desejo que tem origem na alma)

e com a (desejo do corpo em relao comida, bebida, libido).

Como enuncimos, as paixes so movimentos irracionais provocados por juzos

de valor errados, o que comprova a tese da existncia da liberdade humana, apesar de

condicionada pela aco do Destino, que comanda tudo. Na verdade, os esticos

acreditam na fora que o Destino exerce sobre o homem, mas a forma como este aceita

ou nega esta fora implica um acto de liberdade.

101 O desgosto um erro de percepo de algo que est a decorrer no presente e tido como algo mau. 102 O medo corresponde a um erro de avaliao que consiste em julgar que algo de futuro acontecer e ter consequncias funestas. 103 O prazer um sentimento que aparenta ser bom e diz respeito ao momento presente. 104 O desejo no mais do que uma aparncia de algo bom e que entra no domnio do tempo futuro. 105 Ver Ccero, Tusculanae Disputationes, 4.7.16, 4.9.22. 106 Tendo as paixes origem num estado de alma contrrio razo, num desequilbrio emocional, o seu contrrio tambm existe, isto , existem de igual modo affectus entendidos como bons e que pertencem ao foro da Razo. 107 Vide Maria Cristina Pimentel, Quo Verget Furor? Aspectos Esticos na Phaedra de Sneca, 21-22.

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Sneca lembra a Luclio a possibilidade de continuar livre mesmo quando a

Fortuna entra em guerra com o ser humano:

Fortuna mecum bellum gerit: non sum imperata facturus; iugum non recipio, immo, quod maiore uirtute faciendum est, excutio. Non est emolliendus animus: si uoluptati cessero, cedendum est dolori, cedendum est labori, cedendum est paupertati; ide