universidade de lisboa faculdade de letras departamento de...

107
UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS «EN LAS SELVAS VIVE AMOR»: RELAÇÕES SOCIAIS E HUMANAS EM EL PASTOR DE FÍLIDA DE LUIS GÁLVEZ DE MONTALVO ANA FILIPA MORAIS SILVA SANTOS MESTRADO EM ESTUDOS ROMÂNICOS ESTUDOS HISPÂNICOS 2012

Upload: others

Post on 12-Mar-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE LITERATURAS ROMÂNICAS

«EN LAS SELVAS VIVE AMOR»:

RELAÇÕES SOCIAIS E HUMANAS

EM EL PASTOR DE FÍLIDA

DE LUIS GÁLVEZ DE MONTALVO

ANA FILIPA MORAIS SILVA SANTOS

MESTRADO EM ESTUDOS ROMÂNICOS

ESTUDOS HISPÂNICOS

2012

Page 2: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

Universidade de Lisboa

Faculdade de Letras

Departamento de Literaturas Românicas

«EN LAS SELVAS VIVE AMOR»:

RELAÇÕES SOCIAIS E HUMANAS

EM EL PASTOR DE FÍLIDA DE LUIS GÁLVEZ DE MONTALVO

Ana Filipa Morais Silva Santos

Dissertação Orientada Por

Professora Doutora Cristina Almeida Ribeiro

Mestrado em Estudos Românicos Estudos Hispânicos

2012

Page 3: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

ÍNDICE

Agradecimentos ............................................................................................................... 1

Resumo ............................................................................................................................ 3

Introdução ........................................................................................................................ 6

I. Fortunas de um «Giro Audaz»: Gálvez de Montalvo e a Novela Pastoril Espanhola . 8

A Arte de Contar: desde La Diana a El Pastor de Fílida .................................... 9

Universo Ficcional de El Pastor de Fílida ........................................................ 13

Montalvo e a Arcadia de Sannazaro: uma Novidade Antiga ............................ 18

II. Quanto vai de «Zagal» a «Rabadán»: Alicerces de uma Sociedade Pastoril ............ 21

Ensaios de uma Hierarquia Pastoril ................................................................... 24

Uma Sociedade de Sociedades .......................................................................... 31

III. «Debajo del Sayal hay Al»: As Relações Familiares .............................................. 40

Família e Sociedade ........................................................................................... 43

IV. O Logro de Horácio: Aspectos do Binómio Aldeia/Corte ...................................... 51

Instabilidade de Charneiras ............................................................................... 55

Aldeia/Corte: de Binómio a Monómio? ............................................................ 58

V. Na «Fuente de los Alisos»: As Relações Humanas .................................................. 69

Amor e Amizade ................................................................................................ 72

A Enganosa Harmonia do Amor ....................................................................... 81

Conclusões ..................................................................................................................... 89

Bibliografia .................................................................................................................... 91

Page 4: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

1

AGRADECIMENTOS

Ao contrário do que é habitual em trabalhos desta índole, a presente dissertação

nasceu, como ideia, numa data situável: 20 de Julho de 2011. Todavia, não só a partir de

então comecei a contrair algumas dívidas de que infinitamente me orgulho: algumas são

tão vetustas, que se vão confundindo com os trabalhos para os quais confluíram,

arriscando-se a passar sem um agradecimento mais explícito. Procurarei começar a

compensá-lo modestamente nestas linhas.

Não será excessivo dizer que à professora Dra. Cristina Almeida Ribeiro devo

praticamente tudo na concretização deste trabalho: à sua dedicação irretribuível devo,

desde o início, um entusiasmo que nunca antes me caracterizara; à sua crítica atenta

devo a seriedade que procurei manter ao longo das minhas reflexões; às suas sugestões

generosas devo incontáveis acertos, sem os quais este trabalho seria outro; à sua

surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata e a chave-de-

ouro deste estudo: respectivamente, o tema e o título. Entre um e outro, jazem os meus

erros e os seus conselhos avisados.

Agradeço aos professores Drs. Vanda Anastácio e Ernesto Rodrigues, cujas

aulas representaram o meu primeiro contacto sério com a literatura da Renascença, que,

desde o Secundário, me tem proporcionado as minhas mais genuínas alegrias.

Às professoras Dras. Ângela Fernandes e Fátima Freitas Morna devo não menos

do que a minha predilecção pela literatura espanhola, que intensamente me acompanha

há quatro anos.

Page 5: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

2

Agradeço também à professora Dra. Maria João Almeida, que guiou as minhas

primeiras incursões na literatura italiana – uma paixão nascente que neste trabalho

timidamente se começa a fazer sentir.

Não poderia deixar de exprimir o meu reconhecimento à professora Dra. Teresa

Amado, que, nos primeiros meses da minha Licenciatura, procurou incutir em mim

alguns valores fundamentais que transcendem (e integram) qualquer área de estudos: a

honestidade, a prudência e a modéstia. Espero não os ter traído demasiado.

Gostaria igualmente de deixar um sinal de profunda gratidão a uma pessoa que,

entretanto, perdi: a minha professora Ana Puga, do Secundário. Sem o seu exemplo

intelectual, sem a sua ternura e paciência indefectíveis, eu jamais me haveria

determinado a traçar o meu próprio rumo. Ainda há um não sei quê de seu em certas

ideias literárias que cultivo.

À diligência e amabilidade do Serviço de Empréstimo Interbibliotecas da FLUL

devo a leitura atempada de várias obras imprescindíveis, sem o conhecimento das quais

este trabalho se revelaria francamente mais pobre.

Ao João P. tenho muito a agradecer, por dez anos de amizade e pelo seu elegante

e lúcido rancor em relação aos clássicos, que, por ironia, me leva a procurar

continuamente motivos novos para os amar – e a encontrá-los.

Aos meus amigos cientistas, à Ana, ao André, à Catarina, ao Luís – o que direi?

Muito obrigada pela confiança risonha com que encararam, desde os primórdios, as

minhas insensatezes livrescas!…

À minha família (com a habitual promessa de que, nalgum dia futuro, deixarei os

descuidos da frauta pela austeridade da tuba) agradeço sobretudo a paciência com que

sofreu e compreendeu uma necessidade de isolamento excessiva até em mim.

Às várias turmas que me acompanharam nos Seminários de Mestrado, com

quem partilhei ideias e riscos, adversidades e entusiasmos: muito obrigada pelo alento!

Page 6: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

3

RESUMO

Fruto de uma engenhosa assimilação de tradições, a novela pastoril de Luis

Gálvez de Montalvo veicula, de forma discreta mas irrefutavelmente sugestiva,

princípios que permitirão, não apenas alargar o espectro de possibilidades estéticas de

um género particularmente codificado e reiterativo, mas ainda (e sobretudo) brindar as

décadas subsequentes com uma fórmula pastoril algo mais maleável e tão adequada às

suas circunstâncias como a trilogia das Dianas o fora em relação à época que a viu

nascer. Para além de propor um confronto selectivo com uma secular herança literária,

El Pastor de Fílida explora ainda as potencialidades alusivas da matéria pastoril,

impondo-se como retrato (ou auto-retrato) da sociedade cortesã de quinhentos, algo

idealizado, de resto, como o são todos os retratos em tempos optimistas.

O estudo que se segue procurará oferecer uma reflexão acerca do hibridismo

polifacetado que acabamos de frisar, bem como das suas implicações num contexto

poético e ideológico que simultaneamente se assume e se fragiliza. Em última instância,

observar-se-á o modo como a proposta aventada por Gálvez de Montalvo, em perfeita

sintonia com os valores socio-culturais datáveis a que se subordina, marca uma decisiva

inflexão na novela pastoril espanhola dos Siglos de Oro, reservando para si, contudo, o

privilégio de uma indizível ironia de universalidade.

PALAVRAS-CHAVE

El Pastor de Fílida

Luis Gálvez de Montalvo

Novela Pastoril

Novela en clave

Siglos de Oro

Page 7: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

4

RESUMEN

Fruto de ingeniosa asimilación de tradiciones, la novela de Luis Gálvez de

Montalvo vehicula, de forma sutil aunque indudablemente sugestiva, principios que

permitirán diversificar las características estéticas de un género literario tan codificado y

reiterativo como es la novela pastoril, además de legar a la posteridad una fórmula

pastoril algo más maleable y tan apropiada a sus circunstancias como lo había sido la

trilogía de las Dianas respecto a su época. Confrontando una herencia literaria secular,

El Pastor de Fílida explora aun las potencialidades alusivas de la temática pastoril,

destacándose como retrato (o autoretrato) idealizado de la sociedad cortesana del siglo

XVI.

En la presente disertación intentamos reflexionar sobre este multifacetado

hibridismo y sus implicaciones en un contexto poético e ideológico que a la vez se

asume y fragiliza. Al fin observaremos como la propuesta de Gálvez de Montalvo, en

perfecta sintonía con los valores socioculturales de su tiempo, marca el inicio de un

nuevo rumbo a la novela pastoril de los Siglos de Oro, reservándose el privilegio de una

indecible ironía de universalidad.

PALABRAS-CLAVE

El Pastor de Fílida

Luis Gálvez de Montalvo

Novela Pastoril

Novela en Clave

Siglos de Oro

Page 8: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

5

À cidade de Toledo,

la más felice tierra de la España

e pátria do meu coração.

Page 9: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

6

INTRODUÇÃO

Com a desafiante elegância de uma sombra, o nome de Luis Gálvez de Montalvo

atravessa, velozmente, as páginas de alguns volumes de História da Literatura

Espanhola. Por vezes, a pena do agudo crítico cede às insinuações dessa sombra,

traçando linhas de uma insuspeitada sugestividade, que, todavia, pouco mais deixam ao

leitor do que uma curiosidade já sedutora, já olvidada, semelhante a tantas outras

curiosidades que vai entesourando, provando as agruras de uma condição que o obriga a

fazer escolhas.

À exiguidade das propostas de leitura alia-se a míngua de edições da única obra

de fôlego do autor que sobreviveu ao curso dos séculos: a novela pastoril intitulada El

Pastor de Fílida. O género literário em que este texto se insere e que tanto dignificou

tão-pouco constitui um convite persuasivo à sua leitura, dado o escasso interesse que,

até ao dealbar do século XX, despertou entre leitores mais ou menos informados. Desde

que Menéndez Pelayo incluiu, nas suas ambiciosas Orígenes de la Novela, um capítulo

dedicado à Novela Pastoril, é certo que este género tem sido alvo de leituras cada vez

mais atentas, mais exigentes e mais optimistas. Porém, El Pastor de Fílida, presente já

nessa primeira análise global, não constitui um objecto privilegiado dos estudos

literários que se lhe seguiram, ao contrário do que fariam prever os significativos

encómios que, desde então, lhe tem tributado a crítica. De um modo geral, a obra de

Gálvez de Montalvo é mencionada ou até sumariamente discutida em trabalhos mais

amplos, dedicados à evolução da Novela Pastoril enquanto género ou à expressão

transversal de determinado tópico. As interessantes observações que, nesses trabalhos

onde ocupa um mero lugar secundário, amiúde suscita impõem a urgência de estudar El

Pastor de Fílida autonomamente, numa tentativa de abranger, de forma (quanto

possível) metódica e detida, as muitas singularidades que o distinguem. Alguns esforços

têm sido reunidos nesse sentido, respondendo a uma dupla necessidade: a de desvendar

Page 10: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

7

o segredo biográfico que o texto, acaso, encerra, e a de compreender a sua articulação

com o género e o imaginário cujas heranças claramente reivindica.

A decisão de examinar a originalidade desta obra a partir da problemática das

relações sociais e humanas, para as quais conflui todo o universo ficcional nele

arquitectado, brotou naturalmente da leitura de uma recente tese de Doutoramento,

acompanhada pela edição do texto, da autoria de Miguel Ángel Martínez San Juan

(2003), trabalho que redundou na mais actual edição crítica do Pastor de Fílida (2006).

A cuidada análise comparativa a que o autor procede, salientando as afinidades entre

esta novela pastoril e os postulados de alguns tratados filográficos de grande fortuna no

século XVI, é já sintomática da sua natureza híbrida. Na modesta proposta de leitura

que seguidamente apresentamos, pretendemos aprofundar um pouco mais essas

fecundas irregularidades. Adoptando, por vezes, um raciocínio comparativo, a

perspectiva que manteremos será predominantemente literária, sem prejuízo dos

eventuais cruzamentos que a interpretação de uma novela en clave sempre requer.

Possam as linhas que se seguem tornar mais nítida – já que não fixar – a sombra

desse gran, gran ignorado.

Page 11: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

8

CAPÍTULO I

FORTUNAS DE UM «GIRO AUDAZ»

Gálvez de Montalvo e a Novela Pastoril Espanhola

Alguns autores estimam que El Pastor de Fílida se encontraria já concluído ou

em curso no final da década de sessenta do século XVI, muito antes da sua publicação,

em 15821, o que cronologicamente a aproximaria do ciclo fundador das Dianas, a

última das quais, a Diana enamorada, da autoria de Gaspar Gil Polo, data de 15642.

Este facto torna mais surpreendente a manifesta distância que aparta as concepções

novelescas implícitas no texto de Montalvo daquelas que haviam orientado

Montemayor e, em parte, os seus continuadores, Alonso Pérez e Gil Polo.

É justamente deste distanciamento em relação aos exemplares anteriores do

género que se ocuparão as linhas subsequentes, visando um duplo propósito: por um

lado, oferecer um modesto contributo para uma reflexão ainda por realizar (pelo menos

com a profundidade necessária) sobre o lugar do Pastor de Fílida na novela pastoril

espanhola do período áureo; por outro, tentar um primeiro acercamento ao texto,

recorrendo a obras mais divulgadas e discutidas, procurando, contudo, evitar defini-lo

pela negativa, recurso fácil mas sempre pouco satisfatório.

1 López Estrada conjectura que a escrita da novela estaria em curso em 1568 (cf. 2001: pp.160-161); Fucilla dá-a por concluída no ano de 1569 (cf. 1942: p.35). Arribas aventa uma data mais tardia, 1580 ou 1581, que corresponderia à composição posterior do «Canto de Erión» (cf. 2004: p.282). 2 Excluímos destas considerações a Diana Tercera (1627), de Jerónimo Tejeda, pelo seu valor e legitimidade duvidosos (cf. Avalle-Arce, 1975: pp.128-135), bem como a Primera parte de la Clara Diana a lo divino (1599), de Bartolomé Ponce, que, enquanto glosa a lo divino, cumpre propósitos substancialmente distintos.

Page 12: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

9

Dividiremos estas observações iniciais em dois momentos, ocupando-nos, no

primeiro, de algumas características de ordem mais formal, e, no segundo, das distintas

concepções do universo pastoril propostas pelos textos.

A Arte de Contar: desde La Diana a El Pastor de Fílida

Um dos aspectos que singularizam, dentro do vasto caudal das novelas pastoris,

La Diana, de Jorge de Montemayor, é a confluência habilmente lograda de enredos

novelescos, cuja variedade, para além de seduzir o ávido e heterogéneo público de

quinhentos, interessa ao estudioso hodierno por delatar heranças literárias diversas, de

grande fortuna na época do cortesão português (cf. Chevalier, 1974: p.46).

La Diana constitui não somente um cancioneiro dotado de especial dinamismo3,

mas ainda um amplo repertório novelesco. A natureza algo dispersiva desta

acumulação, para além de apagar os percursos de Diana e Sireno (hipotéticos

protagonistas), caracteriza-se pela autonomia de cada novela interpolada: até ao

encontro no palácio encantado de Felicia (livro quarto), as histórias de Sireno, Silvano,

Selvagia, Felismena e Belisa são independentes e, com excepção dos três primeiros

casos, tornam a sê-lo nos livros seguintes, quando cada personagem segue o seu rumo

próprio4. Trata-se de uma novidade em relação ao modelo da novela bizantina, cuja

diversidade de fios narrativos resulta da ramificação de um núcleo central que torna a

reatar-se no desfecho5. Assim, «no ha[y] personajes de segunda fila, sino que todos

apare[cen] en primer plano, como las figuras de los tapices» (Moreno Báez, 1955:

3 «La pastoril, por la naturaleza de su contenido, se prestaba como estructura idónea para difundir poemas y de ello se supieron aprovechar muchos autores […], haciendo de estas obras pequeños cancioneros» (Castillo Martínez, 2008). El Prado de Valencia (1600), de Gaspar Mercader, e La Cintia de Aranjuez (1629), de Gabriel de Corral, constituirão os mais acabados e auto-conscientes exemplares do que poderíamos designar como “novela-cancioneiro”. 4 A simetria da estrutura novelesca da Diana tem sido amiúde assinalada pela crítica (cf. Solé-Leris, 1980: p.34). 5 Não secundamos, pois, a afirmação de López Estrada: «hay en la Diana un desarrollo semejante [refere-se às Etiópicas, de Heliodoro] del argumento, y en el cruce de historias en un punto, que luego divergen en varios sentidos, corren paralelas a veces, y vuelven a encontrarse para buscar la solución» (1970: p.LXXXII). Sucede que, como vimos, existe um só momento em que estas narrativas convergem: o livro quarto.

Page 13: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

10

p.XX); ora, carecendo a novela de «personajes de segunda fila», carece também de uma

distinção entre acção principal e acção secundária.

Ao recuperar, na Diana enamorada, figuras secundariamente mencionadas na

primeira Diana e ao conceder-lhes um destino próprio, Gil Polo estreita um tanto os

laços entre as “novelas” soltas, reunindo os “fios” que faltavam e aproximando-se mais,

portanto, do modelo bizantino (recorde-se o episódio extraído das Etiópicas,

protagonizado por Montano e Felisarda, e a história de Marcelio, Alcida e Clenarda com

um sabor a Heliodoro ou Aquiles Tácio). Assim, atalha as possibilidades de

continuação, algo que não entrava nos propósitos de Montemayor e de Alonso Pérez em

relação às suas6.

Esta convocação de narrativas de diversa proveniência tem ainda outras

implicações. Uma das mais imediatas é a instabilidade temporal, que perturba, não a

sequência dos acontecimentos, mas a sua exposição, visto que o presente narrativo

abrange pouco mais do que os vários desenlaces. Torna-se assim forçoso recorrer

constantemente a analepses, alcançando alguns dos relatos pessoais uma extensão tal,

que o leitor chega a olvidar, por instantes, que o que está a ler não decorre “diante dos

seus olhos”, até que um ponto final (ou um suspiro ou um copioso pranto) emudece a

personagem.

A proliferação espacial é, igualmente, produto e causa de dispersão nas Dianas.

Moreno Báez distingue três cenários: «pastoril en la historia de Selvagia, cortesano en la

historia de Felismena y pueblerino en la de Belisa» (1955: p.XIX). Merece reparo o

relevo que cada um deles adquire na recordação das personagens: por exemplo, a aldeia

de Selvagia, por ela pitorescamente descrita (Montemayor, 2008: pp.139-139), ou a

corte vividamente pintada por Felismena, que, constituindo um espaço humano e

artificial por excelência, é identificada menos pelas suas peculiaridades físicas do que

pelos seus moradores (p.207). Relativamente às «riberas del río Ezla» (p.108), estes

espaços não se afiguram mais secundários do que as narrativas intercaladas o são

perante a suposta narrativa principal.

Ora, El Pastor de Fílida adopta, visivelmente, uma estratégia distinta. Dividida,

à semelhança da primeira Diana, em sete livros, a sua estrutura narrativa apresenta uma

linearidade invulgar na novela pastoril espanhola. À índole dispersa das Dianas

6 No prólogo à sua novela, escreve Alonso Pérez que casar Diana e Sireno «era en algun modo cerrar las puertas para no poder más de ella escreuir» (apud Alonso Cortés: 1933, p.198).

Page 14: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

11

contrapõe a unidade de acção; aos saltos cronológicos, a narrativa linear; à

multiplicidade de espaços, uma única paisagem pastoril.

Seguindo a tradição estabelecida por Montemayor, a primeira frase da novela

situa vagamente – numa geografia real e concreta, embora – o cenário dos

acontecimentos. De imediato, porém, e atropelando a descrição do quadro pastoril

aguardada pelo leitor, é apresentado Mendino, a partir do qual o universo humano se

expande: Castalio, Cardenio e Córidon (p.213), Filena, Nise, Padelia, Clori, Nerea e

Elisa (p.214), Sireno, Galafrón, Barcino, Mireno, Liardo e Filis (p.217), Bruno e

Taurino (p.219), Padileo (p.224), Siralvo (p.229), Fílida, (p.230), Arciolo, Tirsi,

Campiano, Belisa, Sasio, Matunto, Filardo, Arsiano e Pradelio (p.231). Na segunda

parte, com Alfeo (p.245) e Finea (p.249), é completado o rol de participantes nesta

novela.

A recolha de personagens a que acabamos de proceder permite detectar uma

significativa peculiaridade do Pastor de Fílida: em lugar de irem aparecendo, as figuras

são enfileiradas, apresentadas e “arrumadas” no mundo ficcional a que pertencem desde

o início, não dando lugar, assim, a súbitos desvios narrativos semelhantes aos que

dinamizam as novelas anteriores. Apenas Andria e Orindo entrarão em cena numa fase

mais tardia; não obstante, através dos diálogos entre Alfeo, Finea e Siralvo, já o leitor

está a par das suas histórias: ninguém assalta de surpresa as auríferas margens do Tejo.

Os percursos de personagens tão próximas não podem senão estar entrelaçados,

mutuamente condicionados, numa teia social que os implica a todos e que adiante

estudaremos. Evoluem de forma sincrónica, impondo a necessidade de apresentar, por

vezes, o “ponto da situação” das relações sociais e afectivas, que abarcam casos

diversos (pp.369, 386). Urge, contudo, estabelecer prioridades, pelo que depressa o

leitor se apercebe da existência de linhas narrativas de primeira ordem – as relações

amorosas entre Siralvo e Fílida, entre Mendino e Elisa e entre o quarteto amoroso

Andria-Alfeo-Finea-Orindo – e de outros enredos secundários, que gravitam em torno

daquelas, como para as aclimatarem num meio dominado todo pelo amor. Estas linhas

secundárias nunca comprometem as principais, e, inclusivamente, os “reajustes” e

permutas que admitem entre si operam-se com alguma suavidade, quando não para os

envolvidos, ao menos para o âmbito ficcional, não se contando nenhum lance novelesco

tão brusco que se exima a uma pacífica previsibilidade.

Dada esta coesão estrutural, os sucessos encaminham-se com naturalidade para o

seu desfecho, dispensando um clímax medial semelhante ao que marca a novela de

Page 15: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

12

Montemayor. Assim, no intervalo entre uma introdução e uma conclusão, a narrativa

progride num sentido único, lógico e linear. Se a acção das Dianas se reduz à soma de

alguns dias, El Pastor de Fílida abarca cerca de três a quatro anos. Evidentemente,

torna-se imperiosa a eleição de alguns trechos da vida pastoril, disseminados ao longo

de tão vasto segmento temporal – os mais relevantes para a compreensão de factos que,

em lugar de se sucederem de forma imprevisível, são engendrados por um tempo

humanizado e lógico. O narrador, sempre cioso de ordem, não deixa de esclarecer o seu

leitor quanto à localização relativa destes “trechos”: «Tres veces se vistió el Tajo de

verdura y otras tantas se despojó de ella» (p.240); «Haré una cosa dificultosa para mí,

pero fácil para todos, que será pasar en silencio lo que nos queda del florido abril y del

rico y deleitoso mayo» (p.369). A exposição dos acontecimentos quase nunca quebra a

sua ordenada sequência cronológica, até porque este procedimento permite justificá-los

através do efeito do tempo sobre a alma humana, sobretudo quando em permanente

convívio com as outras. Uma prolepse e uma analepse constituem as raras excepções: a

primeira, nas lúgubres profecias do mago Sincero acerca do precoce falecimento de

Elisa (pp.238-239); a segunda, no diálogo entre Alfeo e Siralvo, onde ambos partilham

as suas histórias de vida (pp.304-311). Todavia, estes pormenores, sem afectarem o

equilíbrio cronológico da novela, representam artifícios básicos, aos quais o novelista

deveria recorrer, ainda que moderadamente, para que o seu texto recebesse o aplauso do

público dos Siglos de Oro, para quem expectativa não significava forçosamente

monotonia. A lastimável notícia do fim de Elisa é fornecida com antecedência, apenas

para tornar mais trágicos e formosos os últimos dias desta personagem e dos seus

amores com o malfadado “curioso impertinente”, e, igualmente, para suavizar um corte

abrupto mais adequado à tesoura de Átropos, que actua sobre vidas reais, do que à pena

de um novelista, que lida com obras de arte. Os relatos de Alfeo e de Siralvo, por seu

turno, distinguem-se pela precisão sumária e pela objectividade. No conjunto da novela,

a narração de Alfeo dificilmente terá outro desígnio para além de propiciar um contraste

entre a corte e o campo. Deste modo, o leitor não chega a envolver-se sentimentalmente

ao ponto de se dar uma ruptura na ordem da narração maior, que é a novela em si.

Longe está a concepção da novela pastoril como um pequeno Novellino, se nos é

permitida a redundância, à custa de tão aliciantes torções cronológicas e sobressaltos.

No que concerne ao espaço, observa-se a mesma unidade que fica salientada a

propósito da acção. O cenário eleito é localizável na geografia ibérica concreta, mas

visivelmente estilizado. É curioso constatar que, se a sua descrição física, fixada por

Page 16: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

13

toda uma constelação de modelos literários precedentes, se vai elaborando

caprichosamente ao longo do texto, a realidade humana e social que o caracteriza é, pelo

contrário, definida logo nos primeiros parágrafos da novela, tal como atrás verificámos.

Deve ser referida a total ausência de descrições comparáveis às esboçadas por Selvagia

e Felismena. Os universos exteriores à aldeia do Tejo são mencionados, mas nunca

caracterizados, e nada, para além de um vago nome, lhes confere existência: Mendino e

Siralvo vieram dos campos do Henares, Alfeo da corte toledana («vecina Mantua» –

p.292), Finea e Orindo da serra e Padileo de outro âmbito pastoril não identificado.

Assim, tal como as coordenadas temporais se restringem ao presente da narração, o

espaço implicado é estritamente aquele em que esse presente se situa, não sendo

convocados, à maneira de Montemayor, outros universos “totais”, dotados de um

“corpo” próprio (feições geográficas, realidade social e humana) e enriquecidos com

uma “alma” (a subjectividade de quem os recorda).

Universo Ficcional de El Pastor de Fílida

«Y, pues comenzamos por La Diana de Montemayor, soy de parecer que no se

queme, sino que se le quite todo aquello que trata de la sabia Felicia y de la agua

encantada» (Don Quijote, I, VI). Tal é o juízo emitido pelo avisado cura na biblioteca

do fidalgo manchego, no momento em que, concluído o auto-de-fé dos livros de

cavalarias, se dá conta da presença de uma Diana, junto com outros «pequeños libros»

«del mismo género». Talvez não seja vão reflectir sobre o sentido do «escrutinio» a que

procede o autor, através da sua personagem – não se trata de pensar nas obras uma por

uma, mas antes de salientar e compreender o facto muito significativo de as novelas de

cavalarias partilharem com livros de pastores os recantos poeirentos da biblioteca do

Cavaleiro da Triste Figura.

Não nos parece que com esta opção se procure simplesmente abrir a senda para

um potencial delírio pastoril como aquele que, uma vez fracassado o cavaleiresco,

esteve prestes a apoderar-se do generoso fidalgo: nem mesmo o mais louco entre os

loucos pode confundir com a realidade um género literário tão ostensivamente artificial

como a novela pastoril, e o tempo que demora a congeminar um retiro campestre revela-

Page 17: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

14

se suficiente para se desenganar deste novo projecto de vida7. A aparição conjunta

destes dois géneros possui um sentido mais profundo, revelador da forma como,

consciente ou inconscientemente, o público de Montemayor e dos seus seguidores

encarou este tratamento muito novo de uma temática tão vetusta como a pastoril. Com

efeito, é possível encontrar na afinidade deste género com a literatura cavaleiresca um

factor decisivo de sucesso entre o público quinhentista (atestado pela sua presença na

biblioteca de Don Quijote). A verdade, segundo cremos, é que não só umas vagas

reminiscências dos livros de cavalarias tornaram aliciantes as primeiras novelas

pastoris, mas também a larga fortuna desta literatura, tão nefasta para certa fidalguia

ociosa e desencantada, poderá ter servido de guia sobretudo a Montemayor na

concepção do seu universo pastoril. Com o tacto que atrás salientámos, o autor da

Diana, observando princípios já mais harmonizados com a sua época, soube apelar a um

perene desejo de evasão (cf. Poggioli, 1975: p.4), ou, se quisermos ser mais optimistas,

de perfeição estética e moral: irrepreensíveis eram os heróis cavaleirescos e as senhoras

dos seus pensamentos, ideais as formosuras dos seus gestos e as de certos cenários por

eles atravessados (alguns deles bucólicos, por sinal, como os que bosqueja Feliciano de

Silva); igualmente formosos e irrepreensíveis até à pura artificialidade são os

protagonistas pastoris da Diana, com a diferença de que, agora, a aventura decorre nos

meandros do amor neo-platónico, e o heroísmo é, portanto, sentimental.

Dificilmente se poderá afirmar, porém, que alguma das novelas breves incluídas

na Diana tenha uma índole cavaleiresca, atendendo, entre outros factores, aos seus

intervenientes: pastores, ninfas, aldeões, cortesãos, mas nenhum cavaleiro. A influência

dos descendentes de Amadís de Gaula8 faz sentir o seu eco a outros níveis: por um lado,

através da ideia de um processo de aprendizagem ou de aperfeiçoamento espiritual,

proporcionado por ou durante uma deslocação física; por outro lado, através da presença 7 Será, talvez, oportuno recordar Lysis, o protagonista de Le berger extravagant (1627), de Charles Sorel, cuja ingénua credulidade se alçaria a um nível quixotesco caso fosse redimida, como sucede com o egrégio Cavaleiro da Triste Figura, por algum acto de heroísmo – algo que, de resto, o género pastoril interdita às suas personagens, tanto mais excelentes quanto mais dóceis, tanto mais dóceis quanto mais enamoradas, tanto mais enamoradas quanto menos viris. Todavia, este não é um produto ibérico, e não há que esquecer que, partindo da tradição das Dianas espanholas, a literatura francesa fundou o seu próprio universo pastoril novelesco. Mais interessante para nós seria a brilhante Arcadia fingida (1622), de Tirso de Molina, cuja protagonista, obcecada com a Arcadia lopesca, simula (atente-se no verbo) uma crise de loucura semelhante à do fidalgo da Mancha, para atingir os seus objectivos amorosos: ninguém ensandece deveras lendo livros de pastores. 8 Esta descendência continuava a multiplicar-se nos primeiros decénios de vida da novela pastoril, consistindo uma prova deste convívio a inclusão de fragmentos cavaleirescos em oitavas reais no quarto e quinto livros das Ninfas y pastores de Henares (1587), de Bernardo González de Bobadilla. De resto, desde a écloga II de Garcilaso que a épica procura (conquanto sem um sucesso assinalável) conviver com a matéria pastoril.

Page 18: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

15

de «medieval visions of the supernatural» (Perry, 1969: p.228a). Com este sobrenatural

referimo-nos ao halo maravilhoso que envolve o palácio de Felicia, parto ambíguo da

Natureza e da Arte e palco propício para a revelação de recônditas verdades amorosas e

para o compensador remate dos destinos que ali se cruzam. São estes elementos que

acusam uma inspiração medievalizante num contexto ideológico acabadamente

renascentista.

Esta última ilação conduz-nos justamente à sentença proferida pelo cura

cervantino: que La Diana seria a primeira entre as do seu género, caso fosse expurgada

de «todo aquello que trata de la sabia Felicia y de la agua encantada», ou seja, de um

lastro de inverosimilhança já inaceitável para um autor esclarecido de finais de

quinhentos, se bem que atractiva ainda para o público de massas em meados do mesmo

século. Com verdade, a novela pastoril não é mais verosímil do que a cavaleiresca, e

Cervantes mostrou, em várias ocasiões, estar bem ciente disso. O que sucede é que o

“pacto ficcional” muda de feição, tornando-se um pouco mais discreto: a extravagância

não se encontra já no mundo físico, mas no foro psicológico das personagens, e o

dragão abatido pela espada Fisberta cede lugar à fera hircana jamais amolecida pelas

ladainhas tristes do seu amante. Estes excessos resultavam mais pacíficos para um autor

como Cervantes, que com eles pactuou também e não apenas quando, nos seus floridos

anos, redigiu a Galatea.

Ora, Gálvez de Montalvo demonstra uma preocupação realista superior à de

qualquer um dos seus antecessores e que abrange estes dois princípios: a erradicação de

elementos importados da tradição tardo-medieval e um certo realismo psicológico na

concepção das personagens, com inegáveis consequências no universo pastoril

apresentado. A fim de justificar a escassa participação do maravilhoso no Pastor de

Fílida, recorre-se com frequência ao seu estatuto de novela en clave (unanimemente

assumido pela crítica e, desde logo, pelo autor)9. Tratando-se embora de um argumento

sensato, não devemos ignorar que o mesmo desígnio é reconhecido à Diana de

Montemayor10; e que dizer, por exemplo, da Arcadia de Lope de Vega (1598), texto

posterior e de índole igualmente autobiográfica, onde, não obstante, o leitor se depara

com um «vuelo estratosférico» (Vega, 1975: p.20) seguido de duas metamorfoses, com

a cova do mago Dardanio, que aparece e desaparece por encantamento, e com o palácio

9 Martínez San Juan adverte com prudência: «[q]ue la autobiografía inspire la narración no justifica que la realidad entre de lleno en el mito y éste sea mensurado desde la circunstancia histórica» (2003: p.10). 10 Veja-se Subirats (1968) e Alonso Cortés (1933).

Page 19: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

16

prodigioso de Polinesta, que o faz olvidar-se do de Felicia tal como varre da memória de

Anfriso as graças de Belisarda? Cumpre, pois, procurar noutra parte o motivo deste

despojamento. Proporemos uma entre várias respostas possíveis, depois de analisarmos

a segunda implicação deste anelo de realismo: a psicologia das personagens.

Antes de tudo, importa definir melhor o que se pretende exprimir com a

expressão «realismo psicológico». Muito nos ludibriamos se lemos qualquer novela

pastoril na esperança de encontrar uma figura que remotamente se assemelhe ao pastor

“de carne e osso” que ocupava um posto fundamental na sociedade dos Siglos de Oro11,

ou às personagens perfiladas por Juan del Encina e Lucas Fernández, cujos pastores

deturpam vocábulos, manifestam uma hostilidade mesquinha face à corte e, se lançam

desafios, é em torno de jogos de dados e não de cantos poéticos12. O tipo de realismo a

que nos referimos é o de personagens «who are felt to be representative of some other or

of all other men» (Alpers, 1982: p.456). Ao contrário do que sucede nas Dianas e em

vários exemplares deste género literário, aqui os pastores encarnam sentimentos e

atitudes semelhantes aos que os homens de qualquer século poderiam experimentar: são

movidos por paixões instáveis, por vezes contraditórias, e a sociedade pastoril que

constituem, longe de corresponder à utópica Idade de Ouro, revela-se, tal como

qualquer outra sociedade humana, um mal menor. A ideologia neo-platónica

renascentista – que impregna, apesar de tudo, esta novela – somente se concretiza em

toda a sua plenitude nos dois protagonistas, Fílida e Siralvo, cujos amores duravam já

quando a acção tem início e seguem durando, presume-se, depois de terminada. As

restantes personagens são afectadas pelos princípios neo-platónicos apenas

parcialmente, na medida da sua fraqueza e da sua inconstância humanas –

eventualmente, também os caballeros e damas dos Siglos de Oro viveriam assim os

seus amores semi-perfeitos e quasi-platónicos, émulos humanos dos amores literários.

Um dos factores que desmitificam os sentimentos pastoris é a noção de que tudo

muda, princípio universal de que é corolário outro, mais localizado e que as Dianas se

empenham em corroer: o de que o tempo cura as feridas de amor. Deste jeito,

compreende-se que a duração temporal da acção, superior à costumada, bem como a sua

cronometração rigorosa, respondam a um desejo de realismo emocional: convém que os 11 Sobre a influência do pastor real na sociedade dos Siglos de Oro e, por conseguinte, na génese da literatura pastoril, veja-se Hernández-Pecoraro (2006: pp.30-44). 12 É necessária muita cautela quando falamos de “realismo” em textos pastoris, seja de que natureza forem. Os pastores rústicos e burlescos de Encina e de outros dramaturgos anteriores à novela pastoril vivem, igualmente, de convenções que os distanciam da realidade factual. M. Chevalier designa pertinentemente este processo como um realismo em segundo grau (cf. 1980: p.74).

Page 20: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

17

sentimentos amadureçam e que as relações consolidem. Por outro lado, esta é uma

novela despojada de factores novelescos – imprevistos, equívocos ou coincidências –

que alterem repentinamente as relações humanas. Este detalhe imprime à narrativa um

falso estatismo, quando, na verdade, quer em termos sociais, quer em termos

emocionais, as personagens se encontram em constante ebulição. Com excepção do

caso de Fílida e Siralvo, nenhuma relação amorosa é isenta de mudanças, nem sequer a

de Elisa e Mendino (a mais próxima da perfeição, depois da dos protagonistas), já que,

em lugar de honrar a morte da amada com uma fidelidade amargurada e perpétua, à

maneira de Dante ou de Petrarca, Mendino não se coíbe de cortejar outras pastoras

(pp.440-441). O narrador encara com uma experiente condescendência esta

instabilidade e convida o seu leitor a adoptar a mesma atitude. Não há, pois, amor

retribuído tão extasiante nem zelos tão obstinados que não se encaminhem para uma

morte natural. Se as personagens parecem ainda corresponder a classes estereotipadas,

tal artificialidade deve-se simplesmente ao facto de cada uma personificar emoções ou

atitudes humanas precisas, como veremos.

Luis Gálvez de Montalvo dá mostras de ser dotado de uma sensatez que pode

fazer recordar a do seu amigo e admirador Miguel de Cervantes. Para além de se manter

fiel à sua experiência humana na hora de conceber estas personagens, sabe colocar-se no

posto do leitor e julgar a sua obra com alguma distância, algo totalmente desprovido de

sentido para Montemayor. Em mais de um lugar, o narrador do Pastor de Fílida

antecipa-se ao leitor, salientando o que, aos seus olhos, é um pormenor inverosímil, para

oferecer de seguida uma justificação plausível. O parágrafo inicial da sexta parte

sobressai pelo seu pragmatismo exemplar:

«Posible cosa será que […] algún curioso me pregunte entre estos amores y desdenes, lágrimas y

canciones, ¿cómo por montes y prados tan poco balan cabras, ladran perros, aúllan lobos? ¿Dónde pacen las ovejas? ¿A qué hora se ordeñan? […] A eso digo que, aunque todos se incluyen en el nombre pastoral, los rabadanes tenían mayorales, los mayorales pastores y los pastores zagales que bastantemente los descuidaban. El segundo objeto podrá ser el lenguaje de mis versos; también darán mis pastores mi desculpa con que […] el ánimo del amado mejor se mueve con los conceptos del amador que con las hojas de los árboles. La tercera duda podrá ser si es lícito donde también parecen los amores escritos en los troncos de las plantas, que también haya cartas y papeles, cosa tan desusada entre los silvestres pastores. Aquí respondo que el viejo Sileno merece el premio o la pena, que como vido el trabajo con que se escribía en las cortezas, invidioso de las ciudades, hizo molino en el Tajo donde convirtió el lienzo en delgado papel y de las pieles del ganado hizo el raso pergamino, y con las agallas del robre y goma del ciruelo, y la carcoma del pino, hizo la tinta y cortó las plumas de las aves, cosa a que los más pastores fácilmente se inclinaron» (p.419).

Repare-se que o escrupuloso desejo de verosimilhança do narrador (que encerra

Page 21: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

18

igualmente uma irónica censura aos textos anteriores) abrange três níveis: o primeiro

refere-se ao universo ficcional em si, às regras que o regem nesta e noutras novelas,

sendo digna de nota a astúcia com que o autor se serve desta clarificação para

descortinar questões de ordem social que importam ao sentido da sua novela e que

discutiremos adiante; o segundo coloca a questão da linguagem, basilar na definição de

um grupo de personagens, de um universo ficcional e, enfim, de um género literário, e a

desenvoltura graciosa com que se confere “verosimilhança” a estes colóquios pastoris,

não sendo propriamente original, nunca deixa de agradar; o terceiro diz respeito a um

pormenor aparentemente de menos importância – no entanto, Montalvo está ciente de

que um pormenor, por discreto que seja, pode custar a difamação do seu trabalho pelo

“vulgo” inexorável... O mais curioso é que, caso estas questões não fossem colocadas,

dificilmente o “vulgo” faria reparo delas, visto que já tinha aceitado instintivamente,

décadas atrás, estas mesmas irregularidades, ao ler com deleite La Diana. Elucidações

deste tipo pontuam várias novelas pastoris posteriores. Montalvo, enquanto leitor,

detectou o que lhe pareceram lapsos da parte dos seus antecessores, e, enquanto escritor,

assegurou-se de que não os reiteraria.

Montalvo e a Arcadia de Sannazaro: uma Novidade Antiga

No termo destas considerações, a questão parece mais desconcertante ainda do

que no começo, quando apenas se pressentia a divergência entre El Pastor de Fílida e os

textos que o antecedem. É legítima a interrogação: num contexto estético cujas palavras

de ordem continuam a ser imitatio, aemulatio, superatio, onde se encontra o modelo de

Montalvo? A resposta é óbvia, ainda que nos obrigue a desfraldar as velas e a provar o

sal e o vento do Mediterrâneo.

Torna-se inevitável, num estudo que envolva El Pastor de Fílida, sublinhar a

influência da Arcadia de Sannazaro (1504), consideravelmente mais óbvia do que nas

Dianas13. De facto, um inventário de elementos herdados desta obra-prima italiana

obriga-nos a reconhecer ao Pastor de Fílida, se não o mérito de ter importado ou

13 Cf. Menéndez Pelayo (1962: p.333); Gerhardt (1950: p.191); Reyes Cano (1973: p.31); Avalle-Arce (1975: p.149).

Page 22: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

19

revelado a Arcadia – visto que a tiveram presente os autores das Dianas14, ainda que a

ela recorressem com grande parcimónia, preferindo criar um género genuinamente

espanhol –, ao menos o de a ter trazido para o primeiro plano, entre um manancial muito

heterogéneo de tradições literárias, impondo-a de novo como um dos arquétipos mais

imediatos.

Contudo, deixemos que esta evidência ofuscante se dissipe um tanto, para que

possamos compreender com nitidez que aspectos deve efectivamente o texto de

Montalvo ao do poeta napolitano. Afigura-se-nos que esta herança se faz sentir de um

modo mais pontual do que seríamos tentados a pensar, verificando-se em alguns

episódios e estereótipos descritivos (mais raramente, em versos), mas não tanto a um

nível mais amplo e teórico, de concepção “técnica” da novela.

Na primeira parte do cotejo que esboçámos entre as Dianas e El Pastor de

Fílida, salientámos a estrita linearidade deste último, que não invalida a existência de

lapsos entre os episódios seleccionados. Se, por um lado, a apresentação de uma

sequência descontínua (mas cronologicamente ordenada) de episódios da vida pastoril

aproxima esta novela da Arcadia, por outro, no texto de Sannazaro nem sempre existe

uma clara relação de causalidade entre as várias partes, nem se especifica em todos os

casos a sua posição temporal relativa, o que, juntamente com a estilização de certos

elementos cénicos e das personagens, o transporta para um ambiente de contornos

nebulosamente oníricos15. Também de modo irregular vão as personagens cruzando a

Arcádia, muitas não se chegando a definir com precisão. Porventura, estas

peculiaridades dever-se-ão à própria definição de «écloga» – «selecção» – que

Sannazaro tem presente ao imitar Virgílio e outros poetas16. Tal vagueza, por motivos

agora claros, não pode ser desejada por Montalvo.

Muito mais notória é esta influência sob outros aspectos. Não será demasiado

arriscado declarar que é a Arcadia que permite a Montalvo pôr de parte a herança

medievalizante em que Montemayor ainda bebeu, oferecendo-lhe, como alternativa,

uma herança clássica selectiva. Certos pormenores coincidem curiosamente, tais como a

magia (também presente na Arcadia, mas por influência virgiliana), da qual no Pastor

14 Reyes Cano dedicou-se ao estudo das traduções e das heranças da Arcadia de Sannazaro em Espanha. A primeira tradução completa vem a lume em 1547, cerca de uma década antes, portanto, da primeira novela pastoril espanhola (1973: p.43). 15 Daí que não raro se afirme que a Arcadia não corresponde, efectivamente, à primeira novela pastoril, por não preencher, em primeira instância, os “requisitos” necessários para ser considerada uma novela (cf. Bayo, 1970: p.81). 16 Para a interpretação deste vocábulo no século XVI, ver Fosalba (2002: p.122).

Page 23: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

20

de Fílida se faz um sóbrio uso, reduzida já a mero elemento caracterizador do género

sem repercussões significativas a nível do enredo. Também provenientes da Arcadia são

os vários episódios que dão consistência a cada parte do Pastor de Fílida, levantados já

por Fucilla (1942), aos quais tornaremos mais tarde. Todavia, enquanto na “rapsódia”

de Sannazaro constituem os motivos centrais das prose em que se inserem, no texto

espanhol surgem sobretudo como pretexto para o convívio social entre as personagens,

cujas relações e estados sentimentais preocupam, acima de tudo, Montalvo, por herança

ibérica.

Em qualquer caso, importa notar que o autor não se limita a absorver

passivamente a tradição sannazariana, nem sequer quando toma emprestados alguns

episódios da Arcadia: não hesita na hora de aditar alguns da sua lavra, que, sendo à

partida absolutamente alheios ao mundo pastoril alicerçado por Sannazaro na

Antiguidade clássica, se harmonizam habilmente com o mundo pastoril fundado pelo

próprio Montalvo sobre uma confluência de tradições que depura com critério e assimila

criativamente.

Reminiscências do Pastor de Fílida fazem-se sentir em novelas posteriores, e

não nos referimos apenas a um texto como o Siglo de Oro en las selvas de Erífile

(1608), de Bernardo de Balbuena, que, aliás, deve muito mais à Arcadia italiana do que

Gálvez de Montalvo. Se La Galatea, de Cervantes, publicada três anos depois do Pastor

de Fílida, se encontra em termos estruturais mais próxima das Dianas, alguns novelistas

mais tardios tornam a preferir estruturas lineares e menos ousadas, que lhes permitam

conceder relevo às composições poéticas insertas nos seus textos (El Prado de Valencia,

de Gaspar Mercader), às potencialidades autobiográficas do género (Arcadia, de Lope),

ou ao exame do relacionamento entre as personagens (La Constante Amarilis, de Suárez

de Figueroa), onde se descortina um aproveitamento en clave da novela pastoril que

talvez mereça ser tido em consideração na hora de estudar as ideias sociais dos Siglos de

Oro.

Page 24: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

21

CAPÍTULO II

QUANTO VAI DE «ZAGAL» A «RABADÁN»

Alicerces de uma Sociedade Pastoril

O título que encabeça a presente secção encerra um aparente paradoxo, sendo

quase inevitável a associação do termo «sociedade» às ideias de ordem, unidade e

reciprocidade, mas igualmente às de diversidade, categorização e consequente

distanciamento. «Hierarquia» será, porventura, o conceito que melhor engloba todas

estas noções.

Sucede que reiteradamente nos confrontamos com definições da utopia arcádica

que incidem no pressuposto fundamental da igualdade entre os seus privilegiados

participantes17. Sabido é que a liberdade e o ócio se contam entre as prerrogativas

definidoras dos pastores literários, constituindo, talvez, os mais infalíveis atractivos da

Arcádia, que tem seduzido os espíritos ocidentais desde a Antiguidade Clássica. Ora,

suspeitaríamos que nenhuma destas regalias seria viável caso entre as entidades que

delas usufruem não houvesse sido implementada, em primeira instância, a igualdade a

que nos referimos, que abrangeria, pois (com a megalomania típica do universo das

ideias), todos os planos da existência, desde a experiência sentimental intransmissível à

partilha de direitos, saberes, memórias, desejos, gestos ou, simplesmente, rotinas. A

similaridade “interior” destas personagens (que o leitor contemporâneo identificará com

estereótipos literários) contribuiria para consolidar esta igualdade essencial,

assegurando o retorno à mítica Idade de Ouro, tão apetecida e somente praticável por se 17 Curiosamente, esta asserção ocorre tanto nos estudos críticos, como no seio das próprias obras literárias, que, por vezes, alimentam o mito da igualdade (bem como muitos outros ideais caros ao Ocidente) ao mesmo tempo que o fragilizam.

Page 25: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

22

adiantar à própria sociedade, quando os homens «ignoraban estas dos palabras de tuyo y

mío» (Don Quijote, I, 11).

Contudo, façamos uma distinção de primeira importância: se os ingénuos

devaneios cavaleirescos de Don Quijote têm expressão num copioso caudal literário, o

mesmo não se pode afirmar a respeito dos ideais pastoris. De facto, raras vezes

divisaremos uma igualdade humana autêntica, corolário da perfeita harmonia universal,

nos textos que projectam, mais do que concretizam, o mito da Idade de Ouro: Virgílio

lamenta já a irreversível perda desse tempo remoto, substituível, na melhor hipótese, por

vagas esperanças de um futuro menos sombrio, não já fundado na igualdade, mas na

liderança de um sábio dirigente (bucólica IV). Sannazaro acolhe este pessimismo, com

razão agudizado pela consciência de que tão-pouco é já recuperável o tempo real em

que viveram os Antigos – difusa circunstância histórica não raro associada à Idade de

Ouro pelos homens da Renascença (cf. Lida de Malkiel, 1975: p.37). Essa era venturosa

é bosquejada sobretudo através de um eloquente processo de antagonismos, perdendo-se

em conjecturas sobre o porvir ou, mais comummente, numa memória esvaída pelos

séculos. Só excepcionalmente a almejada Idade Saturnina é presentificada, e, quando

deixa cair o véu, expõe uma nudez de incoerências intrínsecas18. Verdade é que sempre

a «fruta del cercado ajeno» se afigura a mais, a única «dulce y sabrosa». Por ora,

permitamos que esta fruta nos tantalize também um pouco, diferindo-a para capítulos

futuros.

Geralmente, as construções literárias deste quási-mito encenarão um universo de

laivos utópicos, mas profundamente contaminado por uma realidade datável e nutrido

por uma circunstância histórica, social ou mental. No âmbito da novela pastoril

espanhola dos Siglos de Oro, merecem destaque as Dianas de Montemayor e Gil Polo,

as quais constituem, por distintas razões, produtos consumadamente renascentistas,

ainda que, abrindo as portas à literatura presente e passada, as semicerrem perante a

circunstância particular e concreta19. Tão ambicioso arrojo de universalização não

18 A Arcadia de Sannazaro exemplifica-o, quando Sincero confessa o pouco efeito que tem surtido o seu exílio amoroso, «[m]aximamente ricordandomi […] de’ piaceri de la deliciosa patria tra queste solitudini di Arcadia, ove, con vostra pace il dirò, non che i gioveni ne le nobili città nodriti, ma appena mi si lascia credere che le selvatiche bestie vi possano com diletto dimorare» (Sannazaro, 1990: p.121). Mal se encontra o género quando «[e]ven a pre-eminently pastoral author like Sannazaro at times oscillates between admiration and disdain for life in Arcadia» (Kegel-Brinkgreve, 1990: p.385). 19 Gil Polo adianta, no prólogo à sua obra, que nela o leitor encontrará «ficciones imaginadas» (p.83), possuidoras de um valor exemplar. Não obstante a afirmação de Montemayor de que os sucessos que descreve são verídicos, «disfrazados debajo de nombres y estilo pastoril» (p.108), afigura-se-nos que a densidade ficcional e ideológica da Diana lhe garante uma considerável autonomia relativamente ao seu eventual pretexto.

Page 26: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

23

contemplou um importante canal por onde se infiltram nos objectos estéticos marcas de

circunscrição espacio-temporal: as ideias20.

Contudo, para além deste fundo ideológico, é possível encontrar um rasto mais

ou menos evidente da conjuntura histórica ou social em que brotou cada uma das

novelas pastoris que compõem o corpus actualmente considerado. Tem sido objecto de

discussão o convívio, intrinsecamente paradoxal, entre o mito pastoril e aspectos da

vida real na Espanha de quinhentos e seiscentos, já campesina – nos Diez libros de

Fortuna de Amor, de Antonio de Lo Frasso, por exemplo –, já urbana – no Premio de la

constancia y pastores de Sierra Bermeja, de Jacinto Espinel Adorno –, já cortesã – no

Pastor de Fílida, entre outros.

Na novela de Montalvo, a circunstância histórica abrange dois planos

inextrincáveis: a realidade social em que se moveu e formou o autor e aquilo que,

porventura, será mais prudente designar como fragmento auto-biográfico, dada a sua

índole vaga, inconclusa e idealizada. Assim, considera-se El Pastor de Fílida a primeira

novela pastoril en clave, ou, pelo menos, a primeira a que este termo é aplicável em toda

a sua extensão, já que, nela, é a experiência pessoal do autor, bem como todo o processo

da sua metamorfose estética, que formata a narrativa, conforme, desde logo, insinuam

com mestria os dois primeiros versos da composição «El autor al libro»: «Pastor de mis

pensamientos / guardador de mis cuidados» (note-se, de passagem, a polissemia do

afortunado termo «guardador»)21.

O estatuto de novela en clave influi profundamente na concepção deste universo

ficcional. Tal como argutamente constata Avalle-Arce, «[n]os hallamos, pues, ante un

doble proceso: pastoralización de la realidad y socialización de la pastoril. Y la

efectividad artística de la anécdota depende, precisamente, del balance que se establece

entre ambos impulsos» (1975: p.146). Desta sorte, a sociedade pastoril constituída por

Montalvo, distanciando-se do modelo utópico puro, institui o seu próprio modelo: um

trabalhoso hibridismo de bucolismo clássico e ibérico, utopia cortesanesca e depurado

realismo humano. Evidentemente, esta fusão está longe de ser pacífica. Todavia, uma

20 «En tant que contenant et en tant qu’«art», la bergerie exploite des savoirs susceptibles d’alimenter l’imaginaire du temps continu qu’elle entend produire» (Giavarini, 2010: p.34). 21 Sobre a “vida” por detrás do Pastor de Fílida, em que não nos deteremos, vejam-se os já clássicos estudos de Rodríguez Marín (1927) e Alonso Gamo (1987).

Page 27: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

24

prodigiosa coerência interna – prova decisiva do talento do autor – engendra-se a partir

destes substratos22.

A este repensar a validade, a condição e as funcionalidades do mito pastoril nas

letras e na sociedade de quinhentos, com que nos desafia El Pastor de Fílida,

dedicaremos o presente capítulo, no decurso do qual procederemos ao levantamento dos

principais sintomas de irregularidade/originalidade ficcional a ponderar, de seguida, sob

outras ópticas mais específicas.

Ensaios de uma Hierarquia Pastoril

Notámos antes que a associação do clima pastoril a certos termos, entre os quais

«hierarquia», parece ser intrinsecamente paradoxal. No que concerne ao Pastor de

Fílida, porém, não estaremos a propor um paradoxo mais flagrante do que aquele que

avança o cura cervantino ao definir do seguinte modo esta novela: «No es ése pastor -

dijo el Cura-, sino muy discreto cortesano» (Don Quijote, I, 6). Tais palavras alertam-

nos para o cariz atípico desta novela pastoril23. A realidade cortesã é assumida pela

tradição24 como pólo radicalmente oposto à realidade campesina. Ironicamente, Gálvez

de Montalvo corrobora esta perspectiva: «No dudo yo que en la mayor Babilonia [a

cidade] permita amor algún pecho lleno de fe y lealtad, y entre la soledad de los campos

alguna intención dañada» (pp.313-314). É significativo, adiante-se, que, nestes e nos

demais encómios que o narrador tributa ao campo, nada se leia a respeito da utópica

igualdade pastoril.

22 «This cosmopolitan literature [a novela pastoril] places great emphasis on the equilibrium among all the constitutive elements, making pastoral both remote and unique. This attention to harmonious perfection is one of the many consequences derived from the awareness of art and its power» (Fernández-Cañadas de Greenwood, 1970: p.31). Será justo reconhecer no Pastor de Fílida um dos mais eficazes argumentos a favor desta constatação, embora não se conte no corpus contemplado pelo estudo que acabamos de citar. 23 Atípica no sentido em que retira ostensivamente a sua substância de um paradoxo que se insinua desde Sannazaro, cujos pastores «vive[m] na Arcádia, conhece[m] os trabalhos usuais da pastorícia, t[ê]m a cultura de um urbano. A própria Arcádia não é ou o campo, ou a cidade. Nela encontramos representado um ambiente campestre que simula o da cidade. Sob este ponto de vista, o texto bucólico caracteriza-se por um enriquecimento informativo» (Marnoto, 1996: p.19). 24 Desde a dicotomia clássica negotium/otium, originalmente mais complexa e não tão radicalmente inconciliável como, acaso, nos acostumámos a pensar (cf. Rosenmeyer, 1969: pp.67-68).

Page 28: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

25

Conforme fica dito, a igualdade constitui uma utopia dentro da própria utopia, e

alguma forma de distinção entre as personagens estereotipadas faz-se sentir, tanto na

convenção clássica, como no ciclo castelhano das Dianas. Em qualquer um destes

universos (que desconhecem a noção de estrato social, mas não a de autoridade) é

possível nomear algumas personagens que, não pelo seu protagonismo25, mas por

alguma qualidade específica, sobressaem entre a multidão de pastores: os poetas, os

anciãos, os sábios, são alvos de veneração, sem se imporem ainda como líderes sociais –

correspondem, essencialmente, a figuras cuja função «is that of guide or teacher»

(Mujica, 1986: p.29). Algumas outras distinções pontuais, procedentes da pastoral

clássica, podem ser assinaladas, tais como a existência de zagais subordinados (Coridon

e Batto, no idílio IV de Teócrito), ou a superioridade dos pastores que se relacionam ou

relacionaram com citadinos influentes, mesmo num âmbito em que se presumia que tais

critérios cessariam de ter efeito (o narrador, Eucrito e Aminta, no idílio VII de Teócrito,

ou Títiro, na bucólica I de Virgílio).

Qualquer uma das situações anteriores encontra expressão também no Pastor de

Fílida. A sua especificidade não reside, pois, nestes indícios, que, nos textos anteriores,

cumprem sobretudo desígnios de verosimilhança e de enriquecimento temático; reside,

antes, na relevância que lhes é reconhecida dentro do universo ficcional. A manifesta

preocupação de distinguir socialmente, não personagens individuais, mas grupos

coesos, e a influência desta categorização nos relacionamentos humanos entre os

pastores são já produtos de uma mundividência cortesã ou urbana26. Deste modo, se a

utopia arcádica é, por norma, fechada e altamente codificada em termos ideológicos, se

conta com um limitado leque temático e com um também restrito número de

alternativas de concretização estética, no Pastor de Fílida apresenta-se igualmente

fechada a nível social. Neste sentido, têm toda a pertinência as palavras do cura, dado

que, se existe um correlato real deste universo pastoril tão peculiar, não poderá ser

senão a corte quinhentista, magistralmente delineada por Castiglione no seu Cortegiano,

onde são bem patentes a impermeabilidade social e a escrupulosa hierarquização

humana que a qualificam27.

25 O conceito de protagonismo é, como vimos no capítulo antecedente, bastante difícil de definir e aplicar na ficção pastoril, que prima pela multiplicação de personagens com funções muito semelhantes, o que não deve, porém, ser confundido com igualdade social. 26 Efectivamente, «though tightly knit, pastoral society is loosely organized. It may be inherently well ordered, but it is hardly governed» (Ettin, 1984: p.152). 27 W. Empson encontraria na novela pastoril espanhola bons motivos para fortalecer a sua ideia de que «[t]his indeed is one of the assumptions of pastoral, that you can say everything about complex people by

Page 29: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

26

Prévia ao estabelecimento de qualquer hierarquia social é a definição dos

critérios diferenciadores constituirão essa sociedade ideal. Consideraremos três: o poder

material, o ofício e a ascendência familiar. Qualquer um destes três factores – bastante

óbvios para o leitor do século XVI e, talvez, do nosso ainda, com distintas implicações

– fixa a posição do indivíduo na comunidade, tornando reconhecíveis as suas funções e

o seu campo de acção. Constituem, igualmente, directrizes para as próprias

personagens, estimulando-as a ir ao encontro dos seus pares e, por conseguinte, da sua

realização “humana” e estética, enquanto projecções literárias. Assim, qualquer agente

de distanciação social revela, em simultâneo, uma intenção aproximativa perfeitamente

lógica, menos fácil de entender, porém, nos nossos dias do que há quatro séculos e

meio.

O primeiro factor que salientámos, o poder material, é o mais simples dos três,

visto que assenta apenas num raciocínio quantitativo. Evitámos deliberadamente os

termos «económico», demasiado complexo para este universo, e «monetário»,

atendendo a que a moeda é um objecto desconhecido pelos pastores arcádicos, cujos

imperativos básicos são colmatados pela recolecção (que suprime o árduo trabalho da

lavoura) e pela troca directa (que humaniza as prosaicas trocas comerciais). Na novela

em estudo, conta-se somente uma referência directa a esta “dinâmica material”: a

obtenção, por parte de Finea, de um modesto rebanho, logo que chega às praias do Tejo,

não sendo muito claras as implicações desse “negócio” rural (p.281). De resto, como

providos pela pródiga mão da Natureza, estes ditosos pastores sempre prosperam. Tão

primária é esta auto-suficiência arcádica, que o autor se dispensa de explicitá-la.

Quando Mendino é apresentado, é-lhe atribuído um complexo epíteto, que

qualificará, no decurso da narrativa, algumas outras personagens selectas: «el caudaloso

Mendino» (p.213). Ora, a abundância sugerida pelo adjectivo castelhano pode reportar-

se a três planos: dignidades sociais, consequentes regalias materiais ou excelências no

plano moral28. Resulta muito conveniente tal ambiguidade, sobretudo no que concerne

às duas primeiras implicações, atestando a interdependência destes dois sustentáculos

do poder social.

a complete consideration of simple people» (1960: p.131). No caso do Pastor de Fílida, a única fragilidade desta visão jaz no facto de a própria sociedade pastoril se encontrar já distante desta simplicidade, conquanto os seus membros sejam simples ainda: estamos perante um jogo de encaixes e de sobreposição de planos. 28 As três acepções são admitidas pelo Diccionario de Autoridades: «lo mismo que Principal»; «la hacienda que tiene alguno, y los bienes que goza»; «capacidad, juiçio y entendimiento adornado y enriquecido de sabiduría» (pp.234-235).

Page 30: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

27

Frequentemente, alude-se à riqueza de certas personagens de forma ínvia. A

incontável soma de cabeças de gado (rebanho de Albanisa – p.230), a pompa dos trajes

(os de Licio – p.435) ou as demonstrações públicas de liberalidade (prémios oferecidos

por Sileno – p.270) são alguns dos sintomas do estatuto materialmente privilegiado de

alguns pastores, que por isso se distinguem. No último caso, há que salientar ainda o

contributo da riqueza rústica para a dinâmica social da aldeia.

Não obstante, as referências a uma vertente material da vida campestre nem

sempre primam pela subtileza. Na écloga representada na quarta parte da novela, o

leitor depara-se com uma subversão sistemática do ideal arcádico, através dos seus

códigos basilares29. Dedicar-lhe-emos uma reflexão mais minuciosa no devido

momento; o aspecto que, por ora, nos importa, está compreendido apenas numa dezena

versos. Convida Liria o seu inseguro enamorado a declarar a paixão que o flagela,

recordando-lhe que é possuidor daquelas virtudes às quais nenhuma pastora recusa

acolhimento:

«¿no se sabe que paces las dehesas con mil ovejas gruesas, abundosas, y mil cabras golosas y cien vacas? ¿No se sabe que aplacas los estíos y refrenas los fríos con tu apero, y tienes un vaquero y diez zagales? Todos estos parrales mal podados que tienes olvidados, ¿no son tuyos? Pues estos huertos, ¿cuyos te parecen?» (p.352).

Inverosímil, pensará o leitor, seria semelhante retórica na boca de uma das espirituosas

personagens das Dianas de Montemayor e de Gil Polo, sobretudo encaixada entre duas

arrasadoras sentenças: «amor más persigue al más hinchado» e «eso todo vale en los

amores / porque de los dolores no se sabe». Como se vai percebendo, a

inverosimilhança é, neste género literário, fundamentalmente uma questão de

perspectivas… Para as personagens desta écloga, o interesse material é um aspecto a

considerar no estabelecimento de laços humanos: da confissão amorosa decorre,

automaticamente, uma preocupação um tanto menos aérea – o dote. Procura-se, pois,

matizar o idealismo neo-platónico com uma versão mais realista do quotidiano (rústico 29 Veja-se Arredondo (1987: pp.349-350). Consideramos esta auto-paródia mais suspeita, mais frágil, e, portanto, mais complexa, do que pode parecer num primeiro relance, na medida em que o contraste que esboça é operativo nos dois sentidos, e, se podemos ver na écloga uma sátira contra as exacerbadas finezas dos pastores estilizados, será igualmente legítimo, invertendo a lógica de leitura, descortinar na novela um subtil desdém por certas atitudes materialistas e plebeias que caracterizariam alguma fidalguia de quinhentos.

Page 31: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

28

e cortesão), que se encontra sensivelmente a meio caminho entre as Dianas e as peças

pastoris de Encina. Montalvo vacila, deliberadamente, entre a atracção do ideal e a

evidência. Na verdade, não consideramos existir neste contraste realista um paradoxo

em relação à estética do Pastor de Fílida, que, como temos visto, extrai a sua

mundividência dos primores da corte. Aliás, tais ostentações de prosperidade

campesina, imiscuídas no plano amoroso, contam com uma vasta tradição no seio dos

géneros de temática bucólica, que as legitima, pelo menos, em termos estéticos30.

O segundo factor de distinção/aproximação social que mencionámos é,

igualmente, de ordem prática: o ofício. Nas bucólicas clássicas, são recorrentes as

especificações dos diversos mesteres da população rural. Os guardadores de gado

distinguem-se comummente pela espécie de animais que têm a seu cargo, aspecto que

não é indiferente no que se reporta à definição do seu estatuto social no pequeno mundo

da aldeia31. É possível que, em determinados textos, cada uma destas “classes” se

revista de um valor alusivo, simulando conflitos factuais, testemunhados pelos autores,

num plano social, político ou histórico. No Pastor de Fílida, não se verifica tal

proliferação de ofícios, até porque os habitantes das praias do Tejo excedem mesmo os

clássicos em termos de ociosidade pastoril – raramente se alude às reses, havendo ainda

que descontar os casos em que os animais desempenham uma função ornamental,

reflectindo o estado de ânimo do seu guardador.

Neste universo pastoril, a questão do ofício é bastante delicada, e dotada de um

impacto social porventura ainda maior do que as contendas entre ovelheiros, cabreiros e

boieiros. Nos campos do Tejo, todos parecem dedicar-se à pastorícia, ao menos porque

todas as personagens são vagamente designadas por «pastores». Porém, apenas se alude

concretamente a dois rebanhos, todos ovinos: um “particular”, de Finea, e outro, muito

mais copioso, do «gran rabadán Paciolo» (p.285), cuja manutenção exige o empenho de

vários trabalhadores. Ora, é justamente este fato e as suas exigências que devemos

considerar, se desejamos compreender a “dinâmica laboral” deste meio. Careceria de

sentido a existência de vários mesteres, que, criando vários pólos de interesses e de

poder, semearia a discórdia e a sedição – o que não poderia estar mais longe dos 30 Podemos salientar Teócrito (idílio XI), Virgílio (bucólica II), Calpúrnio (bucólica II), Nemesiano (bucólica II) e Longo (os projectos matrimoniais de Cloé). A antiguidade desta tradição de uma abundância natural privativa oferece uma prova mais de que a mítica Idade de Ouro é um salto no escuro. 31 Ovelheiros e cabreiros disputam, por vezes, a primazia social e poética, seguidos pelos boieiros. Os porqueiros encontram-se, sem dúvidas, na base da hierarquia rural. A estes grupos há que acrescentar ainda o dos lavradores e o dos pescadores, de mais escassa representatividade. Em determinados textos, é possível que estas “classes” se revistam de um valor simbólico, simulando conflitos factuais, testemunhados pelos autores, num plano social ou político.

Page 32: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

29

projectos desta novela. Antes, um só é o ofício de todos os pastores. E é no seio desse

ofício único que se estabelecem as imprescindíveis categorizações sociais: «aunque

todos se incluyen en el nombre pastoral, los rabadanes tenían mayorales, los mayorales

pastores y los pastores zagales que bastantemente los descuidaban» (p.419)32. O

pensamento de Montalvo situa-se, portanto, na linha de Castiglione, para quem a

hierarquia é o óbvio alicerce da ordem e, por conseguinte, da excelência humana33.

De um modo geral, escasseiam as menções ao trabalho campestre – “falta”

detectada pelo próprio autor, que, para além das explanações já analisadas, se apressara

a corrigir a “cortesanização” da sua novela na quarta parte, introduzindo, no templo de

Pã, uma tábua de “mandamentos” rústicos, com instruções para a execução de labores

campestres (notoriamente mais exíguos do que aqueles que Sannazaro verte, na prosa

décima da Arcadia, das Geórgicas virgilianas): «el tiempo del desquilar, el modo de

untar la roña, el talle del mastín, la forma del cayado, el arte de hacer el queso y

manteca, y otras muchas menudencias más y menos importantes» (pp.327-328). Afora

esse caso pontual – de um realismo desvirtuado, aliás, pela evidente reminiscência

literária –, as parcas referências ao pastoreio focalizam, não os seus trabalhos ou os seus

proventos, mas sobretudo a sua funcionalidade social:

«- Aquí están -dijo Siralvo- mil ovejas del gran rabadán Paciolo que las guardaba Liardo y ahora está con Sileno. Este rebaño tiene cuatro zagales diligentes, cabaña nueva, instrumentos muy cumplidos, dehesa propria en que se apacienta y abrevaderos y corrales para él solo. Está en cargo buscar un mayoral que le gobierne, y si Alfeo le quiere tomar al suyo, en cuanto yo le pudiere descuidar, lo haré con las mismas veras que lo ofrezco» (p.285).

A situação de Siralvo sobressai por resultar de uma opção de vida: através de

Finea (p.281), ficamos a saber por que teve ensejo de ascender na escala social,

adquirindo um rebanho próprio com o “patrocínio” de Mendino (de novo, saliente-se a

inconfessada relevância das posses materiais). Tal abdicação, em prol da liberdade – de

uma genuína liberdade arcádica – e com assomos de humilde dedicação ao amo e

amigo, de novo patenteia a superioridade espiritual desta personagem, a mais

32 O anonimato destes «zagales» favorece a ilusão de um rigoroso ócio arcádico: «this magical extraction of the curse of labour is in fact achieved by a simple extraction of the existence of labourers» (Williams, 1973: p.32). 33 Mesmo uma perspectiva naturalista, longe de convidar à sua abolição, robusteceria esta ideia, porquanto «the social order is seen as a part of a wider order: what is now sometimes called a natural order, with metaphysical sanctions» (Williams, 1973: p.29).

Page 33: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

30

convencional da novela, sob todas as ópticas34. O seu mérito alicerça-se muito mais na

excelência moral e amatória do que num poder social concreto. Na verdade, a respeito

de Siralvo tais questões nem chegam a colocar-se: dele publica a fama apenas a amizade

que desperta nos grandes e o bom acolhimento que lhe dão as damas, provas de valor

não despiciendas: «En el Henares a Albana, en el Tajo a Fílida, a otra vez que se

enamore será de Juno o Venus» (p.321).

Estimamos, pois, que as linhas supracitadas, extraídas do começo da sexta parte,

ao definirem uma hierarquia pastoril, ultrapassam o mero propósito de verosimilhança

visível em novelas anteriores, onde os rebanhos, esporadicamente mencionados,

constituem pouco mais do que um adereço cénico, e onde um “estatuto” da actividade

pastoril é vagamente referido, sem outro intento senão o de tornar credível o ócio

pastoril ou, no máximo, o de nutrir o meio envolvente de elementos rústicos

caracterizadores. No caso do Pastor de Fílida, porém, tanto ou mais do que a

verosimilhança ficcional, procura-se uma certa estabilidade ideológica, fundada na

ordem objectiva da sociedade pastoril. Assim, a ironia que a justificação oferecida por

Montalvo encerra não pertence apenas ao foro estético (ingénuo seria tornar a avaliar a

sempiterna discrepância entre a ficção e a realidade), mas também procura denunciar o

paradoxo ideológico latente nesta existência estilizada, na qual se cruzam a auto-

suficiência (que não dispensa a labuta rural) e o otium aristocrático – duas utopias já em

si não pouco exigentes35. A índole vaga da novela pastoril, não esqueçamos, torna-a

apta para albergar e debater estes produtos optimistas da mente humana.

Todavia, estes dois critérios não são ainda decisivos. Se a hierarquia assentasse

exclusivamente sobre a propriedade ou um cargo prático, revelaria um equilíbrio frágil,

atendendo a que, conforme vimos a propósito de Finea e Siralvo, possíveis são as

ascensões, por meio do mérito e do empenho, em ambos estes campos. Assim, existe

para elas um limite, ditado por outro factor mais preponderante: a linhagem, critério

mais arbitrário, mas, igualmente, mais seguro porque irrevogável. Como no Pastor de

Fílida sociabilidade e arte – hierarquia social e hierarquia estética – constituem motivos

inextrincáveis, à categorização dos pastores corresponderá uma ordem narrativa 34 A um tempo, Siralvo é herdeiro de Teócrito (cujos pastores nem são servos nem proprietários, eximindo-se, assim, às angústias quer de uma, quer de outra situação), do tópico da aurea mediocritas horaciana (que exclui os bens materiais supérfluos) e do idealismo neo-platónico (que se concentra na vertente espiritual da existência). 35 «Gálvez de Montalvo was well aware of the fact that a pastoral that reflected more closely the events and fabric of actual society tended thereby to invite comparison with the circumstances of everyday existence and thus became less, rather than more, credible than one that relied entirely on purely ideal standards» (Solé-Leris, 1980: p.120).

Page 34: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

31

determinada, duplamente necessária, portanto. Sendo as implicações desta questão

bastante mais profundas do que as daquelas que até ao momento explorámos, adiá-la-

emos por ora, concedendo-lhe a devida atenção no capítulo subsequente.

A complexidade destes alicerces sociais permite-nos afirmar, desde já, a

originalidade do Pastor de Fílida face aos seus dois modelos de primeira ordem – a

Arcadia napolitana e a trilogia das Dianas –, no que diz respeito à projecção de uma

“comunidade pastoril”, de que, em boa verdade, oferece o primeiro exemplo sério. Isto

porque os quadros humanos e sociais apresentados por Sannazaro, dada a sua dispersão

e desconexão, mal podem insinuar uma existência pastoril conjunta36. Nas Dianas, por

seu turno, personagens e situações adquirem maior relevo, solidez e, sobretudo, um

sentido de continuidade; não obstante, a sua proliferação (que culminará na super-

povoada Arcadia de Lope de Vega) impede igualmente uma visão social agregadora:

estas comunidades pastoris são, assim, dotadas de uma falsa complexidade. Montalvo é

o primeiro novelista que, com notável êxito, subordina a feição individual das tramas

pastoris a uma circunstância social globalizante.

Uma Sociedade de Sociedades

Dedicámos a secção anterior aos critérios fundamentais que organizam a

sociedade pastoril arquitectada por Gálvez de Montalvo. Consideraremos agora algumas

outras peculiaridades dessa estrutura social. Desnecessário é sublinhar que todos os

fenómenos que observaremos estão, à partida, condicionados por aquele mesmo

escalonamento rigoroso; alguns, inclusivamente, parecem dar-lhe resposta. 36 Pouco pertinente se nos afigura o juízo de Siles Artés, segundo o qual a Arcadia apresenta «una auténtica sociedad», implicitamente dotada de «unas tradiciones y creencias consolidadas por el tiempo», e cujos pastores «veneran a Pales y a Pan, son virtuosos del canto acompañado por la zampoña y gustan de los ejercicios físicos» (1972: p.38). Tais factores de coesão depressa revelam a sua escassa eficiência, e o mesmo autor, linhas adiante, constata que neste Paraíso terreal não há sinais da existência de aldeias, núcleos familiares, rotinas fixas ou normas morais objectivas (cf. p.40); torna a denegar o dito na conclusão do seu estudo, envolvendo, de forma incompreensível, a novela de Montalvo: «las criaturas de El Pastor de Fílida, al igual que las de la Arcadia, figuran desarraigadas de una vida comunitaria normal. La mayoría de los personajes de aquélla viven en “sus cabañas”, a semejanza de los de ésta» (p.163) – ignoramos a que momentos dos textos se refere o crítico. A verdade é que no Pastor de Fílida se encontram bem definidos: um espaço geográfico e humano concreto; parentescos ou relações de estreita amizade que os suprem; rotinas quotidianas, que determinam as passadas destes pastores, não já aleatórias; e normas morais, frequentemente confundidas ou implicadas em preceitos de convívio social.

Page 35: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

32

Num aspecto da concepção narratológica, El Pastor de Fílida aproxima-se mais

da trilogia das Dianas do que da Arcadia de Sannazaro: o conjunto total das suas

personagens subdivide-se em vários grupos mais restritos e coesos, que se reúnem em

momentos-chave da progressão diegética. Menos evidente do que na nossa novela – até

porque definido sobretudo em função do encontro entre elementos internos e externos

ao mundo pastoril –, existe desde logo nos textos fundadores um cuidado de

organização da estrutura ficcional, que passa pelo agrupamento das personagens por

classes autónomas: os pastores, os aldeões, os cortesãos e as ninfas. Pelo contrário, o

universo social, humano e, por conseguinte, ficcional do Pastor de Fílida é um só: as

praias do Tejo37. Todavia, também nele as personagens se circunscrevem em agregados

mais restritos, que não atendem somente às hierarquias acima discutidas. O

fraccionamento desta comunidade pastoril e dos episódios que nela têm lugar não é já

somente condicionado pela conjuntura ficcional e pela mútua afeição entre certos

pastores, mas, sobretudo, corresponde a uma verosímil lógica social, que conduz à

formação de agremiações sociais, menos espontâneas e mais fixas – genuínas

instituições dentro da comunidade pastoril, dotadas de sistemas normativos particulares.

Consideraremos dois exemplos, cujo interesse é redobrado pela afinidade que revelam

com a realidade espanhola coetânea do autor.

No âmbito arcádico, é sabido que o canto poético constitui um veículo de

comunhão entre os pastores. Seja em privado ou em festividades rústicas,

acompanhando um relato amoroso ou uma marcha ao sol-poente, em tom de confissão

íntima ou com o mero intuito de recrear os ouvintes, o pastor novelesco deixa correr os

seus hendecassílabos cultos ou as suas galantes coplas de arte menor. Só por ironia (e

reconhecendo no público uma excepcional vontade de condescender com o pacto

ficcional) podem os autores justapor a tais peças declarações de humilde simplicidade

pastoril, semelhantes às que se lêem no famoso proémio da Arcadia sannazariana. Por

um lado, a sinceridade é um valor supremo neste contexto e deve presidir também ao

canto poético, sendo frequente encarecer-se a franqueza de uns versos ou o tom sentido

em que são entoados, critérios capitais na sua apreciação estética. Por outro lado, não

faltam reacções de índole totalmente diferente, que valorizam o engenho dos conceitos,

37 O próprio caso de Alfeo o confirma: o seu passado biográfico é considerado apenas em função do presente, em lugar de se pensar o presente em função do passado, como parece ocorrer nas Dianas. Aqui, todo o enfoque recai sobre o processo evolutivo da personagem.

Page 36: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

33

a adequação das imagens ou a polidez do discurso – numa palavra, o artifício –, se

necessário em detrimento da carga sentimental.

Ora, no Pastor de Fílida esta duplicidade concretiza-se com uma fina

inteligência, que atenua de algum modo a incoerência que lhe é própria. Sucede que, no

seio da comunidade pastoril do Tejo, cujos membros são todos poetas potenciais, existe

um grupo de pastores que se dedicam, em exclusivo e, diríamos, de forma

“profissional”, à música e à poesia. Carecendo de uma história individual, surgem em

cena unicamente para animar algumas celebrações colectivas. É o caso de Belisa, Sasio,

Filardo e Arsiano, dos quais se diz serem «los cuatro más aventajados en música y canto

que en las españolas riberas se hallaban», justamente por combinarem «mucho estudio,

suaves voces y discreción y donaire» (p.256). Estes cantores “por ofício” reúnem as

condições necessárias para corresponderem a qualquer desafio poético: fazer a apologia

de Fílida, por exemplo, quando, na segunda parte, sob a alçada desta notável pastora

(qual dama mecenas) se reúne uma espécie de academia literária. Na mesma reunião,

Belisa celebra o amor (pp.264-265), mas somente com o fim de corresponder ao que

dela espera o “público” de enamorados pastores, já que, conforme ela mesma declara, as

canções que interpreta «no nacen de propia ocasión» (p.264). Na sexta parte, tornamos a

comprovar a existência de uma “sociedade literária”, com aparências de academia, no

debate burlesco entre Silvano e Batto. Bastante verosimilhança há nesta pendência

poética travada entre um defensor da medida tradicional e um entusiástico italianista –

poderíamos imaginá-la entre literatos contemporâneos de Castillejo, Boscán e

Garcilaso, durando ainda no tempo de Gregório Silvestre (representado talvez pela

personagem Silvano – cf. Rennert, 1892: p.50) e no do próprio Montalvo. Trata-se

deveras de profissionais que discutem em termos puramente “científicos” a arte da

poesia, invocando autoridades greco-latinas, sem desconcertar o leitor acostumado às

convenções pastoris38.

Jaz longe o postulado da sinceridade poética, que é deixado para os cantos dos

pastores não “profissionais”39. Siralvo, sendo sem dúvidas a personagem em cujos

38 Montalvo abre, com agudeza, um espaço próprio para este tipo de elucubrações. Diferentemente faz Alonso Pérez, na sua continuação da Diana, onde a vários poemas se segue um comentário explicativo muito pouco conveniente, não só pelo manifesto auto-elogio que, amiúde, lhe está subjacente, mas, sobretudo, por arrasar o costumado tom de intimidade confessional. 39 «Moral value and linguistic simplicity are equated; the poetic theory reinforces the moral statement implicit in the world of pastoral. The tenuis avena, the slender oaten reed, becomes the guarantee of true and open virtue» (Cooper, 1977: p.143). Note-se quão subtilmente o universo arcádico se vê minado no seu alicerce mais básico – a linguagem –, que Montalvo, dando liberdade à sua veia conceptista, artificializa maximamente.

Page 37: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

34

improvisos, cartas e lamentações versificadas mais se empenha o autor, não pertence a

esta comunidade restrita de poetas eruditos ou por ofício: assemelha-se mais ao

cortesão, que é, por conseguinte, enamorado, por conseguinte cantor e poeta. A arte da

música constitui apenas um dos seus múltiplos apanágios cortesanescos40, o que não

significa que não supere os poetas “profissionais”: de facto, é nele que Silvano e Batto

encontram um juiz para a sua contenda.

Para além do dito, esta sociedade literária tem, ainda, outro forte opositor: o

“vulgo”. Pretendendo ditar as regras do bom gosto poético, Tirsi e Arciolo, invisíveis

entidades que encarnam a crítica erudita, deparam-se com a resistência dos apreciadores

da métrica castelhana e da simplicidade de expressão, entre os quais Silvia, que

peremptoriamente declara: «para mí no quiero mejor Tirsi ni Arciolo que mi gusto»

(p.322).

No próprio seio desta sociedade pululam partidos e definem-se hierarquias,

aspecto que a morte do poeta Sasio evidencia:

«Entre las lágrimas justas de estos amigos pastores nació otra justísima ambición y codicia para heredar la lira del segundo Orfeo. Los opositores fueron Filardo y Matunto, Belisa y Arsiano […]. Pusieron por jueces al venerable Sileno, al celebrado Arciolo, al famoso Tirsi» (p.466).

Não mais a poesia se impõe como um agente de igualdade pastoril, nem no interior

desta sociedade literária, nem fora dela.

Outra “instituição” que merece alguns comentários é o que poderíamos designar

por “convento pastoril”. Habilmente, a sociedade pastoril vai-se revelando, conforme as

necessidades narrativas: o leitor só toma conhecimento da existência de mais este

agregado social quando Fílida, juntando-se a ele na quinta parte, o legitima. Gálvez de

Montalvo é o primeiro autor a introduzir na novela pastoril espanhola esta tradição, cujo

patrono mais imediato é, porventura, Boccaccio, com o seu Ninfale fiesolano41, e que

veio a ter bastante aceitação por parte dos novelistas ibéricos42. No Pastor de Fílida, os

conventos pagãos revelam uma dupla funcionalidade: por um lado, constituem uma 40 Escreve Castiglione: «io non mi contento del cortegiano s’egli non è ancor musico» (1990: p.99). No entanto, deve-se matizar um tanto este paralelismo, tendo em atenção que muito anterior aos cortesãos do quattrocento italiano é o estereótipo do pastor cantor. Na novela de Montalvo, tira-se partido de tal afinidade de valores. 41 Valerá a pena recordar ainda a história da ninfa Calisto, exarada nas Metamorfoses (II, vv.401-495). 42 Na trilogia das Dianas, pode ver-se uma alusão menos imediata ao âmbito conventual no palácio de Felicia: para tal apontam o seu isolamento, a aura de sacralidade e de pureza moral que o revestem e a castidade rigorosa das ninfas. Porém, consideramos que, por si só, esta seria uma interpretação empobrecedora, por não contemplar a herança do maravilhoso cavaleiresco e as potencialidades filosóficas do episódio.

Page 38: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

35

ressonância mais da circunstância histórica e social vivida por Montalvo, reforçando a

eficácia de uma interpretação alusiva da novela43; concomitantemente, evocam o

universo greco-latino, onde radicam os géneros pastoris da Renascença.

Esta segmentação social convoca um novo critério: o sexo. Se os critérios

anteriores se baseiam numa lógica de poder, este associa-se sobretudo a valores

espirituais (castidade, abdicação dos bens terrenos, recolhimento), embora com

expressão ao nível do comportamento em sociedade. Ao contrário do que se verifica nas

Dianas, pastoras e pastores nem sempre convivem aqui com inteira liberdade e

confiança.

Verdade é, porém, que, dentro ainda do espírito semi-livre da pastoral clássica,

não estamos perante um convento pastoril tão inexoravelmente cerrado como aquele

que o Ninfale fiesolano e outras tradições afins nos apresentam: Diana, sua padroeira, à

semelhança do que com outras deidades pagãs acontece na novela pastoril espanhola,

apenas deixa sentir o seu influxo, mas nunca aparece em cena44. Não se impõe já o

ameaçador e feroz controlo da deusa, sendo as ninfas caçadoras do Tejo presididas pela

sua própria virtude, que não lhes autoriza o mais ligeiro excesso. Entre elas, Fílida leva,

indubitavelmente, a palma, e, tal como fora uma figura dominante no “século”, continua

a sê-lo em relação às suas novas companheiras, para quem representa, para além de um

modelo de probidade e de recato, uma conselheira sentimental (pp.438-441). No limite,

se a deusa da castidade está presente de algum modo neste “gineceu”, será através de

Fílida, que condignamente a encarna.

Também em termos físicos ou espaciais é concedida uma certa liberdade de

movimentos às ninfas, que não se encontram sob um regime de clausura estrita,

continuando a circular em alguns lugares franqueados a toda a comunidade pastoril. As

analogias com a realidade conventual, correlata desta “irmandade” de pastoras, são

notórias. Também aqui as ninfas têm permissão para tratar com elementos externos em

certas solenidades de índole religiosa, tais como a festa no templo de Diana. E não

somente nestas ocasiões estão visíveis e comunicáveis: inopinadamente, Siralvo

encontra a sem par Fílida na floresta, e, se não lhe é dado manter com ela um longo

diálogo, encontra uma diligente intermediária em Florela, que, à semelhança das 43 Apontamos outros sugestivos paralelismos: os painéis com os trabalhos de Héracles no templo de Pã como alegoria das representações da vida de Cristo (pp.328-331), e as diferentes “ordens” de ninfas (do rio, do monte e das selvas) como alusão às distintas ordens religiosas (p.401). 44 Conhecidas são as celeumas suscitadas, nos séculos XVI e XVII, pelo generalizado recurso à mitologia pagã como ornamento estético. O mesmo problema ideológico poderá estar na base desta rarefacção de alusões pagãs na literatura pastoril deste período.

Page 39: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

36

donzelas que seguiam os destinos das suas amas aristocráticas, a acompanhara aquando

do seu ingresso na comunidade das ninfas. Qual colóquio travado na grade, Siralvo pede

notícias da sua dama e Florela vai entretendo os seus amores com este exíguo

mantimento.

Algumas interdições, porém, condicionam o contacto entre as ninfas e os

pastores, ou não faria grande sentido a sua constituição como colectividade. São

sobretudo de ordem espacial e, curiosamente, recaem tanto sobre elas como sobre os

demais membros da sociedade pastoril. A fronteira invisível entre os dois mundos é

traçada a céu aberto, entre a aldeia e suas cercanias (onde se situa o templo de Diana) e

a floresta desabitada, onde caçam as ninfas e onde não entram pastores, com excepção

de Siralvo, que se interna em terreno sagrado para chorar as suas penas de amor. É

significativa, a este respeito, a despedida das ninfas no final da solenidade:

«las ninfas [...] oyeran señal en el templo que las forzaba a ir allá, y ansí con gran amor, despedidas de los pastores por no serles permitido ir esta vez con ellas, [...] volvieran a visitar a la casta diosa» (p.415).

Espaço e tempo restringem, portanto, a sociabilização das sequazes de Diana, uma vez

que, interiormente, o jugo é aceite com modesta brandura: entre a pureza amorosa das

pastoras e a pureza religiosa das ninfas-monjas não há senão um passo. Adiante

tornaremos a observar este equilíbrio entre virtude inata e restrição externa.

A análise da sociedade pastoril do Tejo ficaria incompleta caso, detendo-nos em

cada um dos seus núcleos, não considerássemos os momentos em que são apresentados

como um todo, orquestrado com surpreendente eficiência. Nas Dianas, a peregrinação

ao palácio de Felicia é o pretexto comum que junta personagens portadoras de histórias

muito distintas, decorridas em meios muito específicos, quando já os seus percursos

terminaram, e o que está em causa continua a ser o passado e a experiência individual

de cada interveniente. Ora, El Pastor de Fílida opta por uma estratégia bastante

diferente: as situações de reunião social constituem os focos fundamentais da narrativa,

que só em função deles existe. Para confirmá-lo, bastará fazer o levantamento do

conteúdo de cada uma das partes constituintes da novela. A par de alguns gestos

isolados de pastores ou de grupos de pastores, sobressaem os grandes eventos que

marcam a vida social na aldeia: cerimónias fúnebres (partes primeira e segunda),

Page 40: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

37

competições atléticas (segunda parte), visitas a templos e solenidades religiosas (partes

quarta e quinta) ou bodas (sétima parte). Estes acontecimentos são responsáveis ainda

pelos episódios secundários que ocorrem enquanto os pastores se encaminham para os

lugares de reunião, quando, já no seu destino, reencontram outros pastores e conferem

um sentido pessoal ao momento, ou durante o regresso. Poderia dizer-se que Montalvo

noveliza a Arcadia sannazariana, na medida em que, recuperando muitos dos seus

quadros, cria entre eles uma continuidade narrativa, que muito deve à fixação das

personagens intervenientes, mas também ao relevo concedido à sua feição social e não

já meramente poética. Não obstante, como assinala Reyes Cano, a nossa novela partilha

com a de Sannazaro um «desinterés por la acción» (1973: p.31), que aqui se revela

crucial para a consolidação do “projecto pastoril”.

Este “calendário social” substitui de forma curiosa o calendário rústico ditado

pelas sazões do ano e pelos imperativos da labuta rural, de que os Trabalhos e Dias de

Hesíodo e as Geórgicas virgilianas constituem os exemplos mais conhecidos.

Especialmente ociosos, estes pastores governam-se de acordo com uma rotina social,

menos contínua do que a natural45, porém igualmente dotada dos seus ciclos e de um

extremo dinamismo46. No seu conceito, se não nas suas concretizações (cujos modelos

se encontram na bucólica clássica), estes rituais de socialização acusam reminiscências

da vida na corte e nos grandes centros urbanos.

Se, convencionalmente, o encontro entre pastores tem como efeito premeditado

a descoberta da sua igualdade essencial (revelada no amor, na poesia, na tristeza, na

deambulação, no trabalho, entre múltiplos outros factores), no Pastor de Fílida as

reuniões sociais reforçam a consciência, no leitor e nas personagens, de uma

intransponível disparidade entre classes. Recorde-se a cerimónia fúnebre em memória

de Elisa, única herdeira do ilustre Sileno: conquanto toda a comunidade pastoril seja

convocada, nem todos são distinguidos com o privilégio de pronunciar a sua pena, mas

somente Alfesibeo e Galafrón discursam, permanecendo na penumbra os restantes

assistentes. Já nos jogos que se seguem, é a vez de os outros pastores exibirem a sua

destreza e força, enquanto Sileno e os seus se entretêm, observando-os desde o alto da

sua dignidade. Quanto à comemoração das bodas de Alfeo e Andria, Orindo e Finea, e

Arsiano e Silvera, é significativo que um evento de carácter particular depressa se 45 Como é costume, a selecção cronológica recai sobre os meses amenos, que propiciam os encontros pastoris ao ar livre, em viçosos loci amoeni. 46 Num e noutro caso, é pertinente afirmar-se que «[l]es activités des bergers sont rangées dans un ordre bien défini de mouvements, un code rituel, une choréographie» (Vecce, 2006: p.77).

Page 41: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

38

converta num pretexto de reencontro final de todas as personagens, de grande utilidade

para o equilíbrio narrativo. Sileno torna a assumir o controlo da sociedade pastoril ali

reunida47, dispondo estrategicamente a assistência e corroborando a ideia (familiar ao

século XVI e seguintes) de que «[a] todas as reuniões de seres humanos corresponde

uma certa organização do espaço que lhes permite organizarem-se na totalidade ou por

unidades parcelares» (Elias, 1987: p.20):

«Sileno [...] mandó hacer tres enramadas, una para él y los precios, otra para las ninfas y otra para las pastoras. [...] A cada cual puso Sileno en su sitio y tomando el cartel subió al suyo con Mendino y Cardenio y los festejados Alfeo, Arsiano y Orindo» (p.473).

Adivinha-se que aos demais pastores, não mencionados, tenha sido guardado o espaço

sobrante, sem regalias de assento nem de sombra... Nem sempre, portanto, «en el juego

todos son yguales» (Mercader, 1907: p.43).

Impossível é não ceder à tentação de cotejar estas festividades enganosamente

rústicas com certos episódios do quotidiano espanhol de quinhentos, que davam

igualmente azo a encontros entre as distintas classes sociais: procissões, jogos de canas

e corridas de touros, representações teatrais (excepto as cortesãs, obviamente), bem

como uma série de ocasiões solenes relacionadas com a vida pública e política do reino,

intensamente vividas por toda a população48. Nestas situações, plebe, fidalguia, clero e

realeza imiscuíam-se sem por isso verem comprometidos os seus estatutos específicos;

os pequenos gozavam da relativa proximidade física dos grandes, sem sonharem (sem

lhes ser dada razão para sonharem) com outra sorte de aproximação. Semelhante “pacto

social” – se nos é permitido empregar tão livremente a expressão – é visível nos

encontros comunitários que pautam El Pastor de Fílida, marcando a decisiva cisão entre

o universo pastoril que nele se projecta e os das tradições em que Montalvo bebe de

forma selectiva. Pois que os pastores do Tejo de bom grado assumem esta nova e 47 Sileno impõe-se como figura dominante na comunidade pastoril, em termos de poder e influência social. Para além de ser o patriarca da “casa” principal, é a seu cargo que fica a organização de várias solenidades colectivas, às quais, por vezes, assiste como juiz, premiando os participantes. É também sob a sua alçada que se celebram ocasiões importantes na vida individual de alguns pastores, tais como as três uniões que rematam a novela. Enfim, não há que esquecer que, na quinta parte, é o mesmo Sileno quem profere a oração primaveril a Diana, aliando assim a autoridade religiosa ao poder social que desde o começo lhe era reconhecido. 48 Compare-se esta passagem com o seguinte excerto da Fastigimia, onde Tomé Pinheiro da Veiga descreve a organização da assistência nos festejos realizados em Valladolid pelo nascimento de Filipe IV: «as janellas quazi todas se tomaram para os Conselheiros: deram os arcos de sima e os de baixo do concistorio aos Inglezes principaes, e aos demais deram os tablados […], e as janellas quazi todas se largam a mulheres […]. Quando El-Rey vê as festas, tem seu docel, e nenhuma outra pessoa o pode ter»; da populaça «em pinha», ocupavam os tablados aqueles que os podiam alquilar, e os mais cobriam os «tilhados» (p.118).

Page 42: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

39

inopinada situação, não nos cabe senão aprová-la também e fazer da diferença um

salutar motivo de reflexão. Adiante, pois.

Page 43: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

40

CAPÍTULO III

«DEBAJO DEL SAYAL HAY AL»

As Relações Familiares

O aspecto que, na sequência das reflexões que temos vindo a tecer, agora se

propõe como objecto de alguma atenção constitui, desde logo, uma novidade mais que

distingue a nossa novela das anteriores.

A tradição bucólica clássica não concede particular importância à “célula social”

que a família representa. Isto porque, nela, não existe lugar para a representação dos

dois pólos ideológicos habitualmente associados à noção de família: o matrimónio e a

filiação (cf. Poggioli, 1975: pp.56-58) – dois compromissos que impiedosamente

aboliriam a beata liberdade pastoril. Previsivelmente, nas novelas pastoris espanholas

que se mantêm mais fiéis ao ideal arcádico, entre as quais a trilogia fundadora das

Dianas49, a família e as suas figurações encontram-se igualmente diluídas. Nelas, toda a

sociedade pastoril se oferece como uma ampla família, para tal contribuindo o

isolamento destas Arcádias, a existência de um código moral e de um padrão

sentimental comuns, e, enfim, uma certa igualdade fraterna entre pastores. Se as

personagens tendem a formar grupos mais restritos dentro da comunidade, fazem-no

como resposta a um impulso natural que move o indivíduo a procurar os seus

semelhantes – que o são a um nível vivencial, não por afinidade de sangue –, e porque,

49 Apenas em parte, exceptue-se a Diana enamorada, onde o matrimónio é encarado como a «meta final» do amor (Egido, 1987: p.395), embora marque o fim da narrativa. À medida que nos adentramos pelo século XVII, chega mesmo a impor-se como um topos obrigatório do género, equiparável, por exemplo, ao enaltecimento da vida campesina. Naturalmente, esta insistência radica em circunstâncias sociais e espirituais da história espanhola na hora crítica que foi a da transição deste século para o seguinte. Veja-se Milhou-Roudié (1995).

Page 44: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

41

sem essa categorização mínima, seria incomportável manejar a complexa e abundante

matéria novelesca habitualmente abrangida por estes textos. Considere-se ainda que o

conceito de linhagem, para o qual conflui, nesta época, o de família, acarreta uma

impressão de temporalidade, incompatível com a essência estática, acrónica, quase

mítica destes universos pastoris.

No Pastor de Fílida, contudo, esse conceito de linhagem não só é assumido,

como se revela determinante na constituição de um tecido social substancialmente mais

complexo do que aquele com o qual nos confrontamos nas Dianas, herdeiro já de

princípios distintos, tal como temos verificado.

É o critério da linhagem que impõe uma distinção de primeira ordem entre os

pastores naturais do Tejo. Sugerimos já que algumas personagens constituem uma

espécie de “elite” pastoril, sobretudo aquelas que gravitam em torno do “patriarca”

Sileno, tanto por afinidade de sangue – Elisa, sua filha, Galafrón, Barcino, Mireno e

Liardo, seus «deudos» (p.217) –, como na condição de “apaniguados” – Mendino,

Castalio e Cardenio. Estes últimos não são, evidentemente, seleccionados de forma

aleatória: se alcançam esse estatuto privilegiado é porque a pertença a uma família

ilustre os credita – uma família aristocrata, apetecer-nos-ia dizer, se tal termo não

agredisse demasiado a noção de mundo arcádico a que os clássicos nos acostumaram.

Para que este código social seja eficaz, cumpre, ainda, que a família seja reconhecível,

ao menos pelos pastores oriundos da mesma “classe”, inclusivamente noutros âmbitos

pastoris50. É o cumprimento destes requisitos que permite a circulação de pastores

“nobres” entre aldeias, sem que o seu prestígio saia minimamente lesado, tal como

sucede com Mendino, que é acolhido pela «mayor nobleza de la pastoría» (p.214),

sendo-lhe logo reconhecido, apesar de estrangeiro, um lugar proeminente na

comunidade, junto de Sileno e dos seus51. Os elementos identificadores destas famílias

não escamoteiam o seu realismo: algum avoengo especialmente célebre («nieto del gran

Rabadán Mendiano» – p.213); o local de origem, que, comummente, acompanha os

títulos nobiliários («Mis bisabuelos en la [ribera] de Adaja apacentaron» – p.307); e o

brasão de armas («las alas de un águila de plata sobre color de cielo» – p.307). Fílida,

que, todavia, mantém em relação à comunidade, como em relação a tudo, um certo 50 O aristocrata «efectivamente só faz parte da “boa sociedade” na medida em que os outros estão convencidos disso, o consideram como um dos seus» (Elias, 1987: p.69). 51 Ingénuo nos parece o juízo emitido por B. Damiani a respeito de um mundo social que é, enfim, aquele que El Pastor de Fílida pinta: «As distinction of birth and wealth ceased to confer any special privilege on the individual in the Renaissance, society judged men and women by their personal qualities, among them “discreción”» (1983: pp.33-34).

Page 45: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

42

distanciamento que a deifica, também se encontra neste plano social pelo seu parentesco

com o rico Vandalio; demais, é possível que a tal se refira Siralvo quando, socorrendo-

se embora de um chavão poético, exalta orgulhosamente o «lugar alto» a onde «volaron

[sus] pensamientos» (p.308)52, e ainda Silvia, ao emparelhar Fílida a Juno e Vénus ou,

mais prosaicamente, a uma desconhecida Albana do Henares (p.321).

Deslocadas do âmbito ideológico em que são aqui inseridas (ou, pelo contrário,

envolvidas num âmbito ideológico que não parece coadunar-se com elas), estas

personagens encontram-se, todavia, no centro do universo ficcional do Pastor de Fílida.

Os amores exemplares entre Siralvo e Fílida e entre Mendino e Elisa constituem os

eixos da obra, e Montalvo, ao conceber os protagonistas da sua novela, parece ter

seguido a lição das novelas sentimentais, de cavalarias e de aventuras, destacando-os,

não só pela excelência interior, mas também pela condição social53.

À parte destes pastores, declarados “duplos” da fidalguia espanhola com a qual

Montalvo tratou, sobra uma “massa” social de personagens, que somente não destoam

de forma flagrante do universo “aristocrático” porque ele próprio se presta já a

profundas ambiguidades, porventura atenuadas por virtude da repetição. O seu estatuto

na comunidade nunca é explicitado com grande rigor, embora indirectamente se insista

na igualdade de uns perante os outros e, sobretudo, de todos perante a “classe”

dominante. Entre estas personagens, incluem-se, indiferenciadamente, naturais e

estrangeiros, dotados dos mesmos costumes e deveres: todos pertencem – tal como a

“fidalguia” pastoril, mas noutro sentido – a um conjunto universal, dotado de códigos

próprios: é por este motivo que Finea se desloca da montanha para as margens do Tejo,

onde, constituindo um pequeno rebanho, reconstrói a sua vida, como se ali houvesse

visto pela vez primeira a luz do dia (p.281). Na verdade, se estas figuras pastoris não

parecem ter um lugar determinado na estrutura hierárquica, é justamente por se

encontrarem à margem dela, aproximando-se, pois, muito mais do estereótipo pastoril

estabelecido pelos autores clássicos e em parte reforçado, neste aspecto, pelas anteriores

novelas pastoris espanholas. A estes pastores é aplicável o conceito de família global a

52 Mayans y Siscar (1792) faz uma leitura semelhante deste segmento. Admite uma desigualdade social entre Siralvo e a sua pastora, baseando-se quer na identidade real de Montalvo, cuja condição de «gentilhombre» crê estar subentendida nos termos «humilde pastor» (1792: p.XVIII), quer na cautelosa conduta que a personagem Siralvo adopta sempre que procura aproximar-se da sua bem amada e muito resguardada Fílida (pp.XXI-XXII). 53 Por outro lado, não é pouco significativo que Castiglione projecte o mesmo ideal para o perfeito cortesão, que, para além das prendas pessoais, conviria que tivesse uma ascendência aristocrata: «Voglio adunque che questo nostro cortegiano sia nato nobile e di generosa famiglia» (Castiglione, 1990: p.39). Ver Martínez San Juan (2003), nomeadamente as pp.95-97.

Page 46: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

43

que atrás aludíamos, até porque, para além de se ignorar em absoluto a sua ascendência,

não existe sequer, entre elas, qualquer relação de parentesco, alicerçando-se todas as

afinidades no princípio tradicional da semelhança de caracteres e de interesses, ao qual

regressaremos no momento oportuno. Por outro lado, desvinculados de tudo o que não

seja o amor presente (ao qual se restringe toda a sua história de vida, que nem reflecte

um passado nem anuncia um futuro), preservam aquela irrealidade vaga, acrónica e a-

histórica de entidades puramente literárias, traço distintivo da personagem pastoril típica

que impregna a literatura subordinada ao vastíssimo tema, ou, antes, ao «state of mind»

que a pastoral representa, como tão afortunadamente arrisca Heninger (1961: p.257).

Família e Sociedade

Regressemos, porém, ao caso dos “pastores aristocratas”. A pertença a um

estrato social superior traduz-se, estamos habituados a pensar, em algumas regalias;

neste universo ficcional, quase perfeito para todas as personagens, essas regalias

reduzem-se a uma só, não isenta, aliás, de uma subtil ironia: o protagonismo.

Igualmente, presume-se que este estatuto acarrete certas obrigações irrevogáveis. De

tais questões ocupar-nos-emos nesta derradeira secção do presente capítulo.

É certo que todas as comunidades pastoris literárias, desde Teócrito até

Montemayor e seus seguidores, são dotadas de códigos concretos que permitem ao

leitor identificar o universo ficcional em que se integram. Por exemplo, nas bucólicas

clássicas espera-se que o pastor talentoso aceda aos pedidos dos seus companheiros,

exercendo a sua arte para os entreter e aliviar a dureza das labutas rurais; por seu lado,

os companheiros (muitas vezes um só – o suficiente para constituir um “agregado”

pastoril e humano) deverão compensar a sua gentileza com um troféu generoso, já que a

música e o canto constituem o requinte supremo da existência. Já em qualquer uma das

Dianas, é muito significativa a importância que se atribui à partilha de experiências de

vida, cortesia que se supõe ser mútua, como adiante discutiremos. Sucede, não obstante,

que estes procedimentos estereotipados, para além de terem como desígnio primordial a

aproximação humana entre pastores, respondem a uma necessidade narrativa ou poética

Page 47: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

44

imediata, visto que asseguram um pretexto para o desenvolvimento novelesco da obra

ou para as indispensáveis expansões líricas.

Ora, também o universo pastoril da novela de Gálvez de Montalvo absorve, à

sua maneira, estes códigos, como se pode confirmar em vários momentos. No entanto, a

novidade da obra consiste na assimilação de certas pragmáticas que, desprovidas de

funcionalidades narrativas primárias, põem em relevo a afinidade entre este âmbito

ficcional e a realidade histórico-social da Espanha quinhentista, que abertamente se

pretende retratar e, sobretudo, idealizar, resultando não já numa aproximação, mas num

distanciamento entre certas personagens de elite face às restantes. Estes padrões

comportamentais não se fundam no princípio da igualdade entre os indivíduos:

sublinham uma diferença hereditária que, assegurada à partida pelo nascimento (factor

acidental, tal como vários escritores e pensadores da época reconhecem54), deve ter

continuidade em cada gesto, em cada palavra, em cada atitude e decisão destas

personagens excepcionais.

Tais condicionantes, restringindo o campo de actuação, estilhaçam a utopia

clássica da liberdade hedonista, o que, de resto, não constitui forçosamente um

paradoxo, já que, conforme vimos, ao lidar com este universo ficcional, há que adaptar

o raciocínio a dois pólos ideológicos radicalmente opostos. Assim, Elisa e Fílida, as

duas pastoras que encarnam a “aristocracia” feminina, são constrangidas a manter um

recato rigoroso, o que limita substancialmente a frequência das suas aparições, embora

estejam quase sempre presentes através de Mendino e Siralvo, respectivamente, os

quais, sob uma perspectiva masculina, expõem o rol das suas prendas e virtudes ao

leitor55. Note-se que os louvores tecidos a estas donzelas paradigmáticas abarcam,

invariavelmente, a rectidão da sua conduta, onde reluz a excelência moral dos espíritos:

se Elisa é «de maduro juicio, amada de muchos, mas de ninguno pagada» (p.214), Fílida

é dotada de um «entendimiento […] de varón muy maduro y muy probado» (p.299). A

própria formosura destas pastoras, que supera as das demais figuras femininas, é indício

quer da sua superioridade, quer da virtude que, por tradição, a acompanha56.

54 Entre os quais Juan Huarte: «El necio [...] se ha de contar en el número de los brutos animales, [...], puesto caso que [...] sea [...] bien nacido, y en dignidad Rey o Emperador» (Huarte de San Juan, 1948: p.73). 55 Das representações da mulher «a través del prisma del neoplatonismo», que redunda menos na sua dignificação do que na do seu amante, bem como das Arcádias enquanto universos predominantemente masculinos, ocupa-se C. Castillo Martínez (2009b). 56 Sagazmente observa A. Cirurgião: «a beleza é apanágio de toda a mulher. Convém, porém, notar que existe uma hierarquia na beleza feminina, hierarquia que é universalmente aceite. […] [A] mulher bela é por natureza boa e virtuosa, ou, pelo menos, a sociedade exige que assim seja» (1968: p.402a; p.406a).

Page 48: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

45

Elisa dá-se a ver somente aos pastores da sua classe: na primeira parte da obra,

podemos encontrá-la numa reunião lúdica onde participam igualmente Filis, Clori,

Mendino, Galafrón e Castalio, pastores que, sabemos já, pertencem ao mesmo círculo

social. Elisa assiste, em silêncio, às competições poéticas entre os pastores seus pares,

sem se pronunciar, muito menos quando, chegando a vez de Mendino, nitidamente o

canto lhe diz respeito. Então, por muito enamorada que se sinta, não é necessário

recordar-lhe os seus deveres: instintivamente, dissimula, não concedendo nunca maior

atenção a nenhum dos convivas do que aos demais57. Por outro lado, ciente de que de si

depende, mais do que a sua reputação em particular, a nomeada de toda a sua família na

aldeia do Tejo e, porventura, também fora dela, conduz com a máxima prudência os

seus amores com o «nieto del gran Rabadán Mendiano»: é a pastora quem toma a

decisão de enganar habilidosamente Galafrón e Filis (p.223) e quem determina os

momentos em que podem encontrar-se com segredo, valor supremo para qualquer

cortesão (p.228)58. Não é pouco curioso que os amantes, iguais no plano afectivo e

social, encarem com receio a possibilidade de uma ligeira incúria vir a revelar os seus

amores, legítimos em todos os aspectos. Sucede que, se no caso dos pastores vulgares o

amor sobeja para autorizar a união entre dois seres, quando de pastores aristocratas se

trata não basta o amor acompanhado de todas as excelências morais e, ainda, de uma

impoluta nobreza de sangue, atendendo a que, em última instância, não está já em

questão o destino de dois indivíduos, mas sim o de duas linhagens. Visto que o amor se

nutre de esperanças mas não de esperas, Mendino e Elisa engendram esta arriscada

estratégia para poderem gozar, dentro dos limites da honestidade e da «limpieza», os

seus amores, antes de qualquer contrato matrimonial, sempre incerto e que, demais, não

lhes compete decidir, nem sequer propor. No capítulo final, reservaremos um espaço

para as questões matrimoniais.

Fílida, por seu turno, é a mais avisada e honesta guardiã da sua própria virtude,

pelo que dispensa o controlo familiar e social que envolve a filha de Sireno. Ignoramos

57 A jovem obedece a um preceito cortesão fundamental, assinalado por Castiglione: a dissimulação. Corresponde, concretamente, a uma «mediocrità difficile» (Castiglione, 1990: p.266), que exige que a dama seja «circunspetta» e tenha «riguardo di non dar occasion che di sé si dica male» (p.265), e, ao mesmo tempo, que evite «esser tanto ritrosa e mostrar tanto d’aborrire e le compagnie e i ragionamenti ancor un poco lascivi, che ritrovandovisi se ne levi» (p.266-267). Os aspectos que concernem às regras de conduta cortesã observadas pelas personagens do Pastor de Fílida são informada e abundantemente tratados por Martínez San Juan (cf. 2003: pp.93-204). 58 «Gli amori de’ quali la fama è ministra, son assai pericolosi di far che l’omo sai mostrato a dito; e però chi ha da caminar per questa strada cautamente, bisogna che dimostri aver nell’animo molto minor foco che non ha» (Castiglione, 1990: p.348).

Page 49: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

46

quase tudo o que à sua família diz respeito, com excepção da nobreza. A sua probidade,

de resto, é mais sólida, na medida em que corresponde mais a um tributo à virtude em si

mesma do que à honra familiar. Por tal motivo, a conduta desta pastora revela-se mais

rigorosa ainda, transcendendo a mera cautela, na qual confiava Elisa, e fundando-se

numa total pureza espiritual. Siralvo teria, assim, motivos para ser um amante bem mais

infeliz do que Mendino, se a sua própria perfeição não se encontrasse à altura da da

amada, já que escassíssimos são os encontros amorosos a que assiste: um nocturno, na

terceira parte, um nos jardins do templo de Pã, na quarta parte, e, enfim, um último, na

quinta parte, nas selvas onde Fílida, já sequaz da filha de Latona, se entretém a caçar.

Merece ser salientado que, apesar de se dizer da pastora que «no se esquivaba [...] de

oírle, ni de entender que la amaba» (p.230), a verdade é que, com excepção do segundo

momento referido (menos inconveniente graças à presença de outros pastores), Siralvo

mal chega a vislumbrar e a comunicar directamente com a sua amada ou não o faz de

todo, dirigindo, amiúde, os seus requebros a Florela, confidente dos amantes, e pedindo-

lhe notícias do estado dos sentimentos de Fílida59. Não deixa, pois, de surpreender o

facto de a mais formosa, discreta e recatada pastora da aldeia, mais tarde consagrada a

Diana por «no haber hombre que la merezca» (p.321), tratar mais livremente do que

Elisa com os restantes pastores, entre os quais, todavia, é sempre reverenciada como

superior. Recorde-se, a este propósito, na quarta parte, a já aludida sessão de “academia

literária”. Visivelmente, esta personagem feminina é alvo de uma idealização

exacerbada, pelo que qualquer observação que recorra ao seu exemplo revelará sempre

alguma fragilidade60.

Os austeros preceitos de convivência social determinam, portanto, não somente

as ocasiões em que é apropriado mostrar-se, mas ainda os indivíduos com quem se pode

lidar sem comprometer o estatuto social, bem como o modo adequado de o fazer. Não é 59 No entender de Siles Artés, Fílida «no corresponde» ao amor de Siralvo «con sentimientos de la misma altura […], no figura en la trama como mujer enamorada» (1972: p.126). Primeiramente, a superioridade social que esta pastora está consciente de deter é em larga medida responsável pelo recato honesto que, não favorecendo grandes expansões afectivas, é o que, acima de tudo, a torna amável aos olhos de Siralvo. É algo arriscado especular acerca da intimidade de personagens das quais, deliberadamente, apenas a superfície se dá a conhecer, seja porque representam meros estereótipos literários, seja porque toda a sua essência se concentra nisso mesmo: num relance de ideal. Para além disto, o crítico parece equivocar-se quanto ao âmbito a que se reportam as suas considerações: Fílida, mais “platonizada” ainda do que a maioria das pastoras novelescas, não emparelha com Mme Bovary, mas antes com Beatrice e Laura – em última instância, o seu supremo acto de amor é ser amada. 60 «De alguna forma, Fílida constituye un compendio sustancial del bien deseado por el hombre» (Martínez San Juan, 2003: p.133). Secundamos, e com menores hesitações ainda, tal asserção, aliás fortalecida pelos comentários do protagonista masculino, suposto “duplo” literário do autor e movido, portanto, pelos mesmos objectivos: «- Un corazón de hombre -dijo Siralvo- con que la amo, imposibilitado a pagar deuda tan divina» (p.294).

Page 50: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

47

pouco relevante o facto de tais códigos visarem sobretudo a conduta feminina61, já que

Mendino, o pastor aristocrata que conhecemos melhor, e Siralvo, o “intermediário”

social, gozam de liberdade para conviver com pastores de todas as classes; Mendino

chega, inclusivamente, a entregar-se aos amores de várias pastoras, alguns anos após a

morte de Elisa, o que leva as ninfas a lastimarem a mudável condição de «todos los

hombres» (p.440), como em resposta às censuras de que o seu sexo foi sendo alvo desde

os tempos de Adão.

Importa ter presente que são as personagens pertencentes a esta “elite” pastoril

bastante realista as que têm dado que pensar aos críticos e historiadores na hora de

identificar as personalidades históricas implicadas nesta “mitificação” artística de uma

corte toledana62. Quanto às demais, não se verifica qualquer esforço nesse sentido, o

que sublinha o facto de umas e outras possuírem naturezas manifestamente distintas.

Pelo contrário, para um pastor enamorado, qualquer hora é a mais aprazada para

procurar e conversar com a sua amada, desde que o amor – única entidade a quem se

encontra sujeito – o instigue nesse sentido. A presença de outros pastores não inibe os

amantes nem compromete a sua honestidade nem a do ser amado, até porque todos,

sentindo ou tendo sentido no passado os efeitos das mesmas paixões, se compadecem e

se compreendem mutuamente. São mesmo permitidos os galanteios públicos, tais como

as serenatas ou os cantos amorosos entoados em reuniões pastoris. Na verdade,

dissimular o amor resultaria paradoxal, dado que os apaixonados são os primeiros a

descobrir, sem embaraço, todos os seus pormenores a qualquer outro pastor que se

disponha a escutá-los, conforme aprofundaremos no devido lugar. Para esta liberdade

amorosa, inerente à utopia clássica e novamente enaltecida, embora com restrições e

outra intenção, em algumas novelas pastoris dos Siglos de Oro, muito contribui a

ausência de vinculações a grupos familiares, o que, como vimos, acarreta

responsabilidades e condiciona o olhar dos outros e sobre os outros. Em suma, a

reputação e a experiência terminam no próprio indivíduo e devem ser avaliadas em si

mesmas, não pela eventual correspondência a certos padrões exteriores. Da mesma

liberdade de acção e de sentimentos usufruem as personagens pastoris (as efectivamente

pastoris) do Pastor de Fílida, entre as quais não há indício de qualquer laço familiar e 61 «L’exaltation de la dame n’est qu’un subtil mécanisme d’exclusion qui la confine dans un rôle aimable où son regard prend le pas sur sa parole» (Cozar, 1995: p.121). 62 Desde Mayáns y Siscar, no século XVIII, até aos entusiásticos Rodríguez Marín e Alonso Gamo, no século XX, os leitores eruditos do Pastor de Fílida têm empenhado não menos esforços imaginativos do que investigações históricas para descortinar as identidades reais das personagens desta novela. Veja-se Martínez San Juan (2001: p.116, nota 5).

Page 51: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

48

de cujas origens não temos o mais leve sinal. Filena é uma figura iluminante neste

sentido; dela diz Pradelio: «aunque moza y poco cursada en esto, es de tan claro

entendimiento y de bondad tan natural, que lo que contigo[, Filardo,] hizo y conmigo

hace, sólo le sale de una condición afable y llana con que generalmente trata sus

amigos» (p.315). Ora, tais procedimentos, que seriam maximamente reprováveis em

Elisa ou em Fílida, são, numa pastora, olhados com condescendência e até com certa

bonomia por outra personagem da sua classe, que, por sinal, não é menos do que o seu

amante.

Cumpre dedicar ainda algum espaço na presente reflexão às personagens de

Alfeo e Andria, que são dotadas de uma grande complexidade, habilmente disfarçada

sob o traje rústico. Sendo declaradamente cortesãos (Alfeo confessa-o na história de

vida que partilha com Siralvo, na terceira parte) e reconhecidos como tal no âmbito

pastoril (recorde-se que é a pensar nos seus gostos refinados que, no desfecho da obra,

Sireno organiza a simulação de um torneio), todavia confundem-se, com uma espantosa

naturalidade, com os pastores vulgares, desde a hora em que pisam as areias do Tejo. O

que parece inconcebível para os pastores do círculo de Sireno é aceite e mesmo

desejado por estes jovens atormentados, algo que fica comprovado pelo facto de

entrarem em cena já devidamente “metamorfoseados”: quando Alfeo surge, «[a]sí como

iba trocada su fortuna, así lo iba su traje, camisa cruda llevaba y sayo pardo vaquero,

caperuza de faldas y calzón de lienzo, polaina tosca y zapato grueso» (p.246); Andria,

que, para consumar a sua transformação, altera até o seu nome, é por Siralvo de

imediato identificada como habitante do mundo pastoril, ainda que não saiba determinar

«si de pastor o de pastora» (p.376) se tratava. O seu estatuto de aprendizes do amor

pode explicar razoavelmente esta situação. O percurso de Alfeo e de Andria, ao incutir-

lhes uma sabedoria amorosa que, enquanto moços inexperientes, não possuíam, ensina-

lhes o seu lugar na sociedade. Visivelmente, o descontrolo passional não é compatível

com o estatuto e as funções do cortesão, nem com as obrigações que o ligam aos seus

amigos e parentes. A triste experiência de Alfeo comprova-o:

«Retiréme de mis amigos y deudos; dejé la caza y los libros; fundé todo mi deleite en los papeles de Andria, y en visitar su calle, y en verla las horas hurtadas que ella me concedía. No fue menos lo que Andria sentía por mi, ni lo que menos me dañó, porque retirada de cuanto la solía dar contento, fue notada en su casa, y más en las ajenas, y muchos prendados de su amor, (hombres de suerte y caudal), procuraron saber la causa de su novedad. Y a pocos lances la hallaron en mí. Luego comenzaron las asechanzas, las chismes y las mentiras, cartas falsas contra Andria, amenazas contra mí» (p.305).

Page 52: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

49

A presença dos parentes de ambos os enamorados pode converter-se, nesse caso, num

obstáculo intransponível, o que comprova que o ideal de liberdade amorosa postulado

por certas formulações do mito pastoril é incompatível com o ideal de cortesania

renascentista ou de qualquer outra época. A fuga para um meio inadequado à sua

condição começa por ser fruto do carácter intempestivo das personagens, mas não

resulta, de nenhum modo, na quebra dos preceitos sociais: antes, é esse tempo de retiro

que apura e disciplina os seus espíritos, de tal modo que o regresso à corte e a

consequente separação de Alfeo e Finea são encarados com serenidade, como algo

simplesmente natural63 – o jovem cortesão revê-se, por certo, nas prudentes

considerações da serrana: «Orindo era de su misma suerte, y Alfeo no; de manera que

estándola bien casarse con Orindo, a Alfeo no le convenía casarse con ella.» (p.470). O

próprio percurso sentimental das personagens parece tender para uma harmonia perfeita

com a ordem comunitária, visto que às palavras transcritas se seguem estas: «Su

destierro había sido por desdén de Orindo, y ya venía humilde a su desculpa. Orindo era

su amor primero, Alfeo segundo» (p.470). Seguramente, Montalvo explora as

possibilidades novelescas do intrincado código social do seu tempo, mas sempre com o

intuito final de o confirmar e fortalecer64.

A infiltração, a pretexto dos deveres familiares, de tais restrições e códigos no

mundo pastoril, ao qual são intrinsecamente alheios, é sintomática do crescente

hibridismo que se vai verificando nos exemplares deste género literário65. Igualmente,

63 A propósito dos «courtly invaders» nos meios pastoris arcádicos, escreve P. Marinelli: «their flight to the country is not the terminus of their quest. It is expected of the great who rightly flee the tained world of courtly corruption that […] ultimately they will return to their own proper sphere, which is the world of Art, the city and the court, and renew and regenerate it by the knowledge they have gained» (1971: p.62). Quanto à segunda parte desta sentença, não nos é dada nenhuma certeza, visto que o texto termina antes do anunciado regresso de Alfeo e Andria à corte. Resta-nos, porém, confiar no optimismo que marca o desfecho da novela. 64 Algo semelhante fazem alguns autores de outros géneros novelescos dos Siglos de Oro, tais como Cervantes, em «Las dos doncellas», ou Lope de Vega, em «Las fortunas de Diana», dois exemplos entre numerosos que se poderiam enunciar. Tanto num caso como no outro, as protagonistas femininas imitam, de certa forma, a audácia das pastoras e das cortesãs enamoradas das novelas pastoris, saindo do seu meio e descurando as suas obrigações sociais, já para restabelecer a ordem perdida, já temendo os efeitos dessa ordem. O desenlace de ambas as peregrinações é um retorno à normalidade e uma consolidação das normas sociais e afectivas quebradas, constituindo a novela uma loquaz advertência para os perigos das transgressões. A título de curiosidade, recorde-se que, no referido texto de Lope, Diana é acolhida, a dado momento, por pastores, entre os quais vive durante um certo período oculta sob vestes rústicas masculinas, reunindo, portanto, vários elementos novelescos caros ao género do qual, no presente trabalho, nos ocupamos. 65 Não será, todavia, o hibridismo uma das peculiaridades distintivas deste género literário, observável desde a primeira Diana? Porventura, o que diferencia, em termos de qualidade, estes textos, é a habilidade e o grau de consciência com que se lida com esse hibridismo, capazes de originar propostas interessantes como a que nos oferece Gálvez de Montalvo, ou, pelo contrário, ficções incoerentes e despropositadas.

Page 53: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

50

sugere a contaminação dos inatos e puros valores que o mito da Idade de Ouro associara

a estas personagens idealizadas. O universo humano e social do Pastor de Fílida

instabiliza o modelo fixado pelas Dianas; discutimos, no capítulo precedente, alguns

aspectos desta instabilidade, e continuaremos a fazê-lo nos que se seguem. A sua

consequência imediata é, pelo menos na proposta de Montalvo, a instituição de normas

estritas que passam a regular os comportamentos das personagens, uma vez que a

virtude, em alguns casos (sobretudo no dos pastores aristocratas, o que é não pouco

significativo), cessou de ser instintiva e de se bastar a si própria. Estas questões,

contudo, merecem um espaço próprio e uma mais longa ponderação – retomá-las-emos

no capítulo que agora começa.

Page 54: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

51

CAPÍTULO IV

O LOGRO DE HORÁCIO

Aspectos do Binómio Aldeia/Corte

Desde o início do nosso estudo, o binómio clássico que dá título à presente

secção foi emergindo amiúde no horizonte das nossas interpretações. Optámos por

evitá-lo até agora, porque, de outro modo, nos desviaríamos por sistema dos nossos

objectos de trabalho, para além de que este tópico implica o debate de questões

complexas, que merecem ser alvo de uma discussão mais detida num lugar próprio e

não de forma parcelar.

Longe de quebrar o fio das nossas considerações, tencionamos recolhê-las e

conduzi-las até à sua consequência derradeira: o questionamento da própria natureza

pastoril do universo que temos vindo a descrever. Em larga medida, é certo, esta será

uma interrogação retórica, havendo nós tomado como ponto de partida o elogio do cura

cervantino. Todavia, não é menos certo que um mesmo destino procurado por diferentes

sendeiros sempre se revela ligeiramente novo.

No entender de alguns autores, a Arcádia – paradigma infinitas vezes

reconfigurado – representa «the wishful dream of a happiness to be gained without

effort» (Poggioli, 1975: p.14). Outros, não negando a sua faceta idealista mas preferindo

ressaltá-la sob uma óptica distinta, mostram-se mais sensíveis ao conflito intrínseco que

a alimenta: «The pastoral world is not one of perfection, but of yearning for perfection»

(Mujica, 1986: p.18). Qualquer uma destas perspectivas é, desejavelmente, universal e

aplicável a textos desde Teócrito até Tolstoi, como procurou demonstrar Poggioli. A

segunda, contudo, para além de mais aliciante e profícua, oferece-nos uma via mais

Page 55: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

52

directa para a análise da dicotomia Aldeia/Corte, que aqui tencionamos explorar, e cujos

termos são substituíveis, segundo o contexto literário ou ideológico, por outros –

Campo/Cidade, Natureza/Civilização, entre muitos possíveis.

Por vezes, o binómio de que nos ocupamos é reduzido, com alguma

precipitação, à relação antagónica entre Idealismo e Realidade. Todavia, após uma

reflexão fundamentada em exemplos concretos, concluímos que este não representa um

equivalente, nem sequer um corolário forçoso, da dicotomia Aldeia/Corte. Desde logo,

uma oposição tão radical trai-se a si própria, indiciando a sua artificialidade: procura

fazer-nos esquecer, por exemplo, que lidamos com dois âmbitos humanos – elemento de

proximidade inegavelmente decisivo. Demais, a constituição de cada um sustenta-se no

efeito de contraste relativamente ao outro, pelo que, para que a um sejam conferidos

traços estereotipados, cumpre que o outro os apresente também66. Por outras palavras,

se a Aldeia projecta um ideal de moralidade, de vida social e espiritual, a Corte,

enquanto seu oposto, constrói-se como protótipo, não menos desmedido e irrealista, do

mal, da desordem e da corrupção – a Babilónia poética, na qual se transfiguram

Avignon, a Índia colonial ou Madrid, conforme saem da pluma de Petrarca, Camões ou

Quevedo. Não nos deteremos, pois, no binómio Aldeia/Corte com o propósito de

inventariar as suas dissensões, já por demais conhecidas, mas antes numa tentativa de

aprofundar a inopinada permeabilidade entre estes dois mundos limítrofes.

Na literatura espanhola, o confronto entre o pacifismo de uma vida campestre

utópica e o tumulto cortesão concretiza-se desde muito cedo, e vai sofrendo mutações

em consonância com os tempos e os géneros que atravessa67. Múltiplos textos

patenteiam o virtuosismo deste topos literário e filosófico. E. Dudley (1967) estuda a

fusão entre o campo e a corte numa obra tão remota como o Siervo libre de amor, de

Rodríguez del Padrón. No teatro de Juan del Encina, as personagens rústicas revelam,

66 Alpers, explorando as potencialidades sugestivas da bucólica I de Virgílio, detecta a presença de «two versions of pastoral» (1982: p.455): uma realista (de Títiro, que vem da corte) e uma utópica (de Melibeu, constrangido a abandonar o campo). Desde os primeiros modelos do género, é a relação contrastiva entre o campo e o seu exterior (bem como a situação do sujeito face a ambos) que permite definir cada um dos âmbitos – relação que depressa se torna «inevitable by the very nature of the pastoral fiction» (Cull, 1987). 67 Blüher (1983), analisando a recepção de Séneca pelos autores espanhóis, salienta que o «heroísmo» estóico senequiano da vida retirada se vai mesclando com outras ideologias: a moralidade social, a abnegação cristã dos bens mundanos e, poderíamos aditar, o ideal neo-platónico, no caso das novelas pastoris.

Page 56: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

53

com frequência, uma atitude receosa e hostil (nem sempre imotivada) face ao cortesão

ou ao citadino que passa, casualmente, pelo campo. A celebradíssima ode «Vida

retirada» de Fray Luis de León, já consumadamente renascentista, coloca o problema

noutros termos: num plano individual e não colectivo, espiritual e não social,

especulativo e não cómico, onde a herança clássica do Beatus ille… horaciano se

conjuga com o ideal cristão, aliança que, porventura, contribui para a larga aceitação do

ideal pastoril nos Siglos de Oro. Da autoria de Bartolomé Leonardo de Argensola

contam-se numerosas epístolas de sátira social, delatando o desconcerto da vida cortesã,

onde, pontualmente, se evoca o ditoso «siglo rudo». Se, para terminar esta acelerado

relance, recordarmos alguns sonetos de Quevedo que glosam a mesma temática (por

exemplo, o que começa «Dichoso tú, que alegre en tu cabaña»), verificamos que, neles,

o pessimismo barroco parece alastrar até envolver a própria Natureza: os ânimos estão

cansados do excesso de confiança que os seus avoengos nutriram pelo Mundo e pelo

Homem, e o retiro para o campo, decaído do seu pedestal idealista, é assumido mais

como um mal menor, um anelo de solidão resignada, do que como um ensejo de união

com Deus ou com a Natureza, sua «mayordoma»68.

Uma obra que atesta a peculiar afinidade dos espíritos castelhanos com a utopia

campestre é o tratado de Antonio de Guevara Menosprecio de Corte y Alabanza de

Aldea (1539). Note-se que a justaposição que configura este título, bem como todo o

tratado, nos remete precisamente para o que fica dito acerca da interdependência destes

dois meios. O tratado de Guevara constitui uma peça basilar na fixação da dicotomia

Aldeia/Corte nas letras e no pensamento castelhanos, constituindo uma das primeiras

obras que, na literatura dos Siglos de Oro, exploram a matéria de forma autónoma e

ambiciosamente exaustiva, não como mera convenção retórica assimilável por um sem

número de contextos. Guevara não delineia uma Arcádia. Muito distante do pastor

literário, o campesino guevariano é, simplesmente, um homem tranquilo. No

Menosprecio de Corte não há rasto de amores neo-platónicos nem de nenhuma espécie;

antes, a obra é fruto de um – se podemos dizê-lo – idealismo prático, material,

confortável, ainda que com os seus laivos de moralidade69.

Quase inesgotável é a panóplia de variantes em que se ramifica o ideal

formulado por Horácio, bem como a diversidade de outras aspirações que chegou a

68 Sobre esta concepção cervantina, veja-se A. Castro (1987: pp.156-177). 69 Atitude que já insinua certas personagens lopescas, entre as quais o conhecidíssimo Juan Labrador, de El villano en su rincón (1617).

Page 57: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

54

albergar. As excelências da vida em sociedade, o apuramento espiritual através do amor

neo-platónico e a perfeição moral são algumas dessas aspirações, que prosperaram, em

proporções muito variáveis, num género tipicamente ibérico: a novela pastoril.

A dicotomia Aldeia/Corte representa, entre os topoi identificadores deste género,

aquele que, no fundo, o justifica, dado que, postulando a primazia do universo

campesino face à dissolução cortesã, o impõe como motivo de reflexão filosófica, moral

ou meramente estética. Na Diana e na Diana enamorada, cujos autores estiveram

vinculados à sociedade cortesã valenciana, se se encontra uma «alabanza de aldea», não

são já tão nítidos os indícios de um «menosprecio de corte». Pelo contrário, faz-se sentir

uma certa superioridade das personagens cortesãs, visível no respeito que inspiram e no

tratamento especial que recebem de Felicia. A discrição e cortesia de alguns pastores

suscitam um verosímil assombro nos espíritos dos forasteiros cortesãos70, comprovando

a natural desigualdade entre os dois grupos humanos. Qualquer um deles, todavia, é

objecto de uma incontestável idealização, sobretudo o grupo pastoril, interlocutor

privilegiado dos amantes cortesãos71.

Já no livro quarto da Galatea, a abrir um diálogo entre Timbrio e Darinto, lê-se

um convencional queixume contra as vicissitudes da vida na corte, seguido de uma

apologia do trato «pastoril y humilde», reduzida às imagens clássicas estereotipadas

(Cervantes, 1961: vol.2, pp.33-34). Esta loa importa sobretudo pela refutação que

desencadeia da parte de Elicio, segundo o qual, «hay en la rústica vida […] tantos

resbaladeros y trabajos, como se encierran en la cortesana» (p.34). Na verdade, muitos

episódios da novela, a começar pela abertura numas triunfais “bodas de sangue”,

encarregam-se de o ilustrar. Esta relativização surpreendentemente realista aproxima os

dois mundos que compõem o binómio de que nos ocupamos.

Porém, entre o ciclo das Dianas e a Galatea, veio a lume uma peça fundamental

na evolução deste género polifacetado: El Pastor de Fílida, que enquadra algumas das

70 Confessa Marcelio: «Nunca pensé que la pastoril llaneza fuese bastante a formar tan avisadas razones como las tuyas en cuestión tan dificultosa como es esta. Y de aquí vengo a condenar por yerro muy reprobado decir, como muchos afirman, que en solas las ciudades y cortes está la viveza de los ingenios, pues la hallé también entre las espesuras de los bosques, y en las rústicas e inartificiosas cabañas» (Gil Polo, 1988: p.153). 71 Esta aproximação é anunciada já em certas obras de Feliciano de Silva, onde o pastor não surge isolado no seu meio. Assinala C. Baranda, a propósito da personagem pastoril da Segunda Celestina, que «Filínides sólo encuentra interlocutores apropiados en la ciudad» (1987: p.370). Em Montalvo, esta relação de dependência ocorre no sentido inverso, como atesta o caso de Alfeo. O mundo arcádico auto-suficiente não carece já de elementos forâneos que o reflictam ou questionem: é ele que, abarcando todas as modalidades sociais possíveis (campo, cidade, corte), questiona a identidade dos que trespassam as suas fronteiras.

Page 58: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

55

propostas mais interessantes no que concerne ao confronto, permeabilidades e possíveis

conciliações entre a Aldeia e a Corte – ambas perspectivadas, assinale-se desde já,

enquanto modelos literários abstractos, passíveis, portanto, de exame, questionamento e

experimentação.

Instabilidade de Charneiras

Nos capítulos precedentes, discutimos os princípios objectivos em que se funda

a sociedade pastoril do Pastor de Fílida, pondo a descoberto algumas fortes similitudes

que esta sociedade híbrida mantém com o mundo cortesão contemporâneo do próprio

autor. Naturalmente, um projecto ideológico que envolve duas mundividências muito

vincadas, cujas charneiras revelam a cada passo a sua instabilidade e indefinição, não

pode ser pouco problemático.

A fim de investigarmos até que ponto estas flutuantes relações afectam os dois

mundos convocados, concentrar-nos-emos na permeabilidade entre eles a três níveis:

material, humano e de costumes.

Em termos materiais, contam-se, no Pastor de Fílida, pelo menos dois

elementos estranhos à convenção pastoril. Um deles, de que o leitor poderia não fazer

grande conta, é, desde logo, denunciado e devidamente justificado pelo narrador, no

primeiro parágrafo da sexta parte – referimo-nos aos instrumentos de escrita de que se

servem os pastores. O argumento utilizado para dissipar este eventual ponto de conflito

é o seguinte:

«el viejo Sileno […] como vido el trabajo con que se escribía en las cortezas, invidioso de las ciudades, hizo molino en el Tajo donde convirtió el lienzo en delgado papel y de las pieles del ganado hizo el raso pergamino, y con las agallas del robre y goma del ciruelo, y la carcoma del pino, hizo la tinta y cortó las plumas de las aves, cosa a que los más pastores fácilmente se inclinaron» (p.419)

A consequência imediata deste ambicioso projecto de Sileno é a apropriação,

pelo âmbito rural, do hábito cortesão e urbano de trocar cartas (contam-se três, uma em

prosa e duas em verso), algo que não tem escassa relevância nas relações entre os

pastores, se recordarmos que Mendino aproveita este recurso para declarar a sua paixão

Page 59: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

56

a Elisa (pp.215-216), seguindo, aliás, também neste ponto, os conselhos de

Castiglione72, e que é através de outra carta furtiva que a jovem transmite ao seu amante

a possibilidade de se encontrarem (pp.225-228), comprometendo, assim, num só lance,

tanto o estrito recato cortesão, como a franqueza honesta pastoril.

Desde o instante em que o mundo urbano é conhecido na aldeia e, sobretudo,

emulado (atitude que mal se coaduna com a modéstia pastoril), eleva-se a um estatuto

superior, dando-se uma imprevista inversão de perspectivas: o campo cessa de ser a

utopia moral dos habitantes da corte e da cidade, e são, antes, os pastores que aspiram

ao conforto material que a civilização pode oferecer, confessando inviamente a

imperfeição rudimentar das suas existências. É ainda digno de nota um certo

desequilíbrio que julgamos existir nesta argumentação, visto que, detendo-se nos

instrumentos de escrita, o narrador negligencia um pormenor bastante mais insólito: o

facto de a população pastoril ser alfabetizada73. Esta aparente incúria não carece de

ironia, sobretudo se analisada no contexto de onde a extraímos: um instante de

suspensão, onde se procura legitimar a ficção pastoril, estabelecendo entre ela e o

realismo campesino uma certa concórdia. Este despiste, intencional ou não, detém o

condão de alertar o leitor para as numerosas contradições deste universo ficcional.

Outro objecto sintomático da permeabilidade da aldeia a elementos externos são

alguns instrumentos musicais, entre os quais P. Berrio Martín-Retortillo salienta a

«bandurria», as «churumbelas» e o «atabal» (1994: p.18). Os instrumentos cortesãos são

assimilados pelo mundo pastoril sem especiais prevenções da parte do narrador, que não

lhes concede um destaque semelhante ao que merece a escrita em papel e tinta,

possivelmente por se encontrarem ao nível do canto poético, convenção também

problemática no que concerne a questões de verosimilhança, mas aceite sem reservas.

Para o campo confluem igualmente, através das personagens, vivências de

índoles muito diversas, conforme, aliás, se insinuava já na trilogia das Dianas. As praias

do Tejo acolhem estrangeiros de, pelo menos, três proveniências: outros meios pastoris

paralelos (Mendino, Siralvo e Padileo); a serra, ainda uma extensão do universo rústico

(Finea e Orindo); e a corte (Alfeo e Andria).

72 «Se lo amante è tanto modesto che abbia vergogna di dirgliene, scrivaglielo» (Castiglione, 1990: p.344). 73 M. Chevalier refere-se ao século XVI como «una época en la cual la aristocracia forma la mayor parte del público de la literatura de entretenimiento» (1976: p.103); por outro lado, e com uma certa ironia no tocante ao género literário de que nos ocupamos, «[l]os que sí cómodamente pueden comprar libros y poner bibliotecas son los caballeros, los cuales suelen residir en las ciudades. Otra vez se viene confirmando el fenómeno definido más arriba: el campo se queda aparte del circuito del libro» (p.22).

Page 60: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

57

Este último fenómeno é, evidentemente, o mais significativo no âmbito da

presente reflexão, para além de ser aquele cujas repercussões no já frágil universo

pastoril são mais profundas. A fácil integração de Alfeo entre os pastores comprova que

não existe uma clivagem significativa entre os dois mundos: não só o cortesão está

familiarizado com as artificiais convenções pastoris, como também os pastores se

revelam capacitados para corresponderem às regras de convívio da corte,

proporcionando-se uma fecunda harmonia. Outro factor de bizarra equivalência entre a

aldeia e a corte é a posição subalterna que Alfeo, o cortesão, passa a ocupar

relativamente a Mendino e aos demais pastores de “elite”, exercendo o ofício de

«mayoral» dos seus rebanhos (p.285). Alfeo depressa se confunde com os pastores, já

que o seu carácter, naturalmente generoso e cortês, ainda que tempestuoso, apresenta

fortes afinidades com o paradigma novelesco do pastor enamorado. Já a Andria não

basta trocar o nome, deambular pelos campos, trajar e cantar como pastora para perder

os arraigados hábitos da corte, sobretudo o de ser prestamente obedecida. A relação

entre o forasteiro cortesão e o âmbito pastoril oscila, portanto, entre a integração e a

incompatibilidade de valores. Em qualquer caso, porém, é de notar que o cortesão

sempre permanece reconhecível enquanto tal, já porque, ao apresentar-se, o assume

como um elemento imprescindível da sua identidade (é o que faz Alfeo), já porque a sua

história vem a ser conhecida e divulgada (tal como sucede com Andria).

De um modo geral, o estrangeiro não fica permanentemente radicado na aldeia,

na qual encontra, como dissemos, um meio fechado, embora hospitaleiro. Os dois casos

excepcionais em que esta norma parece ser infringida referem-se apenas a personagens

oriundas também do campo – Mendino e Siralvo. A história de Alfeo e Andria

comprova que o cortesão, por muito desenganado que se sinta e por muito disposto que

se considere a mudar de hábitos, sempre arrastará consigo o lastro da sua vivência

passada74.

Por último, cumpre determo-nos noutro tipo de contacto entre a aldeia e a corte:

os costumes. Este plano engloba os anteriores – material e humano – e revela uma

particular complexidade, cuja manifestação máxima se encerra no torneio que põe termo

à novela. Neste episódio, os pastores não só se mostram hábeis num entretenimento

tipicamente cortesão, como são, ainda, estimulados a apurar certas prendas do espírito

74 É o que adverte Séneca, na carta XXVIII a Lucílio: «Debes cambiar el alma, no el clima» (Séneca, 2006: p.86). Afortunadamente, durante a sua errância, Alfeo e Andria experimentam situações que proporcionam essa mudança, mas apenas para regressarem, enfim, ao seu meio.

Page 61: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

58

que lhes são, por natureza, alheias. O jogo de inspiração bélica, as galas aparatosas e os

motes de circunstância contrastam radicalmente com o pacifismo, a simplicidade e a

sinceridade poética que a convenção pastoril postula. O amor é uma coordenada fulcral

tanto no âmbito ideológico pastoril, como no cortesão; contudo, aqui as expansões

ternas cedem o lugar a códigos de galantaria pré-definidos, e o pastor, que antes

contemplava em êxtase algum penhor amoroso da senhora da sua alma, entrega-lhe

agora, com uma fria compostura, o prémio alcançado pelos seus talentos. A absorção de

hábitos e atitudes alheios ao contexto pastoril “puro” adquire, porém, uma amplitude

muito mais vasta no decurso da novela.

Aldeia/Corte: de Binómio a Monómio?

Num primeiro relance, o leitor pode optar por depositar confiança nas

intervenções do narrador, que reitera, com uma ligeireza aparente, o estrito e cómodo

antagonismo clássico:

«ya se determina que en las selvas vive amor, y en los poblados su ira y saña [...]. [En las selvas,] cualquier efecto suyo puede fundarse en razón[.] [...] [En los poblados,] el amor se sigue con vanagloria, y es la beldad estimada en menos que el arreo, y la voluntad se hace precio, los celos son invidias y pundonores, la perseverancia tema, y los servicios engaños. [...] No dudo yo que en la mayor Babilonia permita amor algún pecho lleno de fe y lealtad, y entre la soledad de los campos alguna intención dañada, para confusión de aquellos y ventaja de estos otros» (pp.313-314)75.

Estas considerações insistem no estereótipo da virtude campesina, introduzindo

uma variação significativa: o amor é o critério comum a que se recorre para apreciar o

estado moral, a organização interna e os códigos específicos de cada comunidade

humana76. Em alguns casos, as personagens secundam as benévolas (ou

deliberadamente traiçoeiras) palavras do narrador. Previsivelmente, Alfeo, o mais fiel

75 Atente-se no emprego metonímico de «Babilonia», que vai ao encontro de algumas constatações que fizemos poucas linhas atrás. 76 A fuga do amor para o campo recorda vagamente Minturno, L’Amore innamorato (1559), embora as implicações sejam distintas: o texto de Minturno situa-se na mítica Idade de Ouro, durante a qual a deidade desce à terra sem perigos; na descrição metafórica de Montalvo, o Amor parece retrair-se, como arrependido da sua saída do Olimpo, e procura aquele que continua a ser, presumivelmente, o lugar na terra mais semelhante ao que o acolheu nas suas primeiras andanças entre os mortais.

Page 62: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

59

depositário da amargura e do desengano em que desemboca a vida cortesã, é, outrossim,

o mais pródigo em louvores à vida rural. Facilmente se compreende porquê: criado na

corte, formara do campo o conceito utópico transmitido pela literatura desde os

clássicos, pelo que se lastima: «Tú sabrás que este hábito no es mio, pluguiera al cielo

que desde mi nacimiento lo fuera; excusara las mayores desventuras que jamás han

pasado por hombre de mi suerte» (p.292). Se Alfeo se revela um jovem inexperiente no

próprio universo cortesão a que pertence, muito menor será a sua experiência da vida

rural. Por outro lado, a aldeia concede-lhe uma derradeira hipótese de felicidade, na qual

empenha todas as esperanças remanescentes. Porém, apesar do seu optimismo livresco,

Alfeo não se maravilha pouco com os pastores do Tejo: «Su gala es mucha discreción y

cortesía grande, y lo que es habilidad y mesura aventajado a cuanto he visto. Paréceme

que de España lo mejor se recoge en estas selvas» (p.281). Para conhecermos este

universo a partir dele próprio, cumpre observar as condutas dos seus habitantes, os quais

materializam aqueles valores e códigos inscritos pela tradição na utopia da Arcádia, ou

outros, que é necessário desvendar.

Esta sociedade pastoril já começou a surpreender-nos quando, analisando os

comportamentos de algumas personagens à luz dos seus deveres familiares, verificámos

que, na novela de Montalvo, a probidade pastoril deixa de ser espontânea. C. Castillo

Martínez sublinha que, a par das tensões sociais ou particulares que se vão agudizando

de novela para novela, surgem formas de repressão e punição de tais excessos,

igualmente inopinadas: «En el ámbito pastoril “puro” sorprendería la presencia de la

prisión, puesto que el amor y la fortuna son la máxima norma; no hay otros preceptos

para sus habitantes» (2010: p.61)77. Poderíamos avançar que esta é uma forma de

contra-violência que intensifica a agressão ao pacifismo e à liberdade pastoris. No

Pastor de Fílida, tal como na trilogia das Dianas (mas ao contrário do que se pode ler

na novela pastoril que imediatamente o precede, a de Lo Frasso), não existem cárceres.

No entanto, não deixa de ser exercido algum tipo de controlo sobre as atitudes

individuais das personagens, sempre condicionadas pelo olhar alheio. Desta guisa, ainda

que habitem num locus amoenus pintado com todos os primores da convenção bucólica

e ainda que adoptem algumas rotinas pastoris típicas, estes pastores não encaram a

possibilidade de uma existência fora das normas impostas pela mesma sociedade da

qual Alfeo julga poder esquivar-se evadindo-se para as quietas praias do Tejo. O próprio

77 Nas Dianas, a violência é já insinuada, mas nunca presentificada: «it is introduced through the filter of memory […] or […] raised to the level of allegory» (Rhodes, 1989: p.355).

Page 63: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

60

conceito de «norma» é alheio à utopia arcádica e ao desígnio que move poetas,

novelistas e dramaturgos a recriá-la continuamente. Aqui, a comunidade pastoril

projectada por Montalvo patenteia as suas primeiras fraquezas – não enquanto

comunidade, entenda-se, visto que os seus códigos são coesos e se mostram eficazes na

manutenção de um equilíbrio que se quereria natural, mas, justamente, enquanto

comunidade pastoril.

Do mesmo modo que, sem existir nenhuma instituição incumbida de julgar os

actos das personagens, a sua liberdade é, contudo, restrita, o facto de nesta novela

nenhum pastor ser visto transportando, furtivamente, «alfanjes, cuchillos y sogas»

(Castillo Martínez, 2010: p.61) não implica que o espaço humano pastoril deixe de ser

distorcido pontualmente por uma certa malícia e um certo egoísmo hostil da parte de

algumas personagens em relação a outras. Adensa-se, assim, uma atmosfera de

interesses individuais em conflito, análoga àquela que distingue as caracterizações

estereotipadas da corte.

No começo da quarta parte, o narrador declara, perante a evidência incontestável

de que nem todos os pastores são ditosos nos seus amores, que, no campo, ao contrário

do que sucede na corte, «al menos nadie finge» (p.313). Não é isto, porém, que as

condutas das personagens vêm a comprovar no decurso da obra. Alguns episódios,

dotados de sentidos e repercussões muito diferentes, poderiam denunciar a falácia de

tais promessas.

O primeiro ocorre na primeira parte e tem lugar no círculo que designámos por

“elite pastoril”. Galafrón e Filis78, concertados entre si para destruírem os amores de

Mendino e Elisa, aconselham-nos, com falsa e interesseira benevolência, a elegerem

outros amores (pp.222-223). Feliz ou infelizmente, os dois amantes estão prevenidos, e

retaliam com igual dissimulação, ajustando uma habilidosa táctica de distracção: dar a

entender aos rivais que o seu amor é retribuído (pp.223-224). Independentemente da

intenção que os move – assegurar, ainda que através da mentira, a paz e o

contentamento provisórios de todos –, este comportamento condena Filis e Galafrón a

um desgosto iminente, preço da tranquilidade dos protagonistas. 78 Para B. Mujica, «[u]nlike the Spaniards who follow him, Sannazaro does not introduce violence through evil characters. Violence and evil exist not in the person of the villain, but as omnipresent underlying realities, common to both man and nature» (Mujica, 1976: p.39). Na verdade, não cremos que no Pastor de Fílida se encontrem personagens declaradamente malfazejas, mas antes ingratas situações que tornam agressivas as personagens já intrinsecamente instáveis: o amor não correspondido é o mais eficaz desses acicates. As personagens negativas são-no, geralmente, a título provisório, vindo por vezes a enfrentar o mesmo sofrimento que infligiram aos outros, como sucede com Galafrón, Filis e, mais tarde, Pradelio.

Page 64: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

61

Pouco depois, outra ameaça se vê pairar sobre esta união harmoniosa: a chegada

de Padileo, novo pretendente da filha de Sileno (p.224). Mendino e Elisa decidem

transferir os seus encontros para depois do sol-posto, de forma a evitarem os olhares

alheios. Todavia, para enfrentar a noite «fabricadora de embelecos» (como, mais tarde,

lhe chamaria Lope), Mendino provê-se de algo mais do que um fiável sentinela: «con un

grueso bastón de encina con que acostumbrado estaba Mendino a despartir los toros en

pelea y a derribar los osos en los montes, se salió de su cabaña», sabendo bem que

Padileo rondaria o mesmo lugar e não querendo ser surpreendido (p.229).

Já no desfecho desta primeira parte, assistimos a um episódio que traz certas

reminiscências da novela de Montemayor:

«Cardenio, enamorado de Clori, perdió el respeto a Castalio que más que a sí la quería, y la pidió en casamiento. Y el generoso padre de ella, viendo la igualdad de los dos ricos pastores en edad y suerte, y que ambos le pedían, y ambos eran dignos, y a Castalio heredero, y a Cardenio heredado, dio la palabra a Cardenio, y dejó a Castalio» (pp.243-244).

Aqui, não é um equívoco que leva os dois amigos a enamorarem-se da mesma pastora79:

Cardenio, tendo pleno conhecimento do compromisso amoroso que une Castalio e

Clori, escolhe deliberadamente competir com o amigo, e, o que é mais relevante, não

apenas com as armas do amor, mas recorrendo ao privilégio social.

Não é particularmente insólito este enredo, tendo em conta que se desenvolve

num meio que se impõe, desde a primeira linha da novela, como um intencional traslado

da vida cortesã. O que, por certo, será causa de não pouca admiração para o leitor das

Dianas é o facto de tais intrigas contaminarem toda a teia social pastoril que envolve

esta “elite” e que, conforme constatámos, se esboça, à partida, como um universo

pastoril mais próximo do ideal arcádico da Renascença. Na quarta parte, assistimos ao

confronto entre dois pastores, Filardo e Pradelio, ambos pretendentes da jovem Filena

(pp.314-316). A existência de um confronto directo em lugar da dissimulação cortesã

representa, aparentemente, um ganho em termos de franqueza e honestidade. Todavia,

não é sem algum constrangimento que os pastores dialogam a sós, e, se não alimentam

propósitos desleais, a ideia da violência não deixa, porém, de perpassar pelo discurso do

narrador nem, porventura, pelas consciências das personagens (p.314). Com efeito,

somos sensíveis aos esforços de auto-controlo de Filardo, cujas palavras são minadas

por alguma agressividade. Sempre há um amante favorecido e um desdenhado, e, se o

79 Como sucede, por exemplo, na história bizantina de Silerio e Timbrio, personagens da Galatea.

Page 65: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

62

primeiro mostra pouca piedade, o segundo não revela maior resignação. Assim, Filardo

adianta-se e ordena, peremptoriamente, ao seu competidor que se subtraia à afeição da

pastora. Mais divertido do que indignado, Pradelio responde-lhe, com uma ironia

contundente, «no te penes, Filardo, que es la vida breve, e inhumanidad gastarla en

pesadumbres» (p.315). Os dois separam-se, remetendo a solução dos seus casos para os

caprichos do amor e da fortuna, como é regra nestes lugares. O aspecto mais

interessante deste episódio é que a atitude de qualquer um dos pastores se encontra tão

distante do modelo de dissimulação vigente nas sociedades cortesãs, como da

generosidade arcádica. Afectados já pelo egoísmo que emana da corte, os pastores

procuram zelar pelos seus interesses; todavia, a sua índole ainda intrinsecamente

simples impede-os de adoptar atitudes que não sejam de uma pueril presunção.

Também na quarta parte, é de destacar a écloga representada em honra de Fílida.

Desde logo, não é sem consequências que estas personagens representam uma écloga:

ao mesmo tempo que reivindicam um entretenimento cortesão80, instabilizam a sua

própria natureza de personagens pastoris. Através deste “fingimento”, a dissimulação e

o engano, encarnados por Liria e Fanio, encontram uma via mais para penetrarem no

âmbito pastoril. A pastora convida Fanio a confessar-lhe a causa da sua visível angústia,

que entende serem amores, comprometendo-se a «habla[r] / y a [s]u amor incita[r]» a

pastora por quem andasse penado (p.355) – a cena é sobejamente familiar ao público

castelhano quinhentista, que, mesmo sem ter percorrido a Arcadia sannazariana, a

reconhecerá de Garcilaso. Num diálogo que, por certo, será secundado pelos risos da

assistência, o bisonho Fanio vai revelando elementos caracterizadores do misterioso

objecto dos seus desvelos, até confessar as letras que compõem o seu nome (pp.357-

358)81. Liria revela uma habilidade de resposta inopinada numa ingénua adolescente,

esquivando-se à declaração amorosa do pastor, que procura atalhar recorrendo ao

ridículo, dessacralização do amor inconcebível para uma personagem das Dianas. A sua

literal “actuação” corresponde à que Castiglione aconselha as suas leitoras – damas

italianas, não pastoras do Tejo – a adoptarem numa situação similar (cf. Castiglione,

1990: pp.332-333), ou seja, é tudo menos instintiva, franca (ainda que áspera), ou, numa

palavra, pastoril. O que acaba de desconcertar o leitor é a celeridade com que, vendo

que o jogo adquiriu proporções perigosas, Liria se rende ao seu enamorado desfalecido,

80 Veja-se López Estrada (1974: pp.206-280), Ferrer Valls (1999) e Fosalba Vela (2002). 81 A brincadeira com os anagramas a que esta declaração dá ensejo constitui uma frechada mais na gravidade das convenções literárias.

Page 66: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

63

demonstrando que a esquivança inicial fora mais obra da sua coqueteria do que de

desconfiança, inexperiência ou isenção. Sem se dar por vencida, logo que Fanio volta a

si, Liria recupera a serenidade e parte da anterior frieza, embora se mostre mais

acessível. Nunca se encaixa, portanto, nem nos moldes da pastora inexoravelmente

casta, nem nos da terna enamorada, adoptando antes uma atitude intermédia, mais

realista e mais urbana.

Por outro lado, a ironia final de Fanio contra o importuno Delio sugere a

corrosão da franqueza numa amizade que se converteu em conveniência ou obrigação

social. O amigo deixa, igualmente, de advertir e guiar por pura dedicação, fazendo-o,

antes, para alcançar uma certa autoridade sobre os espíritos alheios – típico defeito do

cortesão impertinente.

Porventura, o efeito da inclusão desta écloga seria um nada menos cáustico caso

suscitasse outra reacção no seu público pastoril. Contudo, é com festa e aplauso que os

pastores, todos eles humildes amantes e amigos generosos, recebem este espectáculo de

dissimulação.

O derradeiro exemplo em que nos deteremos transporta-nos a um ponto decisivo na

narrativa: a chegada de Andria, ou, melhor, Amaranta, à aldeia. É curioso que a jovem

sinta a necessidade de, mudando de fortuna, mudar também de identidade, conforme

constatámos no capítulo anterior. Andria, tal como o seu amado Alfeo, possui uma

noção preconcebida do meio rural e da dicotomia Aldeia/Corte, que presume ser

estanque. Assim, cuida que não poderá imiscuir-se no universo pastoril enquanto

carregar consigo (ao menos de forma visível) o estigma da sua origem cortesã, motivo

pelo qual constrói uma nova personagem, impregnada de convenção bucólica, desde o

nome até à usança de publicar as suas angústias em redondilhas, passando ainda pelo

traje, que constitui um elemento essencial na caracterização das personagens nas

novelas pastoris e ponto de contacto não despiciendo com o teatro coetâneo. Deste

modo, para restaurar a ordem, torna-se necessário contribuir para quebrá-la um pouco

mais.

Uma dupla ironia envolve a entrada em cena de Amaranta, já devidamente munida

de uma identidade pastoril. Em primeira instância, o campo é, afinal, muito mais

permeável do que cuidara, no que concerne tanto aos códigos de sociabilização, como a

um intercâmbio material e humano, conforme verificámos. Por outro lado, não é, neste

caso, a cortesã que transporta consigo a perfídia para o âmbito pastoril idealizado, mas,

Page 67: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

64

antes, são os pastores que urdirão uma insidiosa teia de equívocos que a imobilizará e

impedirá de lograr, durante algum tempo, os seus justos propósitos82.

Amaranta é acolhida pelos pastores, mas não procura confundir-se com eles,

como faz Alfeo, uma vez que não se dirigiu às margens do Tejo com o intuito de por lá

encetar uma nova forma de existência. A jovem visa um objectivo muito preciso –

recuperar o amado –, o que limita o seu interesse em tratar com os outros pastores,

embora absorva com uma notável desenvoltura (fruto, talvez, da acuidade cortesã) os

seus códigos de sociabilização. Depois de Arsiano, Siralvo é o primeiro habitante da

aldeia com quem Amaranta trava conhecimento. Previsivelmente, o amador de Fílida

apieda-se da sua mesquinha ventura, não obstante as óbvias vicissitudes que a chegada

de Amaranta acarreta para o relacionamento amoroso dos seus amigos Alfeo e Finea: há

sempre espaço para a ternura no grande coração do pastor. Todavia, o que se segue trai

as expectativas de quem tem assistido aos percursos da diligente Finea, do sincero Alfeo

e do perfeito Siralvo. Os três chegam a um acordo quanto ao modo menos

inconveniente de confrontarem Amaranta: Alfeo esconde-se, porque Finea assim o

decreta, e Siralvo é incumbido de mentir desonesta e pouco convincentemente a

Amaranta, logo depois de se ter comprometido a auxiliá-la, explicando-lhe que Alfeo se

encontra ausente da aldeia. É digna de reparo a participação desigual dos dois grupos de

personagens neste imbróglio: os cortesãos Alfeo e Amaranta, incapazes de dissimular a

sua perturbação um diante do outro ou diante de terceiros, submetem-se, cada um a seu

jeito, aos enredos traçados pelos hábeis pastores, que ora os conduzem, ora os

embaem83.

O diálogo entabulado entre Finea e Amaranta (pp.382-383) não decorre na

presença de Alfeo, que deliberadamente evita a sua antiga amante, pormenor que 82 O oposto sucede com Corisca, do Pastor Fido, personagem com uma ampla experiência da vida urbana, que transporta para o campo a inveja, a intriga e o descontrolo passional. Talvez não seja inoportuno trasladar a seguinte advertência de Guevara: «Al que se va de la corte combiénele que mucho tiempo antes comience a recoger los pensamientos y aun a alçar la mano de los negocios; porque para llegar a su tierra ha menester muchos días, mas para desarraigar de sí los malos desseos ha menester muchos años. […] Aquel hace de la aldea corte que bive en el aldea como bivía en la corte» (Guevara, 1975: pp. 59, 64-65). Nenhum dos dois jovens cortesãos procede a esta análise interior e, em lugar de abandonarem a corte por virtuosos, fazem-no por desfavorecidos no amor, motivo pelo qual a sua permanência na aldeia é de pouca dura. Por ironia, no mundo pastoril com que se deparam, escassa diferença fazem os vícios pueris de Alfeo e Andria. 83 A respeito das personagens não pastoris na Diana enamorada, constata L. Albuixech: «Although the characters involved in this novella are, for the most part, courtiers, the fact that they are clothed as shepherds and moved into a pastoral setting implies, metaphorically, that falsehood and turbulence can easily penetrate the rural peace» (2008: p.196). Ora, no Pastor de Fílida, já não é necessário que entidades exteriores à aldeia transportem para o seu seio a «falsidade» e a «turbulência», que já nele se encontram insensivelmente arraigadas. As condições sociais e morais do pastor e do cortesão são, portanto, invertidas.

Page 68: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

65

agudiza a atmosfera de hostilidade que a oprime. Para além disto, a jovem cortesã é só

ingénua dentro dos limites da verosimilhança, estando, pois, absolutamente convicta de

que os três se dispuseram a ludibriá-la. Poucas conjunturas tão constrangedoras como

esta se poderiam arquitectar para o enfrentamento das duas rivais84. Desenrola-se um

conflito verbal maximamente sintomático da instabilidade social e moral deste universo

humano. Não pouco significativos são os pontos de contacto entre este diálogo e a

“doutrina” cortesanesca de Castiglione, designadamente no que aos graciosos equívocos

de linguagem e à habilidade dissimulatória diz respeito85. É de salientar a perícia

superior de Finea para este tipo de agudezas, que suplanta largamente a que Amaranta

exibe no decurso do confronto. A hostilidade de Finea face à sua competidora traduz-se

no seu empenho em fazê-la cair no ridículo, não procurando já, sequer, iludi-la, mas

antes embargá-la a tal ponto que, mesmo estando ciente das intenções da pastora, não

seja capaz de lhe redarguir nem de lhe extrair as informações que ela se recusa a

avançar, esquivando-se com respostas evasivas: «Hombre es Alfeo que sabrá dar cuenta

de sí, y tú mujer que acertará a tomársela» (p.383). Amaranta, que entrara em cena com

uma altiva tristeza, parece converter-se numa sofredora mais humilde a partir deste

episódio, limitando as exigências e tresdobrando as queixas, como quem enfim descobre

que as prerrogativas cortesãs não são válidas neste contexto, ou porque lhe são alheias

(como se esperaria que sucedesse), ou (o que aqui se verifica) porque também os

pastores dominam os códigos da corte, alcançando assim uma certa igualdade

relativamente ao visitante cortesão, pois que, dominar as suas regras tácitas e os

mecanismos da corte corresponde já, de alguma forma, a reivindicar o direito de lhe

pertencer. É, de resto, na dificuldade de pôr em prática os seus apertados preceitos que

reside a mais eficiente prova do genuíno homem de corte.

De forma ínvia e, por isso mesmo, mais estimulante, Montalvo procede a uma

desestabilização de charneiras entre os membros do binómio Aldeia/Corte sem recorrer

exclusivamente ao fácil e imediato artifício do disfarce, do qual tirou proveito Gabriel

de Corral, na sua Cintia de Aranjuez (1629), e outros novelistas pastoris epigonais. Três

conjuntos de personagens são identificáveis na obra: os pastores aristocratas, tal como

os designámos antes, que gravitam em torno de Sireno; os restantes pastores,

aparentemente mais convencionais; e, por fim, Alfeo e Amaranta, cortesãos efectivos. 84 Na Diana de Montemayor, Selvagia e Ismenia chegam a confrontar-se, num momento em que Alanio responde ainda aos afectos da primeira; porém, a impetuosidade deste confronto é aplacada pelo facto de ser veiculado por duas missivas (pp.146-147). 85 Veja-se Martínez San Juan (2003: pp.165-171).

Page 69: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

66

Por distintas vias, todas estas personagens, que povoam ou atravessam o cenário

campesino, se aproximam do modelo de cortesão renascentista, mas somente as últimas,

sendo assumidas explicitamente como tal e tantas vezes debeladas no seu território,

passam pelo processo do disfarce. Podemos encarar este pormenor como uma das mais

caprichosas ironias com que o texto nos brinda, ou como uma chave de leitura: todos os

intervenientes na novela se encontram, de forma metafórica ou literal, embuçados sob

os seus «sayos pardos», «polainas toscas» e «zapatos gruesos»86.

Tendo em conta o que acabámos de observar, torna-se menos imprevisível o

bizarro retiro de três personagens – Siralvo, Mendino e Cardenio – do âmbito social

onde, até ao momento, se haviam movimentado:

«Mendino[,] Cardenio, y el pastor Siralvo quedaron […] tan desaficionados de los campos, tan enemigos de sus chozas y tan sin gusto de sus rebaños que, a pocos días, ordenaron desampararlo todo y buscar sólo su contento» (p.420).

Significativamente, todas estas personagens pertencem à “elite” pastoril. O

desengano da corte e subsequente procura de um refúgio na simplicidade rural

incorporaram-se no imaginário e, muitas vezes, nas rotinas dos aristocratas de

quinhentos e, mais ainda, de seiscentos, robustecidos pela autoridade de numerosas

figuras exemplares greco-latinas87. Com alguma frequência, este fenómeno social

revestia-se de um sentido mais prático e imediato, deixando de consistir numa atitude de

conversão moral, para passar a representar uma resposta a circunstâncias socio-políticas

muito concretas que exigissem o afastamento provisório da corte e dos seus negócios.

Em tais situações, a interdependência entre a vida de corte e a do campo era posta a

descoberto, já que a segunda se impunha, sobretudo, como interregno estratégico da

primeira. No caso novelesco a que nos reportamos, contudo, não se vai tão longe que se

chegue a atribuir uma motivação política à retirada dos pastores; se abandonam o lugar

onde vivem, é porque, ao contrário do ingénuo Alfeo, estão cientes dos muitos defeitos

do seu mundo social.

Este episódio torna a ameaçar o débil equilíbrio que, ao longo da obra, vai

postergando o iminente colapso entre os dois universos constituintes da fundamental

dicotomia. Por um lado, trata-se de mais um costume cortesão assimilado por estes

86 Para Rennert, tal sobreposição de identidades redunda «in the utmost extravagances and inconsistencies» (1892: p.5), muito embora corresponda a uma estratégia empregue já por Virgílio nas suas Bucólicas, tal como o mesmo crítico reconhece (cf. p.5). 87 Veja-se, a tal respeito, o capítulo XVII do Menosprecio de Corte.

Page 70: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

67

falsos pastores. Na verdade, é mais do que um costume cortesão: é um costume que

apenas se justifica no contexto da experiência social, humana e mental da corte. Por

outro lado, o próprio cenário pastoril – que parecia tão pacificamente vertido da paleta

sannazariana – se vê pela primeira vez implicado nos paradoxos que perturbam as

personagens que o povoam. Os três pastores aspiram a uma existência mais sossegada e

interrogam-se quanto ao local mais adequado para a concretizarem. Porém, se a sua

actual morada corresponde já à suprema idealização renascentista, que refúgio lhes

resta? Uma solução é o campo profundo, longe da aldeia, a qual corresponde ainda a um

estádio intermédio entre a civilização e o mundo selvagem88. É neste lugar de

complicado acesso que se situa a cova encantada do mago Erión – um espaço tão livre

da contaminação humana e tão natural, que chega a exceder a própria Natureza,

servindo de enquadramento ao exercício da magia e das artes divinatórias.

A instabilidade a que vínhamos assistindo agudiza-se, dado que se torna a

salientar o facto de o campo ser ainda um universo humano e, como tal, contaminado

por paixões. Desta forma, o leitor é forçado a constatar que a miticamente perdida Idade

de Ouro, associada vulgarmente à utopia da Arcádia, a qual, por sua vez, facilmente se

deixa impregnar pela visão artificial do campo postulada pelo pensamento renascentista,

se encontra já em paulatina decadência no próprio meio pastoril, onde deveria encontrar

um derradeiro e inexpugnável reduto. O ciclo de vida da novela pastoril espanhola

acompanha este desditoso processo, e o momento captado por Montalvo apresenta-nos

um mundo pastoril ainda em conflito consigo mesmo, minado já pela violência que

indefectivelmente acabaria por irromper em qualquer âmbito humano regido pelo niño

ciego, mas ainda de forma discreta, pelo que é possível ler El Pastor de Fílida sob

outras perspectivas, ignorando estas tensões.

Conquanto tenhamos vindo a pintar este universo ficcional com cores tão pouco

favoráveis, acreditamos que tanto o campo como a corte são, aqui, espaços humanos e

sociais idealizados positivamente – Montalvo parece pretender, à partida, não menos do

que congraçar duas utopias renascentistas, não forçosamente contrárias, mas pouco ou

nada aproximáveis, ao menos aparentemente. Sucede, não obstante, que uma e outra

podem degenerar, caso a conduta dos seus habitantes comprometa a frágil harmonia em 88 No entender de R. Poggioli, o pastor «never confronts the true wild» (1975: p.7). Nas novelas pastoris espanholas, tira-se bastante proveito da combinação de espaços físicos e sociais, sendo, não raro, convocada a Natureza selvagem enquanto modelo contrastivo ou enquanto plano simbólico, que pode albergar forças sobrenaturais. É o que encontramos no quarto livro da Diana de Montemayor, que situa o palácio prodigioso de Felicia num recôndito lugar, desconhecido até pelos pastores, aonde só se acede através da orientação das ninfas. Veja-se Armas (1985) e Cull (2003).

Page 71: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

68

que se sustenta, «más fácil de ser envidiada que imitada» (pp.463-464). O desenlace da

novela autoriza-nos a pensar que esta degeneração é ainda reversível, tanto no que

concerne à corte, figurada por Alfeo, como no que se refere à própria Arcádia em

iminente colapso, encarnada pelas restantes personagens, que, graças a Siralvo,

regressam à senda da razão.

Nas novelas pastoris posteriores (a começar pela Galatea), o leitor assiste à

contaminação progressiva e inelutável do ideal pastoril pela insídia, o egoísmo e a

violência física89. Uma explicação porventura legítima para este fenómeno será a

vinculação, cada vez mais evidente, deste género literário à realidade histórica e social

de Espanha, algo que se afigurará paradoxal, a avaliar pela sua habitual inclusão entre a

prosa idealista dos Siglos de Oro (cf. Hurtado Torres, 1983: p.11). No Pastor de Fílida,

tal vinculação surge já de forma inequívoca. Assim, podemos arriscar uma conclusão

inopinada: a evolução do género é acompanhada pelas convulsões que ocorrem no

interior do próprio mundo ficcional, muitas vezes reflexo da realidade espanhola dos

Siglos de Oro. A idealização, característica deste género literário, vai-se encaminhando

num sentido distinto: em lugar de se fazer presente a utopia intemporal da Idade de

Ouro, chora-se a ruína de um ideal duplamente perdido – na fé do autor e dos leitores e

na das próprias personagens – e, por isso mesmo, talvez duplamente ideal. Neste

sentido, não existe qualquer paradoxo em atribuir a designação de prosa idealista à

novela pastoril – um género literário cuja existência não ultrapassou os anos de uma

vida humana. É essa a longevidade do sonho, pensaria, mais tarde, Calderón de la

Barca.

89 Segundo Krüls-Hepermann, as novelas pastoris posteriores à de Montemayor, «without exception, […] can be associated with a model of decadence» (1988: p.583). Seria prudente matizar esta asserção: só pelo seu propósito moralizador, a Diana enamorada revela bastante mais optimismo do que, por exemplo, a Constante Amarilis, e talvez não lhe seja aplicável o termo «decadência». Mesmo as novelas que deveras se coadunam com tal afirmação concretizam a «decadência» de formas muito variadas no seio dos seus universos ficcionais. Inexplicavelmente, Krüls-Hepermann exclui, em nota, a Arcadia lopesca, atendendo talvez mais a uma reverência preconcebida pelo Fénix do que ao próprio texto, que, tanto pela índole passional dos protagonistas, como pela atmosfera de intriga, cólera e vingança, apresenta um universo pastoril francamente mais decadente do que, por exemplo, o nosso Pastor de Fílida.

Page 72: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

69

CAPÍTULO V

NA «FUENTE DE LOS ALISOS»

As Relações Humanas

Acercamo-nos do final do nosso passeio pelas toledanas praias. De certo modo,

seria igualmente acertado dizer-se que só agora damos nelas os primeiros passos, já que

anteriormente nos dedicámos sobretudo a aparelhar os espíritos para a viagem. “Na

Arcádia, sê árcade” – prova ser o mais valioso conselho que têm para nos oferecer os

nossos companheiros pastoris, e que Alfeo e Andria assimilaram tão à custa do seu

sossego. A maior ou menor proximidade da conclusão do nosso trabalho é uma questão

de óptica, que depende, em última instância, da simpatia que tenhamos logrado inspirar

no nosso leitor pelos pastores do Tejo, com os quais, para terminar, propomos algumas

horas de convívio mais estreito, agora que a calma nos convida…

Particularmente rarefeita no que concerne à intriga, a pastoral clássica – tal como

foi coada em todo o seu esplendor por Sannazaro – subsiste através dos encontros

fortuitos entre os pastores que deambulam pelas campinas. Estes encontros, por seu

turno, impedem a criação de genuínos enredos, dado que propendem, desde as primeiras

palavras, para o silêncio e para o retorno a uma solidão essencial, ilusoriamente

suspendida e colmatada durante o breve lapso de um diálogo, por sinal nunca

especialmente produtivo.

A novela pastoril ibérica tira ainda partido dos casuais encontros, na medida em

que neles se vislumbra um pretexto para dar voz à individualidade das personagens. A

trilogia das Dianas e a Galatea cervantina atestam satisfatoriamente esta nossa

apreciação: nelas, um reduzido grupo de pastores deambula à ventura pelas campinas,

Page 73: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

70

deparando-se quase a cada passo com outras personagens, cujo estado de alma se desvia

pouco do das primeiras, conquanto sejam possuidoras de “biografias” em geral mais

complexas e novelescamente mais rentáveis. Tal como a novela cavaleiresca, também

estas primeiras vergônteas da novela pastoril se cevam da errância das suas

personagens, que sempre procuram émulos em relação aos quais possam distinguir-se

em duelos de solfas, conceitos e amores90.

O propósito destes enredos não passa por promover o convívio social entre as

personagens nem por consolidar genuínas relações humanas entre elas, até porque, em

boa verdade, «[t]he bond of friendship created among the shepherds by their common

suffering is superficial» (Mujica, 1986: p.128). Embora dominem com inteira

desenvoltura os códigos de cortesia essenciais para acolherem visitantes oriundos de

todos os estratos sociais, os espíritos e as existências destes pastores são intrinsecamente

fechados. Também a relação de salutar camaradagem entre os membros do “grupo

elementar” se mantém inalterada, em parte porque estes pretensos protagonistas cedem

regularmente o lugar às figuras novas que vão desfilando. Desta guisa, renuncia-se a

explorar os dois mecanismos possíveis de aproximação humana: a curiosidade pelo

desconhecido e a «conversação doméstica».

Novamente, El Pastor de Fílida revela maior complexidade do que qualquer um

destes exemplos – a tradição clássica e as novelas pastoris anteriores. Procedemos já ao

levantamento dos episódios extraídos da Arcadia italiana e comentámos a sua

funcionalidade em termos de dinâmica social. Podemos, agora, acrescentar-lhe outro

desígnio: o de fornecer um fundamento mais consistente do que o acaso às relações

humanas. De facto, no Pastor de Fílida as deslocações são, por norma, previsíveis e

calculadas, por efeito do rigoroso “calendário social” a que aludimos anteriormente,

pelo que os pastores parecem adquirir uma certa consciência das implicações do “acto

social”, algo de que os seus avoengos literários, caracterizados por um hipertrofiado

individualismo, careciam quase em absoluto. Os momentos de reunião na aldeia são

conhecidos de antemão pelos seus habitantes, que meticulosamente os concretizam,

desde a eleição da indumentária até à ordem de entrada nos templos, passando pela

galharda sprezzatura e pelas cortesias mútuas. Embora esta convivência calculada possa

afigurar-se às nossas contemporâneas mentes de uma artificialidade pouco consentânea

com a consolidação de relações humanas autênticas, cumpre ter presente a vivência

90 O masoquismo narcísico de que resulta tal desejo de emulação, já bem frisado por Mia Gerhardt (1950: pp.182-183), representa mais um factor de enclausuramento sentimental.

Page 74: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

71

social e pessoal a que esta novela en clave se reporta: um contexto no qual o facto de

determinadas convenções vigorarem com tamanha vitalidade e amplitude comprova que

não se desvirtuou ainda o seu profundo sentido.

Estas ligações mais localizadas põem à prova a funcionalidade da estrutura a que

dedicámos uma generosa parcela deste trabalho, para além de formularem,

implicitamente, certas máximas de conduta, que inserem esta obra na linha das novelas

que se oferecem como manuais de desenvoltura e de requinte cortesanescos91.

O tipo de relacionamento humano a que nos referimos compreende duas

modalidades: o amor e a amizade. Acerca da presença destas temáticas na novela

pastoril dos Siglos de Oro copiosíssimas páginas têm sido escritas, algumas de uma

lapidar erudição, que seria temerário e inoportuno emular nesta breve proposta de

análise. Ressaltemos, contudo, ainda outra vez que a estreita aliança entre o bucolismo e

o amor nas obras pastoris da Renascença levou inclusivamente alguns teorizadores a

implicar por sistema o segundo termo na definição do primeiro92. A amizade pastoril,

não tendo embora merecido estudos tão abundantes, constitui um motivo que se

evidencia desde os Idílios de Teócrito93. A relevância de um e de outro na concepção

clássica da utopia pastoril é sublinhada por López Estrada, quando afirma que, na

Arcadia sannazariana, chegam a substituir os valores morais e sociais (1974: p.143),

excesso que a novela pastoril espanhola atenuará, por vários respeitos.

Procuraremos encarar a amizade e o amor no Pastor de Fílida, não na sua feição

psicológica ou filosófica, mas antes enquanto inflorescências que despontam num meio

social muito particular, do qual retiram o seu substrato, podendo também afectar a sua

configuração a vários títulos, já que o interesse de Montalvo, muito distante de

Montemayor neste aspecto, não é «to study human beings functioning purely as lovers,

i. e., unhampered and undistracted by social, economic, and other considerations»

(Solé-Leris, 1980: p.35), mas antes arriscar uma articulação de todos estes factores.

91 «[The pastoral novel is] a manual of ideal conduct in love, and reflects the Zeitgeist of the Renaissance: the best sentiments of the society of its time. It was the elegant novel par excellence, the manual of learned conversation between ladies and gentlemen of the sixteenth century» (Damiani, 1983: p.42). 92 Fernando de Herrera, nas Anotaciones à poesia de Garcilaso, define «égloga» como «el más antiguo género de poesía. Y aunque la materia de ell[a] es varia, parece que es más antigua la amatoria» (apud López Estrada, 1974: p.458). 93 Constata Rosenmeyer que a experiência epicurista postulada pela pastoral teocritiana é muito atreita às doçuras da amizade (cf. 1969: p.70), num pequeno círculo que não assuma as vestes de uma «political community», mas mantenha o descomprometido estatuto de «association of friends» (p.105). Entre um e outro extremo, o espectro de variantes é quase inabarcável. Parece-nos que o universo ideológico e ficcional do Pastor de Fílida oscila caprichosamente entre as duas hipóteses, conforme o momento narrativo considerado.

Page 75: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

72

Sendo desta vertente mais objectiva que nos ocuparemos, considerámos adequado

abordar em conjunto o amor e a amizade pastoris, reconhecendo as múltiplas

semelhanças que estas duas formas de relacionamento humano mantêm no universo

ficcional em questão. Dotado, porém, de uma complexidade visivelmente superior, ao

amor concederemos, depois deste raciocínio comparativo, uma especial atenção e com

ele daremos por concluída esta nossa incursão pela aldeia do Tejo.

Amor e Amizade

A novela pastoril brinda o leitor com três linhas de teorização amatória: uma

mais directa, constituída pelos diálogos em torno de «questões de amor»; uma outra,

que consideramos intermédia e que corresponde aos cantos amorosos, onde se inscreve,

de forma sintética e embelezada, a casuística neo-platónica exposta; finalmente, uma

terceira linha, que oferece uma “teorização prática” do amor, na medida em que

converte as personagens em “casos” ilustrativos de noções bem conhecidas. Menos

explícita, porém não menos significativa, esta última é sem dúvidas a modalidade mais

explorada por Gálvez de Montalvo, visto que, como fica dito, a maioria das personagens

do Pastor de Fílida (independentemente do seu putativo equivalente real), encarna

qualidades, atitudes ou estados de alma particulares94.

O amor a tal ponto faz sentir a sua presença no Pastor de Fílida, que chega a

configurar a vida social destas personagens, de modo que a evolução interior de cada

uma contribui para a remodelação constante do grupo. Registámos antes o caso de

Filardo e de Pradelio, amadores ambos da pastora Filena e ambos ledos ou zelosos a seu

tempo, que ora são cortesmente acolhidos, ora rejeitados pela amada, vendo-se

reduzidos a procurar a companhia de outros pastores, que, por sua vez, reúnem esforços

para sanar, porventura mais do que o amante magoado, a paz comum num momento que

deveria ser de geral regozijo (p.327). Os critérios sentimentais compõem, portanto,

94 Apenas esporádicos são os debates sobre o amor no Pastor de Fílida, o que deu azo a que alguns autores declarassem de forma peremptória, e talvez um tanto precipitada, que nesta novela não se discernem vestígios do neo-platonismo característico do género Tal é a opinião de Avalle-Arce (1975: p.153), seguido por Solé-Leris (1980: p.119), entre outros.

Page 76: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

73

grupos sociais provisórios (tanto quanto o são os voláteis movimentos da alma humana),

cuja validade se altera de cada vez que uma personagem muda emocionalmente.

É também, como vimos, em função do amor que o contraste entre a corte e o

campo se articula, recuperando-se a ideia do Amor como senhor universal95, por cujo

mando e medida se igualam as almas, não já as dos mortais com as dos imortais, mas

sim as dos rústicos com as dos mais finos cortesãos. Não obstante, é também o seu

influxo que revela a essência de cada espírito e, muito mais curioso, a de cada condição

ou estrutura social: assim, numa sociedade sã, o amor estimula a excelência; numa

sociedade corrupta, conduz os amantes à destruição, seja por erros seus, por má fortuna

ou pela conjuração de malícias alheias96.

A relevância dos laços de amizade na manutenção da ordem social é igualmente

indiscutível, porquanto, se o amor engendra as tensões que conferem à comunidade

pastoril um dinamismo indispensável, parece ser a amizade que impede o conflito de

eclodir, como consequência natural de alguns excessos amorosos. De resto, partilhando

com o amor alguns códigos comportamentais, a amizade pastoril revela-se não menos

exigente do que as relações amorosas.

Nas novelas pastoris espanholas, se, por um lado, se insiste no poder igualador

do amor, por outro, tem plena vigência o conceito clássico de que a amizade nasce

preferencialmente entre seres que são, à partida, semelhantes97. Com base em tal

pressuposto, seria esperável que nunca personagens oriundas de meios distintos se

mesclassem; porém, não é o que se verifica na prática: não apenas uma franca amizade,

mas ainda o amor, é possível entre pastores, cortesãos e citadinos. Este aspecto alerta-

nos para a existência de outros factores de igualdade que não se fundam no arbitrário

critério do nascimento, tais como a virtude, os talentos, a experiência de vida ou apenas

uma recíproca inclinação, que nem sempre olha a hierarquias sociais. São estes outros

factores que permitem, por exemplo, a união de Alfeo e Finea, pois que, «si él se

desterró enamorado y desfavorecido, ella hizo otro tanto; un mismo dolor los afligía, y

una misma razón los debiera consolar» (p.327).

95 «[A] universalidade do amor é bem manifesta. Na verdade, quase não há homem que viva sem ele, nem varão, nem mulher, nem velho nem moço» (Leão Hebreu, 1968: pp.123, 142). 96 O facto de esta perspectiva amorosa, pela sua subjectividade, estar condenada a produzir conclusões frágeis é irrelevante, uma vez que não nos situamos, já o sabemos, no âmbito de um realismo estrito. Este é um idílio neo-platónico, pelo que não é impertinente que o amor ofereça a escala de todos os juízos. 97 É o que exprime o provérbio recolhido por Aristóteles na Ética a Nicómaco: «a gralha junta-se à gralha» (Aristóteles, 2012: p.198). No livro VIII da Ética desenvolve-se este postulado, embora lucidamente se admita que as amizades entre os homens podem corresponder a “modalidades” várias e que o critério da igualdade não é sempre determinante, ou não da mesma forma.

Page 77: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

74

Ainda assim, cumpre ter em vista que estas duas personagens habitam as

margens do Tejo na condição de estrangeiras, pelo que não chegam a constituir uma

“agressão” à sua ordem social. Aliás, elas mesmas vêm a constatar que uma

desigualdade tão profunda como a que as aparta resultaria incomportável a longo prazo:

«Orindo era de su misma suerte, y Alfeo no; de manera que estándola bien casarse con

Orindo, a Alfeo no le convenía casarse con ella» (p.470). Este raciocínio de Finea seria

secundado por alguns tratadistas de quinhentos e seiscentos que se dedicaram às

questões matrimoniais98 e, enfim, pelo senso comum. Não é concebível para Montalvo

uma ficção como a de Pascuala, Mingo, Minga e o escudeiro, personagens de Encina,

que gozam parte dos seus dias no campo e parte na corte.

No Pastor de Fílida, onde se delineia uma hierarquia social de grande validade e

sensatez, a noção de que a igualdade constitui o alicerce indispensável das relações

humanas é abraçada sem reservas, visando-se não menos a condição social do que o

foro psicológico das personagens. Ilustra-o o caso de Siralvo e de Alfeo, unidos pelos

mesteres pastoris e por uma dignidade espiritual afim99.

Afora o lhano e aprazível Mendino, aqueles que designámos como pastores

aristocratas convivem, por opção própria, somente com pastores de estatuto equivalente.

Fílida e Elisa têm também, tal como vimos, um campo de acção e de convívio social

exíguo, aspecto que, por outro lado, condiciona o modo como são encaradas pelos

demais pastores, que, na sua presença, experimentam «um não sei quê» que roça a

devoção e que os impede de sequer desejarem quebrar a barreira invisível que as cinge.

Elisa perece precocemente, o que nos impede de avaliar de forma cabal a sua situação.

Não obstante, o exemplo de Fílida revela uma interessante complexidade: nela, as

qualidades do espírito sobrepujam as materiais e sociais (por notáveis que sejam), pelo

que, podendo preservar o seu estatuto por meio de um auspicioso matrimónio, declina

afoitamente tais propostas, juntando-se ao número das ninfas de Diana, entre as quais

98 Entre os quais nos é bem familiar (conquanto várias décadas posterior) o bilingue D. Francisco Manuel de Melo, que, na sua Carta de guia de casados, adverte: «Ũa das cousas que mais assegurar podem a futura felicidade dos casados é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa contradição; a contradição, discórdia» (Melo, 1996: pp.93-94). 99 A propósito destas personagens escreve Martínez San Juan: «la amistad entre iguales en virtud pero diferentes en estado social, como en este caso, sólo se puede conseguir en un espacio pastoril transformado en parámetro de la naturaleza humana, donde las relaciones intersubjetivas participan de los afectos del amor o de la amistad» (2003: p.109). Todavia, somos levados a concluir que, desde que abdica do seu estatuto cortesanesco num universo extra-pastoril, o estrangeiro torna-se, de facto, semelhante a Siralvo em termos sociais, se não até ligeiramente inferior, atendendo a que se mantém alheio à esfera dos pastores aristocratas (o que, de resto, impede o iminente colapso da ficção).

Page 78: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

75

perde valor qualquer outro critério de igualdade que não seja o da virtude, requisito

fundamental, aliás, para se cultivar a amizade100.

O que fica dito quanto à amizade é igualmente válido a respeito do amor. Alguns

meses dura o «engano d’alma» de Alfeo e Finea, visto que uma poderosa dor comum os

enleia. É, de facto, o amor que aplaina a desigualdade entre ambos, mas, ironicamente, o

amor por terceiros. Não percamos de vista, contudo, que de magoados falamos… Entre

a afinidade das emoções e o abismo social é o último que sai sempre triunfante, afora

nos amores platónicos entre Fílida e Siralvo, que parece ser ligeiramente inferior à

amada em algo mais do que na convenção cortês do «lugar tan alto» a que voam os seus

pensamentos (p.308)101. Todavia, estes amores têm algo de “coisa divina”, e, se a sem

par Fílida parece encontrar-se acima de todas as classes, Siralvo, a um tempo humano e

nobre, com todas se imiscui.

Importa realçar o engenho com que o autor conjuga a igualdade social com uma

certa predisposição para o amor ou para a amizade: cada personagem vem a encontrar

no seu próprio meio aquilo de que necessita para saciar as suas demandas sentimentais.

Não julgamos que se trate simplesmente de um recurso fácil para manter uma ordem

que, sob outros aspectos, se arrisca a vacilar. Antes, Montalvo compreende bem a força

da educação e do costume, que, fazendo não raro as vezes de natureza, tornam

agradáveis aos olhos do pastor os donairosos modos da pastora e, aos do cortesão, o

recato sossegado da sua dama. Daí que, antes das tribulações padecidas na corte, a

Alfeo, nela criado, tenha parecido inconcebível outra forma de vida:

«En tanto que el generoso Alfeo siguió las pomposas cortes, tan satisfecho de su habitación que le parecía tiempo perdido el que en otra parte se gastaba, mayormente el de aquellos que de las ciudades y villas retirados a las humildes aldeas vivían entre aquella soledad, acompañada de murmuración, y aquella compañía desierta de consejo, no es de maravillar que ansi amase el trato cortesano, porque criado en él y aficionado a las artes, hallaba allí del mundo lo mejor» (p.245).

100 Para Aristóteles, é na virtude que a igualdade entre os amigos verdadeiros há-de radicar: «a amizade perfeita existe entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência» (p.201). No entanto, Aristóteles contempla também outras formas de amizade menos exigentes: as que visam o prazer ou a utilidade. Já Cícero, no seu tratado sobre a amizade, declara mais categoricamente que «no puede existir amistad sino entre los buenos» (Cicerón, 2005: p.175), ideia a que os pastores de Montalvo dão consistência. De resto, a noção de que «por su virtud y probidad amamos en cierto modo hasta a quienes nunca hemos visto» (p.183) parece talhada para descrever a amizade de oídas que Siralvo e Alfeo começam por se inspirar mutuamente. 101 Tal é a leitura que faz Mayans y Siscar, baseando-se quer na identidade real de Montalvo, cuja condição de «gentilhombre» crê estar subentendida nos termos «humilde pastor» (1792: p.XVIII), quer na cautelosa conduta que a personagem Siralvo adopta ao aproximar-se da sua adorada e muito resguardada Fílida (pp.XXI-XXII). Mesmo neste caso, a desigualdade social é um escolho ao amor.

Page 79: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

76

O reenlace final com a sua intransigente e caprichosa dama fortalece esta ideia após a

experiência contrária.

Para além de constituírem vagens de uma raiz comum, o amor e a amizade

possuem fortes afinidades a outros níveis, fomentando-se mutuamente. Referimo-nos

aos casos em que a amizade entre um pastor e uma pastora, fundada numa relação de

franqueza e de recíproca partilha de vivências análogas, os conduz a um amor inopinado

(previsível para o leitor), de um modo geral mais sólido e feliz do que os

enamoramentos instantâneos, em que este género novelesco é pródigo102. Também neste

pormenor se revela a tendência para uma verosimilhança sentimental, a que

regressaremos.

Um loquaz exemplo desta situação acha-se nos amores de Alfeo e Finea, que

pendem sobre os seus corações desde a profética provocação da pastora no seu primeiro

encontro: «¿Qué sabes […] si puedes pagarme en mi moneda?» (p.250). Não cremos

que este amor se veja sequer em parte desapossado da sua “legitimidade” sentimental e

do seu encanto pelo facto de se tratar, para ambos, de uma segunda experiência

amorosa, visto que, neste âmbito ficcional, uma tendência para a perfeição neo-

platónica já enaltece sobejamente o amor. Múltiplos factores concorrem para a

dignificação desta relação amorosa em particular; será útil anotá-los, por conjugarem

uma feição social e uma psicológica. Em primeira instância, distingue-se da quase

insana paixão por Andria (ignoramos os pormenores da relação entre Finea e Orindo),

por resultar de um movimento deliberado da vontade – «Las sinrazones de Andria

contrastan mi afición; tus consejos me mudan la voluntad; la beldad de Finea me

cautiva» (p.340) –, o que a legitimaria perante qualquer tratado amatório103 e,

simultaneamente, perante uma sociedade ordenada e sóbria como aquela que aqui se

delineia. Baseia-se numa firme confiança robustecida pelo convívio, pela partilha e,

102 Para Aristóteles, a benevolência em relação ao outro pode nascer subitamente; o mesmo não sucede com o amor e a amizade, os quais, brotando desta benevolência inicial, surgem, contudo, «com a familiaridade» (cf. 2012: p.234). 103 Ficino: «los afectos decorosos, honestos y divinos no podemos jamás atenderlos demasiado, ni tan siquiera bastante. De aquí surge que todo amor es honesto. Y todo amante justo. Porque todo el que es bello y adecuado ama también justamente las cosas propiamente adecuadas» (1986: pp.16-17); Bembo: «quelli che amando la ragione seguono, ne’ loro amori la cosa più perfetta seguendo, fanno in tanto come uomini» (1961: p.149); Leão Hebreu: «Consiste, portanto, o amor e desejo do honesto [ou seja, das coisas dignas de serem desejadas e amadas] em dois ornamentos do nosso entendimento […]: virtude e sabedoria» (1968: p.38).

Page 80: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

77

enfim, pelo conhecimento mútuo. Perfeitamente se adequa a este amor a metáfora

agrícola empregue por Montalvo em alguns momentos: «Aré com el pensamiento / y

sembré, com fe sincera» (p.387) – uma imagem campestre realista para exprimir a vida

de sentimentos igualmente reais. Por outro lado, considerando que Alfeo assume, com o

novo traje, a condição que lhe está associada e que a comunidade pastoril pactua

pacificamente com essa mudança ou, melhor dizendo, com esse «disfarce» (p.307), não

se dirá que Alfeo e Finea infringem qualquer hierarquia social. Enquanto se

confundirem com a classe indiferenciada dos pastores do Tejo (não, claro está, com a

dos pastores aristocratas), encontram-se em “solo sagrado”, a salvo de acusações desta

índole. Estes amores não vão escoltados por pendências, intrigas e despeitos, preço dos

enleios cortesãos; neste caso, diríamos sem ironia que «en las selvas vive amor, y en los

poblados su ira y saña» (p.313). Até no seu desenlace ameno é este amor temperado,

virtuoso e louvável. Não sentimos que a sensatez com que Alfeo e Finea concordam em

apartar-se seja indício de debilidade afectiva: real é o amor que os une um tempo, bem

reais são os ensinamentos que dele retiram (cf. Martínez San Juan, 2003: pp.107-131).

Existe uma notória sintonia entre os códigos sentimentais e sociais do amor e os da

amizade, sendo muito ténue a alteração das atitudes das personagens, pelo menos em

público (nunca o avisado autor torna a apresentá-los a sós, como de início). Em ambas

as situações, de resto, procuram visivelmente corresponder ao que delas se espera104.

Se, como vimos, a amizade pode lançar os fundamentos do amor pastoril,

também o movimento oposto pode ocorrer, com implicações distintas. Referimo-nos

aos casos em que o sentimento amoroso constitui um veículo de aproximação

humana105, o que ocorre quando um amante, por uma irresistível urgência de

comunicação, se determina a partilhar penas e glórias com outro amante106. O mais

curioso neste fenómeno é o facto de instituir a reciprocidade enquanto norma a um

tempo social e íntima. Sempre que um novo elemento é acolhido na comunidade 104 Longe jaz a anarquia erótica e o hedonismo a-moral característicos da pastoral clássica (cf. Poggioli 1975: pp.42-48). Embora da convencional liberdade arcádica seja dado a estes pastores auferir ainda a de eleger os seus amados e amadas, a sua conduta assenta em princípios desconhecidos pelos pastores greco-latinos, tais como a moralidade ou a honra. O célebre axioma «s’ei piace, ei lice», traçado por Tasso no Aminta, continua em vigência na novela pastoril, na medida em que a transgressão nunca é sequer desejada. 105 Acerca do amor como “cimento” da comunidade pastoril na Diana e na Galatea, veja-se Hernández-Pecoraro (2006: pp.102-120). 106 Este espírito de partilha constitui a base fundamental da amizade pastoril, desde Teócrito e Virgílio. É provável que alguns destes novelistas da Renascença tivessem em mente também outro tipo de escritos, entre os quais certas cartas de Séneca a Lucílio, onde se encerram sentenças que poderiam ter sido proferidas pelas nossas personagens: «haz partícipe a tu amigo de todas tus inquietudes, de todos tus pensamientos. Si lo juzgas fiel, lo harás fiel» (Séneca, 2006: p.25).

Page 81: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

78

pastoril (a curto ou a longo prazo, pois que todos os forasteiros, com excepção de

Andria, se mudam virtualmente em definitivo para o campo), logo lhe é dirigido um

bem intencionado interrogatório107, que ultrapassa a mera convenção de “etiqueta”,

sobretudo porque aquilo que visa desvendar não é a identidade social do desconhecido,

mas a sua identidade psicológica. Por vezes, esta informação retribui-se com revelações

da mesma natureza: é o que ocorre na troca de confidências entre Siralvo e Alfeo, num

dos seus primeiros encontros, que culmina no canto amebeu entoado pelos dois (pp.304-

311). Nenhum pastor se recusa a fornecer detalhes acerca da sua existência; pelo

contrário, uma solicitação nesse sentido é recebida como uma prova de grande gentileza

– «Pero ya sabes [-dijo Siralvo-] que entre amigos no es justo haber nada encubierto,

préndote mi fe que no te arrepientas jamás de lo que conmigo comunicares. - Eso creo

yo mui bien -dijo Alfeo» (p.292) – e até de uma certa eleição – «conocer yo la merced

que me haces no lo dudes, y menos que es imposible cansarme de oír tus casos» (p.292).

É igualmente uma prova de confiança o amante desditoso recorrer a outro pastor

em situação semelhante para obter um conselho amigo e franco. É o que sucede com

Filardo, o cioso, que não desdenha uma amena conversação com o excelente Siralvo,

ainda quando tem plena consciência de que debalde lhe revelará os segredos das suas

ânsias, porque o amigo «habl[a] como sano en fin, y [s]us medicinas no son para el

doliente» (p.288). Poderíamos quase acrescentar às classes sociais já definidas uma

classe psicológica: a dos enamorados, que parecem constituir um grémio diferenciado

pelas preocupações comuns, pela linguagem e, sobretudo, pelo princípio (quase tão

vetusto como a mesma poesia amatória) de que só o amante entende e sabe apiedar-se

dos outros amantes, ainda que as experiências individuais sejam necessariamente

distintas108. E, tal como constatámos a respeito das outras formas de hierarquia, também

este princípio, ao igualar interiormente os pastores, os une pela semelhança109.

107 Conjecturamos que esta constante preocupação esteja relacionada com a muito clássica lei sagrada da hospitalidade, «one of the highest pastoral duties» (Poggioli, 1975: p.56). 108 Comprova-o o canto amebeu entoado por Alfeo e Siralvo, que, sustentando-se embora num contraste de atitudes face ao amor, realça a sintonia que se vai estabelecendo entre os seus corações, ambos votados a amar, ainda que com distinta fortuna. 109 Escreve R. Bromberg: «the disguise of shepherd equalizes everyone’s rank so that his inner nature undergoes a test of excellence. The shepherd’s dress means that the lover has denuded himself of externals to prove his worth from the beginning» (apud Damiani, 1980: p.62). Muito arguta relativamente ao universo pastoril convencional, esta observação não é aplicável ao Pastor de Fílida senão com grande prudência, pois que, como sabemos, a Arcádia nele debuxada é alvo de uma contaminação que lesa a sua “essencialidade” humana. O próprio amor é sintomático desta mudança, comportando um lastro social inegável, no qual se dilui um tanto o conceito de «inner nature» de cada pastor.

Page 82: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

79

Assim, a partilha dos casos amorosos não somente aproxima os pastores num

primeiro momento, como acalenta uma relação de solidária amizade e de

companheirismo emocional, tal como demonstra a relação entre Siralvo e Alfeo,

sobretudo se se tiver em consideração que o jovem desenganado é um membro neófito

da comunidade pastoril. Aqui, a compreensão e o respeito mútuos compensam a

escassez do tempo, provando que a cronologia dos espíritos não serve, antes é servida

pela das horas. E tão imediata é esta “amizade à primeira vista”, que logo no primeiro

encontro, mediado por Finea, declara Siralvo: «Las alabanzas que de ti me dio la

serrana, tu persona las confirma todas, y lo que tengo visto bien basta para procurar tu

amistad» (p.291).

Devemos, no entanto, fazer uma distinção que certamente o leitor já adivinha:

este código de cortesia pastoril aplica-se apenas aos pastores não integrados na elite das

personagens que moldam estritamente a sua conduta de acordo com os padrões da

prudência e do recato cortesãos110. Mendino, por exemplo, somente a Siralvo dá conta

dos seus amores com Elisa, e não já movido por um desejo de partilha, senão por uma

necessidade muito prática: a de se fazer acompanhar nas suas entrevistas secretas por

alguém a quem possa confiar a honra e, porventura, a vida. Na corte, partilhar emoções

raramente é sintoma de qualquer tipo de cedência; antes, constitui outra estratégia mais

de sobrevivência social, uma vez que o secretismo excessivo pode revelar-se igualmente

pernicioso ao amante a quem falta o auxílio e o conselho de um confidente (cf.

Castiglione, 1990: pp.354-355). Demais, o que haveria de verdadeiramente íntimo nos

seus amores não o confessa senão aos desertos «donde de nadie podía ser visto ni oído»

(p. 241). Já no terceiro capítulo procurámos salientar a especificidade da conduta

cortesã.

Apenas quando se encontra junto dos “simples” pastores se concede Mendino a

liberdade de discorrer em público sobre as suas fraquezas amorosas, numa cantiga onde

nomeia directamente Filis, a pastora que tomou o lugar da defunta Elisa no seu

pensamento, infringindo assim o preceito cortês, duplamente poético e social, que

ordena a ocultação do nome da amada e de elementos identificadores excessivamente

óbvios (pp.410-411). É curioso reconhecer que, apesar da estreiteza normativa da corte,

ao pastor aristocrata é permitida alguma folgança enquanto se encontra fora do seu

recinto físico e social, algo que exige uma certa capacidade para avaliar as

110 É bem verdade que, na corte, «people are likely to say less than they mean, but hurt each other more severe» (Rosenmeyer, 1969: p.155).

Page 83: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

80

circunstâncias, que se deve contar entre as prendas do bom cortesão e do homem de

sociedade111. O mesmo sucede com Andria, que, quando sob as vestes de Amaranta,

aprende os modos pastoris e, sendo por natureza pouco dada à contenção, parece tomar

gosto à nova liberdade que lhe permite ao menos o alívio da comunicação,

inconveniente e até arriscada na corte:

«Y ella vencida del dolor, sin guardar la ley de su respeto, como un pastor aficionado usaba de libertad en sus querellas, y ansi […], sin más ruego, comenzó a tocar su zampoña, tras cuyo son, suavemente, dijo ansi sus males» (p.392).

Por último, merece destaque outra virtude, que lança a derradeira prova à

pulcritude destas personagens humana e socialmente idealizadas: a capacidade de

dominarem as suas paixões, não consentindo que elas se avantajem ao generoso

interesse pelos males e bens alheios. Assim, diz Siralvo a Alfeo: «no creas que mis

pasiones han de estorbarme el buscar remedio a las tuyas» (p.378); com efeito, como

ciente da sua função conciliadora e orientadora, o amador de Fílida posterga

frequentemente as suas próprias queixas e a procura do remédio delas para atender às

necessidades dos amigos, o que chega a custar-lhe pelo menos uma entrevista com a sua

pastora (p.293). É esta, aliás, uma das primeiras lições que Andria parece acatar na sua

breve e edificante estadia nos campos: «Amaranta, aunque triste, no por eso seria

desconversable» (p.382). Numa só condição os amantes perdem a capacidade de

coabitar com os outros e de se interessar pelo que lhes não pertence: quando feridos de

zelos112. Filardo, que os personifica, não só nunca é visto aconselhando outros pastores,

como deixa de ser receptivo a qualquer alvitre alheio, redarguindo sempre, quase com

arrogância, que a quem está favorecido «par[ece] poco el mal ajeno» (p.287).

Admitindo a forte simbologia social dos cantos em contexto bucólico113, é muito

significativo o episódio em que Filardo, não podendo sofrer a presença de Filena e do

111 Assevera Castiglione: «volendo voi separare il modo e ‘l tempo e la maniera dalle bone condizioni e ben operare del cortegiano, volete separar quello che separar non si po, perche queste cose son quelle che fanno le condizione bone e l’operar bono» (1990: p.113). Recorde-se também Giovanni della Casa, no Galateo, de 1558: «quello, che fatto a convenevol tempo non è biasimevole, per rispetto al luogo et alle persone è ripreso» (1991: p.57). 112 Recorde-se, a propósito, a novela Desengaño de celos (1586), de Bartolomé López Enciso, que se constrói em torno de uma “não-sociedade”, articulada, precisamente, pelas tensões, lutas de interesses e rancores ocultos engendrados pelos zelos que as personagens alimentam umas em relação às outras. 113 P. Berrio Retortillo salienta quatro desígnios do canto no Pastor de Fílida: «entretener, expresar, responder y celebrar» (1997: p.103). Poderíamos acrescentar às ideias desenvolvidas pela autora que todas estas funcionalidades pressupõem a existência de um acto comunicativo, pelo que, aqui como noutras novelas, o canto solitário é um canto morto (descontando alguns desabafos raros de Siralvo e Mendino).

Page 84: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

81

venturoso Pradelio, abandona, a meio da sua canção, a companhia de pastores que se

reunira antes da visita ao templo de Pã (p.267). Cego e miserável, é Filardo, e não o

rival Pradelio, o primeiro responsável pelo fastio de Filena em relação a si, uma vez que

os zelos lhe inspiram todos os comportamentos indesejáveis em sociedade e, mais

ainda, junto do ser amado. Pradelio, por seu turno, ao ver-se numa situação idêntica,

determina-se a «pasar a las islas de Occidente, donde tarde o nunca se pudiese saber de

sus sucesos» (p.416)114.

A Enganosa Harmonia do Amor

Até ao momento, analisámos a amizade e o amor enquanto veículos de

sociabilização, de concórdia e de abertura espiritual. Porém, tão-pouco sob este aspecto

o mundo ficcional dos pastores se revela unívoco, visto que o amor, pelo menos, se

deveras se assemelha a uma semente que se cultiva e rega «com agua del corazón»

(p.387), é, não raro, porque gera abrolhos e pomos de discórdia. Nestas situações, chega

a colocar em risco a tão apregoada paz campestre, algo que no Pastor de Fílida adquire

especial visibilidade, dado que a sua complexa e particularmente frágil estruturação

social logo acusa o mais ligeiro câmbio nas suas peças fundamentais. A amizade,

substrato da harmonia pastoril, não é já agradavelmente concebida como «a state of

grace or spiritual communion, which the stress of life never puts to the test of loyalty or

sacrifice» (Poggioli, 1975: p.20); aqui, é continuamente posta à prova.

Um dos mais evidentes elementos de distúrbio, até pela vasta tradição em que

radica115, são sem dúvidas as cadeias de amores desencontrados – esses caprichosos

desconcertos com que Citereia tanto se deleita (Horácio, Odes, I, 33) –, das quais a

maioria das novelas pastoris não prescinde, sobretudo para assegurar a sua subsistência

114 Tal como na Arcadia de Lope, existem outros lugares onde os pastores se refugiam, quando até o mundo arcádico os trai. Contudo, se o protagonista lopesco troca a realidade pastoril por outra semelhante, o exílio de Pradelio é paradoxal, já que o leva a abandonar a Arcádia pela atribulada existência nas Índias – a abandonar o ideal pelo real –, o que, para além de constituir um discreto testemunho das debilidades deste universo pastoril, abre declaradamente as portas à circunstância histórica. 115 O mais recuado exemplo de que temos notícia, em contexto bucólico, é o idílio VI de Mosco (Crawford, 1915: pp.95), conquanto seja pouco provável que os novelistas pastoris o conhecessem directamente.

Page 85: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

82

quando os “casos” individuais se vão exaurindo um por um, como ocorre no Pastor de

Fílida a partir de meados da quinta parte, quando quase todos os pastores usufruem

enfim uma merecida felicidade sem história. Neste ponto surge Andria, fazendo vacilar

não apenas os amores de Alfeo e Finea, mas toda uma rede sentimental, que então se

conjuga convocando novas personagens, anteriormente relegadas para segundo plano. A

nova circunstância narrativa é resumida com grande expressividade na última parte,

quando os pastores implicados nesta confusão sentimental em vão se rogam com cantos

e miradas igualmente encadeados116, «Alfeo los ojos en Finea, Andria los suyos en

Alfeo, los de Arsiano en Andria y los de Silvera en Arsiano» (p.467). Outra personagem

tragicamente envolvida nestas tristezas colectivas é Sasio, o poeta, que morre

literalmente de amores por Silvera (p.465). Trata-se de uma inusitada agressão, quer a

nível sentimental, quer a nível social, visto que, com Sasio, a comunidade pastoril perde

o seu mais ínclito poeta, urgindo a eleição de um sucessor, a fim de repor a ordem

lesada (p.466).

A resolução deste imbróglio não assenta, evidentemente, na mera elisão do

elemento onde desemboca a cadeia (Sasio é o único que ama sem ser amado), mas sim

dissolvendo o desarranjo que lhe dá origem: neste caso, os amores entre Alfeo e Finea.

Merece reparo esta via indirecta de demonstrar que a relação entre as duas personagens

socialmente desiguais é a todos os títulos indesejável. Pela mão de Siralvo, generosa

encarnação da concórdia, Alfeo e Finea regressam aos seus amores da mocidade, de

certa forma mais legítimos, não já por haverem sido os primeiros, mas por se fundarem

numa equidade social, aspecto que, para Montalvo, está longe de corresponder a um

critério superficial e arbitrário. Graças a esta primeira atitude avisada, a ordem pastoril

cobra parte do equilíbrio perdido e torna-se mais fácil persuadir Arsiano a aceitar o

amor de Silvera, sendo nestas duas personagens que termina a cadeia amorosa desde o

falecimento de Sasio, cujo sacrifício amoroso se reveste de uma irónica utilidade social

e narrativa, truncando a teia amatória no ponto oportuno.

Outro factor de perturbação são as rivalidades amorosas. Detivemo-nos já no

tenso diálogo travado entre Filardo e Pradelio a respeito de Filena. Todavia, este não é o

único exemplo citável, e é fácil constatar que o rancor gerado pelos zelos afecta tanto os

pastores aristocratas como as restantes personagens, que, se em circunstâncias regulares

manifestam uma cortesia indefectível, quando perturbadas pela «rabia del amor»

116 A música, para além da sua evidente funcionalidade social, constitui um testemunho das relações humanas a um nível puramente sentimental, cuja complexidade absorve e exprime.

Page 86: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

83

(p.289), assumem, se não uma atitude de velada agressividade (Filardo e Pradelio), um

cinismo inusitado em caracteres literários da sua classe (Finea e Amaranta). Neste

ponto, até a sã doutrina da moderação pregada por Castiglione, tão escrupulosamente

observada noutras ocasiões, é quebrada sem reservas117. Entre estes pastores não

encontraremos uma relação semelhante à de Sireno e Silvano (La Diana), à de Tauriso e

Berardo (Diana enamorada) ou à de Elicio e Erastro (La Galatea): a amizade tem o seu

limite nos “interesses” amorosos de cada pastor118. Turino e Bruno, amadores de Filis,

mantêm face a estes “duetos” uma diferença capital: um está «nuevamente cautivo» e o

outro recentemente «escapado del amor, siendo verdad que poco antes fue Bruno el

amante y Turino el descuidado» (p.219). O que torna a amizade viável é precisamente

este desencontro sentimental, já que, noutro caso, haveria que optar entre a amizade e o

Amor. O próprio Siralvo – o mais portentoso amador desta novela e um dos mais nobres

protagonistas pastoris com que a tradição ibérica nos brinda – confessa não lhe agradar

especialmente a veneração despertada por Fílida noutros pastores: «Enamorado está

Carpino […] y, para decir verdad, no me hace muy buen gusto» (p.298).

Quando nos deslocamos para o seio da elite que rodeia Sileno, o ciúme e as suas

consequências tornam-se ainda mais agrestes. Isto porque, como sabemos, na vida deste

círculo social intervêm interesses desconhecidos ou negligenciados pelos outros

pastores e que confluem para a vivência amorosa, agudizando os seus conflitos. Aqui, a

dor amorosa não é já simplesmente «etherealized into an exquisite masochism»

(Heninger, 1961: p.255); pelo contrário, exige uma reacção, por vezes muito pouco

pacífica. Vimos já como Mendino e Elisa, Galafrón e Filis, mancham hipocritamente a

lei da amizade com ardis amorosos recíprocos, algo semelhante sucedendo com

Cardenio e Castalio.

Se, por um lado, estas formas de violência subvertem flagrantemente a harmonia

e a paz arcádicas, por outro, essa infracção é atenuada pelo “justo motivo”119 que lhe dá

origem: o amor, outra das convenções pastoris especialmente bem sucedida a partir da

117 «Ma perché a me non piaceria mai che ‘l nostro cortegiano usasse inganno alcuno, vorrei che levasse la grazia dell’amica al suo rivale non con altra arte che con l’amare, col servire e con l’esser virtuoso, valente, discreto e modesto […], guardandosi da alcune sciocchezze inette nelle quali spesso incorrono molti ingoranti» (Castiglione, 1990: p.351). 118 Ao contrário do que escreve B. Mujica sobre a Diana, aqui nem sempre «common suffering breeds feelings of harmony and cooperation, not of rivalry» (1986: p.114): conforme o objecto destes amores é distinto ou comum, gerar-se-á uma relação de camaradagem ou uma rivalidade hostil. Acerca dos interesses pessoais, acrescente-se que «[w]ith the emergence of individual characters, the illusion of harmony begins to dissipate. As the focus turns from the whole to the parts, the imperfection of human existence becomes increasingly evident» (p.30). 119 Sobre o perdão merecido pelos «pecadillos de amor», veja-se Cull (1984).

Page 87: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

84

Renascença120. Com Rosenmeyer, consideramos que o amor compensa, em larga

medida, o estatismo a que o otium pastoril inclina estas personagens novelescas (cf.

1969: p.72), asserção legitimada no duplo plano com que lidamos, psicológico e social,

bem como no plano narrativo121. Torna-se necessária uma certa dose de perturbação

para assegurar a continuidade da novela e, igualmente, para conferir alguma substância

à paz gratuita com que amiúde estes ambientes ficcionais começam por deslumbrar-nos.

No Pastor de Fílida, como nas Dianas, o amor não é apenas responsável pela

deambulação das personagens no interior do seu meio, mas conduz ainda ao seio desta

Arcádia manchega alguns forasteiros: Finea e Alfeo e, por conseguinte, Orindo e

Amaranta. Esta tradição do exílio voluntário por amor num meio rural, mais ou menos

idealizado, constitui um tópico recorrente na literatura bucólica, que remonta, pelo

menos, à personagem virgiliana Galo (bucólica X). Vindo ao campo acossado por

outros amores, mal poderia saber Alfeo que ali o aguardava um amor muito mais

verdadeiro (ao menos durante algum tempo) por uma pastora junto de quem, qual novo

Tibulo, não o vexaria a labuta campestre nem ser chamado ocioso.

Desta guisa, o enriquecimento trazido pelo amor à experiência social actua em

duas frentes: a dinâmica “rotativa” em que lança a vida amorosa dos pastores e as novas

personagens com que os confronta, provenientes de distintos âmbitos cujos princípios

encarnam, fomentando distintos olhares sobre a utopia pastoril122.

Neste sentido, é curiosa a condição de Siralvo, dada a sua dúbia pertença a ele

ou a qualquer uma das classes que o compõem. Nem bem forâneo nem bem natural

(p.307), nem bem pastor aristocrata nem bem pastor “vulgar”, o amador de Fílida só

parece possuir um elemento que o identifique perante a sociedade: o mesmo amor, que

o radica no solo abençoado pela presença da sua senhora e que o coroa com uma espécie

de aristocracia espiritual, que, ainda na falta de outra “creditação” mais objectiva, o

impõe como autoridade inclusivamente entre os membros da elite pastoril do Tejo123. É

120 Com assinalável optimismo, Fernando de Herrera postula ambas: «La materia de esta poesía es las cosas y obras de los pastores, mayormente sus amores; pero simples y sin daño, no funestos com rabia de celos […]; competencias de rivales, pero sin muerte y sangre» (apud López Estrada, 1975: pp.458-459). 121 Parafraseando Fontenelle, Rosenmeyer explica ainda como a pastoral «is the product of a marriage between idleness and love» (p.77). No caso da novela pastoril espanhola, o amor parece ser o elemento prevalente desta dicotomia: embora intensifique uma certa incúria à partida característica destas personagens, confere-lhes um espírito de iniciativa que, sem ele, jamais demonstrariam. 122 Por exemplo, o espanto de Alfeo ao apreciar a desenvoltura dos pastores, o tédio de Mendino, Cardenio e Siralvo, que os leva a abandonar a “sociedade”, ou o magoado desdém de Andria e de Orindo. 123 A perfeição amatória de Siralvo condiciona a imutabilidade do seu carácter, algo de que mais nenhum pastor se pode jactar: ele é «integrally noble from the start; his duty is not to become good but simply to remain true to himself» (Perry, 1969: p.230a).

Page 88: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

85

ele que, enquanto encarnação do bom amor neo-platónico e continuador das

magnânimas obras da sábia Felicia, agracia a comunidade que o acolhe com as suas

conspícuas asseverações, corrigindo os desatinos dos ciosos (pp.287-288), consolando

os magoados (pp.306-307) e, enfim, guiando os indecisos (p.471)124. Também aqui fica

a cargo de uma personagem em certa medida distanciada da comunidade pastoril a sua

regeneração espiritual e, logo, social. Isto porque, para Gálvez de Montalvo, um

organismo tão delicado como uma sociedade ideal (ou, melhor, uma sociedade de

ideais) não pode ficar à mercê dos remédios acidentais que dão um oportuno desfecho a

tantas novelas dos Siglos de Oro; assim, se uma feliz fortuna conjuga, num tempo, a

presença de todos os amantes, não é senão para que a intervenção prudente de Siralvo

lhe confira o sentido providencial que aparenta deter por si125.

Outro aspecto ainda merece ser assinalado, e com ele terminaremos tal como

começámos. Trata-se de um certo realismo na concepção da “psicologia” humana, que

distingue esta novela das precedentes126. Apesar de as suas páginas estarem pejadas de

composições de recorte neo-platónico e de os amores das personagens terem em mira os

mesmos fins honestos e inocentes de sempre, o amor humano é encarado aqui com um

certo distanciamento, que não o desdoura se considerarmos que tudo é intrinsecamente

eterno e infinito – enquanto dura127. A verdade é que o tempo, factor desconhecido pela

tradição clássica, faz sentir os seus efeitos na novela pastoril, provavelmente por

constituir um tópico de reflexão a que as letras espanholas sempre foram tão atreitas. Se

nas novelas barrocas chegam a ser debatidas as implicações existenciais do inexorável

fluir dos anos (na Constante Amarilis, por exemplo), no Pastor de Fílida o que está em

causa é o seu impacto nas mentes humanas e, por conseguinte, na ordem social.

O resfriar dos amores mais firmes obriga o narrador a realçar explicitamente as

metamorfoses sentimentais das personagens, que obrigam à reestruturação da tessitura

social: 124 Neste sentido, Siralvo representa a outra face de Sileno, detendo sobre os espíritos dos pastores uma autoridade similar àquela que o velho Sileno detém sobre a organização e os fenómenos sociais. 125 Esta confiança na razão e a tácita assunção da responsabilidade do indivíduo pelo curso da sua existência fazem do Pastor de Fílida um digno sucessor da Diana enamorada, embora aqui a intenção didáctica não seja tão visível nem tão central. 126 Para J. Arribas, no Pastor de Fílida «se introduce una nueva perspectiva narrativa, que captura la idea mítica, sí, pero que también la expresa hecha vida cotidiana. Este interés por crear una narración verosímil y por acercar el mito a la realidad de la experiencia diaria es producto de nuevas transformaciones en la cultura literatura [sic] española» (2008: p.38). 127 Propomos esta resposta ao paradoxo detectado por Alonso Gamo: «entre tantas y tantas páginas […] donde los amores pueden cambiar de signo casi con la misma facilidad que en muchas de nuestras comedias del Siglo de Oro, se pued[e]n ir pescando, como purísimas perlas, algunas de las más bellas y delicadas muestras de nuestra más refinada poesía lírica» (1987: p.46).

Page 89: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

86

«passar[é] en silencio lo que nos queda del florido abril y del rico y deleitoso mayo, donde nuestros pastores entre sus bienes y sus males, con fortuna y amor, perdiendo y ganando, pasaron cosas dignas de más cuenta que la que yo agora hago. Porque Pradelio y Filena en este tiempo entre mucho dulzor hallaron mucho acíbar, el pastor, celoso y perdido, y la pastora, apremiada y confusa. Alfeo y Finea fueron creciendo en las voluntades hasta hacerse de dos almas una. Ergasto y Licio trujeron a Celio, y hallaron a Silvia enamorada» (p.369).

Para além do efeito de verosimilhança (discutido no primeiro capítulo da

presente reflexão), estas mudanças nutrem ainda a escassa intriga da novela. Com

efeito, um enredo envolvendo seres humanos e não meros estereótipos literários presta-

se a uma maior diversificação narrativa, algo que o nosso autor não faz questão de

explorar grandemente, mas que adquirirá uma importância vital na Galatea cervantina,

apenas três anos posterior. De resto, este cuidado realista prende-se ainda a factores

culturais que, entre a publicação da trilogia e a do Pastor de Fílida, alteraram a

mentalidade de muitos autores espanhóis, e que A. Parker sintetiza: «Se trata de algo

nuevo: el rechazo de las posturas básicas tanto del amor cortés como del neoplatónico;

señala el comienzo de un intento de hacer descender el amor de los cielos de la

idealización a la realidad» (1986: p.131).

É relevante o facto de, exceptuando o caso secundário de Cardenio e Castalio,

não haver exemplos de grandes amizades quebradas, tal como os há de grandes amores

esmorecidos, o que sugere que, por estes anos, já os idílios pastoris privilegiam mais a

sã amizade do que os amores eternos, nos quais, a bem dizer, os novelistas parecem crer

cada vez menos.

Por outro lado, o amor nem sempre tem como fim o matrimónio, ao contrário do

que seria esperável numa novela pós-Contra-Reforma. Julgamos que a justificação para

este facto se encontrará na fusão de linhas ideológicas que caracteriza esta ficção. A

multidão de pastores que não pertence ao círculo privilegiado permanece isenta de

preocupações nesse sentido, vivendo para os amores presentes, desde logo legitimados

pela honestidade com que são conduzidos, preservando assim, parte da liberdade

sentimental de que gozavam os seus avoengos clássicos.

Quanto aos pastores aristocratas, a situação é mais ambígua. O matrimónio

conta-se entre as suas preocupações, ao menos a um nível prático: logo que Padileo

entende que a união com Elisa não seria desejada pela dama, decide contrair um

matrimónio estratégico com a rica e viúva Albanisa (p.230) – decisão bastante prosaica

para o contexto idealizado de uma Arcádia. Fílida é assediada pelos seus «deudos» com

Page 90: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

87

a ingrata ideia do matrimónio (que domina esta classe de pastores, tal como dominava a

nobreza quinhentista), embora a rejeite. Já Mendino e Galafrón, conquanto integrem a

elite pastoril, preferem manter em segredo as suas relações amorosas, sem pretensões

matrimoniais, não já, segundo cremos, de modo a reivindicarem a liberdade que

caracteriza os restantes pastores, mas antes para manterem os seus amores no âmbito de

um neo-platonismo aristocrático.

Consideramos excepcionais os três matrimónios que marcam a conclusão da

novela, envolvendo várias classes sociais. Interpretamo-los como um imperativo menos

sentimental ou moral do que narratológico e social: cumpre, por um lado, oferecer ao

leitor a garantia de que naqueles volúveis amores se colocou um ponto final irreversível,

e, por outro, restabelecer a ordem na sociedade pastoril, o que passa quer por realizar

uniões igualitárias, quer por restituir cada personagem ao meio que lhe é próprio. Não é

de pouca importância o facto de as personagens oriundas da corte virem solucionar os

seus problemas amorosos a uma Arcádia, ainda que pouco ortodoxa.

Independentemente do modo como os põe em prática, este ambiente social utópico tem

em si inscritos princípios de conduta dignos de orientar um cortesão “genuíno”. Assim,

curado Alfeo da sua irritabilidade melancólica e Andria da sua soberba caprichosa e

instável, passam a estar ambos aptos para abandonarem esta espécie de “sanatório

social” e para se reintegrarem, por sua conta, no meio de onde provisoriamente se

ausentaram. De facto, conquanto reduzida em termos numéricos, esta comunidade

pastoril é já sobejamente complexa para iniciar os jovens cortesãos no mundo ardiloso

com o qual deverão lidar ao longo das suas existências128.

O último episódio da novela, com o qual damos igualmente fim à nossa proposta

de leitura do Pastor de Fílida, revela melhor do que nenhum outro a delicada

complexidade deste universo social, que, no seu conjunto, longe de abafar tiranicamente

os percursos individuais de cada personagem, depende antes da conjugação de todos

esses percursos, inevitavelmente entrelaçados. Nesta medida, a novela pastoril de Luis

Gálvez de Montalvo, conserva e reformula uma das peculiaridades próprias da pastoral

128 Ninguém ignora que, se numa comunidade reduzida há uma grande probabilidade de os interesses particulares coincidirem com os colectivos, uma sociedade mais numerosa exige a imposição de normas que assegurem tanto uns como os outros (cf. Bauzá, 1993: p.148). O que El Pastor de Fílida põe em relevo é a tendência das novelas pastoris espanholas pós-Dianas para apresentarem pequenas comunidades que, no entanto, não dispensam o tipo de regulamentação que se imporia num agregado humano mais amplo, constituindo, assim, algo semelhante a preparações de microscópio através das quais o aprendiz se familiariza com o misterioso mundo que o rodeia.

Page 91: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

88

clássica, «which reduces all human intercourse to an everlasting tête-à-tête» (Poggioli,

1975: p.21).

Page 92: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

89

CONCLUSÕES

El Pastor de Fílida assegura a continuidade da novela pastoril espanhola, que

brilhará ainda com alguns títulos antes de entrar em visível decadência. Efectivamente,

concluído o ciclo das Dianas, que possui o seu esplendor e as suas características

próprias, poucas possibilidades restavam aos novelistas pastoris, caso se restringissem

ao seu exemplo – atesta-o o fracasso do único texto publicado durante os quase vinte

anos que separam a Diana enamorada do Pastor de Fílida: Los diez libros de Fortuna

de Amor (1573), de Antonio de Lo Frasso. A novela de Montalvo vem propor um novo

caminho, imprimindo à novela pastoril um «giro audaz» – como o designa Avalle-Arce

(1975: p.153) – a tal ponto inspirador que, desde a sua aparição, se precipita de forma

surpreendente a produção de novelas pastoris em Espanha, facto que, se não assegura a

qualidade de todos os textos, comprova, pelo menos, a popularidade do género entre

autores e leitores.

As novidades introduzidas por Montalvo superam a mera opção estrutural,

estendendo-se ao próprio conceito de «pastoril», que, para além de assimilar tradições

estéticas e ideológicas de diversas proveniências, passa a conjugar de forma mais franca

e audaz a universalidade do mito arcádico e a curiosidade da anedota circunstancial,

eternizada, deste modo, num género por onde o tempo não passa e que passa por todos

os tempos. Novelistas posteriores tiraram partido da engenhosa bimembração do

universo ficcional, que aqui discutimos, polindo assim as arestas do complicado

hibridismo que resulta da transplantação da corte para a aldeia. Lope de Vega, na sua

Arcadia, e Suárez de Figueroa, na Constante Amarilis, foram dois desses autores, cuja

inegável originalidade talvez merecesse ser reconsiderada (não desconsiderada, porém)

a partir do legado de Luis Gálvez de Montalvo.

Embora tenhamos retirado ilações parciais em cada fase da presente reflexão,

encontramo-nos agora, porventura, mais capacitados para oferecer resposta a um dos

Page 93: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

90

objectivos estabelecidos no começo destas linhas: situar El Pastor de Fílida no período

de vida do género a que pertence. Lidámos, para tal, com uma dupla tradição – clássica

e ibérica –, e reconhecemos que o nosso autor tira proveito de ambas as propostas,

subordinando-as à sua própria concepção do género. Assim, a conclusão deste trabalho,

esquivando-se a uma visão simplista e enganosa, cairá, receamos, no defeito oposto: o

de uma indefinição evasiva. Porque se nos afigura pouco exacto considerar que El

Pastor de Fílida representa, relativamente às novelas anteriores, um retrocesso –

conquanto a Arcadia, que tem mais presente do que as Dianas, as preceda em cerca de

meio século –, ou uma novidade – ainda que desbrave caminho para um vasto corpus de

textos, condicionando o ulterior curso da novela pastoril. Será, talvez, mais prudente

considerar que Montalvo cria uma linha distinta da fundada por Jorge de Montemayor,

que será também abençoada com uma numerosa geração.

Page 94: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

91

BIBLIOGRAFIA

A. Bibliografia Activa

ARGENSOLA, BARTOLOMÉ LEONARDO DE (1974)

Rimas. Edición, introducción y notas de José Manuel Blecua. Madrid: Espasa-

Calpe, 2 vols.

ARISTÓTELES (2012)

Ética a Nicómaco. Tradução, prefácio e notas de António de Castro Caeiro.

Lisboa: Quetzal.

BALBUENA, BERNARDO DE (1821)

Siglo de Oro en las Selvas de Erífile. Edición corregida por la Academia

Española. Madrid: Ibarra.

BEMBO, PIETRO (1961)

Opere in volgare. Firenze: Sansoni.

CALPÚRNIO SÍCULO (1996)

Bucólicas. Tradução de João Beato. Lisboa: Verbo.

CASTIGLIONE, BALDASSARE (1990)

Il libro del cortegiano. Introduzione di Amedeo Quondam; note di Nicola Longo.

Milano: Garzanti.

CERVANTES SAAVEDRA, MIGUEL DE (1961)

La Galatea. Prólogo y notas de Juan Bautista Avalle-Arce. Madrid: Espasa-Calpe,

2 vols.

CERVANTES SAAVEDRA, MIGUEL DE (1981)

Don Quijote de la Mancha. Edición de Luis Andrés Murillo. Madrid: Castalia.

Page 95: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

92

CERVANTES SAAVEDRA, MIGUEL DE (1990)

«Las dos doncellas», in Novelas Ejemplares. Edición, introducción y notas de

Juan Bautista Avalle-Arce. Madrid: Castalia, pp.121-168.

CICERÓN (2005)

Catón el viejo o de la vejez. Lelio o de la amistad. Traducción de Vicente López

Soto. Barcelona: Editorial Juventud.

CORRAL, GABRIEL DE (1945)

La Cintia de Aranjuez. Edición de Joaquín de Entrambasaguas. Madrid: Gráf.

Gonzalez.

DELLA CASA, GIOVANNI (1991)

Galateo. A cura di Gennaro Barbarisi. Venezia: Marsilio.

ENCINA, JUAN DEL (2008)

Teatro Completo. Edición de Miguel Ángel Pérez Priego. Madrid: Cátedra.

ESPINEL ADORNO, JACINTO (1620)

El premio de la constancia y pastores de Sierra Bermeja. Madrid: Alonso Martín.

FERNÁNDEZ, LUCAS (1981)

Farsas y Églogas. Edición, introducción y notas de María Josefa Canellada.

Madrid: Castalia.

FICINO, MARSILIO (1986)

De amor: comentario a «El banquete» de Platón. Traducción y estudio preliminar

de Rocío de la Villa Ardura. Madrid: Tecnos.

GÁLVEZ DE MONTALVO, LUIS (2006)

El pastor de Fílida. Edición de Miguel Ángel Martínez San Juan. Málaga:

Publicaciones de la Universidad de Málaga.

GARCILASO DE LA VEGA (2006)

Poesía castellana completa. Edición de Consuelo Burell. Madrid: Cátedra.

GIL POLO, GASPAR (1988)

Diana enamorada. Edición, introducción y notas de Francisco López Estrada.

Madrid: Castalia.

GONZÁLEZ DE BOBADILLA, BERNARDO (1978)

Ninfas y pastores de Henares (Edición Facsímil). Madrid: Ministerio de Cultura,

Biblioteca Pública Insular.

Page 96: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

93

GUARINI, GIAMBATTISTA (1999)

Il Pastor Fido. A cura di Elisabetta Selmi; introduzione di Guido Baldassarri.

Venezia: Marsilio.

GUEVARA, ANTONIO DE (1975)

Menosprecio de corte y alabanza de aldea. Edición de Matías Martínez Burgos.

Madrid: Espasa-Calpe.

HÉSIODE (1979)

Les travaux et les jours. Le bouclier. Texte établi et traduit par Paul Mazon. Paris:

Les Belles Lettres.

HUARTE DE SAN JUAN, JUAN (1948)

Examen de Ingenios para las Ciencias. Buenos Aires: Espasa-Calpe.

LEÃO HEBREU (1968)

Diálogos de Amor. Introdução, tradução e notas de Reis Brasil. Lisboa: Livraria

Portugal, 2 vols.

LEÓN, FRAY LUIS DE (1989)

Poesía. Edición de Juan Alcina. Madrid: Cátedra.

LO FRASSO, ANTONIO DE (1573)

Los Diez Libros de Fortuna de Amor. Barcelona: Pedro Malo.

LONGUS (2009)

Daphnis and Chloé. Edited and translated by Jeffrey Henderson. Cambridge:

Harvard University.

LÓPEZ DE ENCISO, BARTOLOMÉ (1586)

Desengaño de Celos. Madrid: Francisco Sánchez.

MELO, D. FRANCISCO MANUEL DE (1996)

Carta de Guia de Casados. Edição de Pedro Serra. Coimbra: Angelus Novus.

MERCADER, GASPAR (1907)

El Prado de Valencia. Édition de Henri Mérimée. Toulouse: Édouard Privat.

MOLINA, TIRSO DE (1962)

«La fingida Arcadia», in Obras Dramáticas Completas. Edición de Blanca de los

Ríos. Madrid: Aguilar, vol.II, pp.1375-1432.

MONTEMAYOR, JORGE DE (2008)

La Diana. Edición de Asunción Rallo. Madrid: Ediciones Cátedra.

NEMESIANO (1997)

Eclogue. A cura di Giovanni Cupaiuolo. Napoli: Loffredo Editore.

Page 97: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

94

PÉREZ, ALONSO (2011)

Parte segunda de La Diana de Jorge de Montemayor, in Ana Estradé Sánchez,

"La segunda Diana", Alonso Pérez: estudio y edición. Madrid: Universidad

Complutense de Madrid, pp.6-293.

QUEVEDO, FRANCISCO DE (2007)

Poesía varia. Edición de James O. Crosby. Madrid: Cátedra.

RODRÍGUEZ DEL PADRÓN, JUAN (1986)

Siervo libre de amor. Edición, introducción y notas de Antonio Prieto. Madrid:

Castalia.

SANNAZARO, IACOPO (1990)

Arcadia. A cura di Francesco Erspamer. Milano: Mursia.

SÉNECA (2006)

Cartas a Lucilio. Traducción de Vicente López Soto. Barcelona: Editorial

Juventud.

SOREL, CHARLES (1972)

Le Berger Extravagant. Édition de Hervé D. Bechade. Genève: Slatkine Reprints.

SUÁREZ DE FIGUEROA, CRISTÓBAL (2002)

La constante Amarilis. Edição digital de María Asunción Satorre Grau.

Disponível em

http://parnaseo.uv.es/lemir/textos/Amarilis/index.htm [Consultado em 22-6-2012]

TASSO, TORQUATO (1985)

Aminta. A cura di Claudio Varese. Milano: Mursia.

THÉOCRITE (1960)

Bucoliques grecs. Traduction de Philippe E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres, 2

vols.

VEGA, LOPE DE (1968)

«Las fortunas de Diana», in Novelas a Marcia Leonarda. Edición de Francisco

Rico. Madrid: Alianza Editorial, pp.27-72.

VEGA, LOPE DE (1975)

La Arcadia. Edición, introducción y notas de Edwin S. Morby. Madrid: Castalia.

VEGA, LOPE DE (1987)

El villano en su rincón. Edición de Juan María Marín. Madrid: Cátedra.

Page 98: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

95

VEIGA, TOMÉ PINHEIRO DA (2009)

Fastigimia. Prefácio de Maria de Lurdes Belchior. Lisboa: Imprensa Nacional-

Casa da Moeda.

VIRGILE (1967)

Les Bucoliques. Les Géorgiques. Traduction de Maurice Rat. Paris: Garnier-

Flammarion.

B. Bibliografia Passiva

AA. VV. (1990)

Diccionario de Autoridades. Real Academia Española. Madrid: Gredos.

ALBUIXECH, LOURDES (2008)

«Deceptive Behavior in Sixteenth-Century Spanish Pastoral Romance»,

eHumanista, 11, pp. 186-207.

ALONSO CORTÉS, NARCISO (1933)

«En torno a Montemayor», in Miscelânea de estudos em honra de D. Carolina

Michaëlis de Vasconcellos. Coimbra: Imprensa da Universidade, pp.192-199.

ALONSO GAMO, JOSÉ MARÍA (1987)

Luis Gálvez de Montalvo: vida y obra de ese gran ignorado. Guadalajara:

Institución Provincial de Cultura Marqués de Santillana, Excelentísima

Diputación Provincial.

ALPERS, PAUL (1982)

«What is Pastoral?», Critical Inquiry, 8, pp. 437-560.

ARMAS, FREDERICK A. DE (1985)

«Caves of Fame and Wisdom in the Spanish Pastoral Novel», Studies in

Philology, nº82, pp.332-358.

Page 99: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

96

ARREDONDO, MARÍA SOLEDAD (1987)

«Las críticas a los libros de pastores: de la ironía a la parodia», Dicenda. Arcadia,

nº6, Estudios y textos dedicados a F. López Estrada, pp.349-358.

ARRIBAS, JULIÁN (2003)

«Una elegía funeral inserta en El pastor de Fílida», Calíope, 9, 1, pp. 35-66.

ARRIBAS, JULIÁN (2008)

«Tradición e innovación en El pastor de Fílida», in Erie: A orillas del lago. Juan

Fernández Jiménez (eds.). Erie: Asociación de Licenciados y Doctores Españoles

en Estados Unidos, pp. 37-50.

ARRIBAS, JULIÁN Y JESÚS PEÑALVA GIL (2004)

«El Canto de Erión inserto en la Fílida de Montalvo», in Memoria de la palabra.

Actas del VI Congreso de la Asociación Internacional Siglo de Oro. Burgos-La

Rioja, 15-19 de julio 2002. María Luisa Lobato y Francisco Domínguez Matito

(eds.). Madrid-Frankfurt am Main: Iberoamericana-Vervuert, vol.I, pp. 275-286.

ATKINSON, WILLIAM M. (1927)

«Studies in literary decadence: The pastoral novel», Bulletin of Spanish Studies, 4,

pp. 117-126.

AVALLE-ARCE, JUAN BAUTISTA (1959)

«The Diana of Montemayor: Tradition and Innovation», PMLA, vol.74, nº1, pp.1-

6.

AVALLE-ARCE, JUAN BAUTISTA (1975)

La novela pastoril española. Madrid: Istmo.

BARANDA, CONSOLACIÓN (1987)

«Novedad y tradición en los orígenes de la prosa pastoril española», Dicenda.

Arcadia, nº6, Estudios y textos dedicados a F. López Estrada, pp.359-371.

BAUZÁ, HUGO FRANCISCO (1993)

El imaginario clásico: Edad de Oro, Utopía y Arcadia. Santiago de Compostela:

Universidade, Servicio de Pulicacións e Intercambio Científico.

BAYO, MARCIAL JOSÉ (1970)

Virgilio y la pastoral española del Renacimiento (1480-1530). Madrid: Gredos.

BERRIO MARTÍN-RETORTILLO, PILAR (1994)

«Instrumentos musicales en El Pastor de Fílida», Dicenda, nº12, pp.11-18.

BERRIO MARTÍN-RETORTILLO, PILAR (1997)

«Música en El pastor de Fílida», Criticón, 69, pp. 101-110.

Page 100: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

97

BLÜHER, KARL ALFRED (1983)

Séneca en España. Madrid: Editorial Gredos.

CASALDUERO, JOAQUÍN (1973)

«La bucólica, la pastoril y el amor», in Estudios de literatura española. Madrid:

Gredos, pp. 64-69.

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2004)

«De las lágrimas a la risa: análisis de la decadencia de los libros de pastores», in

Memoria de la palabra. Actas del VI Congreso de la Asociación Internacional

Siglo de Oro. María Luisa Lobato y Francisco Domínguez Matito (eds.). Madrid-

Frankfurt am Main: Iberoamericana-Vervuert, vol.I, pp. 497-510.

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/p362/036950410692697952078

57/p0000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2005)

«Críticas a los libros de pastores en la literatura del Siglo de Oro» in Actas del

congreso «El Siglo de Oro en el nuevo milenio». 15-17 de septiembre de 2003,

Pamplona. Carlos Mata y Miguel Zugasti (eds.). Pamplona: Eunsa, vol.I, pp. 393-

404.

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/p362/013494208221379757586

80/p0000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2008)

«Los libros de pastores: un género de éxito en el Siglo de Oro», Per Abbat:

Boletín Filológico de Actualización Académica y Didáctica, Año III, núm. 6, pp.

9-28

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12604172006049324198624/p0

000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2009a)

«La edición moderna de textos del Siglo de Oro: el caso de El pastor de Fílida»,

in Lecturas y textos en el siglo XXI. Nuevos caminos en la edición textual.

Cristina Castillo Martínez, y José Luis Ramírez Luengo (coord.). Lugo: Axac, pp.

95-102.

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12604283116040434198624/p0

000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

Page 101: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

98

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2009b)

«La imagen de la mujer en los libros de pastores», in Lengua, Literatura y

Género. X Simposio Internacional de la Sociedad Española de Didáctica de la

Lengua y la Literatura. Baeza, 28-30 de noviembre de 2007. Francisco Gutiérrez

(ed.). Jaén: Universidad de Jaén, pp. 641-653.

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/p362/802727639894941667544

91/p0000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

CASTILLO MARTÍNEZ, CRISTINA (2010)

«La violencia en los libros de pastores», Revista de literatura, vol.72, nº143,

pp.55-68.

CASTRO, AMÉRICO (1987)

El pensamiento de Cervantes. Barcelona: Crítica.

CHEVALIER, MAXIME (1974)

«La Diana de Montemayor y su público en la España del siglo XVI», in Creación

y público en la literatura española. J. F. Botrel y S. Salaün (ed.). Madrid:

Castalia, pp. 40-55.

CHEVALIER, MAXIME (1976)

Lectura y lectores en la España de los siglos XVI y XVII. Madrid: Ediciones

Turner.

CHEVALIER, MAXIME (1980)

«Réflexions sur le personnage du berger dans le théâtre prélopesque», in Le genre

pastoral en Europe du XVe au XVIIe siècle. Actes du colloque international tenu à

Saint-Etienne du 28 septembre au 1er octobre 1978. Saint-Etienne: Publications de

l’Université, pp.71-75.

CIRURGIÃO, ANTÓNIO A. (1968)

«O Papel da Beleza na Diana de Jorge de Montemor», Hispania, vol.51, nº3,

pp.403-407.

COOPER, HELEN (1977)

Pastoral: mediaeval into Renaissance. Ipswich: Brewer.

COZAR, MARIA (1995)

«Les relations hommes-femmes dans El Cortesano de Luis Milán», in Relations

entre hommes et femmes en Espagne aux XVIe et XVIIe siècles. Augustin

Redondo (dir.). Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, pp.119-126.

Page 102: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

99

CRAWFORD, JAMES P. W. (1915)

The Spanish Pastoral Drama. Philadelphia: Publications of the University of

Pennsylvania.

CULL, JOHN T. (1984)

«Further Aspects of Violence in the Spanish Pastoral Novel», in El tema de la

violencia en las literaturas hispánicas. Proceedings of the 10th Annual

Conference on Hispanic Literatures at Indiana University of Pennsylvania. J. C.

Mendizábal (ed.). Indiana: Pennsylvania University Press, pp. 58-68.

CULL, JOHN T. (1987)

«The Curious Reciprocity of Country and City in Some Spanish Pastoral Novels»,

Crítica Hispánica, 9, pp. 159-174.

http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/13593620912463839622202/p0

000001.htm#I_0_ [Consultado em 22-6-2012]

CULL, JOHN T. (2003)

«Los espacios de la maravilla en los libros de pastores españoles», in Loca Ficta:

Los espácios de la maravilla en la Edad Media y Siglo de Oro. Ignacio Arellano

(ed.). Madrid-Frankfurt am Main: Iberoamericana-Vervuert, pp.165-188.

DAMIANI, BRUNO M. (1983)

La Diana of Montemayor as social and religious teaching. Lexington: University

Press of Kentucky.

DARST, DAVID H. (1969)

«Renaissance Platonism and the Spanish Pastoral Novel», Hispania, 52, pp. 384-

392.

DUDLEY, EDWARD (1967)

«Court and country: the fusion of two images of love in Juan Rodríguez’s El

siervo libre de amor», PMLA, vol. 82, nº 1, pp.117-120.

EGIDO, AURORA (1985)

«Sin poética hay poetas. Sobre la teoría de la égloga en el Siglo de Oro», Criticón,

nº30, pp.43-77.

EGIDO, AURORA (1987)

«La invención del amor en la Diana de Gaspar Gil Polo». Dicenda. Arcadia, nº6,

Estudios y textos dedicados a F. López Estrada, pp. 383-398.

ELIAS, NORBERT (1987)

A sociedade de corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial Estampa.

Page 103: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

100

EMPSON, WILLIAM (1960)

Some versions of Pastoral. New York: New Directions Paperbook.

ETTIN, ANDREW V. (1984)

Literature and the pastoral. New Haven: Yale University Press.

FERNÁNDEZ-CAÑADAS DE GREENWOOD, PILAR (1970)

Pastoral Poetics. The Uses of conventions in Renaissance Pastoral Romances:

Arcadia. La Diana, La Galatea, L’Astrée. Potomac: Studia Humanitatis.

FERRER VALLS, TERESA (1999)

«Bucolismo y teatralidad cortesana bajo el reinado de Felipe II», Voz y Letra,

vol.10, nº2, pp.1-18.

FERRERAS, JUAN IGNACIO (1987)

La novela en el siglo XVI, Madrid, Taurus.

FOSALBA VELA, EUGENIA (2002)

«Égloga mixta y égloga dramática en la creación de la novela pastoril», in La

égloga. VI Encuentro Internacional sobre Poesía del Siglo de Oro. B. L. Bueno

(ed.). Sevilla: Universidad de Sevilla, pp. 121-182.

FUCILLA, JOSEPH G. (1942)

«Sannazaro’s Arcadia and Gálvez de Montalvo’s El Pastor de Fílida», Modern

Language Notes, 57, pp. 35-39.

FUCILLA, JOSEPH G. (1947)

«Bernardo de Balbuena’s Siglo de Oro and its Sources», Hispanic Review, vol.15,

nº1, pp.101-119.

FUCILLA, JOSEPH G. (1953a)

«Sobre la Arcadia de Sannazaro y El Pastor de Fílida de Gálvez de Montalvo»,

Relaciones Hispanoitalianas, Anejos de la Revista de Filología Española, 59,

pp.71-76.

FUCILLA, JOSEPH G. (1953b)

«Gil Polo y Sannazaro», in Relaciones Hispanoitalianas. Madrid: Consejo

Superior de Investigaciones Científicas, pp. 63-70.

GERHARDT, MIA I. (1950)

La pastorale. Essai d‘analyse littéraire. Assen: Van Gorcum.

GIAVARINI, LAURENCE (2010)

La distance pastorale. Paris: Vrin.

Page 104: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

101

HENINGER, SIMEON K. (1961)

«The Renaissance perversion of pastoral», Journal of the History of Ideas, nº22,

pp. 254-261.

HERNÁNDEZ-PECORARO, ROSILIE (2006)

Bucolic Metaphors: History, Subjectivity, and Gender in the Early Modern

Spanish Pastoral. Chapel Hill: University of North Carolina – Department of

Romance Languages.

HURTADO TORRES, ANTONIO (1983)

La prosa de ficción en los siglos de oro. Madrid: Playor.

KEGEL-BRINKGREVE, E. (1990)

The echoing woods: bucolic and pastoral from Theocritus to Wordsworth.

Amsterdam: Gieben.

KRÜLS-HEPERMANN, CLAUDIA (1988)

«Spanish Pastoral Novels of the Sixteenth Century: In Search of a Vanished

Fascination», New Literary History, vo1.9, nº3, pp.581-595.

LIDA DE MALKIEL, MARÍA ROSA (1975)

La tradición clásica en España. Barcelona: Ariel.

LÓPEZ BUENO, BEGOÑA (2002)

«La égloga, género de géneros», in La égloga. VI Encuentro Internacional sobre

Poesía del Siglo de Oro. Begoña López Bueno (ed.). Sevilla: Universidad de

Sevilla, pp. 9-21.

LÓPEZ ESTRADA, FRANCISCO (1952)

«La influencia italiana en La Galatea de Cervantes», in Comparative Literature,

nº4, pp.162-166.

LÓPEZ ESTRADA, FRANCISCO (1970)

«Prólogo», in Jorge de Montemayor, La Diana. Madrid: Espasa-Calpe, pp. IX-

CIII.

LÓPEZ ESTRADA, FRANCISCO (1974)

Los libros de pastores en la literatura española. Madrid: Gredos.

LÓPEZ ESTRADA, FRANCISCO, M. S. CARRASCO URGOITI, Y F. CARRASCO (2001)

La novela española en el siglo XVI. Madrid-Frankfurt: Iberoamericana-Vervuert.

MARINELLI, PETER V. (1971)

Pastoral. London: Methuen.

Page 105: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

102

MARNOTO, RITA (1996)

A Arcadia de Sannazaro e o bucolismo. Coimbra: Faculdade de Letras.

MARTÍNEZ SAN JUAN, MIGUEL ÁNGEL (2001)

«L’Arcadia, Il Cortigiano y El pastor de Fílida: entre la autobiografía, la

intertextualidad y la emulación», Cuadernos de Filología Italiana, nº8, pp. 115-

131.

MARTÍNEZ SAN JUAN, MIGUEL ÁNGEL (2003)

Estudio y edición de “El pastor de Fílida” por Luis Gálvez de Montalvo. Tesis

Doctoral. Madrid: Universidad Complutense.

http://eprints.ucm.es/tesis/19972000/H/3/H3065501.pdf [Consultado em 22-6-

2012]

MAYANS Y SISCAR, JUAN ANTONIO (1792)

«Prólogo», in Luis Gálvez de Montalvo, El Pastor de Fílida. Valencia: Salvador

Faulí, pp. I-LXXXIV.

MENÉNDEZ PELAYO, MARCELINO (1962)

Orígenes de la novela. Enrique Sánchez Reyes (ed.). Madrid: Consejo Superior de

Investigaciones Cientificas, vol.2.

MILHOU-ROUDIÉ, ANNE (1995)

«De la concorde à l’amour conjugal: les humanistes espagnols et le 7e

sacrement», in Relations entre hommes et femmes en Espagne aux XVIe et XVIIe

siècles. Augustin Redondo (dir.). Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, pp.11-

19

MORENO BÁEZ, ENRIQUE (1955)

«Prólogo» in Jorge de Montemayor, Los siete libros de la Diana. Madrid: Real

Academia Española. Selecta de Clásicos Españoles, pp. XI-LIX.

MUJICA, BARBARA (1976)

«Violence in the Pastoral Novel from Sannazaro to Cervantes», Hispano-Italic

Studies, nº1, pp. 39-55.

MUJICA, BARBARA (1986)

Iberian Pastoral Characters. Washington: Scripta Humanistica.

ORIOL SERRÉS, CARIDAD (1992)

«Tras las huellas de Juan del Encina», Rilce, vol.8, nº1, pp. 68-90.

Page 106: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

103

PARKER, ALEXANDER A. (1986)

La filosofía del amor en la literatura española 1480-1680. Madrid: Cátedra.

PERRY, THEODORE A. (1969)

«Ideal love and human reality in Montemayor’s La Diana», Publications of the

Modern Language Association of America, nº84, pp. 227-234.

POGGIOLI, RENATO (1975)

The Oaten Flute: Essays on Pastoral Poetry and the Pastoral Ideal. Cambridge:

Harvard University Press.

RENNERT, HUGO A. (1892)

«The Spanish Pastoral Romances», Publications of the Modern Language

Association of America, vol.7, nº8, pp.1-119.

REYES CANO, ROGELIO (1973)

La Arcadia de Sannazaro en España. Sevilla: Universidad de Sevilla.

RHODES, ELIZABETH (1989)

«Sixteenth-century Pastoral Books. Narrative Structure and La Galatea of

Cervantes», Bulletin of Hispanic Studies, vol.66, nº 4, pp. 351-360.

RODRÍGUEZ MARÍN, FRANCISCO (1927)

La Fílida de Gálvez de Montalvo. Madrid: Tipografía de la Revista de Archivos,

Bibliotecas y Museos.

ROSENMEYER, THOMAS G. (1969)

The Green Cabinet: Theocritus and the European Pastoral Lyric. Los Angeles:

University of California Press.

SILES ARTÉS, JOSÉ (1972)

El arte de la novela pastoril. Valencia: Albatros.

SOLÉ-LERIS, AMADEU (1980)

The Spanish Pastoral Novel. Boston: Twayne.

SOUVIRON LÓPEZ, BEGOÑA (1997)

La mujer en la ficción arcádica. Madrid-Frankfurt am Main: Iberoamericana-

Vervuert.

SUBIRATS, JEAN (1968)

«La Diane de Montemayor, roman à clef?», in Études ibériques et latino-

américaines, IVe Congrès des Hispanistes Français (Poitiers, 18-20 mars 1967).

Paris: Presses Universitaires de France, pp. 105-118.

Page 107: UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE ...repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7435/1/ulfl127421_tm.pdf · surpreendente capacidade de improviso, devo, enfim, a chave-de-prata

104

VECCE, CARLO (2006)

«Émergence du sujet dans le paysage bucolique (Sannazar et Théocrite)», in

Nature et Paysages. L’émergence d’une nouvelle subjectivité à la Renaissance.

Actes des Journées d’Étude organisées pas l’École Nationale des Chartes (26

mars 2004 et 15 avril 2005). Dominique de Courcelles (dir.). Paris: École

Nationale des Chartes, pp.77-93.

WILLIAMS, RAYMOND (1973)

The country and the city. London: Chatto & Windus.