no canto do palco, um piano. ouvem-se as primeiras notas ...€¦ · de improviso em improviso...

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No canto do palco, um piano. Ouvem-se as primeiras notas de Bernardo Sassetti, envolvidas pela voz de Eunice Muñoz que recita Sofia de Mello Breyner. “Digo: Lisboa quando atravesso vinda do Sul o rio e a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse” escreveu a poetisa. A luz desce e o Tejo impõe-se. Carlos do Carmo e Camané estão juntos em palco. Único. Memorável. De improviso em improviso canta-se o Fado, acompanhado à guitarra e pelos músicos da Sinfonieta de Lisboa. E soltam-se aplausos. Nas vésperas do concerto que encheu os Jardins de Belém, marcámos uma conversa com Carlos do Carmo. Com tempo falámos da sua vida, do Fado e desse oficio que é ser fadista. GRANDE ENTREVISTA Vanda Jorge: O Carlos nasceu na Mouraria, viveu na Bica, cantou no Bairro Alto e com o Fado conheceu o Mundo. Mas Lisboa ainda é a sua ‘menina e moça, a cidade mulher da sua vida’? Carlos do Carmo: Há pouco dava uma entrevista junto à Torre de Belém e estava precisamente a pensar na Magia de Lisboa, nesta que foi a terra das chegadas e das partidas. Conheço muitas cidades mas Lisboa tem um encanto particular, mesmo os cépticos, aqueles que todos os dias anunciam as mazelas, eles que prestem mais atenção a Lisboa. Eu sou um apaixonado e ena- morado pela cidade. VJ: Ainda é nítida para si aquela noite em que lhe pediram para cantar aquele que viria a ser o ser pri- meiro Fado? CC: Com nitidez não me lembro porque sou pés- simo para datas, só me lembro de quando acabei de cantar os meus amigos baterem muitas palmas e de dizerem que eu cantava bem o Fado e que não imitava a minha mãe. Sendo filho de quem sou, se eu fosse uma xerox da grande fadista que foi a minha mãe, não valia a pena ter escolhido esta carreira. VJ: É essa noite que marca um destino que não era aquele que os seus pais tinham desejado para si? CC: A fronteira muito clara que determina a minha vida foi a morte prematura do meu pai. Ele e a minha mãe tinham fundado uma casa de fados em 1947, o meu pai morre em 1962, e eu tive que gerir a Casa de Fados. A minha mãe era uma grande artista mas não era gestora e eu fiquei a dinamizar o espaço, era uma belíssima casa de fados desta cidade. VJ: Passados todos estes anos como vê as palavras do seu pai quando que lhe dizia ‘gosto de te ouvir mas não te faças artista, para artista já me basta aturar a tua mãe’. Ele era convicto no que dizia? CC: Sim porque era uma vida insuportável. A relação da minha mãe com o meu pai era muito difícil, porque viver com artistas não é gra- ça nenhuma, e se conversar com a minha mulher ela explica-lhe. O meu pai dizia-me ‘depois de aturar a tua mãe uma vida inteira, o que mais me faltava era agora ter o meu filho artis- ta’, e dizia isto com muita convicção. Mas não chegou a conhecer o artista, o que eu tenho muita pena. texto Vanda Jorge > fotos Augusto Brázio «Lembro-me que em 1968 gravei o fado ‘Por Morrer uma andorinha’ e à porta da Casa de Fados as pessoas faziam fila por turnos para me ouvir cantar. Talvez o que me leve a durar seja esse respeito grande que tenho por uma entidade que aparentemente é anónima mas que não é tão anónima quanto pensamos» Carlos do Carmo ESPIRAL DO TEMPO > 55 Carlos do Carmo Silêncio... que se vai falar de Fado

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Page 1: No canto do palco, um piano. Ouvem-se as primeiras notas ...€¦ · De improviso em improviso canta-se o Fado, acompanhado à guitarra e pelos músicos da Sinfonieta de Lisboa. E

No canto do palco, um piano. Ouvem-se as primeiras notas de Bernardo Sassetti, envolvidas pela voz de Eunice Muñoz que recita

Sofia de Mello Breyner. “Digo: Lisboa quando atravesso vinda do Sul o rio e a cidade a que chego abre-se como se do seu nome

nascesse” escreveu a poetisa. A luz desce e o Tejo impõe-se. Carlos do Carmo e Camané estão juntos em palco. Único. Memorável.

De improviso em improviso canta-se o Fado, acompanhado à guitarra e pelos músicos da Sinfonieta de Lisboa. E soltam-se aplausos.

Nas vésperas do concerto que encheu os Jardins de Belém, marcámos uma conversa com Carlos do Carmo. Com tempo falámos da

sua vida, do Fado e desse oficio que é ser fadista.

GRANDE ENTREVISTA

Vanda Jorge: O Carlos nasceu na Mouraria, viveu na

Bica, cantou no Bairro Alto e com o Fado conheceu o

Mundo. Mas Lisboa ainda é a sua ‘menina e moça, a

cidade mulher da sua vida’?

Carlos do Carmo: Há pouco dava uma entrevistajunto à Torre de Belém e estava precisamente apensar na Magia de Lisboa, nesta que foi a terradas chegadas e das partidas. Conheço muitascidades mas Lisboa tem um encanto particular,mesmo os cépticos, aqueles que todos os diasanunciam as mazelas, eles que prestem maisatenção a Lisboa. Eu sou um apaixonado e ena-morado pela cidade.

VJ: Ainda é nítida para si aquela noite em que lhe

pediram para cantar aquele que viria a ser o ser pri-

meiro Fado?

CC: Com nitidez não me lembro porque sou pés-simo para datas, só me lembro de quando acabeide cantar os meus amigos baterem muitas palmase de dizerem que eu cantava bem o Fado e quenão imitava a minha mãe. Sendo filho de quemsou, se eu fosse uma xerox da grande fadista quefoi a minha mãe, não valia a pena ter escolhidoesta carreira.

VJ: É essa noite que marca um destino que não era

aquele que os seus pais tinham desejado para si?

CC: A fronteira muito clara que determina aminha vida foi a morte prematura do meu pai.Ele e a minha mãe tinham fundado uma casa defados em 1947, o meu pai morre em 1962, e eutive que gerir a Casa de Fados. A minha mãe erauma grande artista mas não era gestora e eufiquei a dinamizar o espaço, era uma belíssimacasa de fados desta cidade.

VJ: Passados todos estes anos como vê as palavras do

seu pai quando que lhe dizia ‘gosto de te ouvir mas

não te faças artista, para artista já me basta aturar a

tua mãe’. Ele era convicto no que dizia?

CC: Sim porque era uma vida insuportável.A relação da minha mãe com o meu pai eramuito difícil, porque viver com artistas não é gra-ça nenhuma, e se conversar com a minha mulherela explica-lhe. O meu pai dizia-me ‘depois de aturar a tua mãe uma vida inteira, o que mais me faltava era agora ter o meu filho artis-ta’, e dizia isto com muita convicção. Mas nãochegou a conhecer o artista, o que eu tenhomuita pena.

texto Vand a Jo rg e > fotos Augu s t o B r á z i o

«Lembro-me que em 1968 gravei o

fado ‘Por Morrer uma andorinha’

e à porta da Casa de Fados as

pessoas faziam fila por turnos

para me ouvir cantar. Talvez o

que me leve a durar seja esse

respeito grande que tenho por

uma entidade que aparentemente

é anónima mas que não é tão

anónima quanto pensamos»

Carlos do Carmo

ESPIRAL DO TEMPO > 55

Carlos do CarmoSilêncio... que se vai falar de Fado

Page 2: No canto do palco, um piano. Ouvem-se as primeiras notas ...€¦ · De improviso em improviso canta-se o Fado, acompanhado à guitarra e pelos músicos da Sinfonieta de Lisboa. E

A primeira referência foi a música popularbrasileira – Caymmi, Luís Gonzaga –, na adoles-cência entrou violentamente muito jazz – FranckSinatra, Tony Bennett, Ella Fitzgerald, DukeEllinghton – depois a canção italiana de texto e acanção francesa, Jacques Brell é uma marca muitopresente dentro de mim, e a força de Tom Jobim,Vinicius de Moraes, o Chico Buarque e a ElisRegina, que me deslumbrava e de quem fui ami-go. Isto tudo coexistia na minha cabeça, conjun-tamente com a minha mãe, a Maria Teresa deNoronha, o Alfredo Marceneiro e o Carlos Ra-mos. E claro os guitarristas, lembra-me de comogostava ouvir tocar o Jaime Santos, o Carva-lhinho, o Fernando Freitas e o Raul Nery. Quan-do canto, estou sempre a cantá-los a todos, razãopela qual não gosto de me repetir e razão por quefaço de cada espectáculo uma festa da alma.

VJ: E a Amália Rodrigues?

CC: A Amália é uma pessoa unânime,mas não erauma referência para mim como estas pessoas, sómais tarde veio a ser.

VJ: Que oficio é este de ser fadista?

CC: Cada vez mais me convenço que é a festa daalma. E não é obrigatório que seja dolorosa, nos-tálgica, porque pode também ser alegre, o fadotem componentes de alegria.

VJ: Por isso defende que o Fado deveria ser dançado

como noutros tempos?

CC: Sinto o fado como uma canção popular sólidae muito controversa, apresenta-se, em muitos as-pectos, como o fantasma dos portugueses e paramuita gente é uma canção que serve para desa-bafos, qualquer intelectual que acha que o Paísestá mal diz ‘é este o nosso triste fado’.Mas eu nãovejo o fado assim e sempre fui ouvido no mundocom respeito. Neste momento da vida, o fadoparece-me uma canção em aberto, onde muitascoisas belas podem vir a acontecer, sabendo queserá sempre um canto minoritário, seja do pontode vista do gosto, seja do ponto de vista dos inter-pretes,porque nós temos 10 milhões de portugue-ses mas cantar o fado, cantam 200.

VJ: Nessas viagens, sentiu-se como embaixador da

cultura portuguesa?

CC: Eu tenho muito medo disso porque pode sermal compreendido. Diria uma coisa que pode sercontroversa, os heróis do meu tempo não sãonem o Fado, nem algumas das figuras que sedestacaram nas várias áreas, mas sim os emi-grantes. Um milhão de portugueses que foi em-bora à procura de pão para países estranhos, quenão sabia uma palavra do idioma e construíramuma vida, conseguiram educar os filhos e ter obem-estar económico, esses são os heróis. Nãosão do ponto de vista estético os melhores em-baixadores porque a elite portuguesa tem algumarelutância em relação à emigração e acha-a umacoisa menor, mas a imagem negativa que existe láfora é pela inoperância dessa elite. Não me sintoembaixador de nada, o que me sinto sim é umportuguês orgulhoso de o ser.

VJ: O Carlos faz a ponte entre a geração da sua mãe

e a nova geração de fadistas. Como tem assistido a

este rejuvenescimento do Fado?

CC: Durante 15 a 20 anos, qualquer jornalistas queme entrevistava acabava por perguntar: “O Carlosacha que o Fado tem futuro, não pensa que vaiacabar?”, e eu invariavelmente dava a mesma res-posta: “não creio que vá acabar, precisa é que apa-reça quem o cante e quem o toque”. É o que estáa acontecer! O Fado tem ciclos neutros em queaparece pouca gente e estes ciclos em que aparecemuita gente. A triagem é o público que a faz, con-soante gostos, géneros e a forma como cada umgere o seu próprio espaço, a sua relação com o pú-blico e com esta vida que não é brincadeira. Esta-mos perante uma nova geração que continua aprojectar o fado, é a obrigação que tem! E a gera-ção a que eu pertenço, a obrigação que tem é derecebê-los com carinho, apoiá-los, e se eles quise-rem, fazer com eles o que os mais velhos fizeramconnosco, que é transmitir a nossa sabedoria.

VJ: E há abertura na nova geração para esses ensina-

mentos?

CC: Eu destaco duas pessoas na nova geração, nãosó pela carreira mas pelo modo como se compor-

VJ: É por isso que aos 16 anos o jovem Carlos parte

para a Suíça para estudar línguas? Diz que olhava

para o Fado com um certo snobismo...

CC: É aquela ‘parvoeira’ que resulta da pseudo as-censão social. O meu pai era um empresário e aminha mãe uma artista e puseram-me a estudarnum colégio milionário na Suíça onde aprendiaalemão,francês, inglês, italiano e espanhol.Era umcolégio de elite,anualmente vinham examinadoresda Universidade de Heidelberg, da de Salamanca,de Cambridge, de Florença, avaliar-nos. Eu co-mecei a entrar num processo de conviver com me-ninos ricos do pós-guerra, e quando regressei aLisboa,achava-me um ‘ser muito importante’,masdepressa voltei a pôr os pés na terra.

VJ: Quando regressa a ideia era começar a gerir a

Casa de Fados. Quando é que surge o artista?

CC: O artista teve que coexistir com o hoteleiro.Era muito desgastante, tive anos da minha vidasem férias ou dias de descanso, e às vezes penali-zo-me de ter sido um pai tão ausente. Mas o

artista foi-se criando, de certa forma, acho que oimpulso forte que recebi foi do público. Quando,há 26 anos, vendemos a Casa de Fados, passei adedicar-me a tempo inteiro à vida artística.

VJ: Em entrevistas, fala recorrentemente do ‘seu

público’ e do respeito que tem por ele...

CC: O público foi sempre o grande estímulo paraeu continuar. Era ele que me empurrava para avida artística com mais convicção. Nos primeirosanos eu não queria profissionalizar-me masquando percebi que o público o queria, aí foiimparável. Lembro-me que em 1968 gravei ofado ‘Por Morrer uma andorinha’ e à porta daCasa de Fados as pessoas faziam fila por turnospara me ouvir cantar. Talvez o que me leve adurar seja esse respeito grande que tenho poruma entidade que aparentemente é anónima,mas que não é tão anónima quanto pensamos.

VJ: Que influências musicais tem um fadista?

CC: Eu sou uma amálgama de muitas influências.

«É uma pessoa extremamente

delicada e bem educada, tem

um sentido de humor fantástico,

tem muitas histórias para contar.

Estar ao pé do Carlos é uma

noite muito bem passada, é um

momento bastante privilegiado

e enriquecedor»

Camané

«A minha amizade com o Carlos

do Carmo vem de muito longe,

conheci-o ainda rapaz quando

éramos os dois muito novos,

e a amizade manteve-se porque

o Carlos é um homem muito

especial. É um homem de grande

delicadeza e tem aquela voz

maravilhosa que ele usa cada

vez melhor com uma grande

experiência. Ele é uma criatura

brilhante, um grande profissional,

uma pessoa de excepção»

Eunice Munoz

«Não conheço canção nenhuma

que viva tão intensamente a

dependência da trilogia: público

que escuta, instrumentista que

toca e solista que canta, se uma

destas três pontas do triângulo

falha, tudo falha»

Carlos do Carmo

Carlos do Carmo

56 < ESPIRAL DO TEMPO

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tranha Forma de Vida’, que gravei há 43 anos.Teve imenso graça porque ela pensava que eraum homem, e de repente, disseram-lhe “é aquelemiúdo”. Atirei-me de cabeça, fiquei completa-mente desvairado quando a vi, começámos a na-morar, casámos seis meses depois e tivemos trêsfilhos. Temos tido naturalmente as nossas gravescrises de casamento, como tem qualquer casal,mas dizer que é a mulher da minha vida é ridícu-lo, ela é o pilar da minha vida.

VJ: Ela perdoava-lhe as ‘noitadas’ nas casas de Fado,

o lado talvez boémio inerente à vida de artista?

CC: Tem que lhe perguntar a ela, porque as mu-lheres são insondavelmente misteriosas. Eu acre-

dito que sim, ela é uma pessoa muito generosa,tem um carácter como dificilmente conhecialguém na vida. Em todos estes anos, o nossoamor foi passando por muitas metamorfoses e elaconhece-me como ninguém e eu conheço-acomo ninguém. Ela esteve muitos anos à frentede um entendimento curioso, percebeu antes demim que tinha casado com um artista, e portan-to, em vez de actuar como a esmagadora maioriadas mulheres que se cansa e vai embora, ela foi deuma firmeza muito grande, e isso é impagável.

VJ: Os seus netos já gostam de o ouvir cantar?

CC: São muito críticos, são como os meus filhos,tenho uma família muito crítica. As minhas duas

tam comigo, que são a Mariza e o Camané. Sãodois jovens que gostam genuinamente de falarcomigo sobre o Fado e sobre a vida, e é recipro-co. Aprendemos muito. A minha geração tinha ocuidado de procurar os mais velhos, de querersaber de onde vinha todo este mistério, que nãobasta escrevê-lo é preciso conhecê-lo, o fado temmuito de tradição oral.

VJ: É um cliché pensar que o Fado é entendido pelo

mundo fora, com o mesmo sentido?

CC: No século XX tivemos uma fadista com umavoz que existe uma num século chamada AmáliaRodrigues. Além de ser uma excelente voz e umaexcelente intérprete, era uma mulher muito inte-ligente, capaz de criar uma imagem pessoal, quenão é uma imagem com a qual eu me identificoprofundamente, porque é um fado negro, comoela que era uma pessoa triste.

VJ: Esse não é o seu Fado...

CC: Eu não sou essa pessoa triste,o meu fado é maisligado ao fado corrido,é uma visão mais aberta dascoisas,mas essa marca ‘amaliana’profunda,faz comque hoje no estrangeiro as pessoas estejam conven-cidas que quem canta o fado são só mulheres. Ecomo na nova geração apareceram sete ou oitomulheres, e só um ou dois homens, as pessoasficam com essa imagem: apaga-se a luz, há um

grande recolhimento, há um esgar no olhar, umagarrar de um xaile,uma imagem de tristeza e nos-talgia e temos aí o fado.É apenas uma imagem.Euacredito muito nos conteúdos e quando se cantacom muita sinceridade e profundidade em por-tuguês, até um finlandês gosta de fado.

VJ: O Carlos ‘entrega-se ao extremo’ , e o público, já

o surpreendeu?

CC: Se me perguntar do ponto de vista humano, epelo peso que teve de divulgação do meu trabal-ho, foi a primeira vez que cantei no Olympia, emParis.Recordo-me com muita alegria das minhasduas primeiras noites lá, e recordo-me do que sepassou no final do segundo espectáculo. Depoisde ter recebido muita gente, reparei que, ao cantodo meu camarim, estava um homem que aguar-dava a saída de todos. Dirigiu-se a mim, era umhomem muito bem vestido, com mãos calejadasdo trabalho manual, e que me contou a históriada vida dele em França; que tinha sido muitodifícil, de alguma humilhação e no final, disse-me: “Nunca fiz isto a nenhum artista, nunca vima nenhum camarim, mas queria dizer-lhe que fizas pazes com França, por sua causa, hoje”. Nuncamais me esqueci disto.

VJ: Foi também o Fado que o juntou à sua mulher.

CC: Ela quis conhecer o fadista que cantava o ‘Es-

netas têm nitidamente uma veia artística e o meuneto mais velho não toca à minha frente, mas osmeus amigos dizem que toca admiravelmente vio-la, e o outro também tem bom ouvido, acho todoseles têm os genes passados. Quando não gostamsão os primeiros a dizer “avô não gostei deste fado”com aquela crueza que as crianças têm,mas é umamaravilha descobrir o mundo através deles.

VJ: O coração já lhe pregou uma partida. Depois desse

percalço está mais disponível para viver?

CC: Quem esteve a falar com a morte, muda com-pletamente. E é o meu caso, tenho uma maneiramuito mais tolerante de estar, não gosto de fazerjuízos de valor de ‘dedo duro’ como dizem osbrasileiros, agora relativizo e não dou muita im-portância. Gosto da vida, acho-a uma aventuramuito interessante e temos que ser persistentes,sobretudo, nos tempos de crise. É preciso estim-ular o lado bom do ser humano e não ficarmosagarrados ao lado perverso que há em todos nós.Por outro lado, provocou em mim uma situaçãomuito curiosa; morro todos os dias e nasço todosos dias, sou uma pessoa completamente prepara-da para morrer.

«Diria uma coisa que pode ser controversa, os heróis do meu tempo

não são nem o Fado, nem algumas das figuras que se destacaram

nas várias áreas, mas sim os emigrantes. Um milhão de portugueses

que foi embora à procura de pão para países estranhos»

Carlos do Carmo

ESPIRAL DO TEMPO > 59

«O Carlos teve a inteligência de

fazer um percurso em que soube

escolher minuciosamente, desde

o princípio, os poemas que queria

cantar. É um homem que lê muito,

é um estudioso, tem o dom da

palavra e sabe dizê-la como

ninguém. Ouvir o Carlos do Carmo

em português faz-me lembrar

o Franck Sinatra, é a voz e a

palavra, o saber dizer é o Carlos

do Carmo»

Mariza

«O Carlos é um homem culto

e com uma grande facilidade de

expressão. Tem com ele uma grande

delicadeza que faz com que nunca

se esqueça de ninguém.

Nos espectáculos não se esquece

dos que não se vêem e dos que

estão em palco. Tem uma grande

facilidade em exprimir-se, é um

homem que tem andado por toda

a parte e Portugal fica muito

bem representado por ele. É bom

haver pessoas como o Carlos,

que conseguem essa coisa

extraordinária de estar sempre

no lugar onde devem estar

e privilegiar sempre o seu País”

Eunice Munoz

«Quanto à tristeza do fado apetece

sublinhar a alegria de ver um

trabalho consistente que é feito

ao longo de anos e anos, e nós

sabemos que isso não é nada fácil

nestas profissões de artistas de

grande risco»

Júlio Pomar

Carlos do Carmo

Page 4: No canto do palco, um piano. Ouvem-se as primeiras notas ...€¦ · De improviso em improviso canta-se o Fado, acompanhado à guitarra e pelos músicos da Sinfonieta de Lisboa. E

VJ: Completa este ano 43 anos de Carreira. Até quan-

do irá cantar?

CC: Não tenho uma meta mas conto-lhe umahistória passada ontem. Eu e o Camané estive-mos a ensaiar com a sinfonieta de Lisboa, quan-do os músicos se levantaram, um dos violonistasdisse-me “Carlos do Carmo, você não se refor-me está bem?” eu perguntei-lhe “porque é que me está a dizer isso?” e ele diz-me “porque você não tem o direito de se reformar, está a cantar de uma maneira...”. Respondi-lhe “estoumuito tocado porque você é um músico e tem uma opinião especial, mas eu gostava de irde modo próprio e não quando as pessoasestivessem saturadas de me ouvir e me achassem

um artista decadente”. Disse-me apenas “con-tinue que você vai saber exactamente qual é omomento certo”.

VJ: Emocionou-se?

CC: Ouvi isto ontem e fiquei inquieto. É muitoestimulante mas tenho noção que tenho 66 anosde idade e 43 a cantar em Portugal, mas quandovou cantar as pessoas são muito queridas comigo.A minha família vai-me ajudar porque são muitoseveros e críticos, seguramente vão-me dizer qualé o momento para me afastar. Estou, dentro daminha cabeça e do meu mundo, a criar alternati-vas para continuar ligado profundamente ao fado,sem sentir o vazio de não cantar. ET

«Aprendi muito com o Carlos. Temos registos diferentes quando

cantamos, mas muito da minha forma de cantar e da forma como

eu aprendi a cantar e a tocar as pessoas, aprendi com o Carlos

do Carmo»

Camane

Um registo do Tempo

A Raymond Weil e a Torres Distribuição associa-

ram-se numa homenagem ao maior intérprete do

Fado português: Carlos do Carmo. O ‘Don Giovanni

Two Times Zone Carlos do Carmo’ é apresentado

numa versão em ouro rosa dotada de um mostra-

dor com dois fusos horários e um fundo que, para

além de deixar entrever o mecanismo automá-

tico, contém a gravação dos dois primeiros acor-

des do tema ‘Estranha Forma de Vida’. A edição é

limitada a 43 exemplares, os anos de carreira do

cantor, e o relógio está disponível num luxuoso

estojo personalizado que é acompanhado de um

bilhete duplo para o concerto de Carlos do Carmo.

Parte da receita desta edição limitada reverte a

favor da Casa do Artista. «O relógio é uma ideia

que me lisonjeia, é muito simpático apresenta-

rem uma colecção restritíssima de uma marca tão

conceituada com o meu nome. Em cima disso,

surgiu a ideia de organizar um concerto, em que

o meu trabalho não terá custos, e pegar na receita

e entregar a uma instituição genial que é a Casa

do Artista. Sou sócio muito antes da sua fundação

e considero-a das coisas mais sérias que se fazem

neste país em relação às pessoas mais velhas»

refere Carlos do Carmo.

ESPIRAL DO TEMPO > 61