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1 UNIVERSIDADE DE COIMBRA Faculdade de Medicina Mestrado em Cuidados Continuados e Paliativos SOBRE DIGNIDADE E MORTE: A EXPERIÊNCIA DE PROFISSIONAIS EM CUIDADOS PALIATIVOS NA REALIDADE DE UM SERVIÇO DE ONCOLOGIA PEDIÁTRICA DO BRASIL FERNANDA GOMES LOPES Coimbra, Portugal 2015

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    UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    Faculdade de Medicina

    Mestrado em Cuidados Continuados e Paliativos

    SOBRE DIGNIDADE E MORTE: A EXPERINCIA DE PROFISSIONAIS EM

    CUIDADOS PALIATIVOS NA REALIDADE DE UM SERVIO DE

    ONCOLOGIA PEDITRICA DO BRASIL

    FERNANDA GOMES LOPES

    Coimbra, Portugal

    2015

  • 2

    FERNANDA GOMES LOPES

    SOBRE DIGNIDADE E MORTE: A EXPERINCIA DE PROFISSIONAIS EM

    CUIDADOS PALIATIVOS NA REALIDADE DE UM SERVIO DE

    ONCOLOGIA PEDITRICA DO BRASIL

    Dissertao apresentada Faculdade de Medicina da

    Universidade de Coimbra, para obteno do grau de

    Mestre em Cuidados Continuados e Paliativos.

    Orientador: Marlia Dourado

    Co-orientador: Antnio Barbosa

    Coimbra, Portugal

    2015

  • 3

    RESUMO

    O cncer considerado um problema de sade pblica, de acordo com o Instituto

    Nacional do Cncer, e encontra-se entre as dez maiores causas de morte do mundo,

    segundo a Organizao Mundial da Sade. Trata-se de uma doena crnica e

    estigmatizada como fatal, envolta por sentimentos adversos, como medo e angstia,

    tanto nos pacientes quanto em seus familiares. Quando ocorre em crianas, os

    sentimentos intensificam-se, possivelmente por, culturalmente, essa idade no ser

    associada a aspectos negativos e a morte. Esse momento torna-se mais delicado quando

    se constata o prognstico desfavorvel e o paciente inserido na equipe de cuidados

    paliativos. Todo esse processo de cuidados pressupe o acompanhamento de uma

    equipe multiprofissional, preparada tcnica e emocionalmente, para lidar com todas as

    nuances envolvidas na doena, inclusive com a morte, que se faz presente

    cotidianamente. O presente trabalho visa compreender a experincia da promoo da

    dignidade no morrer vivenciada pelos profissionais de uma equipe de cuidados

    paliativos em oncologia peditrica. Para o alcance desse objetivo geral, busca-se

    especificamente identificar o que entendem os profissionais de sade sobre os cuidados

    paliativos e sua prtica, compreender como os profissionais lidam com o processo de

    morrere reconhecer os recursos e estratgias utilizados pelos profissionais de sade para

    trabalhar com crianas em cuidados paliativos.Baseia-se em uma pesquisa de campo,

    realizada a partir de entrevistas semi-estruturadas, com nove profissionais da equipe de

    cuidados paliativos, de um hospital de referncia em oncologia peditrica do estado do

    Cear/Brasil. Com carter descritivo e abordagem qualitativa, utiliza para anlise dos

    dados, a hermenutica crtica de Gadamer. Nos resultados da pesquisa, constata-se que a

    maioria dos profissionais entrevistados, compreendem o conceito de cuidados paliativos

    e seus princpios, e estabelecem, em sua prtica, condutas condizentes com os objetivos

    da rea, priorizando a qualidade de vida e proporcionando maior dignidade no processo

    de morrer dos pacientes. Alm disso, demonstram encontrar bons recursos de

    enfrentamento que lhes servem como suporte para o trabalho cotidiano com a morte.

    Contudo, apresentam dificuldade em lidar com a temtica, referenciando sentimentos

    negativos e evitando o contato com o assunto, fatores que podem trazer implicaes

    sua prtica cotidiana.Acredita-se que essas dificuldades sejam evidenciadas, no

    somente por se tratar de um assunto estigmatizado cultural e socialmente, mas tambm

    devido falta de formao terica e emocionalpara o trabalho com essas questes.

    Torna-se evidente, portanto, a necessidade de criao de espaos formativos em prol da

    capacitao terica dos profissionais para temticas que envolvem a morte, bem como, a

    criao de momentos para a elaborao das demandas emocionais suscitadas. Com

    intuito de contribuir, de maneira efetiva, na melhoria do servio prestado, essa pesquisa

    prope a criao desses dois espaos, para que os profissionais possam exprimir seus

    sentimentos, compartilhar percepes, emoes e pensamentos, visando a minimizao

    das dores e dvidas diante das perdas sentidas constantemente. Essa proposta deve

    fortalecer a coeso da equipe, tornando-a mais preparada, tanto terico quanto

    emocionalmente, para trabalhar com a morte em seu cotidiano de trabalho.

    Palavras-chave: Cuidados Paliativos; Oncologia Infantil; Morte Digna.

  • 4

    ABSTRACT

    Cancer is considered a public health problem, according to the National Cancer

    Institute, and it is among the ten main causes of death in the world, according to the

    World Health Organization. It is a chronic and stigmatized disease as well as fatal,

    surrounded by adverse feelings as fear and anguish, both in patients and in their

    families. When it occurs in children, feelings are more intense, possibly because, in a

    cultural perspective, this age is not associated with negative aspects and death. This

    moment becomes even more delicate when an unfavorable prognosis is concluded and

    the patient hasto enter the palliative care team. This whole process of care requires the

    monitoring of a multidisciplinary team, technically and emotionally prepared to deal

    with all the nuances involved in the disease, including death, which is currently present.

    This study aims to understand the experience of promoting dignity in death, experienced

    by a professional team of palliative care in pediatric oncology. To achieve this overall

    objective, we aim to specifically identify what health professionals comprehend about

    palliative care and its practice, to understand how professionals deal with the dying

    process and to recognize the resources and strategies used by these professionals to

    work with children in palliative care. This study is based on a field of research,

    conducted from semi-structured interviews, which were held bynine professionals of a

    palliative care team of a reference hospital in pediatric oncology in Cear/Brazil. It has

    a descriptive content and qualitative approach, and ituses as data analysis the critical

    hermeneutics of Gadamer. In the results of this research it appears that most of the

    professionals interviewed understands the concept of palliative care and its principles,

    and establish, in their practice, they conduct in line with the objectives of the area,

    giving priority to quality of life and providing a greater dignity in the process of dying

    of the patients. They also show to find good facing resources, which serve them as a

    support for the daily work with the death. However, they have difficulty to deal with

    thisissue, referencing negative feelings and avoiding contact with the subject, factors

    that can have implications in their daily practice. It is believed that these difficulties are

    evidenced not only because it is a stigmatized matter in a cultural and social

    perspective, but also due to the lack of theoretical and emotional training to work with

    these issues. It is thereforeclear that there is the need to create training spaces in order

    to promote the theoretical training of professionals in themes that involves issues as

    death, as well as the creation of spaces that allowsprofessionals to elaborate their

    emotional demands. To effectivelycontribute with the improvement of the

    providedservice, this research proposes the creation of these two spaces so that

    professionals can express their feelings, share perceptions, emotions and thoughts, in

    order to decrease pain and doubts in the face of losses they constantlyfeel. This proposal

    should strengthen the team cohesion, turningit more prepared, both theoretical and

    emotionally in order to work with death in their daily work.

    Key-words: Palliative Care; Childrens Oncology; Dignified Death.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A gratido o nico tesouro dos humildes

    (William Shakespeare)

    Serei eternamente grata a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contriburam,

    no somente para que essa dissertao se concretizasse, mas para que eu amadurecesse,

    profissional e pessoalmente, com a finalizaodesse mestrado.Sinto uma enorme

    satisfao em construir e compartilhar essa conquista com vocs. Por todas as trocas e

    crescimento, esse trabalho fruto do nosso esforo, e por isso: Gratido!

    Aos meus orientadores, Professora Doutora Marlia Dourado e Professor Doutor

    Antnio Barbosa que assumiram o desafio de estabelecer a orientao desse estudo

    distncia, sempre respeitando minhas escolhas e acolhendo minhas dvidas

    prontamente, com sugestes e orientaes essenciais a construo desse trabalho.

    A Deus, a quem recorri em momentos de angstia, mas tambm de agradecimento, me

    fortalecendo para essa construo. Faltam-se palavras e transborda gratido.

    Aos meus pais e meu irmo, por terem me ajudado sempre na construo de quem eu sou e

    busca pelos meus sonhos, mostrando a potencialidade que possuo, e me apoiando nas mais

    difceis decises, encorajando contnua luta e no desistncia dos meus objetivos.

    Aomeu amor, por toda pacincia e abdicao, pela compreenso da importncia desse

    momento, e por estar sempre de mos dadas comigo, acreditando nos meus sonhos e

    lutando por eles, me apoiando e encorajando para no desistir dos meus objetivos,

    mesmo quando o caminho parece rduo demais.

    Aos meus amigos, de Fortaleza e Coimbra, por todo acolhimento e pacincia em ouvir

    minhas dores e conquistas, dispondo sempre de palavras para me fazer levantar nos

    momentos em que a fora parecia se esgotar.

    Aqueles que diretamente contriburam com atitudes de grande valor para a efetivao

    desse trabalho, a quem devo nomear e agradecer imensamente, pois sem eles esse

    estudo no se concretizaria: Joaquim Alcoforado, Emanuelly Mota, Anice Holanda,

    Luciana Maia, Karynne Melo, Liliane Brando, Priscilla Costa, Renata Holanda, Lilian

    Queiroz, Catherine Moreira, Rebeka Maia, Daniele Negreiros, Renata Fernandes e

    Isabel Marques.

    Aos profissionais que prontamente se disponibilizaram a participar dessa pesquisa, com

    quem partilhei anos de trabalho e por quem tenho um apreo e admirao imensos, esse

    estudo fruto de uma construo coletiva e tem como objetivo devolver ao servio

    maior desenvolvimento, retribuindo o tanto que me ajudaram a crescer.

    http://pensador.uol.com.br/autor/william_shakespeare/

  • 6

    Acho que para recuperar um pouco da

    sabedoria de viver seria preciso que nos

    tornssemos discpulos e no inimigo

    Morte. Mas, para isso, seria preciso abrir

    espaos em nossas vidas para ouvir a sua

    voz. (Rubem Alves, 1991).

  • 7

    SUMRIO

    1 PREMBULO ............................................................................................................ 08

    2INTRODUO ENQUADRAMENTO TERICO................................................. 16

    2.1 Cncer Infantil.......................................................................................................... 16

    2.2 Cuidados Paliativos ................................................................................................. 35

    2.3 Morte ....................................................................................................................... 72

    3 METODOLOGIA ....................................................................................................... 94

    3.1 Objetivos .................................................................................................................. 94

    3.1.1 Objetivo Geral ...................................................................................................... 94

    3.1.2 Objetivo Especfico .............................................................................................. 94

    3.2 Concepo terico-metodolgica ............................................................................ 94

    3.3 Procedimentos metodolgicos ............................................................................... 100

    3.4 Aquisio dos dados da pesquisa ........................................................................... 102

    3.5 Anlise dos dados .................................................................................................. 106

    4 RESULTADOS ........................................................................................................ 107

    5 DISCUSSO E CONCLUSES ............................................................................. 123

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 142

    APNDICE I: ENTREVISTA INDIVIDUAL............................................................. 171

    APNDICE II: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ........ 172

    ANEXO I: APROVAO DA COMISSO DE TICA DA FACULDADE DE

    MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (FMUC) ................................... 179

    ANEXO II: APROVAO DO COMIT DE TICA EM PESQUISA DO HOSPITAL

    INFANTIL ALBERT SABIN (HIAS) ........................................................................ 182

  • 8

    1 PREMBULO

    Aqueles que tiverem a fora e o amor

    para ficar ao lado de um paciente moribundo,

    com o silncio que vai alm das palavras,

    sabero que tal momento no assustador nem doloroso,

    mas um cessar em paz do funcionamento do corpo.

    Ser terapeuta de um paciente que agoniza

    nos conscientizar da singularidade de cada indivduo

    neste oceano imenso da humanidade.

    uma tomada de conscincia de nossa finitude,

    de nosso limitado perodo de vida.

    (KUBLER-ROSS, 2002)

    O interesse pelo estudo do cncer infantil em correlao com os cuidados

    paliativos surgiu a partir de minhas experincias como psicloga. Por isso, torna-se

    interessante destacar meu percurso acadmico e profissional, experincias que

    fomentaram as discusses de interesse desse trabalho, medida que se reconhece que a

    escolha por temticas especficas de cunho cientfico se d em decorrncia de

    inquietaes pessoais e profissionais do pesquisador.

    No Brasil, diferente de outros espaos do mundo, a Psicologia Hospitalar

    reconhecida como especialidade, desde 2000. A partir de ento, as universidades e os

    hospitais tm disponibilizado espaos de discusso e vivncia que possibilitam aos

    estudantes, contato com a prtica. Aproveitando essa ampliao do campo de atuao,

    durante a graduao surgiram oportunidades de estar em contato com o ambiente

    hospitalar, e medida que esta prtica se intensificava, apresentei grande interesse em

    atuar profissionalmente nesse contexto.

    Ainda como estudante, dispusda oportunidade de realizar um estgio no Centro

    Peditrico do Cncer, campo de pesquisa dessa investigao, participando da criao da

    equipe de cuidados paliativos. Posteriormente, com a graduao concluda e a

    permanncia na instituio como psicloga, foi possvel prosseguir o acompanhamento

    dos pacientes que se encontravam com doenas progressivas e incurveis.

  • 9

    Durante esse tempo de experincia, foi notrio todo o desenvolvimento do

    trabalho realizado por minha equipe, sendo possvel verificar os avanos e

    reformulaes ocorridos durante quase dois anos de servio. Atravs dessa vivncia,

    surgiu a necessidade de especializao na rea, visando maior aprofundamento de

    conhecimentos cientficos e prticos, e execuo de pesquisas que contribussem com o

    desenvolvimento do servio prestado por toda equipe. Dessa forma, o mestrado foi o

    espao encontrado para catalisar este desenvolvimento de maneira diferenciada,

    ampliando e aprofundando os conhecimentos na rea a partir do intercmbio entre

    realidades diferentes, que permitisse a troca de culturas, linhas de pensamento e

    formaes.

    O conhecimento adquirido nas disciplinas cursadas proporcionou maior

    criticidade no olhar sobre a atuao da equipe da qual participei, fator que impulsionou

    novas indagaes e reflexes que fomentaram essa pesquisa. Esse estudo corrobora sua

    relevncia medida que permite um retorno ao desenvolvimento qualitativo do servio

    realizado no Centro Peditrico do Cncer, viabilizando equipe uma oportunidade de

    reviso de seu saber, atravs da reflexo crtica de seu fazer. Essa ampliao de olhar

    permite a abertura a novas atitudes e estratgias de atuao, ensejando o aprimoramento

    do servio prestado pela equipe de cuidados paliativos.

    Com fito de contribuir para a contnua melhoria do desempenho da equipe,

    pensou-se em diversas questes importantes que poderiam ser trabalhadas. A primeira

    constatao oriunda de minha prtica foi perceber o quanto um diagnstico de cncer

    traz sofrimento a todos os envolvidos. Por se tratar de uma doena crnica e

    estigmatizada como fatal, a notcia dessa patologia acompanhada de sentimentos

    adversos, como medo e angstia, tanto nos pacientes quanto em seus familiares. Quando

    ocorre em crianas, parece que o abalo intensifica-se, possivelmente por, culturalmente,

  • 10

    no associarmos essa idade a sentimentos negativos e morte. Esse momento tambm

    se torna mais delicado quando se constata o prognstico desfavorvel e o paciente

    inserido na equipe de cuidados paliativos.

    Todo esse processo de cuidados pressupe o acompanhamento de uma equipe

    multiprofissional, que tambm deve estar preparada para lidar com todas as nuances

    envolvidas nessa doena. Os profissionais devem ser capazes de proporcionar maior

    dignidade no processo de morrer dos pacientes, no focando na cura, mas sim na busca

    pela qualidade de vida de todos os envolvidos. Eles precisam estar preparados para

    trabalhar com a morte, que se faz presente cotidianamente. No se trata de uma tarefa

    fcil, posto que esse tema socialmente estigmatizado, abordado como algo de que

    devemos fugir e temer. Assim, essa recusa da morte frequentemente traz inmeros

    dilemas pessoais, ticos e sociais, aos profissionais.

    Pensando nisso, diversos questionamentos foram suscitados. Os profissionais

    dessa equipe esto preparados para a prtica dos cuidados paliativos? Possuem

    embasamento terico para essa atuao? Como para esses profissionais trabalhar com

    a morte, que se apresenta em seu cotidiano? O trabalho que a equipe realiza possibilita

    maior dignidade no processo de morrer dos pacientes? Quais estratgias os profissionais

    utilizam para suportar esse cotidiano repleto de sofrimento e dor?

    Atravs dessas indagaes, concebo que o ponto nodal desse trabalho seja a

    compreenso da morte para o profissional de sade, fator que interfere diretamente em

    sua prtica de cuidados. Compreendendo que o profissional de uma equipe de cuidados

    paliativos no lida em sua rotina somente com a morte do paciente, mas com a

    constatao de sua finitude, considero que este sujeito precise problematizar a questo

    da morte em sua vida, percebendo de que maneira esse aspecto o afeta e interfere em

    seu fazer. Entendo, portanto, que essas questes precisam ser pensadas para que o

  • 11

    profissional seja capaz de proporcionar maior dignidade no processo de morrer do

    paciente, ampliando suas habilidades atravs da percepo de seus limites e

    potencialidades para lidar com a temtica do morrer.

    Doravante essas constataes e inquietaes, situa-se o cenrio cientfico atual

    das temticas principais desse estudo. Para tal, foi desenvolvida, a princpio, uma

    reviso bibliogrfica, em peridicos e dissertaes, nacionais e internacionais, no Portal

    da Capes e da Biblioteca Virtual de Sade (BVS).

    A primeira base de dados uma biblioteca virtual que dispe de um acervo

    diversificado, de referencial multidisciplinar, contando com a colaborao de diversas

    fontes, tais como a Web of Science e a Scopus. J a segunda, rene bibliografias da rea

    da sade, tais como a Scielo (Scientific Eletronic Library Online), Bireme (Biblioteca

    Regional de Medicina), Medline (Literatura Internacional em Cincias da Sade), Lilacs

    (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Cincias da Sade) e Cochrane (Coleo

    de fontes de informao de boa evidncia em ateno sade). Concebendo essa

    abrangncia, optou-se por estas bases de dados por serem consideradas as principais

    plataformas de publicaes cientficas da rea da sade, utilizadas no Brasil.

    Nesse primeiro momento, como forma de apresentar a situao atual dos

    cuidados paliativos na oncologia peditrica, verifiquei na literatura estudos com focos

    diversos, desde aspectos gerais sobre os cuidados paliativos na oncologia peditrica

    (Charvin, 2002; Collins, 2002; Rodrguez, Cdiz, Faras, & Palma, 2005), at questes

    mais especficas, como dados de mortalidade infantil no ambiente hospitalar (Villn et

    al., 2012) aspectos de cuidado com paciente, familiares e equipe (Carvalho & Perina,

    2003), alm da importncia da comunicao (Frana, Costa, Lopes, Nbrega, & Frana,

    2013) e da passagem de ms notcias (Afonso & Minayo, 2013), bem como, o carter

  • 12

    essencial de cuidado com os pacientes em processo de luto (Arantes & Dos Santos,

    2013; Pessolato, Franco, & Carvalho, 2011).

    Estudos revelam que a prtica dos cuidados paliativos oncopeditricos tem suma

    importncia, considerando o diferencial na abordagem do trabalho com esse pblico e a

    representatividade ainda de mortalidade dessa populao (Charvin, 2002; Collins, 2002;

    Rodrguez, Cdiz, Faras, & Palma, 2005). salientando ainda que um dos maiores

    objetivos dos cuidados paliativos a promoo de maior qualidade de vida e dignidade

    no processo de morrer do paciente, atravs de uma trajetria em direo de uma boa

    morte. ressaltado ainda que esse trabalho complexo, principalmente no que concerne

    a assistncia infantil, deve ser realizado por uma equipe multiprofissional preparada

    (Menezes & Barbosa, 2013; Souza et al., 2013).

    salientada tambm a importncia de pesquisas voltadas para famlias ou

    cuidadores principalmente referenciando as mes , entendendo que ao

    acompanharem um paciente ao final de sua vida, podem apresentar alteraes fsicas,

    emocionais e sociais, que necessitam de cuidados. Revelam, portanto, a importncia do

    cuidado integral realizado com os familiares para lidarem com a doena e contriburem

    com o tratamento, viabilizando a minimizao dos efeitos negativos decorrentes da

    doena oncolgica e aumento da qualidade de vida de todos os envolvidos (Bosquet-del

    et al., 2012; Ferreira, 2011; Geronutti, 2011; Ylamos, Fernndez, & Pascual, 2011).

    Cabe ressaltar que, no levantamento bibliogrfico, destacou-se o relevante

    nmero de produes na rea da enfermagem, com temticas diversas, entre elas: a

    importncia da comunicao (Frana, Costa, Lopes, Nbrega, & Frana, 2013), a

    percepo sobre a questo da morte digna (Souza et al., 2013), o cuidado (Monteiro,

    Rodrigues, & Pacheco, 2012; Mutti et al., 2012), o olhar sobre a famlia (Silva, Issi, &

    Motta, 2011), o processo de morrer (Carmo, 2010) e os focos da assistncia. (Monteiro,

  • 13

    2008), em detrimento dos trabalhos das outras reas profissionais atuantes na sade. No

    mbito mdico tambm surgiram estudos especficos, tanto sobre a percepo dos

    oncologistas peditricos sobre os cuidados paliativos e suas dificuldades (Ferreira,

    2011) quanto sobre o significado da morte para esses profissionais (Dos Santos, Aoki,

    & Oliveira-Cardoso, 2013).

    Nessa reviso, poucos foram os estudos com foco na equipe multiprofissional.

    As pesquisas com esse vis ressaltam a importncia da equipe de sade, como unidade

    capaz de viabilizar aes de suporte e alvio de sofrimento, no mbito biolgico e psico-

    scio-espiritual, tanto para as crianas quanto para seus familiares. ressaltado que a

    preparao do profissional, tanto tcnica quanto psicolgica, contribui

    significativamente para o sucesso e continuidade do tratamento (Areco, 2011;

    Nascimento et al., 2013).

    A partir do panorama geral dessas temticas, ratifica-se a ideia de que a equipe

    profissional tem imensa responsabilidade no acompanhamento de pacientes e familiares

    em cuidados paliativos. Conforme visto na literatura, os profissionais influenciam no

    tratamento do paciente, desde a comunicao diagnstica at o acompanhamento no luto

    dos familiares. Para que seja minimizado o sofrimento fsico e psicossocial dos

    usurios, esta equipe precisa estar preparada para acompanh-los em todo seguimento

    de cuidados, principalmente no processo de morrer.

    Contudo, a maioria dos estudos voltados especificamente para a equipe de sade,

    apesar de trazerem a importncia da mesma, no abordam diretamente o preparo dos

    profissionais para lidarem com o cncer na infncia, ainda mais se tratando de um

    momento quando o prognstico no favorvel e o paciente deve ser acompanhado em

    seu processo de morrer. Dessa maneira, percebe-se a falta de referenciais que, alm de

    focalizarem a equipe como essencial ao acompanhamento, busquem compreender o

  • 14

    preparo dos profissionais para o alcance dos objetivos dos cuidados paliativos,

    promovendo maior qualidade de vida e alvio do sofrimento, e para lidarem com a

    morte, proporcionando maior dignificao no processo de morrer dos pacientes.

    Outrossim, carece na literatura, estudos que referenciem servios da regio do

    nordeste brasileiro. As pesquisas encontradas so realizadas em sua maioria na regio

    sudeste do pas. Considerando, portanto, a importncia do desenvolvimento de servios

    e equipes especializadas que estejam preparadas para atuar com o cncer infantil na

    regio do nordeste do Brasil, evidencia-se a necessidade de realizao dessa pesquisa no

    Centro Peditrico do Cncer, referncia de oncologia peditrica no somente no estado

    do Cear, mas nas localidades adjacentes. Assim, focando-se na equipe de cuidados

    paliativos dessa instituio, este estudo possibilita o aprimoramento de servios e

    aperfeioamento das equipes de sade j existentes no pas.

    Entendendo a importncia da equipe de sade, mostra-se a relevncia desse

    trabalho, medida que se acredita que com o desenvolvimento dos profissionais, os

    cuidados possam ser aperfeioados e, consequentemente, os danos acarretados pela

    doena, aos pacientes e familiares, possam ser minimizados. Alm disso, viabiliza-se a

    colaborao no processo de dignificao do morrer, cumprindo de maneira efetiva um

    dos objetivos principais dos cuidados paliativos. Por fim, verifica-se que esta pesquisa

    pode contribuir tanto para o aprimoramento da assistncia prestada nessa instituio,

    quanto para o avano do conhecimento na rea e desenvolvimento da prtica dos

    cuidados paliativos no pas.

    Diante do exposto, esta pesquisa visa compreender a experincia da promoo

    da dignidade de morrer vivenciada pelos profissionais de uma equipe de cuidados

    paliativos em oncologia peditrica. Apresenta como objetivos especficos a

    identificao do que entendem os profissionais de sade sobre os cuidados paliativos e

  • 15

    sua prtica, a compreenso de como os profissionais lidam com o processo de morrer, e

    o reconhecimento de recursos e estratgias utilizados pelos profissionais para trabalhar

    com crianas em cuidados paliativos.

    Para o alcance das metas expostas, essa pesquisa estrutura-se em captulos que

    se complementam, apresentando as principais concepes das temticas essenciais a

    investigao. O primeiro captulo introduz a fundamentao terica, que embasa esta

    pesquisa a partir da reviso de literatura sobre os temas mais importantes para o estudo:

    cncer infantil, cuidados paliativos e morte. O segundo captulo abordar a metodologia

    da pesquisa, explanando aspectos fundamentais como: concepo terico-metodolgica

    e aspectos mais diretivos como procedimentos, aquisio, coleta e anlise dos dados. O

    terceiro captulo tem como foco os resultados. E por fim, no quarto captulo, sero

    realizadas as anlises e discusses dos dados, bem como as concluses obtidas.

  • 16

    2 INTRODUO ENQUADRAMENTO TERICO

    2.1. Cncer Infantil

    No h riqueza maior que a sade do corpo,

    nem contentamento maior que a alegria do corao.

    melhor a morte do que uma vida amarga,

    e o descanso eterno, mais que uma doena prolongada.

    (ECLESISTICO, 30, 16-17)

    Nas ltimas dcadas, mundialmente, elucida-se um processo de transio

    epidemiolgica, havendo mudanas no perfil de mortalidade da populao, com a

    diminuio de doenas infecciosas e o aumento de doenas crnico-degenerativas,

    como o cncer (Carmo, Barreto & Jnior, 2003). Assim, constata-se que o nmero de

    casos de cncer temaumentado em todo mundo, e especificamente no Brasil, a doena

    vem ganhando cada vez maior destaque.

    Desde 2003, o cncer considerado um problema de sade pblica, de acordo

    com o Instituto Nacional do Cncer, devido sua abrangncia epidemiolgica, social e

    econmica. (Brasil, INCA, 2012), e encontra-se entre as dez maiores causas de morte no

    mundo, segundo a Organizao Mundial da Sade (Brasil, INCA, 2011a).

    Em relatrio da Agncia Internacional para Pesquisa em Cncer consta que o

    impacto global da doena mais que dobrou em 30 anos (WHO, 2008). Dessa maneira,

    evidencia-se como uma das doenas mais desafiantes da atualidade, devido a aspectos

    do tratamento e busca pela cura, medida que interfere de forma significativa na sade

    e qualidade de vida dos indivduos acometidos pela doena e seus familiares.

    O Instituto Nacional do Cncer ressalta as estimativas mundiais que indicam o

    surgimento de cerca de 14,1 milhes de novos casos de cncer e 8,2 milhes de mortes

    por esta doena, no ano de 2012. Verificam que globalmente em 2030 haver 21,4

    milhes de novos casos de cncer e 13,2 milhes de mortes em sua decorrncia. No

    Brasil, a estimativa de 2014 indicou a ocorrncia de aproximadamente 576 mil casos

  • 17

    novos de cncer, evidenciando a magnitude do problema da doena no pas (Brasil,

    INCA, 2014).

    Devemos entender que esse termo representa:

    (...) um conjunto de mais de 100 tipos diferentes de doenas que tm em

    comum o crescimento desordenado de clulas anormais com potencial

    invasivo. Alm disso, sua origem se d por condies multifatoriais. Esses

    fatores causais podem agir em conjunto ou em sequncia para iniciar ou

    promover o cncer (carcinognese) (Brasil, INCA, 2014, p.25).

    A partir disso, entende-se que no cncer h diviso e crescimento celular

    descontrolado. A clula adquire multiplas alteraes genticas mutaes, delees

    e/ou outras e irreversivelmente, ao longo do tempo, as caractersticas de malignidade,

    passando a ser uma clula que cresce de forma autnoma, indiferenciada (perde a

    capacidade de desenvolver funes especializadas), com perda de inibio de contacto,

    e capacidade de mestastizardesenvolver metstases noutros locais, distncia. (INCA,

    online) Como destacam Jnior, Batocchio e Lessa (2014):

    O cncer destaca-se pela formao de um tecido constitudo por clulas

    autnomas com habilidades e capacidades bem diferentes das que o

    antecederam. A possibilidade de invaso tecidual e metastizao so marcas

    reconhecidas das neoplasias malignas (p.2).

    Ainda a partir da definio do Instituto Nacional do Cncer, podemos entender

    que no se conhece uma causa especfica para o aparecimento da doena, e que

    provavelmente, no advm de uma causa nica, e por isso diz-se que possui etiologia

    multifatorial (Hugues 1987 como citado em Carvalho, 2002). Assim, compreende-se

    que vrios fatores podem estar envolvidos no surgimento do cncer, constituindo-se

  • 18

    tanto por fatores externos quanto internos ao organismo, bem como pela inter-relao

    entre eles.

    Como causas externas podemos ressaltar os fatores relacionados ao meio

    ambiente, como hbitos ou costumes sociais e culturais, tendo como exemplo o

    contgio por vrus, a exposio a radiao ou poluentes, o uso de drogas, substncias

    alimentcias ou medicamentos, entre outras substncias referenciadas como

    cancergenas ou carcingenos, que atuam alterando a estrutura gentica das clulas do

    indivduo. J com relao s causas internas, entende-se que tem relao

    prioritariamente com a predisposio gentica (Trichopoulos, Li, & Hunter1996 como

    citado em Carvalho, 2002; INCA, online; Jnior, Batocchio, & Lessa, 2014). 80% a

    90% dos cnceres esto associados a fatores ambientais. Alguns deles so bem

    conhecidos: o cigarro pode causar cncer de pulmo, a exposio excessiva ao sol pode

    causar cncer de pele, e alguns vrus podem causar leucemia (INCA, online).

    Constata-se ainda que, mesmos sabendo que dos canceres advm de causas

    externas, ainda no foi possvel prevenir efetivamente a doena, fator constatado em

    dados estatsticos sobre o cncer. Essa situao evidenciada em pases em

    desenvolvimento, como o Brasil, onde a exposio a fatores de risco parece aumentar

    com o passar dos anos (Jnior, Batocchio, & Lessa, 2014).

    Na literatura, destacam-se poucas evidncias que relacionem a causa da doena

    com a exposio ambiental na infncia. Caran e Luisi (2014) destacam que 90 a 95%

    dos tumores na infncia ocorrem devido a mutaes genticas, ou seja, relacionadas a

    questes internas. Conforme revelado pelo Instituto Nacional do Cncer (2009):

    A associao entre cncer peditrico e fatores de risco ainda no est

    totalmente bem estabelecida, na qual fatores de risco ambientais e

    comportamentais como tabagismo, alcoolismo, alimentao, prtica de

    atividade fsica regular, exposio ao sol, entre outros j esto bem

  • 19

    descritos na literatura como associados a vrios tipos de neoplasias na

    populao adulta (Brasil, INCA, 2009, p.38).

    Contudo, citada tambm uma remota possibilidade de interligao entre o

    cncer infantil e fatores ambientais, podendo ocorrer, de maneira indireta, na primeira

    infncia, atravs do contato com os adultos, ou durante a vida intrauterina. (Brasil,

    INCA, 2014). So evidenciadas influncias qumicas, fsicas ou biolgicas na placenta

    como fatores significantes no desenvolvimento de tumores na infncia (Teles, 2005).

    Existem, portanto, diferenas significativas entre os cnceres de adulto e

    infantis, e essas peculiaridades justificam a necessidade de serem estudados e tratados

    separadamente.A origem biolgica, os fatores de risco, os tipos histolgicos, o

    localanatmico e as respostas ao tratamento so salientados como diferenas

    significativas na apresentao clnica, nas medidas de preveno e cuidados do cncer

    infanto-juvenil (Camargo & Kurashima, 2007; Pollock, Doroshow, Khayat, Nakao, &

    O'Sullivan, 2006).

    Histopatologicamente, podemos ainda diferenci-los, tendo em vista que o

    jovem apresenta curto perodo de latncia e crescimento rpido, contudo, tem melhor

    prognstico quando comparado ao pblico adulto (Brasil, INCA, 2009, 2014). Assim,

    nessa idade, as neoplasias malignas se originam em clulas embrionrias, evoluindo

    mais rapidamente, e por isso sendo mais agressivas e invasivas, contudo podendo

    apresentarmaior susceptibilidade ao tratamento (Brasil, INCA, 2011b; Reis, Santos, &

    Thuler, 2007).

    Dessa forma, a compreenso da doena depende da faixa etria a que se refere.

    Com relao a incidncia, na idade adulta, o cncer mais comum o de pele no

    melanoma, seguido dos tumores de prstata, de mama feminina, de clon e reto, de

    pulmo, de estmago e de colo do tero. J na infncia e na adolescncia, a leucemia o

    tipo de cncer mais evidente na populao, acometendo cerca de 25% a 35% dos casos

  • 20

    apresentados. Nos pases desenvolvidos os linfomas ocupam o terceiro tipo de cncer

    mais comum, e nos pases em desenvolvimento ocupam o segundo lugar. Juntamente

    com as leucemias e os linfomas, esto os tumores do sistema nervoso central, como as

    trs neoplasias que mais acometem a populao infanto-juvenil brasileira (Brasil, INCA,

    2011b, 2014).

    Existe uma variao na proporo dos vrios tipos de cncer infanto-juvenil

    nas populaes. Em alguns pases em desenvolvimento, onde a populao de

    crianas chega a 50%, a proporo do cncer infantil representa de 3% a 10%

    do total de neoplasias. J nos pases desenvolvidos, essa proporo diminui,

    chegando a cerca de 1%. A mortalidade tambm possui padres diferentes.

    Enquanto nos pases desenvolvidos o bito por neoplasia considerado a

    segunda causa de morte na infncia, correspondendo a cerca de 4% a 5%

    (crianas de 1 a 14 anos), em pases em desenvolvimento, essa proporo

    bem menor, cerca de 1%, porque as mortes por doenas infecciosas so as

    principais causas de bito (Brasil, INCA, 2014, p.53).

    O Instituto Nacional do Cncer ressalta que o cncer infantil, apesar de ser uma

    doena rara e com alta perspectiva curativa, considerado a segunda causa de morte,

    nos pases desenvolvidos, e encontra-se atrs somente das mortes por doenas

    infecciosas, nos pases em desenvolvimento. No Brasil, as neoplasias ocupam a

    segunda posio (7%) de bitos de crianas e adolescentes (de 1 a 19 anos) em 2011,

    perdendo somente para bitos por causas externas, configurando-se como a doena que

    mais mata (Brasil, INCA, 2014, p.54).

    O Censo Demogrfico de 2010 demonstra o aumento de jovensno Brasil,

    ocupando cerca de 30% da populao. Estima-se que os tumores peditricos ocupam a

    mdia de 3% dos casos novos de cncer no Brasil. Isso significa que em 2014, dos

    394.450 casos novos, estimou-se que haveriam 11.840 crianas ou adolescentes

  • 21

    acometidos pela doena. Por isso, percebe-se que apesar de raro, quando comparado ao

    cncer em adultos, apresenta um nmero significativo de casos a serem tratados, que

    merecem ateno diferenciada (Brasil, INCA, 2014).

    Esse nmero de casos novos estimados, quando calculado para diferentes

    estados e regies do pas, deve servir como parmetro para o planejamento de

    aes e organizao dos centros ou unidades com oncopediatria, na medida

    em que os melhores resultados so esperados quando respeitadas escalas que

    possam garantir um nmero razovel de casos acompanhados por ano e por

    servio. Desse modo, evita-se a excessiva fragmentao da oferta,

    frequentemente associada a resultados insatisfatrios e pior desempenho dos

    servios de acompanhamento (Brasil, INCA, 2011b, pp.19-20).

    Aocorrncia desses casos epidemiolgicos permite o estabelecimento de

    estratgias e aes de preveno e controle do cncer, auxiliando na modificao do

    cenrio da doena na populao brasileira, contribuindo para a reduo da incidncia e

    mortalidade do cncer (INCA, 2014).

    A preveno e o controle do cncer precisam adquirir o mesmo foco e a

    mesma ateno que a rea de servios assistenciais, pois o crescente aumento

    do nmero de casos novos far com que no haja recursos suficientes para

    dar conta das necessidades de diagnstico, tratamento e acompanhamento. A

    consequncia sero mortes prematuras e desnecessrias. Assim, medidas

    preventivas devem ser implementadas agora para reduzir a carga do

    cncer(...) (Brasil, INCA, 2014, p.25).

    Essas estratgias de controlo do cncer podem ser direcionadas a indivduos

    assintomticos ou sintomticos. As aes direcionadas a sujeitos que no apresentam

    sintomas podem ser desenvolvidas a partir de dois objetivos. Na preveno primria, o

    objetivo evitar o aparecimento da doena, atravs do controle de exposio aos fatores

  • 22

    de risco, j no rastreamento o foco detectar a doena e/ou leses em fase inicial. Como

    ao voltada para indivduos sintomticos, com a doena em fase inicial, realiza-se o

    diagnstico precoce (WHO, 2002).

    Jnior, Batocchio e Lessa (2014, p.11-13) salientam as prevenes primria,

    secundria e terciria. Para melhor visualizao, as informaes esto dispostas no

    quadro1, construdo a partir das ideias dos autores.

    Quadro 1 - Nveis de preveno. Tabela adaptada ao texto retirado de Jnior, Batocchio & Lessa (2014)

    Preveno

    Primria

    Providncias criadas visando a evitao ou reduo da exposio a fatores de

    risco para o desenvolvimento do cncer, inibindo seu aparecimento. Pode ser

    feita por meio de campanhas de orientao.

    Preveno

    Secundria

    Aes que busquem promove a deteco precoce do cncer, identificando a

    doena no seu incio, alterando o seu desenvolvimento e tornando o seu

    tratamento efetivo e definitivo, o que tem como consequncia a diminuio da

    morbidade e mortalidade. importante favorecer a educao da populao e

    dos profissionais da sade, no sentido de detectar sinais e sintomas precoces

    do cncer, e o rastreamento por meio de exames clinicolaboratoriais de

    pessoas assintomticas e que apresentem fatores de risco.

    Preveno

    Terciria

    Cuidados utilizados para o restabelecimento e reabilitao do paciente j

    diagnosticado e tratado de uma neoplasia maligna, evitando os efeitos

    sequelares do tratamento e impedindo as eventuais recidivas

    Jnior, Batocchio e Lessa (2014) sugerem que se deve buscar trabalhar de

    maneira profiltica contra o cncer, visando eliminar os fatores de risco que

    influenciariam em seu aparecimento, fator que demonstra a importncia do foco na

    efetivao de programas de preveno e rastreamento contra a doena. No Brasil, apesar

    do crescimento de esforos direcionados a esses servios, constatam-se diversas

    dificuldades em sua implementao, pois a efetivao desses programas requer a

    aquisio de recursos financeiros para custear, a exemplo, a qualificao e

  • 23

    especializao de profissionais, bem como a aquisio e manuteno de aparelhos de

    valores elevados.

    Em um pas com dimenses continentais como o Brasil, torna-se difcil

    pesquisar os novos casos de cncer, bem como realizar procedimentos e

    tratamentos dentro de protocolos estabelecidos, em funo das grandes

    diferenas socioeconmicas, apesar dos esforos dos profissionais de sade.

    (...) Apesar da boa vontade de todos os profissionais e da colaborao de

    todos os envolvidos nesse programa, entende-se que sua aplicabilidade

    morosa, cara e carente de uma determinao poltico-social (Jnior,

    Batocchio, & Lessa, 2014, p.8).

    Quando voltamos a ateno para a infncia, algumas mudanas de foco devem

    ser consideradas. Nessa faixa etria as medidas de preveno primria no so efetivas,

    pois os fatores exgenos exercem pouca ou nenhuma influncia nesse pblico e,

    portanto, a reduo da exposio a fatores cancergenos de ordem ambiental ou

    comportamental no exercem influncia no desenvolvimento da doena (Brasil, INCA,

    2011b).

    Com relao preveno secundria, percebe-se atravs de estudos que o

    rastreamento no apresenta bons dados de efetividade. J o diagnstico precoce tem

    demonstrado ser uma estratgia eficaz, que permite a reduo da morbidade e

    mortalidade da doena. Assim, o diagnstico precoce tem sido colocado como estratgia

    de controlo primordial nos cnceres peditricos, inclusive mais do que nos cnceres de

    adulto, pois permite o diagnstico em estgios iniciais, favorecendo a utilizao de

    tratamentos precoces, menos agressivos e com menor toxidade, acarretando menos

    sequelas na vida do paciente (Brasil, INCA, 2011b).

    Ratificando essa ideia, Jurberg, Gouveia e Belisrio (2006) revelam que o

    cncer uma doena que pode ter cura, porm para um bom prognstico necessrio

  • 24

    um diagnstico precoce (p.140). Fonseca (2004) salienta tambm a necessidade de

    investimento nessa medida preventiva, quando ressalta que dois teros dos cnceres

    diagnosticados em crianas so considerados curveis quando realizado diagnstico

    precoce e tratamento especializado.

    Contextualizando essa questo ao no Brasil, tem-se que:

    No Brasil, iniciativas para o diagnstico e o tratamento do cncer se

    iniciaram nos primeiros anos do sculo XX. Tais iniciativas eram puramente

    ligadas ao diagnstico e ao tratamento, visto que pouco ou nada era

    conhecido acerca da preveno primria do cncer. Tudo que se sabia era que

    o diagnstico mais precoce possvel parecia influenciar no prognstico dessa

    doena (Jnior, Batocchio, & Lessa, 2014, p.4).

    Com o passar dos anos, estabeleceu-se que o cncer poderia ser tratado

    profiltica, primria ou secundariamente (Jnior, Batocchio, & Lessa, 2014). Com o

    desenvolvimento da sade, atravs de avanos teraputicos e metodolgicos do

    diagnstico precoce, a perspectiva curativa cresceu, e o cncer distanciou-se do carter

    agudo e fatal que possua anteriormente, passando a ser considerada uma doena

    crnica, com tratamento prolongado (Camargo & Kurashima, 2007). Assim, nos

    ltimos anos houve o crescimento da taxa de cura e sobrevivncia de crianas e

    adolescentes acometidos com cncer, devido principalmente ao desenvolvimento, cada

    vez maior, de tcnicas que auxiliam o diagnstico precoce, bem como pelo surgimento

    de abordagens teraputicas novas e com aprimoramento de profissionais especializados

    na rea (Braga, Latorre, & Curado, 2002; Camargo & Kurashima, 2007).

    Nos ltimos trinta anos, houve uma evoluo da sobrevincia na oncologia

    peditrica, perodo em que a doena foi se distanciado da associao direta com a morte,

    havendo a perspectiva curativa de 70% dos casos, em centros desenvolvidos (Brasil,

  • 25

    INCA, online). Portanto, verifica-se que, no Brasil o ndice de sobrevivncia de

    pacientes com a doena, apresenta evoluo similar aos pases mais desenvolvidos.

    Atualmente, oito de dez crianas e adolescentes acometidos pelo cncer tero a sade

    reestabelecida aps o trmino dos tratamentos (Hospital do Cncer, 2003; Rodrigues &

    Camargo, 2003).

    No entanto, importante salientar as alteraes existentes nesse padro de cura,

    ao pensarmos nas especificidades de cada tipo de doena oncolgica. A Leucemia

    Linfide Aguda, por exemplo, pode atingir 80% de cura, enquanto outros cnceres, a

    possibilidadede cura estimadaem apenas 30% (Mendona, 2003; Oliveira, Viana,

    Arruda, Ybarra, & Romanha, 2005).

    Apesar dos ganhos considerveis na sobrevivncia do pblico infanto-juvenil, h

    uma preocupao crescente com a criao de propostas de cuidadosdiferenciados a essa

    populao, justificada pela ainda alta expressividade de mortalidade. Assim, apesar de

    haver medidas preventivas efetivas, o maior desafio no cncer infanto-juvenil o

    diagnstico precoce da doena, pois muitas crianas e adolescentes chegam s

    instituies especializadas tardiamente, com a doena j em estdio avanado (Brasil,

    INCA, 2011b).

    Alguns fatores podem dificultar o processo de diagnstico precoce, como as

    condies socioeconmicas, o acesso restrito tecnologias diagnsticas, os problemas de

    organizao da rede do sistema de sade, assim como a desinformao dos pais e dos

    mdicos, que muitas vezes no encontram-se preparados para ter o cncer como uma

    das primeiras hipteses diagnsticas (Cavicchioli, Menossi, & Lima, 2007). So

    destacados tambm como fatores que podem retardar o tempo diagnstico: o tipo do

    tumor, a localizao do tumor, a idade do paciente, a suspeita clnica, a extenso da

    doena, cuidado e/ou percepo da doena pelos pais, nvel de educao dos pais, a

  • 26

    distncia aocentro de tratamento e o sistema de cuidado de sade (Brasil, INCA,

    2011b). Outro fator que dificulta odiagnstico a apresentao clnica de certos tipos de

    tumores. Muitos sinais e sintomas do cncer, como febre, vmitos, sangramento,

    cefaleias e dores abdominais, so comuns a outras doenas frequentes na infncia. Esse

    no reconhecimento do cncer como hiptese diagnstica inicial, advindo da

    dificuldade de definio e percepo clara dos sintomas, pode retardar o direcionamento

    dos casos para especialistas e, consequentemente, adiar a deteco precoce da doena

    (Brasil, INCA, 2011b). Fator ratificado por Caran e Luisi (2014), quando ao falarem

    dessa faixa etria, afirmam que o cncer apresenta manifestaes inespecficas e

    comuns a vrias doenas da infncia (p.22).

    Rodrigues e Camargo (2003) ratificam essa ideia, quando ressaltam que

    dificilmente o pediatra geral se depara, em sua prtica clnica, com casos de neoplasia

    maligna. Assim, diante de sinais e sintomas comuns a outras doenas da infncia ou que

    podem ser confundidos com processos fisiolgicos do desenvolvimento normal da

    criana, o cncer no a primeira hiptese considerada. Apesar de salientarem a

    perspectiva dos profissionais, os autores alertam para a responsabilidade de todos os

    envolvidos, incluindo familiares e servios de sade, no processo de reconhecimento e

    investigao de sinais e sintomas da doena. Assim, a perspectiva de prognstico e

    sobrevivncia, em oncologia peditrica, depender da associao de diversos aspectos,

    envolvendo a responsabilidade de todos que podem ser envolvidos no diagnstico

    precoce, incluindo familiares, mdicos e demais profissionais, alm dos servios de

    sade.

    Para o comeo do tratamento, e consequente avano no prognstico,

    necessrio que haja inicialmente uma suspeio da doena. Atravs da deteco de

    sinais e sintomas, inicia-se a investigao para a confirmao diagnstica. O diagnstico

  • 27

    componente fundamental, na medida em que a sua confirmao permite identificar os

    rgos comprometidos, a extenso da doena (estadiamento), e a condio funcional do

    paciente, fatores essenciais para a realizao do planeamento teraputico mais adequado

    (Brasil, INCA, 2012).Essa investigao pode ser realizada atravs da retirada de tecido

    para anlise (bipsia ou puno) e o patologista, por meio do estudo das clulas

    (citolgico) ou do tecido fixado em blocos de parafina, pode nos dizer se o material

    proveniente de doena benigna ou maligna Exames de sangue, as radiografias, as

    tomografias, as ressonncias, entre outros, so igualmente salientados(Yamaguchi,

    2003, p.23).

    Teles (2005) cita os exames laboratoriais, como um mtodo essencial na

    avaliao de neoplasias em crianas. Ressalta a importncia do hemograma e avaliao

    da funo renal e heptica, considerando que muitos tumores evoluem com metstase na

    medula ssea, nessa faixa etria. Alm disso, salienta a indicao do mielograma e

    bipsia ssea para avaliao de comprometimento medular e a puno lombar, para o

    estudo do lquor, em tumores que envolvem o sistema nervoso central. Diagnsticos por

    imagem podem ser realizados atravs de ultrassom, tomografia computadorizada e

    ressonncia magntica, que permitem a determinao do local, tamanho e forma dos

    tumores infantis. Alm disso, o RX de trax essencial em tumores que tem

    possibilidade de desenvolver metstases pulmonares.

    O Instituto Nacional do Cncer (2012) diz que:

    O diagnstico de cncer feito a partir da histria clnica e exame fsico

    detalhados, e, sempre que possvel, de visualizao direta da rea atingida,

    utilizando exames endoscpicos como broncoscopia, endoscopia, digestiva

    alta, mediastinoscopia, pleuroscopia, retossigmoidoscopia, colonoscopia,

    endoscopia urolgica, laringoscopia, colposcopia, laparoscopia e outros que

    fizerem necessrios, como a mamografia para a deteco do cncer de mama.

  • 28

    (...) O tecido das reas que for notada alterao dever ser biopsiado e

    encaminhado para confirmao do diagnstico por meio do exame

    histopatolgico, realizado pelo mdico anatmopatologista (p.68).

    Atravs da constatao diagnstica so tomadas decises teraputicas coerentes

    e indicados os tratamentos mais adequados, considerando a histria natural do tumor, o

    tipo e extenso da patologia, alm das caractersticas individuais de cada caso. As trs

    modalidades de tratamentos mais utilizadas so cirurgia, a quimioterapia e a

    radioterapia (Brasil, INCA, 2012; Caran & Luisi, 2014; Teles, 2005; Yamaguchi, 2003).

    Elas podem ser usadas em conjunto, variando apenas quanto suscetibilidade dos

    tumores a cada uma das modalidades teraputicas e melhor sequncia de sua

    administrao (Brasil, INCA, 2012, p. 69). importante salientar desde j que os

    tratamentos abaixo, embora demonstrem sua eficia provocam inmeros efeitos

    secudrios/colaterais, que tambm devem ser considerados (Caran & Luisi, 2014).

    As cirurgias podem ser indicadas como primeira parte do tratamento, na retirada

    do tumor em momento inicial, dependendo do tamanho e localizao do mesmo, ou

    aps a reduo do tumor com outros tratamentos, como o de quimioterapia e

    radioterapia (Lopes &Bianchi, 2000; Yamaguchi, 2003).

    A modalidade de quimioterapia, tratamento sistmico do cancro, varia de acordo

    com sua finalidade, podendo ter o objetivo de curar, de controlar o crescimento da

    doena ou de aliviar sintomas. O Instituto Nacional do Cncer (2012, pp.69-70) ressalta

    os diferentes tipos, quesero evidenciados atravs do quadro 2, para melhor

    visualizao.

  • 29

    Quadro 2 - Modalidades de Quimioterapia. Tabela adaptada do texto retirado de Brasil, INCA (2012)

    Quimioterapia Prvia

    Neoadjuvante ou

    Citorredutora

    Indicada para a reduo de tumores locale regionalmente avanados

    que, no momento, so irressecveis ou no. Tem finalidade de

    tornar os tumores ressecveis ou de melhorar o prognstico do

    paciente.

    Quimioterapia Adjuvante ou

    Profiltica

    Indicada aps tratamento cirrgico curativo, quando o paciente no

    apresenta qualquer evidncia de neoplasia maligna detectvel por

    exame fsico e exames complementares.

    Quimioterapia Curativa Tem finalidade de curar pacientes com neoplasias malignas para os

    quais representa o principal tratamento (podendo ou no estar

    associada cirurgia e radioterapia). Alguns tipos de tumores no

    adulto, assim como vrios tipos de tumores que acometem crianas

    e adolescentes, so curveis com a quimioterapia.

    Quimioterapia para Controle

    Temporrio de Doena

    Indicada para o tratamento de tumores slidos, avanados ou

    recidivados, ou neoplasias hematopoticas de evoluo crnica.

    Permite melhorar a sobrevivncia (meses ou anos), mas sem

    possibilidade de cura; sendo, porm, possvel obter-se o aumento

    da sobrevivncia global do doente.

    Quimioterapia Paliativa Indicada para paliao de sinais e sintomas que comprometem a

    capacidade funcional do paciente, mas no repercute,

    obrigatoriamente, na sua sobrevivncia. Independente da via de

    administrao, de durao limitada, tendo em vista a

    incurabilidade do tumor (doena avanada, recidiva ou

    metasttica), que tende a evoluir a despeito do tratamento aplicado.

    Estudos demonstram o carter nocivo desse tipo de tratamento ao organismo do

    paciente, pois o efeito dessa medicao no ocorre somente em clulas doentes, mas

    sobre todo corpo, desencadeando assim efeitos secundrios importantes, como nuseas,

    vmitos, cansao, perda de cabelo, reaes alrgicas, depresso no sistema

  • 30

    imunolgico, entre outros. Em momentos posteriores, podem acarretar

    comprometimentos cardacos, neurolgicos e pulmonares. Os efeitos secundrios so

    variveis, dependendo de diversos fatores como tecido afetado, tipo de droga utilizada

    ou da concentrao plasmtica da droga, bem como tempo de exposio (Camargo,

    Lopes, & Novaes, 2000; Hospital do Cncer, 2003)

    A radioterapia um recurso utilizado para o controle e erradicao da doena

    atravs da irradiao ionizante na regio afetada pelo tumor. Com uma dose pr-

    calculada de radiao, aplicada durante um determinado tempo em um volume de tecido

    do tumor, erradicam-se as clulas tumorais, buscando menor dano s clulas adjacentes,

    que faro a regenerao do local irradiado (Ladeia, Castro, & Miziara-Filho, 2010). Da

    mesma forma que a quimioterapia, a irradiao no tem ao somente em clulas

    tumorais, mas afeta as clulas saudveis. Assim, esse mtodo teraputico tambm

    apresenta efeitos colaterais importantes, que podem ser imediatos ou tardios. Os efeitos

    imediatos, geralmente so tolerveis e reversveis, a exemplo de epitelites, mucosites,

    mielodepresso, anovulao ou azoospermia, entre outros. Como principais efeitos

    tardios da radioterapia esto as atrofias e fibroses, bem como o hipodesenvolvimento

    corporal ou da rea irradiada, deformidades estticas, esterilidade, doenas coronariana

    precoce, fibrose pulmonar, prejuzos na maturao do sistema nervoso central e dficits

    neuropsicolgicos (Lopes & Bianchi, 2000).

    A escolha quanto ao uso dos tratamentos mais adequados em crianas e

    adolescentes, varivel, em funo da idade, da carga tumoral e da preocupao com

    potenciais complicaes do tratamento. Alm disso, os tratamentos, nessa faixa etria,

    podem apresentar tanto o objetivo de aumentar a sobrevivncia, auxiliando na

    minimizao dos efeitos tardios dos tratamentos, como de reintegrar o sujeito em seu

    contexto social, preservando a qualidade de vida (Camargo & Kurashima, 2007).

  • 31

    Como relatam Caran e Luisi (2014):

    O cncer na criana diferente do cncer do adulto. Nessa faixa etria, os

    tumores geralmente respondem bem ao tratamento, em especial

    quimioterapia. Portanto, o prognstico de crianas e adolescentes com cncer

    muito bom. Entretanto, cada paciente deve ser avaliado individualmente,

    com uma srie de exames para pesquisa da extenso do tumor

    (estadiamento). A partir desse estudo, ser feito o planejamento teraputico

    adequado: escolha de quimioterpicos, tempo de tratamento, necessidade de

    radioterapia ou cirurgia (p.24).

    Assim, compreendemos que o cncer peditrico uma doena desafiante e

    complexa, capaz de afetar a criana, sua famlia, bem como os profissionais envolvidos

    nesse processo (Kohlsdorf, 2010; Mutti, Paula, & Souto, 2010).Alm disso, o

    diagnstico dessa doena exige mudanas significativas no mbito fsico, psicolgico e

    social de todos os envolvidos, medida que pacientes e familiares modificam sua rotina

    para se enquadrar nova situao, tentando se reorganizar frente crise instalada

    (Castro, 2007; Pedro & Funghetto, 2005; Volpini, 2007).

    Com relao s mudanas fsicas, podemos verificar os efeitos significativos nos

    diversos momentos da doena. As crianas e os adolescentes, desde a investigao

    diagnstica, so expostos a inmeros procedimentos invasivos e dolorosos. Essas

    reaes se intensificam, medida que o tratamento vai sendo realizado, considerando

    toda complexidade que envolve cada teraputica, bem como seus efeitos colaterais.

    Com relao aos aspectos psicossociais, o cncer pode ser entendido como uma doena

    crnica que afeta o desenvolvimento da criana e tem implicaes sobre todo o sistema

    familiar, tendo alta incidncia e repercusses na vida da criana e sua famlia

    (Nascimento, Rocha, Hayes, & Lima, 2005, p.470). Como demonstra Teles(2005):

    O cncer impe ao indivduo perdas de diferentes naturezas, como a perda da

    sade, da integridade psicolgica, da rotina diria. um processo permeado

  • 32

    de temores e angstias, instalando-se um estado de crise, o que implica em

    desorganizao e desarmonizao da pessoa como um todo. Em outras

    palavras, ter cncer ser submetido a uma multifatoriedade de riscos vida:

    vida social, ao processo de desenvolvimento, dentre outros. (p.40)

    Desde o perodo pr-diagnstico o cncer se apresenta como uma experincia

    sofrida e assustadora, devido a todos os procedimentos que devem ser realizados. A

    confirmao diagnstica e o tratamento constituem-se como momentos difceis, repletos

    de incertezas e medos, que exigem uma readaptao e aprendizagem de novas formas de

    organizao por parte de todos, por afetar o campo psicossocial do paciente (Teles,

    2005).

    Bifulco e Faleiros (2014) confirmam que todo diagnstico de cncer sempre

    acompanhado de uma carga emocional muito grande e de fantasias decorrentes dos

    medos do portador e da famlia, seja em relao ao tratamento propriamente dito ou

    sua evoluo (p. 443). associada socialmente a sentimentos devastadores e ao

    sofrimento, sendo substituda no vocabulrio comum por aquela doena ou doena

    ruim. Esse posicionamento social demonstra o estigma carregado por essa patologia,

    que muitas vezes, evita-se falar o nome. Contudo, importante salientar a necessidade

    de se discutir questes que envolvem o cncer, mediante sua alta taxa de incidncia e

    prevalncia em nossa sociedade (Jnior, Batocchio, & Lessa, 2014).

    A confirmao diagnstica faz com que a possibilidade de morte se faa

    presente, medida que a doena ainda carrega o estigma de doena fatal. Assim, apesar

    dos avanos cientficos, o diagnstico de cncer ainda est associado ao sofrimento e

    morte (Antonelli et al., 2004; Fonseca, 2004).Sob essa perspectiva, Castro (2007)

    argumenta que o impacto da doena na criana depender da durao, sintomatologia,

    gravidade, visibilidade da doena, tipos de intervenes mdicas que requer,

    caractersticas da criana e das relaes familiares. Essas experincias modificam a

  • 33

    rotina do paciente, afastando-o da famlia, do colgio e dos amigos durante os

    internamentose em perodos mais crticos do tratamento, podendo causar medo,

    insegurana, ansiedade, alm de outros sentimentos que afetam a criana e os seus

    familiares.

    O adoecimento e o tratamento afetam a vida do paciente e da famlia em todas as

    esferas, visto que a doena modificar a rotina domstica, o quadro financeiro, a rotina

    profissional, a vida conjugal e todos os relacionamentos interfamiliares.Assim, o

    diagnstico dessa patologia na infncia capaz de atingir os pacientes no somente no

    mbito fsico, mas tambm afetar sua integridade psicolgica. Essa vivncia pode ser

    geradora de sentimentos adversos, como o sofrimento, angstia e medo diante de

    mutilaes, dores ou morte (Chiattone, 1998).

    De acordo com Menezes, Passareli, Drude, Santos, e Do Valle (2007) o

    diagnstico do cncer infantil e seu tratamento afetam no somente o paciente, mas

    tornam os familiares vulnerveis ao sofrimento psquico, medida que provocam um

    impacto sistmico sobre a organizao familiar.A reao dos familiares depender de

    diversos fatores, entre condies psquicas, sociais, econmicos e culturais, bem como a

    rede de apoio disponvel, a personalidade da criana, o estgio da doena e as condies

    hospitalares (Castro&Piccinini, 2002).

    Cardoso (2007) demonstra que:

    A criana e seus familiares tm todos estes medos compartilhados e suas

    vidas e rotinas transformadas com a descoberta da doena. Cada criana e

    cada famlia iro reagir de formas diferentes, tudo depender, entre outros

    fatores, no s do estgio em que a doena se encontra como da

    personalidade de cada um dos sujeitos envolvidos, mas em todos os casos,

    recursos internos sempre sero utilizados para o melhor enfrentamento de

  • 34

    uma situao to difcil que ter um cncer ou ter um filho com este

    diagnstico (p.25).

    Entende-se, portanto, a partir de Caran e Petrilli (2010) a complexidade de

    aspectos envolvidos no cncer, tornando-se evidente a necessidade do acompanhamento

    de uma equipe multiprofissional, que deve estar atenta no somente para as questes

    fsicas da doena, mas tambm para os desafios psicolgicos e sociais apresentados.

    Mutti, Paula e Souto (2010) acreditam que para trabalhar com esse pblico e lidar com a

    amplitude dessa doena, os profissionais devem estar tecnicamente preparados e

    sensivelmente educados, visando um atendimento humanizado e integrado. Kohlsdorf

    (2010) salienta a necessidade de preparao dos profissionais para lidar com um

    contexto repleto de estresse e perdas. Leite, Caprara e Coelho Filho (2007), ao falarem

    da prtica do mdico, salientam que a oncologia peditrica pressupe uma prtica

    diferenciada, atravs de profissionais com competncias e habilidades especficas para

    acompanhar a criana, seus pais ou cuidadores, e outros familiares. Ampliando essa

    viso, entende-se que necessria a integrao de uma equipe de sade

    multiprofissional, capaz de asegurar uma assistncia de qualidade, visando o cuidado

    global do paciente e seus familiares.

    Assim, evidente que o paciente com cncer, bem como com outras doenas,

    deve ser tratado de maneira holstica, considerando a complexidade dos fatores

    biolgicos, psicolgicos, sociais envolvidos. Dessa maneira, evita-se a fragmentao do

    sujeito, vislumbrando o paciente de maneira integral, tendo maior coerncia com a

    definio de sade preconizada atualmente. Atravs da interao entre diferentes

    especialidades e conhecimentos, o sujeito pode ser tratado em consonncia com a

    complexidade de todo seu processo de adoecimento.

  • 35

    A assistncia multiprofissional permite verificar as repercusses da doena em

    todos os mbitos da vida do paciente, buscando a preservao e recuperao de sua

    qualidade de vida. Dessa maneira, a relao da trade paciente-famlia-equipe viabiliza o

    favorecimento de maior qualidade de vida nesse processo de cuidados (Mitchell, Clarke,

    & Sloper, 2006).

    A integrao da equipe intensifica-se, quando referenciamos pacientes que

    apresentam essas doenas crnicas, em estdios avanados. Nesses casos, a equipe deve

    estar preparada para trabalhar e enfrentar a doena e o processo de morrer, tanto com o

    paciente como com seus familiares (Maciel et al., 2006). Para maior apropriao dessa

    fase do tratamento, precisamos compreender melhor o que referenciamos como

    cuidados paliativos.

    2.2 Cuidados Paliativos

    Aqueles que possuem o privilgio de acompanhar algum

    nos seus ltimos momentos

    sabem que eles entram em um espao de tempo muito ntimo.

    A pessoa, antes de morrer, tentar depositar naqueles que a acompanham

    o essencial de si mesma.

    Mediante um gesto, uma palavra, s vezes somente um olhar

    tratar de dizer o que lhe importa verdadeiramente

    e que nem sempre pde ou soube diz-lo.

    (HENNEZEL, LA MUERTE NTIMA)

    Para maior compreenso dos cuidados paliativos, primeiramente, essencial

    explicitar o que entende-se por cuidado e de que maneira essa prtica se estabelece em

    nossa sociedade. importante compreender que:

    O cuidado existe desde que h vida humana e, como atos de humanidade,

    por meio dele que a vida se mantm. Durante milhares de anos, no esteve

    associado a nenhum ofcio ou profisso e sua histria se constri sob duas

    orientaes que coexistem, complementam-se e se geram mutuamente: cuidar

    para garantir a vida e cuidar para recuar a morte (Coelho & Fonseca, 2005, p.

    215).

  • 36

    A compreenso do cuidado se modificou durante os tempos. Conforme Zeferino

    et al. (2008), o cuidado comeou a ser desenvolvido como forma de sobrevivncia,

    sendo o principal criador de laos entre os sujeitos. Com o advento do Cristianismo, o

    cuidado passou a ser uma ao predominante entre as mulheres, realizado por irms de

    caridade, que prestavam aes ao nvel espiritual e protegiam a integridade corporal dos

    doentes. Nascia, nessa poca, uma medicina inspirada no saber da doutrina dos padres.

    Com o nascimento da clnica, os mdicos passaram a ser especialistas, tendo

    como funo a identificao e extirpao do mal que o doente era portador (Coelho &

    Fonseca, 2005). Em simultneo, iniciou-se a formao da sociedade capitalista, fator

    que gerou implicaes considerveis nas formas de estabelecimento das relaes.

    Para implementar sua prtica, os especialistas precisavam de mo-de-obra

    para as inmeras tarefas que assegurassem a investigao e o tratamento das

    doenas. O processo de institucionalizao da sade se deu articulado

    formao da sociedade capitalista, portanto, atendendo a interesses poltico-

    ideolgicos que transformaram o cuidar pela preservao da vida em cuidar

    para a recuperao de corpos produtivos. A cura das doenas era o alvo e

    visava repor a fora de trabalho incapacitada pelas enfermidades. O

    desenvolvimento da cincia e da tecnologia, ao longo de todo o sculo XX,

    fez com que o afago, o aperto de mo, oferecendo apoio e suporte, ou mesmo

    o olhar carinhoso e amigo, fossem substitudos pela mquina, que passou a

    realizar o cuidado (Coelho & Fonseca, 2005, p. 215).

    A partir disto, a cura passou a ser objetivo principal da medicina, ocorrendo uma

    mudana de foco para a adoo de tcnicas em detrimento do cuidar (Zeferino et al.,

    2008). Atualmente, permanece o desafio organizao dos servios de produo do

    cuidado, transcender a competncia tcnico-cientfica herdeira do modelo biomdico

    (Machado, Pinheiro, & Guizardi, 2004).

  • 37

    Pinheiro e Guizardi (2004) destacam que:

    Historicamente, o campo da sade tem sido marcado por intervenes

    balizadas por um certo exerccio do poder-saber tcnico, cujo principal efeito

    e, ao mesmo tempo, premissa de sua viabilidade pode ser identificado na

    produo de um outro objeto de interveno, e no sujeito de relao. Um

    outro (comunidade, paciente famlia etc.) desprovido de singularidade,

    desejo, saber e histria. Em suma, um encontro que se tem concretizado

    mediante a referncia da normalizao que marca o exerccio do poder

    disciplinar que configurou e determinou as relaes sociais na modernidade

    (pp. 37-38).

    Corroborando com essa ideia, Lacerda e Valla (2004) revelam que:

    O modelo mdico hegemnico [tambm dito modelo biomdico] a orientar

    grande parte das prticas de sade dos servios pblicos pautado no

    diagnstico e tratamento das doenas definidas pelo saber cientfico,

    priorizando-se as alteraes e leses corporais, em detrimento dos sujeitos e

    suas necessidades. Nesse modelo biomdico, existe pouco espao para escuta

    dos sujeitos e seus sofrimentos, para o acolhimento e para a ateno e

    cuidado integral sade (p.91).

    vista disso, compreende-se que o cuidado com paciente est para alm do

    estabelecimento de prticas tecnolgicas, com fins exclusivamente curativos (Souza,

    Souza, & Souza, 2005). Dessa forma, o conceito de cuidado deve ultrapassar a prtica

    pautada exclusivamente em tcnicas e atividades impessoais e burocratizadas,

    considerando os sujeitos de quem cuidam (Hochman& Armus, 2004).

    Deve inserir-se a prtica do cuidado integral nos servios de sade, indo de

    encontro ao reducionismo do cuidado tcnico exercido tradicionalmente pelos

    profissionais, dado seu estreito compromisso com o modelo biomdico (Ayres, 2004;

  • 38

    Corbani, Brtas, & Matheus, 2009; Gomes, Caetano, & Jorge, 2010; Machado,

    Pinheiro, & Guizardi, 2004). A importncia do cuidado integral ainda ratificada por

    Mello Filho e Silveira (2005), Pinheiro e Guizardi (2004) e Souza, Muniz Filha, Silva,

    Monteiro e Fialho (2006) compreendendo que esse cuidado pressupe o entendimento

    do homem como um ser complexo e dinmico, que deve ser visto em sua totalidade e

    particularidade.

    Essas ideias compactuam com o conceito de cuidado proposto por Boff (1999),

    quando afirma que cuidar mais que um ato; uma atitude. Portanto abrange mais que

    um momento de ateno, de zelo e desvelo. Representa uma atitude de ocupao,

    preocupao, de responsabilizao e de envolvimento afetivo com o outro (p.33, grifos

    do autor). Alm de corroborarem com a conceituao de Ayres (2004), que entende o

    cuidado como:

    Um construto filosfico, uma categoria com a qual se quer designar

    simultaneamente, uma compreenso filosfica e uma atitude prtica frente

    ao sentido que as aes de sade adquirem nas diversas situaes em que se

    reclama uma ao teraputica, isto , uma interao entre dois ou mais

    sujeitos visando o alvio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar,

    sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade

    (p. 74, grifos do autor).

    O cuidado ento entendido como constructo necessrio ao mbito da sade, a

    partir do estabelecimento da desconstruo e ruptura com modelo essencialmente

    curativo, visando um olhar sobre o sujeito em sua totalidade, sem reduzi-lo apenas

    doena. Essa mudana da lgica do modelo biomdico, pautado em uma viso

    fragmentada do sujeito, comeou a ocorrer, a partir da redefinio de sade estabelecida

    pela Organizao Mundial de Sade, em 1946, considerando-a um total bem-estar

    fsico, mental, social, e, posteriormente, espiritual (Vilela & Mendes, 2003). A partir

  • 39

    dessa ampliao, a prestao de assistncia sade passou a se organizar no somente

    atravs da busca da cura, mas tambm pela oferta de cuidados (Pessini, 2001). No

    mbito da oferta de cuidados, podemos compreender a insero da prtica dos cuidados

    paliativos na sade.

    Pessini (2001, 2004) defende que, apesar dos cuidados paliativos terem iniciado

    somente por volta de 1960, essa prtica, em um formato diferenciado do modelo

    contemporneo, teve sua origem no sculo IV, atravs do movimento hospice. Esse

    retorno histrico realizado para maior compreenso do conceito de cuidados paliativos

    realizado por diversos autores, medida que referenciam os termos cuidados

    paliativos e hospice como sinnimos. Matsumoto (2012) acredita que esses

    conceitos confundem-se historicamente, e por isso salientamos a necessidade da

    realizao de um apanhado histrico, para fins de esclarecimento.

    A palavra hospice advm do termo latino hospitium que significa hospedagem,

    hospitalidade, fazendo referncia tanto ao local de acolhida quanto ao vnculo que se

    estabelecia entre as pessoas (Pessini, 2004; Twycross, 2000). A origem desse termo

    pode ser compreendida j na Antiguidade, quando pessoas comuns, por misericrdia,

    ofertavam assistncia aos necessitados. Esses cidados ofereciam em suas residncias,

    hospitalidade aos moribundos, que poderiam ser peregrinos, viajantes ou enfermos

    (McCoughlan, 2004; Pessini, 2001, 2004).

    Uma das primeiras notcias histricas desse modelo de cuidado da romana

    Fabola, uma matrona crist que, em meados do sculo IV, disponibilizava sua casa para

    o acolhimento de necessitados vindos da sia, frica e dos pases do leste. Como uma

    obra de caridade e misericrdia, esta senhora oferecia alimentao e vestimenta aos

    carentes, acolhia os estrangeiros e visitava os enfermeiros e prisioneiros, dando origem

    ao movimento hospice (Pessini, 2001, 2004; Twycross, 2000).

  • 40

    De acordo com Pessini (2001, 2004), durante a Idade Mdia, esse movimento de

    cuidados com pessoas gravemente enfermas e em estgio terminal, foi assumido pela

    igreja. Teixeira e Lavor (2006) destacam que esse auxlio tinha como objetivo a

    atenuao de sintomas e acompanhamento dos doentes em seu processo de morrer,

    orientadas pelos conhecimentos mdicos da poca, mas tambm baseados na moral

    religiosa crist. Durante as cruzadas, os clrigos e religiosos, ocupavam hospedarias ao

    longo dos caminhos entre a Europa e o Oriente, com intuito de oferecer conforto fsico e

    espiritual aos guerreiros que buscavam retornos as suas casas para morrer. Nye (2003)

    ressalta a construo de santurios religiosos, tanto no leste da Europa quanto na

    Amrica do Norte, durante o sculo XVI ao sculo XVIII, como casas de refugiados,

    que abrigavam peregrinos e doentes. De acordo com Saunders (2004), no sculo XIX,

    houve uma propagao dessa prtica em organizaes religiosas catlicas e protestantes,

    que passaram a ter caractersticas de hospitais. Esses lugares eram conhecidos como

    hospices, exercendo cuidados espirituais, visando o controlo da dor.

    Segundo Milicevic (2002) e Pessini (2001, 2004) a fundao do primeiro

    hospice, criado com intuito especfico de atender moribundos, ocorreu em Lyon, na

    Frana, em 1842, fundado por Madame Jeanne Garnier. Nesse espao, tambm foi

    utilizada pela primeira vez a palavra hospice como um lugar onde os doentes eram

    levados para morrer. Posteriormente, de acordo com Milicevic (2002) foram criados

    espaos similares na Inglaterra e na Irlanda, bem como em outros pases da Europa.

    Pessini (2004) e Saunders (2004) salientam o Sr. Joseph Hospice, fundado em

    1905, na Gr Bretanha, pelas Irms Irlandesas da Caridade. Alm desse, evidenciado o

    St. Columba, criado em 1885, em Londres (Pessini, 2004) e o Our Ladys Hospice of

    Dying, em 1879, em Dublin (Saunders, 2004). Contudo, dentre os inmeros exemplos

    de hospice, destaca-se o Saint Lukes, criado em 1893, como nica instituio fundada

  • 41

    por um mdico, para acolher pobres moribundos, revelando maior semelhana com as

    instituies de modelo hospice, dos tempos atuais (Milicevic, 2002; Pessini, 2004).

    O movimento de criao desses espaos foi interrompido, com a dissoluo das

    ordens religiosas durante a Reforma e a modernizao e aprimoramento da cincia

    fatores que redirecionam o foco do cuidado para a cura das enfermidades. Dessa

    maneira, com o desenvolvimento da medicina, ao longo dos sculos, o hospital tornou-

    se ambiente prioritrio de cuidados de sade. Mesmo diante desse deslocamento para o

    ambiente hospitalar, os hospices continuaram a existir, permanecendo com a prestao

    de cuidados espirituais. No entanto, a construo da ideia de cuidado especializado

    surgiu apenas com a iniciativa de Cicely Saunders, na dcada de 60, com a fundao do

    movimento do hospice moderno (McCoughlan, 2004).

    Assim, evidenciam-se mudanas no conceito de hospice, durante os anos.

    Verificou-se que primeiramente esse termo se referia aos abrigos voltados para conforto

    e cuidado de peregrinos e viajantes, e de maneira mais ampliada, posteriormente passou

    a designar os locais destinados a acolher e cuidar de pessoas com doenas incurveis e

    avanadas. Aps Cicely Saunders, o termo hospice se estendeu de um local onde

    exerce-se a prtica dos cuidados paliativos, para representar uma filosofia de trabalho

    (Maciel, 2006).

    Essa proposta surge em resposta a desumanizao que ocorria na sade, da

    poca. Com os avanos da medicina evidenciados no sculo XX, a cura foi imposta

    como objetivo maior dos profissionais de sade, medida que prevalecia em um

    ambiente de doenas infecciosas e agudas, que controladas, permitiam maior

    expectativa de vida populao. Com o aumento da longevidade, as doenas crnicas e

    a morte passaram a ocorrer com maior frequncia. No entanto, o aumento do tempo de

    vida no implicou uma melhora de cuidados com a morte. Devido a sofisticao do uso

  • 42

    de tecnologias, os profissionais, passaram a negar a morte, com a iluso de um controle

    pleno das doenas (Neto, 2010). Travou-se portanto, uma luta incessante pela cura, e os

    pacientes terminais tornaram-se smbolo de impotncia, evidenciando as limitaes da

    prtica mdicas s necessidades de sade apresentadas (McCoughlan, 2004).

    vista disso, o deslocamento do modelo biomdico, de promoo de cura sem

    foco na qualidade de vida, juntamente com as mudanas do processo de adoecimento,

    ocorridas em decorrncia de transies demogrficas e epidemiolgicas em sade,

    articuladas ao progressivo aumento da expectativa de vida e das doenas crnicas e

    degenerativas, possibilitaram o surgimento de questionamentos ticos acerca dos

    cuidados oferecidos aos doentes terminais (Machado, 2009). A ideia dos cuidados

    paliativos surge ento como um movimento antagnico a proposta de sade e cuidados

    vigentes. Trata-se de uma mudana do paradigma que suscita reflexes sobre os

    binmios sade e doena, vida e morte, cura e cuidado (Bushatsky, 2010).

    Como forma de reao ao modelo de sade vigente na poca, em 1960, h a

    iniciao de movimentos sociais em prol da promoo de maior dignidade no processo

    de morrer dos doentes, incluindo a criao do modelo contemporneo de cuidados

    paliativos (Machado, 2009). Em meados do sculo XX, surge, portanto, o Movimento

    Hospice Moderno, originando o que chamamos atualmente de Cuidados Paliativos ou

    Filosofia Hospice. Atravs da iniciativa da enfermeira, assistente social e mdica,

    Cicely Saunders, viabiliza-se o compromisso com uma nova forma de cuidar (Saunders,

    2004).

    Atravs da prtica com pacientes oncolgicos, Saunders percebe a necessidade

    de atuao no alvio da dor e minimizao do desconforto vivenciado pelos doentes nos

    momentos de sofrimento. Dessa maneira, constata a ausncia de frmacos mais eficazes

    para o alvio da dor (Saunders, 2001) e atravs de uma pesquisa com anotaes clnicas

  • 43

    e gravaes de relatos dos pacientes, evidencia que o alvio da dor possibilitado com a

    administrao regular e contnua de analgsicos. Esse estudo sistemtico com 1.100

    pacientes com cncer avanado foi realizado entre 1958 e 1965, com pacientes tratados

    no St. Josephs Hospice. Publicado por Robert Twycross, em meados dos anos 70, esse

    estudo permitiu a constatao de que os opiceos no eram causadores de adico nos

    pacientes e que a oferta sistemtica dessas medicaes no causavam problemas de

    tolerncia, mas sim possibilitavam alvio real da dor (Saunders, 2004).

    Essas experincias foram essenciais para o desenvolvimento de sua filosofia, e

    permitiram que trouxesse, de maneira indita, o conceito de dor total. Saunders amplia o

    conceito de dor, trazendo-a como um constructo composto por elementos fsicos,

    psicolgicos/emocionais, sociais e espirituais. Dessa maneira, reconhece que os

    cuidados prestados devem visar o alvio do sofrimento, em todas as suas nuances, com

    foco na qualidade de vida (McCoughlan, 2004).

    Em 1967 Saunders funda o St. Christophers Hospice, primeiro hospice

    moderno da histria. A consolidao desse servio permitiu tanto a assistncia aos

    doentes e familiares, quanto o desenvolvimento de ensino e pesquisa na rea (Pessini,

    2005). Atualmente, essa instituio conhecida como um dos principais servios de

    cuidados paliativos do mundo (De Marco, Abud, Lucchese, & Zimmermann, 2012),

    pois se transformou num modelo de assistncia, ensino e pesquisa no cuidado dos

    pacientes terminais e suas famlias (Pessini, 2004, p. 184). Atravs desse movimento

    estende-se a criao de novos hospices, no mais como locais de excluso dos

    moribundos, mas sim como espaos multidisciplinares, que visam garantir a qualidade

    de vida de pessoas que apresentam doenas graves ou encontrem-se em fase final de

    vida. Nesses locais, preconiza-se o cuidado ativo e integral a pacientes com doenas que

  • 44

    ameaassem sua vida, intentando a minimizao do sofrimento e promoo de maior

    qualidade de vida (Machado, 2009).

    Constata-se ento que a filosofia dos cuidados paliativos, mesmo diante de um

    contexto crescente de tecnologizao dos cuidados de sade:

    cultiva um 'reconhecimento crescente da futilidade e indignidade da

    continuao de tratamentos mdicos caros e invasivos para os pacientes que

    esto claramente morrendo nos hospitais.' () Nessa perspectiva, os

    cuidados paliativos no se iniciam simplesmente quando o tratamento mdico

    falhou, mas so parte de uma abordagem altamente especializada para ajudar

    as pessoas a viver e enfrentar o morrer da melhor forma possvel

    (McCoughlan, 2004, pp.169-170).

    Esse entendimento permite a compreenso de que no se deve confundir os

    cuidados paliativos com a induo da morte (eutansia), ou com a suspenso dos

    tratamentos. Os cuidados paliativos o apressam a morte, apenas a aceitam como parte

    inexorvel de um processo. Tambm no se suspende todo o tratamento, apenas os

    considerados fteis (distansia) (Pessini & Bertachini, 2004, p.5).

    Dessa maneira, nos cuidados paliativos busca-se uma morte ocorrida no tempo

    certo (ortotansia), no desqualificando os esforos para a cura, mas tambm no

    fomentando a utilizao de recursos desnecessrios que posterguem a vida a qualquer

    custo (Pessini & Bertachini, 2004). Todas as intervenes da equipe de sade devem ser

    dirigidas no sentido de aliviar os sintomas e tornar mais suportvel o processo de

    morte (De Marco & Degiovani como citado emDe Marco, Abud, Lucchese, &

    Zimmermann, 2012, p. 318). Nesse tratamento busca-se pela realizao de intervenes

    que prezem pela dignidade do ser humano, at o momento de sua morte (McCoughlan,

    2004).

    Dessa maneira, essencial compreender que:

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    O Cuidado Paliativo no se baseia em protocolos, mas sim em princpios.

    No se fala mais em terminalidade, mas em doena que ameaa a vida.

    Indica-se o cuidado desde o diagnstico, expandindo nosso campo de

    atuao. No falaremos tambm em impossibilidade de cura, mas na

    possibilidade ou no de tratamento modificador da doena, desta forma

    afastando a ideia de no ter mais nada a fazer. Pela primeira vez, uma

    abordagem inclui a espiritualidade dentre as dimenses do ser humano. A

    famlia lembrada, portanto assistida tambm aps a morte do paciente, no

    perodo de luto (Matsumoto, 2012, p.26, grifos da autora).

    A entrada nos cuidados paliativos ento no simboliza que nada mais pode ser

    feito. Conforme demonstra Gutierrez (2001):

    abre-se uma ampla gama de condutas que podem ser oferecidas ao paciente e

    sua famlia. Condutas no plano concreto, visando o alvio da dor, a

    diminuio do desconforto, mas sobretudo a possibilidade de situar-se frente

    ao momento do fim da vida, acompanhado por algum que possa ouv-los e

    sustente seus desejos (p. 92).

    Aps a concretizao da experincia do St. Christophers Hospice, a prtica dos

    cuidados paliativos foi difundida mundialmente. Como marcos histricos, temos na

    dcada de