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1 Universidade de Brasília UnB Instituto de Ciências Humanas IH Departamento de Filosofia FIL Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB PPG-FIL Além do conceito através do conceito: Um estudo sobre Theodor Adorno e a apropriação crítica da dialética hegeliana Bianca Rocha Machado Brasília 2019

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Universidade de Brasília – UnB

Instituto de Ciências Humanas – IH

Departamento de Filosofia – FIL

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB – PPG-FIL

Além do conceito através do conceito:

Um estudo sobre Theodor Adorno e a apropriação crítica da dialética

hegeliana

Bianca Rocha Machado

Brasília 2019

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Bianca Rocha Machado

Além do conceito através do conceito:

Um estudo sobre Theodor Adorno e a apropriação crítica da dialética

hegeliana

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestra em Filosofia.

Linha de Pesquisa: Ética e Filosofia Política

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Hahn

Brasília 2019

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Dedicatória

Para Maria Luzinete, minha mãe, melhor amiga e constante inspiração.

Para Francisco Machado, meu pai, in memoriam.

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Agradecimentos

Novamente tenho a feliz oportunidade de agradecer formalmente a todas e todos

aquelas e aqueles que de alguma forma colaboraram para a conclusão de mais

uma importante etapa na minha vida profissional e acadêmica, e me sinto

honrada por ter essa chance.

Primeiramente, agradeço à toda minha família e amigos, pelo constante apoio,

incentivo e auxílio. Foram muitos os momentos em que precisei estar ausente

durante o processo de pesquisa e elaboração do presente trabalho, momentos

esses em que estive distante fisicamente, mas sempre próxima com minha

mente e coração. Sou grata à minha mãe, Maria Luzinete, pela imensa e

constante confiança depositada em mim, em minhas escolhas e planos. Sua

compreensão e amor inabaláveis são meu chão, minha força e meu norte em

tudo que faço, e agora não seria diferente. Sou feliz e abençoada por poder

contar com sua sabedoria e conselhos, muito ainda tenho a aprender com suas

palavras. Sou imensamente grata ao André, pela paciência infinita, pelo apoio

irrestrito e permanente, pelo companheirismo, carinho imensurável e amor, sem

os quais o caminho aqui percorrido teria sido muito mais difícil; aos irmãos Bruno,

Breno, Brenda, Paulo e Arthurzinho, pelo amor, afeto e parceria; e aos amigos,

antigos e novos, que nem sempre me entenderam, mas sempre me incentivaram

e auxiliaram na realização dos meus sonhos.

Sou imensamente grata ao meu orientador, professor Alexandre Hahn, pela

confiança investida em meu projeto, pelas aulas magníficas no Programa de

Pós-Graduação em Filosofia, pela orientação precisa e pela amizade e paciência

demonstradas em incontáveis ocasiões. Agradeço especialmente à professora

Priscila Rossinetti Rufinoni pelas conversas e dicas, pelo cuidado com que me

aconselhou ao longo das etapas de elaboração do presente trabalho, por ajudar-

me sempre que possível e pelo companheirismo, confiança e amizade. O

sucesso na conclusão do projeto aqui desenvolvido jamais teria sido alcançado

sem sua ajuda e conhecimento, de inestimável valor. Agradeço ao professor

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Erick Calheiros, pelo auxílio, orientação e parceria na execução de parte do

presente trabalho; aos demais professores, servidores, técnicos e estagiários da

Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília pela prestatividade e

apoio, bem como à toda equipe da Secretaria do FIL-UnB: sou muito grata pela

paciência e compreensão de todos e todas vocês para comigo.

Agradeço também aos membros da banca examinadora, os professores e

professoras Dra. Benedetta Bisol, Dr. Herivelto Souza e Dra. Priscila Rufinoni,

pela boa vontade em aceitar o convite para participar da minha defesa.

Agradeço à CAPES, Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior, pelo apoio financeiro à execução deste trabalho.

Finalmente, sou grata a todas e todos que, de alguma forma e a qualquer tempo,

me auxiliaram nessa fase do meu trabalho. Muito obrigada.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10

1. SOBRE O COLAPSO DA RAZÃO OCIDENTAL: UMA LEITURA DA DIALÉTICA DO

ESCLARECIMENTO................................................................................................... 21

1.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 21

1.2 UMA PROPOSTA DE TEORIA CRÍTICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS ............ 22

1.3 O ESCLARECIMENTO COMO DIALÉTICA .................................................. 29

2. ANTECESSORES DE ADORNO: KANT, HEGEL E A CRÍTICA DA MODERNA

EPISTEMOLOGIA ...................................................................................................... 42

2.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 42

2.2 UM DIVISOR DE ÁGUAS NA METAFÍSICA: KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO

PURA 46

2.3 DE KANT A HEGEL: A RECUSA DO MODERNO SUBJETIVISMO ............. 53

2.1.1 O projeto de uma racionalidade dialética para pensar a liberdade: da

Fenomenologia do Espírito aos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel ......... 55

2.1.2 Liberdade e Historicidade: decorrências do pensamento de Hegel para

uma filosofia comprometida com a práxis ............................................................ 74

3. COM OS CONCEITOS PARA ALÉM DOS CONCEITOS: SOBRE A

NEGATIVIDADE DA DIALÉTICA ................................................................................ 79

3.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 79

3.2 A NECESSIDADE DA DIALÉTICA ............................................................... 83

3.3 DIALÉTICA E IDENTIDADE: ADORNO E A FILOSOFIA ANTISSISTEMÁTICA

92

3.4 UMA BREVE APROXIMAÇÃO COM A ARTE: ENSAIO COMO FORMA ... 112

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 117

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 121

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A dialética é a consciência consequente da não-identidade

Theodor W. Adorno

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INTRODUÇÃO

Theodor Adorno elabora, quase na totalidade de suas obras, análises detidas

acerca da relação entre episódios do passado recente e o arcabouço de categorias e

esquemas conceituais herdados da modernidade, dos quais contemporaneamente

nos utilizamos no esforço teórico de interpretação dos acontecimentos do nosso

próprio tempo. Para Adorno, as primeiras décadas do século XX compõem o

momento histórico em que a filosofia contraditoriamente operou a sua própria não

realização. A radicalização da pretensão humana de superação de crendices,

preconceitos, dogmas e mitos por meio de uma razão lógico-argumentativa,

supostamente em constante progresso, que havia sido o objetivo do pensamento

ocidental por mais de dois mil anos, bem como o marco do surgimento da filosofia na

Grécia Antiga, aponta Adorno, tornou-se o fator responsável pela instauração, na

contemporaneidade, de um retrocesso sem paralelos. Adorno percebe, nas formações

históricas conectadas à noção de “capitalismo de Estado” e “capitalismo avançado”,

mas também na burocratização do Estado soviético pós-revolucionário, justamente a

não realização da filosofia, ocorrência que se deve, sobretudo, à redução da

racionalidade apenas a sua dimensão estratégico-instrumental e, com isso, à perda

do vigor de sua capacidade crítica.

Adorno destaca que as propostas de liberdade e emancipação outrora

erguidas pelo pensamento moderno, cujo ápice foi o Esclarecimento (Aufklärung), se

perdem em meio a novas formas de ideologia, pela permanência de um sistema

econômico baseado na exploração, pelo embotamento da racionalidade e pela

consequente perda do horizonte para a crítica. À filosofia na atualidade restaria o

desafio, portanto, de encontrar novas condições de reflexão e de existência sobre os

escombros deixados pelo malogro quase incontornável das promessas modernas.

Parte do trabalho aqui proposto envolverá, portanto, a compreensão do

vínculo, ressaltado por Adorno, entre alguns dos elementos da profunda crise que

marca a primeira metade do século XX – e que sustentamos que ainda se mantém

atual – e o programa do esclarecimento filosófico traçado e concretizado na

modernidade. A partir deste esforço, apresentaremos uma leitura da proposta

adorniana de superação do estado de coisas em que se encontra a filosofia, por meio

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de uma nova compreensão do método dialético, partindo da análise da tese adorniana

de que a urgente transformação das condições materiais de vida na

contemporaneidade passa, obrigatoriamente, por uma radical autocrítica ainda a ser

empreendida pela filosofia ocidental. Defendemos aqui, entrementes, que o núcleo da

filosofia adorniana, ponto que une toda sua produção intelectual, está em sua

denúncia de que a não transformação das nossas condições de compreensão do

mundo conduzirá, necessariamente, à manutenção do estado de coisas que precisa

ser superado. Para Adorno, a crítica da sociedade moderna e de seu desenvolvimento

histórico deve vir acompanhada da reflexão sobre um paradigma de racionalidade

que, embora tenha se tornado o único disponível, se mostra progressivamente

incapaz de oferecer alternativas frente ao atual colapso social, cultural e político. Não

por acaso, o fracasso da filosofia, deflagrado no justo momento em que se daria a

realização de suas mais nobres ambições, é o tema com o qual Adorno inicia aquela

que é considerada sua obra capital, a Dialética Negativa1. De acordo com o

diagnóstico elaborado por Adorno, torna-se uma exigência incontornável pensar nas

possibilidades que a filosofia ainda pode levantar, para levar a termo o projeto de

crítica radical do mundo contemporâneo.

É preciso ressaltar, contudo, que Adorno não pretende fundar com sua

filosofia um novo paradigma frente aos sistemas de pensamento moderno e sua

racionalidade técnica inerente, mas criticar esse pensamento a partir de suas

insuficiências. Por isso, defendemos neste trabalho que o núcleo da filosofia de

Adorno será uma tentativa de recuperar criticamente o esclarecimento filosófico. Essa

tentativa pode ser vislumbrada quase que na totalidade dos textos da produção

filosófica de Adorno, desde as obras mais metodológicas e profundamente filosóficas

até sua produção menos acadêmica, incluindo alguns de seus ensaios e textos

escritos para o rádio, que tratam de arte, sociedade, política, psicanálise, entre outros

temas.

O esclarecimento, conforme veremos mais adiante, é entendido por Adorno

como uma proposta de promoção da emancipação humana, livrando a humanidade

da obscuridade das crenças, superstições e misticismo através do pensamento dito

1 Negativ Dialektik (1966).

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racional. Contudo, essa ambição, conforme veremos, converte-se em um novo

misticismo, em um pensamento que impõe dogmas, não soluciona conflitos e oprime

pessoas. A modernidade, compreende Adorno, repõe a insegurança que a princípio o

esclarecimento visava superar. Contudo, essa faceta contraditória do esclarecimento

filosófico permite a Adorno o reconhecimento de que sua própria filosofia possui parte

de suas raizes na tradição que visa criticar. Por isso, está no percurso delineado para

este trabalho evidenciar o quanto Adorno se dedica a superar as insuficiências do

esclarecimento por meio da proposição de novos caminhos para a realização dos

objetivos do pensamento esclarecido. Desse modo, buscamos demonstrar que a

filosofia adorniana não é imanente apenas em seu materialismo, que pretende

reestabelecer a importância de centralizar o objeto do conhecimento se contrapondo

a um subjetivismo que atingiu moldes radicais na modernidade, mas também em seu

aspecto crítico, uma vez que reconhece, dialeticamente, que qualquer crítica, na

filosofia, é sempre em parte devedora do objeto, teoria, sistema que se está a tentar

superar.

É nesse sentido, por exemplo, que mesmo nas obras em que Adorno mais

duramente critica Hegel, conforme veremos, é reconhecido por Adorno seu profundo

o saldo devedor com respeito à filosofia hegeliana. A dialética “positiva” de Hegel é a

base sobre a qual se acomodam as principais considerações de Adorno acerca da

dialética, da crítica ao impulso pela identidade característico do idealismo filosófico (e

do esclarecimento de um modo geral, como veremos mais à frente), da consolidação

do positivismo enquanto método para as ciências sociais e humanas e do propósito

mais geral da filosofia na contemporaneidade.

Portanto, o presente trabalho também se propõe a investigar a apropriação

crítica da filosofia hegeliana promovida por Adorno de modo a evidenciar os

fundamentos da tese adorniana de que a filosofia que se pretenda relevante na

modernidade deve ser dialética. Para tanto, buscaremos demonstrar que a crítica à

subjetividade constitutiva, cerne da contraposição de Adorno ao pensamento idealista,

já se encontra presente na filosofia de Hegel, muito embora o aparato teórico que

fundamenta a dialética negativa desenvolvida por Adorno também seja, em grande

parte, herança hegeliana. De modo geral, embora a recusa a uma noção constitutiva

de subjetividade seja elemento comum na dialética “positiva” de Hegel e na proposta

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adorniana de uma dialética negativa, Adorno ressaltará que se diferencia de Hegel,

sobretudo, no caráter dado à sistematicidade do pensamento dialético. Procuraremos

evidenciar, por isso, o fato de que a categoria da negação, que ambos, Hegel e

Adorno, consideram como motor do próprio pensamento dialético, não é, segundo

Adorno, levada por Hegel até as suas últimas consequências. Hegel teria posto, ao

fim de seu percurso filosófico, a negação em suspenso em nome da organização de

um pensamento sistematizado, no qual totalidade e verdade se identificam para

garantir os critérios de objetividade do conhecimento. Veremos esse recurso

hegeliano em maior detalhe, bem como a recusa de Adorno a qualquer possibilidade

de suspensão da negatividade, seja em nome da compreensão de um presente

histórico, seja pela busca da construção de um sistema coeso e fechado de categorias

para compreensão da práxis. Em suma, delinearemos aspectos nos quais o

pensamento adorniano encontra em Hegel a solução para a maior parte dos efeitos

deletérios do esclarecimento, bem como os momentos em que Adorno aponta a

filosofia hegeliana como sendo excessivamente “moderna”, por seu impulso pelo

pensamento identificador, mesmo tendo desenvolvido uma sistema de pensamento

no qual a negatividade supostamente seria um momento incontornável.

Seguiremos um percurso que se iniciará com a observação do preciso

diagnóstico de época elaborado por Adorno e o paralelo que o mesmo estabelece

entre o fracasso de uma era que sobrevive sob ameaça do acirramento de políticas

totalitárias e de um colapso nuclear e o fracasso de uma filosofia que, ao pensar em

mecanismos que promovessem a emancipação de todo ser humano, pode ser

corretamente apontada como contendo o germe das principais tensões que afetam o

mundo contemporâneo. Em outras palavras, começaremos por traçar os principais

elementos da tese adorniana de que o estado generalizado de crise em que se

encontram as sociedades sob o capitalismo tardio no Ocidente tem como causa um

paradigma específico de racionalidade, que buscou realizar a emancipação humana

por vias do domínio da natureza e dos processos de produção material e que

encontrou ao fim do caminho apenas a escravização, a exploração, a barbárie e a

desumanização.

Em seguida, aprofundando a investigação sobre a tese de que a filosofia

moderna radicaliza preceitos epistemológicos e metafísicos que são o berço das

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contradições do século XX, faremos uma breve incursão no pensamento de Immanuel

Kant e nas principais teses do seu idealismo transcendental, buscando evidenciar

traços que conduzem à tese de Adorno, bem como de Hegel, que compreendem o

idealismo transcendental kantiano como resultado direto do moderno esclarecimento.

Em resumo, Kant propõe um critério subjetivista para determinação da objetividade

do conhecimento, através de um procedimento que Adorno compreenderá como

resultando em um silenciamento do objeto. Trataremos, na sequência, e também de

modo sucinto, da crítica hegeliana a este projeto de Kant, a partir da recusa de Hegel

à noção de subjetividade constitutiva. Veremos, a partir disso, que a crítica de Hegel

a Kant conduz ao argumento hegeliano da imprescindibilidade da dialética, do qual

Adorno amplamente se vale na elaboração de sua dialética negativa.

Nesse ínterim, buscaremos delinear a forma como Adorno se situa entre

esses dois filósofos. Se opondo a Kant em favor de Hegel, Adorno aponta que a

subjetividade constitutiva perde seu contato mais íntimo com a realidade mesma, a

ponto de precisar estabelecer, quase que dogmaticamente, um âmbito do

conhecimento acerca do qual o entendimento não pode formular qualquer juízo válido.

A filosofia perde assim, em busca da validade do conhecimento do objeto, o contato

com o mesmo objeto. Entretanto, contra Hegel, Adorno recusa um modelo de crítica

à noção de subjetividade constitutiva que, para garantir a objetividade do

conhecimento, contraditoriamente aprofunda e hipostasia o sujeito, de modo a

determinar que a solução para o problema da objetividade do conhecimento se

encontra em uma espécie de interiorização da realidade, promovida pelo sujeito

pensante. Adorno estabelece sua crítica ao idealismo absoluto de Hegel buscando

uma filosofia materialista, avessa à identidade entre ser e pensar e, ao mesmo tempo,

dialética.

Finalmente, buscaremos apontar elementos da apropriação da dialética

hegeliana promovida por Adorno. Numerosos aspectos centrais da dialética negativa

são diretamente herdados da filosofia “positiva” de Hegel, fator que Adorno admite

sem reservas. Essa apropriação encontra seus limites, contudo, que em geral residem

no caráter sistemático da filosofia hegeliana e nas suas decorrências, para a própria

dialética. Para Adorno, a pretensão de elaborar um sistema filosófico a partir de uma

dialética que estabelece a noção de negação determinada como uma de suas

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principais categorias, mas que, por outro lado, esforça-se para conceder primazia a

uma filosofia da identidade é o mais destacado equívoco do projeto hegeliano. Por

isso, torna-se necessário percorrer, à luz do projeto adorniano, as transformações que

Hegel e Adorno promovem nas principais categorias e conceitos consolidados pela

modernidade filosófica. A própria relação tradicional entre sujeito e objeto deverá,

necessariamente, passar por uma profunda transformação, bem como a relação

apresentada pelo idealismo hegeliano, caso se pretenda manter a filosofia como um

conhecimento apto a dizer algo relevante acerca do mundo atual.

O trabalho aqui proposto contará, dessa maneira, com uma estrutura de três

capítulos centrais. No Capítulo I trataremos do diagnóstico de época apresentado por

Adorno acerca do capitalismo tardio, da barbárie que se instaurou sobre a

humanidade no século XX e da não realização do esclarecimento. Para tanto,

tomaremos Kant e seu escrito Resposta à pergunta: “O que é Esclarecimento?” 2 para

promover uma espécie de incursão histórico-filosófica que determinará o ponto em

que o esclarecimento falha enquanto projeto filosófico3. Essa incursão vai demonstrar

que, para Adorno, o século XX não representa o fracasso do projeto do moderno

pensamento esclarecimento, mas, na verdade, sua extrema realização. Como

veremos, Theodor Adorno e Max Horkheimer se propõem evidenciar na Dialética do

Esclarecimento4 – obra escrita em coautoria – que a racionalidade identitária e

dominadora, que encontra o auge de sua realização enquanto paradigma de

2 Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1784). 3 Em seu opúsculo sobre o Esclarecimento, Kant alerta para o vínculo estrito entre a atividade de fazer uso do seu próprio entendimento, que é precisamente o que caracteriza o pensamento esclarecido, e o exercício da liberdade. Kant é taxativo, não há esclarecimento onde os homens não são livres. Isso nos que permite concluir que a investigação das condições de possibilidade do exercício do pensamento esclarecido nos conduz diretamente para a reflexão sobre as condições subjetivas e materiais de exercício da liberdade. Há que se fazer duas observações importantes. A primeira reside na importância do conceito de liberdade. Trata-se de uma temática que pode ser encontrada nos escritos de Kant, Hegel e Adorno como uma constante e mesmo uma finalidade no projeto filosófico dos três pensadores. A outra é o caráter da crítica de Adorno ao programa do esclarecimento, que aponta precisamente que o Esclarecimento não realiza suas condições de possibilidade precisamente porque o modelo de racionalidade privilegiado pela moderna filosofia para tanto embota e, em último grau, impossibilita o exercício da liberdade. O conceito de emancipação – e as formas como a filosofia ainda pode manter suas promessas de emancipação para o mundo contemporâneo – será, portanto, o cerne das preocupações filosóficas de Adorno. Apesar de seu ponto de vista extremamente crítico com respeito ao esclarecimento, insistimos que não é equivocado dizer que Adorno é um filósofo que também está comprometido com este projeto. Contudo, para este, o esclarecimento deve ser alcançado por outras vias – através de um novo modelo de racionalidade – que não aquela legada pela modernidade filosófica. 4 Dialektik der Aufklärung - Philosophische Fragmente (1947)

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conhecimento livremente inspirado nos princípios do esclarecimento filosófico, é,

paradoxalmente, a origem da barbárie que vivenciamos no século XX –, e por que

não? – também no século XXI . Os autores dessa obra defendem, portanto, que

esclarecimento não fracassou, mas foi responsável por propagar um modelo de

racionalidade que, obedecendo a um impulso de controle e dominação da natureza –

que Nietzsche já tematizara no século XIX –, busca igualar os fenômenos e

ocorrências da realidade social e histórica aos processos de pensamento, esgotando

a plenitude dos primeiros às limitadas categorias da racionalização inerentes ao

segundo. Curiosamente, Adorno e Horkheimer alegam que é possível observar que

esse fenômeno tipicamente moderno não se inicia na modernidade, mas na

Antiguidade. Nas narrativas míticas, de acordo com os autores, já é possível

vislumbrar o impulso demasiado humano de autopreservação que exalta um modelo

específico de compreensão do mundo e controle dos processos e fenômenos, cuja

característica principal é centralizar o sujeito pensante, rebaixar o objeto e, finalmente,

perdê-lo em sua autenticidade e plenitude de sentido. Karl Marx, sublinhamos,

tematizará as maneiras por meio das quais a racionalidade que opera o controle da

natureza e, posteriormente, da sociedade, transformará a realidade da produção

material em pura quantificação, a ponto de impossibilitar que o ser humano reconheça

sua própria contribuição – o aspecto qualitativo da sua força de trabalho – na produção

de bens de que necessita para sua sobrevivência, tornando-se, assim, incapaz de

perceber o impacto das suas ações sobre a totalidade social. Marx expõe a forma

como a dominação humana sobre a natureza, alçada a paradigma de racionalidade

pela revolução científica do século XVII, converte-se de modo sui generis em

dominação extrema do homem pelo homem no sistema econômico capitalista.

A análise a constar no Capítulo I dar-se-á mediante o seguinte roteiro:

tematizaremos o conceito kantiano de esclarecimento para, em seguida, apresentar

os argumentos de Adorno e Horkheimer em sua defesa de que a modernidade não

somente foi incapaz de alcançar os fins mais ambiciosos desse projeto, como o

conduziu ao seu oposto. Essa tese envolve (1) a percepção da importância do

conceito de liberdade – de emancipação – para o exercício do pensamento

esclarecido; (2) a forma como a racionalidade moderna, instrumental e quantificadora,

elimina as condições de possibilidade de uma realização efetiva da liberdade; (3) a

observação do vínculo entre uma má compreensão da ideia liberdade e sua não

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efetivação; (4) a constatação de que o moderno esclarecimento é contraditório, pois

ao mesmo tempo em que define que um paradigma específico de racionalidade é a

norma de pensamento – que garantirá a objetividade do conhecimento, a validade

das ciências e o controle dos processos que possibilitarão a produção dos bens

materiais de que necessitamos para alcançar um mínimo desejável de qualidade de

vida – acaba por gerar, por meio desse mesmo paradigma de pensamento, o

aprisionamento humano, sua alienação dos processos de produção material e

imaterial e o embotamento da sua capacidade para a crítica.

Ressaltaremos, para concluir o Capítulo I, que o projeto adorniano de crítica

ao pensamento esclarecido se efetiva de uma forma diferente daquela que pensava

Kant. Ocorre que, segundo Adorno, o esclarecimento realizou suas pretensões, à

medida que o tipo de racionalidade eleito como unicamente válido se dissemina pelo

Ocidente a tal ponto que exige a realização de uma crítica imanente. Contudo, essa

realização não dirige a humanidade para uma era de emancipação e liberdade, mas

para a barbárie e o terror. A dialética inerente ao esclarecimento reside precisamente

nisto: temores que no passado conduziram a humanidade recusar as narrativas

míticas e instaurar uma nova forma de pensar o mundo – pragmática, quantificadora,

formalizadora e matemática – reestabelecem-se na era que impôs essa nova forma

de pensar como norma. Para Adorno, faz-se necessário, em vista de manter as

pretensões de realização e felicidade humanas, e portanto, de liberdade e

emancipação, que tomemos uma via diferente.

O Capítulo II tratará dos possíveis modelos de racionalidade que, para

Adorno, possuem potencial para superar o modelo tradicional. Adorno, conforme já

mencionamos, não acredita na possibilidade de “saltar fora” da racionalidade instituída

pela metafísica e herdada da modernidade. A consciência humana também é, para

Adorno, – e nisto segue Hegel – resultado de conformações históricas. Não há, assim

sendo, um ponto de vista exterior ao paradigma moderno de racionalidade ou ao

presente histórico que possamos tomar como critério e fundamento para novas formas

de compreensão. Tal pretensão seria ingênua. Por isso, é preciso realizar uma crítica

imanente, que investigue, a partir dos modelos de experiência propostos pela

modernidade, as condições de possibilidade de alcançar vias de pensamento não

embotadas pelo afã totalizante da racionalidade normativa instrumental.

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Adorno estabelece, portanto, uma conexão entre as possibilidades de

emancipação na contemporaneidade, o resgate de uma filosofia que pense a práxis

em vista de condições efetivas de liberdade, e os modelos de pensamento modernos.

A investigação de modelos epistemológicos modernos é condição de possibilidade de

uma filosofia crítica. Isso porque, para Adorno, a própria classe social dominante

insere-se na lógica da reificação e sua racionalidade também se encontra embotada

pela prática da operacionalização da produção, pela alienação imposta entre o

trabalhador e a mercadoria que este produz e pela quantificação de todos os aspectos

da vida material. A consciência do operário não é mais embotada que a consciência

da burguesia. É neste ponto que localizamos a categoria adorniana da totalidade, ou

seja, o conjunto de determinações às quais todos os indivíduos estão submetidos e

que os mesmos reproduzem e atualizam em seu cotidiano. A racionalidade

instrumental é devastadora justamente por seu aspecto totalizante: quando toda a

realidade passa a ser compreendida pelos indivíduos através do paradigma da

quantificação dos processos de produção de mercadorias, não resta um ponto de vista

exterior à reificação ao qual um sujeito, ou classe, poderia se alçar e ler a realidade

de forma mais conveniente para si. Interessa a Adorno, dessa forma, buscar

alternativas a esta racionalidade totalizante e quantificadora que sejam imanentes à

mesma. Esse processo, conforme veremos mais à frente, só pode ser realizado

dialeticamente. E essa é a razão mais significativa para o interesse de Adorno no

pensamento de Hegel.

Contudo, a proposta adorniana de pensar as condições de possibilidade do

desenvolvimento de uma filosofia essencialmente crítica tematizará primeiramente o

pensamento de Kant, cuja epistemologia é tomada por Adorno como incontornável.

Adorno celebrará em Kant o fato de que, pela primeira vez, a metafísica não somente

sistematizou e apresentou de maneira não ingênua as condições de possibilidade do

conhecimento verdadeiro, como também desvendou o aspecto incontornavelmente

conceitual desse processo, demonstrando a impossibilidade de se obter

conhecimento verdadeiro por meio de intuições intelectuais e combatendo, em um

mesmo sistema filosófico, o ceticismo e o dogmatismo. Pensar o mundo de forma

objetiva é, para Kant, formular conceitos, e Adorno concorda com isso sem reservas.

No entanto, Adorno também concederá espaço para a crítica de Hegel à

epistemologia kantiana, ressaltando o modo como Hegel primeiramente reconhece o

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caráter incontornável da “revolução copernicana” promovida por Kant – e a superação

que este promove, simultaneamente, do dogmatismo racionalista e do ceticismo

empirista – para, em seguida, demonstrar as insuficiências da filosofia kantiana, que

necessita demarcar uma parcela do real à qual o sujeito não pode garantir possuir

acesso. Hegel não admite essa compreensão limitada do escopo de conhecimentos

que podem ser sustentados pela razão e promove uma crítica dialética ao modelo

categorial adotado por Kant.

Explicando esse ponto de maneira muito sucinta, Hegel aceitará o resultado

kantiano acerca condições de possibilidade do conhecimento objetivamente válido.

Contudo, recusará duas noções centrais para o pensamento de Kant: primeiramente,

a noção kantiana de que as categorias do entendimento perfazem uma estrutura

formal prévia, imutável e vazia de conteúdo e, finalmente, a própria separação

kantiana entre sensibilidade e entendimento. Essa recusa possui decorrências de

extrema relevância, uma vez que Hegel irá se dedicar a demonstrar que a constituição

das categorias – e, de modo mais abrangente, da consciência – não é um fenômeno

alheio à historicidade. A própria constituição da consciência é, para Hegel, um

processo dinâmico, intrinsecamente vinculado ao objeto de conhecimento. Em

resumo, há, de acordo com Hegel, a subjetividade também passa por momentos de

autoconstituição, dos quais os objetos participam, embora idealmente – uma vez que,

para Hegel, todo acesso da consciência à realidade é conceitual e a consciência opera

sempre em um nível que já é, por sua própria necessidade, o mesmo nível da

realidade em si dos objetos. Veremos em mais detalhe esse movimento hegeliano à

frente.

Adorno, por sua vez, recusará o excessivo idealismo hegeliano, reclamando

um contato mais direto com a objetividade e a noção de que a experiência precisa ser

capaz de levar em consideração não somente a insuficiência das categorias para a

compreensão do mundo como a realidade necessariamente contraditória de todo e

qualquer juízo que somos capazes de enunciar. Uma filosofia que não pretenda

suprimir as contradições do real, embora pretenda ainda compreendê-las, será para

Adorno o único caminho possível para a elaboração de uma filosofia crítica. É neste

momento, no Capítulo III, que trataremos da crítica adorniana da dialética de Hegel.

Investigaremos trechos selecionados de duas obras em que Adorno se aprofunda na

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tematização e análise do pensamento hegeliano: os Três Estudos Sobre Hegel e a

aquela que é considerada sua obra de maior importância, a Dialética Negativa5 – aqui

analisando mais especificamente o capítulo denominado Conceito e Categorias. O

objetivo aqui será delinear os aspectos da filosofia de Hegel que são mais caros a

Adorno e dos quais este se apropria em sua própria filosofia. Concomitantemente,

trataremos prioritariamente dos elementos característicos de uma concepção,

segundo pretende Adorno, negativa de dialética, em contraposição à positividade que

Adorno aponta se fazer presente nas pretensões de sistematicidade da dialética

hegeliana. Neste momento, que será reservado para a compreensão da crítica de

Adorno a Hegel, trataremos, sobretudo, da concepção adorniana da relação entre

sujeito e objeto, de proposta de incontornabilidade da negação, da sua tematização

da prioridade do objeto do conhecimento e sua tematização do não-conceitual e do

não-idêntico na dialética.

Finalmente, fica também reservado ao final do Capítulo III um breve estudo

acerca das consequências do projeto adorniano. Pensaremos mais ponderadamente

no seu conceito de constelação, que o aproxima de Walter Benjamin e das reflexões

sobre estética, bem como de suas críticas à indústria cultural. É de amplo

conhecimento que, paralela às reflexões acerca dos equívocos históricos que a

contemporaneidade herdou da tradição, das concepções ontológicas e da

fundamentação metafísica do conhecimento propostas pela filosofia, Adorno também

dedicou vasta obra ao estudo da psicanálise, da sociologia e da arte, deixando

incompleta a obra em que pretendeu investigar mais ampla e profundamente o

potencial da arte de vanguarda, sobretudo da música, para levantar propostas de

emancipação para a sociedade contemporânea, a Teoria Estética6. Analisaremos a

proposta adorniana de aproximar a dialética da estética, passando por escritos que

tratam da literatura, do rádio e do conceito de indústria cultural. A proposta aqui será,

portanto, lançar luz sobre a tênue linha divisória que Adorno traça entre filosofia e arte.

5 Respectivamente, Drei Studien zu Hegel (1963) e Negative Dialektik (1966). 6 Ästhetische Theorie (1970)

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1. SOBRE O COLAPSO DA RAZÃO OCIDENTAL: UMA LEITURA DA

DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

1.1 INTRODUÇÃO

Nesta primeira parte, investigaremos as razões que Adorno levanta para a

defesa de sua tese de que a filosofia entrou em colapso sem haver realizado suas

ambições. O principal responsável pela calamidade antevista por Adorno será o

moderno esclarecimento (Aufklärung). Tradicionalmente considerado como um traço

do pensamento moderno, o esclarecimento filosófico é caracterizado por Adorno como

um expediente muito anterior à modernidade. Mais do que uma tendência de

pensamento, o esclarecimento, para Adorno, é a tentativa de resposta racional a um

impulso de autoconservação, que visa alcançar o controle da natureza por meio de

operações de pensamento que, por sua vez, estabelecem relações artificiais de

identidade entre seus próprios juízos e a realidade com a qual se depara. A maneira

pela qual o esclarecimento se desenvolve historicamente e se consolida como

paradigma de racionalidade será apontada por Adorno como a raiz mais profunda do

esgotamento da filosofia na contemporaneidade.

Para dar corpo a esse seu diagnóstico, Adorno confronta a tradição e conclui

que se, por um lado, o pensamento moderno de Descartes a Kant progressivamente

atestou a cisão entre sujeito e objeto, que isola o indivíduo da estruturação social

acerca da qual deveria compor um pensamento crítico, por outro lado, o positivismo

se mostra como uma postura acrítica frente à pretensão de neutralidade axiológica, à

concepção de ciência como constante progresso e ao sistema econômico capitalista

como estrutura alienante dos sujeitos políticos. Dividida entre essas duas tendências,

a filosofia, segundo Adorno, está, na contemporaneidade, caminhando para o

esgotamento de suas possibilidades emancipatórias.

Mas a história não é vista por Adorno como um desenvolvimento linear. Por

isso, o filósofo não desenvolve um panorama histórico da modernidade, nem mesmo

da história da filosofia, em seu diagnóstico da contemporaneidade, mas uma

genealogia, investigando as concepções metafísicas, a teorias sociais e os fenômenos

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de ordem política que supostamente ocasionam o fracasso do esclarecimento no

âmago da sua mais radical realização. Isso porque o esclarecimento, como qualquer

fenômeno social, não foge de ser contraditório. O presente capítulo será dedicado a

investigar as razões disso. Trataremos aqui brevemente da origem da Escola de

Frankfurt e do exílio de Adorno e Horkheimer nos EUA, para então desenvolvermos

uma leitura crítica daquela que é uma das principais obras de Adorno acerca do

diagnóstico de época por ele elaborado para a contemporaneidade, a Dialética do

Esclarecimento.

1.2 UMA PROPOSTA DE TEORIA CRÍTICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

A Dialética do Esclarecimento é uma das mais emblemáticas obras de Adorno,

na qual tratará da crise da racionalidade contemporânea que, segundo ele, decorre

diretamente da filosofia do esclarecimento. Conforme o subtítulo da obra enuncia,

trata-se de uma reunião de fragmentos, de reflexões filosóficas não sistematizadas,

que, seguindo um modelo ensaístico de escrita, apresenta um profundo diagnóstico

de época e uma análise acerca das possibilidades de campos de ação para a filosofia

e a crítica social no século XX. Publicada pela primeira vez em 1947 por uma pequena

editora na cidade de Amsterdã, é desenvolvida em parceria e seus autores, Theodor

W. Adorno e Max Horkheimer, redigiram-na durante seu tempo de exílio nos Estados

Unidos, em fuga do regime nazista.

A obra gira em torno da constatação de que o programa teórico-

epistemológico do esclarecimento, cujo objetivo principal era a promoção da

emancipação humana, contraditoriamente acaba por gerar um novo tipo de

dominação, alienação e aprisionamento. Para além dessa temática, a Dialética do

Esclarecimento apresenta diferentes análises dos autores sobre o momento histórico

da Alemanha da época, além de revelar o impacto neles causado o período vivido no

Novo Continente, em plena consolidação do rádio como principal veículo de

comunicação de massa e do jazz como novo fenômeno da música popular.

Entretanto, para compreendermos a relação sugerida pelos autores, ponto

central da obra, entre as mazelas da primeira metade do século XX e o programa do

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esclarecimento filosófico, é necessário entender o papel que a obra de Adorno e

Horkheimer desempenha no contexto dos estudos desenvolvidos pelos intelectuais

da chamada Teoria Crítica. Esta última designa uma corrente de pensamento

contemporâneo que se estende até a atualidade, e tem seu início em 1923, com a

fundação do Instituto para Pesquisa Social7, que posteriormente se vincularia à

Universidade de Frankfurt e passaria a ser comumente chamada apenas de Escola

de Frankfurt. Apesar de se caracterizar pelo aspecto multidisciplinar de suas

pesquisas – que perpassam estudos em filosofia, sociologia economia, história e

psicanálise – os pensadores da teoria crítica têm em comum a preocupação com

questões relativas ao capitalismo tardio. Coincide, no entanto, sobretudo entre os

intelectuais vinculados ao Instituto em suas gerações mais tardias, a compreensão de

que o capitalismo não poderia mais ser estudado tendo em vista exclusivamente as

categorias de pensamento propostas por Karl Marx, especialmente quando

consideram-se as transformações impostas pelas duas Grandes Guerras, pela

experiência do totalitarismo fascista, nazista e stalinista8 e pelo enfraquecimento dos

7 Em alemão: Institut für Sozialforschung. Trata-se de um núcleo de pesquisas em ciências sociais e filosofia que reúne filósofos, sociólogos e psicólogos, entre outros estudiosos. Fundado na cidade de Frankfurt no ano de 1923 e posteriormente transferido para os Estados Unidos da América devido à necessidade de exílio de seus membros, que buscaram proteção contra as atrocidades promovidas pelo regime nazista na Alemanha. Para maior aprofundamento acerca da história do Instituto, é válido observar a obra de Rolf Wiggershaus, “A Escola de Frankfurt – História, desenvolvimento teórico e significação política” (traduzida para o português por Lilyane Deroche-Gurcel e publicada pela Editora DIFEL) 8 O fato – criticado à época – de os intelectuais da Escola de Frankfurt terem, em geral, evitado teses que tratassem da ação pontual da classe operária no engajamento em um ideal revolucionário se explica, entre outros fatores, pela transformação que capitalismo atravessa após as experiências totalitárias do século XX. Um dos princípios básicos do capitalismo liberal, a autorregulação do mercado, passa a não ser mais corretamente aplicável para a compreensão deste novo contexto econômico, cuja principal característica é a forte intervenção do Estado na economia, em prol da manutenção de interesses da classe social dominante, a burguesia. Marcos Nobre (2008) observa que estudiosos como Horkheimer e Adorno teriam percebido que a superação do capitalismo tardio se tornara, ao menos provisoriamente, uma questão mais prioritariamente política do que matéria de caráter econômico. Além disso, há que se considerar que o histórico das lutas operárias na primeira metade do século XX ocasionou momentos de relativa melhora nas condições de vida e trabalho, permitindo o surgimento de setores da classe trabalhadora com rendimentos mais elevados, o que progressivamente fez estes setores partilharem mais facilmente do sistema de valores e de formas de vida específicos da burguesia e dificultou seu reconhecimento enquanto classe social distinta. Isso teria esvaziado a luta de classes e minado possibilidades revolucionárias. Estes são elementos que exigem não apenas novos princípios de análise do sistema capitalista, mas também novas estratégias para sua superação, razão de os teóricos de Frankfurt terem, por um lado, abandonado parcialmente algumas das estratégias propostas por Marx e, por outro, concentrado seus esforços em compreender a dinâmica social e política de seu tempo, ao invés de propor ações diretas de combate contra esta estrutura. Marcos Nobre aponta que “tanto o modelo crítico da década de 30 quanto o da década de 40 já não tem no movimento operário o destinatário da própria teoria. Ao contrário das posições então dominantes no interior do marxismo, Horkheimer não considerava mais possível, em vista das novas condições históricas, continuar sustentando que o proletariado seria a única força política interna ao

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ideais revolucionários da esquerda em meados do século XX. Acerca dessa

percepção, Rolf Wiggershaus (2002) aponta quão significativo foi que todos os

intelectuais vinculados ao Instituto em sua primeira geração fossem judeus e que,

À sua maneira, os judeus deveriam ter também, não menos que os proletários, um sentimento de alienação e de inautenticidade da vida na sociedade burguesa capitalista. Mesmo que os judeus fossem em grande parte privilegiados em relação aos proletários, nem por isso escapavam a seu judaísmo. Os trabalhadores privilegiados, em contrapartida, deixavam de ser trabalhadores, quando muito na segunda geração. Mas era mais difícil, para eles, atingir a condição de privilegiados. A experiência da tenacidade da alienação social que tinham os judeus criava uma certa semelhança com a experiência da tenacidade da alienação social, regra geral para os trabalhadores. Isso não implicava obrigatoriamente uma atitude de solidariedade em meio aos trabalhadores. Mas conduzia, em todo caso, frequentemente, a uma crítica radical da sociedade, que correspondia aos interesses objetivos dos trabalhadores. (WIGGERSHAUS, 2002, p. 34).

A análise da dinâmica de dominação imposta pelo sistema econômico

capitalista em meados do século XX demandou a articulação de diferentes frentes de

trabalho, com caráter interdisciplinar, e isso transparece na história do Instituto. No

entanto, como Wiggershaus também observa, a teoria marxista mantém-se, ao longo

de toda produção intelectual dos teóricos do Instituto, como um princípio essencial a

ser mantido, qual seja, “a crítica concreta das relações sociais alienadas e alienantes”

(WIGGERSHAUS, 2002, 37).

Nessa linha, Max Horkheimer, nomeado diretor do Instituto em 1931, é

responsável por cunhar o termo “teoria crítica”, cuja definição aparece em um famoso

ensaio de sua autoria, Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de 1937. Horkheimer, neste

ensaio, aponta a origem e as decorrências mais evidentes da adesão irrefletida a um

tipo específico de racionalidade que, segundo seu autor, surge e se consolida na

modernidade. Wiggershaus aponta que foi a leitura dos escritos do jovem Marx que

permitiu a Horkheimer a visão de que “o capitalismo não significava apenas uma crise

econômica ou política, mas uma catástrofe da natureza humana” (WIGGERSHAUS,

2002, 37) e que era preciso, portanto, “não só fazer uma reforma econômica ou

política, mas uma revolução total” (Ibidem).

próprio sistema, que seria portadora da destruição do capitalismo e da instauração do socialismo. Em razão do seu diagnóstico do tempo, já não considerava possível sustentar uma união entre teoria e prática nos termos em que havia sido pensada no marxismo de seu tempo” (NOBRE, 2008, p. 37). É neste sentido, também, que Nobre defenderá que a Dialética do Esclarecimento não deve ser lida como um texto aporético. Trataremos deste último ponto mais à frente.

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A diferenciação, proposta por Horkheimer em seu ensaio, entre teoria

tradicional e teoria crítica – cuja continuidade temática se observa na Dialética do

Esclarecimento – passa por sua compreensão da filosofia de René Descartes.

Descartes, considerado fundador da filosofia moderna e principal representante do

racionalismo do séc. XVII, pretende haver elaborado um sistema teórico que permitiria

a compreensão da realidade a partir da formulação de princípios racionais gerais,

através da abstração e matematização dos fenômenos, da aplicação de raciocínios

dedutivos e da identificação e supressão de contradições no pensamento. Tendo

escrito sua obra em um momento de consolidação da ciência moderna, Descartes

preconiza o abandono da religiosidade típica da Escolástica medieval e propõe a

absoluta fundamentação do conhecimento tão somente na razão, uma vez que

considera que apenas esta é capaz de fornecer conhecimentos exatos, livres da ilusão

religiosa e do engano advindo dos dados dos sentidos. Esse último elemento é de

suma importância para Descartes. Somente a razão, considera ele, é capaz de

alcançar conhecimentos verdadeiros, enquanto a sensibilidade daria impressões

equivocadas acerca do mundo.

Para alcançar seu objetivo, Descartes defende que é imprescindível estender

o uso do método matemático-dedutivo, puramente racional, para todas as áreas do

saber humano, tornando-o modelo ideal de conhecimento verdadeiro. Em resumo,

pode-se afirmar que decorre da metafísica cartesiana o entendimento de que o mundo

é um espaço repleto de corpos de estruturação mecânica, de funcionamento regular

e, portanto, padronizável. Em outras palavras, é fundamento da filosofia de Descartes

a concepção de que a natureza possui uma estruturação regular, não caótica nem

aleatória9, e sua adequada compreensão exige uma estrutura de pensamento e

análise de mundo que se ajuste a esta realidade. Descartes sistematiza essa estrutura

9 A observação cartesiana da regularidade dos fenômenos naturais é corriqueiramente ilustrada com seu argumento mecanicista presente na quinta parte do seu famoso Discurso do Método (Discours de la méthode – 1637), onde Descartes faz uma analogia entre o corpo humano e um relógio, por considerar que o corpo de animais e seres humanos funciona tal como uma máquina.

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em seu Discurso do Método10 e a justificativa para a consolidação deste método como

paradigma universal de racionalidade11 é precisamente sua metafísica.

Horkheimer, por sua vez, observa que uma vez comprovada a eficácia do

método cartesiano para as ciências da natureza, a filosofia passa a paulatinamente

se utilizar de semelhante raciocínio para compreender, por exemplo, fenômenos de

caráter político e social. Ou seja, a tradição herdeira de Descartes reproduz a

metafísica cartesiana sem atentar para a existência de objetos, ocorrências e

fenômenos na realidade que não se comportam de forma passível de padronização.

A boa aplicabilidade do método cartesiano para as ciências oculta não somente sua

inadequação para outros tipos de experiência, mas inclusive as condições de

possibilidade de captar essa inadequação, uma vez que não só o método é tornado

regra, mas também é pressuposto o modelo metafísico de realidade ao qual aquele

método adequadamente deve se aplicar.

Este procedimento, observa Horkheimer, tem consequências devastadoras

para a filosofia. Uma das mais imediatas é a instituição de um modelo

intencionalmente limitado de racionalidade como paradigma de conhecimento para

todas as áreas do saber humano. A metafísica cartesiana, ao atribuir uma

incontornável regularidade à realidade objetiva, de modo que essa realidade acabe

por ser completa e corretamente explicada pelo seu método, tende a, com o tempo,

desconsiderar, descartar ou tomar por contraditórios e os aspectos dessa realidade

que não se deixem explicar com base na metafísica que lhe serve de fundamento. Ao

mesmo tempo, procedimentos que visam compreender esses elementos são

10 Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la verité dans les sciences (1637). Publicado em 1637, o Discurso do Método apresenta a proposta cartesiana de um método universal para alcançar a verdade sobre todas as questões que se colocam para o intelecto humano. As impressões advindas dos sentidos deveriam ser rejeitadas pelas ciências, em favor da priorização de juízos elaborados apenas através da razão. Para tanto, Descartes sugere um minucioso método, quase matemático, dividido em quatro etapas fundamentais. A matemática é, para Descartes, a ciência que deverá fornecer o aparato para alcançar do conhecimento da verdade, uma vez que, segundo o filósofo, as conclusões matemáticas apresentam menor chance de erro e tem por objetivo a completa eliminação de dúvidas. Cf. DESCARTES, R. Discurso do Método. Coleção Os Pensadores, 1973). 11 Rodrigo Duarte explica o procedimento adotado por Descartes no Discurso do Método: “Faltava, portanto, à física e à matemática, segundo Descartes, uma concepção unitária de natureza, que lhe desse fundamento filosófico, e ele se empenhou na tarefa de evitar que a nova ciência permanecesse um amontoado de hipóteses prováveis, tentando fundamentá-la numa metafísica abrangente. Nesse contexto, Descartes ousou atribuir regras mecânicas a toda a natureza, de forma que os preceitos do seu método matemático pudessem achar aplicação num âmbito tão vasto quanto possível” (DUARTE, R. 1993, p.35).

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classificados como não científicos e, em decorrência, irracionais. O ápice da teoria

tradicional é, aponta Horkheimer, o positivismo, cuja característica principal é a

aceitação da universalização do modelo específico de pensamento adotado pela

ciência moderna, sistematizado em seus fundamentos pelo método cartesiano, e sua

consequente aplicação na metodologia para as ciências sociais:

Dentre as diferentes escolas filosóficas parecem ser particularmente os positivistas e os pragmáticos que tomam em consideração o entrelaçamento do trabalho teórico com o processo de vida da sociedade. Eles assinalam como tarefa da ciência a previsão e a utilidade dos resultados. (HORKHEIMER. 1980, p. 122).

Olgária Matos, ao analisar a proposta de Horkheimer, observa que a teoria

tradicional “se esforça em reconduzir a alteridade, a diversidade, a pluralidade, tudo

que é outro em relação a ela, à dimensão do mesmo, como faz a ciência cartesiana”

(MATOS, 1993, p. 21). Para Horkheimer, a busca pelo rigor conceitual, pelo controle

técnico da natureza e pela atomização da experiência, decorrências diretas do

programa proposto por Descartes, conduz a um necessário abandono da visão do

todo12, e isso possui consequências na forma como esse critério de análise da

realidade afeta e, eventualmente distorce, a interpretação da dinâmica social.

A representação tradicional da teoria é abstraída do funcionamento da ciência, tal como este ocorre a um nível dado da divisão do trabalho. Ela corresponde à atividade científica tal como é executada ao lado de todas as demais atividades sociais, sem que a conexão entre as atividades individuais se torne imediatamente transparente. (...) É preciso passar para uma concepção que elimine a parcialidade que resulta necessariamente do fato de retirar processos parciais da totalidade da práxis social” (HORKHEIMER, M. 1980, p. 123-124).

O problema aqui não é necessariamente a utilização do ideal cartesiano de

ciência, mas sua extensão acrítica para as ciências sociais e humanas, na tentativa

de imprimir nessas um caráter também “científico”. A teoria tradicional é eficaz para o

entendimento das ciências da natureza na mesma medida em que o cientificismo que

dela se origina é radicalmente incapaz de compreender a extensão do próprio impacto

sobre a totalidade social, seja nas formas de produção de mercadorias, na dinâmica

da vida em sociedade, nos padrões de consumo ou mesmo no modo como as pessoas

12 Um dos quatro passos do método cartesiano é precisamente a separação e isolamento das questões de um problema, para interpretação de cada questão em separado das demais. Esse procedimento, veremos à frente, é tido por Adorno como um equívoco. A dialética pressupõe precisamente que não é possível isolar momentos de uma questão sem que haja necessariamente uma perda de parte do sentido. A atomização da realidade, a princípio, conduz a interpretação a reducionismos.

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usam seu tempo livre. Seu conhecimento do mundo ocorre de maneira atomizada,

abstrata e quantificada, isolada da realidade histórica, material e social na qual seu

procedimento se insere e sobre o qual intervém. Além disso, não possui condições de

empreender a necessária autocrítica de seu procedimento. Para os filósofos adeptos

da teoria tradicional, observa Horkheimer, qualquer elemento, objeto e fenômeno que

compõe a totalidade social é passível de ser estudado isoladamente, apartado da sua

historicidade e do aparato simbólico e valorativo que confere àquele fenômeno um

sentido que ultrapassa a simples materialidade, mas a compreensão da práxis13 social

exige uma abordagem diversa. Horkheimer, desse modo, compartilha com os demais

intelectuais de Frankfurt a convicção de que a barbárie que se instaurou no Ocidente

na primeira metade do século XX não pode ser completamente compreendida – e,

portanto, superada – por meio do arquétipo de racionalidade proposto pela teoria

tradicional, porque este desconhece sua historicidade, opera em função do controle

da natureza e compartimentaliza ocorrências que devem ser estudadas em sua

totalidade. Mais radicalmente, Horkheimer procura demonstrar que estes arquétipos

de racionalidade e de verdade são responsáveis diretos pela instauração, através da

sociedade administrada, da barbárie contemporânea. Olgária Matos explica a origem

dessa convicção ao elucidar que

Os frankfurtianos desenvolveram uma explicação sobre o fenômeno do totalitarismo que é de ordem metafísica: é na constituição do conceito de Razão, é no exercício de determinada figura, ou racionalidade, que estes filósofos alojam a origem do irracional. Em nome de uma racionalização crescente, os processos sociais são dominados pela ótica da racionalidade científica, característica da filosofia positivista. Nessa perspectiva, a realidade social dinâmica, complexa, cambiante é submetida a um método que se pretende universalizador e unitário, o método científico. O positivismo, prisioneiro de seus próprios métodos, impõe um procedimento não social às ciências sociais (MATOS, O. 1993, p. 08).

Em contraposição à tendência positivista que se vislumbrava nas ciências

sociais à época, Horkheimer almeja que uma teoria crítica da sociedade seja capaz

de formular juízos cujo critério de verdade inclua a compreensão da historicidade do

13 Acerca da noção de práxis conforme utilizada pelos intelectuais da Teoria Crítica, Martin Jay aponta que “em uma definição frouxa, a práxis foi usada para designar uma espécie de ação autocriadora, que diferia do comportamento externamente motivado, produzido por forças que estavam fora do controle humano. Ao ser usada pela primeira vez na Metafísica de Aristóteles, a práxis foi originalmente vista como o oposto da teoria contemplativa. No uso marxista, porém, foi vista em uma relação dialética com a teoria. De fato, uma das características da práxis, em contraste com a mera ação, era o fato de ela ser instruída por considerações teóricas. A atividade revolucionária deveria unificar a teoria e a práxis, o que estaria em contraste direto com a situação vigente no capitalismo” (JAY, 2008, p. 40).

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conhecimento e análises do sistema valorativo que, via de regra, sobredeterminam a

formulação de hipóteses na investigação de fenômenos de ordem social, mas que

costumam ser descartados nas formulações de caráter científico acerca desses

mesmos fenômenos. Uma teoria crítica não deve se submeter à pretensão positivista

de neutralidade axiológica e nem ao caráter instrumental da teoria tradicional. Para

Horkheimer, além disso, uma teoria crítica deve ser apta a “determinar o conteúdo e

a finalidade de suas próprias realizações” (HORKHEIMER, 1980, p. 154). Em resumo,

a superação da calamidade que Horkheimer vê instaurada na primeira metade do

século XX só será possível na medida em que a filosofia engendrar formas não

reducionistas de interpretação dos fenômenos que compõem a totalidade social. Para

os pensadores da Escola de Frankfurt, a teoria crítica da sociedade deve fornecer

categorias que permitam a compreensão da dinâmica da relação entre os paradigmas

de cientificidade e as concepções de verdade propostas pela filosofia.

1.3 O ESCLARECIMENTO COMO DIALÉTICA

Após formular as bases e caracterizar o que seria uma teoria crítica, a

Dialética do Esclarecimento será a obra na qual Horkheimer, em parceria com

Theodor Adorno, investigará as condições de possibilidade de realização do seu

projeto, em vista do contexto de época em que os autores se encontram. Por isso,

embora Horkheimer tenha apontado que a teoria tradicional tem sua raiz na filosofia

cartesiana, a referência inicial para compreensão do esclarecimento filosófico e suas

decorrências, posta já no título da Dialética do Esclarecimento, não remete a

Descartes, mas a Immanuel Kant. Kant, em seu curto opúsculo intitulado Resposta à

pergunta: “o que é Esclarecimento?”, lançava as bases teóricas do projeto filosófico

mais caro à modernidade. Esclarecida é a razão que impele o sujeito a agir

autonomamente, independente das imposições de outrem. Nas palavras de Kant:

Esclarecimento é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem (KANT, I. 2013, p. 63).

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O ideal da razão esclarecida é a ação consciente e a não sujeição a forças

tomadas injustificadamente como superiores, como determinações de caráter

metafísico, dogmas, crenças ou mesmo a autoridade política ilegítima. Kant vê no

pensamento esclarecido a realização da ambição, outrora anunciada por Descartes,

de que o uso correto e adequado da razão será capaz de conduzir as pessoas à plena

satisfação de suas necessidades. Isso reflete uma confiança na capacidade humana

para gerar as condições de realização de suas ambições e ocupar o lugar deixado

pelas tradições e por autoridades políticas, intelectuais e religiosas. O exercício pleno

da razão conduziria à efetiva emancipação humana. Por outro lado, a sujeição à

natureza, à crença e a formas impostas de autoridade é signo da irracionalidade. De

acordo com Otfried Höffe (2005),

a superação dos erros e preconceitos a partir da decisão de fazer uso do juízo próprio, a renúncia gradual a interesses particulares e a descoberta sucessiva da “razão humana universal” – tudo isso é uma ideia comum da época. Em Kant, esta ideia resulta na crítica de toda filosofia dogmática e na descoberta do fundamento último da razão, cujo princípio é a autonomia, a liberdade enquanto legislação (HOFFE, 2005, p. XVIII)

Para compreender o argumento traçado por Kant, precisamos primeiramente

observar o êxtase em que se encontravam os pensadores modernos com o

desenvolvimento rápido e ascendente e os progressos alcançados pelas ciências a

partir do Renascimento. O avançado domínio técnico da natureza, a compreensão

sistematizada de fenômenos naturais, a enunciação de leis que regem dos mais

insignificantes aos mais devastadores fenômenos, bem como de princípios de

compreensão dos mesmos, a rápida evolução na produção de bens de consumo, e a

busca pela fundamentação racional dos conhecimentos acerca da natureza e do

próprio ser humano criaram na filosofia um ambiente de muito otimismo e

autoconfiança. Ainda de acordo com Höffe,

Kant fica profundamente impressionado com o progresso das ciências naturais modernas (Galilei, Newton) e com o desenvolvimento anterior da Lógica e da Matemática. Por isso, parece-lhe intolerável que a Primeira Filosofia, chamada tradicionalmente de Metafísica, permaneça envolvida em uma disputa sem fim em torno das questões de Deus, da liberdade e da imortalidade. Kant considera essa controvérsia sobre os fundamentos metafísicos um escândalo que a filosofia tem que superar, caso ela pretenda realmente manter o seu lugar entre as ciências” (HÖFFE, 2005, p. XVIII).

Kant advoga em favor de um modelo de razão que liberte os seres humanos

de superstições, dogmas metafísicos, preconceitos e tiranias, concedendo-os controle

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sobre a natureza e sobre si: é a luz da razão sobrepondo-se às trevas da ignorância.

O esclarecimento permite aos seres humanos se assenhorarem da natureza e de si,

alcançando a autonomia celebrada pelos iluministas e também por Kant14.

No entanto, para Adorno e Horkheimer, conforme vimos anteriormente, o

projeto mais característico da modernidade acaba por delimitar o âmbito de validade

do agir racional, caracterizando tipos específicos de pensamento como irracionais e

universalizando um método pautado pelo controle, domínio e operacionalização da

natureza. Tal procedimento possui, ironicamente, semelhanças notáveis com o

misticismo e o irracionalismo que esse mesmo projeto pretendia suprimir. E o século

XX representa o colapso deste projeto. É contra a consolidação de um modelo único

de razão que Adorno e Horkheimer se voltam. Embora o esclarecimento vislumbrasse

um mundo administrado racionalmente, o sonho da emancipação humana através da

organização racional dos saberes e das formas de vida realiza, contraditoriamente,

um aprisionamento sem precedentes.

E é por esse viés que o percurso pelo qual a modernidade conduz o sujeito

moderno ao oposto do que este almejava alcançar é reconstruído na Dialética do

Esclarecimento. Seus autores demonstram que as promessas iluministas de

emancipação e felicidade se convertem na defesa cega de uma maquinaria que mutila

pessoas, gera a dominação e opressão e conduz a humanidade a um estado de

desespero15. As guerras, a progressiva pauperização, a manutenção de um sistema

econômico baseado na exploração da força de trabalho, a perda da sensibilidade e

dos critérios para o agir moral e a ascensão de governos fascistas são elementos que

14 Curiosamente, Kant, ao mesmo tempo em que celebra uma humanidade que alcança a maioridade intelectual pelas vias da racionalidade moderna, também coloca essa mesma racionalidade sob análise. A razão responsável pela maioridade humana se encontra, para Kant, sob o risco de cair no dogmatismo e no ceticismo. Kant empreende, portanto, uma crítica da razão, para compreender seu funcionamento e limites e evitar este desfecho. Seu objetivo é traçar o alcance e limites da razão ao tratar de questões de caráter metafísico, para bem fundamentar as ciências. Seu projeto se deve aos desenvolvimentos do empirismo e do racionalismo em sua época. Kant observara, já no século XVIII as decorrências negativas de uma ciência que retira arbitrariamente a metafísica de seu campo de investigações. 15 É preciso atentar aqui para o contexto de época em que viveram os autores, que inclui as duas grandes guerras e numerosos conflitos políticos que evidenciam o desgaste da diplomacia e as limitações do diálogo, os avanços científicos direcionados para fins bélicos, a utilização de pesquisas em anatomia como justificativa para eugenia, racismo e genocídio e a consolidação do capitalismo como sistema econômico globalizado.

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entram no espectro de análise dos autores em sua descrição do estado de coisas que

vivenciam e das perspectivas que se podem construir a partir desse quadro.

Nisto reside a primeira contradição no ideal do esclarecimento, a ser apontada

por Adorno e Horkheimer: o esclarecimento promete, mas não gera emancipação. Ao

contrário, ele a impede. A proposta moderna de racionalidade – e a rigidez de sua

elaboração metafísica –, se revela como um mito contemporâneo. Segundo Adorno e

Horkheimer, o esclarecimento preceitua que os indivíduos ampliam paulatinamente

sua liberdade através da imposição racional dos seus interesses e do domínio sobre

forças exteriores: “a universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lógica

discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominação

do real” (ADORNO, T., HORKHEIMER, M. 1985, p. 28) O positivismo, que por sua vez

transforma em método para as ciências humanas e sociais o paradigma das ciências

naturais, impõe a fórmula da dominação e afirma que a emancipação humana cresce

na medida em que cresce a soberania do sujeito racional sobre a natureza e todas as

formas de existência, inclusive a sua própria. Para o pensar esclarecido, a realização

das pessoas, de modo geral, nisto inclusa sua liberdade, depende de raciocínios que

desvendem os mistérios no seu íntimo16 e sua máxima afirma que “a matéria deve ser

dominada sem a ilusão de qualidades ocultas. O que não se submete ao critério da

calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO,

HORKHEIMER,1985, p. 21). Para os autores,

O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador. (...)

16 Max Weber, sociólogo alemão nascido em 1864 e cuja obra influenciou os teóricos da Escola de Frankfurt, será pioneiro ao revelar como o pensamento moderno pautado pela racionalidade técnica é uma proposta de “desencantamento” do mundo. Essa expressão é cunhada por Weber em sua tentativa de explicar o desenvolvimento da civilização ocidental a partir do progresso do racionalismo. Para tanto, Weber empreende uma análise da história do cristianismo e seus desdobramentos a partir da Reforma Protestante, e observa que o protestantismo tem como uma de suas características o abandono pontual da valorização de elementos místicos, ritualísticos e sobrenaturais, substituindo-os pela centralização da ação humana. Deste modo, o cristianismo protestante abandona princípios escolásticos, deixa de conferir prioridade a um modelo de compreensão do mundo totalmente baseado na fé – embora não o abandone totalmente – e centraliza a figura humana e uma rígida prática religiosa fundada em princípios éticos. Esse processo de “desencantamento”, de perda da “magia” pelo qual passa o cristianismo, que causa o impacto social e cultural mais imediato da valorização do trabalho, da disciplina rígida, da tecnologia e da ciência, é apontado por Weber como tendo favorecido fortemente a consolidação do capitalismo como sistema econômico no Ocidente: a ética protestante teria contribuído com a naturalização de algo que outrora fora repugnante para um cristão, a “concepção de ganhar dinheiro como um fim em si mesmo” (WEBER, 2004, p. 64). A sociedade ocidental – e seu sistema econômico – é, para Weber, o resultado de um profundo processo de desmistificação. .

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Até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado por teoremas matemáticos. Através da identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 28-29).

Para fundamentar esta tese, contudo, e contrariando a leitura apresentada por

Horkheimer em Teoria Tradicional e Teoria Crítica, o ponto de partida do fracassado

projeto moderno caracterizado pela Dialética do Esclarecimento não se encontra em

Descartes, mas nas narrativas míticas. A mitologia grega é o exemplo apontado pelos

autores de uma tentativa de supressão do medo causado pelo desconhecido, pelo

poder imensurável e incontrolável da natureza. “O mito queria relatar, denominar, dizer

a origem, mas também expor, fixar, explicar” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 23).

Adorno e Horkheimer verão semelhanças entre uma filosofia que pretendia erradicar

o misticismo e o próprio pensamento mítico, e concluem que o desejo de domínio,

fixação e identidade que se concretiza, a partir do esclarecimento, pela redução

acrítica da natureza, da sociedade e do próprio ser humano a meros objetos, a coisas

esgotadas pelo escrutínio do pensamento, acerca das quais tudo se conhece, já

estava presente nas antigas narrativas míticas da mesma maneira que ditam o tom

da suposta racionalidade filosófica. Um mundo totalmente controlado, objetivo final

das narrativas míticas e do esclarecimento moderno, só pode ser pensado na medida

em que os seres humanos reduzem a totalidade desse mundo à totalidade das

determinações de pensamento dos sujeitos que acerca dele pensam. Daí já não há

mais mundo, não há mais realidade objetiva, mas um conteúdo artificial preso a um

molde artificial: uma construção humana. A crença em um mundo absolutamente

passível de compreensão é um novo tipo de mito, o mito moderno. Acerca da relação

entre racionalidade instrumental e o moderno retorno à mitologia realizado pelo

esclarecimento, Marcos Nobre (2008) escreve:

O esclarecimento – ligado inextricavelmente às ideias de razão e de progresso – pretendia tornar os homens senhores do seu destino e da natureza. Em seu desenvolvimento histórico-cultural, entretanto, a razão mostrou apenas autopreservação, ou seja, mostrou-se unicamente como instrumento de dominação e não de libertação, pois a hipertrofia da autopreservação não serviu à consciência de que os homens produzem sua própria história e, dessa forma, podem se apropriar de suas próprias vidas. Ao contrário, o domínio da autopreservação sob o manto da razão esclarecedora se mostrou instrumento não apenas de domínio da natureza externa, mas igualmente da natureza interna e das relações sociais de maneira mais ampla. Nesse sentido, o processo transistórico de desencantamento do mundo, dirigido contra o mito, acaba por reverter à mitologia. O mundo totalmente desencantado é aquele em que o mito retorna

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na forma de uma sociedade racional, na qual ideias como a de destino não deveriam ter mais lugar, mas que são, entretanto, dominantes. O desenvolvimento pleno do esclarecimento produz o contrário do que promete, produz um mundo estranho e hostil aos homens, ao qual eles têm de se adaptar como a forças estranhas e fantasmagóricas sobre as quais não tem nenhum domínio (NOBRE, 2008, p. 49)

Horkheimer e Adorno se concentram, portanto, em explicar o percurso traçado

pelo esclarecimento até este se tornar uma nova “mistificação das massas”

(ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 52). E embora sua radicalização ocorra na

modernidade, a racionalidade esclarecida tem origem mais remota. Os autores

ilustram isso através do episódio de Ulisses e as Sereias, narrado por Homero no

canto duodécimo da Odisséia. Estaria ali presente, segundo seus autores, a raiz de

todas as típicas formas de controle da natureza, do meio ambiente e do próprio ser

humano que caracterizarão séculos depois, por exemplo, a forma de produção de

mercadorias no sistema capitalista. A superioridade da razão sobre as forças da

natureza se ilustra no uso da cera nos ouvidos de que fazem uso os navegantes, para

não se deixarem enfeitiçar pelo canto sedutor e mortífero das Sereias. Dessa forma

se demonstra que aos trabalhadores cabe justamente o trabalho; tampar os ouvidos

ao mundo exterior é condição de possibilidade de que continuem remando. Por outro

lado, Ulisses, a quem cabe o comando do navio, ordena que tenha seu corpo

amarrado ao mastro, de maneira que possa aproveitar a beleza do canto mágico das

Sereias sem o risco de sucumbir à tentação de saltar na água. Ulisses ilustra, para os

autores, o argumento de que a mitologia já continha em si o esforço humano de se

assenhorar da natureza, de dominá-la para seu uso, de moldá-la, a qualquer preço, a

seus interesses.

Conferir poderes mágicos à natureza e oferecer explicações sobrenaturais

para fenômenos cujo fundamento era desconhecido revela-se para os teóricos da

Dialética do Esclarecimento como uma forma inicial, primitiva, de compreensão e

controle do mundo exterior. O mito também é uma forma de superar o medo do

desconhecido. Medo este que, não por acaso, impulsiona os desenvolvimentos da

ciência17. E não somente a ciência, porque mesmo a arte é posta como objeto de

controle: o canto das Sereias, deslocado de sua natureza mágica e sob a lógica da

17 Veremos mais à frente, no Capítulo IV, que Adorno, sobretudo em seus escritos de maturidade, aponta para as decorrências de se sujeitar até mesmo a arte à fixidez das normas do mundo administrado.

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sujeição ao trabalho, se torna mero objeto de contemplação desinteressada. Assim

como o trabalho, a arte é submetida sem reservas ao domínio social. Em seu já

célebre Discurso Filosófico da Modernidade, Jürgen Habermas discorre acerca do

destino da arte submetida à racionalidade orientada a fins descrita pelos autores da

Dialética do Esclarecimento, e afirma que

com sua análise da cultura de massas, Adorno e Horkheimer pretendem finalmente comprovar que a arte fundida com entretenimento é paralisada na sua força inovadora, esvaziada de todos os conteúdos críticos e utópicos. (...) Na modernidade cultural a razão é despojada de sua pretensão de validade e assimilada a mero poder (HABERMAS. 1990, p. 114).

A superação desse temor é apontada pelos autores como sendo a origem do

pensamento filosófico ocidental. Porém, Adorno e Horkheimer retrocedem ainda mais

no tempo para mostrar que sem esse temor também não há mitologia, uma vez que

“do medo, o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido”

(ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 28). O esclarecimento será, na modernidade, a

radicalização extrema desse projeto de identificação da realidade àquilo que pode ser

subsumido ao modelo explicativo oferecido pelos sujeitos.

Deste modo, mito e esclarecimento revelam-se como duas faces de uma

mesma moeda, qual seja, a ação impositiva do ser humano que se segue ao temor

causado pela constatação da fragilidade da sua condição. A origem do pensamento

esclarecido é, assim, um impulso demasiado humano de autoconservação. Para

ambos os autores, o pensamento kantiano representa o ápice dessa uma

racionalidade totalitária, embora Kant não haja compreendido o esclarecimento por

esse viés. Sobre o caráter totalitário que fundamenta a racionalidade moderna e sua

origem em um impulso de autoconservação, dirão que

a autoconservação é o princípio constitutivo da ciência, a alma da tábua das categorias, mesmo quando deve ser deduzida idealisticamente, como em Kant. Até mesmo o ego, a unidade sintética da apercepção, a instância que Kant define como o ponto supremo a que é preciso ligar a lógica inteira, é, na verdade, o produto e a condição da existência material (ADORNO, HORKHEIMER. 1985, p. 86).

No entanto, o esclarecimento radicaliza esse fator, pois tem como propósito a

superação do próprio mito: a compreensão da natureza, no esclarecimento, ocorre

apenas por meio do seu total esgotamento, jamais pela compreensão da

irredutibilidade de sua força, faceta esta que persiste nas narrativas míticas. No

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esclarecimento “o pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando

a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo”

(ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 29). Adorno e Horkheimer, neste sentido,

apontam jocosamente para o sonho esclarecido de tornar o mundo um “gigantesco

juízo analítico” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p.39). O segredo do pretendido

sucesso dessa empreitada será então o elemento doutrinador: o autocontrole do ser

humano – seus desejos e paixões – a imposição pelo autodomínio, pelo aumento da

sua disposição para o trabalho, pela sujeição à rotina e pela naturalização e

banalização da violência que impõe contra si próprio e contra tudo é externo a si. A

obrigatoriedade do controle da natureza se efetiva à custa do controle de pessoas, de

suas capacidades e da anulação de sua individualidade perante uma organização

social sistematizada que visa apenas a manutenção do todo:

O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador. (...) Até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado por teoremas matemáticos. Através da identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 37).

O projeto do esclarecimento é a propaganda do cartesianismo enquanto

paradigma de conhecimento; é a promessa de que a racionalidade instrumental é a

forma mais eficaz de compreensão e controle da realidade já desenvolvida pela

humanidade.

Todavia, Adorno e Horkheimer estão convencidos de que o projeto do

esclarecimento, cujo impulso de recusa do mito na antiguidade é o mesmo que já

engendrara os mitos anteriormente, se desenvolve no seu contrário. O efeito da

disseminação de uma racionalidade que anula o indivíduo e suas particularidades em

nome do estabelecimento de leis de conduta, da prescrição de normas e padrões de

comportamento é devastador. A quantificação e sistematização do conhecimento se

deflagra na quantificação e sistematização de comportamentos e condutas

regulatórias da vida social, de caráter cada vez mais coercitivo. Os pensadores

chegarão à radical conclusão de que “o esclarecimento é totalitário como qualquer

outro sistema” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p.37).

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E nisto se observa um desenvolvimento silencioso e permanente, revelado na

postura de indivíduos que buscam realização e felicidade em modelos de vida

pautados pelo consumismo irrefletido e desenfreado, cuja contraparte mais direta é a

exploração irrefreada da força de trabalho e a pauperização daqueles que já se

encontram desde sempre desprivilegiados e marginalizados pelo sistema econômico.

A ciência, especificamente, e o pensamento, de um modo geral, operam de maneira

sistemática e se convertem em instrumentos de dominação social, econômica e

política, em nome da suposta necessidade de imposição da ordem frente ao caos,

inclusive como ferramenta que justifica a violência. O progresso científico converte-se

rapidamente, na modernidade, em aparelho ideológico e este legitima a dominação

sobre a natureza e sobre o ser humano18. Essa tentativa de absoluto controle dos

processos com vista a fins pré-determinados tem dois resultados igualmente

catastróficos: a banalização da violência e o embotamento da crítica. Para os autores,

“a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”

(ADORNO, 1985, p. 50). O esclarecimento encontra, após seguir o percurso por ele

próprio traçado em busca de um mundo emancipado, seu esfacelamento.

Os autores da Dialética do Esclarecimento se utilizam do princípio da

equivalência, formulado primeiramente por Georg Lukács que, por sua vez, inspira-se

na forma da mercadoria desenvolvida por Karl Marx, para mostrar de que maneira o

impulso por controle e operacionalização da totalidade social incorrem, em último

grau, na justificação da manutenção do capitalismo enquanto sistema econômico.

Todos os objetos no capitalismo são tornados equivalentes pela monetarização do

trabalho convertido em tempo de produção. Todas as mercadorias são equivalentes

18 Jürgen Habermas explica, em seu livro Técnica e ciência enquanto ideologia, que o conceito de “racionalidade”, cunhado por Max Weber, serve para descrever um “agir racional com-respeito-a-fins”, cujo interesse é a determinação da economia capitalista, a dominação burocrática e as relações de direito privado burguesas. Em outras palavras, a razão moderna possui sua origem em tempo e lugar bem específicos, uma forma de organização social que demanda, para manter sua estrutura de classes, de extrema operacionalização e controle. Deste modo, Habermas descreve a forma através da qual a razão moderna intencionalmente adota um padrão específico de compreensão da natureza e de setores sociais e se utiliza da ciência e da técnica para justificar este procedimento: “No processo que Max Weber chamou de racionalização, dissemina-se não a racionalidade como tal, mas, em seu nome, uma determinada forma inconfessada de dominação política. (...) Aquela racionalidade se estende apenas às relações que podem ser manipuladas tecnicamente e, por isso, exige um tipo de agir que implica na dominação, quer sobre a natureza, quer sobre a sociedade. O agir racional com respeito a fins é, segundo sua estrutura, o exercício do controle. Por isso, a “racionalização” de relações da vida segundo padrões dessa racionalidade significa o mesmo que a institucionalização de uma dominação que se torna irreconhecível enquanto política” (HABERMAS, 1980, p. 313).

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entre si em função de seu “valor de troca” – perde-se, portanto, seu “valor de uso” –

através do tempo necessário para produzi-las. Dessa forma, o trabalhador, que vende

sua força de trabalho nas linhas de produção, é tão parte do sistema de equivalências

quanto qualquer mercadoria. No capitalismo, conclui-se, o ser humano também torna-

se objeto, também torna-se mercadoria.

Um dos fatores também apontado pelos autores como marco da moderna

racionalidade esclarecida se deixa visualizar nos efeitos da consolidação do sistema

econômico capitalista sobre a totalidade social. Karl Marx já observara o potencial

nivelador da internalização, por parte dos indivíduos, de “leis de troca” que convertem

diversos elementos da totalidade social – objetos, trabalho e tempo – em valor

monetário. Brian O’Connor aponta que, para Adorno, esse fenômeno de equivalência

quantificadora estabelece um paradigma de pensamento que reduz a capacidade dos

indivíduos de analisar a estrutura da qual fazem parte. O’Connor ressalta que

a tendência de traduzir tudo em valor abstrato passa a determinar a percepção dos indivíduos acerca de toda a realidade. (...) Dentro do capitalismo, todos os objetos podem ser classificados dentro de uma unidade abstrata de valoração, traduzidos no medium da troca monetária e reduzidos à quantificação abstrata. Essa é a marca da sociedade burguesa (O’CONNOR, 2013, p. 32, tradução nossa).

E eis a raiz do problema central que nos coloca a Dialética do Esclarecimento:

em uma sociedade na qual a monetarização tornou-se o centro da vida social, a

objetificação do ser humano é de tal forma naturalizada que torna-se difícil elaborar

uma reflexão crítica contra esse estado de coisas. Em um sistema econômico no qual

indivíduos precisam vender a si próprios para garantir sua subsistência, a adequação

à lógica do lucro se transforma em norma de pensamento, em segredo de sucesso,

em fundamento para a ética e em modo de vida. O valor dos indivíduos passa a ser

determinado pela sua aptidão para angariar lucro, para produzir riqueza; por outro

lado, a própria natureza não passa de mercadoria; e, ao fim, aqueles que não

nasceram já com um status privilegiado e que não se adequam à norma vigente – ou

que contra ela se levantam – são tomados por incapazes e merecedores da

marginalização e da violência a que são submetidos. A sociedade plenamente

esclarecida é fascista. Os autores resumem o estado de coisas criado pela

racionalidade instrumental moderna e sua deflagração como paradigma para todo

pensar supostamente racional da seguinte maneira:

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Com o desenvolvimento do sistema econômico, no qual o domínio do aparelho econômico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela razão, que é o instinto objetualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Estes dois poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o procedimento sem erro e sem conteúdo. (...) Para os dirigentes, a forma astuciosa da autoconservação é a luta pelo poder fascista, e, para os indivíduos, é a adaptação a qualquer preço à injustiça (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p, 89).

A racionalização, em seu aspecto prioritariamente técnico e instrumental,

torna-se elemento da estrutura de dominação que se deveria combater e a alienação

dos indivíduos converte-se em norma em uma sociedade que universaliza a

racionalidade instrumental. Porém, como uma racionalidade absolutamente embotada

em sua capacidade crítica pode se mostrar capaz de empreender uma autocrítica?

Essa questão conduz à frequente conclusão de que a Dialética do

Esclarecimento é uma obra aporética. Repetidas vezes seu conjunto de ensaios foi

interpretado dessa maneira pela tradição. Essa tese, consolidada inclusive na Teoria

Crítica a partir da leitura de Jürgen Habermas, fundamenta-se primeiramente na

defesa de que a obra apresenta um diagnóstico da contemporaneidade abordando

seus problemas sem necessariamente tratar das questões levantadas de forma

propositiva, mas também na conclusão de que seu diagnóstico envolve denunciar um

total embotamento da razão na contemporaneidade que não explica, portanto, a partir

de quais critérios de racionalidade os próprios autores desenvolvem a crítica presente

na obra. Este fator demandaria uma nova concepção, reformulada, de racionalidade,

manobra que os autores não admitem ser possível. De acordo com Habermas,

isso dirige a nossa atenção para o conceito clássico de modernidade tal como ele foi inicialmente determinado por Hegel e desdobrado, com base na teoria da sociedade, por Marx, Max Weber, pelo primeiro Lukács e pela primeira Escola de Frankfurt. Essa tradição enredou-se finalmente de modo aporético na auto-referencialidade de uma crítica totalizante da razão (HABERMAS, 2001, p. 167).

Entretanto, esse aspecto totalizante da racionalidade moderna e suas

rupturas são tematizados, em diferentes ocasiões, por Horkheimer e Adorno, que

demonstram ter consciência dessa aparente “falha” em uma das supostas teses gerais

da Dialética do Esclarecimento. A própria obra não apresenta solução para esse

impasse. Wiggershaus, no entanto, aponta duas ocasiões em que ambos os autores

tematizam-no. A primeira parte de Horkhiemer, que, em resposta a um memorando

de Friedrich Pollock, teria afirmado que “podemos entender essa evolução [o processo

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irreversível do Aufklärung] e só podemos compreendê-la se houver em nós algo que

não se submeta a ela” (HORKHEIMER, in WIGGERSHAUS, 2002, p. 362) sugerindo

que a ação totalizante do esclarecimento deixa brechas. A segunda parte de Adorno

que, em 1945, por ocasião de oferecer instruções a Leo Löwenthal acerca da

organização para publicação de um conjunto de notas de aula de Horkheimer, admite

a existência deste problema fundamental e comenta que

O texto, principalmente o do primeiro capítulo, apresenta o processo de racionalização e de instrumentalização da razão como necessário e irresistível, no sentido em que Hegel falou a respeito da Aufklärung na Phänomenologie. Mas, por outro lado, o livro é dedicado à crítica dessa razão. A relação entre o ponto de vista crítico e o ponto de vista a ser criticado não está suficientemente esclarecida teoricamente. Tem-se, muitas vezes, a impressão de que nos refugiamos quase que ‘dogmaticamente’ por trás da razão objetiva, depois de definir o caráter incontornável da razão subjetiva. Na verdade, dois pontos devem aparecer claramente: primeiro, que não existe solução ‘positiva’ no sentido de uma filosofia que, simplesmente, se opusesse à razão subjetiva; segundo, que a crítica à razão subjetiva só é possível dialeticamente – isto é, mostrando as contradições que seu próprio desenvolvimento contém e superando-as por meio de sua negação determinada. (...) Senão, há duas atitudes para a filosofia: a da razão subjetiva irresistível e única senhora de si mesma, e a da verdade que se opõe a ela, sem mediação entre essas dias atitudes que se enfrentam de uma maneira tão pouco satisfatória para a teoria [Carta de Adorno a Löwenthal, de 3 de junho de 1945] (ADORNO in WIGGERSHAUS, 2002, p. 363, grifos nossos).

Para tanto, ressaltamos a importância de se observar o caráter não

determinante que dita o tom de todo o escrito. Ao final da passagem intitulada “O

Conceito de Esclarecimento”, seus autores apontam que o maior vilão do estado de

coisas que descrevem é um tipo específico de racionalidade que prioriza a

subjetividade, desconsidera a particularidade dos objetos e prioriza a satisfação de

um impulso identificador, que dogmaticamente opera impondo a identidade entre

razão e mundo. Por isso é necessário, os autores alertam, repensar a forma como a

modernidade estabeleceu sua concepção acerca de como deve o pensamento operar

com conceitos. Talvez seja uma das mais citadas passagens deste capítulo:

Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la presente de modo a ser dominada. Semelhante à coisa, à ferramenta material – que pegamos e conservamos em diferentes situações como a mesma, destacando assim o mundo como o caótico, multifário, disparatado do conhecido, uno, idêntico – o conceito é a ferramenta ideal que se encaixa nas coisas pelo lado por onde se pode pegá-las (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, p. 50).

Nesse trecho os autores destacam o caráter instrumental que

tradicionalmente se confere ao conceito. A principal decorrência do esclarecimento,

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conforme o compreendem Adorno e Horkheimer, para o pensamento filosófico será

sua consideração de que o pensamento, ou, dito em outras palavras, os conceitos,

são ferramentas que servem à sua compreensão do mundo. A partir dessa lógica, a

moderna epistemologia toma por princípio uma separação entre objetos cognoscíveis

e sujeitos cognoscentes e busca investigar a insuficiência e possíveis limitações do

conhecimento humano em consonância com as limitações da razão. O excessivo

subjetivismo desse procedimento, em um processo que trataremos mais à frente, se

converterá, para Adorno, em um processo que encontra sua expressão mais extrema

no pensamento hegeliano. A redução promovida por Hegel da objetualidade perante

o pensamento é a culminância de uma metafísica que Adorno compreenderá como

centrada no sujeito que, em última análise, também contribui para o embotamento do

potencial da filosofia para a crítica.

Devido a isso, é preciso, afirmam os autores, “reconhecer a presença da

dominação dentro do próprio pensamento” (ADORNO, HORKHEIMER 1985, p. 51).

Essa é, enfim, a solução proposta pela Dialética do Esclarecimento. Contudo, o

exercício de crítica do modelo de pensamento conceitual deve também ser conceitual,

sob o risco de perda do critério de verdade e objetividade – para o qual já alertara

Kant – e, consequentemente, de se incorrer em relativismo e irracionalismo. Um

conceito que se articula de maneira a permitir a crítica do próprio conceito – e de si

mesmo – só se permite por meio de um pensamento que opera dialeticamente. É com

esse propósito que Adorno se dedicará à investigação dos aspectos metodológicos e

epistemológicos do criticismo de Kant e da dialética de Hegel, a influência de ambos

na consolidação do paradigma moderno de pensamento, e elaborará sua própria

concepção de dialética. Defendemos, portanto, que toda a filosofia adorniana estará

voltada para a realização do propósito estabelecido pela Dialética do Esclarecimento.

Uma filosofia crítica deverá obrigatoriamente, conforme veremos, ser dialética. E

deve, ao mesmo tempo, resistir ao moderno impulso identitário que insiste, por seu

próprio desenvolvimento espontâneo, em reduzir a natureza ao sujeito pensante. Este

será o desafio autoimposto e enfrentado por Adorno.

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2. ANTECESSORES DE ADORNO: KANT, HEGEL E A CRÍTICA DA MODERNA

EPISTEMOLOGIA

2.1 INTRODUÇÃO

No capítulo anterior, tratamos do diagnóstico de época levantado por

Horkheimer e Adorno acerca da contemporaneidade, bem como de suas previsões

pouco otimistas para o futuro da filosofia. A partir dos direcionamentos abertos pela

Dialética do Esclarecimento, Adorno está convencido de que é necessário

empreender uma transformação na concepção de racionalidade que a tradição

filosófica tornou hegemônica, cujos sistemas de análise do real apresentam formas

excessivamente subjetivistas, forçosamente identitárias e que acabam por corroborar

visões de mundo que justificam políticas totalitárias. Os autores da Dialética do

Esclarecimento apontam que a tradicional racionalidade ocidental deve ser

ressignificada, em nome da emancipação humana. Contudo, essa ressignificação

somente ocorrerá por meio da análise crítica dos modelos metafísicos que a

contemporaneidade herda da tradição filosófica, sobretudo da filosofia moderna.

Pode-se afirmar, portanto, que a Dialética do Esclarecimento apresenta uma

espécie de genealogia do pensamento esclarecido que se converte em mecanismo

de dominação. Sua origem remonta à Antiguidade. Porém, a filosofia acentua essa

tendência de maneira inconsequente. A modernidade é entendida por Adorno,

portanto, como um momento de radicalização das estruturas de dominação instituídas

pelo pensamento esclarecido, sobretudo por ser o momento histórico em que ocorre

o desenvolvimento e consolidação do capitalismo como sistema econômico e a

consequente organização de todos os níveis de efetivação das relações sociais em

torno das demandas para perpetuação desse sistema. A tarefa da filosofia é

empreender uma profunda autocrítica que permitirá, concomitantemente, a crítica do

estado de coisas deflagrado contemporaneamente.

Neste momento é preciso ressaltar, no entanto, que o projeto adorniano não

visa, conforme já mencionamos anteriormente, a substituição de um modelo

tradicional de racionalidade por outro, como se a razão humana fosse um instrumento

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passível de ser trocado na medida em que seu uso não alcança o resultado almejado.

Ao contrário, Adorno compreende que parte das contradições enfrentadas pelo

indivíduo moderno advém da própria natureza da razão humana e esse fator não pode

ser modificado. A consciência não será, para Adorno, uma instância intocada pela

historicidade. Não há, por isso, um ponto de vista exterior à totalidade social que

podemos tomar como critério para validar novas formas de compreensão. Esta

pretensão seria ingênua e muito semelhante à concepção positivista de consciência –

criticada por Adorno – como instância da subjetividade absolutamente apartada da

realidade objetiva, independente até mesmo do indivíduo que pensa, e fora da história.

O que dever ser modificado, veremos, é a visão que possuímos da relação homem-

mundo, de forma a compreendermos, ao mesmo tempo, as insuficiências da

racionalidade e a contraditoriedade inerente e incontornável da realidade objetiva. Por

isso, Adorno insiste, a crítica da racionalidade Ocidental deve ser imanente e precisa

investigar, a partir dos modelos de experiência propostos pela modernidade, as

condições de possibilidade de sua transformação.

A busca, empreendida por Adorno, de uma filosofia crítica, apta a

compreender e se posicionar frente às contradições impostas pela realidade material

de maneira não reducionista, tematizará com prioridade o pensamento de Immanuel

Kant, cujo projeto é visto por Adorno como incontornável. Adorno reconhecerá na

filosofia de Kant a primeira sistematização não ingênua e não dogmática das

condições de possibilidade do conhecimento, bem como a primeira fundamentação

de um modelo de experiência a alertar para uma possível irredutibilidade do objeto à

estruturação categorial da consciência19. Adorno reconhece Kant como o primeiro

filósofo moderno a apontar para as limitações da experiência de maneira consequente

e não cética e este ponto é de especial interesse para Adorno.

19 A exemplo do trecho “já em Kant, a ratio emancipada, o progressus ad infinutum só era detida por meio do reconhecimento ao menos formal do não-idêntico” (ADORNO, 2009, p. 31), bem como em “apesar de alguns impulsos do idealismo desejarem se inserir no aberto, ele perseguiu esse aberto a partir de uma extensão do princípio kantiano e os conteúdos se tornaram para eles ainda mais desprovidos de liberdade do que em Kant. Isso confere uma vez mais ao bloco kantiano seu momento de liberdade: ele evitou a mitologia do conceito” (Ibidem, p. 322) são numerosas as ocorrências, sobretudo na Dialética Negativa, em que Adorno defende a metafísica kantiana por ter capturado algo que o idealismo – e Adorno lança posteriormente esse argumento contra Hegel também numerosas vezes – deixou passar: a possibilidade de irredutibilidade do objeto ao conceito.

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Já no século XVIII, Kant será o filósofo que dará um “passo atrás” no

desenvolvimento da ciência para se perguntar em que medida esse desenvolvimento

é confiável e, portanto, em que medida é adequada sua fundamentação metafísica.

Kant apontará que a metafísica havia se dividido em seu tempo em duas tendências

opostas, a corrente racionalista, cujo principal representante é René Descartes, e a

corrente empirista, na qual encontramos David Hume. Kant conclui em suas

investigações que o empirismo conduz ao ceticismo, enquanto o racionalismo acaba

por se tornar dogmático, o que o leva a constatar a necessidade de resgatar a

metafísica e oferecer à mesma a solidez e confiabilidade de uma ciência. Assim, Kant

se mostra preocupado não somente com a compreensão que a ciência é capaz de

oferecer acerca da natureza e do mundo, mas sobretudo com as condições de

possibilidade de tirarmos conclusões verdadeiras dessa compreensão. Nessa linha,

ambiciona demonstrar em que medida poderia a filosofia continuar sendo crítica,

mesmo em uma conjuntura de pensamento na qual a ciência progride sem se

perguntar sobre suas condições de objetividade.

Em outras palavras, Kant acredita que a adequada fundamentação metafísica

do conhecimento estabelecerá os parâmetros de objetividade deste. Resumindo um

tópico que será retomado adiante, para Kant, todo conhecimento objetivamente válido

resulta da articulação entre a sensibilidade e o entendimento, ou, mais

especificamente, da articulação que o entendimento promove, através de categorias

a priori, a partir dos dados colhidos pela sensibilidade de acordo com formas puras

desta, o espaço e o tempo. O resultado é demonstração da necessária estruturação

conceitual de todo e qualquer conhecimento que pretenda ter validade objetiva.

Hegel, por sua vez, admitirá sem reservas a conclusão kantiana de que é

indispensável o estabelecimento de critérios para investigar as condições de

possibilidade do conhecimento objetivamente válido, bem como celebrará o avanço

de Kant na fundamentação da unidade transcendental da consciência de si,

fundamento da compreensão da realidade objetiva. Contudo, recusará três

conclusões centrais para a filosofia transcendental kantiana, conforme veremos

também mais à frente: a origem das categorias, a separação proposta por Kant entre

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sensibilidade e entendimento20 e a possibilidade de existência da coisa em si. Essa

recusa possui decorrências importantes, uma vez que Hegel irá se dedicar a

demonstrar que, embora a priori, as categorias – e, portanto, a constituição da própria

consciência – possuem historicidade. A consciência não é, para Hegel, uma forma

pura que simplesmente articula conteúdos advindos do mundo exterior estabelecendo

seu caráter de validade ou objetividade. Pelo contrário, a consciência também

atravessa um processo dinâmico de constituição através do qual se revelará que

consciência e objeto são instâncias separáveis apenas por meio de uma abstração.

É preciso, por isso, cautela no exame das razões para a aparente

ambiguidade presente nas enigmáticas passagens da Fenomenologia do Espírito21,

sobretudo quando tratam da crítica que seu autor desfere contra aspectos centrais da

filosofia de Kant. O diálogo que Hegel estabelece com o pensamento kantiano,

especialmente com sua Crítica da Razão Pura, exige uma investigação detida: por um

lado, há de se considerar a recusa de Hegel às concepções do kantismo que, embora

pretendam construir uma metafísica que exponha em definitivo as condições de

possibilidade do conhecimento objetivo, acabam por radicalizar um subjetivismo

metodológico que, segundo Hegel, inviabiliza a realização das pretensões da moderna

filosofia; por outro lado, se deve atentar para o fato de que a solução proposta por

Hegel para as insuficiências do pensamento moderno passa, necessariamente, por

uma perspicaz apropriação de aspectos centrais do pensamento kantiano.

A compreensão do projeto da Fenomenologia do Espírito como a proposta de

Hegel pela superação da dualidade e unilateralidade características do subjetivismo

moderno exige um duplo esforço. Primeiramente, pela interpretação do diagnóstico

hegeliano da impossibilidade de realização dos ideais modernos de emancipação e

liberdade enquanto fundamentados em uma racionalidade que opera apenas por meio

da cisão do pensamento em polos opostos – as consequências práticas desse

dualismo na metafísica estão mais claramente evidenciadas em uma obra posterior,

Princípios da Filosofia do Direito22, que consideraremos mais à frente. Em segundo

lugar, pelo reconhecimento das nuances da sua relação com Kant, uma vez que a

20 Trataremos mais a fundo desse tema no capítulo subsequente. 21 Phänomenologie des Geistes (1807). 22 Grundlinen der Philosophie der Rechts (1820)

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epistemologia kantiana oferece, ao olhar de Hegel, tanto potenciais para o

agravamento do problema acerca do conhecimento na modernidade quanto,

contraditoriamente, para a sua solução. Nosso propósito, no presente capítulo, é

apresentar uma breve leitura do projeto geral da Fenomenologia do Espírito, descrito

por Hegel no Prefácio e Introdução dessa obra – contemplando ainda trechos de

outros escritos hegelianos –, sublinhando a tensão gerada pelo diálogo com Kant,

para então analisar as consequências práticas e revolucionárias que Hegel acredita

alcançar com sua própria filosofia, transformada em dialética.

2.2 UM DIVISOR DE ÁGUAS NA METAFÍSICA: KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO

PURA

O momento histórico com o qual Kant se defronta é delicado. O filósofo de

Königsberg observa o crescimento, entre os intelectuais de seu tempo, de uma

tendência perigosa, a saber, que a crescente confiança depositada no método

responsável pelo sucesso das ciências da natureza tem, como decorrência principal,

o crescente enfraquecimento da metafísica. Isso porque embora as ciências da

natureza se mostrem incapazes de visualizar o solo metafísico no qual

fundamentavam suas próprias pretensões de validade, mesmo a metafísica vinha

obtendo pouco êxito no exercício de se afirmar como fundamento para as ciências.

É na Crítica da Razão Pura23, publicada pela primeira vez em 1781 e pela

segunda vez, com alterações significativas, em 1787, que Kant busca solução para os

problemas nos quais a metafísica parecia irremediavelmente enredada. Ocupada com

a busca dos primeiros princípios da experiência, à época de Kant a metafísica se

encontrava dividida, de modo geral, entre duas tendências: o racionalismo e o

empirismo. A primeira, herdeira de René Descartes, não alcançara um campo de

conhecimentos que ultrapassasse o racionalismo dogmático24 e enfraquecia a

metafísica em suas mais relevantes pretensões de fundamentar os progressos da

ciência. A segunda, seguindo um caminho oposto, tinha David Hume como seu

23 Kritik der reinen Vernunft (1781) 24 Sobre o racionalismo na metafísica, Höffe explica que “Kant toma os racionalistas por dogmáticos e despóticos porque impõem ao homem determinadas suposições básicas sem crítica prévia da razão, por exemplo, que a alma é de natureza simples e imortal, que o mundo tem um começo e que Deus existe” (HÖFFE, 2005, p. 35).

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principal representante que, segundo Kant, havia reduzido a filosofia a uma espécie

de ceticismo que atestava a impossibilidade de fundamentação do conhecimento

objetivo e, portanto, acabava por forçar a metafísica a afirmar – e demonstrar – seu

próprio malogro25.

Eis um problema de difícil solução: ao mesmo tempo em que a metafísica

responde perguntas fundamentais e busca os primeiros princípios da natureza – os

incondicionais, que sem ser parte constitutiva da experiência, são indispensáveis para

sua fundamentação – carece de algo imprescindível, uma pedra de toque, elemento

necessário para comprovar a veracidade de suas constatações. Sem alcançar isso, a

metafísica vinha se tornando um campo nebuloso e não científico, frente ao qual as

ciências da natureza destacavam-se, sem reconhecer na verdadeira metafísica o

fundamento de suas asseverações. Kant empreende esforços para elaborar uma obra

que defenda a filosofia dos ataques céticos evitando, simultaneamente, o

dogmatismo. Segundo Kant, se impõe à metafísica que esta seja capaz de “trilhar o

caminho seguro da ciência” (CRP B XIV).

Kant pretende, portanto, investigar as condições de possibilidade do alcance,

por meio da razão, de conhecimentos verdadeiros, universais e necessários que,

contudo, não se fundamentem de modo dogmático apenas em teses especulativas.

O dilema de Kant se instaura quando este constata que os juízos universais e

necessários não podem ser extraídos apenas da experiência, devido a seu caráter

contingente, porém devem manter seu aspecto ampliativo, o que descarta raciocínios

puramente lógicos. Em outras palavras, Kant está interessado em compreender como

ocorre a formulação de conhecimentos a priori que sejam também juízos sintéticos,

em contraposição a juízos analíticos, o que o conduz à pergunta sobre a possibilidade

de juízos sintéticos a priori na metafísica. Kant sublinha que o procedimento da

matemática já é realizado dessa maneira, por meio de sínteses a priori26. A solução

proposta por Kant é assim formulada:

A razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos; (...) ela tem que tomar a dianteira com princípios, que determinam os juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas

25 Acerca desse estado de coisas, Otfried Höffe resume que se trata de um momento em que “luta na metafísica um racionalismo que é dogmático com um empirismo que se torna cético” (HÖFFE, 2013, p. 36). 26 Cf. CRP B 14.

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interrogações em vez de se deixar guiar por esta. (...) Até hoje admitia-se que nosso conhecimento se devia regular pelos objetos; porém, todas as tentativas para descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objetos se deveriam regular pelo nosso conhecimento (CRP B XVI).

A elaboração acima trata-se da aclamada “revolução copernicana” promovida

por Kant na metafísica. O questionamento acerca da natureza da realidade objetiva é

posto em segundo plano na experiência e seu foco principal passa a ser a estruturação

da consciência do sujeito cognoscente. A filosofia kantiana é revolucionária porque

propõe que não há fundamentação possível para as ciências sem que sejamos

capazes de desvendar a estrutura da consciência do sujeito pensante. É no sujeito, e

não na realidade empírica, que encontraremos o critério de verdade do conhecimento

científico, objetivo último da metafísica.

Um dos mais relevantes interesses da filosofia deverá ser, portanto, a

elaboração de uma autocrítica da razão27, a investigação acerca da natureza da razão

humana e seus objetivos, por meio de uma ciência que determine a possibilidade, os

princípios e a extensão de todo conhecimento a priori. Kant propõe-se a desenvolver

uma “propedêutica do sistema da razão pura” (CRP B 25), que fundamente uma

ciência das condições do uso empírico do entendimento28, seguindo uma linha

intermediária entre o racionalismo e o empirismo.

Esta é uma enunciação breve de uma das pretensões de Kant com uma

filosofia transcendental. Kant explica: “chamo transcendental a todo conhecimento

que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na

medida em que este deve ser a priori” (CRP B 25). Para nosso propósito, é

fundamental sublinhar o seguinte: a Crítica da Razão Pura trará um estudo das

condições transcendentais do conhecimento, ou seja, suas condições prévias,

subjetivas e anteriores à experiência, que condicionam o conhecimento objetivo. Isto

também estabelecerá suas limitações – e os problemas gerados quando tais

condições da experiência possível não são rigorosamente observadas. Por um lado,

27 Cf. HÖFFE, p. 38, 2005. 28 Como veremos, esse aspecto será crucial para Hegel: sua crítica à unilateralidade e mera formalização do conhecimento, que a filosofia de Kant radicaliza, terá nessa pretensão kantiana seu ponto chave.

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a filosofia transcendental reconhece a função dos dados “colhidos” da sensibilidade

para a elaboração da experiência, reconhecendo a relevância metafísica do

empirismo; por outro, reconhece também o caráter fundamental da estrutura a priori

da consciência, e isso revela um parcial reconhecimento de tendências racionalistas

no pensamento filosófico. Seu conceito de experiência será uma articulação dessas

duas tendências29. Adorno compreenderá o programa filosófico de uma

fundamentação metafísica das ciências como a realização mais tipicamente

esclarecida da filosofia kantiana, qual seja, a busca pela sistematização do saber.

Para Adorno,

Em Kant, tanto quanto em Leibniz e Descartes, a racionalidade consiste em levar a cabo a conexão sistemática, tanto ao subir aos gêneros superiores quanto ao descer aos inferiores. O aspecto sistemático do conhecimento consiste na conexão dos conhecimentos a partir de um princípio. O pensamento, a partir do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios (ADORNO, 1985, p. 81)

Desenvolvendo, segundo Adorno, um pensamento sistematizado para

fundamentação das ciências, Kant propõe a compreensão de que a consciência

divide-se em duas instâncias com funções distintas, a sensibilidade e o entendimento.

A função da sensibilidade é ser afetada pelos objetos da experiência exterior, os

fenômenos, enquanto o entendimento é responsável por organizar os fenômenos em

categorias de pensamento, formulando juízos acerca do mundo30. Sua célebre

afirmação de que “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos

são cegas” (CRP A 51, B 75), exprime que a estruturação da experiência é, para Kant,

dupla e interdependente. Sensibilidade e entendimento são as duas faculdades que,

29 Sua proposta é anunciada já na Introdução à sua obra: “Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los” (CRP B 1). 30 É no Capítulo I da Crítica da Razão Pura, denominado “Doutrina Transcendental dos Elementos”, que Kant elabora as bases da sua filosofia crítica. A primeira parte, Estética Transcendental, contém um estudo da estrutura a priori da sensibilidade e suas formas puras, os conceitos de espaço e tempo. Por outro lado, é no contexto da segunda parte, a Lógica Transcendental, mais precisamente na Analítica Transcendental, que Kant investigará a faculdade responsável por unificar conceitualmente o múltiplo da intuição sensível: o entendimento. A forma da sensibilidade é a intuição pura, enquanto o conteúdo da sensibilidade é a intuição empírica. A primeira refere-se a uma estrutura a priori do sujeito do conhecimento: a intuição pura é composta pelas formas puras do espaço e do tempo, instâncias que estabelecem a delimitação prévia desse contato com a realidade exterior; esse tipo de intuição é, para Kant, logicamente independente da experiência e condição necessária da mesma. A intuição empírica origina-se, por sua vez, na afecção da sensibilidade por objetos, uma vez que estes se compõem espaço-temporalmente: os dados resultantes dessa afecção perfazem os fenômenos.

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operando conjuntamente, oferecem-nos as condições para alcançar o conhecimento

objetivo.

A sensibilidade estabelece os limites primeiros da experiência, por meio de

suas formas puras, o espaço e o tempo. Qualquer realidade exterior só afeta a

sensibilidade na medida em que se estrutura de maneira espaço-temporal. Uma vez

que a sensibilidade é afetada por um objeto, os dados recebidos pela sensibilidade

perfazem o conteúdo da intuição sensível, empírica. O entendimento é a faculdade

que unificará espontaneamente o múltiplo da intuição empírica que se origina nessa

afecção, de acordo com regras deduzidas a priori, formando os conceitos empíricos,

fenômenos dos objetos que afetaram a sensibilidade Estas regras são as categorias

– conceitos puros do entendimento As categorias são, para Kant, a priori, bem como

as formas puras da intuição. O resultado dessa operação de subsumir um conteúdo

segundo uma categoria é um juízo. É necessário observar, contudo, que Kant precisa

explicar a origem das categorias. Uma vez que a estrutura da subjetividade é formal,

contraposta ao múltiplo sensível fornecido pela intuição, e considerando que a intuição

tem sua origem na experiência, o fundamento das categorias deve ser uma instância

independente da experiência. Resta explicitar qual é esse fundamento. Höffe traça o

percurso argumentativo seguido por Kant:

Uma vez que as categorias não podem ser derivadas da experiência31, resta só a outra possibilidade, baseada na revolução copernicana: assim como já no caso das formas puras da intuição, também as categorias nascem da constituição apriorística do sujeito, do mero pensar. (...) As formas puras do pensar não são meras criações do pensamento que só existem na fantasia dos filósofos; elas constituem os elementos necessários de toda a objetividade. (HÖFFE, 2005, p.95).

A constituição apriorística do sujeito, fundamento das formas puras do

entendimento, será a unidade sintética originária da apercepção. Essa unidade

representa, para Kant, a condição de possibilidade de toda unificação do múltiplo da

sensibilidade ou, em outras palavras, toda formulação de juízos acerca da realidade.

Tal unificação, necessária para qualquer formação conceitual, não pode ter sua

origem na experiência, uma vez que qualquer experiência já é resultante dessa

31 Hegel discordará de Kant. Para Hegel, a consciência não possui categorias a priori, nem mesmo é uma estrutura meramente formal, enquanto que as formas de julgar derivam da experiência, bem como o conteúdo de suas determinações. Retomaremos esse ponto mais à frente.

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unificação. Fica evidente, portanto, que a estrutura da subjetividade é, para Kant, uma

instância formal, contraposta ao conteúdo oferecido pelo múltiplo da sensibilidade.

Desse modo, Kant acredita haver elaborado, na Crítica da Razão Pura, mais

especificamente na Estética Transcendental, uma análise estrutural das condições de

receptividade dos objetos pelo sujeito, limitadas espaço-temporalmente. A Lógica

Transcendental, por sua vez, se divide em Analítica Transcendental e Dialética

Transcendental. É da articulação entre a Estética e a Analítica que decorre uma das

características mais elementares do criticismo kantiano, a distinção entre fenômeno e

coisa-em-si. Do fato de o sujeito só conhecer dos objetos aquilo que se compatibiliza

com o caráter espaço-temporal das formas da intuição sensível deriva a

impossibilidade de afirmar o que seja do objeto em sua configuração real, do que o

objeto é em-si mesmo32. Conforme sugere Kant, o sujeito conhece apenas os

fenômenos resultantes da afecção da sensibilidade pelo objeto e posterior unificação

desse diverso da intuição em conceitos. Para Kant, não há possibilidade de conferir

objetividade e necessidade a um conhecimento que ultrapasse essas condições e,

acerca da coisa-em-si, o sujeito nada pode afirmar de verdadeiro33.

A ação unificadora das categorias depende, para Kant, dessa constituição da

consciência. Sem uma consciência apta a captar todas as representações como suas

e, portanto, sujeitas a essa primeira unificação, não haveria qualquer experiência. O

fundamento último do conhecimento é, portanto, a possibilidade racional da unificação

do múltiplo em conceitos. Essa unidade formal sintética é, para Kant, o eu penso: os

objetos só podem ser pensados enquanto tais porque são pensados pelo sujeito. Por

esse motivo, o sujeito, para Kant, jamais poderá ser uma substância, conforme

pretendia Descartes. O sujeito é apenas o reconhecimento de uma consciência que

32 Númeno é a designação dada por Kant para o objeto no que este é em si mesmo, de forma independente do sujeito cognoscente. 33 Decorrência que será abertamente recusada por Hegel, conforme veremos.

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acompanha representações. Ou seja, ele é meramente formal34. Essa operação é, de

acordo com Kant, o processo que origina todo o conhecimento objetivamente válido35.

A Dialética, por isso, será a parte da Crítica da Razão Pura que trata de todas

as formas de pensamento que ultrapassam a possibilidade de experiência objetiva.

Ou seja, a dialética compreende todos os modos pelos quais o sujeito pode pensar

objetos. Aqui alcançamos um ponto central da filosofia kantiana: conhecer e pensar

são atividades distintas. O conhecimento objetivo, para Kant, ocorre apenas sob as

condições específicas demonstradas por sua filosofia transcendental. Para além deste

conhecimento, há um sem-número de coisas que podem ser pensadas pelo sujeito,

embora destituídas de validade objetiva. É nesse campo em que residem coisas que,

embora não possam ser validadas objetivamente, podem ser pensadas, que Kant

fundamenta, por exemplo, aquele que é considerado o principal conceito da sua

filosofia prática, a liberdade.

Kant, em sua Crítica da Razão Pura, realiza o esforço de provar que não há

possibilidade de acesso imediato do sujeito ao objeto do conhecimento, mas que, na

verdade, qualquer contato do sujeito com a realidade material, com o mundo exterior,

já é predeterminado por uma estruturação a priori. Desvendar essa estruturação

formal subjetiva, que permite o único modo de acesso ser humano às coisas,

libertando a metafísica dos equívocos que comete ao tomar seus objetos de modo

ingênuo é, na visão de Kant, o propósito primeiro da sua filosofia. Esse breve percurso

pela teoria kantiana do conhecimento servirá ao nosso propósito, que seguiremos a

34 O aspecto mais relevante da diferenciação entre o sujeito kantiano e o cogito de Descartes é o aspecto substancial deste último. Kant expõe na sua Dialética Transcendental, mais especificamente na Crítica da Psicologia Racional, os equívocos inerentes ao projeto cartesiano de conferir substancialidade ao sujeito. Essa tentativa provém de uma ideia da razão pura e se depara com contradições insolúveis: é o que Kant elabora com o nome de “paralogismos da razão pura”. Em Kant, sujeito deve ser entendido apenas como a apercepção, como consciência de si unificadora. Ainda segundo Höffe: “Em virtude da apercepção ou autoconsciência transcendental, o conhecimento dos objetos forma uma unidade indissolúvel com a sua auto-relação. Pertence a toda consciência não só um objeto, mas também a possibilidade de estar consciente da consciência do objeto. (...) O eu penso é a representação irredutível que permanece igual a si mesma em todo representar, junto com seus conteúdos diversos (HÖFFE, 2005, p. 98) 35 A autocrítica da razão atesta, contra os empiristas, que a sensibilidade nada conhece e não há conhecimento anterior à unificação destes dados em conceitos operada pelo entendimento. “É verdade que Kant admite que todo conhecimento começa com a experiência; mas não resulta disso, como supõe o empirismo, que o conhecimento provenha unicamente da experiência. Pelo contrário, mesmo o conhecimento empírico se mostra impossível sem fontes independentes da experiência” (HÖFFE, 2005, p 39). O conhecimento tem seu ponto de partida na experiência, mas só adquire seu acabamento objetivamente válido por meio da ação subjetiva das faculdades.

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partir de agora, de evidenciar, primeiramente, os aspectos do pensamento de Kant

que são tomados por Hegel como incontornáveis e, em segundo lugar, o caráter

excludente e dualista da racionalidade moderna que, de acordo com Hegel, Kant

corrobora e a qual a dialética hegeliana tem a pretensão de contrapor. A proposta

hegeliana de superação do dualismo moderno é o aspecto metodológico mais

relevante para Adorno, conforme veremos nos capítulos mais à frente.

2.3 DE KANT A HEGEL: A RECUSA DO MODERNO SUBJETIVISMO

Para Hegel, a fundamentação da moderna teoria do conhecimento legada

pela tradição demanda reformulação. Sua filosofia tem por objetivo buscar as

condições de superação do dualismo progressivamente consolidado ao longo da

história da metafísica36. Por meio de uma análise de seu momento histórico, Hegel

encontra na manutenção do subjetivismo moderno – e em sua radicalização mais

significativa, a filosofia kantiana – a raiz filosófica das crises e contradições do mundo

moderno. Em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel evidencia os efeitos,

para qualquer filosofia prática, de sistemas filosóficos fundamentados no dualismo

epistemológico. Em resumo, a filosofia dualista conduziria a uma compreensão

equivocada da ideia de liberdade, que se explica conceitualmente, mas não se efetiva

na realidade social e, portanto, não emancipa indivíduos. Hegel considera que a

preservação das expectativas e promessas de liberdade e emancipação anunciadas

pelo pensamento esclarecido exige que se repense o tipo de racionalidade privilegiado

pela tradição, em vista de compreender a necessidade histórica da afirmação de um

modelo de liberdade que se reflita na práxis.

Para realizar esse feito, Hegel estabelecerá uma dúbia relação com Kant.

Uma de suas principais obras, a Fenomenologia do Espírito, é publicada pouco mais

de 20 anos após a publicação da primeira crítica de Kant e visa dar uma resposta a

essa. Para Hegel, a filosofia kantiana é de uma perspicácia inestimável, precisamente

36 É importante destacar que o diagnóstico de que um rígido dualismo na teoria do conhecimento aparta os seres humanos da materialidade da vida e deve ser superado em nome de maiores possibilidades de emancipação, proposto por Adorno, não é de sua autoria. O primeiro pensador a vincular o subjetivismo moderno ao fracasso das propostas do esclarecimento é Hegel.

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por ser Kant o primeiro filósofo a demonstrar o caráter incontornavelmente conceitual

de toda experiência. Como vimos anteriormente, Kant afirma que intuições empíricas

não podem, isoladamente, alcançar conhecimento, do mesmo modo que a razão,

operando sem conteúdo sensível, ora se enreda em contradições, ora se vê forçada

a abandonar suas pretensões de objetividade37. Sua “revolução copernicana” e a

consequente delimitação das condições da experiência objetiva demonstram que não

há experiência objetivamente válida que passe ao largo da operação conceitual

realizada pela consciência que, para Kant, articula forma e conteúdo por meio das

formas puras da intuição sensível e do entendimento. Isso torna injustificável todo e

qualquer conhecimento baseado em intuições intelectuais.

Essa defesa kantiana da estrutura conceitual de asserções com pretensão de

validade objetiva será de vital importância para Hegel. Hegel ampliará a partir disso,

conforme veremos mais à frente, sua própria concepção de experiência, de modo

afirmar que todo e qualquer pensamento se estabelece conceitualmente. Entretanto,

Hegel também encontrará na filosofia kantiana o ápice do subjetivismo que ele próprio

pretende superar. Uma das principais decorrências do projeto filosófico kantiano é a

constatação da impossibilidade de comprovar que a consciência tem acesso a um

objeto como ele é em si mesmo. Para demarcar esse fato, Kant insiste ao longo de

sua obra em que temos conhecimento somente de fenômenos captáveis pela

sensibilidade, não tendo qualquer experiência das coisas-em-si. Esse resultado não

apenas acentua a cisão moderna entre sujeito e objeto, tornando passíveis de total

engano afirmações que tenham a pretensão de ultrapassar o âmbito fenomênico, mas

também consolida um paradigma de racionalidade no qual forma e conteúdo do

conhecimento encontram-se sempre em instâncias distintas. A cisão epistemológica

da qual esse modelo resulta é tão lugar-comum na filosofia moderna que a pretensão

máxima desta se torna, com Kant, desvendar as nuances da estrutura formal do

conhecimento em vista da melhor manipulação dos conteúdos. Para Hegel, esse

37 Não há garantia de objetividade, como Kant deixa claro, na Dialética Transcendental. As operações da razão que conduzem às ideias de mundo, liberdade e Deus se encontram fora do âmbito da experiência objetiva, uma vez que não possuem referencial sensível. Contudo, essas ideias terão valor inestimável na filosofia prática kantiana, uma vez que esta não se fundamenta nos mesmos critérios sobre os quais Kant constrói sua filosofia pura, quais sejam, sua conceitualidade e, portanto, objetividade. Hegel recusará a fundamentação proposta para a filosofia prática kantiana, conforme veremos mais à frente.

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procedimento tem como decorrência mais notável uma espécie de instrumentalização

do conhecimento, que será o legado mais nocivo da modernidade filosófica38.

2.1.1 O projeto de uma racionalidade dialética para pensar a liberdade:

da Fenomenologia do Espírito aos Princípios da Filosofia do

Direito de Hegel

O objetivo geral da filosofia hegeliana assemelha-se ao projeto crítico kantiano

na medida em que Hegel também pretende desvendar o processo por meio do qual

podemos alcançar o conhecimento efetivo, da verdadeira ciência. É prudente

ressaltar, no entanto, que o conceito de ciência tem, para Kant e Hegel, significados

distintos. Kant toma por ciência os desenvolvimentos das ciências da natureza, com

seus métodos característicos de geometrização e matematização de fenômenos e

conhecimento pautado pela quantificação, cujo desenvolvimento tomou maior impulso

com a Revolução Científica do séc. XVII. Esse fazer científico, para Kant, pode – e

deve – ser sistematizado e organizado filosoficamente, de modo a ter estabelecidos

seus âmbitos de validade. A compreensão kantiana do fazer científico é contestada

por Adorno, que argumenta que mesmo no século XVIII a ciência já havia se

constituído como um “exercício técnico, tão afastado de uma reflexão sobre seus

próprios fins como o são as outras formas de trabalho sob a pressão do sistema”

(ADORNO, 1985, p. 84). A grande contradição, para Adorno, residirá na questão de

que “a ciência ela própria não tem consciência de si, ela e um instrumento, enquanto

o esclarecimento é a filosofia que identifica a verdade ao sistema científico” (Ibdem,

p. 85).

Por esse viés, o conceito hegeliano de ciência é ainda mais abrangente, uma

vez que comporta todo saber em sua verdade e substancialidade. Sobre isso, Hegel

afirma que “a verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu sistema

científico” (HEGEL, 2008, §5, p. 27). Esse conceito tem um caráter bastante distinto

do conceito kantiano, por se tratar do conhecimento dos momentos que a consciência

atravessa para, primeiramente, alcançar o conhecimento de si mesma enquanto

38 Conforme vimos no capítulo anterior, a instrumentalização da razão é uma das facetas mais nocivas da Dialética do Esclarecimento.

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pensante e, finalmente, alcançar o saber efetivo. Em uma de suas obras mais

importantes, a Fenomenologia do Espírito, Hegel apresentará seu projeto de elaborar

uma ciência do desenvolvimento da consciência39, contrapondo-se à noção de ciência

em sentido kantiano:

O conceito da ciência surgiu depois que se elevou à sua significação

absoluta aquela forma triádica que em Kant era ainda carente-de-

conceito, morta, e descoberta por instinto. Assim, a verdadeira forma

foi igualmente estabelecida no seu verdadeiro conteúdo. Não se pode,

de modo algum, considerar como científico o uso daquela forma

[triádica], onde a vemos reduzida a um esquema sem vida, a um

verdadeiro fantasma A organização científica [está aí] reduzida a uma

tabela (HEGEL, 2008, §50, p. 48)

Hegel recusa as conclusões do idealismo transcendental kantiano e seu

subjetivismo estrutural, que se deflagra em um formalismo que, nas palavras de Hegel,

não passa de uma “aplicação vazia e exterior da fórmula” (Ibidem, p. 48), tratada por

Hegel como idealismo subjetivo. Para Hegel, a consideração de que os critérios para

o conhecimento partem de uma instância puramente formal e a priori, interna ao

sujeito pensante, advém de uma concepção unilateral e, portanto, incompleta de

experiência. Disto decorre sua defesa de que a racionalidade subjetivista da

modernidade não é capaz de compreender que a experiência se realiza por meio de

práticas compartilhadas, originadas em uma substância ética40 na qual sujeito e objeto

já estão desde sempre imersos e unificados. Isso tem como decorrência uma

conclusão importante para Hegel e não captada por Kant: o dualismo filosófico, que

se radicaliza na modernidade e se desdobra na separação, por exemplo, entre sujeito

e objeto, forma e conteúdo, pensar e conhecer, saber e ser41, aparentemente

originárias e tomadas desse modo ao longo de toda a modernidade, são abstrações.

Hegel reconhece, contudo, que a contraposição entre o dualismo e uma

suposta unidade originária42 carece de demonstração: “um asseverar seco vale tanto

como qualquer outro” (HEGEL, 2008, §76, p. 74). Este será seu propósito naquela que

é uma de suas obras mais importantes, a Fenomenologia do Espírito, por meio da

39 Cf. HEGEL, 2008, §78, p. 67. 40 Retomaremos a concepções hegelianas de substância ética e eticidade mais à frente. 41 E sua consequente consideração de que o conhecimento é uma espécie de instrumento capaz de captar a verdade. 42 “Originária” aqui possui um sentido relativo, referente ao momento – sempre reposto, na filosofia hegeliana – no qual toda experiência tem seu início.

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comprovação de que o conhecimento só é verdadeiro na medida em que alcança a

compreensão de uma totalidade na qual consciências e objetos se encontram sempre

imersos, em práticas compartilhadas e historicamente constituídas. Para Hegel, não

cabe à consciência a mera operacionalização de conteúdos de conhecimento

apartados da realidade objetiva, precisamente porque não há uma cisão estrutural

entre conteúdo e forma. Hegel pretende demonstrar, inclusive, que a identidade entre

essas instâncias, seu solo comum, é condição de possibilidade da abstração moderna

que constitui sua ruptura e fragmentação tradicionais. Para tanto, Hegel descreverá

os momentos que percorre a consciência para alcançar o verdadeiro conhecimento,

primeiramente reconhecendo sua unidade originária com o objeto, estabelecendo uma

distinção entre si mesma e algo supostamente exterior e, finalmente, reconhecendo a

identidade entre ambos, agora diferente da originária, porque refletida e recomposta.

Esse trajeto, que conduz ao conhecimento verdadeiro, ou, no vocabulário hegeliano,

ao saber efetivo, culminará na revelação de que um saber não unilateral e, portanto,

absoluto, se alcança apenas por meio de um tipo específico de racionalidade: a

dialética.

O projeto hegeliano descrita acima é motivado por um fator que Hegel

desenvolverá com maior profundidade em seus Princípios da Filosofia do Direito. O

pensamento moderno, para Hegel, inviabiliza a percepção de elementos históricos,

situacionais e sociais que integram a experiência e não permite a visualização do

conjunto de normas e valores que influenciam de antemão as práticas, os usos que

os sujeitos fazem de seu próprio saber. E uma vez que tais práticas constituem o meio

que os indivíduos compartilham, compondo a realidade que se transforma e atualiza

através da ação desses mesmos indivíduos, a filosofia moderna oculta, pela

formalização do conhecimento, o potencial da ressignificação valorativa e normativa

sobre a realidade, com propósito transformador, em suas dimensões sociais,

históricas e políticas. Em outras palavras, a filosofia moderna impossibilita a crítica,

engessa a práxis e estanca possibilidades de emancipação, na medida em que

inviabiliza o desenvolvimento de uma teoria social que compreenda suas

especificidades. A subjetividade, quando instituída como pedra de toque do

conhecimento – pretensão da moderna metafísica –, aparta o sujeito de seu próprio

mundo e impede o reconhecimento de que a consciência não possui uma rígida

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estrutura a priori, mas é uma esfera do saber também constituída em um ambiente

sujeito à atualização e transformação.

Além disso, Hegel aponta que uma das facetas do dualismo – e a mais

relevante, em vista de seus efeitos devastadores – reside precisamente em sua

concepção reducionista de liberdade. Nesse paradigma, a liberdade se efetiva

somente de maneira limitada, na medida em que se traduz como vontade e encontra

em outras vontades um obstáculo. Hegel tratará dessa concepção de liberdade

caracterizando-a como arbítrio43:

A vontade é finita quando o Eu, embora infinito, não se reflete sobre si mesmo e só formalmente está junto de si. Mantém-se, portanto, acima do conteúdo, dos diferentes instintos e de todas as espécies de realização e satisfação, ao mesmo tempo que, porque apenas formalmente é infinita, se encontra presa a este conteúdo que constitui as determinações da sua vontade e da sua realidade exterior. (...) Se, portanto, só há de interior ao livre-arbítrio o elemento formal da livre determinação e se o outro elemento é para ele um dado, pode bem ser dito que o livre-arbítrio, que pretende ser a liberdade, não passa de uma ilusão. Em toda filosofia da reflexão (desde Kant à de Fries, que é uma degradação daquela) a liberdade é essa atividade autônoma formal. (HEGEL, 2009, p.22)

Para Hegel, uma concepção de liberdade meramente formal encontra no

dever um obstáculo não apenas igualmente formal, mas, sobretudo, material, para sua

efetivação e, por isso, não pode ser tomada como fim último de uma filosofia que tem

por objetivo a realização das pretensões iluministas. A modernidade tem seus valores

assentados em uma racionalidade que opera por meio de noções equivocadas acerca

do seu contato com o real. Para Hegel, a certificação e fundamentação metafísica do

conhecimento se tornou o cerne da filosofia moderna, a questão do método passou a

pautar as reflexões e investigações acerca da possibilidade do conhecimento objetivo

foram postas em primeiro plano, de cuja resposta passou a depender o sucesso de

qualquer filosofia prática. Contudo, essa mesma tendência foi responsável por

aprofundar o subjetivismo epistemológico e apartar os indivíduos daquilo que visavam

conhecer. Para Hegel, se faz urgente a superação da ideia que atesta a relação

43 Kant trata da diferença entre vontade e arbítrio, mas anteriormente a isso já se utiliza da expressão “razão prática como vontade”. Nesse sentido, a vontade se equipara à razão pura prática e à lei moral, enquanto o arbítrio é uma forma específica do agir humano, o modo como o homem acolhe a lei moral. Hegel, contudo, não considera essa diferenciação relevante. A razão pura prática, para Hegel, não passa de um arbítrio, um livre arbítrio. Isso por dois motivos: Primeiramente, porque ela representa a pura forma da lei, desprovida de conteúdo; e também porque ela é a forma subjetivizada da vontade, cuja realização social, ao mesmo tempo em que é, em tese, indispensável, é também quase impossível.

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extrínseca entre subjetividade e objetividade. Sobre essa leitura do projeto geral da

filosofia hegeliana, Will Dudley afirma que:

O entusiasmo de Hegel [com Kant] originou-se de sua concordância com a insistência revolucionária sobre o direito da razão: as reivindicações teóricas modernas e os arranjos práticos precisam ser, acima de tudo e por definição, racionais. A crítica de Hegel, no entanto, surgiu de sua visão de que a era da razão fracassou: nem a filosofia kantiana, nem a Revolução Francesa foram realmente racionais, porque ambas se apoiaram num juízo falso sobre a própria racionalidade. A preocupação de Hegel, desde a sua primeira publicação até a última, tornou-se assim no desenvolvimento de uma filosofia verdadeiramente racional, uma que pudesse determinar e dessa forma ajudar a sustentar as condições de uma vida verdadeiramente racional (DUDLEY, 2013, p. 200).

A descrição do modo pelo qual essa filosofia racional pode ser alcançada – e

a demonstração do equívoco nas tentativas modernas – está entre as mais elevadas

pretensões do percurso filosófico hegeliano. Por isso, trataremos aqui de alguns

aspectos da crítica de Hegel ao pensamento de Kant. Ironicamente, Hegel defenderá

que a superação do dualismo passa obrigatoriamente por uma detida reconsideração

da filosofia kantiana. Explicando de modo sucinto, Hegel propõe que não há cisão,

mas uma identidade originária entre ser e pensar. Contudo, a cisão moderna entre

forma e conteúdo não seria um equívoco, mas uma construção, uma abstração – que

não se reconhece como tal –, parte integrante do movimento que a consciência perfaz

na experiência. O reconhecimento, por parte da consciência, da diferença entre si e o

mundo é apenas uma das etapas, momentos44 que o pensamento atravessa para

atingir o conhecimento verdadeiro.

À defesa de Hegel de que o pensamento não apenas reflete a natureza da

realidade mesma, mas é sua parte integrante se deve o caráter revolucionário da

Fenomenologia do Espírito. Já no primeiro parágrafo da Introdução de seu escrito,

Hegel aponta para a necessidade de inserir uma “desconfiança na desconfiança” da

filosofia. Para Hegel, é possível que o pensamento moderno tenha falhado

precisamente por seu temor de errar, que o haveria conduzido a um campo de

desconfiança do qual nada se pode concluir de verdadeiro e efetivo:

44 Trataremos, mais à frente, do desenvolvimento das figuras ou momentos que a consciência atravessa para alcançar o conhecimento efetivo: “A série de figuras que a consciência percorre nesse caminho é, a bem dizer, a história detalhada da formação para a ciência da própria consciência” (HEGEL, 2005, p. 75, §78).

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De fato, esse temor de errar pressupõe como verdade alguma coisa (melhor, muitas coisas) na base de suas precauções e consequências – verdade que deveria antes ser examinada. Pressupõe, por exemplo, representações sobre o conhecer como instrumento e meio e também uma diferença entre nós mesmos e esse conhecer, mas, sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o conhecer de outro – para si e separado do absoluto – e mesmo assim seja algo real. Pressupõe com isso que o conhecimento, que, enquanto fora do absoluto, está também fora da verdade, seja verdadeiro; suposição pela qual se dá a conhecer que assim chamado medo do erro é, antes, medo da verdade (HEGEL, 2008, p.72-73 §§74-75).

No trecho acima é possível vislumbrar todos os aspectos diretivos da

contraposição hegeliana ao pensamento moderno. O “temor de errar” desvia a filosofia

do caminho da verdade. Para Hegel, o ser humano jamais poderá ter conhecimento

efetivo partindo da consideração de que a verdade reside fora do sujeito que a busca:

Não há porque atormentar-se, buscando resposta a essas representações inúteis e modos de falar sobre o conhecer, como instrumento para apoderar-se do absoluto, ou como meio através do qual divisamos a verdade etc. São relações em que vem a dar, com certeza, todas essas representações de um absoluto separado do conhecer, ou de um conhecer separado do absoluto. (...) Melhor seria rejeitar tudo isso como posições contingentes e arbitrárias; e como engano, o uso – a isso unido – de termos como o absoluto, o conhecer, e também o objetivo e o subjetivo e inúmeros outros cuja significação é dada como geralmente conhecida (HEGEL, 2008, p.72-73 §§74-75).

O exame do conhecimento deve ser um exame das suas condições

subjetivas. Kant já apontara acertadamente esse fato. Porém, da suposição, da qual

Kant é tributário, de que a realidade material e o conhecimento são externos um ao

outro decorrem, na filosofia, dois direcionamentos principais. Primeiramente, a

tentativa de vincular absoluto e conhecimento – sujeito e objeto – abstratamente, de

modo imediato, realizada por todos os adeptos da intuição intelectual, equívoco que a

filosofia transcendental de Kant rejeita frontalmente e Hegel nisso reconhece

abertamente o mérito kantiano. Em segundo lugar, a pretensão de pôr como

fundamento e pedra de toque da verdade a aptidão racional formal do sujeito, algo

que acaba por transpor a investigação acerca do conhecimento para a investigação

somente das condições formais internas ao sujeito cognoscente. Procedimento em

que, para Hegel, se resume a epistemologia kantiana.

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Por sua vez, Hegel recusa, na primeira decorrência, as pretensões não

justificadas de construção de uma filosofia que perde a substancialidade do ser no

momento mesmo em que põe, arbitrariamente, a verdade naquilo que se pode,

supostamente, conhecer de modo imediato. A busca por um conhecimento livre de

mediações, por meio de um contato puro e direto entre o pensamento e a coisa, é,

para Hegel, a maior ingenuidade da filosofia moderna – cuja realização se encontra,

de modos distintos, no empirismo e no idealismo. Essa posição, à qual Kant se refere

como realismo empírico, caracteriza-se não apenas por considerar a objetividade

como uma entidade autônoma frente ao sujeito, mas por defender que o modo pelo

qual o sujeito alcança seus fundamentos é intuitivo. A racionalidade moderna pré-

crítica tem por pretensão o alcance do conhecimento sem a necessidade de mediação

conceitual, de forma independente da operacionalização promovida pela razão, a

chamada intuição intelectual. Hegel recusa a objetividade de conhecimentos de

semelhante natureza:

Assim, hoje, um filosofar natural que se julga bom demais para o conceito, e devido à falta de conceito se tem em conta de um pensar intuitivo e poético, lança no mercado combinações caprichosas de uma força de imaginação somente desorganizada por meio do pensamento – imagens que não são carne nem peixe, não são poesia nem filosofia. (HEGEL, 2008, §68, p.67).

Com “pensar intuitivo e poético”, Hegel desfere sua crítica contra um modelo

de racionalidade que se tornou norma desde Descartes. Para Hegel, é impossível que

esse pensar, despojado abstratamente de toda materialidade e substancialidade,

ainda pretenda alcançar um saber verdadeiro e completo sobre as coisas. Ter

estabelecido a conceitualidade como instância obrigatória da experiência – e,

portanto, o papel ativo e determinante do sujeito na experiência – descartando

pretensões de objetividade calcadas na crença em um contato imediato com o real é,

para Hegel, o maior mérito da filosofia de Kant. É célebre a afirmação kantiana

presente no §18 dos seus Prolegômenos a toda metafísica futura, no qual afirma a

estruturação conceitual de toda a experiência45. Essa constatação permite que a

45 “Os juízos empíricos, na medida em que tem um valor objetivo, são juízos de experiência; mas, os que apenas são válidos subjetivamente recebem de mim o nome de juízos de percepção. Os últimos não precisam de nenhum conceito puro do entendimento, mas apenas da conexão lógica das percepções num juízo pensante. Os primeiros, porém, exigem sempre, além das representações da intuição sensível, conceitos particulares produzidos originariamente no entendimento que fazem com que o juízo de experiência seja objetivamente válido” (KANT, p. 70, 2000).

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filosofia rompa com a intuição intelectual propagada pelo racionalismo dogmático. O

projeto kantiano inviabiliza, em um só movimento, o eu penso de Descartes e toda a

tradição idealista fundada na crença da possibilidade de acesso do sujeito ao real sem

a intervenção necessária da própria consciência nesse processo46. Dito em outras

palavras, a filosofia crítica de Kant é responsável por evidenciar a incontornabilidade

da mediação conceitual, fato que, para Hegel, torna a filosofia kantiana um marco para

antes do qual não se pode mais retroceder.

Para Hegel, Kant realiza o feito de evidenciar a insuficiência da imediatidade.

Contudo, com o intuito de estabelecer sua inverdade, estabeleceu, como resultado, a

inverdade total, o absoluto desconhecimento do objeto como este é em si mesmo. Em

outras palavras, o segundo direcionamento decorrente da moderna separação entre

saber e ser representa a radicalização epistemológica promovida por Kant ao

estabelecer as condições de possibilidade de atestarmos a existência das coisas

como são em si mesmas. Segundo suas pretensões, o desenvolvimento das

condições para o conhecimento verdadeiro culmina em seu idealismo transcendental.

Para seu autor, o fato de a objetividade alcançar sua comprovação em um âmbito

subjetivo de validade não compromete a realidade dos objetos exteriores ao sujeito –

seu realismo – uma vez que, embora o conteúdo da experiência seja obrigatoriamente

advindo do exterior, o conhecimento é formulado em uma instância independente e

46 Kant, ao elaborar sua refutação do idealismo, estava preocupado com as decorrências do tipo de idealismo vigente em sua época para uma teoria do conhecimento, representado em sua principal vertente por Descartes e que defendia que podemos ter certeza apenas da nossa natureza interior, da nossa consciência e das ocorrências internas ao nosso pensamento, de modo que não se poderia afirmar com convicção a existência de objetos exteriores a nós. Kant, em resposta, elabora uma teoria do conhecimento que busca provar a dependência que nossa consciência possui de objetos exteriores, revelando que a mera possibilidade da nossa percepção de que há uma consciência interna a nós, sujeitos do conhecimento, depende da percepção da existência de objetos e seres externos a nós. Para Kant, a principal evidência que possuímos acerca da nossa autoconsciência é a percepção do tempo. Percebemos facilmente que o curso dos nossos pensamentos obedece a uma sequência temporalmente determinada. Contudo, a percepção do tempo é uma percepção relacional: apenas conseguimos compreender que algo passa, que existe um “antes” e um “depois”, em vista de uma referência que é imóvel, fixa; de fato, algo que tenha um antes e um depois, deve vir “antes” de algo que é fixo e “depois” de algo que também é fixo. Em outras palavras, só somos capazes de perceber o transcorrer de acontecimentos porque temos, igualmente, a percepção de algo que se mantém. Se a consciência possui o conhecimento de que os fenômenos ocorrem em ordem temporal, possui, inevitavelmente, a percepção de si mesma como algo fixo. Disso decorre que a certeza da natureza de sua existência enquanto consciência necessariamente vem acompanhada da certeza de objetos exteriores a si. Não se pode admitir uma afirmação recusando a outra. A certeza da própria consciência seria impossível sem afirmar a existência de uma natureza exterior, também determinada temporalmente, que sirva como referencial. Kant, dessa forma, prova a existência de seres exteriores a nós, refutando o moderno idealismo. Esse raciocínio será de vital importância para Hegel e, consequentemente, para Adorno, como veremos mais à frente.

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absolutamente subjetiva. Por outro lado, embora a objetividade seja independente,

esta determina desde fora o conteúdo conceitual, por sua característica apriorística

ser espaço-temporal. Hegel não admite essa conclusão kantiana, por julgá-la

partidária da consideração de uma realidade completamente externa e independente

do sujeito, que este acessaria por uma estruturação especial, ideia que não se

justifica, uma vez que não há como provar a existência de um âmbito, uma terceira

realidade, um meio no qual sujeito e objeto se encontram e se “ligam” através de um

instrumento – a sensibilidade. Ao contrário, Hegel considera mais plausível a tese de

que sujeito e objeto se encontram desde sempre relacionados e que a tarefa de

separá-los já exige uma primeira abstração. Em outras palavras, Hegel elogia a

contraposição kantiana ao realismo empírico, mas recusa o idealismo transcendental,

por seu subjetivismo não fundamentado.

O conceito da ciência surgiu depois que se elevou à sua significação absoluta aquela forma triádica que em Kant era ainda carente-de-conceito, morta e descoberta por instinto. Assim, a verdadeira forma foi estabelecida no seu verdadeiro conteúdo. (...) Já falamos acima desse formalismo. (...) Aí se aceitam, por um lado, determinações sensíveis da intuição vulgar, que de certo devem significar algo diverso do que dizem; e, por outro, o que é em si significante, as determinações puras do pensamento – como sujeito, objeto, substância, causa universal etc. – são aplicadas tão sem reflexão e sem crítica como na vida cotidiana. (...) Chama-se construção essa aplicação vazia e exterior da fórmula. (HEGEL, §§50-54, p. 55-6, 2008).

Acerca disso, Paul Guyer aponta que “o idealismo kantiano é subjetivo porque

mesmo nosso conhecimento reflete mais a natureza do sujeito do que a essência

própria dos objetos de conhecimento. Ao contrário, o idealismo absoluto hegeliano

defende que o pensamento reflete a natureza da realidade mesma”. (GUYER, 2008

p. 37) .A filosofia de Kant, como este mesmo reconhece, não possui condições de

garantir o conhecimento dos objetos tais como eles são e, em decorrência, acaba por

delimitar o âmbito da realidade que o sujeito está apto a conhecer. Hegel alerta,

portanto, para os equívocos de fazer filosofia da pura forma. Kant não só o pretende,

como estabelece uma diferenciação irrevogável que aparta não somente a forma –

sujeito pensante e a priori – do conteúdo do seu pensamento, fornecido pela

sensibilidade. Indo além, Kant também cria uma cisão injustificada nessa forma,

distinguindo a instância sensível e receptiva, que capta os dados da sensibilidade mas

que, paradoxalmente, não compõe uma mediação, de uma instância ativa e intelectual

que unifica estes dados, o entendimento, determinando as formas puras da intuição

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sensível, por um lado, e as formas puras do entendimento, por outro. Desse modo, se

Descartes falha em afirmar a possibilidade de um contato imediato entre a consciência

pura e o objeto, Kant, para Hegel, teria falhado em sua pretensão de justificar a tese

da existência de uma estruturação absolutamente formal representada pelo sujeito

cognoscente apartado de toda substância47: ambas as tentativas são ilusórias, pois

pressupõem acesso imediato a algo. A filosofia kantiana, portanto, apresentaria uma

cisão ainda mais radical entre o sujeito e um objeto, cujas características em si não

temos condições de conhecer. Sobre essa crítica, Dudley afirma que:

Kant, como Hegel, reconhece a existência de uma esfera extraconceitual da objetividade, mas nega que os conceitos que nós necessariamente empregamos em nossa experiência desta esfera possam ser conhecidos à própria estrutura natural. O idealismo transcendental sustenta, por exemplo, que o espaço e o tempo são formas através das quais nós intuímos o mundo e que a causa e o efeito são conceitos por meio dos quais nós entendemos o mundo. Hegel, em contraste, sustenta que a própria natureza é espaçotemporal, e que os próprios seres espaçotemporais interagem casualmente (DUDLEY, 2013, p. 236).

O que Hegel denuncia é, portanto, um excesso de pressupostos. Contra o

formalismo de Kant, Hegel verá na consideração kantiana do tempo e espaço como

formas puras a priori uma pressuposição. Contrária a isso, sua filosofia mostra que

temos conhecimento espaço-temporal porque a realidade é espaço-temporal. Contra

o subjetivismo kantiano, Hegel compreenderá que faltou a Kant perceber que o

fundamento da sua filosofia é a identidade e não a cisão. O subjetivismo kantiano se

pautaria, portanto, por uma consideração cuja necessidade não se demonstra com o

mesmo rigor utilizado em sua sistemática. Contra a estruturação formal interna ao

sujeito cognoscente, sugerida por Kant, composta pelas formas puras da sensibilidade

e do entendimento, e sua contraposição a um conteúdo estranho e material, tomado

de “fora”, Hegel alerta para a constituição recíproca entre os momentos que, pela

abstração, a filosofia toma por “dentro e fora”, “sujeito e objeto”, “forma e conteúdo”.

A percepção do movimento que perfaz essa constituição recíproca será a tarefa

principal da ciência e sua função será revelar a identidade entre pensamento e ser,

que a modernidade não reconhece:

Dessa maneira, o conteúdo mostra que sua determinidade não é recebida de um outro e pregada nele; mas antes, é o conteúdo que se outorga a determinidade e se situa, de per si, em um momento e em um lugar do todo.

47 Lembrar que o eu penso kantiano não passa de uma estruturação formal do múltiplo da intuição em uma unidade conceitual: uma pura forma que “acompanha” representações.

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(...) O entendimento tabelador guarda para si a necessidade e o conceito do conteúdo: [tudo] o que constitui o concreto, a efetividade e o movimento vivo da coisa que classifica. Ou melhor: não é que o guarde para si, mas o desconhece; (...) De fato, tal procedimento só fornece uma indicação do conteúdo, e não o conteúdo mesmo. (...) Por esse motivo em geral, que a substância é nela mesma sujeito, como acima foi dito, todo o seu conteúdo é sua própria reflexão sobre si. O subsistir ou a substância de um ser-aí é a igualdade consigo mesmo, já que sua desigualdade consigo seria sua dissolução (HEGEL, §§50-54, p. 56-8, 2008).

Kant considera que as categorias são formas vazias do juízo, mas não teria

se dado conta de que essas “formas” se originam no ato mesmo de pensar, ao qual o

sujeito já está submetido desde o seu primeiro contato com o real: não há, portanto,

um conjunto prévio de formas, mas sim uma capacidade racional de julgar – passível

de ser sistematizada posteriormente em categorias – que o sujeito adquire em seu

trato com as coisas, no cotidiano48.

Hegel admite, bem como Kant, que a consciência se utiliza de categorias na

unificação que promove da multiplicidade do real – mas Hegel as compreende como

tendo sua origem em juízos que se articulam intersubjetivamente nas consciências

que se constituem em seu contato com o mundo. Desse modo, Hegel não aceitará a

pressuposição kantiana de que as categorias, uma vez correspondendo às formas

lógicas do juízo, são estruturas meramente formais da consciência às quis se aplica

um conteúdo absolutamente exterior, ou seja, que “as categorias tem sua fonte na

unidade da consciência-de-si [e] que, por isso, o conhecimento por meio delas na

verdade nada contém de objetivo e a objetividade lhes é atribuída, é ela mesma algo

subjetivo” (HEGEL, 2012, § 46, p. 117). Para Hegel, seguindo Kant, de fato “as

categorias têm sua fonte na unidade da consciência de si” (HEGEL, 2012, §46, p.

117), mas não são vazias de conteúdo e não são meramente subjetivas. Hegel

apontará que Kant não comprova a necessidade das categorias, não demonstra sua

origem e nem possui condições de sustentar que a estrutura categorial por ele

apresentada é inerente ao pensamento:

Como é bem conhecido, a filosofia kantiana portou-se muito à vontade no descobrimento das categorias. O Eu, a unidade da consciência-de-si, é totalmente abstrato e completamente indeterminado. Como, pois, chegar às determinações do Eu, das categorias? Felizmente na lógica habitual já se encontram, empiricamente dadas, as diversas espécies de juízos. Ora, julgar é pensar um objeto determinado. As diversas maneiras de julgar, já bem enumeradas, fornecem portanto as diversas determinações do pensar. Resta à filosofia de Fichte o profundo mérito de ter lembrado que as determinações-

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de-pensamento têm de ser mostradas em sua necessidade, que elas são essencialmente a deduzir (HEGEL, 2012, §42 - p. 111).

Acerca dessa distinção, Stephen Houlgate sublinha que

se vamos determinar como as categorias devem ser concebidas, nossa concepção acerca delas deve se basear não somente naquilo em que se assume que o pensamento se fundamenta, mas naquilo que o pensamento prova ser por si mesmo, ou naquilo em que o pensamento se autodetermina como sendo. Em outras palavras, nossa concepção acerca do que são as categorias deve ser derivada ou deduzida necessariamente da própria autodeterminação do pensamento. De acordo com Hegel, tal dedução envolve demonstrar que certos modos de se compreender certas categorias advém da própria natureza do pensamento, o que significa dizer que isso implicaria na ‘exposição da transição daquela simples unidade da apercepção nessas sus determinações e distinções’. Mas, Hegel lamenta, ‘Kant se poupou do trabalho de demonstrar este processo genuinamente sintético’ simplesmente tomando o aspecto básico do pensamento (e posteriormente de suas categorias) como já garantido (HOULGATE, 2006, p. 16).

Hegel ainda insiste que não ocorre a Kant a ideia de que as determinações de

pensamento talvez sejam determinações das coisas mesmas, que o conhecimento

dos fenômenos já não seria, na verdade, conhecimento do absoluto e que, portanto,

não há uma instância “em si” na objetividade à qual eventualmente não tenhamos

acesso:

Deve parecer muito bizarro à consciência natural que as categorias tenham de ser consideradas somente como pertencendo a nós (como subjetivas). Sem dúvida há nisso algo distorcido. (...) Ora, ainda que as categorias (como por exemplo unidade, causa e efeito etc.) já pertençam ao pensar enquanto tal, contudo daí não se segue, de modo algum, que elas por isso sejam simplesmente algo nosso, e não também determinações do objeto mesmo (HEGEL, 2012, § 42, p. 113).

Em consequência, estabelecendo a diferença entre entendimento e razão e,

consequentemente, a diferença entre fenômeno e coisas-em-si, Kant conclui que toda

tentativa da razão de alcançar o conhecimento das coisa-em-si – ou seja,

necessariamente por meio da aplicação de categorias –, recai em contradições. São

as célebres antinomias kantianas. Hegel vai mostrar, contudo, que o aspecto

contraditório oriundo da aplicação das categorias advém não da tentativa da razão de

alcançar algo para além de suas possibilidades, conforme argumentara Kant, mas sim

do caráter necessariamente contraditório da realidade mesma. Assim, o conhecimento

objetivamente válido só pode ser alcançado através de uma razão não dualista, ou,

como Hegel define, dialética. Curiosamente, a necessidade da dialética foi provada

primeiramente por Kant, que não a defendeu apenas por ter preferido se manter na

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esfera do pensamento subjetivista da tradicional metafísica. A Ciência da Lógica

hegeliana demonstrará o percurso de desenvolvimento da experiência dialética em

paralelo constante com uma crítica à epistemologia kantiana.

É possível afirmar, portanto, que está em jogo na analítica transcendental

kantiana um fator que Kant só reconhece na dialética transcendental, qual seja, a

estrutura dialética do conceito. Kant admite que a razão é naturalmente dialética e,

para Hegel, essa é a verdadeira condição de possibilidade da experiência. Já está

anunciado na analítica, na Dedução Transcendental das Categorias, que a

consciência opera sínteses tão somente porque é capaz de reconhecer, na diferença,

a identidade. Essa diferença se encontra entre a consciência de si e a representação.

Hegel radicaliza o projeto kantiano, contestando a dedução transcendental das

categorias proposta por Kant e afirmando que esse movimento é um processo

dialético.

No §31 dos Princípios da Filosofia do Direito Hegel desenvolve de maneira

mais direta sua tese de que o conhecimento não ocorre mediante a aplicação

extrínseca de categorias. O conhecimento ocorre mediante o desdobramento próprio

de suas determinações; a dialética é “a alma própria de um conteúdo de pensamento

de onde crescem organicamente seus ramos e frutos” (HEGEL, 2009, §31 p. 33). Para

Hegel, a razão não pode acrescentar complementos ao conteúdo do pensamento,

porque “considerar algo racionalmente não é vir trazer ao objeto uma razão e com

isso transformá-lo, mas sim considerar que o objeto é para si mesmo racional”

(HEGEL, 2009, p. 33). Hegel resume sua proposta de uma razão dialética neste

trecho:

O princípio motor do conceito – enquanto não é simplesmente análise, mas também produção das particularidades do universal – é o que eu chamo dialética. (...) A dialética superior do conceito consiste em produzir a determinação, não como um puro limite e um contrário, mas tirando dela, e concebendo-o o conteúdo positivo e o resultado; só assim a dialética é desenvolvimento e progresso imanente. Tal dialética não é, portanto, a ação extrínseca de um intelecto subjetivo, mas sim a alma própria de um conteúdo de pensamento de onde organicamente crescem os ramos e os frutos. Enquanto objetivo, o pensamento apenas assiste ao desenvolvimento da ideia como atividade própria da sua razão e nenhum complemento lhe acrescenta de sua parte. Considerar algo racionalmente não é vir trazer ao objeto a razão e com isso transformá-lo, mas sim considerar que o objeto é para si mesmo racional. Assim é o espírito em sua liberdade, a mais alta afirmação da razão consciente de si, que a si mesma se dá a realidade e se produz como mundo existente. A ciência apenas se limita a trazer à

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consciência este trabalho que é próprio da razão da coisa (HEGEL, 2009, §31, p. 33).

Hegel recusa a estrutura categorial da consciência presente no idealismo

subjetivo e propõe um “idealismo absoluto” a partir da sua proposição de que as

determinações da consciência por meio do entendimento sejam na verdade

determinações da coisa mesma. Isso deriva da sua ideia de que as antinomias

elencadas por Kant – isto é, as contradições decorrentes de toda tentativa da razão

de conhecer o infinito – não resultam de uma falha na aplicação das categorias, mas

sim de que a realidade objetiva é em si e necessariamente contraditória, o que exige

que a razão não proceda de forma extrínseca ao real, mas de maneira dialética.

O ponto principal a se destacar é que não é só nos quatro objetos particulares tomados da Cosmologia que a antinomia se encontra; mas antes em todos os objetos de todos os gêneros, em todas as representações, conceitos e ideias. Saber disso, e conhecer os objetos segundo essa propriedade, faz parte do essencial da consideração filosófica. Essa propriedade constitui o que se determina mais adiante como o momento dialético do lógico. (...) A significação positiva e verdadeira das antinomias consiste, em geral, que todo efeito contém em si determinações opostas, e por isso o conhecer ou, mais precisamente, o conceituar de um objeto só significam justamente o mesmo que tornar-se consciente dele como que de uma unidade concreta de determinações opostas. (HEGEL, 2012, §48, p. 121).

Qualquer operação dedutiva de forjamento de categorias só é possível

porque a razão opera dialeticamente, unificando a multiplicidade captada no real em

conceitos cuja validade objetiva se dá apenas por meio do seu uso compartilhado –

ou seja, intersubjetivamente. Seguindo esse raciocínio, Hegel aponta que a dedução

transcendental das categorias não é demonstrada em seu desenvolvimento por

Kant49, mas, caso este tivesse arriscado demonstrar, teria percebido que o sujeito de

fato elabora as categorias a partir da forma lógica que estabelece modos específicos

de julgar, mas que estes são determinados, contudo, por seus conteúdos, que advém

de seu contato com os objetos e com o mundo50. É válido lembrar que Kant insiste em

se referir às categorias como modos de julgar, como formas do juízo. Bastava, para

Hegel, a compreensão de que a dedução das categorias não ocorre por meio de uma

estruturação eterna, a priori e idêntica a toda consciência, como Kant defende, mas

por meio de um processo de aprendizado e uso, no constante atrito de diferentes

49 Kant demonstra a dedução das categorias a partir da necessidade de unificação a priori do múltiplo da sensibilidade. Cf. Prolegômenos a toda metafísica futura, §35: Do Sistema das Categorias. 50 Cf. HEGEL, 2012, § 43, p. 114.

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sujeitos com o mundo, na medida em que consciências se tornam paulatinamente

capazes de instituir formas lógicas com as quais organizam conceitualmente suas

práticas e compartilham experiências. A não compreensão da racionalidade como

estruturada através e a partir do contato da consciência com o real, e não à margem

deste, é uma abstração que, para Hegel, comprometerá toda a filosofia posterior à

Kant. Adorno é partidário da crítica hegeliana tanto do aspecto puramente formal e a

priori das categorias kantianas quanto da separação, promovida por Kant, entre

sensibilidade e entendimento. Acerca desse ponto, há uma longa passagem escrita

por Adorno em sua obra Para a Metacrítica da Teoria do Conhecimento51, na qual

Adorno defende que Kant não deveria ter contestado o caráter conceitual do espaço

e do tempo, da mesma maneira que não reconheceu que a “intuição sensível” também

resulta de um processo de mediação:

No centro da tentativa kantiana de reconciliação, porém, reside um paradoxo, no qual se consolidou uma contradição indissolúvel. Essa contradição é indicada linguisticamente pela nomenclatura “intuição pura”, que designa espaço e tempo. Intuição, como certeza sensível imediata, como a doação sob o aspecto do sujeito, denomina um tipo de experiência que, justamente enquanto tal, nunca pode ser ‘pura’, não pode ser independente da experiência; uma intuição pura seria um oximoro, um círculo quadrado (hölzernes Eisen), experiência sem experiência. Ajudaria pouco, se se interpretasse a intuição pura como um modo genérico de falar de formas da intuição purificadas de todo conteúdo particular. O fato de, na Estética Transcendental, Kant oscilar entre as expressões ‘forma da intuição’ e ‘intuição pura’ atesta a inconsistência da coisa. Ele quer desesperadamente reduzir a um denominador comum, como que de uma vez só, a imediatidade e o caráter a priori. No entanto, o próprio conceito de forma, como referência a um conteúdo, já se apresenta como mediação, como algo categorial, por assim dizer. A intuição pura, como imediata e não conceitual, ela mesma sensível, seria ‘experiência’; a sensibilidade pura, destacada da referência a qualquer conteúdo, já não seria intuição, mas unicamente ‘pensamento’. Uma forma da sensibilidade, que recebesse o predicado da imediatidade, sem ser ela mesma uma doação, seria absurda. As formas da sensibilidade só foram contrapostas de maneira tão enfática por Kant às categorias – e Kant critica Aristóteles, por ter incluído as formas indiscriminadamente entre as categorias – porque senão o dado imediato supostamente presente nessas formas corria perigo: Kant precisaria admitir que o ‘material’, no qual o trabalho categorial deve se colocar em ação, seria ele mesmo pré-formado. Espaço e tempo, tal como a Estética Transcendental os prepara e os apresenta, são, apesar de todos os asseguramento contrários, conceitos, representações de uma representação, segundo a terminologia kantiana. Não são intuitivos. (...) A doutrina do esquematismo revoga tacitamente a estética transcendental. Se a Estética transcendental de fato valesse do modo como a arquitetônica o prescreve, então a transição para a Lógica Transcendental seria um milagre. No entanto, se a sensibilidade pura permanecesse coerente com o programa da Estética transcendental e fosse despojada de sua matéria, então ela se reduziria a algo meramente pensado, seria já uma parte da Lógica transcendental. Não se teria como compreender

51 Zur Metakritik der Erkenntnistheorie (1935)

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de que modo o pensamento chegaria a se articular com ela. Kant mesmo, que contesta o caráter conceitual do espaço e do tempo, não consegue desviar do fato de que espaço e tempo não podem ser representados sem algo espacial ou temporal. Nessa medida, eles mesmos não são intuitivos, não são ‘sensíveis’. Essa aporia induz a enunciados contraditórios, segundo os quais o espaço e o tempo seriam, por um lado, ‘intuições’ e, por outro, formas” (ADORNO, 2015, pp. 242-245, grifo nosso).

Essa crítica à pretensão kantiana de elaborar as condições de possibilidade

da experiência ao desvendar a natureza formal a priori da consciência é também

mencionada indiretamente por Hegel em uma passagem muito citada da sua

Enciclopédia das Ciências Filosóficas52 – mais especificamente na Ciência da Lógica:

Um ponto de vista principal da filosofia crítica é que, antes de se proceder a conhecer Deus, a essência das coisas, etc., é mister investigar primeiro a faculdade do conhecimento, a ver se é capaz de dar conta do empreendimento. Seria preciso primeiro aprender a conhecer o instrumento, antes de empreender o trabalho que será executado por meio dele; e se o instrumento for insuficiente, toda a fadiga será, aliás, inútil. (...) Ora, querer conhecer antes que se conheça é tão absurdo quanto o sábio projeto daquele escolástico, de aprender a nadar antes de arriscar-se na água (HEGEL, 2012, §10, p. 50).

Esse é, portanto, o ponto de mais radical discordância que Hegel estabelece

com Kant. A pretensão de investigar abstratamente o alcance da razão, para além do

conhecimento que esta opera, previamente e independentemente do conhecimento

efetivo, não é apenas ingênua, mas resulta de uma pressuposição grave, uma vez

que impõe limites à razão. Da separação entre sujeito e objeto, entre razão e mundo,

decorrem a separação entre norma e valor, facticidade e validade, justificação e

prática, universal e particular que caracterizam toda a filosofia produzida na

modernidade, gerando um tipo específico de racionalidade ao qual Hegel frontalmente

se opõe. Para tanto, Hegel aponta para uma concepção de razão transformada e não

limitadora, que reconheça a não separação entre esses âmbitos, dado que a cisão

consolidada e originária é injustificada e traz consequências muito pouco desejáveis

do ponto de vista da adequada compreensão da práxis.

Considerando a recusa hegeliana da imediatidade e do subjetivismo, o

resgate da racionalidade exige que explicitemos o conceito hegeliano de mediação. A

tarefa de Hegel mencionada anteriormente, de introduzir “desconfiança na

desconfiança”, amplia o alcance da razão, diferenciando-a da razão moderna que,

52 Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften (1817).

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apesar de desenvolver os mais diversificados métodos, ainda assim, não alcança o

conhecimento das coisas mesmas, mas as atinge apenas de fora. Uma vez que a

externalidade entre sujeito e objeto, que toma o saber por instrumento, conduz a

filosofia ao ceticismo, uma “dúvida radical”, contrapartida hegeliana à moderna dúvida

metodológica, é sua proposta para a investigação do percurso ou, como Hegel

denomina, da série de formas que a consciência obrigatoriamente percorre e supera

para atingir o verdadeiro conhecimento. Como seu autor afirma,

A série de figuras que a consciência percorre nesse caminho é, a bem dizer, a história detalhada da formação para a ciência da própria consciência. (...) A série completa das formas da consciência não real resultará mediante a necessidade do processo e de sua concatenação mesma. (...) A consciência natural tem geralmente uma visão unilateral sobre este movimento. Um saber, que faz dessa unilateralidade a sua essência, é uma das figuras da consciência imperfeita, que ocorre no curso do itinerário que aqui se apresentará. (...) Entretanto, o saber tem sua meta fixada tão necessariamente quanto a série do processo. A meta está ali onde o saber não necessita ir além de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde ao objeto e o objeto ao conceito (HEGEL, 2008, p. 75-80, §§79-80).

Nessa seleção de pequenas passagens fica enunciado o propósito hegeliano.

A investigação da série de figuras percorrida pela consciência no caminho que conduz

ao saber efetivo permitirá o abandono da “consciência natural”, ou seja, de um modo

de consciência partidário da unilateralidade e que, por esse motivo, ainda não é o

verdadeiro saber. Para Hegel, se o conhecimento se realiza na medida em que se

torna evidente a unidade efetiva entre real e conceitual, inversamente, a busca da

unidade abstrata é o erro da intuição intelectual. Por isso, Hegel se refere à

consciência partidária da unilateralidade subjetivista como “consciência natural”: é

uma consciência que ainda não reconheceu seu vínculo com o real.

O percurso que irá evidenciar a unidade efetiva acima mencionada é

apresentado em detalhe por Hegel, em paralelo à apresentação de sua contraposição

à epistemologia kantiana, ao longo da Parte I da Enciclopédia das Ciências Filosóficas

de Hegel, intitulada Ciência da Lógica. No §37 da sua Fenomenologia do Espírito,

contudo, Hegel trata mais resumidamente desse tema ao mencionar dois dos

“momentos” da consciência e, mais brevemente, do percurso de desenvolvimento do

espírito.

O ser-aí imediato do espírito – a consciência – tem dois momentos: o do saber e o da objetividade, negativo em relação ao saber. Quando nesse elemento

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o espírito se desenvolve e expõe seus momentos, essa oposição recai neles, e então surgem todos como figuras da consciência. A ciência desse itinerário é a ciência da experiência que faz a consciência; a substância é tratada tal como ela e seu movimento são objetos da consciência. A consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experiência, pois o que está na experiência é só a substância espiritual, e em verdade, como objeto de seu próprio Si. O espírito, porém, se torna objeto, pois é esse movimento de tornar-se um Outro – isto é, objeto de seu Si – e de suprassumir esse ser-outro. Experiência é justamente o nome desse movimento em que o imediato, o não-experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso – como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua efetividade e verdade (HEGEL, 2008, §36, p. 46).

É preciso notar, portanto, que Hegel não rompe com as instâncias subjetiva e

objetiva do conhecimento, por meio de uma superação abstrata da diferença, como

pretende a intuição intelectual. Ao contrário, Hegel as mantém, porém consciente de

que, primeiramente, a separação rígida, tal como aquela erguida por Kant53 é uma

abstração posta pela própria consciência e, em segundo lugar, essa separação é

somente um dos momentos da dialética. A própria dialética é, para Hegel, a

demonstração imanente da limitação das determinações de pensamento, entre as

quais se inclui a separação moderna entre forma e conteúdo:

A dialética é habitualmente considerada como uma arte exterior, que por capricho suscita confusão nos conceitos determinados, e uma simples aparência de contradições entre eles; de modo que não seriam uma nulidade essas determinações e sim essa aparência; e ao contrário seria verdadeiro o que pertence ao entendimento. (...) Em sua determinidade peculiar, a dialética é antes a natureza própria e verdadeira das determinações-do-

53 Não é exagerado afirmar que a conceitualidade proposta por Hegel se difere da kantiana devido ao conceito hegeliano de mediação. Adorno e Horkheimer insistem nessa diferenciação, em uma longa passagem da Dialética do Esclarecimento, no capítulo intitulado Elementos do Antissemitismo: “Entre o verdadeiro objeto e o dado indubitável dos sentidos, entre o interior e o exterior, abre-se um abismo que o sujeito tem que vencer por sua própria conta e risco. Para refletir a coisa tal como ela é, o sujeito deve devolver-lhe mais do que dela recebe. O sujeito recria o mundo fora dele a partir dos vestígios que o mundo deixa em seus sentidos: a unidade da coisa em suas múltiplas propriedades e estados; e constitui desse modo retroativamente o ego, aprendendo a conferir uma unidade sintética, não apenas às impressões externas, mas também às impressões internas que se separam pouco a pouco daquelas. O ego idêntico é o produto mais tardio daquela projeção. (...) A profundidade interna do sujeito não consiste em nada mais senão a delicadeza e a riqueza do mundo da percepção externa. Quando o entrelaçamento é rompido, o ego se petrifica. Quando ele se esgota, no registro positivista de dados, sem nada dar ele próprio, se reduz a um simples ponto; e se ele, idealisticamente, projeta o mundo a partir da origem insondável de si mesmo, se esgota numa obstinada repetição. Só a mediação, pela qual o dado sensorial vazio leva o pensamento a toda a produtividade de que é capaz e pela qual, por outro lado, o pensamento se abandona sem reservas à impressão que o sobrepuja, supera a mórbida solidão em que está presa a natureza inteira. Não é na certeza não afetada pelo pensamento, nem na unidade pré-conceitual da percepção e do objeto, mas em sua oposição refletida, que se mostra possibilidade da reconciliação. A distinção ocorre no sujeito que tem o mundo exterior na própria consciência e, no entanto, o conhece como outro. É por isso que esse refletir, que é a vida da razão, se efetua como projeção consciente” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 176, grifo nosso).

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entendimento – das coisas e do finito em geral. A reflexão é, antes de tudo, o ultrapassar sobre a determinidade isolada, e um relacionar dessa última pelo qual ela é posta em relação – embora sendo mantida em seu valor isolado. A dialética, ao contrário, é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitação das determinações do entendimento é exposta como ela é, isto é, como sua negação. Todo finito é isto; suprassumir-se a si mesmo. O dialético constitui pois a alma motriz do progredir científico; e é o único princípio pelo qual entram no conteúdo da ciência a conexão e a necessidade imanentes, assim como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação – não exterior – sobre o finito” (HEGEL, 2012, §81, p. 163)

A consciência só forja algo como idêntico porque já há uma identidade prévia

à representação; esse algo é cindido pela consciência na representação para, em

seguida, reconhecer a cisão como imposição própria do ato reflexivo. A racionalidade

que permitirá à consciência a relativização de sua separação frente ao outro e o

reconhecimento de sua gênese comum opera dialeticamente. A dialética é, portanto,

a razão que opera a reconstrução do processo de formação dos conceitos e,

finalmente, reconhece a si mesma como parte necessária desse processo e sua

imanência. Hegel atinge, com isso, o ponto chave da sua crítica, tratando da questão

da necessidade moderna de fundamentação do conhecimento, e sua filosofia

demonstrará que a exigência desse fundamento exterior tanto ao objeto que se

pretende conhecer quanto à própria consciência que conhece é enganosa.

É semelhante ao que sucede na demonstração ordinária: os fundamentos que utilizam precisam por sua vez de uma fundamentação, e assim por diante, até o infinito. Mas essa forma de fundar e condicionar pertence àquele demonstrar que é diferente do movimento dialético; portanto, pertence ao conhecer exterior. No que toca o movimento dialético, seu elemento é o conceito puro e por isso tem um conteúdo que é absolutamente sujeito. Assim, nenhum conteúdo ocorre que se comporte ao modo de um sujeito posto como fundamento e ao qual advenha sua significação como predicado: a proposição, imediatamente, é só uma forma vazia. (...) A apresentação, fiel à visão da natureza do especulativo, deve manter a forma dialética e nada incluir a não ser na medida em que é concebido e que é o conceito. (HEGEL, 2005, §66, p. 66).

Uma racionalidade meramente instrumental e, portanto, exterior ao absoluto,

não capta sua modificação. Por esse motivo, a modernidade se tornou

progressivamente incapaz de perceber o absoluto como sujeito a modificações e

constantemente mutável, dinâmico. A instrumentalização do conhecimento,

argumenta Hegel, só é possível por meio da essencialização do real: uma vez tomado

como uma natureza rígida e imutável, o objeto será algo que o conhecimento deverá

ser capaz de captar em sua essência. A dialética, ao contrário, concede ao

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pensamento a superação do caráter extrínseco entre sujeito e predicado ao evidenciar

sua identidade real, seu vínculo efetivo e constitutivo das diferenças, ao mesmo tempo

em que torna visível o processo pelo qual, a partir da multiplicidade e diferenciação,

surge a unidade conceitual.

A Fenomenologia é, segundo seu autor, a demonstração desse processo de

construção – que parte da consciência natural e se desenvolve de forma imanente,

por sua força e exigência interna, atingindo, em sua culminância, o saber absoluto –

e perfaz uma filosofia que não se permite prender a fundamentos, uma vez que o

desenvolvimento imanente do saber é dinâmico e demonstra, necessariamente, os

equívocos do pensamento fundacionista. Assim, a filosofia hegeliana permite a

verdadeira crítica do conhecimento, precisamente porque sua concepção de

experiência propõe maior adequação à compreensão do real em sua mutabilidade, ao

tomar o conhecimento como processo, como um constante amálgama de

determinações contrárias.

2.1.2 Liberdade e Historicidade: decorrências do pensamento de Hegel

para uma filosofia comprometida com a práxis

Uma racionalidade para a qual a experiência se desenvolve dialeticamente

tem, portanto, mais condições de realizar o propósito da análise e crítica da sociedade

e suas instituições. Esse aspecto torna o pensamento dialético o único capaz de

realizar as pretensões de emancipação do pensamento esclarecido. Para Hegel, o

ideal moderno de liberdade e emancipação não pode jamais ser alcançado por meio

de uma razão que, contraditoriamente, abole seus vínculos com o real na pretensão

de conhecê-lo. Essa é a tese central que Hegel desenvolve em seus Princípios da

Filosofia do Direito. Acerca disso, Charles Taylor afirma que

O fato de que a racionalidade é algo que o homem conquista, em vez de algo com que já começa desde o ponto de partida, significa que o homem possui uma história. Para chegar à clareza, o homem tem de abrir caminho, com empenho e esforço, por entre os diversos estágios de consciência, inferiores e mais distorcidos. Ele começa como um ser primitivo e tem que adquirir cultura e entendimento lenta e dolorosamente. Isso não é um infortúnio acidental, pois o pensamento e a razão só podem existir num ser vivo, como vimos, mas processos da vida em si são inconscientes e dominados por impulso irreflexivo. A realização do potencial de vida consciente, portanto,

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requer esforço, divisão interna e transformação ao longo do tempo, e podemos ver que essa transformação ao longo do tempo envolve mais que a ascensão numa hierarquia de modos de consciência – requer também que o homem lute com seus impulsos e conforme sua vida, de modo a modelar o impulso numa cultura capaz de expressar as exigências da racionalidade e da liberdade. A história humana é, portanto, também a ascensão numa escala de formas culturais (TAYLOR, 2005, p. 34).

Dado que as formas humanas de compreensão da sua realidade surgem em

meio a essa realidade mesma, há, necessariamente, um nexo entre a racionalidade

humana e as formas privilegiadas de vida, os arranjos históricos que essa

racionalidade cria e pelos quais se reafirma e atualiza no transcorrer do tempo. Taylor

evidencia a defesa hegeliana de que a racionalidade conquistada pelo homem possui

caráter institucional: seu componente corpóreo, mundano e histórico a permite ser

sensível aos problemas gerados pela razão abstrata. A razão não é apenas uma

capacidade subjetiva, mas, sobretudo, a instância através da qual diferentes formas

de articulação das tensões sociais se incorporam na realidade. É um erro, portanto,

negar a constituição mútua entre razão e mundo, uma vez que apenas por seu

reconhecimento que os indivíduos realizam suas mais altas ambições. Essa

possibilidade de realização está fechada para a filosofia formalizante, que toma a

liberdade como arbítrio. No §29 da mesma obra, Hegel aponta que

A definição kantiana (...) e, também, a mais geralmente aceita, cujo momento principal é “a restrição da minha liberdade ou arbítrio, assim que ele possa coexistir com o arbítrio de cada um, segundo uma lei universal”, por um lado contém somente uma determinação negativa, a da restrição, [ao passo que] por outro, o positivo, a lei universal ou a assim chamada lei da razão, a concordância do arbítrio de cada um com o arbítrio do outro, redunda na conhecida identidade formal e no princípio de contradição. A mencionada definição (...) segundo a qual o que deve ser a base substancial e o primeiro não é a vontade enquanto sendo em si e para si, enquanto vontade racional, não é o espírito enquanto espírito verdadeiro, mas sim enquanto indivíduo particular, enquanto vontade do singular em seu arbítrio próprio. Segundo esse princípio uma vez aceito, o racional só pode vir à luz enquanto restringindo essa liberdade, assim como, também, não enquanto algo imanentemente racional, mas sim enquanto um universal externo, formal. Esse ponto de vista está desprovido de todo pensamento especulativo, e é rejeitado pelo conceito filosófico, porquanto ele produziu, nas cabeças e na efetividade, fenômenos cujo horror só tem paralelo na trivialidade dos pensamentos nos quais se fundavam (HEGEL, 2005, §29, p. 38).

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A modernidade elabora uma noção individualista, particularizada e subjetiva

de liberdade, cujo fundamento último é o arbítrio54. A razão binária e excludente

trabalha com uma ideia de liberdade como realização pessoal da vontade e toma a

vontade do outro como oposta à sua, o que redunda na anulação de uma das

vontades, quando alguma outra se lhe opõe. A dialética se faz necessária para pensar

um conceito de liberdade no qual os interesses de um ser-aí livre não colapsem nos

interesses de outro ser-aí igualmente livre. A liberdade não deve ser compreendida,

portanto, como um dado anterior às relações humanas, inato, extrínseco aos sujeitos,

que as instituições devem defender, mas como um elemento da vida social que a

instituições devem construir e preservar.

O resultado de uma afirmação da liberdade efetiva, que só ocorre por meio de

uma racionalidade que superou o binarismo de suas determinações, se realiza na

concepção hegeliana de substância ética. Taylor discorre sobre esse tema, ao apontar

que, segundo Hegel

Nós só somos o que somos como seres humanos dentro de uma comunidade cultural. A noção que está por trás de “substância” e de “essência” é a de que os indivíduos são o que são somente pelo seu pertencimento a uma comunidade. (...) A vida mais feliz e não alienada para o homem, da qual desfrutaram os gregos, é aquela em que as normas e os fins expressos na vida pública de uma sociedade são os mais importantes, pelo qual seus membros definem sua identidade como seres humanos, pois então a matriz institucional na qual eles não podem deixar de viver não é sentida como estranha. Antes, é a “essência”, a “substância” do eu. (...) Viver num Estado desse tipo é ser livre. A oposição entre a necessidade social e a liberdade individual desaparece (TAYLOR, 2005, pp. 109-116).

Sobre a relação entre liberdade e historicidade e, ainda, acerca da

sensibilidade para elementos situacionais característica da racionalidade dialética,

Axel Honneth e Charles Taylor apresentam leituras semelhantes: o propósito de Hegel

é explicar o entrelaçamento entre racionalidade e realidade social. Hegel, para tanto,

alerta para relação ente eticidade e racionalidade normativa. Desse modo, temos

melhores condições de compreender que a Fenomenologia do Espírito tratará

precisamente de elaborar um sistema de pensamento que justifique essa relação.

54 De acordo com Hegel, “se, portanto, só há de interior ao livre-arbítrio o elemento formal da livre determinação e se o outro elemento é para ele um dado, pode bem ser dito que o livre-arbítrio, que pretende ser a liberdade, não passa de uma ilusão. Em toda filosofia da reflexão (desde Kant à de Fries, que é uma degradação daquela), a liberdade é essa atividade autônoma formal. (HEGEL, 2009, p. 23)

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Hegel revoga, colocando a dialética como única forma possível de compreensão do

real e sua fluidez, uma racionalidade que tenta forçar a essencialização de conteúdos

numa formalização inerte e invariavelmente se frustra nessa tentativa. A alternativa

será, portanto, a defesa de uma dimensão compartilhada da racionalidade, paralela à

recusa de uma noção de racionalidade que seja pura ou pré-institucional – da maneira

como pretende o pensamento moderno de Descartes a Kant55.

Axel Honneth aponta, neste feito, a aproximação entre Hegel e questões

contemporâneas da teoria da justiça. A dialética torna possível uma razão é mais

sensível à estrutura das instituições e às patologias da sociedade moderna56. A

modernidade pensa a liberdade como arbítrio na medida em que considera a

existência de uma hierarquia abstrata entre forma e conteúdo, priorizando a forma –

aspecto subjetivo – e rebaixando o conteúdo a uma espécie de segundo plano ao qual

a forma se aplica como princípio normativo. Como consequência, surge uma ética que

descarta a eticidade e concentra seus princípios sobre a ação individual reguladora.

Isso conduz o homem a uma vida sacrificial, que trata os impulsos como ações cegas

que demandam repressão:

Kant identifica a obrigação ética com a Moralität e não vai além disso, pois apresenta uma noção abstrata e formal da obrigação moral que se aplica ao homem como indivíduo e que, sendo definida em contraposição à natureza, está sempre em contraposição ao que é. Podemos ver como as críticas de Hegel à filosofia moral de Kant estão sistematicamente conectadas. Uma vez que esta filosofia adotava uma noção puramente formal da razão, não poderia oferecer um conteúdo à obrigação moral. Uma vez que não aceitava o único conteúdo válido, que provém de uma sociedade à qual pertencemos, permanecia como uma ética do indivíduo. Uma vez que se retraía diante da vida mais ampla da qual fazemos parte, via o moral como eternamente oposto

55 Agemir Bavaresco discorre acerca da conexão que Hegel apresenta entre a formação da consciência e seu impacto em formas de organização da vida social: “Na Fenomenologia do Espírito, a formulação mediante a qual, segundo Hegel, a consciência individual vai aceder à instância política (e histórica) começa no capítulo VI ou Seção (C) (BB), intitulada O Espírito, sucedendo às seções Consciência, Autoconsciência e Razão. Neste ponto da obra tem-se a dilatação do subjetivo e do objetivo da consciência, formando uma unidade no espírito. E até então é bem verdadeiro que o movimento da consciência permanecera abstrato. Entretanto com o Espírito se descortina o viés coletivo, político e concreto da consciência. Descreve-se agora a expansão da consciência e a assunção das formas sedimentadas em instituições como a família e o Estado, em que a consciência se posiciona, toma partido e aparece na história. Porém, para evidenciar-se a consciência precisa ter se tornado complexa, atravessando o percurso lento da história. É a consciência com o outro ou contra o outro, mas que não pode deixar de aparecer através da ação. O indivíduo é, aqui, o portador de uma consciência que parte da realidade social” (BAVARESCO, p. 235, 2014) 56 Em sua obra Sofrimento de Indeterminação (2007), Axel Honneth declara sua pretensão de “demonstrar a atualidade da filosofia do direito hegeliana, ao indicar que esta, como projeto de uma teoria normativa, tem de ser concebida em relação àquelas esferas de reconhecimento recíproco cuja manutenção é constitutiva para a identidade moral de sociedades modernas” (HONNETH, 2001, p. 57).

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ao real; a moralidade e a natureza estão sempre em desacordo (TAYLOR, 2005, p. 108).

Para Hegel, um sujeito puro não pode ser parâmetro para a moralidade.

Qualquer critério para a moralidade que pretenda validade objetiva deve atentar para

sua origem na práxis. A desconsideração do conteúdo da ação moral pela valorização

da pura forma – tendência seguida pela filosofia moral kantiana – cria um sujeito

separado de seu objeto e subjetiviza os critérios da moralidade. Disso surge uma ética

que, contraditoriamente, está apartada da vida ética. Para Hegel, ao contrário, “a

moralidade, subjetiva ou objetiva, o interesse do Estado constituem, cada um, um

direito particular, pois cada um deles é uma determinação e uma realização da

liberdade” (HEGEL, 2009, p.32).

De acordo com Hegel, a normatividade não é uma mera imposição individual

sobre o real, com potencial transformador, mas também é resultado das

determinações impostas sobre o indivíduo cujos valores se constituem em práticas

compartilhadas. Desse modo, a razão pura, aplicada à filosofia moral, se torna a pura

forma da lei, abstrata, desprovida de conteúdo e incapaz, portanto, de oferecer

soluções viáveis para as urgências impostas pela vida em comunidade. O outro lado

dessa moeda são as decorrências da afirmação subjetivizada da vontade, que

resultam na perda da possibilidade de qualquer realização social da liberdade e,

portanto, de qualquer possibilidade de emancipação. A filosofia de Hegel representa,

por conseguinte, um significativo alerta para a urgência do abandono de um

pensamento que afirma a superioridade da razão naquilo que ela possui de mais

primário: sua capacidade de se colocar abstratamente de fora do mundo. Para a

realização efetiva da liberdade será necessário, ao contrário, atentar para a

necessidade de uma filosofia que realize o caminho de volta e recoloque o sujeito

enquanto mutuamente determinante e determinado pela dinâmica da organização das

formas de vida social.

E é nesse ponto que o pensamento adorniano compõe uma profunda

contradição com a dialética de Hegel. Ao mesmo tempo em que Adorno toma a crítica

hegeliana ao sujeito transcendental de Kant como incontornável para uma filosofia à

qual se exige validade objetiva e estruturação conceitual de todos os campos do

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pensar racional, a superação hegeliana de uma epistemologia dualista – e o excessivo

idealismo que daí decorrente – será recusado por Adorno, que também observa na

dialética hegeliana o impulso de coação que o sujeito moderno promove sobre seus

objetos de pensamento, sejam eles a experiência científica ou a totalidade social. É

dessa contradição, de suas implicações e da solução proposta por Adorno que

trataremos no capítulo adiante.

3. COM OS CONCEITOS PARA ALÉM DOS CONCEITOS: SOBRE A

NEGATIVIDADE DA DIALÉTICA

3.1 INTRODUÇÃO

Encerramos o capítulo anterior tratando do potencial da dialética de Hegel para

uma filosofia transformadora da práxis, considerando sua crítica à filosofia

transcendental de Kant e seu decorrente subjetivismo. Conforme vimos, Hegel

acompanha Kant na contraposição que este ergue contra as pretensões imediatistas

do realismo ingênuo e na sua consideração acerca da incontornabilidade da

estruturação conceitual do conhecimento que pretenda alcançar validade objetiva.

Contudo, Hegel critica o excessivo formalismo das operações do entendimento e seu

arranjo categorial, bem como a decorrência, apresentada por Kant, da

incognoscibilidade da coisa-em-si. A partir disso, acompanhamos o percurso de Hegel

no argumento de que uma filosofia capaz de realizar a liberdade efetiva para os seres

humanos deve ser dialética. A partir de agora e partindo desse ponto, devemos nos

aprofundar mais na filosofia de Adorno, de modo a desvendar aspectos cruciais da

apropriação crítica que este promoverá tanto do idealismo transcendental kantiano

quanto da dialética desenvolvida na proposta hegeliana de um idealismo absoluto.

Este capítulo estará reservado, portanto, à investigação do teor mais

propositivo do pensamento de Adorno. Trataremos, prioritariamente, de duas obras

centrais para a produção filosófica adorniana, o conjunto de preleções de sua autoria

publicado como Três Estudos Sobre Hegel e aquela que é por muitos considerada

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sua obra-prima, a Dialética Negativa. Ao final, trataremos brevemente da maneira

como as reflexões elaboradas por Adorno nessas obras acabam por lançar luz a seu

projeto de promover uma aproximação entre a filosofia e a arte. Para tanto,

concentraremos os esforços na leitura de um célebre ensaio adorniano que orbita por

essa temática, o Ensaio como Forma.

Com a intenção de solucionar a aparente aporia57 deixada pela Dialética do

Esclarecimento e retomar o principal tema com o qual se confronta toda sua produção

filosófica, qual seja, as possibilidades contemporâneas para a emancipação dos

indivíduos sujeitos às sempre renovadas formas de alienação e ideologia

características do capitalismo tardio, Adorno promove uma releitura da dialética

hegeliana. De modo geral, é possível afirmar que ao mesmo tempo em que Adorno

reconhece a incontornabilidade da dialética enquanto procedimento para uma razão

que pretenda compreender as contradições inerentes à sociedade moderna e suas

disseminadas formas de vida, o filósofo também recusa o princípio da identidade que

permite a Hegel a sistematização da sua filosofia. Ao se contrapor à concepção

hegeliana que estabelece a existência de uma identidade entre consciência e mundo,

Adorno propõe uma dialética negativa, cujo objetivo maior será revelar a absoluta

impossibilidade de abarcar o todo por meio de categorias ou esquemas de

pensamento. Em outras palavras, a filosofia de Adorno revelará o mais agudo

reconhecimento da não-identidade entre sujeito e objeto para, a partir disso,

demonstrar que os processos de reificação aos quais estamos sujeitos na

contemporaneidade só poderão ser superados quando superarmos o impulso de

dominação e controle da natureza por meio de rígidos sistemas de pensamento e

esquemas conceituais.

Theodor Adorno, conforme vimos anteriormente, é herdeiro de uma tradição de

pensamento que enuncia o malogro das propostas de emancipação e liberdade do

esclarecimento filosófico. Com propósito semelhante, o Instituto de Pesquisas Sociais

de Frankfurt, do qual Adorno se tornaria diretor após o cargo ser deixado por Max

Horkheimer, origina-se de um esforço coletivo de intelectuais de diversas áreas

57 Relembrando, a aporia em questão se resume ao fato de que os autores da obra, ao mesmo tempo em que alertam para a absoluta impossibilidade de crítica social decorrente da aliança entre dominação material e alienação do pensamento, compõem uma obra que, em toda sua extensão, estabelece essa crítica social apontada como impossível.

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dispostos a pesquisar e compreender os fenômenos que caracterizam as sociedades

ocidentais contemporâneas sob o capitalismo tardio. Por isso, não é exagero afirmar

que o pensamento adorniano possui, antes de qualquer outro aspecto, a marca do

seu momento histórico. Adorno é um intelectual alemão, judeu, cuja produção

filosófica se desenrola em paralelo a um dos mais conturbados períodos da história

recente. É importante ressaltar que parte significativa de sua produção intelectual se

realiza durante anos em que viveu nos Estados Unidos, refugiado do holocausto

nazista, e continua após seu retorno à Alemanha, onde vivenciou as tensões do pós-

guerra.

Há quem sustente que o pensamento adorniano é um tanto quanto pessimista,

tanto por seus diagnósticos quanto pelos prognósticos que sua filosofia ergue para a

contemporaneidade. Certamente, o quadro apresentado por Adorno é, em geral,

sombrio. A Dialética Negativa, considerada sua obra mais importante, se inicia com

uma passagem já bastante conhecida, na qual Adorno reflete sobre o fracasso da

filosofia em realizar no século XX as promessas que começaram a ser erguidas já sob

o clima de otimismo e de esperança nos avanços das ciências, que caracteriza o

século XVII. Sua produção intelectual denuncia o vínculo entre o malogro das

promessas modernas de emancipação e liberdade anunciadas pelo esclarecimento e

os equívocos no qual a filosofia se enredou ao erguer suas possibilidades de

realização. Adorno não hesita ao defender que a barbárie na qual a humanidade se

encontra mergulhada é o mais aterrorizante reflexo do colapso de uma filosofia que

ergueu elevadas pretensões sobre pressupostos ingênuos. De acordo com Adorno, o

modelo de racionalidade adotado em vista do progresso científico e do

desenvolvimento social, tendo a emancipação humana como meta,

contraditoriamente conduziu à sujeição do homem e a um estado de violência e terror

orquestrado, de forma muito pouco refletida, pelo próprio homem.

A Dialética do Esclarecimento, considerada por diversos autores um texto

aporético, demonstra que o impulso humano pela autoconservação, priorizado pelo

pensamento desde antes do surgimento da filosofia, encontra-se radicalizado na

modernidade, por meio da universalização do pensamento identitário enquanto

modelo de racionalidade e operacionalização da vida.

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Nesse sentido, a Dialética do Esclarecimento revela a gênese do pensamento

esclarecido que se converte em dominação, bem como seu aprofundamento pela

epistemologia moderna. Embora esta origem remonte à Antiguidade, a modernidade

filosófica é um momento de radicalização das estruturas de controle instituídas pelo

pensamento esclarecido. É também, e não coincidentemente, o momento histórico de

consolidação do capitalismo como sistema de produção e troca de mercadorias e da

consequente organização de todos os níveis de efetivação das relações sociais com

base nesse sistema e o reproduzindo-o.

No entanto, apesar de suas duras críticas ao pensamento moderno, não é

equivocado declarar que a filosofia de Adorno é, curiosamente, uma tentativa de

realização do esclarecimento. Ocorre que Adorno jamais descarta as promessas de

emancipação e liberdade58 para todos, princípio do pensamento esclarecido. É preciso

observar, sobretudo a partir desse fato, que Adorno não é, ao contrário do que

popularmente se afirma, um pensador pessimista. Seguindo o percurso traçado em

seus escritos, Adorno também acredita que a razão humana é capaz, dentro de suas

limitações, de engendrar melhores condições de vida para todos, sobretudo a partir

de formas de organização social fragmentadas e complexas. A questão que a filosofia

de Adorno se coloca não é, precisamente, o que deve ser feito para alcançar esse

estado de coisas, mas sobretudo apontar em que condições devemos nos manter,

caso queiramos ter alguma chance de fazê-lo. Adorno apresenta um arranjo de

diferentes propostas de enfrentamento do desafio de buscar condições de

emancipação de indivíduos, a partir do mundo administrado, e se dedica à proposição

de formas alternativas de compreensão e enfrentamento da atual realidade histórico-

social.

Neste contexto, Adorno constata que o desafio inicial imposto à filosofia é de

ordem metafísica. Faz-se preciso, conforme vimos, repensar nossos paradigmas de

conhecimento, de interpretação da realidade social e de suas contradições inerentes,

em vista do alcance de soluções viáveis. Para tanto, Adorno se debruça sobre a

58 Liberdade é precisamente o tema investigado por Kant em sua terceira antinomia, descrita na Crítica da Razão Pura. Kant, neste estudo, reflete sobre as condições de pensar a liberdade sob um ponto de vista não contraditório, mesmo admitindo-se a existência de causalidade na natureza – consideração essa fundamental na contraposição kantiana ao relativismo empirista de Hume. A razão que pensa a liberdade é, para Kant, de ordem diversa frente àquela que reflete acerca das relações de causa-efeito observáveis pelo homem na natureza.

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tradição filosófica e busca, partindo da apropriação crítica do arcabouço teórico de

dois dos mais importantes pensadores da modernidade filosófica – Kant e Hegel –

desvendar e combater os verdadeiros inimigos da emancipação humana. Sob este

propósito, Adorno denunciará que o excesso de subjetivismo, herdado da

epistemologia moderna e inerente a uma racionalidade técnica profunda e

intencionalmente limitada, é o principal fator do impulso totalitário e esgotador da

intelectualidade tipicamente moderna.

Passaremos, mais à frente, portanto, por temas como a específica e particular

relação entre sujeito e objeto apresentada na Dialética Negativa, a prioridade do

objeto como procedimento dialético, a contraposição à filosofia da identidade e os

desafios para a elaboração de um paradigma de racionalidade não subjetivista. Ao

final, trataremos brevemente da abordagem de Adorno acerca da arte e seu potencial

emancipatório, em vista da proposta adorniana de uma dialética não sistematizada e

de que a filosofia deve adotar formas ensaísticas de escrita

3.2 A NECESSIDADE DA DIALÉTICA

Neste momento, trataremos de alguns dos elementos que perfazem a

apropriação adorniana da dialética de Hegel. Estudaremos trechos selecionados das

obras em que Adorno mais se aprofunda na tematização e análise do pensamento

hegeliano: os Três Estudos Sobre Hegel e a Dialética Negativa, nesta última mais

especificamente o capítulo Conceito e Categorias. O objetivo aqui será delinear os

aspectos da filosofia de Hegel que são mais caros ao propósito adorniano de se

contrapor à metafísica tradicional.

Não raro, a crítica adorniana a ratio moderna parte do diálogo com Descartes,

tratando dos mecanismos de gênese e afirmação do sujeito enquanto eu penso e da

fundamentação do conhecimento claro e distinto. De acordo com Adorno, a metafísica

cartesiana, seu subjetivismo e sua exigência por clareza e distinção “possuem por

modelo uma consciência reificada das coisas, (...) que deixa os objetos se

solidificarem em um em-si para serem disponíveis à ciência e à práxis como se fossem

algo para outro” (ADORNO, 2013, p. 188). A razão moderna é um pensamento que

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celebra e prioriza a identidade. Os sujeitos satisfazem seu ímpeto de domínio e

controle da natureza através da identificação da realidade à sua compreensão da

mesma, tomando o conceito pela verdade, através da norma tradicional da adaequatio

(ADORNO, 2009, p.12). Mas há aqui, Adorno defende, apenas uma aparência, uma

ilusão de identidade, que a razão toma como verdade acerca do real59. A racionalidade

moderna, por conseguinte, acabou por se transformar em um mero mecanismo de

sistematização e quantificação do real, incapacitada de engendrar, por sua própria

força, qualquer possibilidade crítica. É a partir desse estado de coisas que Adorno

insiste que a verdadeira transformação da filosofia ocorrerá quando o caráter

normativo do subjetivismo epistemológico for questionado e combatido em sua

origem:

O conteúdo filosófico só pode ser apreendido onde a filosofia não o introduz do alto de sua autoridade. É preciso abandonar a ilusão de que ela poderia manter a essência cativa na finitude de suas determinações. (...). A filosofia tradicional acredita possuir seu objeto como um objeto infinito e, assim, enquanto filosofia, se torna finita, conclusiva. Uma filosofia transformada precisaria revogar essa petição, não poderia mais enredar a si mesma e aos outros na crença de que teria o infinito à sua disposição. Ao invés disso, porém, em um sentido atenuado, ela mesma se tornaria infinita na medida em que despreza a possibilidade de fixar-se em um corpus de teoremas enumeráveis. Ela teria o seu conteúdo na multiplicidade, não enquadrada em nenhum esquema, de objetos que se lhe impõem, ou que ela procura; ela se abandonaria verdadeiramente a eles, sem usá-los como um espelho a partir do qual ela conseguiria depreender uma vez mais a si mesma, confundindo a sua imagem com a concreção. Ela não seria outra coisa senão a experiência plena, não reduzida, no médium da reflexão conceitual (ADORNO, 2009, p. 20, grifo nosso).

Retornando a Descartes, temos que a epistemologia moderna, para Adorno,

está calcada sobre o paradoxo promovido pela “norma cartesiana de que a explicação

precisava fundamentar o posterior a partir do anterior” (ADORNO, 2009, p. 123) algo

que exige o estabelecimento de um princípio primeiro e o esquema de uma ordem

hierárquica de pensamento – ambos vindos de fora do sujeito epistemológico. Ocorre

que a certeza do cogito é posta como tal princípio e, sem se dar conta, o sujeito

estabelecido como fundamento do conhecimento já desde o início apartou de si o

objeto do qual deveria se aproximar. A tentativa de explicação dos fundamentos do

59 A ratio (...) caiu em uma contradição irreconciliável com a objetividade que violentou, pretendendo compreendê-la. Ela se distanciou tanto mais amplamente dessa objetividade quanto mais plenamente a submeteu aos seus axiomas, por fim, ao axioma da identidade. (...) A grande filosofia foi acompanhada pelo zelo paranoico de não tolerar nada senão ela mesma. O mais mínimo resto de não-identidade era suficiente para desmentir a identidade, totalmente segundo o seu conceito. (ADORNO, 2009, p.27).

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conhecimento, nas palavras de Adorno, “já pressupõe a explicação que ele mesmo

precisa encontrar” (ADORNO, 2009, p. 123), faceta essa que Adorno numerosas

vezes atribui a Kant60

A proposta adorniana de renovação da filosofia deve possibilitar o

desenvolvimento de um paradigma crítico de racionalidade e seu ponto de partida é

uma tarefa para a epistemologia: se fazem necessárias alternativas para pensar a

estrutura das relações entre sujeito e objeto válidas na modernidade. Brian O’Connor,

ao abordar essa sugestão, explica o projeto adorniano de uma metacrítica da

epistemologia:

Contrariando a linha convencional do pensamento de Adorno, de que seu posicionamento não apresenta qualquer contribuição positiva, mas apenas negação e crítica, encontramos uma consideração compreensível e sistematicamente organizada acerca da relação sujeito-objeto em seu trabalho. Essa posição emerge como uma implicação direta da sua metacrítica da epistemologia. A metacrítica não é apenas negativa, pois isso não passaria de ceticismo. O que a metacrítica se propõe a atingir é uma consideração racionalmente articulada de experiência. (...) Experiência tem, de certo modo, a estrutura da reciprocidade e transformação. Adorno toma para si o dever de estabelecer um tipo de filosofia que, através da metacrítica da epistemologia, seja capaz de resgatar a noção de experiência das acepções propostas pela filosofia moderna” (O’CONNOR. 2004, p. 03, tradução nossa).

Para Adorno, a modernidade radicaliza o dualismo epistemológico, cujos

resultados são pouco favoráveis para uma filosofia que busca pensar a práxis. A

filosofia de Hegel é um contraponto a essa tendência, pois tematiza precisamente a

superação desse desencontro entre pensamento e realidade. É a tentativa hegeliana

de resgatar uma filosofia ainda capaz de intervir na realidade social que torna, para

Adorno, o pensamento de Hegel uma inspiração fundamental. Em sua Fenomenologia

do Espírito Hegel alerta para uma espécie de caminho no qual consciência se move

na passagem do conhecimento do particular ao conclusivo. O trajeto percorrido pela

consciência para alcançar o conhecimento, que, para Hegel, é incontornavelmente

conceitual, é seu conceito de experiência. Esse movimento jamais é acidental, pois a

experiência possui uma constituição racional que, conforme descreve Hegel, permite

ao pensamento passar por um processo em que ajusta a si mesmo até estar satisfeito

60“Se todas as leis empíricas... são apenas determinações particulares das leis puras do entendimento, a investigação deve cuidar sempre para que os princípios permaneçam corretamente ligados aos juízos factuais. Essa concordância da natureza com nosso poder de conhecer é pressuposta a priori... pelo juízo. Ela é o fim condutor da experiência organizada (ADORNO, 1985. P. 82).

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com o que foi apreendido do objeto e, finalmente, alcançar sua compreensão de que

a própria separação entre si e o objeto exterior a si é resultado de uma abstração

promovida ao longo desse percurso.

Para Adorno, como veremos, esse fator é de fundamental importância, dado

que “o que fornece o cânone do idealismo hegeliano é a resistência às determinações

conceituais práticas, (...) não utilizando conceitos como etiquetas” (ADORNO, 2013,

p. 153), procedimento este característico da metafísica tradicional. A compreensão

hegeliana do envolvimento do sujeito na atualização do conceito constantemente

exigida pelas particularidades do objeto, que expressa mútuo ajuste e transformação,

permite a visão de que a experiência, deste modo, não se resume à apreensão

imediata do dado, nem desemboca em uma cisão incapaz de afirmar algo acerca do

objeto mesmo61, mas perfaz um movimento que sustenta o constante ajuste do

conceito, operação na qual sujeito e objeto se influenciam mutuamente. Acerca disso,

Brian O’Connor (2004) sublinha que Adorno não promove apenas uma crítica às

filosofias moderna e contemporânea, uma vez que, como vimos no capítulo anterior,

toda a tradição filosófica incorre na mesma falha – embora as consequências disso

tenham se agravado na modernidade. O’Connor explica que

Experiência, em sua realização ideal, é, para Adorno, uma relação recíproca e aberta entre sujeito e objeto. O erro cardinal da filosofia é, ele alega, simplificar essa relação de reciprocidade, assumindo que o objeto pode, em sua totalidade, ser encapsulado – para colocar tão enfaticamente quanto Adorno o faz – pelo sujeito. Esse objetivo totalizante da filosofia não é condizente com o senso de reciprocidade que está implícito na experiência ideal (O’CONNOR, 2004, p. 04, tradução nossa).

No entanto, Hegel e Adorno corroboram a tese kantiana de que o ato de

conceituar é inerente à consciência. Este é, com efeito, considerado por ambos o

principal mérito do idealismo transcendental kantiano. Mas, precisamente por impor

delimitações, o conceito só é possível na medida em que deixa algo “fora” de si.

Conceituar é determinar, é impor limites entre o conjunto de predicados que compõem

ou não um objeto em questão. Para Adorno, a dialética de Hegel se desenvolve

precisamente na relação entre o conceito e seu negativo. Por isso, Adorno insiste que

a experiência não pode ocultar o trabalho de uma categoria fundamental: a negação.

61 Considerações recorrentemente presentes na crítica de Adorno à filosofia moderna, na medida em que este se refere, respectivamente, aos expedientes filosóficos de Hume e Kant. Cf. ADORNO, 2013, p. 138.

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Uma vez que o pensamento impõe sua tentativa de esgotar o objeto a partir das

determinações que, segundo Hegel, não se baseiam em categorias formais, mas em

conformações postas pela própria consciência – ou, dito na linguagem adorniana, uma

vez que o pensamento impõe o princípio da identidade – aquilo no mundo objetual

que não se submete ao processo de conceitualização é tomado pela consciência

como contraditório. E a filosofia tradicionalmente tomou a contradição como o signo

da incompatibilidade entre forma e conteúdo do pensamento. No entanto, mesmo a

contradição sugere um vínculo, pois aquilo que não se encaixa na delimitação

conceitual também afirma, contudo negativamente, o que o objeto é. Para a dialética

hegeliana, a negatividade é logicamente necessária e impõe à consciência a

percepção de sua incapacidade de abarcar, de maneira absoluta, o conjunto de

determinações que compõe, negativa e positivamente, um objeto. Acerca da

pretensão de totalidade típica da metafísica moderna, Adorno coloca que

nada é possível senão a negação determinada dos conceitos singulares por meio dos quais sujeito e objeto são absolutamente contrapostos e, justamente por meio disso, identificados um ao outro. O sujeito nunca é em verdade totalmente sujeito, o objeto nunca é totalmente objeto. (...) É preciso insistir criticamente na dualidade do sujeito e do objeto, contra a pretensão de totalidade inerente ao pensamento. em verdade, a cisão que torna o objeto algo estranho, a ser dominado, e que o apropria subjetivamente é o resultado de um arranjo ordenador. (...) A consciência se vangloria da unificação daquilo que ela primeiro cindiu arbitrariamente em elementos; daí o tom ideológico dominante de todo o discurso sobre a síntese” (ADORNO, 2009, p. 151).

Paralelamente a isso, a dialética hegeliana revela, sobretudo, que qualquer

conceito possui historicidade. Isso significa que as concepções de mundo, que os

sujeitos estruturam de forma necessariamente conceitual, se modificam. Conforme

vimos anteriormente, a principal decorrência da noção hegeliana de experiência é a

constatação de uma mútua constituição entre realidade e consciência, que não

apenas evidencia o caráter dinâmico e histórico dos conceitos – que não são mais

essencialidades fixas conforme estabelecera toda a tradição filosófica – mas, em

decorrência, derruba a autocracia do eu transcendental enquanto subjetividade

constitutiva, conforme pretendia Kant.

A Fenomenologia do Espírito é a obra em que Hegel rompe com a metafísica

tradicional no movimento em que se opõe à noção de subjetividade constitutiva. Não

há, para nós, de acordo com Hegel, uma essencialidade que posa ser assimilada para

além da estrutura categorial do nosso entendimento, justamente porque o

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estabelecimento ontológico de “essências” no mundo objetual já é, desde o mais

remoto princípio, um produto da conexão intersubjetiva de consciências que se

arrogam poder constitutivo. Kant tentara superar o realismo ingênuo e o ceticismo na

metafísica ao demonstrar que toda objetividade do conhecimento depende da

contribuição do sujeito, mas este, por sua vez, não é capaz de formular conhecimentos

sem o conteúdo advindo do exterior. Kant estabelece, portanto, a tese da

interdependência entre forma e conteúdo para o conhecimento. Porém, resta,

segundo Kant, a possibilidade de um conteúdo inalcançável, na medida em que este

eventualmente não se adeque à estrutura espaço-temporal da subjetividade. Hegel

demonstra, por meio do idealismo absoluto, que a existência desse suposto conteúdo

potencial inalcançável, a “coisa-em-si”, não se justifica, na medida em que deduzir a

mera existência de algo que a consciência não alcança já é, de certa maneira,

alcançá-lo. Adorno explica esse movimento hegeliano ao afirmar que “a consciência

que põe limites transcende necessariamente, com seu ato de pôr, o limitado”

(ADORNO, 2013, p. 148).

A favor de Hegel, Adorno aceita a noção de que cabe à experiência – nesse

caso, à dialética – expor a insuficiência das categorias para a compreensão do mundo,

não porque, seguindo Kant, com o qual Adorno também concorda, Hegel acredite que

o real possua uma substancialidade que não se adequa à estrutura da consciência,

mas sim porque, contra Kant, Hegel acredita que a consciência se constitui em

paralelo com a realidade. Dito de outro modo, Hegel evidencia que as categorias de

pensamento das quais nos utilizamos para formular juízos acerca da realidade são

constituídas historicamente e intersubjetivamente em meio a essa mesma realidade,

de modo que toda compreensão de mundo, sem exceção, é conforme as consciências

que o compreendem, bem como as consciências se constituem em vista da realidade

objetiva. Não há a possibilidade de existência de uma coisa em si alheia à experiência

das consciências porque o mero pensar nessa coisa em si já é parte da experiência

mesma. E, enquanto o processo de captação dessa conformidade, que finaliza com a

consciência reconhecendo que todo estatuto ontológico da natureza é, na verdade,

um estatuto metafísico conceitual elaborado por suas categorias de pensamento,

perfaz a concepção hegeliana de dialética.

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E é também a dialética que permite à consciência, ao longo da experiência,

reconhecer contradições entre o que ela acredita conhecer e o que deveria ser

conhecido. A consciência reconhece seus limites e a insuficiência dos juízos que

formula e nega esses juízos para reelaboração do conteúdo do pensamento. No

conceito hegeliano de experiência, conforme apontado por Adorno, seria a recusa

dessa negação, ou seja, sua negação, o que permitiria uma nova reorganização dos

elementos, através de uma adequação maior entre a coisa e seu conceito. Portanto,

é por meio da negação determinada que o pensamento se insere em um processo de

superação das contradições, no qual ajusta constantemente a si mesmo até estar

satisfeito com o que foi apreendido do objeto, superando a incompletude e a

incoerência. Tal conformação abriria as portas para as condições de possibilidade da

racionalidade crítica que Adorno procura. Vladmir Safatle (2013) ressalta que,

Fiel a sua recuperação hegeliana, Adorno compreende a dialética como único modo possível de superar as dicotomias entre pensamento e ser, sujeito que conceitua e objeto a conceituar, forma e conteúdo, conceito e intuição. Dicotomias que, se aceitas, levariam o pensamento às amarras da perpetuação da finitude e, ao menos segundo a tradição hegeliana, a uma maneira insidiosa de ceticismo. Tal superação dialética, como dirá Adorno, procura transformar a experiência crítica dos objetos, ou seja, a consciência do descompasso entre a experiência e os modelos de representação do objeto, em motor de crítica da razão (SAFATLE, 2013, p. 13).

O idealismo dialético cumpre assim, para Adorno, com os requisitos para um

tipo de conhecimento que não considera a contradição uma falha no pensamento,

mas o elemento que revela o não-idêntico, a carga residual da delimitação conceitual.

Isso atribui ao princípio da contradição presente na filosofia hegeliana um papel

decisivo. Adorno, considerará o não-idêntico uma categoria fundamental para a

realização de uma crítica imanente da razão, na medida em que revela elementos que

permanecem encobertos nos grandes sistemas filosóficos e supera a ingenuidade

inerente ao conceito tradicional de experiência. Adorno vê em Hegel a filosofia, na

tradição, que mais se aproximou desse feito:

Um pensamento que concebe o homem particular como zoon politikon, bem como as categorias da consciência subjetiva como sociais, não se ligará por muito tempo a um conceito de experiência que hipostasia o indivíduo. (...) Foi isso que a filosofia de Hegel notou. Sua crítica da imediatez dá conta do fato de que aquilo que a consciência ingênua acredita ser imediato e mais próximo é, no plano objetivo, não mais imediato e primeiro que qualquer outro tipo de posse. (...) Sob o aspecto dessa desmitologização, a filosofia hegeliana torna-se a fórmula de um compromisso amplo com a não-ingenuidade; resposta precoce a uma constituição do mundo que tece incessantemente o seu

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próprio véu. Hegel queria rasgar o véu: daí sua polêmica contra a doutrina kantiana da incognoscibilidade da coisa em si. (ADORNO, 2013, p. 146).

Derrubar as posições de pensamento da objetividade metafísica – e,

consequentemente, seu inerente formalismo – é o propósito mais fundamental do

idealismo absoluto hegeliano.

Ocorre que, conforme vimos anteriormente, o dualismo típico da metafísica

tradicional se fundamenta em uma metafísica que não atenta para a constituição

social do aparato conceitual dos sujeitos e é, portanto, incapaz de fazer crítica da

ciência institucionalizada e, consequentemente, de fazer resistência a processos de

reificação. A consciência moderna é uma consciência reificada e é esse elemento que

deve ser combatido, a princípio, caso se pretenda fazer crítica da ideologia. Adorno

tem em vista esse fator quando afirma que “o extremo do idealismo tem suas

implicações materialistas” (ADORNO, 2007, p. 151).

A constatação, presente no idealismo dialético hegeliano, do caráter

invariavelmente contraditório do real, que conduz a consciência ao movimento de

produção e atualização de conceitos, torna patente a insuficiência das formações

conceituais, uma vez que a natureza do conceito é seu trabalho essencialmente

negativo de construir identidade a partir do múltiplo. Ocorre que, conforme vimos, a

consciência opera de maneira absolutamente conceitual; mas essa mesma

consciência opera impondo identidades e, por isso, visualizando o negativo e a

constante insuficiência de sua operação, o que a permite constatar que o real é

contraditório. De acordo com Adorno, e nisto segue Hegel, “a contradição se torna o

agente do filosofar” (ADORNO, 2007, p. 154).

O movimento do conceito não é uma manipulação sofística (...), mas a consciência onipresente, que anima todo conhecimento genuíno, da unidade e ao mesmo tempo da inevitável diferença entre o conceito e o que ele deve exprimir. A filosofia deve se entregar a essa diferença, porque ela não renuncia a essa unidade (ADORNO, 2007, p. 154-155).

No entanto, há uma diferença fundamental entre a dialética hegeliana e as

pretensões de Adorno em sua crítica da metafísica. A formulação hegeliana do espírito

absoluto, que geralmente é tomada por algo muito obscuro e complexo, na verdade

acaba por anunciar uma conclusão profundamente revolucionária para a metafísica:

não existe mundo para além das consciências porque são as consciências que

conferem essências ao mundo. Ou seja, querer conferir uma essência a quaisquer

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objetos que seja independente das consciências já é, desde sempre, uma operação

feita por consciências, em outras palavras, já é conceito. Segundo Hegel, o real é

racional. E disto decorre a conclusão mais profunda de sua filosofia, qual seja, que a

dialética não é um método, mas sim a própria figuração da constituição mútua entre

real e consciência, de modo que a ontologia é uma abstração que não se reconhece

como tal. Para Hegel,

a razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade e [quando] é consciente de si mesma como de seu mundo e do mundo como de si mesma. O vir a ser do espírito, mostrou-o o movimento imediatamente anterior, no qual o objeto da consciência – a categoria pura – se elevou ao conceito da razão (HEGEL, 2008, p. 304)

Contudo, Adorno aponta que essa “redução do existente ao Espírito”

(ADORNO, 2007, p. 102) promovida por Hegel não pode se sustentar sem pagar o

preço de que o existente constantemente a recusa e a consciência constantemente

percebe a incapacidade das suas próprias categorias de pensamento para realizar

esse feito. Pois é o reconhecimento da insuficiência dessas categorias justamente o

elemento que obriga a consciência a estabelecer uma nova formulação, sempre

conceitual, acerca de um objeto. Se a realidade é espírito e este é a composição

sistemática de determinações que a consciência formula para abarcar as

transformações nessa realidade, é porque essa realidade está sempre se

modificando, na mesma medida em que se modificam as consciências. Faltou a Hegel

perceber que a sua compulsão pela identidade, fator que, de acordo com Adorno, o

permite elaborar sua dialética tal como um grande sistema de determinações do real,

é uma falácia, é uma recusa ao princípio básico da sua dialética, que é a

incompatibilidade insuperável entre realidade e conceito.

Adorno identifica, portanto, no conceito hegeliano de experiência, um impulso

para a construção de sínteses, pelo “fechamento” do conceito, que se “abre”

novamente apenas para buscar uma síntese atualizada, impulso pela identificação

característico do idealismo. O que Adorno recusa, dessa maneira, é a onipotência do

conceito que a dialética hegeliana acaba por afirmar. O resultado positivo dessa

dialética, apesar do alcance do seu aparato teórico-metodológico, a faz recair na

mesma insuficiência presente em toda tradição filosófica, qual seja, a pretensão de

liquidar o objeto através do conceito. O projeto adorniano da Dialética Negativa pode

ser lido como desenvolvendo uma nova compreensão para o conceito de experiência,

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que não se baseie em uma razão subjetivista, mas em uma racionalidade que exponha

e explique a experiência através do processo de mútua determinação que Adorno

defende existir na relação sujeito-objeto.

Devemos, no entanto, atentar para o fato de que, para Adorno, a filosofia de

Hegel tem seu privilégio justamente no fato de ser uma filosofia capaz de captar

racionalmente e oferecer possibilidades de compreensão para as tensões comuns aos

desdobramentos políticos e socioculturais típicos da modernidade. Uma filosofia

incapaz de compreender o devir histórico como um desenrolar e atualizar de tensões

específicas é inteiramente incapaz de compreender a historicidade da vida humana e

sua influência na constituição normativa de saberes e práticas. A crítica de Adorno

não se refere ao desenrolar da experiência proposto por Hegel como o

desenvolvimento da consciência – ou seja, não é uma crítica da passagem dos

momentos da consciência como imanentes e necessários, tendo como motor a

negação determinada – que Adorno admite e toma como princípio básico de sua

própria Dialética Negativa – mas do fato de que a necessidade desse desenrolar, para

Hegel, progride em direção a uma síntese, em vista de seu caráter sistemático. Ou

seja, embora a filosofia de Hegel seja uma filosofia da tensão, Adorno aponta que seu

fim como síntese põe a perder seus potenciais emancipatórios através da imposição

extrínseca da identidade, imposição esta que não se justifica, uma vez que seu

propósito é, ao contrário do que demonstra sua conclusão, uma filosofia da pura

imanência. De certo modo, Adorno conclui que Hegel incorre em uma contradição

performativa, dado que a exigência pela identidade não se observa a partir do

desenvolvimento da compreensão do objeto, mas de um “impulso de identidade” ao

qual o sujeito corresponde de maneira não reconhecida. Veremos à frente as

decorrências disso para a elaboração conferida por Adorno à noção de dialética.

3.3 DIALÉTICA E IDENTIDADE: ADORNO E A FILOSOFIA

ANTISSISTEMÁTICA

Um dos problemas mais frequentemente apontados por Adorno em sua crítica

da metafísica moderna é sua inerente instrumentalização do conhecimento. A

tendência a considerar sujeito e mundo como instâncias absolutamente extrínsecas e

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independentes conduz necessariamente à ideia de que o conhecimento é uma

espécie de ferramenta que permite ao sujeito operar com as coisas. A dificuldade

reside precisamente no fato de que o elemento instrumental e, portanto, exterior ao

absoluto, não capta as modificações deste, sua mutabilidade e dinamicidade. Ao

contrário, a instrumentalização da racionalidade só é possível por meio da

essencialização do absoluto, através de uma ontologia que ignora o curso da história

e, portanto, opera reducionismos. O objeto é, seguindo esse raciocínio, tido como

portador de uma natureza imutável que a racionalidade deve ser capaz de captar em

sua essência, como uma ferramenta que apanha algo.

A dialética de Hegel propõe um sistema de pensamento que recusa a validade

dessa instrumentalização. O fator mais relevante, para Adorno, na filosofia de Hegel,

é que este foi capaz de demonstrar que os fatos e objetos supostamente pertencentes

à realidade exterior ao sujeito cognoscente possuem significados que são conferidos

pela sociedade. Objetos e acontecimentos não são dados com configuração própria e

essência única e imutável, mas são construídos coletivamente em seu sentido. Os

acontecimentos se compõem através dos papéis sociais que são coletivamente

atribuídos a eles em cada momento histórico. Em outras palavras, o conhecimento é

dotado de historicidade. Dessa maneira, o que as coisas são é reflexo daquilo que

delas se constrói socialmente.

A Fenomenologia do Espírito é um livro completamente dedicado a mostrar não

somente que toda forma de compreensão objetivamente válida é mediada

conceitualmente – algo que o idealismo kantiano já havia evidenciado – mas,

sobretudo, que a mediação é condição de toda e qualquer compreensão da realidade.

Mesmo a mais elementar constatação de que o objeto é algo outro ao sujeito já é

resultado de uma mediação na qual o eu percebeu a si próprio como algo diferente do

outro. Assim, Hegel derruba o fundamento básico do empirismo, que a é consideração

de que a realidade objetual é captada pelo sujeito epistêmico de maneira imediata

pelos sentidos, independentemente da mediação da consciência.

Além disso, Adorno concorda com Hegel em sua constatação de que uma vez

que não podemos ultrapassar essa estruturação conceitual em nossa compreensão

de mundo e os conceitos são mutáveis e dotados de historicidade, nossa

compreensão de mundo é mutável e dotada de historicidade. Isso se deve ao fato,

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demonstrado por Hegel, de que nossas categorias de pensamento não são formas

fixas às quais submetemos a análise de conteúdos da experiência, mas mesmo as

categorias das quais nos utilizamos para elaborar juízos acerca do mundo possuem

seu fundamento nas diversas possibilidades de elaboração das experiências e, por

isso, estão sujeitas à mudança. Essa concepção, importante ressaltar, é a raiz da

crítica de Adorno contra o positivismo. O’Connor sublinha, acerca dessa crítica, que:

A sociedade, como uma totalidade, não é um objeto que possa ser apreendido por qualquer metodologia adotada pelo positivismo. Análises sociais que não acomodam a ideia de totalidade – porque isso é inacessível à sua metodologia – são falsas, Adorno argumenta. Elas deturpam a sociedade ao não verem o que dá origem aos seus fatos supostamente objetivos. Nesse contexto, elas são ideológicas, na medida em que concedem validade epistemológica para a sociedade tal como ela aparece, excluindo a investigação acerca do que sustenta essa aparência (O’Connor, 2013, p. 27, tradução nossa).

O’Connor trata, neste trecho, de uma noção cara à Adorno: qualquer método

que erga a pretensão de abarcar a compreensão da totalidade, seja de maneira

imediata, seja por meio de uma sistematização das determinações de pensamento,

será ideológica. Assim, embora Hegel ofereça o suporte metafísico para a crítica

contra o positivismo, Adorno recusará na filosofia hegeliana o que considera ser um

excessivo idealismo, e reclamará um contato mais direto com a objetividade. Em

resumo, Adorno não admite que a experiência transformada em dialética permita a

composição de um sistema de pensamento, conforme propôs Hegel. Adorno aponta

que o moderno impulso pela identidade, que Hegel outrora criticara na epistemologia

kantiana, se volta contra ele próprio na composição de um sistema de pensamento, o

idealismo absoluto. Ainda na Dialética do Esclarecimento Adorno já apontava a

tendência moderna que permite esse paralelo com Hegel, ao afirmar que “a

desmitologização do mundo exige que nada fique de fora do pensamento” (ADORNO,

HORKHEIMER, 1985, p. 29).

O idealismo hegeliano representará, para Adorno, a mais extrema radicalização

desse processo, que já é característico do mito e do esclarecimento62. Assim, de

62 Adorno compreende que todas as formas de manifestação do esclarecimento incorrem no mesmo erro de pretensão totalizante, que acabam por se converter em ideologia. Ele sintetiza essa tendência na famosa expressão de que “o esclarecimento é totalitário” (ADORNO, 1985, p. 20).

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acordo com Adorno, a dialética positiva de Hegel é um sistema filosófico que impõe a

identidade entre sujeito e objeto de tal modo que nada resta no objeto que não seja

subjetivo. Adorno recusa frontalmente esse movimento da dialética hegeliana. Em seu

ensaio Atualidade da Filosofia63, Adorno enuncia essa tese já nas primeiras linhas, ao

afirmar que

quem hoje em dia escolha por ofício o trabalho filosófico deverá renunciar desde o princípio a ilusão de que partiam antigamente os projetos filosóficos: a de que seria possível, pela capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do real” (ADORNO, 1991, p. 73, tradução nossa)

Neste famoso escrito de juventude, Adorno já deixara descrito de maneira

concisa seu programa filosófico, sublinhando que a tão urgente crítica da teoria do

conhecimento que revelará a insuficiência da razão moderna deverá não somente vir

acompanhada de uma compreensão dialética da realidade, mas também que essa

seguirá por um viés materialista. O que significa que, embora a inspiração fundamental

para essa transformação seja o pensamento de Hegel, Adorno recusará o idealismo.

Desse modo, pode-se afirmar que Adorno, em sua Dialética Negativa,

desenvolve uma apropriação materialista do idealismo hegeliano. Em resumo, a

negação mesma é, para Hegel, uma tensão entre o que o objeto é e sua eventual

delimitação conceitual insuficiente, que força o pensamento a trabalhar

constantemente em busca de uma nova relação, mais singular e pormenorizada, entre

o objeto e seu conceito. O princípio motor desse processo é a negação determinada64,

63 Die Aktualität der Philosophie (1931). 64 O’Connor ressalta que as concepções de negação determinada elaboradas por Hegel e Adorno contém diferenças substanciais que lançam luz a essa discussão: “Adorno é influenciado em sua formulação pela própria ideia de crítica imanente presente na noção hegeliana de negação determinada. Na Fenomenologia do Espírito de Hegel, a negação determinada é uma negação produtiva que emerge da experiência de falha. Colocando no idioma hegeliano, é a experiência de contradição entre nossas crenças. Especificamente, é a contradição entre nossos conceitos acerca de um objeto e como os objetos aparecem para nós (o que nós consideramos que o objeto seja nessa aparência). A contradição, para Hegel, emerge apenas quando estamos dispostos a refletir sobre o que os elementos constituintes do nosso conhecimento reivindicam. Ele caracteriza esse processo como o “trabalho do negativo”. Essa negatividade não é, contudo, um fim em si mesma. Ela é, como dito, produtiva, na medida em que traz luz sobre compromissos ingenuamente tomados que acabam por se tornar contraditórios. É por isso que a negação é determinada: ela tem um “conteúdo”, Hegel diz. O elemento essencial que determina a negação determinada que Adorno adota para a crítica imanente é que nós podemos fazer nós mesmos conscientes da contraditoriedade ingênua, sem a introdução de um critério de verdade de fora. Que Hegel, em último caso, veja a contradição determinada como um momento interior à sistematização progressiva de nossas crenças certamente o distingue muito significativamente da noção adorniana de crítica imanente, que é, ao fim, puramente crítica. Em Hegel, podemos nos mover além da negação determinada para uma compreensão nova dos nossos compromissos epistêmicos. Nesse sentido, nos movemos para além da contradição inicial. Para Adorno, contudo, essas contradições estão incorporadas à história: a crítica pode revelá-las, mas as

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que permite a crítica imanente do conceito, exigência de uma filosofia autocrítica.

Porém, Hegel defenderia o acabamento desse movimento através da instituição de

uma espécie de síntese totalizante, que Adorno recusa. Na dialética hegeliana há,

porém, uma primazia da concordância, em um processo no qual a negação revela

uma contradição que é, ao fim e ao cabo, suprimida pela experiência.

Adorno discorda, portanto, de uma das teses centrais da dialética hegeliana.

Resgatando Kant, Hegel discorda de que haja uma identidade entre nossas

concepções de mundo e a realidade própria a esse mundo, ou, em outras palavras,

que haja uma identidade entre pensamento e ser que só se torna patente por meio da

dialética. Contra Hegel, Adorno levanta a tese da insuficiência do conceito: pensamos

apenas conceitualmente, mas são esses mesmos conceitos que nos permitem

constatar, negativamente e constantemente, que há um lapso entre o que a

consciência pensa acerca do objeto e o que este objeto de fato é.

Assim, Adorno percebe que o processo dialético que se finaliza em síntese,

subsume a particularidade e a individualidade típicos e incontornáveis de cada

fenômeno, de cada coisa. A identificação entre pensamento e totalidade social,

estabelecida por Hegel, cujo objetivo é explicar a totalidade de determinações que

compõem nossa compreensão da realidade, perfaz um sistema de pensamento que

é abstrato. Essa é a crítica na qual coincidem as conclusões que Adorno desenvolve

em cada um dos Três Estudos Sobre Hegel. Ocorre que Hegel, agindo de acordo com

o que Adorno critica como um “impulso positivista” (ADORNO, 2013, p. 166), elabora

um sistema e a marca deste modelo de pensamento é a primazia do conceito sobre a

contradição. O interesse hegeliano pela sistematicidade possui, como expõe Adorno,

a função de demonstrar que a verdade do conhecimento reside na totalidade, ou seja,

na conjunção de todos os momentos particulares nos quais se opera a relação sujeito-

objeto. Adorno explica que Hegel, embora supere a autodelimitação imposta ao

pensamento pela metafísica moderna, acaba por identificar a verdade com a

totalidade das determinações do pensamento, com o grande conjunto de particulares

mesmas persistem até que a sociedade mesma tenha se movido para além delas. A única função que a crítica pode realizar é revelar aquela irracionalidade (contraditoriedade): ela não pode seguir com Hegel no pensamento de que aquela crítica já é um passo além do estado de coisas criticado. Como Adorno coloca: ‘o que é negado é o negativo mesmo até que o mesmo tenha passado. Esse é o verdadeiro rompimento com Hegel’” (O’CONNOR, 2013, p. 48. Tradução nossa).

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contraditórios em processo de supressão65. Adorno vê nisso uma coerção do

pensamento sobre a coisa, que atribui verdade à totalidade e utiliza a negatividade

apenas em função da ilusória eliminação do contraditório. Luiz Sérgio Repa (2011)

sintetiza esse procedimento de Hegel ao afirmar que, na visão de Adorno, o ponto

cego da filosofia hegeliana se encontra na indissociabilidade entre negatividade e

totalidade “e isso significa dizer também entre negatividade e sistema” (REPA, 2011,

p.2).

A totalidade sistemática que compõe a noção hegeliana de espírito, fundada na

ideia de que é possível compreender a totalidade de determinações que perfazem as

contradições e incongruências reconhecíveis na totalidade social, não é orgânica,

como pretende o idealismo de Hegel, mas tão somente coercitiva. Adorno menciona

essa caracterização em sua defesa de que a identidade entre pensamento e natureza

operada por Hegel através do seu sistema filosófico66 é, na verdade, uma

reelaboração da coerção do pensamento sobre as coisas operada ao longo de toda a

metafísica, e cujas consequências favorecem projetos de emancipação tanto quanto

o próprio realismo ingênuo que essa filosofia buscava invalidar. Acerca dessa

conclusão adorniana, O’Connor ressalta que:

As consequências dessa sistematicidade coercitiva são devastadoras. Adorno se refere à realidade da exclusão física. A exclusão física é diretamente motivada pelo desejo de uma totalidade homogênea, tal qual um Volk, como Adorno tinha em mente. Essa é a conexão entre “o sistema” – a integração capitalista – e a identidade política que motivou alemães não judeus a apoiar as políticas nazistas. Isso diferencia Adorno de outros teóricos do holocausto, que interpretam, por sua vez, o antissemitismo como fundado em tendências antimodernistas sentimentais e românticas (O’CONNOR, 2013, p. 35, tradução nossa).

Já na introdução da Dialética Negativa Adorno aponta com firmeza o que

considera ser a falha da filosofia de Hegel, qual seja, a invariância das suas

categorias. Acerca de desse ponto, Adorno defende que

65 Cf. ADORNO, 2013, p. 238. 66 De acordo com O’Connor, “Adorno argumenta, porém, que ‘o desenvolvimento inovador do conceito de experiência de Hegel é de algum modo constrangido por seu posterior desenvolvimento sistemático’. Hegel acredita que “a negação determinada é o caminho lógico para o progresso intelectual. A negação determinada leva a uma transformação da nossa compreensão, forçando a uma nova forma de compreensão e expressão de nossas crenças. Isso, de acordo com Hegel, nos leva a um sistema de conceitos’. Esse sistema tem um acabamento (O’CONNOR, 2013, p. 64 tradução nossa).

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Assim como no caso de Hegel, uma dialética desencadeada não prescinde de algo firme. No entanto, ela não lhe concede mais o primado. Hegel não o acentuou tanto na origem de sua metafísica: ele deveria emergir dela no fim, como uma totalidade completamente traspassada por luz. Por isso suas categorias lógicas possuem um caráter duplo peculiar. Elas são estruturas que emergiram, que se suspendem e que são ao mesmo tempo a priori e invariáveis. Elas entram em ressonância com a dinâmica por meio da doutrina da imediatidade que se reproduz novamente em cada nível dialético. A teoria da segunda natureza, já tingida criticamente em Hegel, não se perdeu para uma dialética negativa. Ela assume a imediatidade não-mediatizada, as formações que a sociedade e seu desenvolvimento apresentam para o pensamento, tel quel, para liberar por meio de análise suas mediações, segundo a medida da diferença imanente dos fenômenos em relação àquilo que eles pretendem ser a partir de si mesmos. Para uma tal análise, o elemento firme que se mantém, o “positivo” do jovem Hegel, é como o negativo para ele. Ainda no prefácio à Fenomenologia, o pensamento, o inimigo mortal daquela positividade, é caracterizado como o princípio negativo. A isso conduz a meditação mais simples possível: o que não pensa, mas se entrega à intuição, tende ao mau positivo por causa daquela constituição passiva que, na crítica à razão, designa a fonte sensível e legítima do conhecimento. Acolher algo tal como respectivamente se apresenta, renunciando à reflexão, já é sempre potencialmente reconhece-lo como ele é; em contrapartida, todo pensamento provoca virtualmente um movimento negativo. Em Hegel, porém, apesar de toda afirmação do contrário, o primado do sujeito sobre o objeto permanece inconteste. Esse primado é justamente encoberto pela palavra semiteológica “espírito”, junto à qual não se pode eliminar a lembrança de uma subjetividade individual. A lógica hegeliana paga a conta por isso com o seu caráter extremamente formal” (ADORNO, 2009, p. 40).

O “negativo” hegeliano é o pensamento que impõe de forma recorrente o

contraditório, “em cada nível dialético” (ADORNO, 2009, p. 40). Esse pensamento é,

curiosamente, conforme aponta Adorno, um positivo, uma vez que ele próprio é

imutável. Ao sustentar a fixidez desse ponto, Hegel prioriza o pensamento; priorizando

o pensamento, prioriza o sujeito. Esta é a raiz do primado do sujeito do idealismo

hegeliano que, segundo Adorno, “é encoberto pela palavra ‘espírito’” (ADORNO, 2009,

p. 40). É preciso, como Adorno propõe, mover esforços para compreender

criticamente a autonomia da subjetividade, para que esta reconheça que mesmo a

consciência que tem de si também é mediatizada. Seguindo esse raciocínio, indica

Adorno, o princípio da identidade se revelará unicamente como um mecanismo de

redução da experiência que o sujeito tem do objeto àqueles conceitos ou categorias

supostamente totalizantes que pertencem ao sujeito. Portanto, Adorno se voltará

contra Hegel para defender não somente uma existência dos objetos que seja

independente do nosso aparato conceitual e, consequentemente, da idealidade, mas

também o reconhecimento de que essa realidade material determina a consciência e,

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portanto, os parâmetros dos quais nos utilizamos para constituir visões de mundo.

Adorno, por isso, pretende resgatar o materialismo na filosofia, condenado por Hegel.

Por conseguinte, a estratégia adorniana é a elaboração de uma dialética

negativa, que se contrapõe à exigência de síntese e que sustenta não apenas a tensão

da relação sujeito-objeto nos diversos momentos da experiência, mas também o não-

abandono da reflexão, ambos necessários para o resgate do pensamento crítico67. A

tarefa da dialética negativa será desenvolver um aparato teórico que não oculte, mas

revele o caráter antagônico da sociedade, não de modo a suprimir esse antagonismo

através do conceito, mas, buscando evidenciar, ainda que conceitualmente, o que

está além deste, revelar os elementos que perpetuam as relações de dominação e a

barbárie que se instauraram sobre o Ocidente. Adorno recusa, em suma, a onipotência

do conceito que leva Hegel à elaboração de um “grande sistema”68; para Adorno, esse

pensamento não pode ser dialético:

A dialética significa objetivamente quebrar a compulsão à identidade por meio da energia acumulada nessa compulsão, coagulada em suas objetivações. Isso se impôs parcialmente em Hegel contra ele mesmo, que com certeza não podia admitir o não-verdadeiro da compulsão à identidade. (...). A negação da negação seria, mais uma vez, identidade, projeção do princípio da subjetividade sobre o absoluto (ADORNO, 2009, p.136).

A onipotência do conceito, cujo acabamento mais radical Adorno encontrará

em Hegel, é um mecanismo de supressão artificial do contraditório. Adorno, porém,

pretende elaborar uma filosofia cuja desconfiança de si mesma a permita visualizar,

por meio da exposição da contradição, os antagonismos presentes na realidade, para

realizar o desafio da superação real das relações de dominação. Adorno aponta dessa

maneira que

a filosofia não pode se furtar à compreensão de que a dialética se origina da experiência da sociedade antagônica, não do mero esquema conceitual. A história de uma época não conciliada não pode ser um desenvolvimento harmônico. Apenas a ideologia, que nega tal caráter antagônico, produz tal harmonia (ADORNO, 2013, p. 167).

A dialética negativa é o pensamento que manifesta a tensão entre aquilo que

foi apreendido e o que ficou de fora, o idêntico e o não-idêntico, o conceito e o além

do conceito. Este não é excluído a princípio pelo pensamento, mas, ao contrário, é

67 Quanto a esse ponto, Cf. SAFATLE, 2013. 68 Cf. ADORNO, 2013, p. 166.

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elemento constitutivo do próprio conceito, e tal constituição permite a compreensão

de uma realidade em constante transformação e antagônica em qualquer forma na

qual se revele. Adorno está convencido de que apenas a compreensão – jamais a

supressão – desse antagonismo permitirá o estabelecimento de uma racionalidade

crítica e do engate desta com uma realidade social que exige transformação.

As modernas concepções de experiência, no entanto, seguem o caminho

oposto, se tornam reificadas e, dessa maneira, necessariamente reproduzem

ideologias. A experiência reificada é, segundo Adorno, uma distorção na interação

entre sujeito e objeto. Dessa forma, não é experiência genuína. Isso porque

a consciência reificada não nos permite ver que o nosso mundo – que compreende sujeitos e objetos – é um desenvolvimento sócio-histórico; ao contrário, tal consciência toma o mundo como algo limitado cujas interações parecem seguir um curso dado, puramente natural (O’CONNOR, 2013, p. 36 tradução nossa).

Na reificação o sujeito adota uma relação não compreensiva, mas instrumental,

com as coisas, com os objetos. Essa relação inibe a experiência do sujeito em seu

engajamento com mundo, embotando a ação dos indivíduos e fortalecendo a

ideologia. No entanto, e isso é o elemento mais notável da apropriação promovida por

Adorno da dialética de Hegel, é precisamente a partir da concepção de ideologia que

Adorno sai em defesa do idealismo que ele repetidamente ataca. Adorno reconhece

que qualquer concepção materialista de dialética deverá ser complemento à dialética

idealista, não sua superação69. Se, na dialética idealista o espírito era atividade, é

preciso não proceder com a sua hipostasiação, mas pensar sobre como isso se dá,

uma vez que o substrato material não é apenas o elemento sobre o qual o espírito

exerce sua atividade, mas é condição de possibilidade para a existência do elemento

espiritual. Considerar a totalidade social como absolutamente conceitual, uma vez que

o sujeito só apreende o mundo conceitualmente, não pode conduzir à ideia de que

sujeito e objeto compõem uma totalidade que é espiritual: esse movimento marca a

tentativa de silenciar o elemento que faz o sujeito ser o que é, o objeto. Nesse caso,

não o que o objeto é enquanto conceito, mas o objeto que permite que o sujeito

elabore conceitos, que compõe a materialidade na qual o ser-aí se faz também sujeito.

69 Eduardo Soares Neves Silva afirmará que “É precisamente esse o sentido do ‘conceito transformado de dialética’ representado por uma dialética negativa: contra a afirmação da dialética idealista, Adorno vai encontrar o cerne da dialética não na suprassunção (Aufhebung) hegeliana, mas na resistência à identidade, ou ainda, em uma suspensão da síntese”. (SILVA, 2006, p. 39).

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Essa materialidade não é anterior ao sujeito, da mesma forma que o sujeito não pode

se sobrepor a ela. Adorno alerta inclusive para o fato de que “a controvérsia sobre a

prioridade do espírito ou do corpo procede de maneira pré-dialética” (ADORNO, 2009,

p. 172). A dialética negativa não será, portanto, uma superação da dialética hegeliana

positiva e idealista, mas seu complemento.

Adorno trata, portanto, de sublinhar a necessidade de filosofar com conteúdo.

Essa tentativa foi empreendida por Hegel, mas com ressalvas, devido à absolutização

do espírito que, para Adorno, esconde que a mediação do conteúdo é um mecanismo

de coação. O pensamento possui, em sua necessidade de constante identificação do

real a si um caráter evidentemente compulsivo e essa compulsão “protege o

pensamento da arbitrariedade” (ADORNO, 2009, p. 49), mas não o torna absoluto. É

preciso reconhecer a insuficiência do conceito, tanto quanto a insuficiência do método

que expõe a insuficiência do conceito – ou seja, é preciso reconhecer também a

insuficiência da dialética.

Para seguir com esse projeto, Adorno trata, primeiramente, de três temas

fundamentais: da necessidade de afirmação do indivíduo na dialética, da priorização

do objeto na experiência e do necessário enfrentamento do primado da identidade.

Acerca da tese da necessidade de afirmação do indivíduo, em contraposição à noção

de sujeito, temos a defesa de Adorno de que ao pensamento quantitativo,

característico das ciências, promovido por um sujeito abstrato, se contrapõe o

pensamento qualitativo, realizável apenas pelo indivíduo. Adorno se aprofunda no

tema ao criticar Hegel e sua dialética que escamoteia o indivíduo, sem reconhecer

que a base da sua lógica é o pensamento individual, o saber imediato. Essa crítica

retoma todo o pensamento moderno, do eu penso cartesiano ao eu transcendental de

Kant. Adorno afirma que, em Hegel, o indivíduo se torna sujeito por meio da

consciência de si.

No entanto, Adorno defende que ambos os momentos, indivíduo e sujeito, se

influenciam mutuamente e que ambos dão origem a formas igualmente relevantes

para um pensar objetivo. A dialética do sujeito está descrita em Hegel, mas Adorno

apresenta a outra face dessa dialética, que opera simultaneamente a ela: uma

dialética do indivíduo. “Diferencialidade” (ADORNO, 2009, p. 47) é o conceito cunhado

por Adorno para se referir ao resultado do processo de captar na coisa aquilo que

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escapa ao conceito dela. A diferencialidade depende do indivíduo, não do sujeito. O

sujeito é capaz de operar a dialética logicamente, mas não é capaz de captar as

nuances do que se mantém exterior a essa dialética. E é preciso observar o modo

como isso ocorre em Hegel, na transposição do saber imediato para a consciência,

depois, para a consciência de si e, finalmente, para o espírito. Deve-se atentar então

para o fato de que essa diferencialidade pode não estar necessariamente ausente da

dialética hegeliana, mas presente como uma categoria, algo que Adorno não aceitaria.

Malgrado o pensamento lógico abstrato, a dialética não pode prescindir do indivíduo.

Por outro lado, a filosofia adorniana ressalta que é necessário atentar para o

caráter prioritário do objeto na experiência. A valorização do indivíduo em

contraposição ao sujeito e a priorização do objeto como elemento irredutível à

totalidade conceitual são duas faces de uma mesma moeda, qual seja, o resgate

adorniano da materialidade na dialética. Adorno ressalta, contudo, que sua filosofia

não dá ao objeto o trono vazio antes ocupado pelo sujeito. Segundo ele, “essa

prioridade [do objeto] não envolve dar ao objeto o que a tradição idealista por

excelência deu ao sujeito. A prioridade do objeto, então, não pode privar o sujeito de

sua ação” (ADORNO, 2009, p. 181). De acordo com essa proposta, a filosofia de Kant

coloca, para Adorno, um ponto de partida interessante. Embora a teoria

transcendental da experiência seja questionável para Adorno em diversos aspectos,

seja em sua consequente abstração da experiência ou mesmo em seu modelo

categorizante, Kant desenvolve importantes ideias acerca dos limites do alcance do

sujeito. Esta constatação é um contrapeso materialista à noção idealista de Hegel da

possibilidade de encapsulamento de objetos por um sistema. A dimensão materialista

é aquela na qual objetos não se conformam, em último caso, com nossos modos de

conhecer, tal como já notara Kant. A concepção dialética materialista de experiência

é aquela que enfatiza a abertura e não sistematicidade do pensamento frente aos

objetos e ocorrências na realidade dita exterior. É por essa razão que Adorno nomeia

sua dialética como negativa em contradição com a construtiva e sistematizante

dialética de Hegel. Adorno compreende o objeto, portanto, como um particular

irredutível. Dessa forma, a experiência na dialética adorniana não será, conforme

Hegel queria, o reconhecimento dos movimentos da consciência em vista de promover

a sujeição da natureza à conformidade de suas categorias de pensamento, mas sim

a constante recolocação do compromisso do pensamento com o reconhecimento de

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que o objeto não se reduz a si, embora aquele opere necessariamente promovendo

essa redução e não seja capaz de fazê-lo de outra forma.

O terceiro tema, acerca do primado da identidade, é o que mais aproxima

Adorno de suas críticas a uma metafísica que oferece sustentabilidade teórico-

conceitual aos princípios de regulação e manutenção do capitalismo enquanto sistema

econômico e decorrente normatização das formas de organização da totalidade social.

Adorno jamais trata essa questão levantando exemplos, mas sempre se refere aos

efeitos do capitalismo na sociedade como um todo. O’Connor menciona que, para

Adorno, o sistema capitalista se legitima e se perpetua com base em uma razão que

conduz os indivíduos à internalização de certas leis de troca, ao mesmo tempo em

que essas leis delimitam e formam a consciência dos indivíduos. Essa troca é

o sistema no qual todo fenômeno – coisas, trabalho, tempo – se torna manifesto em um valor monetário. Ele [Adorno] chama isso de ‘equivalência’ (...) A racionalidade necessária para uma efetiva operação de troca – a capacidade de trocar toda diversidade de objetos e coisas no mundo em um fenômeno físico equivalente – perfaz a racionalidade como um todo. Trata-se de uma operação recorrente da racionalidade, empreendida ao longo de nossa vida cotidiana, que bloqueia nossa capacidade de nos engajarmos em exercícios mais amplos e ambiciosos da nossa razão, que permanece intocada. A tendência de traduzir tudo em valor abstrato – que é o que vale – passa a determinar a percepção dos indivíduos acerca de toda a realidade. Isso de algum modo enfraquece, Adorno acredita, a capacidade para promover distinções qualitativas. As diferenças entre as coisas deixam de ser especificadas em termos do que cada coisa singularmente é. Por outro lado, o valor abstrato se torna a unidade de medida prevalecente” (O’CONNOR, 2013, p. 32 tradução nossa)

Internamente ao capitalismo, todos os objetos podem ser classificados dentro

de uma unidade abstrata de valoração, traduzidos no medium da troca monetária e

reduzidos à quantificação abstrata. Essa é, para Adorno, a marca da sociedade

burguesa. Adorno acredita que essa situação prevalece porque é sustentada por uma

consciência comum, de modo que os indivíduos marcados pela lei da equivalência

coletivamente perpetuam o sistema de troca. Adorno defende inclusive que o

processo de socialização nos dias de hoje envolve se tornar um efetivo agente da

troca, ou seja, um indivíduo com capacidades cada vez maiores de gerar lucros com

a produção e troca de mercadorias. Trata-se de uma forma de portar-se no mundo,

que progressivamente consolida-se na medida em que constitui a identidade dos

indivíduos. Os mesmos devem se integrar a instituições capitalistas e isso preserva a

totalidade social.

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É precisamente nesse viés da discussão que Adorno resgata elementos do

raciocínio presente em a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo70. O estudo de

Max Weber mostra, de modo semelhante, porém invertido, como certas concepções

religiosas favorecem a formação de uma consciência pautada pela troca e pelo

princípio de equivalência, criando as condições ideais de possibilidade para o advento

e permanência de um sistema econômico nos moldes do capitalismo. Essa tese se

assemelha ao argumento inicial considerado por Adorno para defender que o modo

de vida capitalista conduz os indivíduos a uma perda das suas aptidões críticas. A

mútua e cíclica conformação entre as formas de organização social e o

desenvolvimento das consciências que se dá internamente a esse contexto favorece

a manutenção desse último, uma vez que o ponto onde a crítica deve se fundamentar

paulatinamente se perde, que é justamente o ponto da não-equivalência, da não-

identidade total, do qualitativo, que se desmancha em nome da equiparação

quantitativa entre coisas e, finalmente, entre seres humanos. Acerca desse tema,

Rodrigo Duarte escreve que “o mundo se torna um campo de exploração sistemática

a partir de um entendimento que se restringe cada vez mais buscando sempre a

redução da multiplicidade das coisas à unidade do pensamento” (DUARTE, 1993, p.

15).

Dessa maneira, após finalizar a Dialética do Esclarecimento, Adorno percebe

que o impulso identitário, priorizado pelo pensamento desde o surgimento da filosofia,

é radicalizado na modernidade pela priorização da técnica enquanto modelo de

racionalidade e operacionalização da vida. O esclarecimento deve ser, portanto,

combatido em seu impulso identificador. Por isso, a dialética deve ser negativa, uma

vez que a positividade, em filosofia, remete ao esgotamento e à sistematização da

objetividade, eliminando o elemento dissonante no conhecimento, a diferença e o não

idêntico, signos de erros a serem evitados. A dialética negativa será, portanto, a face

propositiva apresentada por Adorno em sua metacrítica da teoria do conhecimento:

Posições filosóficas estranhamente operam com o uso dos compromissos racionais mais profundos de suas sociedades, compromisso com uma forma básica do mundo e das relações neste. Quando estas descrevem a experiência, fazem-no através de preconcepções acerca de como o mundo é dividido e dos modos pelos quais as partes divididas interagem. Essas preconcepções são influenciadas socialmente. Somente através da metacrítica – como Adorno descreve – podemos ter acesso aos

70 Die protestantische Ethik und der 'Geist' des Kapitalismus (1904).

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compromissos sócio-históricos da epistemologia. Num mundo social reificado, Adorno pensa, relações reificadas são produzidas em teorias filosóficas (O’CONNOR, 2013, p. 58 tradução nossa)

Mas faz-se necessário expor de que maneira a filosofia seria capaz de, ao

mesmo tempo, ressaltar a influência determinante do elemento individual na

constituição da subjetividade, evidenciar a prioridade do objeto na experiência,

alcançar a supressão do impulso pela identidade e revelar que a contradição não é

sinal de uma falha na operação com os pensamentos, mas a revelação de que a

própria realidade é contraditória. Adorno sugere, para solução deste problema, a ideia

de que o conhecimento filosófico deve se pautar por uma dialética cujo procedimento

seja constelatório. Adorno encontra no pensamento de Walter Benjamin, em sua tese

de livre-docência submetida à Universidade de Frankfurt intitulada Origem do Drama

Barroco Alemão71, o importante conceito de constelação. Benjamin tentava

demonstrar, com esse conceito, que há poderes expressivos na linguagem que estão

para além de sua expressão em estruturas conceituais. Em resumo, Benjamin busca

uma concepção mais profunda de experiência do que aquela legada pela tradição

metafísica. Roger Foster resume a pretensão de Benjamin com essa iniciativa:

No estudo do Trauerspiel, Benjamin pretende descobrir o potencial expressivo de uma forma linguística particular, a alegoria barroca. (...) O ponto chave da interpretação de Benjamin reside no seu argumento de que é precisamente na arbitrariedade da alegoria, em sua inabilidade para resgatar o ser por meio da sua elevação até a esfera de um sentido ideal que se localiza aquilo que ela expressa. A arbitrariedade da alegoria a permite expressar a verdade que é inacessível aos seus detratores, uma verdade a respeito da falta de liberdade, da imperfeição, da ruptura da sensibilidade, do mundo físico. O drama barroco expressa essa compreensão, não na forma de uma asserção cognitiva, ou em termos de uma matéria subjetiva das suas alegorias específicas, mas através do modo como ela emprega a forma linguística da alegoria mesma. Em outras palavras, se trata de uma verdade que é manifesta na forma alegórica, sem que seja articulada através dela, como um conteúdo comunicável. (...) A alegoria estilhaça a linguagem, de modo a, através dos seus fragmentos, oferecer uma expressão elevada e transformada (FOSTER, 2007, p. 69, tradução nossa).

Adorno vê na concepção benjaminiana de constelação uma maneira de se

contrapor ao primado moderno do sujeito na filosofia tradicional. Em primeiro lugar,

porque a dialética tornou patente que o aparato conceitual não é capaz de expressar

todo o sentido e significado do conteúdo da experiência, e, em segundo lugar, porque

a evidência de que o conteúdo ultrapassa o conceito é o princípio básico da negação

71 Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928)

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determinada, que, já em Hegel, era considerada o motor do movimento da

consciência. Para Adorno, a dialética é a constatação incontornável da insuficiência

do conceito, o que significa, ao mesmo tempo, do primado do conteúdo na

experiência, contrariando a metafísica que tradicionalmente priorizou o sujeito

epistêmico e a forma em detrimento do conteúdo. Para Adorno, “o primado do

conteúdo expõe-se como insuficiência necessária do método” (ADORNO, 2009, p.

49). Foster argumenta que as ideias desenvolvidas por Benjamin são indispensáveis

para fazer sentido do projeto adorniano, na medida em que a ideia de constelação

permitirá a Adorno explicar de que maneira a dialética é capaz de dissolver o aparente

contrassenso imposto pela constatação de que há conteúdos no conhecimento que,

embora ultrapassem a extensão e o alcance da configuração conceitual, devem

necessariamente ser alcançados e expressados conceitualmente.

O interesse de Adorno nessa concepção se deve ao fato de que o conceito

hegeliano de experiência tem como base sua concepção de reconhecimento e sua

teoria da mediação. Em resumo, é preciso ir além da consciência natural para

considerar o objeto como um elemento que possua predicados que ultrapassavam

aquilo que uma primeira observação pode mostrar. Isso é fundamental para a dialética

negativa, uma vez que sabemos que seu ponto central é a ideia de que a

particularidade de um objeto – contrariando Hegel – jamais poderá ser esgotada pelo

aparato conceitual desenvolvido pelo sujeito: é característico do objeto esse

ultrapassamento e é necessário que a dialética faça o sujeito reconhecê-lo. A

constatação dessa insuficiência do conceito, que é apenas um movimento na dialética

hegeliana, é toda a dialética possível, para Adorno. Dessa maneira, não é equivocado

afirmar que a dialética positiva anula a contradição, buscando o resultado positivo na

totalidade do pensamento, enquanto a dialética negativa é o reconhecimento de que

essa tensão entre o idêntico e o não idêntico não se esgota, apenas se renova.

Adorno, ao aprofundar sua crítica ao conceito idealista de mediação, demonstra

o modo pelo qual a dialética hegeliana, uma dialética da diferença e da negatividade,

se transforma em uma dialética positiva, de afirmação do idêntico. O problema, como

já apontado acima, reside não apenas no conceito de mediação, mas sobretudo na

ideia de imediato. É compreensível, na dialética hegeliana, o comportamento da

consciência perante o objeto primeiro, o imediato. A compreensão mais acurada

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desse objeto ocorre através de um processo de recolocação do objeto à consciência

em vista da sua atualização, que decorre da capacidade da dialética para captar o

negativo, a insuficiência do conceito que primeiramente se utilizou para compreensão

da coisa. Em outras palavras, a dialética hegeliana progride a cada embate da coisa

com seu conceito e percepção da sua insuficiência, não por uma inadequação, mas

pelo reconhecimento de que a atividade de conceituar é uma determinação que,

portanto, necessariamente mantém algo do objeto fora do conceito que o determina.

Esse “algo que fica de fora”, e que a consciência, no entanto é sempre capaz de

captar, é precisamente aquilo que, para Adorno, é o núcleo da dialética e o elemento

que nos permite reconhecer a inabalável insuficiência do conceito e a invariável ilusão

em que se baseia a filosofia da identidade: o não-idêntico.

Com certeza, porém, aquilo que não é solúvel em nenhuma conexão preconcebida transcende por si mesmo enquanto não idêntico o seu fechamento. Ele comunica com aquilo de que o conceito o separava. Ele só é opaco para a exigência de totalidade da identidade; ele resiste à sua pressão. Enquanto tal, contudo, ele procura se exprimir. Por meio da linguagem ele se libera do encanto da sua ipseidade. Aquilo que no não-idêntico não pode ser definido em seu conceito excede seu ser-aí singular no qual ele não se concentra senão na polaridade em relação ao conceito, tendendo em direção a ele (ADORNO, 2009, p.141).

Adorno adere a esse processo de mediação como uma mediação do conceito.

Mas o mesmo aponta para uma “equivocidade no conceito de mediação” (ADORNO,

2009, p. 150), de modo que a mediação do conceito é qualitativamente diferente da

mediação do objeto. Hegel não é capaz de admitir essa diferença; sua dialética toma,

portanto, o imediato como algo que, de certa forma, guarda o potencial de seu

desvelamento.

O uso hegeliano do termo concreto, de acordo com o qual a coisa mesma é sua conexão, não a pura ipseidade, registra isso, sem, porém, apesar de toda a crítica à lógica discursiva, desprezar essa última. Mas a dialética hegeliana era uma dialética sem linguagem. Por mais que o sentido mais simples da palavra dialética postule linguagem; nessa medida, Hegel permaneceu adepto da ciência corrente. Em sentido enfático, ele não precisava da linguagem porque tudo nele, mesmo aquilo que é desprovido de linguagem e opaco, deveria ser espírito e o espírito, conexão. Esse pressuposto é irrecuperável (ADORNO, 2009, p. 141)

Deste modo, o objeto indeterminado, não submetido a qualquer determinação,

não existe no sistema hegeliano. Segundo Adorno, há uma indiferenciação entre o

indeterminado e o nada. Uma coisa simplesmente indeterminada “contradiz a doutrina

idealista da subjetividade de todas as determinações”. Hegel trata o particular - cujo

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impulso dialético é precisamente sua “indissolubilidade em conceitos superiores” -

“como se o particular mesmo fosse seu próprio conceito superior”, como se o particular

fosse algo ainda insuficientemente determinado dialeticamente, como se em algum

ponto do progresso dialético o particular pudesse ser desvendado em alguma nova

elaboração do universal, do conceito. A pressuposição de uma identidade

precisamente onde o que há é a afirmação da diferença é o que, para Adorno, torna

a dialética hegeliana idealista72.

Contudo, dessa conclusão se segue que o particular, que cada objeto

individualmente e de fato é, só pode ser atingido por meio da experiência, sem operar

reducionismos, dialeticamente, mas apenas através de constelações de conceitos – e

essa compreensão jamais pode ser esgotada, o que exige que a dialética seja

negativa. A constelação é uma forma conceitual e não-reducionista de contato do

indivíduo com a coisa, do sujeito com o objeto. De acordo com Foster, “a ideia de

constelação provará ser central para a visão adorniana de como a linguagem é capaz

de recobrar suas possibilidades expressivas perdidas sem saltar fora do conceito”

(FOSTER, 2007, p. 59). É possível, para Foster, ler as referências místico-teológicas

de Benjamin como ilustrações da articulação de uma teoria geral do significado

linguístico. Benjamin está interessado em uma formulação da linguagem que esteja

habilitada a revelar um tipo de experiência que não se deixa expressar pelo conteúdo

conceitual. Ele “desenvolverá isso por uma diferenciação entre o conteúdo espiritual

que é comunicado na linguagem e a troca de conteúdos verbais que ocorre através

da linguagem” (FOSTER, 2007, p. 60).

Adorno, em um dos raros momentos em que ilustra sua concepção de

constelação, apresenta a composição, em Economia e Sociedade73, de Max Weber,

de conceitos como o de capitalismo, seguindo a lógica presente na constituição

weberiana de “tipos ideais”. Nesse sentido, Adorno defende que as produções

científicas mais significativas revelam muito corretamente “o modo como os objetos

precisam ser descerrados por meio da constelação” (ADORNO, 2009, p. 142),

apontando que o próprio trabalho científico está à frente do cientificismo - que deveria

ser sua autocompreensão filosófica. Em outras palavras, a atividade científica se vale

72 Cf. ADORNO, 2009, p. 150. 73 Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Soziologie (1922)

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do procedimento constelatório de maneiras pelas quais o cientificismo e o positivismo

não se mostram capazes:

Sem dúvida alguma, ele [Weber] compreendia os ‘tipos ideais’ totalmente no sentido de uma teoria do conhecimento subjetivista, como auxiliares para que nos aproximemos do objeto, auxiliares desprovidos eles mesmos de toda subjetividade e remodeláveis mais uma vez à vontade. Todavia, como em todo nominalismo, (...) os trabalhos materiais de Weber se deixam guiar muito mais pelo objeto do que seria de se esperar segundo a escola alemã do Sudoeste. (...) Em oposição ao exercício científico corrente, Weber percebeu, no ensaio sobre a Ética Protestante... a dificuldade inerente à definição histórica dos conceitos, ao levantar a questão histórica sobre a sua definição de maneira tão clara quanto antes dele somente filósofos haviam feito, Kant, Hegel, Nietzsche. (...) Apesar de suas obras mais maduras, antes de tudo Economia e Sociedade, parecem sofrer por vezes de uma superabundância de definições verbais tomadas de empréstimo à jurisprudência, essas definições, consideradas mais de perto, são mais do que isso; elas não são apenas fixações conceituais, mas muito mais tentativas de expressar, por meio da reunião dos conceitos em torno do conceito central buscado, aquilo a que ele remete, ao invés de circunscrevê-lo com fins operacionais (ADORNO, 2009, p. 142).

A maneira como Weber buscava, em suas composições, ultrapassar os limites

impostos pela mera definição imediata dos conceitos, por meio de um arranjo de

múltiplos conceitos relacionados a uma mesma temática, é utilizada por Adorno como

exemplo de como é possível trabalhar, mesmo na sociologia, por meio desse

procedimento dialético-constelatório, que se contrapõe à maneira tradicionalmente

desenvolvida pela metafísica para se trabalhar com conceitos, que Adorno define

como “procedimento classificatório” e de que, em última análise, nem mesmo Hegel

foi capaz de escapar:

O momento unificador sobrevive sem a negação da negação e mesmo sem entregar-se à abstração enquanto princípio supremo, de modo que não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais universal, mas esses conceitos entram em uma constelação. Essa constelação ilumina o que há de específico no objeto e que é indiferente ou um peso para o procedimento classificatório. O modelo para isso é o comportamento da linguagem. Ela não oferece nenhum mero sistema de signos para as funções do conhecimento. Onde ela se apresenta essencialmente enquanto linguagem e se torna apresentação, ela não define seus conceitos. Ela conquista para eles a sua objetividade por meio da relação na qual ela coloca os conceitos, centrados na coisa. Com isso, ela serve à intenção do conceito de expressar totalmente aquilo que é visado. As constelações só representam de fora aquilo que o conceito amputou no interior, o mais que ele quer ser tanto quanto ele não o pode ser. Na medida em que os conceitos se reúnem em torno da coisa a ser conhecida, eles determinam potencialmente o seu interior, alcançam por meio do pensamento aquilo que o pensamento necessariamente extirpa de si. (Ibidem, p.141).

Há dois pontos de especial relevância nesta ilustração levantada por

meio do trabalho elaborado em Economia e Sociedade. O primeiro é que, apesar

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de fazer referência breve a Benjamin e à Origem do Drama Barroco Alemão,

Adorno, para apresentar sua ideia de constelação, de modo a tentar exemplificar

a composição do processo constelatório, é Max Weber, o que, para Adorno, tem

por objetivo evidenciar que a constelação ultrapassa as barreiras da

autocompreensão filosófica e da metafilosofia. O segundo é o fato de que o

trecho em que Adorno descreve a maneira como a constelação se estrutura por

meio do “pensamento que se apodera da definição em seu desenvolvimento”

(ADORNO, 2009, p. 142) se aproxima da concepção adorniana da filosofia em

sua forma ensaística. Segundo Adorno, é preciso que a filosofia não aceite

conceitos fechados em si, mas que exponha o processo dialético constante e

ininterrupto de vir-a-ser dos conceitos. Assim se torna menos espinhosa a noção

de que um conceito jamais será uma definição pronta e acabada, a não ser

traindo aqueles elementos que a coisa também é, mas que desta foram excluídos

por meio da violência exercida pela exigência de cristalização e acabamento do

conceito.

E é seguindo esse propósito que Adorno apresenta a transformação no

conceito de mediação operada por uma dialética negativa, em vista daquele

proposto por Hegel. Esse conceito ocupa uma posição central na dialética

negativa adorniana, uma vez que não é tanto o resultado da sua dialética

negativa, ou seja, seu conceito de constelação, mas sim as consequências dessa

constelação, em termos de modificação das principais categorias do

pensamento, que estabelecem as diferenças mais expressivas entre uma

dialética idealista e a dialética negativa. O conceito de imediato como algo que

artificialmente se posiciona para a consciência como um domínio exterior a ela –

que depois se mostrará como artificial e, portanto, também pertencente à

totalidade dialética - é modificado pela constelação de conceitos em termos de

uma resistência à dominação. Assim, “o conceito de imediatidade designa

objetivamente aquilo que não pode ser alijado pelo conceito hegeliano”

(ADORNO, 2009, p. 149). A ideia negativa de mediação não estabelece de

maneira alguma que a mediação deve ser compreendida como uma instância

capaz de tudo absorver em suas determinações, mas justamente evidencia que

aquilo por meio do que ela é mediada é algo que não se deixa absorver

(ADORNO, 2009, p. 149).

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A mediação de todo imediato, resultado do impulso pela totalidade da

dialética idealista, se revela, portanto, como uma espécie de postulado, uma vez

que “a diferença escamoteada é passível de ser reconhecida pela dialética”

(ADORNO, 2009, p. 149), através de seu próprio e necessário movimento.

Escamotear a diferença em nome de um desenvolvimento de pensamento

circular e, por isso, totalitário, é o encantamento ao qual sucumbe a dialética

idealista. Não haveria erro, desse modo, em considerar que reside no conceito

de mediação a contraposição, de certa forma metodológica, que Adorno ergue

contra a filosofia hegeliana, da qual decorrem sua crítica do primado do sujeito e

do princípio da identidade, bem como a sua proposição do procedimento

constelatório.

O interior do não idêntico é a sua relação com aquilo que ele mesmo não é e que lhe recusa a sua identidade arranjada, cristalizada, consigo mesmo. Ele só alcança a si mesmo na exteriorização, não em sua cristalização; isso ainda precisa ser aprendido com Hegel, sem fazer concessão aos momentos repressivos de sua doutrina da exteriorização. O objeto abre-se para uma insistência monadológica que é consciência da constelação na qual ele se encontra: a possibilidade de uma imersão no interior necessita desse exterior. No entanto, uma tal universalidade imanente do singular é objetiva como história sedimentada. Essa história está nele e fora dele, ela é algo que o engloba e em que ele tem seu lugar. Perceber a constelação na qual a coisa se encontra significa o mesmo que decifrar aquilo que ela porta em si enquanto algo que veio a ser (ADORNO, 2009, p. 141).

Disto se conclui que a dialética negativa não apresenta um conceito de

espírito precisamente porque naquela o movimento dialético opera por meio de

um processo de mediação que não postula a circularidade da dialética, que

comporia uma totalidade espiritual fechada em si mesma, mas a considera

compondo uma teia aberta, uma cadeia necessariamente mutável de conceitos,

historicamente e materialmente constituídos, que serão mediados por uma

consciência que já foi anteriormente também mediada e constituída

materialmente e historicamente – e que é, portanto, passível de constante

transformação. Adorno é bastante preciso ao demonstrar que a mediação dos

fatos não é concebida por um elemento subjetivo, mas precisamente pela

“objetividade heterônoma em relação ao sujeito” (ADORNO, 2009, p. 149). Essa

objetividade heterônoma resiste constantemente à mediação subjetiva porque

ela própria previamente também compõe aquilo que o sujeito é.

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112

3.4 UMA BREVE APROXIMAÇÃO COM A ARTE: ENSAIO COMO FORMA

Esse desenvolvimento levado a termo por Adorno é facilmente

observável em seu célebre escrito Ensaio como Forma74 e é parte daquilo que

Foster defende como sendo o conceito adorniano de interpretação. Segundo

Foster, Adorno aponta constantemente que há uma diferença entre aquilo que os

signos colocam e o que é compreendido e essa diferença se dá devido à distância

no posicionamento histórico-social entre o indivíduo que fala ou escreve e o

indivíduo que ouve ou lê. A dialética demonstra isso, bem como evidencia que

há uma “ruptura entre comunicação e expressão que está na base da limitação

da experiência cognitiva” (FOSTER, 2007, p. 17). A interpretação seria descrita

por Adorno, Foster explica, como a “recuperação do momento retórico”

(FOSTER, 2007, p. 17) no qual a linguagem relata outras coisas para além do

mero significado. Devido a isso,

um texto de Adorno é mais um processo do que um conjunto de teses explícitas. Ou, em outras palavras, o foco deve estar no que o autor é capaz de mostrar no arranjo de teses específicas, mais do que no conteúdo explícito comunicado” (FOSTER, 2007, p. 17).

Assim, Adorno considera que a filosofia, ao repensar seu conteúdo e o

primado a este concedido pela epistemologia e pela dialética idealista, deve

necessariamente por também atravessar uma reelaboração na sua forma,

precisamente porque a cisão entre forma e conteúdo é uma abstração que tem

sua origem no princípio da identidade.

Disso decorre, conforme vimos, que, para Adorno, a crise, que se

anuncia na práxis, é uma crise da razão, que exige da filosofia uma autocrítica

radical. É essa exigência que direciona o olhar adorniano para a arte75. A

74 Der Essay als Form (1958). 75 Para Safatle (2013), o acontecimento gerador da filosofia adorniana não foi necessariamente a experiência de Auschwitz ou a expectativa de composição de uma filosofia apta a impedir que a barbárie ocorra ou se repita, mas sim a proposta, antevista por Adorno nas “tentativas vanguardistas da estética musical”, de se pensar nas possibilidades filosóficas levantadas pela experiência com a música. A música, especificamente, e a arte de vanguarda de um modo geral, serão estudadas por Adorno do ponto de vista de uma filosofia cuja experiência não se encontra submetida às categorias do princípio de identidade. Safatle ressalta que “para Adorno, mesmo o paradigma do campo de concentração não é resultante de um pretenso mal radical, mas sim da

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Dialética do Esclarecimento contém o germe de um posicionamento que será

mantido por Adorno até a escrita de sua última obra, que permaneceu inacabada,

a Teoria Estética, qual seja, que o primado do pensamento identitário e

totalizante promovido pelos imperativos da lógica, da metafísica e da

sistematicidade do pensamento pode ser superado pela tensa relação entre a

incontornabilidade do pensamento conceitual – para o estabelecimento de um

pensar que pretenda acessar a objetividade – e a expressividade característica

da arte. O pensar esclarecido, contudo, retira da arte o status de conhecimento,

na medida em que esta parece ameaçar o estado de coisas vigente. Contra isto,

Adorno defenderá que a arte possui potencial para firmar o contraponto, a

resistência ao domínio positivista da técnica.

Será preciso, contudo, observar que permanece à espreita o risco de se

confundir filosofia e arte, pelo abandono do pensamento conceitual. Adorno alerta

que a exaltação da arte, como se esta representasse o abandono da

conceitualidade do conhecimento, acaba por radicalizar a consideração

positivista, que exclui a arte do âmbito do pensamento racional e a torna estéril.

Intuição intelectual não é, para Adorno, conhecimento objetivamente válido. E a

arte possui objeto próprio, da mesma forma que o conceito deve ser objeto da

filosofia: é o pensar conceitual que a filosofia manterá a salvo, obrigatoriamente.

Essa é a garantia de objetividade do seu discurso. Se a filosofia abre mão desse

pensamento, abre mão da sua tarefa fundamental, lançando fora suas

pretensões e largando a humanidade ao arbítrio das ideologias do cientificismo.

Desse modo, a relação entre filosofia e arte estará sempre sob o signo

do conflito e é esse conflito deverá dar voz aos outros. Se, para Adorno, “a forma

estrutura paranoica do eu moderno que projeta compulsivamente para fora de si sua própria infelicidade, sua própria impossibilidade de se reconhecer naquilo que não se conforma à imagem de si. Ou seja, ele é de certa forma o extremo de uma patologia vinculada à implementação social da metafísica da identidade. O que leva a perguntar sobre a existência, para Adorno, de um acontecimento capaz de levar o eu a se confrontar com o que parece lhe dissolver, um acontecimento gerador de novas formas de pensar. É nesse ponto que se deve levar às últimas consequências a importância da estética para a constituição do programa filosófico adorniano. Pois nenhuma filosofia pode ser solidária com um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que algo aconteça novamente, etc). Toda verdadeira filosofia traz consigo a exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas instauradoras. (SAFATLE, 2013, p. 219 grifo nosso).

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dedutiva da ciência reflete a hierarquia e a coerção” (ADORNO, HORKHEIMER,

1985, p. 34), o embotamento da razão por meio da limitação da expressividade

linguística, através de critérios de verdade determinados de antemão, é a marca

do mundo administrado e do embotamento da crítica. É isso, precisamente, que

deve ser enfrentado. Em seu escrito O Ensaio como Forma, Adorno contrapõe a

escrita ensaística e sua expressividade característica aos mais refinados

sistemas filosóficos de pensamento e defende abertamente a superioridade da

primeira. O ensaio é, para Adorno, um âmbito privilegiado de expressão da

racionalidade aberta à compreensão das tensões e contradições inerentes à

totalidade social e livre do impulso de sublimá-las. É, para Adorno, condição de

possibilidade para realização efetiva da emancipação humana, que a filosofia

consiga expressar a realidade por meio de critérios de objetividade que não

visem suprimir as contradições do real.

A aproximação do ensaio com a arte não nos deve confundir, contudo. O

ensaio é uma produção teórica que se encontra entre a literatura e a filosofia, no

limiar do conceitual com o poético. Seu potencial reside no estabelecimento de

uma forma específica de contato da razão com o objeto de sua reflexão. Em uma

das várias caracterizações propostas para o ensaio nesse escrito, Adorno afirma

que

O ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, com a complexidade que lhe é própria (...). Se a ciência, falseando segundo seu costume, reduz a modelos simplificadores as dificuldades e complexidades de uma realidade antagônica e monadologicamente cindida, (...) então o ensaio abala a ilusão desse mundo simples, lógico até os seus fundamentos, uma ilusão que se presta comodamente à defesa do status quo” (ADORNO, 2012, p. 33).

Eis a chave: o segredo do ensaio é sua recusa à simplificação, na medida

em que esta opera a coerção do pensamento sobre aquilo que se pensa. Por

isso, para Adorno, o ensaio ergue uma crítica aos procedimentos

epistemológicos modernos, que consolidam a redutibilidade da coisa ao conceito,

fazendo frente a esse destino da razão que absolutiza o método, denunciando

seu reducionismo. Para Adorno, nos processos do pensamento,

A dúvida quanto ao direito incondicional do método foi levantada quase tão somente pelo ensaio. (...) O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade ontológica ao resultado da

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abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido (ADORNO, 2012, p. 25).

A resistência do ensaio ao estabelecimento de uma ordem conceitual

imutável se deve à sua sensibilidade para a mutabilidade do objeto e para o

caráter incontornavelmente histórico do arcabouço conceitual que

compartilhamos intersubjetivamente. A negatividade, que desde Hegel sabe-se

inerente à conceitualidade, unida à complexibilidade imposta pela historicidade

do objeto singular, dos processos de mediação e do contexto social, exigem um

pensamento não reducionista, sob o risco da perda da efetividade do

conhecimento e sua conversão em ideologia.

O ensaio recusa a rigidez da forma, característica do procedimento

filosófico tradicional. Mas recusa também o contato imediato com o objeto que

investiga, como se, passando por cima das mediações, pudesse desvendá-lo em

sua verdade. Sem ceder a qualquer desses extremos, o ensaio mantém um

trabalho de tessitura de amarrações conceituais que se sobrepõem uma à outra,

formando uma rede que faz mais justiça ao que o objeto é, às facetas de sua

existência real. Para Adorno,

o ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada. (...) [Ele] deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha que ser afirmada”. (ADORNO, 2012, p. 35).

Esse esforço é, Adorno ressalta, o esforço da forma. O ensaio rompe

barreiras erguidas por uma linguagem que sedimentou o pensamento. Essa

capacidade, imposta pela exigência da expressividade, é característica da arte e

é precisamente nisso que o ensaio a ela se assemelha. A arte, muito mais que a

filosofia, devido à forma linguística a que essa última obrigatoriamente se

submete, possui uma capacidade de ruptura com formas lógicas tradicionais: seu

potencial reside em rasgar a obviedade a partir de dentro, sem que isso signifique

a obediência a qualquer norma, mesmo quando o material impõe rígidas

delimitações.

Susan Buck-Morss, acerca dessa inclinação da filosofia adorniana para

a arte, resume que é precisamente nesse ponto que a filosofia de Adorno mais

notavelmente rejeita Hegel e Marx:

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O projeto adorniano não se encaixa perfeitamente na tradição filosófica hegeliano-marxista. Rejeitando a concepção de história como progresso e insistindo na não identidade entre razão e realidade, Adorno decisivamente rompe com Hegel; mas, separando a filosofia de toda preocupação com as questões específicas do proletariado, Adorno rompe radicalmente com Marx. (...) Sua compreensão da dialética é moldada mais como uma experiência estética do que, como pretendeu Marx, como uma experiência da produção econômica (BUCK-MORSS, p. xiii, 1977)

O ensaio se encontra, para Adorno, na fronteira entre a arte e a filosofia.

Da filosofia, herda o rigor conceitual que confere ao expressado sua objetividade,

sem falseá-lo. Na arte, busca uma forma de representação que se reconhece

desde sempre não idêntica ao particular que se esforça por representar,

permanecendo apta a desvendar novos horizontes e revelar contradições.

A estabilidade do pensamento é, portanto, a grande inimiga do ensaio.

Sua inclinação por revelar o objeto em sua imanência e historicidade vem do fato

de que “o próprio espírito, uma vez emancipado, é instável” (ADORNO, 2012, p.

60). Essa instabilidade tem lugar na expressividade do ensaio, pela superação

da lógica discursiva tradicional através da afirmação de uma lógica interna que

responde coerentemente às exigências do próprio objeto e não à imposição

lógico-formal sistematizante do sujeito. Aqui é possível fazer um retorno à

Dialética do Esclarecimento: a tentativa de impor a estabilidade à força esvazia

a razão em sua maior pretensão, a de construir um caminho firme e linear em

direção à felicidade.

Nisso reside a dialética interna ao esclarecimento: a dominação da

natureza com o objetivo de garantir as condições para a felicidade desejada pela

humanidade se converte em violência e em sofrimento. Adorno afirma que “a

consciência científica sempre foi comprometida com o princípio de realidade e,

com este, inimiga de qualquer felicidade” (ADORNO, 2003, p. 41). O ensaio, por

seu potencial de superação da lógica discursiva impositiva, cuja origem se

encontra em seu parentesco com a arte, está apto a fazer frente a esta

consciência, que, ainda hoje, consolida a supremacia de visões de mundo

autocráticas e totalitárias.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou apresentar uma leitura concisa de parte do

percurso filosófico traçado por Adorno para embasar sua tese de que a

confrontação que ainda é possível à filosofia com estado de coisas vigente na

contemporaneidade é, em parte, também uma autocrítica que a filosofia deve

promover acerca da tradição metafísica. Partindo da Dialética do Esclarecimento

foi possível encontrar, na produção filosófica de pensadores cuja influência foi

fundamental para Adorno – mais notavelmente Kant e Hegel – os pressupostos

teóricos que sustentam o desenvolvimento adorniano de sua chamada dialética

negativa.

É perceptível que, para Adorno, a crítica da metafísica é somente parte

integrante de um projeto maia amplo, a crítica da sociedade contemporânea. Esta

se encontraria, segundo Adorno, presa quase que irremediavelmente na rede de

valores e visões de mundo que opera, tal como uma força invisível, a propagação

das ideologias do sistema econômico capitalista. Sob o imperativo da geração de

lucro por meio da extrema exploração de recursos e pessoas, o Ocidente

institucionalizou uma forma de organização social, a sociedade administrada,

capaz de aprofundar desigualdades ao ponto de criar ilhas de extrema riqueza e

luxo ao mesmo tempo em que condena literalmente à morte populações inteiras,

submetidas à condições de vida sub-humanas nas periferias capitalistas, ao

mesmo tempo em que propaga entre os indivíduos de modo brilhantemente

eficaz a ideia de que sucesso é o bem-estar estão disponíveis ao acesso de todas

aquelas e todos aqueles que se dedicarem ao trabalho e se provarem

merecedores. Em outras palavras, a calamidade está instaurada em todas as

instâncias da vida social, mas a racionalidade vigente legitima esse estado de

coisas, por meio da ciência, da moral, da religião, da política e da cultura. Sua

forma mais flagrantemente violenta é o fascismo.

Portanto, o projeto adorniano de crítica da razão – em todos os seus

desdobramentos, desde a metacrítica da teoria do conhecimento até seus

trabalhos sobre teoria estética – possui como horizonte e motivação maior a

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percepção da necessidade de uma radical crítica social. Safatle (2019) explora

essa confluência temática na filosofia de Adorno ao alertar que

Devemos dizer que as opções filosóficas do pensamento adorniano são imediatamente opções práticas, são posições a respeito da recusa em sustentar a rede de orientações práticas que naturaliza formas hegemônicas de vida. Essa recusa é feita em nome de possibilidades concretas de emancipação que exigem uma articulação cerrada entre crítica social e crítica da razão, ou ainda entre crítica da economia política (historicamente situada) e crítica da racionalidade instrumental (que se confunde com a consolidação do horizonte da razão instrumental) (SAFATLE, 2019, p. 20).

Adorno constata, ao longo de sua produção intelectual, que a raiz mais

profunda da lógica da dominação social é o seu impulso pela identidade. Pensar,

desde os tempos mais remotos, é identificar. Em uma análise da mitologia grega,

Adorno conclui que o impulso humano pelo controle de todas as ocorrências de

sua vida e pela sujeição da natureza e de outras pessoas à realização das suas

necessidades e interesses já se encontra no berço da filosofia Ocidental, a

mitologia grega. Trata-se do impulso pela identidade. Desde a Antiguidade,

pensar é tornar idêntico. Entender o mundo, na filosofia via de regra Ocidental, é

submeter os fenômenos da realidade objetiva à lógica de funcionamento dos

raciocínios operados pelo sujeito, até que não reste nada no mundo que não

tenha sido submetido à norma do pensamento racional. A segunda constatação

de Adorno é que não é possível ao ser humano fugir desse padrão de

pensamento. Não há outra norma. Porém, é possível que essa mesma lógica de

funcionamento do raciocínio humano encontre brechas. O esforço que a razão

empreende para operar a identificação entre pensamento e coisa também revela

que essa identificação não é imediata. Mais que isso: ela é falha. A contradição

no pensamento é um sinal, um sintoma recorrente dessa falha, e a razão humana

sempre se mostrou capaz de pensar a partir da contradição: essa é a função da

dialética.

À consciência do caráter de aparência inerente à totalidade conceitual não resta outra coisa senão romper de maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio critério, a ilusão de uma identidade total. Todavia, como aquela totalidade se constrói de acordo com a lógica, cujo núcleo é formado pelo princípio do terceiro excluído, tudo que não se encaixa nesse princípio, tudo que é qualitativamente diverso, recebe a marca da contradição. A contradição é o não-idêntico sob o aspecto

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da identidade; o primado do princípio de não-contradição na dialética mensura o heterogêneo a partir da unidade. Chocando-se com seus próprios limites, esse pensamento ultrapassa a si mesmo. A dialética é a consequência consciente da não-identidade (...). O pensamento é impelido até ela a partir de sua própria e inevitável insuficiência (ADORNO, 2009, p. 13)

Assim alcançamos o núcleo da filosofia de Adorno: uma crítica da razão

abrangente o suficiente para viabilizar a crítica da sociedade moderna submetida

à ideologia capitalista deverá, sem objeções, ser dialética. Para realizar esse

feito, Adorno mergulha em um projeto de reconfiguração da tradição dialética,

esmiuçando toda a história da filosofia e detendo-se em autores cujo trabalho,

para Adorno, é incontornável. Kant e Hegel serão filósofos a cuja obra Adorno se

dedicará durante toda a vida e é da leitura das obras de ambos – juntamente com

o estudo dos escritos de Walter Benjamin – que Adorno toma a inspiração para

dar corpo a sua própria filosofia, transformada em uma dialética negativa.

De Kant, Adorno toma a percepção da incontornabilidade do conceito.

Toda forma de saber que reclama validade deverá resultar de uma operação que

aplica a intuição às categorias. Entre outras contribuições, coube a Kant

demonstrar a invalidade da intuição intelectual e de qualquer outra forma de

conhecimento de acredita alcançar o objeto sem lançar mão da mediação

conceitual. Qualquer sistema de pensamento que procure fugir disso estaria

marcado com o signo do irracionalismo. Contudo, de Hegel, Adorno recusa a

suspensão da negação determinada em nome do acabamento de um sistema de

pensamento que pretende aglutinar todas as determinações de uma realidade

específica, ao apontar que esse procedimento é não dialético.

E qual seria o lugar privilegiado para uma filosofia disposta a pensar e

transformar a arte? Adorno vê potencial na estética. A arte será, sobretudo em

trabalhos adornianos de maturidade, uma instância privilegiada de saber, na

medida em que é capaz de reconhecer e revelar o não-idêntico, que resiste às

formas tradicionais de enunciação dos conhecimentos, bem como abre espaço

para a anunciação de formas legitimamente emancipadas de vida.

Legitimamente porque não é do interesse da arte suprimir as contradições que

constantemente se deflagram na totalidade social, mas expressá-las naquilo que

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possuem de mais verdadeiro: sua abertura para a mudança, mas, sobretudo, sua

resistência.

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