a função de negação do professor ( docência dialética e negação em herbert marcuse)

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Unesp Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras – FCL Campus de Araraquara Bruno Perozzi da Silveira A Função de Negação do Professor

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Monografia para a conclusão do bacharelado em Ciências Sociais

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Page 1: A Função de negação do Professor ( Docência dialética e negação em Herbert Marcuse)

Unesp Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”

Faculdade de Ciências e Letras – FCL

Campus de Araraquara

Bruno Perozzi da Silveira

A Função de Negação do Professor

Araraquara - SP

2010

Page 2: A Função de negação do Professor ( Docência dialética e negação em Herbert Marcuse)

Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”

Faculdade de Ciências e Letras – FCL

Campus de Araraquara

Bruno Perozzi da Silveira

A Função de Negação do Professor

Monografia, apresentada ao

Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências

e Letras – Unesp/Araraquara como requisito para a

obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Paula Ramos de Oliveira

Araraquara

2010

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Page 3: A Função de negação do Professor ( Docência dialética e negação em Herbert Marcuse)

Bruno Perozzi da Silveira

A Função de Negação do Professor

Monografia, apresentada ao

Departamento de Ciências da Educação da Faculdade de Ciências

e Letras – Unesp/Araraquara como requisito para a

obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Paula Ramos de Oliveira

Data de aprovação: __/__/____

Membros componentes da banca examinadora:

Prof

Prof

Prof

4

4

Page 4: A Função de negação do Professor ( Docência dialética e negação em Herbert Marcuse)

SUMÁRIO

Introdução.............................................................................................................. 6

1. Trabalho Enquanto Categoria Central da Ontologia Marxista....................... 7

1.1 Atividade vital como “manifestação de si” do homem................................ 9

1.2 Trabalho Alienado.......................................................................................... 12

2. O conceito de Negação na dialética...................................................................... 15

3. O Pensamento Unidimensional: Abreviação do Pensamento Conceitual e da

Reflexão............................................................................................................................ 18

3.1 Abreviação do pensamento conceitual.................................................................... 23

4. Conclusões.............................................................................................................. 34

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Introdução

O que se propõe ao atribuir uma função de negação ao professor é que frente às

condições produzidas pela sociedade industrial desenvolvida (mesmo em seus campos

periféricos) e tomadas as prerrogativas da Teoria Crítica, apresenta-se a necessidade de uma

prática docente como negação. Essa proposição será mais bem explicada ao desenvolvermos

uma análise de diversos conceitos que buscam compreender, interpretar e apresentar

alternativas à realidade dada. Essa análise nos levará a uma abordagem crítica da ideologia

da sociedade contemporânea onde posteriormente situaremos a crítica mais específica aos

moldes educacionais em vigor e, finalmente à atribuição de uma função de negação como

prerrogativa a uma prática docente que vise alternativas aos moldes dados e, no limite, à

educação para a emancipação. O caminho em que se desenvolvem essas análises é o da

Teoria Crítica da sociedade, principalmente aquela desenvolvida pelos teóricos do Instituto

de Pesquisa Social de Frankfurt, em especial Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno. Porém,

para se chegar às proposições desses autores é necessário empreender uma análise dos

conceitos ontológicos marxistas, assim como os fundamentos psicológico-subjetivos, de

fundamentação freudiana, presentes nas análises frankfurtianas. Assim, na primeira parte da

presente monografia será feito um breve levantamento acerca de conceitos chaves da análise

marxista, tais como Natureza Humana, Trabalho e Negação.

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1. Trabalho Enquanto Categoria Central da Ontologia Marxista.

Ao partir da análise desses conceitos dentro de uma concepção materialista-histórica

dialética fica claro que se tratam de “enunciados diretos sobre um certo tipo de ser, ou seja,

são afirmações ontológicas”(LUKÁCS, 1979, p.11). Portanto, é usual no que diz respeito à

produção teórica das correntes de pedagogia crítica, mais especificamente da chamada

Pedagogia Histórico-Crítica, um levantamento desses enunciados ontológicos como prévia

imprescindível à problemática ulterior. Apesar da necessidade de tal levantamento parecer

importante frente aos objetivos e ao método aqui empregado, cabe uma rápida justificativa

acerca dessa recorrente prática. Para tanto utilizarei a abordagem que Gyorgy Lukács faz ao

tratar da questão da ontologia do ser social e da centralidade dessa questão dentro da obra de

Marx.

Lukács ao tratar, no capítulo quarto da primeira parte da “Ontologia do Ser Social”

(1979), dos princípios ontológicos fundamentais de Marx, encontra-se frente a uma situação

paradoxal: por um lado as afirmações presentes nos enunciados concretos da obra marxiana

são afirmações claramente ontológicas, pois, como dito acima, tratam de um tipo de ser; por

outro lado, não existe em Marx uma sistematização que trate especificamente dos problemas

ontológicos. Esse paradoxo decorre do fato de a base primeira da análise marxista ser,

mesmo que a partir de uma abordagem crítica, a filosofia hegeliana. Esta propõe uma

unidade, dentro da idéia de sistema, entre a ontologia, a gnosiologia e a dialética. Esta

unidade ─ que em Hegel é a unidade sob a totalidade da Razão, na qual o processo

ontológico universal é o processo em que a história se molda sobre o processo metafísico do

ser, de tal maneira que esse “sistema ontológico fechado, (...) acabava por se identificar com

o sistema racional da história” (MARCUSE, 1978, p.286) ─ influencia claramente os

primeiros escritos do jovem Marx, ainda que sejam propostos sobre termos materialistas; ou

seja, a totalidade que sua dialética supõe é a totalidade de uma condição histórica, a

totalidade de uma forma particular de sociedade). Portanto, “é natural que o jovem Marx não

pudesse chegar a uma colocação ontológica direta e consciente em seus primeiros escritos”

(LUKÁCS, 1979, p.12), influenciado que estava pelo método dialético hegeliano.

Torna-se necessário nesse ponto fazer uma breve contextualização da dialética marxista

inserida no momento histórico em que foi desenvolvida, para que se possa compreender

como ocorre a “virada materialista” da qual fala Lukács se referindo ao “processo dissolução

da filosofia hegeliana” (LUKÁCS, 1979, p.12).

Após a morte de Hegel torna-se necessária uma profunda revisão da filosofia até então

desenvolvida na Alemanha, sob os domínios do idealismo. Dentre os sucessores daquele

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destaca-se L. Feuerbach, que empreende aquilo que Lukács (1979) denomina como uma

virada materialista de caráter ontológico, ao confrontar ─ pela primeira vez na Alemanha ─ o

idealismo hegeliano ao materialismo ─ que Feuerbach retoma do século XVIII ─ e ao

propor, dessa maneira, uma nova orientação ontológica. Segundo Lukács, Marx reconhece

nas proposições feurbachianas a única tentativa filosófica a ser tratada com seriedade no

período de dissolução da filosofia hegeliana, porém não deixa de reconhecer os limites dessa

“virada” principalmente no fato de Feuerbach não tratar de maneira central o problema da

ontologia do ser social, problema esse que é central na análise marxista. Essa crítica fica

clara na passagem que Lukács seleciona do capítulo sobre Feuerbach da Ideologia alemã:

“Enquanto Feuerbach é materialista, não trata da história e, quando aborda a história, não é

materialista” (LUKÁCS, 1979, p.13).

Em sua dissertação de doutoramento Marx faz uma crítica fundamental a Kant por este,

ao criticar as provas da existência de Deus e, partindo de uma visão lógico-gnosiológica,

fazer uma desvinculação entre representação e realidade, retirando o caráter ontológico do

conteúdo da crítica e não levando em conta o papel efetivo que a representação pode conter

dentro da realidade social. Segundo Lukács, para Marx é a realidade social o critério do ser

ou do não-ser social de um fenômeno ─ assim, mesmo que o fenômeno seja imaginado

(como Deus, por exemplo), pode ter um papel relevante no ser social. Marx, fundamentando-

se na filosofia de Hegel, observa que as entidades sociais têm um caráter de ser concreto, fato

que torna imprescindível uma investigação ontológica.

Nos chamados Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, Marx inova ao criticar a

especialização da economia colocando as categorias econômicas como categorias de

produção e reprodução da vida humana, o que possibilita uma análise ontológica do ser

social com bases materialistas. Ao empreender tal análise ele ultrapassa os limites do

materialismo de Feuerbach, superando a dicotomia persistente entre natureza e sociedade,

pois funda sua análise dos problemas da natureza a partir da visão de sua interrelação com a

sociedade, “o problema da natureza aparece aqui sob uma luz ontológica completamente

nova” (LUKÁCS, 1979, p.15). Ao tratar da produção e reprodução da vida humana enquanto

problema central, Marx vê-se, segundo Lukács, frente a uma dupla determinação, que

perpassará toda sua obra: a existência de uma base natural e a transformação ininterrupta

dessa base.

Essa transformação da base natural, que produz e reproduz a vida humana, acaba por

gerar um conjunto das categorias sociais puras que constitui a especificidade do ser social,

porém, segundo Lukács:

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Esse ser (social) não apenas se desenvolve no processo concreto material de sua gênese a partir do ser da natureza, mas também se reproduz constantemente nesse quadro e não pode jamais se separar de modo completo ─ precisamente em sentido ontológico ─ dessa base. (LUKÁCS, 1979, p.19).

Fica claro, portanto, partindo da análise de Lukács, a necessidade imprescindível de um

levantamento das categorias ontológicas, pois, como acima explicitado, a análise marxista

parte da pressuposição de que as entidades sociais têm um caráter concreto de ser, e que

justamente por sua dupla determinação, ou seja, pela existência e inalienabilidade da “base

natural”, e apesar da sua ininterrupta transformação pela ação humana ─ até mesmo no

sentido de criação daquilo que Marx descreve enquanto categorias sociais puras ─, não se

pode jamais desligar a análise dessa base.

Após esse breve intróito será desenvolvida uma análise acerca da categoria central

dessa problemática, ou seja, o conceito de Trabalho, categoria que é determinante na análise

marxista.

1.1 Atividade vital como “manifestação de si” do homem

O ponto de partida para se fazer um levantamento acerca da Natureza Humana é o

conceito de “atividade vital”, presente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844,

de Marx. Essa atividade vital, segundo N. Duarte, em sua dissertação de doutoramento, “é

aquela que reproduz a vida, é aquela que toda espécie animal (e também o gênero humano)

precisa realizar para existir e reproduzir a si própria enquanto espécie” (DUARTE, 1992,

p.18). Essa atividade assegura, dessa maneira, a existência de uma espécie, é a forma de

relacionar-se do indivíduo para com a espécie e da espécie para com a Natureza. No caso do

gênero humano essa atividade detém uma característica fundamental, que a torna específica e

diferenciada: a necessidade contínua de produção e reprodução das condições materiais de

existência. Segundo Marx o homem realiza o “primeiro ato histórico” ao produzir os meios

de satisfação de suas necessidades básicas de existência. “Pode-se distinguir os homens dos

animais pela consciência, pela religião, ou por tudo que se queira. Mas eles próprios

começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida”

(MARX & ENGELS 1977, p.27; grifo no original). Ao fazer isso o homem acaba por

produzir uma realidade humanizada, pois sua atividade humaniza a natureza ao seu redor,

transformando-a em seu “corpo inorgânico”, ao mesmo tempo em que humaniza a si mesmo.

A atividade vital humana é a manifestação de si do homem, ou seja, ao transformar o mundo

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objetivamente o homem transforma sua subjetividade. Esse primeiro ato histórico, essa

realidade humanizada, passa a ser também objeto da apropriação do homem e a partir dessa

primeira apropriação surgem novas necessidades, de novos tipos, que exigem novos atos,

novas atividades produtivas, que serão também objeto de apropriação em um processo

infinito.

Quando o homem cria a realidade humana apropriando-se da realidade natural, ele

transforma o objeto para que possa servir a sua atividade. Este se transforma em instrumento,

e mesmo que não perca totalmente sua lógica natural, passa a ser também resultante da

vontade e da atividade humana, ou seja, ao passar pelo processo de objetivação e apropriação

do homem o objeto passa a ter um novo significado, torna-se um objeto humanizado,

portador da atividade humana nele objetivada, desse modo agrega novas funções, passando a

ser portador de funções diversas daquelas naturais, funções cuja significação é gerada pela

atividade social, ou seja, pelas funções sociais. Em resumo:

O homem se apropria da natureza objetivando-se nela para inseri-la em sua atividade social. Sem apropriação da natureza não haveria a criação da realidade humana, não haveria objetivação do homem. Sem objetivar-se através de sua atividade o homem não pode se apropriar de forma humana da natureza. (DUARTE, 1992, p.24)

A atividade humana é uma atividade originariamente coletiva, portanto é

imprescindível para sua realização a atividade de comunicação que surge da carência de

intercambio de experiências entre os homens. O processo de objetivação e apropriação dessa

atividade comunicativa acaba por gerar a linguagem,

A gênese da linguagem, enquanto objetivação do pensamento humano é ao mesmo tempo a história da apropriação, pelo pensamento, das estruturas de comunicação que vão sendo objetivadas na linguagem. Essas estruturas são apropriadas pelos homens transformando-se em estruturas do pensamento, num processo infinito. (DUARTE, 1992, p.26)

A linguagem deve ser entendida dessa forma, como a síntese do pensamento, ou seja,

como a acumulação da atividade histórica e social de comunicação que é apropriada pelo

homem.

Marx compreende a atividade vital humana como um ato de nascimento, ou seja, um

processo dinâmico, no qual o fato de o homem produzir seus meios de vida acaba por

distingui-lo dos demais animais; esse processo é o início da história social humana e o fato de

ter e fazer história, é o traço essencial do homem. Quando Marx coloca dessa maneira, a

atividade humana, o trabalho, enquanto ato de nascimento, ele o coloca enquanto um “ato

que se supera”, parte assim de uma dupla determinação, ou seja, da permanência de uma

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dependência do intercâmbio com a natureza, indispensável para a realização da objetivação, e

da tentativa de definir quais são as “máximas possibilidades concretamente existentes de vida

humana” (DUARTE, 1992, p.52), como superação contínua e infinita do ato de nascimento,

da atividade vital humana.

Para Marcuse, no capítulo sobre os fundamentos da teoria dialética da sociedade

contido no livro “Razão e Revolução” (1978), as categorias marxistas são ao mesmo tempo

negativas e positivas. É sobre essa dupla determinação, pressuposto do método dialético, que

Marx constrói sua crítica da alienação do trabalho. Ou seja, deve-se partir da concepção

positiva de trabalho para chegar a sua forma alienada e, partindo da crítica dessa forma,

chegar à proposição de novas formas de superação. Assim o trabalho, em um primeiro

momento é entendido enquanto realização humana, enquanto “atividade existencial” do

homem, sua atividade livre e consciente, não sendo somente um meio de conservação da

vida, mas um meio de realização da essência universal do homem; essa essência expressa as

possibilidades de realização do homem na direção do processo histórico de humanização.

O processo de trabalho determina a totalidade da existência humana, sendo a base de

todas as formas de sociedade, através do trabalho o homem humaniza a natureza ao seu redor

criando uma realidade humanizada. Ao fazer isso o homem humaniza a si mesmo.

No trabalho o homem realiza a sua humanidade, reconhece a si, e aos outros homens

enquanto humanos e sociais. Dessa forma, através do trabalho o homem produz e reproduz

sua humanidade. Porém:

A relação dos seres humanos com suas objetivações é de início, na história humana, uma relação alienada porque o desenvolvimento da genericidade humana tem se realizado através da divisão social do trabalho e da propriedade privada. Esse foi o caminho possível, através do qual o gênero humano superou os estágios iniciais do processo de humanização, nos quais a objetivação se realizava em limites muito reduzidos. (DUARTE, 1992, p.59)

A divisão social do trabalho acaba por gerar processos contraditórios. Por um lado é a

forma histórica do desenvolvimento da atividade humana, da relação do homem com a

natureza, é a forma sob a qual o gênero humano caminha no sentido da universalidade. Esse

processo, porém, realiza-se sobre a vida dos indivíduos alienando-o dos resultados de sua

atividade, divide o homem e a sociedade de tal maneira que o produto de seu trabalho, sua

humanidade objetivada aparece como estranha ao indivíduo, como uma força separada. As

forças produtivas aparecem agigantadas por sobre os indivíduos, o trabalho perde seu caráter

de realização total do homem passando a ser uma força que o domina e o separa de sua

essência; mero meio de subsistência. Dessa maneira a divisão do trabalho e o surgimento da

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propriedade privada acabam por desumanizar o homem ao mesmo tempo em que criam um

domínio total do gênero humano sobre a natureza.

1.2 Trabalho Alienado

Ainda nos Manuscritos de 1844, Marx descreve a forma de trabalho da sociedade

moderna como sendo a “alienação total” do homem, já que a divisão social do trabalho não

leva em conta as aptidões individuais e nem mesmo se interessa pelo todo, baseando-se

somente nas leis de produção capitalistas. A mercadoria determina, dessa forma, o fim e a

natureza da atividade humana. Ao questionar qual seria o sentido desse modo de trabalho

para o desenvolvimento humano, Marx ultrapassa a Economia Política clássica ─ que analisa

as instituições, relações e leis econômicas como uma ciência especializada, de maneira

fragmentada, enquanto partes de uma forma histórica dentro da qual a humanidade deve

prosseguir “naturalmente” em seu caminho ─, pois questiona a essência genérica dos fatos

econômicos, ou seja, ao analisar as bases materiais do modo de produção da sociedade

moderna, Marx parte de uma visão ontológica dessas bases. O estudo de economia de Marx é

conduzido tendo em vista “a questão de saber se a economia realiza a Gattungswesen

(universelles Wesen) ─ essência genérica (essência universal) ─ do homem”. (MARCUSE,

1978, p.253).

Ao propor que a verdadeira natureza humana estaria na sua universalidade Marx

retorna metodologicamente a Hegel e a Feuerbach. A crítica se dá necessariamente em

termos filosóficos, porque a dominação do modo de produção vigente ultrapassa as

categorias puramente econômicas por afetarem as bases da existência humana. Portanto, ao

colocar como conditio sine qua non a universalidade da realização humana e assim supor que

“o homem só é livre se todos os homens forem livres e existirem enquanto ‘seres

universais’.”, Marx se aproxima do conceito de Razão de Hegel, chegando até mesmo a

propor a auto-realização humana sob termos da unidade entre o pensamento e o ser.

Marcuse faz um levantamento da concepção marxista de alienação do trabalho partindo

de alguns pressupostos. Primeiramente da alienação do trabalhador para com o produto de

seu trabalho, e depois da alienação do trabalhador consigo mesmo. Segundo sua visão, a

situação do trabalhador é paradoxal, pois quanto mais ele produz sob o regime capitalista,

mais se tornam limitados os seus meios de se apropriar do produto de seu trabalho, visto que

quanto mais aumenta a produção, maior e mais concentrado se torna o poder do capital e

mais submetido fica o trabalhador. “O trabalho se torna, pois, vítima de um poder que ele

mesmo criou” (MARCUSE, 1978, p.255). Além disso:

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O objeto que o trabalho produz, o seu produto, é enfrentado como uma entidade alheia, como uma força que se torna independente do seu produtor. A realização do trabalho é a sua objetificação. Sob as condições econômicas dominantes, esta realização do trabalho aparece como seu oposto, como negação (Entwirklichung) do trabalhador. A objetificação aparece como a perda do objeto e a escravização pelo objeto, e a apropriação como alienação e expropriação. (MARCUSE apud MARX, 1978, p.255; grifos no original)

O trabalho torna-se, assim, um objeto do qual o trabalhador não pode apropriar-se, pois

quanto mais objetos ele produz, mais lhe são negados esses objetos. Ao alienar-se dos objetos

produzidos pelo seu trabalho o trabalhador aliena-se de si mesmo, pois ao ser expropriado de

seu próprio trabalho ─ que é tornado propriedade alheia ─ perde sua essência. A forma

ontológica de trabalho, ou seja, como auto-realização humana, como possibilidade de

desenvolvimento em plenitude das potencialidades humanas, é invertida em uma deformação

que contradiz a natureza própria do homem, “mortifica o corpo e arruína a mente. Por

conseguinte ele (o trabalhador) começa a sentir que está consigo mesmo quando se livra do

trabalho, e apartado de si mesmo quando trabalha.” (MARCUSE apud MARX, 1978, p.256).

Frente a essa inversão a função do trabalho (de realização plena do indivíduo) reduz-se a um

meio de satisfação das necessidades externas e impostas; consequentemente o homem sente-

se humano e livre quando realiza suas funções mais animalescas (como beber, comer,

procriar, etc.), e torna-se animal quando executa suas funções humanas, posto que estas ─

sob essa forma alienada de trabalho da moderna sociedade ─ negam a Gattungswesen, a

essência genérica do homem.

Essa alienação leva à divisão do trabalho que é característica da sociedade de classes e

que de maneira alguma é superada pela forma burguesa de liberdade: a liberdade formal e

abstrata do indivíduo isolado. Esse isolamento é resultado da separação do trabalho de seu

objeto, da alienação do homem pelo homem. A mercadoria torna-se a mediação necessária

entre os indivíduos de tal forma que estes acabam isolados em suas atividades particulares,

entrincheirados uns contra os outros, ligados mais pelas mercadorias que trocam e consomem

do que por sua condição comum de gênero e espécie e, assim, “ao alienar-se de si mesmo, o

homem se afasta de seus semelhantes.” (MARCUSE, 1979, p.257).

Os homens, sob o sistema capitalista, se relacionam através das mercadorias que

possuem e trocam. Essas relações tomam a forma objetiva de relações entre coisas, naquilo

que Marx descreve como o processo de reificação (Verdinglichung). Assim, a interação dos

indivíduos com a sociedade, sua participação efetiva no processo social é determinada pelas

mercadorias que eles possuem. Essa condição determina seu padrão de vida, seu poder, e

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mesmo sua liberdade e a satisfação de seus desejos. O caráter de isolamento dos indivíduos

na forma de trabalho da moderna sociedade gera esse fetichismo da mercadoria. A soma do

trabalho dos produtores isolados determina o “trabalho social conjunto”, porém,

Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. (MARX, 1988, p.71).

O processo de reificação acaba por gerar uma aparência de naturalidade às relações

sociais mediadas pela mercadoria, pois coloca essas relações dentro de uma totalidade de

relações objetivas. Desse modo todo o processo de alienação do trabalho é recoberto por uma

aparente objetividade. Portanto, desse ponto de vista, não há exploração se os salários

expressam ─ objetivamente ─ o valor (monetário) do trabalho. A criação de lucros é fruto da

capacidade peculiar do empresário que conscientemente soube empregar o capital disponível.

Não existe assim opressão, iniquidade ou espoliação no processo produtivo, a relação entre

capital e trabalho é uma relação objetiva e a ciência econômica aparece então como uma

ciência especializada que analisa o processo social a partir de sua aparente naturalidade. Essa

análise relega o homem à condição de mera “quantidade matemática objetiva” (MARCUSE,

1979, p.257).

Para Marcuse a teoria marxista rejeita essa visão, pois ao analisar ontologicamente as

relações econômicas entre os homens chega à compreensão de que se trata de “relações

existenciais”. Ou seja, quando se investiga a origem desse modo de produção retira-se sua

aparência de objetividade natural chegando à realidade de que o modo de produção

capitalista é uma forma histórica e específica de existência dos homens. Ao fazer essa

investigação, as relações econômicas são desprovidas de seu caráter mistificador aparecendo

como a negação da humanidade. Dessa maneira, quando “esse conteúdo vem à tona, a teoria

econômica se transforma numa teoria crítica.”, pois “os fatos objetivos ganham vida e

passam a acusar a sociedade. As realidades econômicas exibem sua negatividade própria.”

(MARCUSE, 1979, p.259; grifo nosso)

Chega-se nesse ponto a uma questão chave dentro da análise dialética da sociedade: o

fato de a negação ─ inerente à realidade ─ ser o princípio motor e criador. Essa centralidade

da negação remonta à filosofia de Hegel, sendo desenvolvida, posteriormente, dentro da

visão materialista-histórica, por Marx.

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2. O conceito de Negação na dialética

Marcuse remonta, na Ideologia da Sociedade Industrial (1979), à filosofia clássica para

demonstrar a tensão dialética básica proposta por Platão: a tensão entre o “é” e o “deve”.

Essa dialética de tensão enuncia o caráter negativo da realidade empírica, pois julgada a

partir de sua essência e ideia a existência empírica, dos homens e coisas, aparece como

diferente daquilo que realmente é. Assim o pensamento opõe sua verdade ao que é dado, ou

seja, a realidade em questão. Essa verdade aparece então como Ideia, e em termos de

realidade dada, como potencialidade.

Mas a potencialidade essencial não é como as muitas possibilidades contidas no universo da locução e ação em questão; a potencialidade essencial é de ordem muito diferente. Sua realização compreende a subversão a ordem estabelecida, pois pensar de acordo com a verdade é um compromisso de existir de acordo com a verdade. [...] Assim, o caráter subversivo da verdade impõe ao pensamento uma qualidade imperativa. A lógica se concentra em julgamentos que são, como proposições demonstrativas, imperativos ─ o predicado “é” implica um “deve”. (MARCUSE, 1979, p. 133; grifo no original).

Marcuse reitera que esse caráter bidimensional, essa característica contraditória do

pensamento, é pressuposto essencial não somente à lógica dialética, mas também a qualquer

Filosofia que se preocupe realmente com a análise da realidade.

Todo fato traz em si a negação de possibilidades reais, da potencialidade. Assim, por

exemplo, o trabalho alienado, mais do que um fato em si, é a negação do trabalho livre para a

satisfação das necessidades reais dos homens e a propriedade privada é a restrição da

possibilidade de apropriação coletiva dos meios produtivos pelos homens1.

A práxis humana incorpora em seu cerne a negatividade. Ao negar a forma livre e

universal de trabalho humano ─ através do trabalho alienado e da forma total de alienação,

ou seja, a propriedade privada ─ a sociedade capitalista carrega em si sua própria

negatividade, e para a teoria marxista carrega também o caminho para a superação dessa

negatividade. Ao levar às contradições da sociedade de classes essa negatividade atua como

“motor do progresso social”.

A negatividade dentro da visão dialética marxista é uma condição histórica, uma

condição social associada a uma forma definida de sociedade. Essa sociedade é a sociedade

1 Deve-se ter claro que a apropriação coletiva dos meios de produção não é, para a teoria marxista, um fim em si. A socialização desses meios não passa de um fato econômico, cabendo aos homens, a maneira como estes utilizarão esses meios socializados, a transformação efetiva da ordem social. A abolição da propriedade privada será efetivada de maneira total se indivíduos livremente associados se tornarem senhores desses meios socializados.

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de classes e, portanto, a negatividade que movimenta a dialética através das contradições é a

negatividade das relações de classes. Quando Marx retira a base ontológica do sistema

fechado ─ sob a totalidade da razão ─ hegeliano para aplicá-la ao processo histórico de

reprodução social, transforma o método dialético em um método histórico. Essa posição

imanente da concepção dialética marxista detém um duplo caráter: ao abarcar a negatividade

vigente propõe necessariamente sua negação. Marcuse coloca de maneira clara esta questão

ao tratar de um conceito central dentro da análise dialética marxista: a negação da negação.

Um dado estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela libertação das possibilidades a ele inerentes. Isto, a negação da negação, se realiza pelo estabelecimento de uma nova ordem de coisas. A negatividade e sua negação são duas fases diferentes do mesmo processo histórico, associadas pela ação histórica do homem. O “novo” estado é a verdade do velho, mas essa verdade não cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só pode ser libertada por uma ação autônoma dos homens, ação que anulará a totalidade do estado negativo existente. (MARCUSE, 1979, p. 287; grifo meu)

Não obstante, é justamente essa visão progressiva da negação que Marcuse vai criticar

em um pequeno texto intitulado “Sobre o conceito de Negação na dialética” (1981). Para ele

encontramo-nos frente a certas dificuldades para analisar o conteúdo histórico da sociedade

industrial avançada com os conceitos originais da teoria marxista. Esta constatação é

importante e clara se analisamos a sociedade de uma perspectiva dialética, nos termos que

Marx já havia proposto ao aplicar a base ontológica ao processo histórico, transformando o

método dialético hegeliano em método histórico. Para Marcuse, o “período atual parece

representar algo como uma imobilização da dialética da negatividade” (MARCUSE, 1981, p.

160) e uma das tarefas da teoria crítica passa a ser ─ frente às novas formas do “capitalismo

maduro” ─ a de desenvolver um conceito de dialética adaptado a esse contexto. Assim, para

o autor a principal dificuldade em aplicar os conceitos originais da teoria marxista às novas

formas do capitalismo seria a concepção dialética de que a negação se desenvolve no seio da

realidade dada como um desenrolar histórico e incontível, ou seja, a idéia de que as forças

negativas desenvolvem-se dentro do todo antagônico existente. Essa concepção é ainda

reminiscência de uma visão progressiva e idealista enraizada no próprio método dialético de

Hegel.

Será que as forças negadoras no interior de um sistema antagônico se apresentam necessariamente, do ponto de vista histórico, dessa forma progressiva e libertadora de desdobramento, será que as classes e a luta de classes têm que ser incluída em tal dinâmica positiva? (...) Isto é: não será que o materialismo marxista subestima as forças de integração e coesão que atuam na fase madura do capitalismo? (MARCUSE, 1981, p. 162-163)

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Esse questionamento parcial da concepção dialética marxista emerge da

impossibilidade da aplicação de tais conceitos frente à capacidade que a atual sociedade

detém de unir os opostos em um constante e aparente véu de aplanamento das contradições.

A própria linguagem é aprisionada pelos limites impostos à capacidade de se opor e à

propriedade negativa essencial ─ que entende a realidade enquanto processo histórico e a

história enquanto práxis humana ─ e sob essa condição só comunica a afluência e a

aceitação.

Assim torna-se necessário partir da possibilidade de que o todo antagônico possa ser

negado e superado “de fora”. Esse conceito de externo remete à filosofia do direito de Hegel,

representado pelas relações entre Sociedade Civil e Estado, o último enquanto

necessariamente externo a primeira, devido à necessidade de que o poder encontre-se fora do

“jogo de interesses”, do sistema de necessidades da sociedade civil. Porém, esse conceito que

remonta a Hegel é aplicado à crítica da ideologia, objeto central da obra de Marcuse, através

de uma perspectiva materialista histórica que pretende adequar a teoria crítica às novas

formas do capitalismo maduro.

É imprescindível ter em mente que a crítica que Marcuse empreende a ideologia da

sociedade industrial, em seu livro homônimo, leva em conta que as forças de coesão e

integração do capitalismo maduro não são forças meramente ideológicas ou espirituais, mas

forças sociais poderosas que têm o poder de barrar a negação que movimenta a dialética, e

mesmo de transformá-la em força positiva que reproduz o todo repressivo ao invés de

destruí-lo.

A sociedade industrial, em virtude da maneira como organiza suas bases produtivas

tende a se tornar totalitária como uma coordenação política, técnica e econômica que opera

através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. Esse aspecto total de sua

dominação impede o surgimento de uma oposição eficaz ao todo, pois opera até mesmo na

dimensão da reflexão e do pensamento conceitual, fragmentando e limitando-os à dimensão

do que é dado ─ à dimensão da aceitação e da reprodução, em uma palavra: reduz toda a

potencialidade do pensamento a uma só dimensão, ao pensamento unidimensional.

A crítica da ideologia que Marcuse empreende é de extrema importância para

compreender o atual estado de coisas e como se insere a Educação nesse contexto ideológico

mais amplo. Ao realizar a crítica ao pensamento unidimensional da sociedade industrial

avançada Marcuse nos leva a refletir sobre as condições nas quais se erigem as diretrizes

pedagógicas em vigência e a situá-las como reprodutoras do contexto ideológico da

sociedade afluente, por seu caráter operacionalista e behaviorista. Portanto, tratarei a seguir

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da análise dessa crítica mais ampla para posteriormente situá-la no contexto mais específico

da Educação e da Docência.

3. O Pensamento Unidimensional: Abreviação do Pensamento Conceitual e da

Reflexão.

Para Marcuse as novas formas de organização das bases produtivas do capitalismo em

sua fase madura tendem a tornar a sociedade industrial totalitária. Esse caráter totalitário

abrange não somente a coordenação “político-terrorista” da sociedade ─ fundada na restrição

das alternativas políticas (principalmente após o realinhamento global com a derrocada do

socialismo real, e a consequente polarização política), no aparato policial, na manutenção de

forças armadas regulares e permanentes e nas demais estâncias de coerção e coação ─ mas

também uma coordenação “técnico–econômica não terrorista” que opera através da

manipulação das necessidades por interesses adquiridos.

A ordem tecnológica compreende também uma ampla coordenação política e

intelectual. As concepções de liberdades e direitos individuais, que outrora desempenharam

papel central na organização cultural e ideológica dos primórdios da sociedade industrial,

estão perdendo seu sentido lógico e seus significados tradicionais. Se anteriormente detinham

um caráter declaradamente crítico e buscavam, por uma superação da cultura material e

intelectual obsoletas, implantar uma nova cultura, mais racional e produtiva, no período

contemporâneo, com o amplo desenvolvimento da sociedade tecnológica, esses direitos e

liberdades são institucionalizados e, desprovidos de seu caráter crítico e oposicionista,

passam a integrar a sociedade afluente. Assim, a tripla concepção de liberdade que marcou o

avanço do ideal burguês após a Revolução Francesa sofre uma tradução que anula seu caráter

crítico e propõe sua realização em termos do existente, de forma parcial e abreviada: a

liberdade econômica passa a significar liberdade de economia, a liberdade de ser controlado

por forças e relações econômicas, no limite, liberdade para a luta cotidiana pela

sobrevivência. A liberdade política é realizada enquanto libertação do indivíduo da política,

que se desenvolve sem que o indivíduo possa ter controle, e por fim, a liberdade intelectual

que se realiza enquanto retorno do pensamento individual, porém absorvido pela

comunicação de massas e pelo controle da opinião publica.

O caráter pungente dessas colocações de Marcuse não indica sua irrealidade, mas o

esforço da atual sociedade que empreende uma tradução ─ e a conseqüente inversão ─ de

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termos que só poderiam existir enquanto crítica à realidade imposta, para termos de afluência

e aceitação. Essa empreitada contra a crítica e contra a libertação é erigida sobre o terreno da

“implantação das necessidades materiais e intelectuais que perpetuam formas obsoletas de

luta pela existência” (MARCUSE, 1979, p.26). Essas necessidades que atuam “acima do

nível biológico” são pré-condicionadas; assim, o fato de serem ou não entendidas como

necessidade depende dos interesses das instituições sociais comuns. Nesse sentido, essas

necessidades são históricas, ou seja, pertencem a certo contexto histórico onde há o esforço

para torná-las em diversos níveis aceitáveis e aparentemente “necessárias”. Para Marcuse é

possível fazer uma distinção entre as necessidades verídicas e falsas, segundo a qual, as

falsas são aquelas:

[...] superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. Sua satisfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas a felicidade deste não é uma condição que tem que ser mantida e protegida [...] Então, o resultado é a euforia na infelicidade. (MARCUSE, 1979, p.26 grifo meu)

Essas necessidades têm um conteúdo e uma função social determinados por forças

externas aos indivíduos. São, portanto, produtos de uma sociedade em um período histórico

específico. Não obstante, o indivíduo é levado a se identificar completamente com essas

necessidades superimpostas de tal maneira que acabam por se tornar necessidades do próprio

indivíduo. Esse reconhecimento do indivíduo nas necessidades impostas reduz e até mesmo

anula a capacidade deste para identificar e questionar o universo de necessidades

estabelecido em termos de sua veracidade ou falsidade. Essa “consciência da servidão”, que é

impedida pela criação e satisfação de falsas necessidades ─ “satisfação repressiva” ─, é

pressuposto para libertação e para o reconhecimento das necessidades verídicas: aquelas que

designam condições objetivas para a satisfação universal das necessidades vitais, além da

progressiva suavização da labuta e da pobreza.

Uma das particularidades da sociedade industrial desenvolvida é a progressiva anulação

das necessidades que exigem a libertação e a superação dessa mesma sociedade. A imensa

gama de escolhas abertas ao indivíduo não demonstra uma ampliação da liberdade,

porquanto o fator decisivo seja o que é disponibilizado para a escolha dos indivíduos, e o que

é de fato escolhido por estes. Assim: “A livre escolha entre ampla variedade de mercadoria e

serviços não significa liberdade se esses serviços e mercadorias sustêm os controles sociais

sobre uma vida de labuta e temor ─ isto é sustêm a alienação.” (MARCUSE, 1979, p.28) O

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indivíduo acaba por reproduzir, dessa forma, as necessidades que lhe são impostas, e mais do

que isso: acaba por tomá-las para si, reconhecendo-as enquanto suas próprias necessidades.

Os chamados meios de informação não detêm sozinhos a capacidade de condicionar

plenamente os indivíduos e de modelar todas as atitudes da vida cotidiana. Obviamente deve-

se levar em conta a importância da indústria cultural na formação da consciência, porém essa

importância deve ser vista a partir de uma perspectiva valorativa, na qual se coloque o

problema da verdade ou falsidade daquilo que é incessantemente comunicado. “A função de

uma coisa, mesmo se uma função que concerne à vida de inumeráveis indivíduos não é

garantia de sua qualidade”. (ADORNO, 1977, p. 289)

É, portanto necessário ter-se em mente que os indivíduos são anteriormente pré-

condicionados. As diversas estruturas e instituições da sociedade reproduzem, desde a

formação inicial do indivíduo, a aceitação e o reconhecimento da ideologia afluente,

tornando-o receptáculo e reprodutor desta. Sendo assim, a massificação do rádio, da

televisão e da internet2 e mesmo o processo de centralização do controle desses “meios de

informação”, não são totalmente responsáveis pelo reconhecimento total do indivíduo para

com a ideologia que lhe é superimposta. E mesmo que, segundo Adorno (1977), alguns

intelectuais exaltem a massiva capacidade que a indústria cultural tem de divulgar

informações, conselhos e modos de comportamento, a questão de fato não é a existência ou

não dessa capacidade, mas o que é comunicado, como é comunicado e o que é de fato

consumido. Deste modo, o fator decisivo é a capacidade que a indústria cultural detém de

aplanar o contraste “entre as necessidades dadas e as possíveis, entre as satisfeitas e as

insatisfeitas” (MARCUSE, 1979, p.29). Essa pretensa igualação de opostos ─ à frente da

qual as chamadas mass media3 desfilam como estandarte ─ detém uma ampla função

ideológica: como contentora da revolta social e individual e como disseminadora da

aceitação e da reprodução da realidade dada.

2 Coloco aqui a internet puramente para situá-la em uma progressão cronológica das chamadas mass media. É necessário, porém, um estudo mais amplo da estrutura desse meio de informação que se difere grandemente dos outros exemplos, estudo esse que não nos cabe a esse trabalho. Deve-se deixar claro que a internet se diferencia da arquitetura estrutural e estruturante da chamada Indústria Cultural justamente por não se apresentar e funcionar de modo hierárquico e centralizado. Remonta-se aqui novamente a questão colocada acima: a de como uma geração pré-condicionada pelas diversas instâncias de reprodução ideológica da atual sociedade reagirá a esta “nova” arquitetura de comunicação e de cultura que tem, até o momento, em suas mãos. Ao que parece a “horizontalidade” desse meio de informação não tem sido encarada em sua potencialidade de libertação, mas pelo contrário, tem servido muito mais para ampliar os limites da ideologia afluente em uma escala global e em diversas frentes: da propaganda à linguagem. 3 Segundo Adorno, com esse termo a indústria cultural cunha para si uma aparência inofensiva e um apelo que se expressa enquanto geral. Porém, o que é colocado implicitamente por trás dessa aparência é a autoridade irrepreensível da “voz dos senhores”, a consolidação e o reforço infindável de uma mentalidade que exclui qualquer opção, crítica e transformação.

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A produtividade, a eficiência e a capacidade de propor, naturalizar e satisfazer falsas

necessidades importam um caráter racional à irracionalidade da civilização industrial

desenvolvida. A identificação do indivíduo com o mundo objetivo e o conseqüente

enfraquecimento da oposição, afirmam esse caráter e fazem com que qualquer tentativa de

contradição pareça irracional.

As criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi, utensílios de cozinha. O próprio mecanismo que ata o indivíduo à sua sociedade mudou e o controle social está ancorado nas novas necessidades que ela produziu. (MARCUSE, 1979, p.29-30)

Dessa forma, o protesto individual parece ter sido afetado em sua essência. As forças

históricas que nos períodos anteriores demonstravam e exaltavam as possibilidades de formas

outras de existência, e que movimentavam dessa maneira a sociedade rumo à sua

potencialidade, parecem ter desaparecido. A sociedade tecnológica, com a produção e a

distribuição em massa, ancorada e justificada por um amplo projeto ideológico e exaltada

pela indústria cultural exige o indivíduo por inteiro. A dimensão “interior” do indivíduo ─

dimensão que é distinta e até mesmo antagônica às exigências externas ─ apresenta-se

invadida ou, como coloca Marcuse, “introjetada” pela realidade tecnológica. O processo de

identificação é quase mimético; o indivíduo identifica-se sem mediações com sua sociedade e

“nesse processo a dimensão ‘interior’ da mente, na qual a oposição ao status quo pode criar

raízes é desbastada” (MARCUSE, 1979, p.31). Essa dimensão, que representa o espaço de

poder do pensamento negativo, é silenciada no processo de plena identificação do indivíduo

com a sociedade como um todo. É aqui que o progresso da alienação torna-se inteiramente

objetivo; no momento em que o indivíduo alienado é completamente absorvido por sua

existência alienada, quando já não encontra espaço para a oposição, quando o “poder crítico

da Razão” é transformado em neurose e impotência, e frente à grande e irreprimível

produtividade do todo, é reduzido à condição de irracional.

Esse processo de identificação e mimese representa o projeto ideológico total da cultura

da sociedade atual, “a adaptação toma o lugar da consciência” (ADORNO, 1977, p. 292).

Essa dimensão ideológica se coloca como única e racional; o próprio processo produtivo e

suas mercadorias impõem um sistema social. Os produtos dessa sociedade prescrevem

hábitos e atitudes que são aceitos sem questionamentos. E promovem, através da

identificação imposta, uma falsa consciência que se desenvolve no sentido de não reconhecer

sua própria falsidade. Essa consciência falsificada milita contra qualquer transformação

qualitativa, pois propõe um “estilo da vida” e um padrão de pensamento e comportamento

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que são unidimensionais. Nesse processo as idéias e pensamentos “transcendentes” 4 são

repelidos e reduzidos ao universo ideológico existente, tendo, portanto seu caráter de negação

e oposição anulado e até mesmo transformado em afirmação.

Nas Ciências Físicas e nas Ciências Sociais esse processo de restrição do universo do

pensamento a uma só dimensão é representado pela ampliação e imposição dos métodos

científicos operacionalista e behaviorista. Nestes o conceito torna-se sinônimo do conjunto

de operações correspondente e aquele que não pode ser designado em termos de operações é

eliminado. Os “elementos transcendentes da Razão” são, dessa forma, negados pelo avanço

do behaviorismo na Ciência e o pensamento unidimensional é certificado e atestado pelo

pensamento científico.

A chacina empírica radical garante, assim, a justificativa metodológica para a desmoralização da mente pelos intelectuais ─ um positivismo que, em sua negação dos elementos transcendentes da Razão, forma a réplica acadêmica do comportamento socialmente exigido. (MARCUSE, 1979, p.33)

A tecnologia e a Ciência repelem toda forma de transcendência e oposição, “o

operacionalismo se torna, na teoria e na prática, a teoria e prática da contenção”

(MARCUSE, 1979, p.36). Assim, por trás de sua dinâmica óbvia, a cultura da atual

sociedade é estática e prescreve a todos e em todos os níveis, a inércia ideológica:

O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o continuamente novo que ela exibe, continua sendo o revestimento de um sempre-igual; em todos os lugares a verdade esconde um esqueleto que não mudou mais do que não mudou o próprio móvel do lucro, desde que esse passou a dominar a cultura. (ADORNO, 1977, p.294)

Esta é uma das contradições essenciais desse período histórico: quanto mais a

tecnologia e a ampliação do acesso à informação parecem criar condições materiais para a

pacificação e a diminuição progressiva da labuta e da pobreza, mais a mente e o corpo dos

homens são condicionados contra isso. A dialética entre a tendência para a consumação da

racionalidade tecnológica e os esforços para conter essa tendência atesta o elemento

irracional da racionalidade da sociedade.

Quando esse ponto é atingido, a dominação ─ disfarçada em afluência e liberdade ─ se estende a todas as esferas da vida pública e privada, integra toda oposição autêntica, absorve todas as alternativas [...], criando assim um universo verdadeiramente totalitário no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo. (MARCUSE, 1979, p.37)

4 Marcuse utiliza o termo “transcender” no sentido empírico crítico, enquanto tendências definíveis em uma dada realidade, no que concerne à teoria e às possibilidades reais e históricas.

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Compreendida dessa forma, a racionalidade tecnológica torna-se o grande meio de

dominação; o pensamento unidimensional é exaltado e promovido pelos elaboradores da

política e por seus arautos da indústria cultural, todo tipo de comportamento oposicionista é

barrado e a transcendência histórica é tida como metafísica e irreal. A razão tecnológica

movimenta-se em prol dos interesses existentes, o que transforma o avanço técnico e

científico em instrumento de dominação.

Uma característica importante e peculiar do projeto cultural–ideológico contemporâneo

é o processo de esvaziamento do pensamento conceitual. Nesse processo de repressão da

reflexão, a palavra absorve o conceito, tornando-se, por assim dizer, um clichê que evita o

desenvolvimento genuíno do significado. O conceito é dessa maneira, substituído por

imagens que identificam a coisa com sua função na realidade estabelecida, anunciando um

comportamento padronizado. Assim, milita contra a abstração e a mediação, rendendo-se ao

imediatismo dos fatos e repelindo o reconhecimento dos fatores que estão por trás daqueles,

o que nega o entendimento do processo histórico. Tratarei a seguir desse processo em

específico, tomando por base as obras de Marcuse e Adorno, para que seja possível chegar à

defesa que os autores fazem do pensamento conceitual, do pensamento filosófico e da

dimensão artística e para demonstrar como o caráter conceitual, embutido na categoria de

trabalho não-material na qual se situa a Educação, sofre dessa abreviação conceitual.

3.1 Abreviação do pensamento conceitual

Marcuse utiliza o termo “consciência feliz” para se referir ao processo de identificação plena

do indivíduo com o projeto cultural-ideológico da atual sociedade. Ao cunhar esse termo o

autor nos remete o seu oposto, ou seja, ao conceito de consciência infeliz que ele identifica

no processo de criação artística, no pensamento conceitual e na reflexão filosófica.

Alienação artística

O processo de integração em curso atualmente estendeu-se quase completamente sobre

o âmbito da cultura. Assim os elementos artísticos que outrora caracterizaram aquilo que

Marcuse denomina enquanto “cultura superior” estão perdendo seu caráter de oposição e

transcendência, passando a integrar o projeto ideológico da sociedade industrial avançada. A

racionalidade tecnológica ultrapassa a dimensão da criação artística integrando-a e refutando

o seu caráter dialético de transcendência, deste modo, ao ampliar a racionalidade tecnológica

e o domínio do projeto ideológico da atual sociedade cria-se a aparência de que:

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O homem [...] pode fazer mais do que os heróis e semideuses da cultura; resolveu muitos problemas insolúveis. Mas também traiu as esperanças e destruiu as verdades que eram preservadas nas sublimações da cultura superior. (MARCUSE, 1979, p.69, grifo no original)

O aplanamento das contradições entre cultura e realidade acontece por meio da

ocultação dos elementos de oposição presentes na cultura. Esses elementos constituíam uma

outra dimensão separada da dimensão cotidiana, o que atestava sua veracidade assim como

seu caráter de recusa e de denúncia da realidade dada, nos termos da dialética clássica5. Esse

projeto de coesão social realizado através da integração total do indivíduo e da cultura à

ideologia de sua sociedade reduz as esferas da arte, política, religião e filosofia a um

denominador comum: a forma mercadoria.

A alienação artística é de natureza diferente do conceito marxista que ressalta a relação

do homem com o trabalho e consigo mesmo na sociedade capitalista. Tal alienação é uma

transcendência consciente da existência alienada, é segundo Marcuse uma alienação de nível

superior. Sob essa transcendência a condição do homem é idealizada e denunciada. Essa

alienação artística representa a tensão entre o real e o possível em um eterno conflito que

revela a dimensão do homem e da natureza que está reprimida: “a ficção dá aos fatos seus

verdadeiros nomes e o reino daqueles sucumbe; a ficção subverte a experiência cotidiana

mostrando que ela é mutilada e falsa” (MARCUSE, 1979, p.74). É a consciência infeliz que

cria um mundo que nega a realidade, o “terror da vida real”.

O conflito com o mundo do progresso, a negação da ordem dos negócios, os elementos antiburgueses na literatura e na arte burguesas não decorrem da inferioridade estética dessa ordem nem da reação romântica [...] As imagens tradicionais de alienação artística são de fato românticas tanto quanto estão em incompatibilidade estética com a sociedade em desenvolvimento. Essa incompatibilidade é indício de sua veracidade. O que elas lembram e preservam na memória pertence ao futuro: imagens de uma satisfação que dissolveria a sociedade que a suprime. (MARCUSE, 1979, p.72)

A arte contém em si a racionalidade da negação. Se seu potencial criativo for

desenvolvido completamente a arte torna-se a “Grande Recusa ─ o protesto contra o que é.”

Porém, o que a atual sociedade faz é empreender uma reconciliação cultural entre a

arte/literatura e a realidade dada, algo que Marcuse denomina como “dessublimação

repressiva” (MARCUSE, 1979, p.69). Essa reconciliação não se dá através da realização da

arte, nem mesmo passa por sua compreensão, é apenas uma integração alienada e alienante

que esgota a dimensão artística ao assimilar e harmonizar seu conteúdo antagônico. Dessa

5 Ver páginas 9 e 10

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forma, o possível valor negativo6 da alienação artística sucumbe perante o avanço da

sociedade tecnológica e assim integrada, a arte faz parte de uma “máquina cultural que refaz

seu conteúdo” e o centro cultural acaba por tornar-se um prolongamento dos shoppings

centers. A Grande Recusa é recusada e sua potencialidade é progressivamente fechada pela

sociedade unidimensional; a “outra dimensão” é absorvida, anulada e por fim tem sua função

negativa invertida, passa a integrar o sistema ao qual outrora se opunha e, integrada, trabalha

como mais uma parte do todo. “Tornam-se assim anúncios ─ vendem, reconfortam,

excitam.” (MARCUSE, 1979, p.75) Frente à mobilização de todos os meios de comunicação

para a defesa da realidade estabelecida, a comunicação de conteúdos transcendentes é

impossível. É a materialização do espectro que assombrou a consciência artística de

Mallarmé: a impossibilidade de comunicar o negativo através de uma linguagem não

condescendente.

A crença de que o real seja racional, reflete o estado de consciência no qual as pessoas

são levadas a ver no aparato produtivo o agente eficaz de pensamento e ação ao qual devem

render seus próprios pensamento e ações. “O resultado é a atrofia dos órgãos mentais,

impedindo-os de perceber as contradições e alternativas e na única dimensão restante da

racionalidade tecnológica prevalece a Consciência Feliz” (MARCUSE, 1979, p.88)

Pensamento conceitual e linguagem

Para Marcuse a Consciência Feliz é a nova fase do conformismo; ela é comunicada e

reproduzida através da linguagem moldada pelo projeto ideológico total da sociedade

unidimensional. Essa linguagem atesta a identificação e a unificação; a produção e

reprodução sistemática do pensamento e da ação afluente. O pensamento dialético tende a

desaparecer frente ao direcionamento da linguagem para a reprodução da comunicação

imposta pela ideologia da sociedade industrial. Assim a esfera transcendente e crítica

necessária para o desenvolvimento de um pensamento dialético, que oponha realidade e

potencialidade, é suprimida por “hábitos de pensar sociais” comunicados por uma linguagem

imposta e reproduzida pelos agentes de propaganda dos meios de comunicação da sociedade

unidimensional. A autonomia, a crítica, a demonstração e a descoberta estão sendo

6 Marcuse deixa claro que a negatividade não é imanente à criação artística; a arte existe também como afirmação. Isso ocorre quando a arte aparece completamente integrada em sua sociedade. Como exemplo disso é possível citar a arte egípcia, a arte gótica etc. O que se deve levar em conta porém é que a maneira como a criação artística se desenvolve em uma sociedade “bidimensional”, isto é, em uma sociedade onde o pensamento transcendente coexiste com a realidade dada ─ como potencialidade e contradição ─ é bem diferente do aspecto que essa criação assume sob a sociedade unidimensional, mas a necessidade da alienação artística caracteriza tanto a arte afirmativa como a negativa.

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suprimidas pela designação, pela asserção e pela imitação. Os meios pelos quais a locução

expressava o novo e o possível, as mediações necessárias para a cognição, estão

desaparecendo frente à linguagem da administração total. Os conceitos que compreendem e

transcendem a realidade dada estão perdendo sua representação lingüística autêntica; “sem

tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão

e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de sua

função” (MARCUSE, 1979, p.93),

Essa “funcionalização” da linguagem ajuda a repelir os elementos não conformistas da

estrutura comunicativa; a condensação da estrutura da linguagem milita contra a oposição e

contra o desenvolvimento do significado. O operacionalismo estende-se ao universo da

locução identificando a coisa com suas funções pré-estabelecidas. Dessa forma o conceito é

absorvido pela palavra e seu conteúdo passa a ser designado pelo “uso padronizado”, o que

torna a reação à palavra também um comportamento padronizado e anunciado. “A palavra se

torna um clichê e, como tal governa a palavra ou a escrita; assim, a comunicação evita o

desenvolvimento genuíno do significado” (MARCUSE, 1979, p.95). O substantivo passa a

governar a sentença e esta deve ser aceita arbitrariamente sem qualquer reflexão ou crítica.

Essa abreviação do significado tem uma clara conotação política, pois quando o nome das

coisas identifica somente sua maneira de funcionar em uma dada realidade histórica, todas as

outras possibilidades do desenvolvimento desse significado e de sua compreensão histórica

são sumariamente excluídas. Desse modo, a maneira (real) de funcionamento, que é

completamente identificada com a palavra, barra outras maneiras de significação que seriam

a negação desse significado codificado e fechado e que estariam por seu caráter

transcendente e crítico em contradição com o dado.

Esse universo de locução é fechado e autovalidado por sua constante e impositiva

repetição. Suas proposições são repetidas um infinito número de vezes, assumindo uma

forma “mágica”: “O conceito ritualizado é tornado imune à contradição” (MARCUSE, 1979,

p.96). Fica claro, portanto, que dentro desse universo restrito de locução, a percepção de que

“liberdade” é na verdade servidão e que “igualdade” é desigualdade, é barrada e até mesmo

impedida de ser compreensivelmente expressada ─ uma vez que a definição desses conceitos

é abreviada e fechada em um significado estabelecido, e esse significado é reproduzido e

disseminado pela repetição ampliada pelos meios de comunicação massiva.

A aceitação dessas mentiras, apesar de ser algo relativamente novo, é, a cada dia,

maciçamente ampliada. A disseminação e aceitação geral dessa linguagem aplanam, no

universo perceptivo, as contradições que se oporiam ao sistema social estabelecido. A

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pretensa “unificação dos opostos” repele, na linguagem, maneiras de comunicação que

pressupõem a dialética e o pensamento conceitual. A capacidade de pensar conceitualmente é

aos poucos absorvida pelo comportamento padronizado e aceito. O caráter político desse

processo é validado na coesão social e na linguagem reificada desse conformismo. A

consciência feliz não repele as contradições imanentes a essa sociedade; pelo contrário, as

reproduz sob a aceitação geral. O resultado, nas palavras de Marcuse, é a “euforia na

infelicidade”.

Ao exibir as contradições como um sinal de sua veracidade o universo de locução e

comunicação estabelecido se fecha contra a recusa e o protesto, mais do que isso, a

linguagem sob a administração total tem a capacidade de assimilar qualquer termo aos seus,

combinando a maior tolerância possível com unidade total. Não obstante essa linguagem é

expressão da repressão da sociedade que a dissemina, pois impõe ao receptor um significado

abreviado e impede o desenvolvimento genuíno do conteúdo. Impõe, dessa forma, a

“aceitação do que é oferecido, na forma em que é oferecido”.(MARCUSE, 1979, p.98)

Através de sua forma repetitiva essa linguagem se impõe ao trocar o desenvolvimento

cognitivo do significado pela fixação de imagens “em uma concreção esmagadora e

petrificada”. O receptor7 associa essas imagens a uma estrutura de instituições,

comportamento e expectativas, e reage de uma maneira já esperada e estabelecida, a esses

estímulos. Ao impor dessa forma “hábitos de pensar sociais” através da identificação da coisa

em sua função e através da fixação de imagens repetidas inúmeras vezes, essa linguagem

milita contra a cognição e contra o desenvolvimento e a expressão de conceitos. A imediação

e a objetividade impedem o desenvolvimento do pensamento conceitual, impedindo assim de

pensar.

O pensamento conceitual milita contra o behaviorismo político e social uma vez que

nega a identificação plena da coisa e da sua função contingente na realidade dada. O

pensamento unidimensional pelo contrário é exprimido por uma linguagem funcionalizada,

abreviada e unificada que é incapaz de comunicar qualquer coisa que não seja afluência e

aceitação. Essa linguagem fecha-se em si mesma, toda potencialidade comunicativa é

invalidada pela defesa massiva e unilateral da linguagem que comunica as formas de

7 Uso aqui o termo que Marcuse utiliza ao longo da obra. Outro termo interessante, e que de certa forma deixa mais claro a condição do individuo perante o projeto ideológico que lhe é imposto, seria “espectador” no sentido que Guy Debord utiliza em seu livro de 1967: “A sociedade do espetáculo”. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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relacionamento da sociedade capitalista, ou seja, as formas de relacionamento mediadas pela

mercadoria sob a divisão social do trabalho8.

Ao bloquear o desenvolvimento do pensamento conceitual, da abstração e da mediação,

realizando uma identificação aos fatos imediatos, a comunicação unidimensional repele os

fatores por trás dos fatos, ou seja, repele o conteúdo histórico dos fatos. Essa linguagem

funcional anticrítica e antidialética absorve os elementos de oposição e negação da razão

histórica. A supressão dessa dimensão de tensão entre realidade e contingência é uma

supressão da história, e isso, mais do que um assunto acadêmico, é um assunto político, uma

vez que, no universo da locução, é a supressão do passado da sociedade, e de qualquer

tentativa de compreensão histórica dos fatores que por trás dos fatos fizeram e fazem a

sociedade contemporânea. É também a negação do futuro e das possibilidades, visto que o

futuro pressupõe uma mudança qualitativa, uma negação do presente.

Ao negar a dialética o universo de locução nega a realidade histórica. Os velhos

conceitos históricos são substituídos por redefinições operacionais atualizadas, estas são

falsificações impostas pelos poderes existentes e servem para transformar a falsidade em

verdade. Essa precondição da racionalidade funcional é na verdade uma luta contra uma

dimensão da mente que poderia impedir a coordenação total do indivíduo pela sociedade.

Ao negar o passado da sociedade a linguagem funcional nega o conteúdo subversivo da

memória. A lembrança rompe a realidade dos fatos dados, é uma mediação que quebra,

mesmo que por alguns instantes, a onipresença da realidade. Assim evoca o terror de outras

épocas, ou a esperança de outrora, que se mantém como esperança, acima da realidade

contingente, dos fatos dados. A memória preserva a história.

A comunicação funcional traduz o negativo em positivo, a linguagem torna-se

instrumento de controle mesmo em regimes não autoritários, onde não transmite ordens, mas

informações, onde não exige obediência, mas escolha, onde não exige submissão, mas

liberdade. Essa linguagem reduz as formas lingüísticas da reflexão e da contradição,

substituindo conceitos por imagens, nega e absorve o vocabulário transcendente, estabelece a

verdade ou a falsidade sobre as quais todos devem se guiar.

Sob o domínio da comunicação funcional ocorre uma devastadora redefinição do

conteúdo e função do pensamento, atingindo camadas da mente onde são elaborados os

conceitos destinados a compreender a realidade dada. Estes são retirados da tradição

intelectual e traduzidos em termos operacionais, o que de fato reduz a tensão entre o poder

negativo do pensamento e a realidade dada.

8 Ver páginas 7 e 8.

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A tentativa de se reduzir o pensamento conceitual ao pensamento operacional não é só

um problema intelectual, mas tem uma função política, visto que o conceito diz respeito

àquilo que é transcendente e universal na coisa, que vai além de sua aparência imediata. O

pensamento conceitual traduz, no processo de cognição, os fatos da sociedade que vão além

de qualquer contexto específico, pois adentra nos processos e condições em que se assenta a

sociedade e que participam de todos os contextos específicos. Por essas características os

conceitos cognitivos transcendem todo contexto operacional, mas sua transcendência é

empírica uma vez que torna os fatos reconhecíveis como aquilo que eles verdadeiramente

são. É esse excesso de significado, acima das limitações do “conceito operacional”, que

ocasiona a tensão entre o conceito e o fato imediato, entre a mediação intelectual e a

imediação.

O pensamento crítico milita contra o fechamento do universo da locução e do

comportamento, pois possibilita o desenvolvimento dos conceitos que compreendem o

universo fechado como histórico, desestabilizando-o e transcendendo-o. Ao se tornar

consciência histórica o pensamento crítico é essencialmente o julgamento da realidade dada

através de critérios de verdade e falsidade, de progresso e regressão vistos de uma

perspectiva histórica. “A mediação do passado com o presente descobre os fatores que

fizeram os fatos, que determinaram o estilo de vida, que estabeleceram os senhores e os

servos; projeta os limites e as alternativas”.(MARCUSE, 1979, p.105) As palavras que

constituem essa linguagem histórica permitem um desenvolvimento aberto que se desdobra

em predicados contraditórios. Essa relação dialética é possibilitada pelo reconhecimento do

sujeito como agente histórico, cuja práxis se constitui na prática histórica. Tal linguagem

aberta e dialética se desenvolve e enuncia o conflito entre a coisa ─ carregada de significado

histórico ─ e a sua função contingente. Os fatos devem ser reconhecidos pelo que eles

historicamente significam. O reconhecimento dos fatos é a crítica dos fatos.

Reflexão Filosófica.

A Razão, na preocupação original do pensamento ocidental, é o poder subversivo, o

poder do negativo que estabelece a verdade para os homens e as coisas: as condições onde os

homens e as coisas tornam-se o que realmente são.

O universo totalitário da racionalidade tecnológica é a mais recente modificação da

idéia de Razão. O pensamento conceitual e a reflexão filosófica que existiam em conflito

com as tendências estabilizantes da sociedade estão perdendo essa característica

fundamental. Os elementos subversivos da Razão, o poder do pensamento negativo, que

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demonstrava e se opunha às contradições da realidade dada é anulado pelas realizações da

sociedade industrial avançada: a realidade unidimensional avança sobre todas as

contradições.

Na filosofia clássica grega a Razão é a faculdade cognitiva para distinguir o que é

verdadeiro do que é falso, no sentido em que verdade e falsidade são primordialmente

condições do ser, ou seja, são condições ontológicas. A verdade, sendo uma condição do ser,

é um valor, já que ser é melhor do que “não-ser”, uma vez que não-ser não é somente o nada,

mas uma negação, a destruição do ser. Assim, a luta pela verdade é uma luta contra a

destruição ─ mesmo que essa luta seja ela também destrutiva, quando ataca a realidade

estabelecida como inverídica ─, é o projeto essencial humano, pois ao ver e conhecer o que a

realidade é, o homem agirá de acordo com a verdade.

Essa concepção diz respeito a uma realidade contraditória, ao mundo antagônico,

afligido pela necessidade e pela negatividade, ameaçado de destruição em contraposição ao

mundo que é organizado (o cosmos) e estruturado de acordo com causas finais. Ao tratar

desse mundo rompido em si mesmo, a filosofia se move em um universo bidimensional.

A filosofia se origina na dialética e sua linguagem gira em torno de uma realidade

antagônica, uma realidade onde o modo de ser dos homens convive com o não-ser, com a

falsidade e a deformação: com a negação de sua essência. Os critérios para essa distinção na

filosofia clássica grega é o conceito de intuição. A intuição9, no sentido filosófico, é a forma

de cognição onde o objeto aparece no pensamento como aquilo que ele realmente é ─ em

suas qualidades essenciais ─ contraposto à sua situação contingente e imediata. A análise

deve então partir da distinção entre natureza essencial do homem e a natureza contingente,

entre as formas verdadeiras e falsas de existência. Essa distinção deriva de “uma análise

lógica da situação empírica (que) compreenda tanto o seu potencial como sua contingência”.

(MARCUSE, 1979, p.128).

A situação antagônica da sociedade não detém uma condição ontológica imutável. Há

formas de existência que barram e negam as potencialidades e que, portanto, jamais podem

ser verdadeiras, no sentido de não implicar na satisfação do ser. A realidade humana que

propõe a incompatibilidade entre a busca da realização das necessidades e a liberdade não

tem nada de ontológica, é antes uma destruição do ser. Ainda mais quando supõe que a

realização da felicidade e da liberdade pertence a um extrato social específico e que o

9 Marcuse deixa claro que a “intuição” não deve ser entendida aqui como uma faculdade mental misteriosa, mas pelo contrário, como o término de uma análise conceitual, resultado de uma mediação intelectual metódica.

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desgaste e sofrimento decorrentes da busca para a satisfação das necessidades, dos requisitos

da existência, pertence ao outro extrato social.

A verdade é tanto um estado do ser como do pensamento: um é a manifestação do

outro. Assim, o acesso à verdade permanece no campo da potencialidade se não se vive na

verdade e com ela. Esse modo de viver é vetado ao escravo, ao servo ou aquele que passa a

vida toda no domínio da necessidade. Dessa forma, a divisão social do trabalho perde seu

caráter ontológico se pressupõe que a liberdade de labuta e o acesso à verdade pertencem a

um grupo privilegiado. Tal estado de coisas contradiz o caráter universal da verdade, “que

define e ‘prescreve’ não apenas uma meta teórica, mas a melhor vida do homem como

homem, em relação à essência do homem”.(MARCUSE, 1979, p.130).

Partindo de uma concepção ontológica que pressupõe uma ideia essencial, os homens e

as coisas existem na realidade contingente diferentemente do que são. Dessa maneira, o

pensamento mantém-se em contradição com a realidade, já que opõe sua verdade e ideia ao

que é dado. Sob os termos da realidade dada, da situação histórica específica, a essência

aparece como potencialidade que impõe a subversão total da ordem estabelecida.

O pensamento contraditório é o método de cognição de toda filosofia que se preocupe

em compreender a realidade. Esse pensamento crítico compreende a tensão dialética entre o

“é” e o “deve” como uma condição ontológica pertencente à própria estrutura do ser. O

reconhecimento dessa condição implica em uma prática que aponte para outras formas de

existência que proponham a realização da verdade ─ enquanto realização plena do ser,

através da subversão da ordem das coisas que suprime essa realização ─ na comunicação e

nos atos. Dessa forma, o pensamento deve transcender a si mesmo para realizar-se na prática.

Segundo Marcuse a lógica formal de Aristóteles pode ser considerada o primeiro passo

para o desenvolvimento do pensamento cientifico. Dentro dos limites dessa lógica o

pensamento é indiferente aos seus objetos, estando sujeito às leis da organização e do

cálculo. Deste modo, realiza-se a conexão entre o conceito em sua forma pura e o controle

social, a harmonia teórica da discórdia geral.

A formatação dessa lógica propõe a construção de uma ordem do pensamento

universalmente válida, aceita e neutra em relação ao conteúdo material. A ciência

proveniente dessa lógica só se incumbe daquilo que é livre de contradição, ou daquilo que

tenha “contradições controláveis”. Todo o resto é jogado no bojo do incalculável e do

subjetivo. A verdade científica objetiva contrapõe-se à experiência imediata e não desenvolve

os conceitos de protesto e o julgamento que condena as contradições da realidade

estabelecida.

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A redefinição do pensamento em curso atualmente assemelha-se a uma “terapia”, no

sentido de que visa livrar a reflexão da transgressão, da revolta, e da negação ─ enquanto

partes do processo dialético de cognição ─ oferecendo no lugar daqueles uma dócil

adequação ao universo estabelecido do comportamento e da locução. A exaltação feita pela

filosofia unidimensional ao que é comum, ao comportamento ordinário e sua empreitada

contra a transgressão e a transcendência, acabam por se tornar um fim em si. Ao exaltar o

ordinário e o comum a moderna análise filosófica realiza seu papel principal no universo do

pensamento estabelecido: minimizar as profundas contradições enraizadas no seio da

sociedade capitalista, através de um nivelamento e de uma normalização da mutilação, a qual

foi submetido o pensamento. Pois, ao exaltar e normalizar essa mutilação o projeto

ideológico e cultural da atual sociedade, mascara, de certa forma, o fato de que esse

comportamento demonstra a mutilação do homem e da natureza reproduzida

incessantemente.

A filosofia contemporânea se esforça em exaltar sua própria destruição e minimização.

Sua proposição de autoanulação é apresentada em seu projeto de demonstrar a

“intocabilidade” da realidade estabelecida (como Wittgenstein deixa claro em suas

afirmações de que o esforço da filosofia se resume a “deixar tudo como é”). Essa filosofia é

expressão do projeto ideológico e cultural do capitalismo contemporâneo. Sob a tutela do

positivismo o pensamento é isolado de seus múltiplos fatores e significados e, sobremaneira,

de seu caráter histórico e dialético. A filosofia positiva exprime o mundo empírico de sua

realidade, realizando, através de seu caráter raso e condescendente, a mutilação do

pensamento e a abreviação da reflexão.

Ao ser desprovida de seu caráter transcendente a filosofia resume-se a descrever a

realidade dada, deixando de compreender o que está acontecendo. Dessa forma, essa filosofia

abstrai-se do negativo, daquilo que é alheio e antagônico e que não pode ser compreendido

em termo do estabelecido. Ao barrar o acesso a esse campo de reflexão a filosofia positivista

(e unidimensional) monta um mundo autossuficiente, fechado e protegido dos fatores

“exógenos” e perturbadores. Essa noção limitada de empírico nega o empírico de fato, em

sua acepção ampla, pois retira da análise e do discurso os fatores por trás dos fatos, a

dimensão oculta do significado, o conteúdo histórico que só pode demonstrar, na atual

sociedade, a mutilação do homem e da natureza a passos acelerados.

Em virtude da repressão real, o mundo experimentado é o resultado de uma experiência restrita, e a limpeza positivista da mente põe esta em consonância com a experiência restrita. [...] A experiência ocorre diante de uma cortina que esconde, e, se o mundo é a aparência de algo que está por

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trás da cortina da experiência imediata, então, nas palavras de Hegel somos nós mesmos que estamos por trás da cortina. (MARCUSE, 1979, p.173 e 175)

A compreensão do filósofo deve ter essa capacidade de chegar “por trás dos fatos”, por

trás da “cortina” da experiência imediata. Essa compreensão mais ampla deve tratar os

sujeitos enquanto objetos de uma luta histórica do homem com a natureza e a sociedade, deve

entender os fatos como sendo ocorrências nessa luta. Essa compreensão é a tarefa histórica

da Filosofia e seu método deve desenvolver até o limite a tensão entre aparência e realidade.

A dialética entendida como método e meio da Filosofia enuncia uma negação da realidade

dada ao denunciar sua incapacidade de satisfação plena do ser e ao demonstrar a mutilação

do homem e do pensamento. A Filosofia aproxima-se dessa meta quando caminha em

direção à libertação do pensamento de sua escravização pelo universo estabelecido do

pensamento e do comportamento e quando projeta as alternativas possíveis.

4. Conclusões

Realização da Comunicação.

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Procurei demonstrar ao longo dessa explanação crítica acerca do projeto ideológico e

cultural da sociedade a capacidade coercitiva e niveladora que o pensamento unidimensional

impõe sobre os indivíduos. Essa explanação demonstra, sobretudo, o processo de

esvaziamento do pensamento crítico que, no momento histórico atual, se amplia sem

precedentes. Esse processo de abreviação atinge o pensamento conceitual, a reflexão

filosófica e a alienação artística, fechando dessa forma todas as possibilidades de

transcendência e crítica. A importância da consciência do avanço desse processo é

imprescindível para pensarmos hoje a educação e a função do docente.

Frente ao avanço do esvaziamento conceitual, filosófico e artístico as possibilidades de

uma docência e de um aprendizado que consigam compreender historicamente a situação na

qual se encontra a sociedade em que vivemos e, mais do que isso, que possa propor

mudanças qualitativas para essa sociedade ─ mudanças que encontram no processo educativo

e na formação dos professores uma frente de suma importância ─ parecem desprovidos de

veracidade. O nível que o projeto ideológico e cultural da sociedade industrial avançada

alcançou ─ principalmente após o fim da bipolaridade mundial ─ é espantoso se levarmos

em conta a velocidade de seu desenvolvimento e da disseminação de sua tecnologia. Nesse

contexto amplo o professor encontra-se sem perspectivas de realização do projeto racional no

sentido da dialética, de realização da verdade como condição ontológica. Elenco em

específico a função docente inserida nessa realidade por se tratar de uma prática que

necessita do pensamento conceitual e da reflexão filosófica para se realizar plenamente e

para cumprir sua função primordial de esclarecer, ensinar e formar indivíduos de acordo com

os requisitos de realização plena da humanidade na acepção valorativa da filosofia.

A meu ver, a lógica dialética de Platão demonstra sobremaneira, o intuito da prática

docente, uma vez que, dentro dessa lógica os termos contraditórios são mantidos abertos,

ambíguos e não definidos por inteiro. Isso faz com que estes termos tenham um horizonte

aberto e um universo de significado que é gradativamente estruturado no próprio processo de

comunicação, não sendo jamais fechado. As proposições são postas a prova em um diálogo

no qual o interlocutor é levado a questionar o universo da experiência e da palavra, o que o

leva a um novo nível da locução. Espera-se assim que ele vá além do que lhe é apresentado,

da mesma forma que o processo leva o orador a ultrapassar a disposição inicial dos termos.

A dinâmica proposta pela dialética no entendimento dos conceitos, na comunicação e

na linguagem agrega ao método discursivo da prática docente uma necessidade de

transcendência do que é imposto e uma proposta de comunicação que consiga abarcar as

inúmeras realidades que são encontradas em sua prática cotidiana.

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Nesse sentido, em um contexto histórico onde o próprio entendimento histórico é

barrado, onde os conceitos são esvaziados de seu conteúdo socialmente construído e onde a

reflexão e o pensamento crítico são interrompidos e transformados em afluência, resta ao

professor, compromissado com a emancipação de seus estudantes e com o pensamento

crítico e aberto, tomar uma postura negativa perante a realidade dada e ao projeto ideológico

e cultural imposto. Esse posicionamento não pressupõe apatia ou inércia, mas um retorno à

dialética marcada pela necessidade de se reconstruir o pensamento crítico e a reflexão

filosófica. Exige, sobretudo, desse indivíduo a capacidade de propor práticas de acordo com

essa crítica e de conseguir, em seu cotidiano, realizar essa prática das maneiras que forem

possíveis.

Esse compromisso moral que proponho ao longo desse trabalho não se aplica somente

ao docente, mas a todos os indivíduos. Se eu direcionei o estudo para essa prática em

específico é pela urgência que decorre do rápido esvaziamento do sentido da educação que

vem sendo implantado nas ultimas décadas, e pelo compromisso teórico que o professor deve

assumir para assegurar a manutenção da reflexão e da crítica.

Em um texto intitulado “O Narrador. Considerações sobre a Obra de Nikolai

Leskov” (1987) Walter Benjamim alerta-nos sobre o processo de redução, promovido

pela atual sociedade, de uma faculdade “que nos parecia segura e inalienável: a

faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIM, W. 1987 p.198). Ele identifica,

como uma das causas desse fenômeno moderno, a redução das ações da experiência

promovida pela produtividade crescente que, criando e satisfazendo falsas experiências,

nos priva das experiências autênticas e, ao que parece, “da noite para o dia não somente

a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético, sofreram transformações

que antes não julgaríamos possíveis” (BENJAMIM, W. 1987 p.1987).

Na moderna sociedade a comunicação unidimensional e a abreviação do

pensamento conceitual trazem em suas próprias dinâmicas explicações e significados

que transformam o intercâmbio de experiências em ápice do “lugar comum”. As

criaturas não mais interagem, mas tão somente reproduzem desejos e comportamentos

que se repetem e perpetuam o progresso da dominação.

O professor, por sua prática cotidiana, ainda detém (apesar de todo avanço da

dominação), a possibilidade de intercambiar experiências. Experiências que passam de

pessoa para pessoa, que exigem a reflexão e o pensamento conceitual. Essa prática é

uma prática de negação que se positiva em si mesma. Ela permite uma comunicação que

em um mundo de falsidades é subversiva simplesmente pelo fato de ser verdadeira, de

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dizer respeito a uma prática humana. No dia-a-dia da sala de aula o professor depara-se

com inúmeras situações, provenientes de inúmeras realidades (individuais ou grupais).

Cabe a ele relacionar tais experiências específicas à totalidade repressiva e à crítica

dessa totalidade. Através da comunicação sem mediações com seus alunos e da

oralidade a prática docente deve tornar-se negação do pensamento unidimensional.

Além disso, o professor, entendido como preparador de sujeitos ativos e críticos,

deve desenvolver uma teoria crítica, que funcione como negação, em contato dialético

com as possibilidades e movimentos reais de contestação e oposição. Estes podem ser

identificados dentro da própria sala de aula ─ universo onde o professor detém uma

relativa autonomia que se manifesta na possibilidade de inserir, em conteúdos

predefinidos pelas instituições pedagógicas, críticas coerentes e esclarecimentos

essenciais à possibilidade do desenvolvimento do pensamento dialético.

A prática docente deve aproximar a negação externa contra o todo repressivo e a

prática real e cotidiana das salas de aula. O professor deve, dessa maneira, ser mais que

um educador, mais que um intelectual: deve ser um intelectual compromissado com a

transformação e um negador da realidade repressiva. Um elo dialético que relacione a

episteme e a práxis, e proponha novos relacionamentos humanos, para uma nova

humanidade que se encontra alienada de si mesma pela realidade histórica presente.

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