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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA DORI CAYMMI E O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO MUSICAL ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA Brasília 2015

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE ARTES

DEPARTAMENTO DE MÚSICA

DORI CAYMMI E O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO MUSICAL

ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA

Brasília 2015

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ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA

DORI CAYMMI E O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO MUSICAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Música em Contexto” do Departamento de Música da Universidade de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Música. Orientador: Prof. Dr. Antenor Ferreira Corrêa

BRASÍLIA 2015

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ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA

DORI CAYMMI E O PROCESSO DE RESSIGNIFICAÇÃO MUSICAL

Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Música da Universidade de Brasília – UnB, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em música. Orientador: Prof. Dr. Antenor Ferreira Corrêa

Banca Examinadora

Prof. Dr. Antenor Ferreira Corrêa

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Clodomir Souza Ferreira

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Hugo Leonardo Ribeiro

Aprovada em: 10 de dezembro de 2015

.

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Dedico a presente pesquisa à memória de José de Alencar Soares, o “Alencar 7 Cordas”, amigo e professor que me conduziu por surpreendentes caminhos na música.

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AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Antonio e Helena, pelo dom da vida e pela permanente lição de como vivê-la.

À minha esposa Márcia e aos meus filhos Antonio, Márcio e Roberto, pelo indispensável suporte

afetivo e por sua incomensurável generosidade.

A Dori Caymmi, por sua integral disposição em participar da pesquisa, fornecendo prontamente todos

os dados e subsídios que lhe foram solicitados.

Ao meu orientador Antenor Ferreira Corrêa, por sua infinita paciência e sabedoria, com as quais me

conduziu pelo errático processo de amadurecimento acadêmico inerente à pesquisa científica.

Ao professor Hugo Leonardo Ribeiro, pelas lições de etnomusicologia que fizeram de mim um

indivíduo mas atento e sensível às múltiplas manifestações musicais presentes em nossa sociedade.

Ao colega de Mestrado Robson Melo, pelo seu permanente entusiasmo, amor à música e ao

conhecimento, que me incentivaram a concluir este trabalho.

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RESUMO

Nesta dissertação, proponho a hipótese de que o arranjo na música popular pressupõe a ressignificação da obra original. Este processo apresenta um indisfarçável viés hermenêutico e demanda processos cognitivos, uma vez que consiste na atribuição de novos significados à ideia do compositor, os quais, por sua vez, devem ser anteriormente percebidos e (re)conhecidos pelo arranjador. Nessa perspectiva, proponho que o arranjo musical deve ser tomando em sua acepção mais genérica, antes de tudo, como uma forma de interpretação musical e será tão mais original quanto o arranjador, na qualidade de intérprete, conseguir distanciar-se da forma primeva elaborada pelo compositor, sem, no entanto, descaracterizá-la. A partir da análise do trabalho do músico Dori Caymmi como arranjador afirmo que, no universo da música popular, a elaboração do arranjo de uma canção é atividade eminentemente interpretativa e espera-se que o arranjador expresse uma perspectiva estritamente pessoal da obra musical, por sua natureza, distinta da forma original. Essa proposição será iniciada com a definição de alguns conceitos como significação musical, interpretação e ressignificação. A seguir exemplifica-se a proposta de ressignificação mediante a comparação entre os arranjos originais da canção “Cinema Paradiso”, de Ennio Morricone, e da “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso, elaborado por Radamés Gnattali, e a interpretação das mesmas obras musicais por Dori Caymmi, atestando a viabilidade dessa hipótese.

Palavras-chave: Dori Caymmi, arranjo musical, significado musical, ressignificação., interpretação, superinterpretação.

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ABSTRACT

In this dissertation, I propose a hypothesis that the arrangement in popular music, requires a redefinition of the initial work. This process has as undisguised hermeneutic bias and demands cognitive processes, since it consists of the attribution of new meanings to the composer's idea, which, in turn, must be previously perceived and understood by the arranger. In this perspective, I propose that musical arrangement must be taking your meaning as more generic, before all, as a form of musical interpretation and will be more original as the arranger, interpreter of quality, distancing themselves from the composer’s original form, without, however, it changing its characteristics. From the analysis of the musician Dori Caymmi’s Works as an arranger, I believe that the world of popular music, the elaboration of the arrangement of a song is mainly an interpretative activity and it is expected that the arranger will express a personal perspective of the musical work, intrinsically different from the original form. This proposition will be initiated with the definition of some concepts, such as musical meaning, interpretation and reinterpretation. The following proposal of reinterpretation for a comparison between the original arrangements of the song "Cinema Paradiso" by Ennio Morricone, and “Aquarela do Brazil” by Ary Barroso, prepared by Radames Gnattali, and interpretation of the same musical works by Dori Caymmi, confirming the viability of this hypothesis.

Keywords: Dori Caymmi, musical arrangement, musical meaning, reframing, Interpretation, reinterpretation.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO............................................................................................. 11

CAPÍTULO 1 – METODOLOGIA....................................................................... 15 1.1 Introdução................................................................................................... 15 1.2 História oral de vida................................................................................... 17 1.3 Análise musical.......................................................................................... 18 1.4 Conclusão................................................................................................... 19

CAPÍTULO 2 – DORI CAYMMI.......................................................................... 21 2.1 Dados biográficos...................................................................................... 21 2.2 Tradição e tradução: indivíduos traduzidos............................................ 22 2.3 Conclusão................................................................................................... 26

CAPÍTULO 3 – CONCEITOS............................................................................. 28 3.1 O arranjo e o arranjador na música brasileira.......................................... 28 3.1.1 Introdução.................................................................................................... 28 3.1.2 Arranjo musical............................................................................................. 30 3.1.3 O arranjador.................................................................................................. 33 3.1.4 Conclusão.................................................................................................... 37 3.2 Significado musical.................................................................................... 38 3.2.1 Introdução.................................................................................................... 38 3.2.2 O significado musical em Leonard Meyer.......................................................... 41 3.2.2.1 A ressignificação da obra musical..................................................................... 41 3.2.2.2 A ressignificação e o arranjo musical................................................................. 44 3.2.2.3 Conclusão................................................................................................... 45 3.2.3 Gadamer e a hermenêutica da obra de arte........................................................ 46 3.2.3.1 Introdução................................................................................................... 46

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3.2.3.2 A questão da hermenêutica da obra de arte........................................................ 49 3.2.3.2.1 A jangada partiu com Chico Ferreira e Bento: a jangada voltou só.......................... 51 3.2.3.2.2 Saveiros, a jangada e a questão do significado musical....................................... 55 3.2.3.3 O arranjo como forma de interpretação.............................................................. 59 3.2.3.4 Conclusão................................................................................................... 60 3.2.4 Nicholas Cook e a música como processo........................................................ 60 3.2.4.1 Introdução................................................................................................... 60 3.2.4.2 Significado potencial e significado emergente...................................................... 63 3.2.4.3 O significado musical e o arranjador.................................................................. 65 3.2.4.3.1 O compositor surdo..................................................................................... 65 3.2.4.3.2 A partitura como script................................................................................. 66 3.2.4.4 Conclusão................................................................................................... 69 3.2.5 Umberto Eco, a obra aberta e a superinterpretação............................................. 70 3.2.5.1 Introdução................................................................................................... 70 3.2.5.2 A abertura da obra de arte............................................................................... 71 3.2.5.3 O arranjador e a abertura da obra musical........................................................... 76 3.2.5.4 A questão da superinterpretação...................................................................... 77 3.2.5.5 Conclusão................................................................................................... 80 3.2.6 A ressignificação musical na convergência dos pensamentos de Meyer, Gadamer, Cook e Eco............................................................................................ 80

CAPÍTULO 4 – DORI CAYMMI E O NACIONALISMO MUSICAL BRASILEIRO..................................................................................................... 82 4.1 A questão da síncope................................................................................. 82 4.2 Meu Brasil brasileiro: a invenção das tradições..................................... 86 4.3 Conclusão................................................................................................... 89

CAPÍTULO 5 –O ARRANJO COMO MEIO DE RESSIGNIFICAÇÃO DA OBRA MUSICAL............................................................................................... 90 5.1 Introdução................................................................................................... 90 5.2 A ressignificação de “Cinema Paradiso”................................................ 90 5.2.1 Introdução.................................................................................................... 90 5.2.2 A versão original de 91

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Morricone........................................................................ 5.2.3 O arranjo de Dori Caymmi............................................................................... 92 5.2.4 Conclusão.................................................................................................... 97 5.3 A ressignificação de “Aquarela do Brasil”............................................... 99 5.3.1 Introdução.................................................................................................... 99 5.3.2 A “Aquarela do Brasil” de Radamés Gnattali..................................................... 100 5.3.3 A ressignificação da “Aquarela do Brasil” por Dori Caymmi................................. 105 5.3.4 Conclusão.................................................................................................... 108

CAPÍTULO 6 – CONCLUSÃO GERAL.............................................................. 110

REFERÊNCIAS................................................................................................. 114

ANEXOS............................................................................................................ 119 Anexo I – Entrevista concedida por Dori Caymmi em 3 de março de 2014... 120 Anexo II – Dori Caymmi – Declarações de um brasileiro (DVD)

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 − A partitura é vista sob uma perspectiva estrita. ......................................................... 73

Figura 2 − A partitura explicita a abertura da forma musical. ..................................................... 74

Figura 3 − No primeiro compasso as figuras de tempo são simétricas. No segundo compasso há o prolongamento da segunda figura, resultando em uma colcheia que desloca a acentuação rítmica para o centro do grupo de notas. ................................................................ 82

Figura 4 − As ligaduras entre a terceira e a quarta e entre a sexta e a sétima semicolcheias foram substituídas por apenas uma colcheia, situada no centro do primeiro e do segundo tempos, o que melhor representa o deslocamento da acentuação rítmica para o interior do compasso. ................................................................................................................................... 83

Figura 5 − O que seria um ritmo contramétrico do tipo 2+3 é “comprimido” pela quiáltera para um 2+2. Ou, visto por outro ângulo, o tempo ternário da valsa é “expandido” com a maior duração da primeira porção do compasso. ................................................................................ 84

Figura 6 − O tema é apresentado pela mão direita com apoio da voz mais aguda da mão esquerda. .................................................................................................................................... 91

Figura 7 − A partir do compasso 4 Morricone adota o mesmo recurso identificado em Chopin, com a melodia na mão direita sendo apoiada pela voz mais aguda da mão esquerda, em intervalo de 3a menor. ................................................................................................................ 92

Figura 8 − A batida do violão estrutura-se sobre síncopes do 3º e 4º tempos. .......................... 93

Figura 9 − Escrita de Morricone, com acentuação das notas mi bemol e dó, dos tempos 1 e 3, dos grupos simétricos de 4 colcheias. .................................................................................... 94

Figura 10 − Escrita de Caymmi, com o deslocamento da acentuação para a nota ré do 2º compasso, em grupos assimétricos, ora de três semínimas em quiálteras, ora em duas semínimas planas. ...................................................................................................................... 94

Figura 11 − Introdução original, com o arpejo de BbM9. ............................................................ 95

Figura 12 − Seção “A” do arranjo, com acordes que alternam DM9 e D(sus4)9. ....................... 95

Figura 13 − Os elementos melódicos da introdução remetem a “Oh, Dandá”, de Antonio Carlos Jobim, aqui transcritos na forma original. ........................................................................ 96

Figura 14 − A primeira citação do refrão de “Estrada Branca” (de Jobim) ocorre na introdução, pelo baixo elétrico. ................................................................................................... 97

Figura 15 − O mesmo elemento é repetido na seção central, pelos violinos, e explicitado na seção final. .................................................................................................................................. 97

Figura 16 – A introdução instrumental do arranjo remete à sonoridade típica das grandes orquestras em atividade nas rádios do país na década de 1930. .............................................. 101

Figura 17 − Os primeiros versos são introduzidos ainda no compasso quaternário, com a estruturação da melodia entoada pelo cantor em quiálteras. ..................................................... 101

Figura 18 − Os metais executam o contracanto passivo, aqui representado pela melodia notada a partir do compasso 9 dessa transcrição. ..................................................................... 102

Figura 19 − As notas que compõem esse fragmento melódico e rítmico foram retidas da quinta, sexta menor e sexta-maior do acorde de Ab6. Observe-se sua interação com a melodia a partir do compasso 18 da figura anterior. .................................................................. 102

Figura 20 − A 1ª Voz, nesta transcrição, representa a melodia do samba, cantada por Francisco Alves. A 2ª Voz refere-se à linha melódica dos metais, com estruturação sincopada, o que é considerado um marco na orquestração popular brasileira. ....................... 103

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Figura 21 − Na 2ª Parte do samba o naipe de sopros, aqui representado na 2ª voz, persiste no contracanto sincopado, até o seu encerramento com uma escala cromática ascendente estruturada em quiálteras, à semelhança do que ocorrera na introdução do arranjo. ............... 104

Figura 22 − O caráter grave do arranjo revela-se no seu registro na região C2 do piano. A partir do compasso 6 (da representação acima) observa-se a citação da famosa ponte introduzida por Gnattali em seu arranjo analisado acima. O baixo executa o pedal harmônico na nota G1. ................................................................................................................................. 106

Figura 23 − Os elementos do contracanto original estão representados na quarta dos acordes acima, exatamente as notas G, Ab e A do centro tonal de C Maior. ............................ 107

Figura 24 − À semelhança de Gnattali, Dori mantém o contracanto sincopado como acompanhamento da melodia que aqui merece tratamento ainda mais contramétrico. ............ 107

Figura 25 − Na seção final do arranjo, o bordão de Gnattali é fragmentado com maior destaque para as notas Bb e B. ................................................................................................. 108

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APRESENTAÇÃO

A interpretação tem, no campo da arte, um papel importante e central, pois o ato de

interpretar é pressuposto da fruição da obra de arte. Nesse sentido, a história da estética poderia ser

redirecionada para uma história das teorias interpretativas, para a investigação dos efeitos que a obra

de arte provoca em seu fruidor, como afirma Umberto Eco (2012, p. 3). A principal característica da

interpretação é, nessa perspectiva, a sua infinidade, pois toda atividade interpretativa está sujeita a

revisão, integração e aprofundamento diante dos diferentes contextos em que se situa o objeto

estético. O mesmo entendimento a respeito do tema é encontrado na hermenêutica de Hans-Georg

Gadamer (2010), para quem a atualidade da obra de arte consiste precisamente no fato de ela se

achar sempre aberta a novas interpretações. O traço característico da linguagem da arte é, nessa

perspectiva, o excesso de sentido sobre o qual repousa sua natureza inesgotável.

Na música erudita, desde o início do século XX, a principal diretriz da interpretação tem sido

o respeito à intenção do compositor e ao contexto histórico em que a obra foi concebida, a fim de

revelar ao público, com a maior fidelidade possível, a forma sonora da composição musical em sua

origem. Thurston Dart (2000, p. 8) e Nikolaus Harnoncourt (1982), dois destacados teóricos europeus

dessa corrente, cujas obras são, ainda hoje, largamente adotadas nos cursos de graduação e de pós-

graduação em música no Brasil, defendem com veemência a busca pela autenticidade nas

performances de música erudita, sobretudo em relação ao repertório da música antiga. Para ambos,

a vontade “original” do compositor deve ser tomada como a autoridade suprema, o principal

parâmetro para a correta e autêntica interpretação da obra musical.

Embora já possa ser considerada um debate antigo e ultrapassado a questão da

precariedade da partitura e do pentagrama como a expressão positiva e exaustiva da obra musical,

como leciona Nicholas Cook (2001), percebe-se que persiste na comunidade acadêmica a convicção

de que a sobrevivência da tradição erudita está estritamente atrelada ao ânimo de colocar-se o

músico em um plano secundário no momento da performance, de modo a revelar ao público uma

sonoridade fiel ao contexto histórico no qual se deu a criação musical e àquilo que seu autor

pretendeu, através dela, expressar. É nesse sentido que Joseph Kerman (1987, p. 268) discorre

sobre a imagem pejorativa que se construiu na academia a respeito do músico que não se submete a

tais limites, visto como um intérprete intelectualmente desacreditado, aquele que explora a música

como veículo para expressar apenas sua própria personalidade.

No campo da música popular, em que se situa esta pesquisa, a questão da originalidade da

interpretação revela-se de maneira diferente do que ocorre na tradição erudita. O que é para o

músico erudito um ato de fidelidade e reverência ao autor ou de respeito obsequioso à partitura, no

caso da música popular afigura-se materialmente inviável. É que prepondera na música popular a

tradição oral, contexto em que a notação musical é muito precária, sendo comum buscar no

fonograma, ou em outro suporte de registro mecânico, dados sobre a interpretação “original” da obra

pelo próprio compositor. Tais informações, entretanto, representarão, no máximo, um ponto de

partida para o intérprete, não um fim a ser alcançado.

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De fato, a questão da originalidade da interpretação assume acepções muito distintas na

música erudita e na música popular. Naquela considera-se que, em regra, os excessos ou exageros

do intérprete, além de não guardarem fidelidade à vontade do compositor, traduzem o esforço inútil

de melhorar a obra musical, algo que é, por definição, considerado produto de um gênio. Por um

imperativo lógico, o detentor dessa genialidade, o compositor erudito, é o mais legitimado a

compreender corretamente sua obra-prima: a genialidade é, assim, a um só tempo, fonte de

legitimação da obra musical e de sua correta interpretação.

Na música popular, diversamente, a questão da forma musical coloca-se de maneira muito

mais aberta, sendo natural e até mesmo esperado por parte do intérprete uma intervenção maior no

momento da performance. Paulo Aragão (2001, p. 11) afirma que isso decorre da maior fluidez da

“instância de representação do original” na música popular, o que legitimaria e encorajaria a maior

intervenção do intérprete.

Qualquer música popular, nesse sentido, demandaria, mesmo na sua mais precária

execução, a elaboração de um arranjo, ainda que diminuto; em suas palavras, um microarranjo, onde

intérprete e arranjador se confundiriam. Em conclusão, na música erudita essa instância seria menos

fluida e coincidiria com a própria partitura, fonte primária das intenções criativas do autor. Na música

popular, ao contrário, a fluidez e a precariedade da instância de representação do original

demandariam a elaboração de um arranjo, mesmo que diminuto, para viabilizar a performance.

Pode-se legitimamente objetar, na perspectiva da tradição erudita, por exemplo, a razão por

que um arranjador tencionaria melhorar a concepção de Beethoven acerca de qualquer de suas

sinfonias, introduzindo novos elementos não vislumbrados pelo genial compositor: será factível o

intento de melhorar uma obra-prima? Da mesma forma, no domínio popular, é recebida como mera

curiosidade a interpretação de um samba de Noel Rosa que tenha por escopo o resgate de sua

sonoridade histórica e que seja fiel aos elementos rítmicos, harmônicos e tecnológicos

contemporâneos ao compositor. A pergunta aqui será outra: por que o apego a uma estética datada e

ultrapassada?

Essa distinção é importante para a conceituação do arranjo musical, tema sobre o qual trata

esta pesquisa. É que, adotando-se a distinção entre a interpretação na música erudita e na música

popular, observa-se que a intervenção do arranjador em uma peça erudita será considerada, em

regra, um gesto de indevido distanciamento da originalidade da obra, com a introdução criativa de

alterações na concepção primeira e genial do compositor. Uma intervenção que, além de não ser

esperada é, em regra, evitada, pois coloca em xeque a própria genialidade do autor, com o

decréscimo da autenticidade. No campo da música popular, a intervenção do arranjador, além de não

ser repelida, é regra e não exceção. A partir do distanciamento do arranjador em relação à concepção

autoral, o arranjo original promoverá a ressignificação da obra musical, afastando-se legitimamente

da concepção do autor e do momento da criação artística. De fato, na música popular o resultado

será tão mais original quanto maior for a intervenção proposta pelo arranjador, sem a preocupação de

preservar a autenticidade.

Estabelece-se, assim, um paradoxo entre duas acepções de ser “original”: na música

erudita a originalidade é alcançada pela fidelidade obsequiosa do intérprete ao autor. Na música

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popular a originalidade é, em regra, obtida a partir do maior exercício da criatividade, mediante uma

interpretação de amplo espectro. É na tensão entre obséquio e criatividade que se tem situado o

arranjador: no domínio popular ele confunde-se com o intérprete; na tradição erudita ele equipara-se

ao compositor. O que procurarei demonstrar nesta pesquisa é que os limites entre a criação e a

interpretação não são tão estanques como se apresentam a partir do senso comum. Há em toda

interpretação, mesmo que estrita, grande dose de criatividade. Do mesmo modo, por mais criativo

que seja o arranjo, há limites impostos pela forma musical para que a obra mantenha sua identidade:

um jogo entre surpresa e redundância que me proponho a debater segundo a teoria do significado

musical de Leonard Meyer.

O estudo de dois arranjos elaborados por Dori Caymmi foi aqui adotado para responder a

esta indagação: como se estabelecem os limites entre a interpretação e a criação musical na tradição

popular? A resposta a essa pergunta passa por investigar como ocorreu a ressignificação da obra

musical pelo arranjador, isto é, em que medida Dori Caymmi adotou procedimentos de natureza

musical e extramusical que influenciaram em seu processo de compreensão das obras analisadas,

possibilitando-lhe extrair de uma mesma canção popular significados tão distintos daqueles

almejados pelo compositor ou obtidos por outro arranjador. Proponho esta reflexão sob quatro

perspectivas conceituais distintas e convergentes: a teoria do significado musical de Leonard Meyer;

a hermenêutica da obra de arte, de Hans-Georg Gadamer; a perspectiva da música enquanto

processo, de Nicholas Cook; e, por fim, o conceito de obra aberta de Umberto Eco.

Para viabilizar a investigação acerca do processo de ressignificação inerente ao arranjo

musical, buscarei situar o arranjador Dori Caymmi no contexto cultural brasileiro, sua relação com o

nacionalismo musical da primeira metade do século XX, sua atividade no teatro e na televisão

brasileira a partir dos anos 1960, e a repercussão de seu trabalho no cenário internacional, na década

de 1990. Minha intenção, com isso, é revelar os pressupostos musicais e extramusicais segundo os

quais seus arranjos foram concebidos. Esses pressupostos relacionam-se à síncope como traço

característico da música popular brasileira, o processo de construção da identidade nacional pelo

movimento modernista no início do século XX e a questão da preservação das raízes culturais pelo

artista que se fixa fora de seu país.

Por fim, farei a análise de dois arranjos originais: da canção-título do filme Cinema Paradiso,

de autoria de Ennio Morricone, e do samba “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. No primeiro caso,

farei a comparação entre a forma original de Ennio Morricone e a interpretação de Dori Caymmi; no

segundo caso proponho o confronto entre o arranjo de Radamés Gnattali para a “Aquarela do Brasil”,

elaborado no ano de 1939 e o de Dori, elaborado nos Estados Unidos da América em 1993. Pretendo

com a análise comparativa dos dois arranjos demonstrar como o arranjador musical é antes de tudo

um intérprete e, como tal, extrai novos significados da forma concebida pelo autor. Para isso, parto do

pressuposto de que, no universo da música popular, a elaboração do arranjo de uma canção é

atividade eminentemente interpretativa e espera-se que o arranjador expresse uma perspectiva da

obra musical que, por sua natureza, seja distinta da forma primitiva.

O fato de Dori Caymmi decodificar o significado originário e reestruturá-lo para a

performance, sem contudo afetar a identidade da canção ou infirmar sua autoria, resulta, como

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demonstrarei ao longo desta dissertação, na ressignificação da obra musical. Esse é um fazer

interpretativo inerente à polissemia da obra de arte, algo que decorre do excesso de sentido sobre o

qual repousa a fruição inesgotável do objeto estético. A originalidade do trabalho do arranjador é,

nesse sentido, campo apropriado para investigar os limites musicais e extramusicais desse processo

de ressignificação.

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CAPÍTULO 1 − METODOLOGIA 1.1 Introdução

Nesta pesquisa utilizei duas principais ferramentas para a investigação do processo de

ressignificação musical empreendido por Dori Caymmi. Por um lado, adotei a história oral de vida

para a coleta de dados, com a tomada de depoimentos do próprio músico acerca de sua atividade

artística em geral e, especificamente, a respeito de sua atuação como arranjador. Por outro lado,

procedi à análise musical de dois fonogramas produzidos por Dori Caymmi, com a transcrição de

parte das duas obras analisadas, para o cotejo entre o que se colheu nos depoimentos e o resultado

sonoro dos arranjos.

Não me ocupei nesta pesquisa de proceder à denominada “análise do discurso”, isto é, do

esforço de interrogar a própria linguagem, a que se refere Michel Foucault (1986, p. 56): de captar o

sentido não explícito no discurso. A palavra, no âmbito da história oral, é tomada como verdade a

partir, única e exclusivamente, da convicção de quem presta o depoimento, não competindo ao

pesquisador confrontá-la na qualidade de fonte de sua investigação. Ademais, a análise do discurso,

levando-se em conta o farto testemunho que foi aqui colhido, demandaria fôlego para a realização de

outra pesquisa com, no mínimo, a mesma dimensão e profundidade que dediquei a este trabalho.

Quanto à análise dos fonogramas, situei-me no meio-termo entre a abordagem

musicológica tradicional (da musicologia sistemática) e a abordagem antropológica da

etnomusicologia. De fato, como afirma Napolitano (2014, p. 255), os aportes teórico-metodológicos da

musicologia histórica e da etnomunicologia, áreas de tradição acadêmica mais consolidada, podem

distorcer os resultados da pesquisa quando aplicados mecanicamente no campo da “música popular”.

Para esse autor, a musicologia ocupa-se, primordialmente, do estudo da vida dos compositores, dos

instrumentos por eles utilizados e das formas musicais eruditas. Para Napolitano, a etnomusicologia

teria, diversamente, como foco principal as manifestações musicais inseridas nas práticas sociais, tais

como as celebrações comunitárias, os rituais religiosos, as danças etc., em que a música é um dos

elementos desse amálgama. O etnomusicólogo, nessa perspectiva, teria no trabalho de campo e na

etnografia o centro de atenção da pesquisa. A definição é dada, neste caso, pelo objeto, quando as

novas abordagens da etnomusicologia a definem pelo método, isto é, pelo emprego da etnografia.

De fato, a indagação central acerca de como se dá o processo de ressignificação da obra

musical pelo arranjador não poderia ser respondida apenas a partir da análise tradicional das

“partituras” de arranjos, segundo a perspectiva da musicologia sistemática. É que, como demonstrarei

a seguir, o arranjo em música popular é um processo complexo e dinâmico, que vai desde a

contratação do trabalho, passando por seu processo de elaboração formal, até a efetiva performance

ao vivo ou seu registro em fonograma, o que envolve aspectos tecnológicos e negociais que vão

muito além de transcrever uma “grade” de arranjo. Com efeito, esse fenômeno multifacetado tem na

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partitura escrita um mero roteiro ou script, isto é, uma positivação muito precária e parcial de toda a

sua riqueza e complexidade:

Na análise da chamada “música popular” produzida pela indústria fonográfica e audiovisual, a questão das fontes coloca-se de outra maneira. O suporte privilegiado de boa parte da produção musical urbana, voltada para o mercado, é o fonograma (NAPOLITANO, 2014, p. 256).

A etnografia, por outro lado, teria por escopo formular uma descrição densa dessa prática

musical sem, contudo, debruçar-se sobre o foco da pesquisa, isto é, a análise do processo e do

produto musical resultante dessa ressignificação. Ademais, como salienta Napolitano (2014, p. 255),

a etnomusicologia volta-se, primordialmente, ao estudo das formas e manifestações musicais dos

grupos comunitários, de caráter social e integrador ou ritualístico, o que de certo modo se distancia

da música popular contemporânea, produzida pela indústria do entretenimento para o mercado de

consumo. À semelhança da tradição erudita, a obra musical é vista, aqui também, como objeto, como

um produto a ser comercializado, o que a diferencia das práticas musicais inseridas e disseminadas

na comunidade de que trata primordialmente a etnomusicologia.

Adotei, por conseguinte, ferramentas de várias disciplinas. Não dispensei, em certa medida,

a análise estritamente musical da musicologia histórica e sistemática, tampouco a perspectiva

antropológica legada pela etnomusicologia, para compreender a ressignificação musical no contexto

em que o arranjo foi concebido, com o recurso, também, à história oral de vida. Coerente com esse

pluralismo metodológico, evitei simplesmente substituir a análise da partitura, como manifestação

positiva da obra musical, pela análise do fonograma, o que seria adotar a mesma perspectiva

positivista da musicologia histórica, apenas com a substituição do suporte tecnológico tradicional (a

partitura), por um suporte mais moderno (o fonograma). É que, no estudo da música popular, como

salienta Ferreira (2012, p. 1), uma única disciplina parece não dar conta da abrangência e alcance

dessa manifestação cultural em toda a sua potencialidade. Há o chamamento do pesquisador à

interdisciplinaridade, de modo a propiciar um múltiplo, coerente e autêntico diálogo entre disciplinas,

de forma a delas extrair fundamentos teóricos e metodologias que se completem mutuamente.

Tratando-se de uma pesquisa qualitativa, abdiquei, desde o início, da intenção de esgotar a

abordagem da totalidade do objeto. Assumi, por outro lado, como pressuposto, que inexiste um objeto

puro e inalterável; tampouco existe neutralidade por parte do pesquisador. Nesse sentido, apoiei-me

em Freire (2010), que, ao discorrer sobre novos horizontes da pesquisa em música, salienta que esse

tipo de investigação, de feição fenomenológica, considera a obra algo em constante processo de

ressignificação, “pois procura descrever a forma musical (macro ou micro) a partir da interação da

experiência significativa do sujeito com a experiência de criação do autor”.

Discorrerei brevemente, a seguir, a respeito das duas principais ferramentas metodológicas

adotas: a história oral de vida e a análise musical.

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1.2 História oral de vida

Busquei, com recurso à história oral de vida, colher as impressões do próprio artista quanto

à sua atuação como arranjador e sua inserção no universo da música popular contemporânea. Esta

metodologia, como afirma Meihy (2005, p. 148), tem por foco a experiência do entrevistado ou

colaborador, a partir de sua própria visão, sem a preocupação com a busca de uma verdade objetiva.

O autor alerta que se deve possibilitar ao entrevistado a maior liberdade possível para dissertar sobre

sua trajetória, sem a preocupação de estabelecer uma cronologia fixa ou um roteiro determinado, pois

“a verdade está na versão apresentada pelo narrador” (MEIHY, 2005, p. 149).

Forte nesse pressuposto, realizei duas entrevistas com Dori Caymmi, nas quais

conversamos longamente sobre os mais variados temas relacionados à música em geral e,

especificamente, sobre seu trabalho como arranjador. Essas entrevistas foram registradas

digitalmente e sua transcrição integra os Anexos desta dissertação. As entrevistas possibilitaram não

apenas colher dados objetivos sobre a maneira como Dori Caymmi ressignifica as obras musicais em

seus arranjos, como também recolher dados sobre sua experiência como compositor, diretor musical

e instrumentista, além de reunir informações sobre os contextos em que os arranjos aqui analisados

foram elaborados.

A meu convite, Dori Caymmi esteve presente no auditório do Departamento de Música de

Brasília, em 29 de outubro de 2014, ocasião em que proferiu palestra, cantou e tocou violão para

discorrer sobre sua trajetória profissional. O evento foi registrado em um longo vídeo. Este material

gerou um documentário produzido pela UnB-TV1 sob o título Dori Caymmi: Declarações de um

Brasileiro e também integra os Anexos desta dissertação. Trata-se de uma importante fonte de

história oral complementar às entrevistas realizadas privadamente com Dori.

O estabelecimento desse tipo de diálogo entre o observador e o observado é enaltecido por

Duprat, para quem a hermenêutica, a partir dos anos 1980, supera a suposta neutralidade da visão

estruturalista-positivista dos anos 1970:

Aí reside um aspecto fundamental da posição hermenêutica com relação ao estruturalismo, cujo pensamento tem como telos a revelação e posse, pela consciência observadora, de “ordens articuladas segundo regras”, segundo códigos. A atitude hermenêutica enfatiza que observador e observado pertencem a horizontes comuns (GADAMER, 1991), sendo a verdade um evento no diálogo entre ambos, numa fusão de horizontes (DUPRAT, 2007, p. 17).

Busquei, nessa perspectiva, com a adoção das ferramentas da história oral, romper, a um

só tempo, os mitos da neutralidade científica e do isolamento acético do objeto investigado de que

fala Demo (2011, p. 37). Ele nos convida a ver a pesquisa como um diálogo, pois a investigação não

deve restringir-se a uma simples descoberta, sucedida da correspondente análise teórica:

                                                                                                               1  Dori Caymmi: Declarações de um Brasileiro. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=BZ6Vg0tiCHw>.  

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De outro lado, é mister fazer a aproximação devida entre pesquisar e dialogar. De certa maneira, se em ciências sociais não cabe propriamente a noção e a oposição de objeto, o relacionamento será de dois sujeitos, entre os quais cabe o diálogo como forma mais madura de convivência.

Em conclusão, esta investigação científica, de feição qualitativa, baseou-se não apenas na

análise da manifestação positiva do trabalho do arranjador, isto é, na análise do fonograma ou de

partituras. Paralelamente à audição dos arranjos e transcrição de parte deles, para que se pudesse

discorrer a respeito de aspectos estruturais e formais (da musicologia sistemática), foram

consideradas as impressões do próprio Dori Caymmi em relação ao tema, contextualizado no

horizonte histórico do sujeito da pesquisa e do próprio pesquisador: estabeleceu-se, assim, uma

relação dialógica entre ambos.

1.3 Análise musical

O The New Grove Dictionary of Music and Musicians (SADIE, 1994, p. 28) conceitua a

análise musical como a decomposição de uma estrutura musical nos seus elementos constitutivos

mais simples e a investigação desses elementos no interior dessa estrutura. Trata-se, segundo essa

conceituada publicação, de um ramo do conhecimento musical que tem como referência a própria

música, e não parâmetros externos: o foco da análise seria a “própria” música, considerada em si

mesma.

Atento à relevância de considerar o contexto em que a obra musical é concebida, Corrêa

(2006, p. 48) formula a seguinte indagação: “Existe a música em si mesma?” A música em si mesma,

nessa perspectiva, corresponderia apenas ao estudo dos elementos que a integram:

Sua estrutura, como motivos, frases, períodos, seções, escalas, tonalidade, modulações, regiões, aspectos melódicos, harmônicos, polifônicos, texturais, rítmicos, entre uma série de outros componentes que poderiam também ser mencionados.

Joseph Kerman (1987, p. 93), sensível ao tema, pondera que por séculos a atenção dos

analistas esteve centrada apenas no funcionamento interno de uma obra-prima, à semelhança da

filologia em voga no século XIX. A análise, nessa perspectiva, teria na obra musical uma entidade

autônoma, sem considerar os aspectos circunstanciais, o contexto em que as obras foram

concebidas e são interpretadas. Kerman, um intelectual estritamente vinculado ao período de

transição entre o pensamento musicológico histórico e a nova abordagem da teoria e da análise

musical, demonstra como a análise tradicional se inseriu no grande sistema positivista da crítica do

século XX, cuja atenção se voltou, primordialmente, para a música europeia de tradição erudita

composta até o século XIX. O analista funcionava, nessa perspectiva, como mediador entre o público

e o artista, como um tradutor da obra de arte, o que seria, em seus elementos estéticos, inalcançável

ao leigo.

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Ao abordar a questão da análise no âmbito da etnomusicologia, Ribeiro (2010, p. 56)

ressalta como essas ferramentas da musicologia histórica e sistemática, largamente utilizadas ao

longo do século XX, mostraram-se inadequadas para uma abordagem antropológica da música. É

que, como salienta o autor, já não basta para responder às indagações dos etnomusicólogos a

demonstração das estruturas formativas das obras musicais, uma análise que as considera um fim

em si mesmas: uma análise musical, para a etnomusicologia, deve ter a finalidade de demonstrar

quais são os elementos musicais tidos como de maior importância naquele sistema musical. De fato,

como ressalta Ribeiro, a etnomusicologia teve o condão de explicitar como a música funciona em

outros níveis de significação além da sintaxe, razão por que a análise musical também deveria fazê-

lo, sob pena de uma abordagem extremamente parcial e limitada de toda a riqueza desse fenômeno.

Observe-se que essa nova abordagem pressupõe um salto da estrutura interna do objeto estético, ou

da prática musical, para o meio circundante (o sistema musical), contexto no qual a obra está inserida

e que não pode ser apartado do procedimento analítico.

É também essa a ponderação de Corrêa (2006), de que a música, como manifestação

artística, está envolta em um grande aparato cultural, compreendendo sua matéria-prima, seus meios

de produção e divulgação, sua linguagem própria, de transmissão e representação etc., aspectos que

não podem ser simplesmente apartados da análise musical.

Como afirma Kerman (1987, p.93), o conceito tradicional de análise, como a elucidação de

uma espécie de organismo teleológico, teve de ser superado e estendido por não dar conta de toda a

complexidade dos novos objetos em estudo. A análise da nova musicologia interessou-se por

examinar as intenções do compositor em contraste com a realização composicional, discutir as

implicações do sistema de composição no que diz respeito à música em geral, pensar como essa

música se relaciona com a música mais antiga e com a música atual. Em síntese, o que importa, a

partir de então, é encontrar formas de lidar com outros tipos de valor estético além do organicismo;

alargar o espectro da pesquisa para perquirir sobre como essa nova música reflete a realidade.

Nessa perspectiva, a etnomusicologia e a nova musicologia, cada qual ao seu modo,

parecem nos propor um outro paradigma para a análise musical, ao reconhecerem estar a música

disseminada em toda a sociedade, e não envolta em uma redoma acadêmica, uma redoma que, a

par de sustentar-se sob o discurso da neutralidade, tem sua raiz ideológica. Torna-se inexorável

adotar essa abertura metodológica, mais centrada no fenômeno do que no sujeito ou no objeto, para

a expansão da percepção acerca das manifestações populares. O caso do arranjo em música popular

é emblemático e demanda, para sua compreensão, a confluência de diversas ferramentas analíticas

e metodológicas. É do diálogo entre diversas disciplinas que procurarei, a seguir, analisar como

ocorre a ressignificação musical.

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1.4 Conclusão

A adoção de diversas ferramentas analíticas e metodológicas para abordar a produção de

um artista da música popular brasileira é a busca por formas de legitimação de um novo repertório,

distinto daquele sobre o qual se debruçou a academia ao longo do século XX. O advento do novo

milênio não mais possibilita a redução da questão musicológica ao estudo da organicidade do cânone

musical europeu, durante séculos considerado o grande símbolo civilizacional da humanidade. O

relativismo cultural característico da pós-modernidade, institucionalizado ainda na década de 1950

com a criação das Nações Unidas, teve o condão de abrir a todos os povos do planeta a

possibilidade de acesso a novos objetos culturais, que demandam, desde então, discursos para sua

legitimação e de seu consumo, discursos esses de natureza mercadológica, acadêmica, ideológica

etc. A disseminação desses objetos culturais impôs a consolidação de novas ferramentas de

investigação científica.

A metodologia que empreguei nesta pesquisa proporcionou, nesse sentido, os instrumentos

adequados para elucidar como ocorre a ressignificação da obra musical, segundo as quatro

perspectivas teóricas que serão abordadas ao longo deste texto.

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CAPÍTULO 2 – DORI CAYMMI

2.1 Dados biográficos

Dorival Tostes Caymmi – Dori –, filho do compositor, cantor e violonista Dorival Caymmi e

da cantora Stella Maris, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1943. Iniciou seus estudos de

música pelo piano, frequentando aulas particulares dos oito aos onze anos. Nesse período estudou

também teoria musical no Conservatório Lorenzo Fernandes, no Rio de Janeiro. Foi, ainda na

adolescência, aluno de harmonia do professor Paulo Silva e do maestro Moacyr Santos. Adotou o

violão como instrumento principal sob a influência de seu pai, portador, segundo Dori Caymmi, de

uma sonoridade misteriosa 2 . Mas foi a partir das performances de João Gilberto, assíduo

frequentador da residência dos Caymmi antes mesmo da eclosão da Bossa Nova, que decidiu ser

violonista. Espelhou-se, ainda, nas lições de Baden Powell, outro frequentador habitual da família

Caymmi.

Após curta incursão no universo da teoria musical, optou pelo autodidatismo, consolidando-

se como orquestrador a partir das lições colhidas junto aos grandes mestres com quem conviveu,

como Antônio Carlos Jobim, Radamés Gnattali e Luiz Eça, para quem atuou, inclusive, como copista.

Seus conhecimentos de regência e arranjo foram acumulados no contato diário com as orquestras

dos estúdios de televisão e das grandes gravadoras onde trabalhou.

É no contexto da Bossa Nova, no início dos anos 1960, que Dori Caymmi inicia suas

atividades artísticas, quase simultaneamente à sua atuação como violonista. Primeiro em produções

teatrais, passando para a indústria fonográfica, onde alcança destaque também como orquestrador.

Já nesse período, como afirma Smarçaro (2006), era possível identificar em seu trabalho a forte

influência dos arranjadores norte-americanos Gil Evans, Nelson Ridle e Johnny Mandel.

Ainda jovem, começou a compor trilhas sonoras para programas de televisão e peças de

teatro, atuando ora como arranjador ora como produtor e diretor musical. Sua atuação como

compositor foi destacada nos festivais da década de 1960, ocasião em que teve músicas defendidas

por MPB-4 (“Cantiga”), Nana Caymmi (“Saveiros”, com Nelson Motta) e Elis Regina (“O Cantador”,

com Nelson Motta). Nos anos 1970 trabalhou intensamente em trilhas para cinema e televisão. Foi

diretor musical de importantes espetáculos teatrais, como Opinião, Arena Conta Zumbi, Gota D’Água

e Calabar.

No Brasil, no que tange à orquestração, suas maiores referências foram Villa-Lobos,

Radamés Gnattali e Antonio Carlos Jobim. Com Radamés teve estreito relacionamento na Rede

Globo de Televisão, nos anos 1970. Com Jobim trabalhou, na elaboração dos arranjos do LP Matita

Perê e, na década de 1980, na trilha sonora de O Tempo e o Vento, produzido pela TV Globo.

                                                                                                               2 Conforme entrevista concedida ao autor em 3 de março de 2014.

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Nos anos 1990, migrou para os Estados Unidos da América, a convite do músico brasileiro

Sérgio Mendes, fixando, desde então, domicílio em Los Angeles, Califórnia. Teve, a partir daí,

oportunidade de atuar ao lado de arranjadores americanos de grande prestígio, como Henry Mancini,

Johnny Mandel, Dave Grusin e Quincy Jones. Para este último produziu três trabalhos autorais,

Brazilian Serenata (1991), Kicking Cans (1993) e If Ever (1994). Nesse período, sob a direção de

Mendes, produziu também todos os arranjos para o LP Brazilian Romance, da cantora norte-

americana Sarah Vaughan.

A partir de 1994, após a morte de Antônio Carlos Jobim, dedicou-se, por encomenda do

produtor japonês Kaz Hori, a uma série de homenagens aos compositores que o influenciaram, aos

seus colegas contemporâneos e aos compositores de trilhas sonoras para o cinema. São dessa fase

os CDs Influências, Contemporâneos e Cinema, a Romantic Vision. Este último, gravado em 1999, foi

dedicado à memória de Henry Mancini.

Em 2005, a canção “Saudade de Amar” (com Paulo César Pinheiro) recebeu o Grammy

Latino de melhor canção brasileira e Para Caymmi 90 Anos, gravado junto com os irmãos Nana e

Danilo, o melhor álbum de samba.

Em 2011 grava o álbum Poesia Musicada, com seu parceiro Paulo César Pinheiro e, em

2013, 70 Anos, também com letras do parceiro mais frequente.

Em 2014 é indicado duplamente ao Grammy Latino, pela melhor canção da música popular

brasileira do ano (“Alguma Voz”), também em parceria com Paulo César Pinheiro. No mesmo ano,

juntamente com os irmãos Nana e Danilo, é indicado para melhor álbum de música brasileira por

Caymmi, gravado para a Som Livre em homenagem ao centenário de seu pai, Dorival Caymmi.

Atuou como arranjador no trabalho de grandes nomes da MPB, como Nana Caymmi,

Antonio Carlos Jobim, Luiz Eça, Gilberto Gil, Edu Lobo, Sérgio Vale, Chico Buarque, Elis Regina,

Simone Bitencourt, Geraldo Azevedo, Zizi Possi, Joyce Moreno, entre outros.

2.2 Tradição e tradução: indivíduos traduzidos

Hall (2014, p. 45), ao abordar a questão da identidade cultural no âmbito da globalização,

afirma que as nações centrais do ocidente sempre estiveram propensas a repetir a fantasia do

período colonial, como uma espécie de culto ao elo perdido, no qual os nativos figurariam como

indivíduos puros e exóticos, em uma perspectiva quase idílica. Certo é que, como afirma Hall, as

sociedades da “periferia”, indiferentes a esse mito, sempre estiveram abertas às influências culturais

da metrópole, avessas ao conceito de serem lugares fechados ou etnicamente puros, abertura que

persistiria no contexto da globalização:

A globalização tem o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de

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identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mas políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas (HALL, 2014, p. 51).

Àqueles que assumem uma postura conservadora e tentam recuperar certa pureza anterior

à degeneração dos dias atuais, fruto do confronto entre culturas, Hall atribui a adoção de uma postura

tradicional. Por outro lado, aqueles indivíduos que se movimentam tendo por referência diferentes

tradições culturais, e que são produto de complicados cruzamentos e misturas culturais cada vez

mais presentes no mundo globalizado, Hall denomina personagens “traduzidos”. Segundo essa

dicotomia, as pessoas pertencentes às denominadas culturas híbridas, como a brasileira, são desde

cedo levadas a renunciar ao sonho de resgate da pureza cultural perdida, ou a advogar um

absolutismo étnico, pois são produto das diásporas coloniais e pós-coloniais:

Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas (HALL, 2014, p. 52).

Dori Caymmi enquadra-se perfeitamente no conceito de indivíduo traduzido de que trata

Stuart Hall. É herdeiro, por consanguinidade, de Dorival Caymmi, um dos principais responsáveis

pela consolidação da canção popular urbana brasileira na primeira metade do século XX. A música

de Caymmi, o patriarca, insere-se na construção da identidade nacional empreendida pelos

modernistas e descreve, de forma simples e natural, os costumes cariocas que compunham a

imagem oficial do país para o mundo e que se centrava no samba como símbolo maior de

brasilidade. Dori conviveu, desde cedo, na casa de seus pais (Dorival e Stella), com figuras

emblemáticas da florescente cultura nacional, com Ary Barroso, Vinícius de Moraes, Baden Powell,

Jorge Amado, João Gilberto e Caribé, dentre muitos outros.

Tendo crescido em um ambiente extremamente musical, Dori inicia sua atividade como

músico profissional na década de 1960, engajando-se no movimento da Bossa Nova. Sua primeira

aparição no ambiente fonográfico foi em colaboração com Antonio Carlos Jobim, no LP Caymmi

Visita Tom, no ano de 1964. Smarçaro (2006, p. 16) afirma, nesse sentido, que Dori vivenciou

intensamente o surgimento e o apogeu da Bossa Nova, sofrendo grande influência do violão de João

Gilberto e das composições e harmonias de Jobim, dois destacados personagens do movimento.

Ainda nesse período colaborou com outro importante personagem da Bossa Nova, o pianista e

compositor Luiz Eça, responsável pelos primeiros registros fonográficos das composições de Dori, as

canções “Velho Pescador” e “Amando”, ambas para o LP Luiz Eça e Cordas, no ano de 1967.

Legatário do repertório de seu pai e plenamente engajado na Bossa Nova, ao lado, como se

viu, de figuras de proa do movimento, seria natural que Dori Caymmi fincasse sua identidade nesses

dois importantes marcos da música brasileira: sua inquietação, não obstante, leva-o adiante. Em

1966 a canção “Saveiros”, em parceria com Nelson Motta, é defendida pela irmã Nana no I Festival

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Internacional da Canção, sagrando-se vencedora na etapa nacional da competição e figurando como

2ª colocada na fase internacional. No ano seguinte, outra música, fruto da mesma parceria, “O

Cantador”, obteria grande reconhecimento no III Festival da TV Record. A canção, defendida por Elis

Regina, não ficou entre as finalistas da competição, mas conferiu à cantora o prêmio de melhor

intérprete do festival. “O Cantador” seria gravada nesse mesmo ano pelo músico Sérgio Mendes, à

época já radicado nos Estados Unidos da América, com arranjos do maestro norte-americano Dave

Grusin, para a performance da banda de Mendes, a “Brasil 66”. Com versão em inglês escrita pelo

cultuado casal de letristas norte-americano Alan e Marilyn Bergman, “Like a Lover”, novo título

conferido à canção, seria desde então a composição mais gravada de Dori em todo o mundo, com

inúmeras interpretações em inglês e português, além de performances instrumentais.

Essa intensa participação na denominada “Era dos Festivais” (MELLO, 2003, p. 164)

deixaria Dori umbilicalmente ligado ao conceito de MPB, música popular brasileira, que emergiu

justamente nesse período. Mello (2003, p. 17) demonstra como esses eventos, que, de início, nada

mais eram do que sucessores dos antigos concursos de samba tão comuns no Rio de Janeiro até o

final da década de 1950, foram responsáveis pelo surgimento da denominada MPB. A partir de 1960

os antigos concursos de samba realizados pelas rádios ganhariam um novo layout, compatível com a

televisão, estruturando-se à maneira dos festivais de cinema de Cannes e da canção italiana de San

Remo, eventos que, à época, gozavam de grande reputação no Brasil e no exterior. Adotou-se a

denominação de Festivais da Música Popular Brasileira, abrindo-se espaço, a partir de então, para a

consolidação de um novo gênero, abreviado por MPB. Esse amálgama de diferentes estilos e

tendências que compunham, à época, o panorama da música popular urbana no país resultaria na

consolidação da moderna canção brasileira, como acentua Severiano (2013, p. 361):

Esgotada a fase de maior evidência da bossa nova, abriram-se as portas do sucesso a um novo e talentoso grupo de compositores, músicos e cantores. Admiradores do movimento, quase todos, e adeptos de seus principais renovadores, os integrantes dessa geração iriam à sua maneira dar-lhe continuidade, concluindo em poucos anos o processo de fixação da moderna canção brasileira. Para o êxito dessa tarefa contribuiu de forma acentuada a realização dos festivais televisivos, que revelaram e promoveram a maioria desses artistas.

É nesse período que ocorrem, também, suas incursões no teatro. A primeira participação de

impacto deu-se no espetáculo Opinião, musical dos dramaturgos Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes

e Armando Costa, dirigido por Augusto Boal. Concebido como uma forma de protesto à ditadura

militar recém-instalada no país, o Opinião obteve grande sucesso de público e crítica, projetando Dori

pelos arranjos do repertório de João do Vale e Zé Kéti e pela direção musical das cantoras Nara Leão

e Maria Bethânia. O sucesso repetiu-se em Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri, com

músicas compostas por Edu Lobo.

Na década de 1970, quando começa a produzir e gravar trabalhos exclusivamente autorais,

Dori inaugura uma nova parceria, com o poeta Paulo César Pinheiro, na canção “Evangelho”, que

integra seu primeiro e homônimo long-play. É interessante observar como ele imprime às

composições assinadas com Paulo César um caráter mais regionalista, distante, em certa medida,

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das inovações harmônicas introduzidas pela Bossa Nova, bem como do ecletismo característico da

MPB que ajudara a consolidar. Smarçaro (2006, p. 40) identifica nessa fase de Dori a utilização de

harmonias mais simples, com o emprego das tríades naturais, e de modos e ritmos nordestinos, em

uma postura ao mesmo tempo contemporânea e claramente ligada ao passado, à tradição. Trata-se

de um novo regionalismo que em muito se identifica com a estética adotada por Antonio Carlos Jobim

a partir do LP “Matita Perê”, do qual Dori participou como arranjador, e cuja canção título foi composta

por Jobim em parceria com Paulo César Pinheiro.

É também durante a década de 1970 que ocorre sua afirmação como maestro e arranjador,

tendo por porta de entrada as trilhas sonoras para a televisão e o cinema. São desse período as

trilhas de A Casa Assassinada, de Paulo César Sarraceni; Tati, a Garota, de Bruno Barreto; e O

Duelo, de Paulo Tiago. Na Rede Globo de Televisão, integra a produção musical e atua como

compositor em telenovelas como Gabriela, O Casarão, O Tempo e o Vento, além de destacada

atuação no programa infantil Sítio do Pica-Pau Amarelo.

No final dos anos 1980 ocorre uma guinada na trajetória de Dori, com sua migração para os

Estados Unidos da América. Fixando-se em Los Angeles, Califórnia, a convite de Sérgio Mendes, o

mesmo músico que lançara “Like a Lover” 20 anos antes no mercado internacional, Dori empreende

intensa parceria com ícones da cultura popular norte-americana, dentre os quais o maestro e produtor

Quincy Jones e a cantora Sarah Vaughan. Contratado pela Qwest Records de Jones produz três

long-plays autorais: Brazilian Serenata, Kicking Cans e If Ever. Para Vaughan, cultuada diva do jazz,

elabora todos os arranjos daquele que seria o último registro fonográfico da cantora, o LP Brazilian

Romance.

Esse intenso intercâmbio com a cultura estadunidense, entretanto, não redundou na perda

de sua identidade brasileira, tampouco na americanização de sua música. Embora tenha participado

de uma profícua troca de conhecimentos e valores culturais com músicos e produtores dos Estados

Unidos, observa-se a consolidação, ano a ano, de uma estética estritamente identificada com a

cultura do Brasil. A recente série de trabalhos assinados em parceria com Paulo César Pinheiro,

denominada Poesia Musicada, é exemplo eloquente de como Dori consegue traduzir valores

universais a partir de uma perspectiva estritamente local, quase telúrica, uma postura que elimina a

distância entre sua trajetória internacional e o Brasil regional que busca agora retratar.

Vê-se aqui, mais uma vez, a plena inserção de Dori na contemporaneidade, sem que se

permita renunciar ao passado ou às suas raízes. Trilha, nesse sentido, um caminho de

distanciamento e aproximação, de partida e retorno ao país, similar aos seus antecessores Ary

Barroso e Antonio Carlos Jobim. Tal qual Dori, Barroso e Jobim “fizeram a América”, mas souberam

conciliar a absorção de valores estrangeiros sob uma perspectiva brasileira. Personagens que, a

partir do reconhecimento de seu trabalho em terras estrangeiras, foram obrigados a se reinventar

para si mesmos e para o Brasil. Indivíduos que, como afirma Hall (2014), dispuseram-se a negociar

com as novas culturas em que viveram, sem simplesmente serem assimilados por elas e sem perder

suas identidades, mas que nunca mais serão unificadas no velho sentido, porque são produto de

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interseção de várias culturas, pertencentes ao mesmo tempo a várias casas interconectadas. São

pessoas que, por pertencerem às culturas híbridas, renunciaram ao absolutismo étnico ou a qualquer

tipo de pureza cultural perdida; são pessoas irrevogavelmente traduzidas (HALL, 2014, p. 52).

2.3 Conclusão

Como é possível ser, a um só tempo, cosmopolita e provinciano? A resposta está em que

indivíduos como Dori Caymmi são produto da convergência de diferentes matrizes culturais,

pertencentes a diversas “casas” simultaneamente; são pessoas que se condicionam a habitar, no

mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais: a traduzir e negociar entre elas. Esse

aspecto é muito importante para entender a ressignificação musical empreendida por Dori, pois não

se trata simplesmente da proposta de uma nova leitura de uma obra musical, mas sim de sua virtual

tradução para os padrões estéticos brasileiros.

O resultado obtido em seus arranjos é, nesse sentido, diametralmente oposto àquele

almejado pelos maestros arranjadores das grandes orquestras de música popular europeia que

tiveram grande atuação da década de 1960, como, por exemplo, Frank Pourcel, Paul Mauriat ou

Annunzio Mantovani. Com efeito, quando Dori interpreta um tema como “Cinema Paradiso”, de Ennio

Morricone, há um sentido de aproximação da canção europeia aos elementos contramétricos do

samba (SANDRONI, 2012), do que resulta uma fusão entre aspectos característicos dessas duas

culturas: ocorre uma hibridação. Quanto aos maestros citados acima, observa-se que, ao

interpretarem a música brasileira, adotam o caminho inverso, mediante a cometrização do samba ou

de outros gêneros nacionais sincopados. A eliminação da síncope, de um lado, sugere o

embranquecimento do samba, ao passo que a adoção do ritmo sincopado, do outro, promove o

bronzeamento da canção europeia.

É para melhor demonstrar esse fenômeno, típico da ressignificação musical empreendida

pelo arranjador brasileiro, que será feita a análise comparativa entre a versão original do tema

“Cinema Paradiso”, de Ennio Morricone, e a interpretação de Dori Caymmi que integra do CD

Cinema, a Romantic Vision. No mesmo sentido, a análise comparativa dos arranjos de Radamés

Gnattali e Dori Caymmi para a “Aquarela do Brasil” permitirá demonstrar como um mesmo samba

pode resultar em significados musicais tão distintos, interpretação de Dori que integra o CD Kicking

Cans. O contraste entre a significação musical nos dois arranjos colocará em perspectiva o próprio

conceito de brasilidade, pelo resultado contrastante das duas interpretações no que se refere ao

sentimento ufanista em voga no Estado Novo e a visão de Dori sobre o cenário político brasileiro da

década de 1990.

A resposta ao aparente paradoxo entre tradição e modernidade está em artistas como Dori

Caymmi, que buscam sistematicamente superá-la, pela construção de uma trajetória de permanente

superação e inovação, sem descurar do passado e de suas raízes, flertando com a vanguarda sem

abandonar o enfoque regional, movimentando-se com grande desenvoltura pelos múltiplos cenários

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da música nacional e internacional. Dori é, ao mesmo tempo, guardião do legado de seu pai, Dorival

Caymmi, da Bossa Nova e da MPB, movimentos dos quais participou e que ajudou a consolidar

nacional e internacionalmente. Não obstante, promove, em seus trabalhos mais recentes, o resgate

da canção regional e telúrica, ao mesmo tempo em que é requisitado a colaborar com artistas

internacionais do cenário pop e do jazz.

Uma postura típica do homem moderno, como salienta Lucio Costa, para quem ser

moderno é, conhecendo a fundo o passado, ser atual e prospectivo (COSTA, 1995, p. 116).

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CAPÍTULO 3 – CONCEITOS

3.1 O arranjo e o arranjador na música brasileira 3.1.1 Introdução

A expressão arranjo musical é plena de significados no contexto cultural brasileiro. Há

registro de seu surgimento na linguagem urbana carioca, simultaneamente à palavra samba, na

primeira gravação de “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro Almeida. O cronista Rui Castro (2003, p. 84)

afirma, nesse sentido, que a primeira obra musical a fazer sucesso sob a designação “samba”

resultou de uma criação coletiva dos jovens músicos negros que frequentavam a casa de Tia Ciata,

na Praça Onze, no Rio de Janeiro. Uma das mais célebres baianas radicadas na capital do país no

início do século XX, Hilária Batista de Almeida, ou simplesmente Ciata, promovia saraus e batuques

no quintal de sua casa, contexto do qual teriam sido extraídos os motivos melódicos, rítmicos e

poéticos “arranjados” por Donga e Duarte. A composição, registrada na Biblioteca Nacional sob o

título de “Pelo Telefone”, passaria a ser considerada o primeiro samba, logo após gravado pelo

compositor Baiano, pela Casa Edison: era, então, o ano de 1917.

Nessa primeira acepção, o arranjo apresenta-se quase como sinônimo de composição

musical, o que se deve ao contexto comunitário que marca o surgimento do samba, uma celebração

coletiva partilhada nas rodas de umbigada, maxixe e choro promovidas nos jantares das “tias”

baianas. Não havia ali, ainda, a perspectiva do samba como um objeto estético, distinto da prática do

grupo; tratava-se então, sobretudo, de um fazer musical disseminado naquele meio social. O grande

passo dado por Donga, como salienta Sandroni (2012, p. 121), foi transpor o samba dessa dimensão

folclórica, restrita ao ritual privado, abrindo-o à sociedade e à celebração pública, sobretudo para ser

entoado no baile de carnaval. O registro do samba na Biblioteca Nacional desencadearia um

processo que Sandroni (2012, p. 122) considera ter sido essencial para a moldagem desse objeto em

formas capazes de se adequarem aos meios de divulgação de que se dispunha na época: a partitura

para piano a ser comercializada, o arranjo para banda; a letra impressa, cuja rigidez transforma todas

as improvisações posteriores em meras paródias; a gravação em disco.

A importância de Tia Ciata é reconhecida por Napolitano (2005, p. 50), que lhe atribui papel

central na promoção daquele polo coletivo de criação musical. Reserva esse autor, não obstante, a

Donga o papel decisivo na afirmação desse gênero musical, ao rotular aquela prática como samba,

um gesto a um só tempo comercial e simbólico:

[...] quando Donga registrou a música “Pelo Telefone”, colocando-lhe o rótulo de “samba”, ele realizou um gesto comercial e simbólico a um só tempo: comercial porque registrava uma música que reunia elementos de circulação pública, e simbólico na medida em que tanto o registro de autoria (na Biblioteca Nacional em 1916) quanto o fonográfico (com o selo Odeon, em 1917) permitiam uma ampliação do círculo de ouvintes daquela música para “além do grupo social original”.

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O arranjo musical surge, nessa perspectiva, como meio de tornar o samba comercializável,

objeto de circulação pública, sobretudo para o registro fonográfico de uma indústria ainda em

consolidação no Brasil, no início do século XX. Em abono a esse mesmo ponto de vista, Teixeira

(2001, p. 63) afirma que a introdução da indústria fonográfica no país foi decisiva para a consolidação

da prática do arranjo, elemento essencial para a disseminação de uma sonoridade fonogênica, isto é,

apropriada ao registro no fonograma. Esse padrão sonoro consistiria na organização de timbres, no

estabelecimento de dinâmicas, nas modulações harmônicas e em alterações rítmicas compatíveis

com os mecanismos de gravação existentes à época e adequadas à comercialização da música

gravada. Aragão (2001, p. 1) atribui ao arranjo e aos arranjadores papel tão marcante e decisivo

quanto o dos compositores e intérpretes no desenvolvimento da música brasileira.

De fato, o arranjador assume, no Brasil do início do século XX, importante papel como

elemento de mediação entre instâncias distintas de nosso cenário cultural. De um lado, a música

produzida no ambiente doméstico; de outro, as demandas do teatro de revistas, da indústria

fonográfica e, logo após, as do rádio. No exercício dessa mediação, os arranjadores firmam-se como

pivô de um processo de hibridação, a partir do qual estruturas e práticas que já existiam em contextos

diversos aproximaram-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas musicais (CANCLINI, 2006).

Com efeito, coube ao arranjador escrever a partitura − indispensável à formalização do registro

autoral −, elaborar o arranjo do samba − necessário para a performance a ser gravada − e dirigir os

trabalhos em estúdio: tudo isso demandava um conhecimento técnico específico − a teoria musical −,

razão por que os primeiros arranjadores foram profissionais formados na tradição da música erudita

europeia.

Fortes Filho (2008, p. 29) identifica nesse momento a gênese da tradição denominada

“música popular brasileira”, que, anos após, receberia, segundo afirma, a alcunha de MPB. O

nascimento dessa tradição coincidiria com o surgimento e a expansão da indústria fonográfica e das

rádios no país, período em que foi destacada a atuação de grandes maestros de formação erudita,

tanto na direção das orquestras dos estúdios de gravação, quanto nos estúdios radiofônicos, tais

como Radamés Gnattali, Léo Peracchi e Gaó, recrutados das estantes da música sinfônica para as

produções de música popular. Digna de nota foi, também, a atuação do maestro russo Simon

Bauntman, um dos principais arranjadores de sólida formação erudita com atuação nas gravadoras

Odeon e Colúmbia nas décadas de 1920 e 1930 (SEVERIANO; MELLO, 1997).

Atribui-se a Radamés Gnattali, nesse sentido, a responsabilidade por introduzir uma nova

roupagem musical às canções brasileiras para as transmissões radiofônicas, um meio de

comunicação em ascensão a partir da década de 1930:

Radamés Gnattali, maestro da casa (Rádio Nacional), teve a responsabilidade de fornecer uma outra roupagem musical às canções brasileiras, além daquela do regional. Começou a fazer arranjos de peças como toadas e choros para pequenos conjuntos, trios, quartetos, os quais eram executados, por vezes, pelo próprio maestro ao piano. Sua intenção era enriquecer a música brasileira com arranjos mais sofisticados. (OLIVEIRA; MARTINS, 2006, p. 186)

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Segundo os autores, a sofisticação sonora proposta por Gnattali atingiu seu ápice no arranjo

do samba “Aquarela do Brasil”, elaborado para o cantor Orlando Silva, em 1939. Com isso, a maior

intervenção do arranjador passaria a ser regra. Nele Radamés transferiu para os instrumentos de

sopro os desenhos da percussão, possibilitando aos trompetes, trombones e saxofones a

performance dos elementos rítmicos do samba, em uma sonoridade considerada, à época, mais

brasileira (OLIVEIRA; MARTINS, 2006, p. 188-189):

Um traço marcante desse novo tipo de arranjo foi o fato de extrapolar bastante a composição original. Em sua grande maioria, tais arranjos eram construídos sobre canções populares nas quais só uma melodia e uma sequência harmônica haviam sido estabelecidas.

Com efeito, dos múltiplos personagens que compõem o cenário musical brasileiro desde a

primeira gravação de “Pelo Telefone”, o arranjador consolidou-se como um profissional dotado de

grande mobilidade, transitando entre as mais espontâneas manifestações populares e a música

erudita com grande desenvoltura. Não são raros os exemplos de maestros brasileiros de formação

erudita que dedicaram grande parte de sua produção orquestral à elaboração de arranjos para

artistas populares, como também não são raros exemplos de arranjadores de música popular que

enveredaram pela escrita de trabalhos sinfônicos. Pode-se situar, na cena cultural carioca, os

maestros Radamés Gnattali e Antonio Carlos Jobim nos extremos desses dois polos.

3.1.2 Arranjo musical

O arranjo musical na tradição erudita, segundo afirma Bessa (2006, p. 7), consolidou-se na

Europa, na segunda metade do século XIX, com a popularização do piano, que então se afirmava

como instrumento musical no ambiente doméstico. Segundo Weber (1995, p. 148), nesse período,

obras orquestrais em geral passaram a ser acessíveis ao universo domiciliar graças à possibilidade

de sua “redução” para a performance ao piano. O arranjo prestava-se ali como meio para simplificar a

escrita sinfônica, viabilizando o deleite do repertório erudito nos círculos populares ligados à casa, em

contraposição à música feita no denominado circuito artístico. A performance ao piano tinha também,

nesse sentido, o prodígio de fornecer ao gênero popular, geralmente uma canção, concebida como

melodia acompanhada, uma densidade sonora que originalmente não ostentava. Daí a afirmação de

Weber (1995, p. 146) de que o piano foi um dos agentes da infiltração da sensibilidade harmônica

simples e popular, que se opunha à música artística polifônica.

É interessante observar como o arranjo, no sentido de redução de uma peça orquestral para

a performance de um grupo menor de instrumentistas, ou mesmo por um único instrumento, estava,

nesse período, diretamente associado à disseminação do piano como um utensílio da casa burguesa.

O piano era, de fato, ao lado do órgão, um dos principais suportes do desenvolvimento de uma visão

preponderantemente harmônica da música, em contraste com a prática polifônica até então

predominante dos instrumentos de cordas friccionadas (WEBER, 1995, p. 146). Certo é que já no

início do século XIX ele tinha se tornado um objeto de comércio regular, sendo mesmo produzido

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para armazenamento (WEBER, 1995, p. 148). O arranjo na música erudita foi, nessa acepção de

redução ou transposição de uma peça orquestral, a partir do surgimento do piano, associado à

popularização do repertório orquestral, coincidente com a adoção de uma visão harmônica da

música, em contraposição à textura polifônica então adotada pelos grandes conjuntos sinfônicos.

Já a distinção entre o arranjo no campo erudito e popular, segundo leciona Fortes Filho

(2008), decorreria do fato de a tradição erudita privilegiar a partitura como forma exaustiva da obra

musical, identificando-a com a forma original concebida pelo compositor. No domínio popular esse

conceito seria, segundo afirma, muito mais fluido, pois nem sempre o original estaria vinculado à

escrita musical, podendo revelar-se ao intérprete em uma partitura, uma gravação ou na primeira

execução pública. Essa visão é compartilhada por Duarte (2010, p. 26), para quem, na tradição

popular, é conferido ao arranjo um valor à parte, intrínseco e imprescindível, tanto para a viabilização

prática da composição musical, como para o conhecimento e construção de uma linguagem musical.

Na música erudita arranjos seriam tolerados como gauche, meras curiosidades.

Pasqualini (2012, p. 189) faz uma abordagem panorâmica sobre os conceitos de arranjo na

música popular brasileira e conclui que esse termo é usado como gênero para uma gama de

atividades distintas, como orquestrar, instrumentar, transcrever e adaptar uma obra musical:

Arranjo pode então variar de transcrição a recomposição criativa, as quais, às vezes, chegam a melhorar o original, o que será muito comum na Música Popular Brasileira, conforme veremos mais tarde. [...] O tipo de arranjo que nos interessa é o criativo, o original.

O The New Grove Dictionary (SADIE, 2001), no verbete “Arranjo”, atém-se à acepção do

termo no universo da música erudita, pois pressupõe-se que, no conceito ali lançado, há o

(re)trabalho das informações contidas em uma partitura musical:

[...] “o arranjo é o retrabalho de uma composição musical, geralmente para um meio (instrumentação) diferente daquele da composição original”. Isto é, “a transferência da composição de um meio para outro ou a elaboração (ou simplificação) de uma peça, com ou sem mudança de meio” (SADIE, 2001).

O mesmo dicionário define o termo orquestração como a arte de combinar os sons de um

grande complexo de instrumentos (uma orquestra) para formar uma combinação e equilíbrio

satisfatórios. A orquestração, segundo essa acepção, é uma espécie do gênero instrumentação, mas

de conteúdo muito mais abrangente: o estudo das características dos instrumentos e o meio pelo qual

são combinados em uma composição musical.

O conceito do The New Grove Dictionary of Jazz aproxima-se mais do tipo de arranjo que é

elaborado na música popular brasileira, por ser também o jazz uma manifestação musical que tem na

partitura escrita um meio muito limitado de registro de toda a sua riqueza. Nessa acepção, arranjo é

todo retrabalho de uma composição original, ou parte dela, para a performance em um meio ou

instrumentação diferente da forma original. É um termo que pode também ser utilizado para

denominar uma das versões resultantes da interpretação de uma peça musical. Em sentido estrito,

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arranjo seria a versão fixada, escrita e, por vezes, publicada de uma composição (tal como ocorreu

com o samba “Pelo Telefone”, citado acima). Note-se que, para esses teóricos norte-americanos,

toda performance de jazz é considerada um arranjo, pois nela os intérpretes reorganizam o material

composicional mediante a adição de novos elementos no momento da performance, inclusive

provenientes da improvisação. Há que considerar, também, em uma performance de jazz em grandes

grupos, bandas ou orquestras, a distinção entre a partitura escrita para a execução conjunta,

comumente denominada arranjo, em sentido estrito, e o espaço destinado à livre improvisação dos

diversos instrumentistas solistas.

Esse conceito de arranjo, que abarca toda a performance de uma obra musical, inclusive

quando há a improvisação, vai ao encontro da ideia de microarranjo proposta por Aragão (2001), pois

o jazzista trabalha de uma maneira muito aberta as estruturas da obra utilizada como forma em sua

improvisação. Na música popular brasileira ocorre o mesmo fenômeno, pois a performance de uma

canção, de um samba ou de um bolero comumente mantém apenas a melodia e a letra da obra

original. Assim, segundo Aragão, para a performance de uma canção do repertório popular, o

instrumentista elaboraria simultaneamente um microarranjo, no qual estabeleceria suas escolhas

quanto à harmonização, ao ritmo, ao timbre etc., adequadas à sua interpretação da melodia e letra

compostas pelo autor.

É interessante observar como o arranjo tem origens tão diversas no contexto europeu e no

contexto americano, o que certamente contribuiu para a polissemia do termo tanto na música popular

quanto erudita. Na Europa, ele consolida-se como um elemento de transição da sonoridade polifônica

da música praticada nos círculos artísticos para os círculos privados da casa burguesa, contexto no

qual o piano é utilizado para ressaltar, no repertório sinfônico, uma feição predominantemente

harmônica (WEBER, 1995). No Brasil, de início, como vimos acima, ocorre o caminho contrário, pois

o arranjo é meio para transpor o samba do ambiente doméstico da casa popular para o estúdio de

gravação, mediante a adição de elementos estéticos que o adequassem à linguagem fonogênica.

Houve, nessa perspectiva, no contexto europeu, um inerente sentido de redução, de perda

da riqueza sinfônica da concepção original do compositor, que é interpretada, de forma simplificada,

ao piano; houve, no contexto brasileiro, o sentido contrário, de agregação de novos elementos,

inclusive provenientes da tradição europeia, à forma original singela do compositor. Em um caso, ele

é o meio pelo qual o repertório erudito adentra a casa burguesa, para o deleite privado; no outro ele é

meio para que o samba deixe o fundo do quintal da casa popular e transforme-se em objeto

comercializável pela indústria fonográfica e pelo rádio, ou seja, para o deleite público.

Considera-se aqui, portanto, o arranjo nessa segunda acepção, pois esta pesquisa tem por

foco o processo de ressignificação da obra musical. Pretende-se, ao final, demonstrar como o arranjo,

por (re)trabalhar a forma concebida pelo compositor, é também uma modalidade de interpretação

musical. Nesse sentido, arranjar uma canção poderá compreender desde a nova harmonização de

uma melodia acompanhada, a adaptação dessa melodia para a performance de um grande grupo de

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instrumentos, como uma orquestra ou banda sinfônica, ou simplesmente a proposição de novos

elementos estéticos, harmônicos, melódicos e rítmicos para o registro fonográfico de uma canção.

3.1.3 O arranjador

O florescimento da indústria fonográfica no Brasil, no final da década de 1910, foi, como

vimos, o contexto propício para que os maestros formados na tradição erudita adentrassem o

universo da música popular urbana em ascensão. Esse processo se deu paralelamente às produções

do teatro de revistas. A partir da fusão de elementos musicais de diversas matrizes, populares e

eruditas, urbanas e rurais, estabeleceu-se uma linguagem apropriada à gravação, ao fonograma.

Essa linguagem, como se afirmou anteriormente, consistiu na utilização de padrões de timbre,

dinâmica, modulações harmônicas, acentuações e divisões rítmicas, moldados para a produção e

comercialização da música gravada.

Esse primeiro período, que Napolitano (2005, p. 49) identifica como o nascimento da canção

brasileira, seria sucedido, nos anos 1940 e 1950, pela adoção do samba como símbolo de uma

identidade nacional-popular brasileira, no contexto do Estado Novo instaurado por Getúlio Vargas. O

recurso a texturas orquestrais densas e complexas e a interpretações vocais de grande eloquência

fez com que Wisnik (1982, p. 129) identificasse nessa fase uma tendência à “sinfonização” da canção

brasileira.

Em tal contexto, é perfeitamente compreensível a identificação do arranjador de música

popular com a figura do maestro erudito e, consequentemente, com a prática da orquestração. É que

a música popular urbana se apresenta, na primeira metade do século XX, atrelada à sonoridade das

grandes orquestras, arregimentadas pelas produções do teatro de revistas, pelas gravadoras e pelas

rádios, nas quais o arranjador atua como o profissional que consegue conviver com esse sincretismo

musical, para conciliar as tradições africanas, indígenas e europeias, dentre outras, que se fundem no

ambiente cultural brasileiro.

A partir da década de 1930, estabelece-se uma clara distinção entre a função de regente e

de arranjador, inclusive para efeito de remuneração, como observa Pereira, em seu estudo sobre os

arranjadores da Rádio Nacional do Rio de Janeiro de 1930 a 1960:

Na década de 1930, dos quatro maestros, três exerciam exclusivamente a função de regente e apenas um acumulava as funções de arranjador e regente. Na década de 1940, dos 20 maestros, sete exerciam exclusivamente a função de regente, quatro exerciam exclusivamente a função de arranjador e nove maestros acumulavam as duas funções. Na década de 1950, dos 23 maestros, sete exerciam exclusivamente a função de regente, sete exerciam exclusivamente a função de arranjador e nove maestros acumulavam as duas funções. Na década de 1960, dos 24 maestros, sete exerciam exclusivamente a função de regente, seis exerciam exclusivamente a função de arranjador e 11 maestros acumulavam as duas funções. [...] Dos 24 maestros que havia nesta última década, só no ano de 1961, oito deixaram de trabalhar para a RN, e até o ano de 1969, outros 15 foram dispensados do serviço, ficando apenas o maestro Chiquinho (PEREIRA, 2012, p. 180-181).

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Com efeito, ao arranjador cabia criar, no contexto das transmissões radiofônicas, não só

versões “arranjadas” para as canções, como também efeitos sonoros, jingles destinados à

publicidade, pequenos trechos musicais para fazer uma passagem entre diferentes partes de uma

radionovela que, segundo Pereira (2012, p. 164), funcionavam como interlúdios, além de prefixos e

sufixos que anunciavam o início e o término de um programa. Em síntese, fragmentos musicais que,

por sua forma precária, sequer poderiam ser considerados uma obra musical.

Nos anos 1960, a televisão, que fora implantada por Assis Chateaubriand no Brasil havia

apenas dez anos (em 18.9.1950), consolida-se como principal meio de comunicação de massa de

abrangência nacional (NERCOLINI, 2013, p. 94). Essa nova mídia traz consigo, ao lado das

inovações tecnológicas, a adoção de um novo paradigma político, pela limitação das liberdades

democráticas a partir do Golpe de 1964. Em pouco tempo a TV passa a ser, em substituição ao rádio,

o principal parceiro da indústria fonográfica para a veiculação de suas produções. A busca por

telespectadores, indispensáveis para a consolidação na nova mídia, levaria os produtores de TV a

adotarem as novelas, as transmissões de jogos de futebol e, principalmente, os programas de

auditório como o centro de suas programações:

No entanto, precisando atrair público, mas também querendo marcar o seu diferencial, o investimento foi feito não somente em nomes já consagrados pelo rádio, mas, sobretudo, em cima de caras novas e novas propostas musicais que surgiam nos anos 60. Portanto, se, por um lado, precisaram recorrer aos já experientes profissionais do rádio, por outro, investiram em nomes novos, ainda sem os vícios e trejeitos daquele meio de comunicação. A imagem passava a dar as cartas, e ela precisava ser chamativa, jovem e atraente. Daí decorre a aproximação com uma nova geração de cantores e compositores que estavam despontando no cenário musical brasileiro, que estavam dando os passos iniciais do que veio a ser chamado Música Popular Brasileira, ou mais simplesmente MPB (NERCOLINI, 2013, p. 95).

A transferência dos arranjadores das emissoras de rádio para a televisão foi um processo

natural, que se deu, em alguns casos, pelo simples deslocamento dentro dos próprios quadros da

empresa de comunicação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o arranjador Cyro Pereira que,

contratado no ano de 1953 pela Rádio Record, com sede na capital paulista, foi transferido para a TV

Record logo no início das atividades da nova emissora, entre os anos de 1958 e 1959 (MEDEIROS,

2009, p. 13). Algo similar passou-se com Radamés Gnattali. Já afastado da Rádio Nacional, trabalhou

na TV Excelsior a partir de 1963, de onde se demitiu, em junho 1967, para assumir o posto de

maestro e arranjador da TV Globo (MANICA, 2014, p. 1248).

De fato, no que se refere ao conteúdo, as produções televisivas não passavam, nesse

primeiro momento, de um “rádio filmado”, como afirma Tinhorão (2014, p. 236): durante pelo menos

os primeiros dez anos de sua instalação, a televisão no Brasil desenvolveu-se montada sobre a

infraestrutura do rádio. Nesse sentido, somente o advento do videoteipe, na década de 1960,

introduziria um novo paradigma nas produções de TV, com a importação de seriados (devidamente

dublados) e shows musicais estrangeiros, em substituição às antigas produções radiofônicas, à

época ainda inspiradas no já ultrapassado teatro de revistas.

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Outro fenômeno importante, segundo Tinhorão (2014, p. 243), para a modificação da

relação entre música e televisão foram os concursos de música popular, denominados festivais da

canção. Embora esses eventos ainda guardassem grande similaridade com os antigos programas de

auditório das rádios, seus produtores e organizadores optaram por dar maior ênfase às modernas

correntes estéticas derivadas da Bossa Nova, com seus autores novos e desconhecidos, colocando

em segundo plano a denominada música popular “tradicional”. Esse fenômeno decorreu da

necessidade de afirmar novos padrões de consumo e comportamento para a classe média, em

ascensão no pós-guerra, segmento que dispunha de recursos para adquirir um receptor de televisão,

eletrodoméstico caro e tido, então, como fator de elevado status na sociedade brasileira.

A Bossa Nova e a denominada MPB trariam consigo novas propostas estéticas que também

influenciariam na prática do arranjo e no conceito de arranjador, na música brasileira, a partir da

década de 1960. Com efeito, a busca de uma abordagem musical menos dramática, tanto nas letras

quanto nas orquestrações, significava um rompimento com a tradição do samba-canção. A Bossa

Nova, movimento que nasce no ambiente universitário e entre os jovens dos bairros da Zona Sul

carioca, propõe uma abordagem romântica distinta da dramaticidade trágica que vigorava na música

popular brasileira até os anos 1950.

A sonoridade suave que João Gilberto introduziu no samba, consistente em adotar uma

técnica vocal plenamente adaptada ao microfone, e distante do canto lírico, aliada à sua performance

ao violão, estruturada sobre uma “batida diferente”, ricamente harmonizada, deslocou o foco do

arranjo popular dos naipes da orquestra para a seção harmônica e rítmica. O trio piano, contrabaixo e

bateria, e, sobretudo, o violão passaram a merecer a atenção principal da “sonoridade bossa nova”,

na qual a orquestra tinha um papel menos preponderante.

Em sua abordagem sobre as inovações estéticas introduzidas pela Bossa Nova, Gava

(2002) ressalta o papel do arranjador como elemento de reconstrução do sentido da canção popular.

Para ele, entretanto, o moderno e arrojado almejado pelos bossa-novistas não se restringiria ao

âmbito da harmonização, pois tais elementos foram obtidos também pela alteração da estrutura

rítmica das canções, prática que se tornou indissociável da figura do violonista e cantor João Gilberto.

A isso se somariam as novas escolhas feitas pelo Movimento quanto à instrumentação, como a

utilização do naipe de cordas e do piano, desqualificando tudo o que poderia configurar um exagero

musical, estética que ficaria profundamente identificada com a Bossa Nova, como afirma Napolitano:

[...] o projeto de “folclorização” da música popular sofreu um grande abalo com a eclosão da Bossa Nova, para a qual o resgate cultural do samba não passava pelo fato folclórico mas pela ruptura estética em direção ao que se julgava “modernidade”: sutileza interpretativa, novas harmonias, funcionalidade e adensamento dos elementos estruturais da canção (harmonia-ritmo-melodia) que deixavam de ser vistos como um mero apoio ao canto (voz) (2005, p. 62).

É nesse ambiente de ascensão da televisão e declínio do rádio que se dá a consolidação de

uma nova estética sonora. O arranjador é cada vez menos identificado e recrutado dentre os

maestros de formação erudita, substituído por um profissional de formação popular, mais voltado para

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os “elementos estruturais da canção”. Já não basta aqui a técnica erudita para atribuir às canções a

antiga sonoridade fonográfica ou radiofônica, extraída das orquestras sinfônicas. Trata-se, agora, de

um profissional que precisa estar conectado à tradição oral da música urbana, algo que se consolida

como gênero no meio televisivo da década de 1960 (NERCOLINI, 2013, p. 96). É nesse novo quadro

que surgem arranjadores como Antonio Carlos Jobim, Rogério Duprat, Luiz Eça, Oscar Castro Neves,

Eumir Deodato, César Camargo Mariano, Sérgio Mendes, entre outros, e Dori Caymmi. Todos eles,

que eram destacados instrumentistas populares, haviam adquirido conhecimentos em música erudita

e orquestração, mas não eram músicos vinculados às grandes orquestras sinfônicas ou ao ambiente

acadêmico da música europeia no Brasil. Estavam mais conectados com a televisão, novo meio de

comunicação de massa que assumia protagonismo ao longo da década de 1960. Exceção seja feita a

Rogério Duprat, que teve destacada atuação como arranjador na música popular e foi também

vinculado a grandes orquestras sinfônicas no Estado de São Paulo, além de ter sido professor-

assistente do Departamento de Música da Universidade de Brasília, de onde se afastou em

decorrência do golpe militar de 1964 (MARCONDES, 1998, p. 254).

Para Bryan e Villari (2014, p. 51), a novela Beto Rockfeller, produzida pela TV Tupi no ano

de 1968, trouxe inovações decisivas para a teledramaturgia nacional, com grande impacto também

na música brasileira. Com a adoção de diálogos coloquiais e locações externas, os autores buscavam

reproduzir um ambiente contemporâneo, moderno e jovial, diferente dos dramas épicos e

maniqueístas que, até então, dominavam a programação televisiva. Para tanto, foram deixados de

lado os habituais temas instrumentais sinfônicos, com a introdução do pop e rock internacional.

Atenta a essa modificação, que causou grande impacto na audiência, a Rede Globo produziria, no

ano seguinte, a novela Véu de Noiva, de autoria de Janet Clair, para a qual, sob a direção de Nelson

Motta, seriam compostas canções e temas instrumentais que dessem apoio às imagens e

identificassem os personagens. Era o que passaria a ser denominado “trilha de novela”. O grande

sucesso dessa experiência, tanto no que se refere à audiência, quanto na vendagem de long plays,

estabeleceu uma relação definitiva entre as redes de televisão e a indústria fonográfica, o que levaria

a TV Globo a fundar, em 1971, sua própria gravadora, a “Som Livre”.

De fato, no período de 1965 a 1972, como afirma Severiano (2013, p. 347), a televisão

brasileira viveu uma fase de grande interação com a música popular, tanto nos programas de

auditório, como o Fino da Bossa e Jovem Guarda (apenas para citar dois gêneros muitos distintos),

quanto nos festivais de canções. Esses programas, produzidos principalmente pela TV Globo, no Rio

de Janeiro, e pela TV Record, em São Paulo, consolidariam uma nova sonoridade, com a paulatina

redução da utilização das grandes formações orquestrais. O arranjador popular passa a ser

identificado mais com o retrabalho da base harmônica das canções, para a performance por

pequenos grupos estruturados sobre instrumentos harmônicos, como o piano e o violão. Nesse

contexto, consolida-se o denominado “arranjo de base”, que, por dispensar conhecimentos de escrita

musical, podia ser elaborado por um músico completamente dissociado da figura do maestro de

formação erudita. Em muitos casos, o arranjo de base era proposto pelo próprio compositor, cabendo

ao arranjador apenas agregar à canção elementos circunstanciais de orquestração.

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A partir de 1969, a telenovela, como sucedâneo do folhetim e da radionovela, passaria a ser

o centro da programação das grandes emissoras, sobretudo da Rede Globo de Televisão (KEHL,

2005, p. 426), com o abandono dos padrões dramáticos do rádio e a adoção de uma linguagem mais

leve e contemporânea, compatível com o público a que se destinava, isto é, a jovem e ascendente

classe média capaz de adquirir um aparelho de televisão. Nesse contexto, o modelo de arranjador já

não são os grandes maestros de formação erudita europeia, e sim os norte-americanos, tendência

que se observava desde os denominados festivais da canção, como salienta Tinhorão:

É que, preocupados em “não ficar para trás” em relação aos músicos estrangeiros (do porte dos norte-americanos Henry Mancini, em 1966; de Quincy Jones, em 1969; e do espanhol Augusto Algueró, em 1970), os orquestradores brasileiros preocuparam-se em competir na base da elaboração dos arranjos de “nível internacional”, passando a copiar modelos de orquestrações estrangeiras com tanto rigor que todas as músicas acabavam parecendo iguais (2014, p. 253).

Sem pretender adentrar o movediço terreno da comparação valorativa entre culturas, certo

é que esse autor nos ajuda a perceber como a transição do rádio para a televisão, como instrumento

de comunicação de massa para a integração nacional, e a consequente transição da radionovela

para a telenovela, teve impacto no conceito de arranjador na música popular brasileira. Com efeito, a

partir da década de 1970, passou-se a identificar o arranjador mais com a tradição musical das

américas do que com a formação erudita dos antigos maestros europeus.

3.1.4 Conclusão

Nesta pesquisa, entende-se arranjador como um intérprete da obra musical,

independentemente do fato de sua formação ser acadêmica ou prática. Pode ele ser o violonista, o

pianista ou qualquer instrumentista que compreenda a obra musical segundo uma perspectiva

pessoal e distinta do compositor, a partir da qual se elabora um arranjo para a performance. Insere-se

nesse conceito tanto o regente que escreve uma grade complexa para a execução de um tema

popular preexistente, quanto aquele que adapta o texto original de uma obra erudita para a

performance de um grupo orquestral diferente da partitura original. Por fazer emergirem da obra

musical significados diferentes daqueles enunciados pelo próprio compositor, o arranjador, mediante

o processo de interpretação, promove a ressignificação.

O que interessa aqui, quer se trate de um arranjo instrumental, orquestral ou vocal, é

investigar como o arranjador promove essa ressignificação para a performance. Esse fenômeno, de

indisfarçável viés hermenêutico, como demonstrarei a seguir, está presente em qualquer das

hipóteses acima elencadas, porque traduz a atribuição de novos significados à ideia primeira do

compositor, a partir do acréscimo de elementos musicais e extramusicais. De fato, o conceito de

originalidade da obra musical, tendo por referência o compositor, será oposto à originalidade do

trabalho elaborado pelo arranjador, pois o arranjo será tão mais original quanto mais conseguir se

afastar da forma original proposta pelo compositor, vale dizer, o que se produzirá será uma

interpretação original (nova) da forma musical original (antiga) elaborada pelo compositor. O desafio é

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não desfigurar demasiadamente a concepção autoral, como afirma Umberto Eco, para que a obra

não deixe de ser a obra. É do que tratarei ao longo deste trabalho.

3.2 Significado musical 3.2.1 Introdução

Proponho a seguir a reflexão sobre o significado musical sob quatro distintos ângulos: 1) a

abordagem sobre significado musical feita por Leonard Meyer; 2) a hermenêutica da obra de arte, de

Gadamer; 3) a concepção da música como processo, de Nicholas Cook e, por fim, 4) a visão estética

da obra musical, proposta por Umberto Eco.

Introduzo o debate da significação musical com recurso à afirmação provocadora de Igor

Stravinsky: a música não significa nada além dela mesma. Contextualizada no início do século XX, a

sentença do renomado e revolucionário compositor russo traz consigo a carga bombástica inerente a

um gênio transgressor, um dos responsáveis pela renovação dos paradigmas da música erudita na

virada do século XIX para o século XX. Posta a sentença na ordem inversa, pode-se colher a

afirmação de que a música significaria, no máximo, a si mesma, o que não nos permite avançar muito

no debate sobre significado musical. É que persiste a pergunta inicial: o que seria esse significado em

si mesmo proporcionado pela fruição da música?

A própria sentença de Stravinsky contém, pelo menos, a óbvia e irrefutável afirmação de

que a música significa algo; a ressalva que se faz parece ser quanto à música possuir significados

para “além dela mesma”, isto é, extramusicais. Desloca-se, assim, a questão da inegável capacidade

de expressar algo, comum à música e a qualquer manifestação artística, para o procedimento de

diferenciação entre o que é musical, e extramusical. No campo da música erudita de origem europeia

essa questão se resolve de maneira razoavelmente singela, pois ainda prepondera nessa tradição a

prática da notação musical e sua fiel observação, no momento da performance, segundo o que foi

notado pelo compositor. Voltando à afirmação inicial, a música não expressaria nada mais do que

aquilo que está contido na notação musical, na obra escrita, na partitura com a qual a obra, nessa

tradição, é comumente identificada.

Na música popular essa questão não se resolve de maneira tão singela, pois não há, em

regra, o costume da notação musical, nos moldes da música erudita, ou essa notação ocorre

ocasionalmente, de maneira rudimentar e periférica. Não há como recorrer, por exemplo, na análise

de uma canção, apenas à partitura como objeto musical reificado, para dela, e apenas dela, extrair

seus significados. Tampouco divisar, de plano, dada a fluidez formal, o que seria musical ou

extramusical. Na obra lítero-musical há ainda que considerar o significado do texto literário que, com

seus conteúdos implícitos, incorpora elementos extramusicais ao significado da canção. A forma

musical, por outro lado, também imprime seu próprio caráter ao texto poético, compondo-se, assim,

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uma unidade estética, como afirma Napolitano (2005, p. 79). Em resumo: o significado da música

influencia o significado da letra, e vice-versa.

Em resumo, a denominada abordagem absolutista proposta por Stravinsky não é, em

princípio, viável à análise da música popular sobre a qual se debruça esta pesquisa. Aqui, no domínio

popular, é muito mais complexo afirmar que a música significa apenas a si mesma, dada a fluidez do

próprio objeto em estudo.

Nicholas Cook (2006b, p. 6) parece-me propor um novo vetor para este debate, ao afirmar

que o principal objeto de inquietação dos musicólogos, a partir da década de 1990, foi justamente

superar a ideia stravinskiana da música como produto autônomo. É que a Nova Musicologia resistiu

em ver qualquer produto cultural em uma perspectiva dissociada do contexto em que fora gerado ou

consumido. Para Cook, a própria musicologia, em sua origem no século XIX, espelhara-se nos

métodos da filologia e da literatura, o que redundou no estabelecimento de um paradigma conceitual

em que o produto, a música grafada, assumiu papel central, à semelhança do que ocorrera com

textos literários.

As obras musicais seriam, na perspectiva erudita, mensagens postadas pelo compositor

diretamente ao seu público, processo no qual o intérprete deveria aspirar à transparência ou, mesmo,

à invisibilidade. Cook (2006, p. 12) propõe o rompimento dessa relação de subordinação da

performance ao produto e sugere que a partitura seja encarada como mero script, à semelhança do

que ocorre nas artes cênicas. Trata-se, a meu ver, de uma postura de rejeição à perspectiva

formalista da música e de resistência à sinonímia entre a obra musical e o objeto partitura. Em

conclusão, afirma esse autor:

Mas este problema desaparece se, ao invés de vermos as obras musicais como textos dentro dos quais as estruturas sociais são codificadas, as víssemos como scripts em resposta aos quais as relações sociais são levadas a cabo: o objeto da análise torna-se presente e autoevidente nas interações entre os performers e no traço acústico que eles deixam (COOK, 2006, p. 19).

A visão da questão sob a perspectiva de Cook parece-me aproximar o universo da música

erudita e da música popular, ao expor como também no universo erudito a partitura representa

apenas uma das referências para a performance, um script. Nesse sentido, a notação escrita pode,

também no campo erudito, ser vista apenas como um dos elementos norteadores da performance, no

contexto de um fenômeno muito mais complexo, pois, tal qual na música popular, também na tradição

erudita predominaria em grande medida a transmissão oral das formas musicais. O argumento de

Cook funda-se na constatação de que há decisões de timbre, dinâmica, andamento, entre outros, que

o performer precisa tomar para a realização sonora da obra musical e que não se exaurem na

partitura. Na música de conjunto, por exemplo, segundo o autor, os ensaios seriam o ambiente de

discussão e negociação desses elementos. Apesar de sua relevância musical, tais elementos não

estão grafados na partitura, não integram o “original” subscrito pelo compositor, devendo, portanto, ter

seus significados “construídos” a partir da performance.

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Nascimento (2004 p. 2) faz uma interessante digressão a respeito do conceito de “original”

em música, para alcançar conclusão similar à de Cook, isto é, de que, apesar de a partitura ter sido

durante muito tempo o único meio de registro e divulgação de obras musicais, a notação musical

deve ser encarada apenas como um roteiro daquilo que o compositor pretendia fazer soar à

audiência, e não a música em si mesma. Aragão (2001, p. 18) afirma, nesse mesmo sentido, que, na

música erudita, a partitura é uma “instância de representação do original”, adotada como fonte

primária para investigar a vontade do compositor. Na música popular, prossegue o autor, haveria, em

decorrência da fluidez dessa mesma instância, uma abertura maior para o intérprete. Não creio, não

obstante admita essa distinção nesta pesquisa, que exista uma diferença ontológica entre a

performance na música erudita ou na música popular: o que distingue os dois campos é, a meu ver,

apenas o grau de ambiguidade, de livre-arbítrio que se confere ao intérprete.

A questão da abertura ao intérprete, como performer, coloca-se, conforme demonstrarei a

seguir, muito mais em relação ao contexto do que ao campo estético. Na música erudita há autêntico

sistema hierárquico que submete o intérprete aos ditames do compositor, uma condição inerente à

perpetuação dessa tradição, fundada nos conceitos de obra-prima e de genialidade. É que, no

universo erudito, como afirma Gadamer (1997, p. 112), a obra de arte, objeto da interpretação, é

considerada produto de gênio. Seu autor, detentor dessa genialidade, por um imperativo lógico, é o

mais legitimado a compreendê-la integralmente, pois o ponto de vista do gênio, como diz Gadamer,

revela a genialidade da compreensão. É a genialidade do autor, a um só tempo, fonte de legitimação

da obra de arte e de sua legítima interpretação.

Há, nesse sentido, no campo erudito, onde prepondera o conceito de gênio, a expectativa

de que a performance observe, como limite, pelo menos, as notas musicais grafadas pelo compositor,

mesmo que se admita algum “acertamento” para fazer a obra soar melhor ao público, o que é

tolerado em face dos aspectos meramente episódicos da performance, como ocorre rotineiramente

nos ensaios e concertos de orquestra. A partitura é aqui a norma estrita que deve ser interpretada

com o objetivo de revelar ao máximo a vontade genial do compositor, um fenômeno que Barbeitas

(2000, p. 89) chama de “a sacralização moderna dos originais”. No caso do arranjador, como se verá,

o foco é deslocado do produto para o processo, isto é, para a performance musical, pois o seu

trabalho é, por via de regra, superar a escrita original do compositor.

Na música popular o sistema hierárquico, que subordina a performance ao compositor, é

débil. É que aqui há muito pouco de norma escrita, quando muito há uma melodia harmonizada com

letra, como ocorre no caso da canção popular, uma forma lítero-musical. Como a forma é muito fluida,

abre-se um vasto campo para a interpretação no momento da performance, em uma perspectiva

muito distinta da música erudita. Umberto Eco (2013, p. 39) cita novamente Igor Stravinsky, e sua

“Sagração da Primavera”, para exemplificar como o compositor erudito clássico organizava a forma

musical e a traduzia em sinais convencionais capazes de guiar o performer a reproduzir

substancialmente a obra por ele imaginada. Em contraste com esse conceito de “fechamento”, Eco

propõe uma abertura estética que permita ao performer influir na forma da composição.

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Considero o conceito de abertura estética de Eco, sobre o qual discorrerei nos tópicos

seguintes deste capítulo, extremamente pertinente à investigação que empreendi nesta pesquisa. É

que na música popular não há, em regra, uma mensagem acabada e definida, mas uma infinidade de

organizações possíveis dos elementos estéticos que compõem o “original popular”, tarefa que se

atribui ao performer empreender, dada a lacuna deixada pelo compositor. A questão hierárquica

coloca-se aqui de maneira muito mais limitada quanto ao estabelecimento de uma relação

verticalizada entre o compositor e o intérprete. Eco afirma, nesse sentido, que se uma obra de arte

não foi reinventada no momento de sua fruição então não foi realmente compreendida, segundo os

limites ditados pelo contexto de sua criação e de sua interpretação.

Essa abundância de sentidos, inerente à obra de arte, será também problematizada na

perspectiva hermenêutica de Gadamer (2010, p. 2), para quem a atualidade da obra de arte consiste

precisamente em se achar ilimitadamente aberta a sempre novas integrações. O autor assevera que

a obra de arte não é um artefato arqueológico, nem pode ser reduzida apenas ao que pretendia

expressar seu autor em dado momento histórico, pois a arte fala ao intérprete algo que é sempre

atual e simultâneo (GADAMER, 2010, p. 6).

Abordarei a seguir a questão do significado e da ressignificação musical também segundo a

perspectiva de Leonard Meyer, formulada por ele a partir dos conceitos da Gestalt. Meyer entende

que o significado musical surge a partir da afirmação ou quebra de certas expectativas quanto à

forma, o que viabilizaria ou frustraria a percepção do todo, segundo uma perspectiva historicamente

determinada. Assim, as leis da pregnância, da boa curva, da proximidade, da igualdade etc. devem

ser, ao mesmo tempo, preservadas e transgredidas para a compreensão e significação da obra

musical. O recurso a Meyer neste trabalho tem, nas palavras de Eco (2013, p. 142), a vantagem de

seu discurso ser uma interpretação lógico-estrutural da música tonal, e tonal é o tipo de música

popular que constitui objeto desta pesquisa.

3.2.2 O significado musical em Leonard Meyer

3.2.2.1 A ressignificação da obra musical

A obra Emotion and meaning in music teve sua primeira edição no ano de 1956. Nela,

Leonard Meyer propõe o debate do significado musical a partir dos novos conceitos introduzidos pela

Ciência da Informação, um ramo do conhecimento ainda em florescimento na década de 1950.

Segundo essa perspectiva, o compartilhamento de qualquer informação, inclusive musical, pressupõe

a existência de um emissor e de um receptor. O significado musical surge, em consequência, da

satisfação ou frustração de expectativas durante o fluxo de informações. No campo musical tal fluxo

ocorreria usualmente entre o performer e o ouvinte. Quando há a plena satisfação dessas

expectativas, quando tudo acontece como era esperado pelo receptor, o grau de informação é baixo

e há pouco significado musical. Se, ao contrário, ocorre um desvio, pois as respostas ou conclusões

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esperadas são retardadas ou suprimidas, isto é, quando o emissor surpreende o receptor, o grau de

informação é alto e há muito significado musical.

Em termos da teoria matemática da informação, esse fenômeno poderia ser assim

resumido: a quantidade de informação é diretamente proporcional à probabilidade de incerteza

contida em uma mensagem. Quando a probabilidade de incerteza é alta, há muita informação;

quando há plena certeza dos dados transmitidos, o grau de informação é baixo.

É interessante observar como o significado musical em Meyer, ao focar aspectos internos

do discurso musical, parece, em princípio, adotar um conceito de música absoluta, sobretudo porque

seus estudos foram maciçamente direcionados à análise da música erudita tonal, e sua obra é

ricamente adornada por exemplos provenientes dessa tradição. O próprio autor, no entanto, já nas

linhas introdutórias de seu texto, posiciona-se contra a rígida dicotomia estabelecida entre teóricos

absolutistas e referencialistas, isto é, entre aqueles que acreditam em significados provenientes

apenas da estrutura interna da obra musical e os que creem na influência de elementos

extramusicais. Meyer afirma que as duas concepções não são excludentes (1956, p. 1), pois podem e

devem coexistir em uma mesma obra musical.

É importante perceber, malgrado o autor absorva essa dicotomia ao longo de seu discurso,

que sua formulação teórica possibilita compreender o significado musical a partir da relação emissor

e receptor, entre o performer e o ouvinte, para a satisfação ou inibição de expectativas, o que

pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva. O significado deixa de ser uma questão

inerente e restrita às estruturas internas da composição, para surgir na relação entre sujeitos, por

exemplo, entre o compositor e o intérprete, ou entre este e seu público.

Essa distinção entre as estruturas musicais e a sua percepção é feita de forma muito clara

no início de Emotion and meaning in music, quando Meyer afirma:

O trabalho dos psicólogos da Gestalt tem demonstrado, sem sombra de dúvida, que entender não é um problema de simples estímulos ou simples combinações isoladas de sons, mas de agrupar esses estímulos em padrões e relacioná-los uns com os outros (MEYER, 1956, p. 6).

Ora, compreender música, nessa perspectiva, não se limita a receber passivamente os

estímulos que são notados na partitura pelo compositor e reproduzidos mecanicamente na

performance, tampouco recebê-los do instrumentista passivamente; demanda a capacidade do

ouvinte de agrupar os padrões que lhe são apresentados e relacioná-los ativamente. É um fazer

humano que pressupõe associar eventos sonoros, relacionar dados antecedentes e consequentes e

deles extrair informação – significado musical − em maior ou menor grau.

Corrêa (2015) afirma que Meyer, ao enfatizar a importância da satisfação de uma

expectativa no ouvir, como meio de gerar significado, conectou a cognição musical a uma vinculação

cultural, introduzindo um novo elemento no âmbito da musicologia tradicional, a qual considerava ser

esse um debate exclusivamente musical. É que, por óbvio, a satisfação ou frustração de expectativas

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decorre de cada contexto particular, de cada relação intersubjetiva, vale dizer, o significado musical é

desvelado caso a caso, não como uma propriedade imutável interior à obra, e sim resultado do

impacto que a performance imprime em cada sujeito no momento da fruição. É importante ressaltar,

como alerta Meyer, que a percepção da estrutura interna da música ou a percepção da relação entre

essa estrutura e elementos externos não se estabelece por mero arbítrio do ouvinte, pois são dados

da cultura, são conexões reais que existem objetivamente em determinado contexto cultural (MEYER,

1956, p. 34).

De fato, esse mecanismo psicológico, a partir do qual uma expectativa frustrada excita em

nós uma tendência natural (que, na verdade, como vimos, é cultural) à completude, é problematizado

em Emotion and meaning in music, com recurso à teoria da Gestalt. Segundo Ehrenfels (1988, apud

OLIVEIRA, 2010), Gestalt é a qualidade que se apreende de algo, além de se perceberem os

elementos isolados que o compõem. É a qualidade de ser do todo que supera a soma das partes, é a

qualidade total, a forma total na tradução literal a partir do idioma alemão para o idioma português.

Para a psicologia da Gestalt, as propriedades cognitivas e perceptivas decorrem da tensão

estabelecida entre o todo e suas partes, onde se busca a completude pela adoção da forma mais

concisa, estável e regular, ao que se denomina pragnanz, ou lei da pregnância. No campo da arte é

comum ouvir esse princípio traduzido simplesmente pela máxima “menos é mais”.

Outra distinção lançada em Emotion and meaning in music é a diferença entre os conceitos

de estímulo sonoro e termo sonoro, o que também nos remete à dicotomia entre parte e todo. O

termo sonoro, ou gesto musical, é um som ou grupo de sons que conduz o ouvinte a esperar, em

certa medida, um provável consequente. O estímulo sonoro, ao seu turno, acontece exclusivamente

no plano físico, é apenas o dado acústico individualmente considerado. Meyer faz, nesse sentido,

uma analogia entre o estímulo sonoro e a palavra, para demonstrar como a palavra pode ter

diferentes significados em diferentes idiomas ou, diferentes significados em um mesmo idioma. Ou

seja, um estímulo sonoro (som na perspectiva acústica) somente se torna um termo sonoro quando é

compreendido e percebido como parte de um sistema encadeado de sons. E essa percepção,

segundo o autor, decorre diretamente do contexto cultural do ouvinte.

Em uma mesma cultura, ou mesmo em uma peça musical, um dado estímulo sonoro pode

assumir o caráter de termos sonoros variados. No sistema tonal, por exemplo, o mesmo agrupamento

de notas usado para formar um acorde pode significar diferentes funções harmônicas, em diferentes

graus da escala, o que denota que o mesmo estímulo sonoro pode revelar-se em diversos termos

sonoros coexistentes e não excludentes, dependendo do papel que desempenham em determinado

contexto e de sua relação com o todo.

Meyer afirma, nesse sentido, que a música se estrutura arquitetonicamente, razão por que

um termo sonoro ou gesto musical em determinado nível, quando visto como parte de uma estrutura

mais ampla da obra, deixa de funcionar ou ser entendido como um termo sonoro. É que existem

vários níveis arquitetônicos de significação interdependentes, como ocorre no discurso literário. Assim

como não existem capítulos sem haver significados entre parágrafos e parágrafos sem haver

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significado entre as frases, de igual modo o significado das partes maiores de uma obra musical

depende das relações significativas entre as partes menores (MEYER, 1956, p. 47).

O significado musical, nessa perspectiva, não deve ser considerado estático ou imutável, e

sim imerso em um universo cambiante e episódico de gestos musicais ou termos sonoros, nos vários

níveis arquitetônicos da obra musical. É que, enquanto ouvimos música, não só interpretamos

estímulos presentes com base em eventos passados, mas também colocamos em perspectiva

eventos futuros com base no que já ouvimos no passado, tendo em vista os estímulos do presente.

De fato, um evento que inicialmente pareceu destituído de ambiguidade pode ser visto, logo após ou

ao final, como ambíguo. A ambiguidade, como afirma Meyer, variará de acordo com o ponto de vista

arquitetônico de determinada estrutura musical, levando em consideração a direção adotada por essa

série de estímulos. Daí o autor concluir que, paradoxalmente, o significado não ambíguo do todo

pode ser produto da ambiguidade das partes (MEYER, 1956, p. 52). Tudo isso está relacionado à

capacidade de apreender a forma, o que requer o exercício de abstração e de generalização. Uma

habilidade que provém da inserção do indivíduo na cultura, do processo de aprendizagem, pois não

se trata de uma característica inata, proveniente da natureza.

Daí que uma solução altamente provável, segundo determinada norma estilística, e,

portanto, altamente esperada em um trecho musical, caso seja frustrada, exigirá do ouvinte a

capacidade de imediata reorganização da visão do todo, induzindo a um novo juízo sobre a forma, o

que pode ser altamente significativo para o indivíduo. É essa tensão entre probabilidade e

expectativa, frustração ou satisfação, que eleva o nível de informação entre o emissor e o receptor e

gera uma performance significativa. Se todas as expectativas são satisfeitas, segundo as regras

probabilísticas do estilo, o nível de informação é baixo e ocorre pouca significação. Se, ao contrário,

nenhuma probabilidade é confirmada e todas as expectativas são frustradas, impedindo o ouvinte de

apreender a forma total, o nível de informação é tão elevado que o receptor perde a capacidade de

retenção e absorção, ocorrendo, de igual modo, pouca significação. A arte, parece-me, situa-se na

justa e tensa medida da busca por agregar apenas o estritamente necessário, segundo as leis da

pregnância, sem, contudo, incorrer em um lugar-comum.

3.2.2.2 A ressignificação e o arranjo musical

A atividade do arranjador musical é, segundo tal perspectiva do significado musical, um

fazer de segunda geração em relação ao significado pretendido pelo compositor. De acordo com

Meyer, a obra musical, em sua concepção autoral, constitui-se em uma associação ou encadeamento

de termos sonoros, ou gestos musicais, que resultam, em seus diversos níveis arquitetônicos, em um

único termo sonoro, ou seja, as partes convergem para a composição do todo. O papel do arranjador,

precisamente do arranjador popular sobre o qual se debruça esta pesquisa, será trabalhar as

probabilidades originais segundo uma nova perspectiva, para renovar o jogo entre o conhecido e o

(re)conhecido. A transformação do conhecido, mediada pela criatividade, gera o objeto

(re)significado. A satisfação e frustração de expectativas, cujo objetivo final é atribuir à forma musical

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um significado distinto daquele pretendido originalmente pelo compositor, é um processo que

denominarei doravante simplesmente ressignificação musical.

Ora, como vimos, o significado musical surge sobretudo da quebra de expectativas, da

adoção de desvios ou da proposição de rupturas estilísticas que, por improváveis, são emocionantes

para o ouvinte, revelando-se significativas no contexto do discurso musical. O arranjador tem por

meta propor significados de uma segunda ordem, pois já partirá ele das relações entre frustração ou

satisfação propostas pelo compositor. Ademais, a própria estruturação da obra original afigura-se um

elemento de redundância (uma norma) a ser ponderado pelo arranjador para alcançar a

ressignificação.

Há, nessa perspectiva, uma constante tensão entre a forma original, concebida pelo

compositor e a nova organização dos termos sonoros proposta pelo arranjador, pois, para que seu

trabalho aconteça e seja reconhecido em sua originalidade, é necessário que atribua novos

significados à forma musical, que o arranjador busque imprimir uma qualidade ao todo diversa

daquela proposta pelo compositor. A originalidade do arranjador está, assim, na busca de uma justa

medida que possibilite a superação da originalidade do compositor, sem que ocorra a quebra ou a

perda do sentido unívoco do termo musical.

Observaremos aqui como o arranjador trabalha continuamente as posturas de aproximação

e distanciamento dos elementos da obra original, com a cautela de não descaracterizar a

estruturação dos termos sonoros ao ponto de impedir que o receptor consiga identificar a totalidade

da forma, pois a ressignificação musical deve preservar essa identidade. Do contrário, teremos uma

nova obra, cuja autoria poderá ser reivindicada pelo próprio arranjador, e não um arranjo original

sobre o trabalho de um dado compositor.

O que é original no ofício do arranjador é a maneira como ele (re)ordena os termos sonoros,

extraindo deles novos significados musicais, muitas vezes não vislumbrados pelo próprio compositor.

O que caracteriza o arranjo não são os novos termos sonoros criados pelo arranjador e agregados à

composição em sua forma original, tal como a introdução, os interlúdios ou pontes, ou o pós-lúdio. O

traço característico do arranjo é a maneira pela qual o arranjador reordena a forma concebida pelo

autor, gerando novas expectativas para o ouvinte, sem contudo avançar sobre a fronteira da

identificação entre a obra e o compositor. É nesse sentido que o trabalho do arranjador é

eminentemente de interpretação e não de composição, pois o que confere surpresa ao arranjo é a

capacidade de o arranjador distanciar-se da forma original sem descaracterizá-la ao ponto de esta

não mais ser reconhecida como obra.

3.2.2.3 Conclusão

A perspectiva do significado musical de Meyer permite-nos perceber que o principal aspecto

do trabalho do arranjador é a reorganização dos termos sonoros propostos pelo compositor, extraindo

da obra musical novos significados, por vezes sequer imaginados pelo autor, isto é, a ressignificação

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musical. É nessa perspectiva que o arranjo pode ser visto como o resultado de um processo de

interpretação, empreendido pelo arranjador em relação à obra do compositor. Esse processo é

permeado pela introdução de novos termos sonoros na forma original, a fim de obter a afirmação ou a

quebra de expectativas, segundo uma nova perspectiva, decorrente de um novo contexto, sem perder

de vista ou abandonar a qualidade atribuída à forma pelo próprio compositor, o que nos permite

identificar no arranjo a forma original arranjada.

3.2.3 Gadamer e a hermenêutica da obra de arte

3.2.3.1 Introdução

A palavra hermenêutica tem sido historicamente associada, principalmente, à Teologia e ao

Direito. No campo da religião, é identificada com a interpretação dos textos bíblicos e, no universo

jurídico, à exegese das leis. Heidegger (2013 p. 15) afirma que não há certeza etimológica mas uma

grande possibilidade de que o termo hermenêutica derive de Hermes, o mensageiro dos deuses. Na

mitologia grega, atribuía-se a Hermes a origem da palavra e da escrita. Daí os termos hermeneia e

hermeneuein, palavras que podem ser traduzidas simplesmente como interpretação e interpretar, e já

aparecem, de inúmeras formas, em textos datados da Antiguidade (PALMER, 1999 p. 23).

O deus Hermes surge, na Antiguidade Clássica, conforme Graves (2008, p. 80), como o

guardião de todas as habilidades divinas, responsável por fechar contratos, promover o comércio e

assegurar a liberdade dos comerciantes em todas as partes do mundo. Palmer (1999, p. 24) situa

Hermes como o mediador entre o oráculo de Delfos e a compreensão humana e, como tal, o

responsável pela introdução da escrita e da linguagem, adotadas como ferramentas para chegar ao

significado das coisas e para transmiti-lo a todos. A função de Hermes, o deus-mensageiro-alado, é a

transmutação da mensagem do destino que lhe é passada pelo oráculo de Delfos. Através de

Hermes, mediante o recurso da linguagem, a mensagem é tornada acessível ao homem.

Desde o uso antigo, a palavra hermenêutica expressa três dimensões distintas da

linguagem, a saber: o dizer, o explicar e o traduzir. O dizer relaciona-se à recitação oral de uma

mensagem; o explicar, à sua explanação racional e, por fim, tem-se o ato de traduzir essa mensagem

de um idioma para outro. Nas três dimensões, não obstante, tanto da representação, da explicação

ou da tradução, o que se tem é a busca por tornar algo compreensível.

Bleicher (1980, p. 24) situa no sistema educativo grego a origem da interpretação literária,

utilizada na Antiguidade como instrumento de auxílio à crítica da obra de Homero e outros poetas.

Uma segunda fase de ênfase à hermenêutica situa-se no Renascimento e no Humanismo, com o

retorno do interesse pelos textos clássicos: a vida grega é, então, retomada como modelo de

educação científica e artística. A par do interesse pelos textos profanos da Antiguidade, Bleicher

observa como todas as religiões que se estruturaram sobre escrituras sagradas cuidaram de erigir,

paralelamente, um sistema interpretativo.

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No Cristianismo, v.g., a hermenêutica serviu para facilitar a exegese da literatura bíblica,

atingindo seu apogeu em Lutero, durante e após a Reforma Protestante, em torno do dogma da

unidade da Bíblia: a perspectiva de que as partes individuais das escrituras devem ser consideradas

em relação ao seu todo. A partir de Lutero, a interpretação passa a ser uma livre atividade humana,

disponível a qualquer dos fiéis e independente da mediação da Igreja, tanto quanto a confissão dos

pecados (cf. BLEICHER, 1980). Opera-se, segundo esse autor, a quebra da submissão dessas

atividades a uma autoridade central, que passa a ter como única fonte a palavra de Deus, que é

revelada a cada um dos homens diretamente das Escrituras.

A organicidade bíblica, nessa nova dimensão religiosa, deve ser compreendida em toda a

extensão desse dogma. Para bem compreender esse estágio da hermenêutica, é preciso não perder

de vista que, nesse caso, a totalidade do texto sagrado “re-presenta” a palavra de Deus que, em sua

sacralidade, deve ser cultuada e resguardada por todo aquele (crédulo) que interpreta um excerto da

Bíblia. Respeitado o dogma, Deus está no todo e em cada uma das partes, razão por que o intérprete

deve evitar qualquer contradição entre essas duas instâncias, sob pena de profanar o Texto Sagrado.

Ora, adotando-se por pressuposto, segundo um imperativo teológico, que a palavra de Deus é

sagrada, deve ser evitada a interpretação que conduza à contradição entre cada uma das partes das

Escrituras e a verdade divina expressada no todo orgânico. Vale dizer, o intérprete deve evitar que

seu livre-arbítrio coloque em xeque, ou contradição, a unívoca vontade de Deus. Trata-se, antes de

mais nada, de uma atitude de submissão obsequiosa à vontade do Criador.

Essa perspectiva atinge seu ápice no início do século XIX, em Schleiermacher, com a

introdução do conceito de “círculo hermenêutico” (cf. GADAMER, 1997 p. 288). Segundo esse

teólogo protestante, compreendemos o todo porque compreendemos as partes que o integram, mas,

ao mesmo tempo, compreendemos as partes porque compreendemos o todo que se forma a partir da

união dessas partes, de maneira circular e recíproca. Há para ele uma relação dialética entre o todo e

a parte, onde cada qual dá sentido ao outro, resultando a compreensão dessa relação circular.

Dilthey, considerado o pai da hermenêutica moderna (cf. PALMER, 1999, p. 128), dá um

passo adiante em Schleiermacher e acrescenta ao círculo hermenêutico o seu caráter histórico.

Segundo ele, não se duvida de que o sentido do todo determina o sentido das partes, e vice-versa,

mas esse “sentido”, para Dilthey, é algo que ocorre no tempo. A relação entre as partes e o todo é

fruto de um determinado ponto de vista, em um dado momento, e não apenas de aspectos internos

da obra. Não basta, por conseguinte, tomar a obra fora da história e nela buscar sua coerência

orgânica. Para ele não há obra fora ou acima da história, pois seu sentido e significado estão

implicados em um processo histórico. Há em Dilthey, por conseguinte, a dessacralização da

interpretação, pela introdução da dimensão histórica (temporal) que se contrapõe à busca da verdade

interna do texto bíblico (sagrada e atemporal), o que configurava, até então, uma atividade

eminentemente divinatória.

Superada a suposta neutralidade histórica da relação entre sujeito e objeto, isto é, entre

intérprete e obra, a questão do significado desloca-se do seu interior (da obra) e passa a situar-se no

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tempo em que ocorre a interpretação, vale dizer, o significado deixa de ser unívoco, fixo ou

determinado. Com efeito, é da relação entre objeto interpretado e sujeito interpretante, imersos em

um determinado contexto, que surge “um” e não “o” significado. A relação entre as partes e o todo é

balizada na experiência vivida pelo intérprete. Há, portanto, que ser considerada a historicidade sob

duas perspectivas simultâneas: aquela que é herdada do objeto, pois ele se desloca através do

tempo, e a posição assumida pelo sujeito, em sua finitude e temporalidade. É essa conjugação que

dá ensejo à construção de um significado, e não à sua revelação.

A introdução da perspectiva histórica, em Dilthey, tem como principal corolário expandir a

reflexão hermenêutica para todos os setores das denominadas “ciências do espírito”. Essa viragem

tem por contexto o romantismo alemão da passagem entre os séculos XVIII e XIX. Com recurso à

Psicologia, Dilthey sustenta a primazia do mundo da cultura sobre as questões do espírito, rompendo,

nesse sentido, com o primado da razão preconizado por Descartes e Hume (ARAÚJO, 2007). É que,

em sua perspectiva, fundada na Psicologia, a razão varia em cada homem, sendo,

consequentemente, inviável pretender dela extrair a regularidade do comportamento humano, tal

como preconizavam os racionalistas e empiristas.

A hermenêutica moderna não pode ser, de igual modo, dissociada da reforma promovida

por Lutero, que, ao afastar a Igreja como mediadora do ato de contrição, propiciou uma nova

dimensão subjetiva para a interpretação. Lutero (cf. BIGONHA; MOREIRA, 2010, p. 5) não apenas

instituiu o denominado “solifideísmo” (a possibilidade de o homem confessar-se diretamente a Deus),

mas libertou o Texto Bíblico do monopólio eclesiástico, restaurando a pluralidade do fenômeno

hermenêutico, até então submetido ao poder da Igreja. Sua tradução da Bíblia para o idioma alemão,

em si mesmo um fazer eminentemente hermenêutico, deu ensejo, a um só tempo, à livre

interpretação do Texto Sagrado por qualquer um dos fiéis e não somente aos sacerdotes letrados no

latim, bem como propiciou a fundação do moderno idioma alemão.

Segundo afirma Palmer (1999, p. 23) Scheleiermacher teve papel decisivo na consolidação

do pensamento de Dilthey. Este, em apenas cinquenta anos, revolucionou a hermenêutica, tirando-a

do contexto estritamente religioso. Esta, que era, até então, uma ferramenta do domínio teológico, foi

guindada ao status de metodologia das ciências humanas. Todo o seu esforço por afirmar a

dimensão histórica da interpretação não o poupou, entretanto, de um viés objetivista, o que tanto

criticara nos positivistas e empiristas. Há nele, ainda, a busca de uma objetividade histórica.

Em Ser e tempo Heidegger suplanta definitivamente a dualidade sujeito-objeto,

fundamentando sua hermenêutica na fenomenologia. Com recurso à ontologia, situa o ato da

compreensão no âmago da figuração do mundo e na base de toda interpretação: a compreensão é

fundante da própria existência. Com isso a hermenêutica de Heidegger aspira à universalidade, pois

a compreensão funde-se com a própria percepção do mundo, em um momento anterior à

subjetividade.

Duprat (2007, p. 10) afirma que a expressão Dasein, já encontrada na obra de Kant, teve

amplo desenvolvimento na Alemanha dos anos 1910 e 1920, culminando na obra de Heidegger, Ser

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e tempo. Traduzida do idioma alemão para o português como a expressão “estar aí no mundo”, em

Heidegger ela significa que nossa atitude no mundo já é dada como um todo de razão prática, isto é,

o ser sempre se compreende no mundo antes mesmo de teorizar como ele conhece o mundo. Esse é

o fundamento ontológico da compreensão, sempre fundada em uma compreensão prévia, o que

fulmina qualquer tentativa de isolamento do objeto interpretado ou de estrita delimitação do sujeito

interpretante.

Reis (2015, p. 60) afirma que já se tornou lugar-comum relacionar a obra de Heidegger e

Gadamer à radicalização ontológica da hermenêutica, pois compreensão e interpretação deixam de

ser uma classe de ações cognitivas para integrarem definitivamente as estruturas formais do ser

humano: por conseguinte, o aspecto hermenêutico universal da vida humana implica que todos os

contextos e comportamentos humanos são possibilitados pelo acontecer de uma compreensão.

Gadamer afirma que a compreensão ocorre dentro de um contexto, no qual os prejuízos ou

preconceitos tornam o objeto inteligível pela primeira vez. Já não é mais possível, segundo esse

modelo, pensar em uma objetividade da compreensão, ao contrário, instaura-se o pluralismo das

interpretações.

Ora, como os “pré-conceitos” nos são legados pela tradição e como não há interpretação

sem “pré-conceitos”, então pode-se afirmar que não há uma interpretação atemporal, correta em si

mesma, pois sua validade relaciona-se sempre com o presente. A historicidade da compreensão

reside justamente em que o significado não é uma propriedade imutável do objeto, mas um

significado para nós, em determinada situação hermenêutica. Daí Gadamer situar a realidade

histórica do ser nos juízos prévios, pois não pode haver nenhuma interpretação sem pressupostos.

Em Verdade e método (1997, p. 439), Gadamer sintetiza a profunda alteração operada por

Heidegger no conceito de círculo hermenêutico. Herdada da teoria do século XIX, como vimos, a

moderna hermenêutica ocupava-se primordialmente da busca de relações formais internas da obra,

isto é, da coerência entre o todo e suas partes. Embora em Heidegger mantenha-se ainda a ideia da

circularidade, à questão da compreensão do texto acrescenta-se o contínuo movimento da

concepção prévia do sujeito interpretante, o que denominarei adiante simplesmente de “pré-

compreensão”. Há, por conseguinte, um momento que antecede a relação do todo e suas partes, ou

mesmo a relação entre intérprete e obra: a antecipação de sentido não decorre exclusivamente da

subjetividade ou da objetividade, e sim da comunhão que nos une à tradição.

A visão de Gadamer a respeito da compreensão transforma a busca da coerência orgânica

da obra em uma quimera, pois revela-nos que o interpretar envolve muito mais do que resolver a

tensão interna entre as partes e o todo, na dualidade sujeito-objeto. Na verdade, para que seja

desvelado o significado, devem interagir muito mais elementos do que a qualidade das partes e sua

coerência com a obra, tomada em sua totalidade. O sujeito interpretante traz para o círculo

hermenêutico seus preconceitos e o próprio objeto é indissociável de sua pré-compreensão, o que

nos é legado pela tradição: tudo isso inaugura em Gadamer uma nova circularidade hermenêutica da

compreensão.

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3.2.3.2 A questão da hermenêutica da obra de arte

Gadamer adota a ontologia de Heidegger para lançar as bases de seu conceito de

compreensão, algo que não se limita à atitude subjetiva do homem em face de um objeto, mas sim

um modo de ser do próprio homem. A hermenêutica, a partir de então, deixa de ser a base

metodológica para as “ciências humanas” e adquire status de universalidade. Sua indagação é sobre

como se dá a compreensão do mundo pelo homem, em todos os níveis e sentidos. Daí sua nova

feição ontológica.

É no campo da arte que a hermenêutica filosófica de Gadamer assume características mais

marcantes. De fato, a experiência da arte possibilita-lhe demonstrar a absoluta parcialidade do

modelo racional sujeito-objeto ou forma-conteúdo. Com recurso à teoria dos jogos, Gadamer procura

demonstrar que a fruição da arte, a apreensão de seu significado, não decorre das propriedades de

um objeto puro e imutável, tampouco da exclusiva qualidade do sujeito interpretante. Ela brota do

evento, do jogo que o jogador experimenta e que, ao ser jogado, o transforma. Trata-se de uma

abordagem que é distante, ao mesmo tempo, da racionalidade cartesiana e da metodologia científica,

o que tem por corolário romper o isolamento do objeto estético.

Evidentemente, a alusão à metáfora do jogo faz muito mais sentido no idioma de origem, o

alemão, onde a palavra spiel designa tanto brincar e jogar quanto interpretar. Da mesma forma, no

inglês, os conceitos jogar, brincar e interpretar expressam-se no vocábulo play. Já o português adota

palavras distintas para cada uma dessas atividades, razão por que algo que é colocado de maneira

tão evidente no pensamento de Gadamer, em alemão, dissipa-se na tradução para nosso idioma. De

qualquer forma, pode-se perceber que, com a ideia de jogo, Gadamer procura, com recurso à

metáfora, concentrar toda a atenção no fenômeno da arte, e não no objeto artístico ou no sujeito

fruidor.

No modelo gadameriano, o fenômeno da compreensão não pode ser dissociado dos

preconceitos que nos são legados pela tradição. É da tradição na qual nos inserimos que extraímos

os pressupostos da compreensão. Disso decorre que o significado não é uma característica imutável

do objeto, ao contrário, esse significado é sempre para nós. No campo da arte, a consequência mais

relevante do jogo da compreensão é que não há uma interpretação correta em si mesma, pois está

sujeita, sempre, a pressupostos. Gadamer sustenta que o significado surge do presente: o tempo já

não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na verdade,

o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes (GADAMER, 1997, p.

445).

Em Hermenêutica da obra de arte (2010), o autor reúne uma série de ensaios, nos quais

aborda a questão da circularidade da compreensão no campo da arte. De fato, para ele, a principal

característica da obra de arte é o fato de ela estar sempre aberta a novas interpretações, pois o que

expressa lança-se sempre além de sua limitação histórica, o que lhe conferiria um presente

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atemporal. Para ele não se trata, no campo da arte, de manipular um documento histórico, nem

segundo sua intenção, nem segundo o significado que conquista na experiência (no jogo) da arte. A

obra de arte diz algo a alguém, não como um documento histórico diz algo ao historiador, mas sim

como se fosse dito expressa e diretamente a esse alguém, enquanto atual e simultâneo. A

experiência (jogo) da arte poderia caracterizar-se, segundo Gadamer, no fato de a obra de arte

possuir sempre o seu próprio presente e de reter em si, de maneira muito condicionada, sua origem

histórica:

A distância de tempo não é, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. Esta era, antes, a pressuposição ingênua do historicismo, ou seja, que era preciso deslocar-se ao espírito da época, pensar segundo seus conceitos e representações em vez de pensar segundo os próprios, e somente assim se poderia alcançar a objetividade histórica. Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido (GADAMER, 1997, p. 445).

Com isso chegamos ao conceito de hermenêutica proposto por Gadamer: a arte de explicar

e mediar, com base em um esforço interpretativo, o que é dito pelos outros e que vem ao nosso

encontro no interior da tradição. Em um conceito o mais amplo possível, a tradição é o conjunto da

experiência do mundo, cujo mediador é a linguagem. A linguagem da arte tem, entretanto, por

principal característica o excesso de sentido da obra de arte, em que a intenção do autor deve ser

tomada como um parâmetro muito débil a limitar a compreensão. E é no campo das obras de arte

não linguísticas que Gadamer identifica o âmbito estrito das tarefas da hermenêutica, onde o que é

dito é sempre mais do que o seu sentido indicado e captado.

Há em Gadamer a preocupação em resgatar os preconceitos que, no Iluminismo, haviam

adquirido um significado pejorativo, sobretudo após o pensamento de Descartes. Somente o

reconhecimento do caráter preconceituoso, no bom sentido, de toda compreensão pode, segundo

ele, levar o problema da hermenêutica ao seu extremo. É que, aos olhos do Esclarecimento, somente

o uso metódico e disciplinado da razão seria suficiente para nos proteger de qualquer erro

(GADAMER, 1997, p. 416), o que afastaria a legitimidade do preconceito ou da autoridade, tomados

como um desvio da razão. Ocorre que, em Gadamer, a compreensão é indissociável dos

preconceitos que nos são legados pela tradição.

Os costumes, nesse sentido, são usados para delimitar a tradição, uma vez que são

adotados livremente pelos indivíduos, mas não são criados por livre inspiração de quem os adota,

tampouco sua validade decorre deles mesmos: seu fundamento de validade é a tradição. O que nos é

consagrado pela tradição e pela herança histórica, na perspectiva gadameriana, exerce sobre nós

uma autoridade que não é racional, pois se tornou anônima e nos acompanhará em toda a nossa

trajetória vital-histórica. O que diz a tradição não é pensado como algo objetivo, estranho ou alheio,

pois vivemos imersos em preconceitos que constituem o estar no mundo de nosso ser.

Procurei com esta introdução demonstrar como a hermenêutica de Gadamer, fortemente

alicerçada no fenômeno (jogo) da arte, desfaz a dualidade estanque entre sujeito e objeto, ao lançar

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seu olhar para um momento anterior, do próprio fenômeno da arte e, consequentemente, da

compreensão. A introdução da ideia de pré-compreensão ao círculo hermenêutico foi aqui

brevemente descrita para superar outra estanque dualidade, isto é, entre as partes e o todo da obra

de arte. É que a circularidade hermenêutica não pode ser dissociada dos “pré-conceitos” do

intérprete, tampouco da prévia compreensão do objeto, o que nos é legado pela tradição.

3.2.3.2.1 A jangada partiu com Chico Ferreira e Bento: a jangada voltou só

O verso de Dorival Caymmi para a célebre canção “A Jangada Voltou Só” será tomado aqui

como exemplo para o exercício interpretativo, à luz da hermenêutica gadameriana, proposto neste

trabalho. O primeiro contato com a obra, já no verso que a inaugura, revela a força poética da

canção, que, entretanto, não está contida em nenhuma das palavras individualmente utilizadas pelo

compositor para expressar-se artisticamente. Os substantivos jangada, Chico Ferreira ou Bento têm

pouca ou nenhuma conotação lírica, e o verso é espartano quanto à utilização de adjetivos. Não há,

ademais, o recurso à metáfora – a jangada partiu com Chico Ferreira e Bento; a jangada voltou só.

Tomando-se o fato de que o sujeito interpretante é um brasileiro adulto de média

escolaridade, pode-se supor que, já na primeira leitura do verso, haverá por parte dele a

compreensão de que, por se tratar de uma jangada, essa sentença nos remete a um evento aquático,

isto é, tendo por contexto um rio ou o mar. Uma possível dedução a partir do título da canção é a de

que os personagens Chico Ferreira e Bento, seus tripulantes, são possíveis pescadores. O fato de a

jangada ter retornado sem os pescadores pode ser interpretado de inúmeras formas, dentre elas: 1.

Terá sido abandonada pelos pescadores que pegaram carona em uma lancha? 2. Terá sido

abandonada por que eles preferiram seguir ou retornar de seu destino a nado, para melhorarem sua

forma física? 3. Terá acontecido algum acidente com os pescadores? 4. Avançando um pouco mais,

o advérbio só significaria que a jangada voltou sozinha ou apenas voltou?

Estabelece-se, desde o primeiro contato com os versos, e a partir de então continuamente,

o círculo hermenêutico da compreensão que poderá ser, paulatinamente, expandido em seu raio, à

medida que outros “pré-conceitos” forem manejados, mesmo que inconscientemente, pelo intérprete.

Jangada, Chico Ferreira e Bento, acrescidos de um solitário retorno, em determinado contexto,

podem resultar na apreensão da tragédia de dois pescadores que partiram, na madrugada, de uma

praia do litoral, provavelmente da Bahia, pois trata-se de uma canção composta por um baiano, e,

seduzidos pelo canto de Iemanjá, foram sugados às profundezas do alto-mar. O retorno da jangada

vazia tem um enorme poder imagético, pode-se enxergar a tempestade, as ondas gigantescas, o

contorcer de músculos fatigados e a fatal entrega dos corpos moços aos braços da rainha do mar.

Tudo isso já nos surge nos olhos como o prenúncio do doloroso processo que se instaurará pela

perda do filho, do irmão, do noivo, do marido, que constitui a tragédia popular tão bem retratada por

Dorival Caymmi e que nos será detalhada nos próximos versos da canção.

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Temos, assim, alguns dados implícitos que se afiguram, de imediato, como um projeto de

leitura da obra como um todo, sem que, na verdade, nada do que se disse acima tenha sido

explicitamente expresso pelo próprio autor. Provavelmente esses cinco substantivos conectados por

dois versos − partir e voltar − não teriam nenhum sentido para um intérprete estrangeiro que

desconhecesse o significado de jangada, com todos os aspectos culturais que a confecção e

utilização dessa embarcação envolve, tampouco de Iemanjá, indissociável do processo de

colonização dos povos latino-americanos, do tráfico de escravos do período colonial e do sincretismo

religioso.

Se essa mesma sentença é deslocada desse contexto, das canções praieiras de Caymmi,

para uma mensagem passada pela guarda costeira de uma praia no litoral da cidade de Salvador, a

respeito de dois estudantes universitários que saíram de lancha puxando uma jangada, a notícia

desse evento não motivará mais do que uma diligência policial ordinária. Não há, em princípio,

nenhuma tragédia subjacente ou lirismo nesse segundo contexto. A mensagem passada por um

aplicativo de texto para o telefone celular de um dos integrantes da patrulha costeira desencadeará

uma série de atitudes que nada têm de deleite lírico ou poético e que poderão resultar na imposição

de uma sanção administrativa, decorrente do fato de os jovens navegadores terem lançado a rude

embarcação à deriva. Desaparecem, instantaneamente, Iemanjá, a tempestade, a sedução das

forças da natureza, a dor da perda de um ente querido ou qualquer reflexão sobre hibridismo cultural.

O confronto entre as duas interpretações dessa mesma sentença expõe a pertinência da afirmação

de Gadamer, de que o discurso poético não é alcançado pela poetização do discurso não poético,

isto é, pelo uso de metáforas. Como vimos no verso de Caymmi, a essência do discurso poético não

reside nas figuras de linguagem ou decorre de sua utilização (GADAMER, 2010, p. 44).

Pode-se imaginar um terceiro contexto, dentre muitos outros, para extrair novos significados

dessa mesma sentença. Imagine-se uma intercepção telefônica realizada pela Polícia Federal, no

âmbito de uma investigação criminal, na qual é gravado o diálogo dos líderes de uma quadrilha que

se dedica ao tráfico internacional de drogas. Nesse caso, o termo jangada poderá ser interpretado

como um avião monomotor utilizado para a fuga de dois perigosos criminosos, Chico Ferreira e

Bento, e o fato de que a “jangada voltou só” será o sinal eloquente de que a evasão do país foi um

sucesso, isto é, o crime foi consumado. O solitário retorno da jangada será saudado, aqui, pelos

comparsas dos criminosos, com viva alegria, ao contrário do contexto praieiro. É interessante

observar como, nesse caso, há por parte das autoridades policiais um uso abundante de metáforas

para nenhum resultado poético.

Isso não quer dizer que uma mensagem transmitida em linguagem referencial prescinda de

interpretação e que se esgote em sua literalidade. Tampouco que seja errado usar metáforas no

domínio da poesia ou que esta prescinda das figuras de linguagem. Como vimos, a compreensão, no

conceito contemporâneo de hermenêutica, confunde-se com a própria figuração do mundo, com

recurso à linguagem. O que o cotejo da mesma sentença em contextos tão diversos evidencia é a

força polissêmica inerente à arte, que, no caso da poesia, abre um campo semântico que não se

restringe à epiderme do verso e pode alcançar níveis abissais de profundidade significativa.

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O excesso de sentido é o que caracteriza a obra de arte, sujeita sempre a múltiplas

interpretações que, como exposto acima, condicionam-se aos “pré-conceitos” do sujeito interpretante

e à compreensão prévia dos objetos que nos são legados pela tradição. A polissemia da arte propicia

esse jogar que ao mesmo tempo aproxima e distancia sujeito interpretante e objeto interpretado,

submersos que estão na tradição, fenômeno donde provêm os significados:

A linguagem da arte, porém, tem em vista o excesso de sentido que reside na própria obra. Sobre esse excesso repousa a sua inesgotabilidade, que a distingue de toda transposição conceitual. Segue-se daí que, junto à compreensão de uma obra de arte, não podemos nos contentar com a regra hermenêutica comprovada em sua eficácia de que a “mens auctoris” limita a tarefa da compreensão apresentada por um texto (GADAMER, 2010, p. 8).

Tudo isso é dito para demonstrar que não é possível dissociar a literalidade do texto de um

número incomensurável de conceitos externos a ele, vale dizer, a visão positivista parte da falsa

premissa de que é possível interpretá-lo apenas a partir da conjugação das palavras e ideias que

supostamente já estão ali. É nesse sentido que a estrutura da compreensão prévia rompe o mito da

organicidade interna da obra, pois a interpretação envolve infinitas vezes mais elementos que lhe são

externos, ao invés de suas estruturas orgânicas, do que poderiam supor Scheleiermacher e, em

certa medida, também, Dilthey. Da infinitude da compreensão prévia decorre a infinitude do fenômeno

interpretativo.

No campo da música não é diferente. Quando se afirma, com eloquência, que o intérprete

deve ater-se à partitura e à forma estabelecida pelo compositor, estamos, na verdade, advogando

apenas “uma” dentre infinitas interpretações possíveis e não “a” correta ou definitiva interpretação.

Ademais, diversamente do que ocorre com as palavras em um texto, as notas musicais grafadas em

uma partitura tradicional representam pouco, ou quase nada, do que soará musical no momento da

performance. A maneira correta de interpretar uma partitura vincula-se muito mais à tendência

estética em que se insere, em determinado contexto, o intérprete, do que à reprodução obsequiosa

do que está na partitura e nos foi legado pelo compositor.

É preciso ressalvar, como alerta Gadamer (2010 p. 38), o fato de que a leitura de uma

partitura não é, por princípio, semelhante ao que ocorre na leitura de um texto linguístico. Há em

relação à obra literária uma ação interior que nos permite ouvir a voz do texto e exercitar livremente

nossa imaginação. Ouvir música pressupõe um evento sonoro externo ao músico e ao ouvinte para

ser apreendida. O instrumentista atua aqui como um intermediário entre o compositor e a audiência,

um autêntico intérprete, no sentido mais estrito possível, nas palavras de Gadamer, como aquele que

traduz em voz alta uma mensagem de um idioma para outro. Nesse sentido é que se mostra ainda

mais evidente o mito da literalidade, pois o ato de traduzir − também ele um fazer hermenêutico,

como exposto linhas atrás − envolve complexos procedimentos idiomáticos que vão muito além de

meramente transpor o significado literal das palavras que compõem um discurso de uma língua para

outra.

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Nesse sentido, aprender os princípios da notação musical e do solfejo rítmico e melódico

não são garantia, por si sós, da capacidade da leitura de partituras. É o contato prático com o texto

musical, com a memorização dos padrões de grafia dos seus diversos termos que garantirá, por

exemplo, ao leitor de primeira vista, executar com desenvoltura as notas grafadas na partitura, a partir

de fragmentos musicais já pré-compreendidos pelo músico. Opera-se, também aqui, o círculo

hermenêutico da compreensão, pois é da leitura reiterada de partituras que o músico poderá construir

a intimidade com um vocabulário cada vez maior de termos musicais, pois é lendo música que se

aprende a ler música. Em síntese, não lemos uma partitura apenas a partir do que está nela grafado,

mas com recurso a todo o repertório de partituras que já passaram sob nossos olhos.

Há que se resgatar aqui também o poder da oralidade mesmo na música de tradição

escrita, onde a figura do professor de música aparece como elemento de mediação entre a grafia

musical e a forma sonora “correta” de realizá-la. É comum o professor contextualizar a interpretação

para o aluno, isto é, revelar ao aprendiz as estruturas normativas que regulam a interpretação em

determinado domínio. A interpretação de uma peça do “Cravo Bem Temperado” de Bach, por

exemplo, poderá variar radicalmente caso se trate de um aluno de ensino médio de música ou de um

doutorando em performance; de um pianista que adota a técnica da escola francesa, em contraste

com outro discípulo da escola alemã. Em cada caso, o contexto impõe aspectos normativos

relacionados à leitura da partitura e à execução no instrumento, que poderão tornar o resultado, em

um caso ou no outro, inconciliável, ao ponto de não se saber o que é certo ou errado em termos de

seu resultado sonoro. Tudo isso torna explícito o quanto é relativo o conceito absoluto que se atribui à

notação musical na tradição erudita, relatividade que se torna ainda mais evidente se ponderarmos

questões como variação de andamento, dinâmica, timbre, afinação etc.

O caso do “Cravo Bem Temperado” é ainda mais emblemático, pois a notação de Bach

destina-se, em princípio, ao cravo e não ao piano, instrumento este que sequer existia quando essa

obra foi escrita pelo genial compositor alemão. A despeito disso, os dois volumes, constituídos de

quarenta e oito prelúdios e fugas compostos em todos os graus do sistema tonal, são considerados a

bíblia dos pianistas. A opção por uma performance ao piano dessas obras já implica uma enorme

gama de opções interpretativas que, de acordo com o contexto e as escolhas do pianista, propiciarão

um resultado sonoro que não poderia sequer ser imaginado pelo compositor. Afora a questão da

evidente diferença de timbre, há no piano o recurso à dinâmica, que foi justamente o mais

significativo ganho tecnológico desse instrumento sobre o cravo, cuja mecânica, desprovida de

ataque percussivo nas cordas, não permitia esse tipo de expressão por parte do instrumentista.

Ora, o simples fato de interpretar um prelúdio e fuga do “Cravo Bem Temperado” ao piano já

dissocia a performance de qualquer originalidade ou rigor histórico, sem que se possa afirmar que

uma peça assim executada esteja sendo tocada de forma “errada” ou em desrespeito à vontade do

compositor. Tome-se, nessa perspectiva, a interpretação da mesma obra de Bach por Walter Carlos,

ao sintetizador, que veio a lume nos anos 1970. Não há dúvida de que se trata de Bach, mas de uma

performance ainda mais distante do universo estético que foi vivenciado pelo próprio compositor. O

que dizer, então, da orquestração de Mstislav Rostropovich para a “Tocatta e Fuga em Ré Menor”,

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uma obra escrita originalmente para o órgão de tubo, cuja adaptação para o contexto sinfônico foi

encomendado por Walt Disney para o filme Fantasy, senão que a substituição das dezenas de tubos

metálicos do órgão pelos instrumentos sinfônicos da orquestra reafirmam a vastidão de possibilidades

que Bach suscita no horizonte da interpretação musical.

O que se afirma aqui, em síntese, é que mesmo a notação tradicional, isto é, a partitura, não

exaure em si mesma todo o multifário fenômeno da interpretação musical. Isso porque o músico, ao

ler a partitura, traz para esse evento muito mais elementos externos à notação do que o que foi

grafado pelo próprio compositor, assim como ocorre na alegoria do solitário retorno da jangada em

Dorival Caymmi.

3.2.3.2.2 Saveiros, a jangada e a questão do significado musical

Gadamer afirma que a primeira regra universal da hermenêutica, formulada pela

hermenêutica romântica mas já encontrada na retórica antiga, é a relação circular entre o todo e suas

partes. A significação antecipada do todo compreende-se pelas suas partes, mas é à luz do todo que

as partes assumem seu poder clarificante. A canção de Dorival Caymmi é um bom exemplo para

observar esse fenômeno, pois seu título e o primeiro verso já dizem muito ao intérprete, mesmo que

este ainda não tenha conhecimento da totalidade do texto. A leitura das primeiras linhas do verso da

canção, em contraste com as demais estrofes, instaura o círculo da compreensão, onde a todo

momento somos levados a cotejar aquela primeira informação com os demais dados que nos são

apresentados pelo autor no decorrer do texto.

Confira-se, nesse sentido, o primeiro verso de “A Jangada Voltou Só”, analisado acima, em

conjunto com a íntegra da letra escrita por Dorival Caymmi, para observar como se dá a abertura

paulatina do espectro da compreensão:

A jangada saiu com Chico Ferreira e Bento A jangada voltou só

Com certeza foi lá fora, algum pé de vento A jangada voltou só...

Chico era o boi do rancho Nas festa de Natar Chico era o boi do rancho Nas festa de Natar

Não se ensaiava o rancho Sem com Chico se contá Não se ensaiava o rancho Sem com Chico se contá

E agora que não tem Chico Que graça é que pode ter Se Chico foi na jangada... E a jangada voltou só...

A jangada saiu Com Chico Ferreira e Bento A jangada voltou só Com certeza foi lá fora, algum pé de vento A jangada voltou só...

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Bento cantando modas Muita figura fez Bento cantando modas Muita figura fez

Bento tinha bom peito E pra cantar não tinha vez Bento tinha bom peito E pra cantar não tinha vez

As moça de Jaguaripe Choraram de fazê dó Seu Bento foi na jangada E a jangada voltou só.

No caso da música popular, campo no qual esta pesquisa se insere, o significado musical

decorre tanto da letra quanto da estrutura musical da canção, pois trata-se, na maioria dos casos, de

obras lítero-musicais. Nesse caso, como já foi dito linhas atrás, a poética da letra tanto influencia

quanto é influenciada pela forma musical, e vice-versa, e até mesmo o título constitui um elemento a

mais para a instauração do círculo da compreensão.

No caso de “A Jangada Voltou Só”, a estruturação em duas partes bem contrastantes é

fortemente influenciada pela narrativa contida na letra. O tempo presente, a partir do qual o narrador

relata o evento da partida e da chegada da jangada, é musicado em andamento lento e em tom

menor, com harmonias arpejadas, e a melodia é entoada quase como um recitativo. O tempo

pretérito ao narrador, quando são relatadas as proezas dos dois protagonistas no arraial, é

estruturado de forma mais ritmada e em tom maior, com acordes em bloco e movimentação do baixo

em intervalos de quintas, do que se obtém um efeito percussivo muito usual e característico da

música popular brasileira. O andamento é mais rápido e a melodia é cantada com mais vigor, dando

destaque ao seu caráter sincopado. Observa-se aqui a intenção do compositor em atribuir um

significado trágico e doloroso à narrativa presente, quando já se sabe do retorno solitário da jangada,

em contraste com as reminiscências da atuação de Chico Ferreira e Bento em sua comunidade, ao

que se confere um significado mais alegre e ritmado, com reforço à dualidade entre a experiência da

vida e o evento morte.

Na canção “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nélson Mota, embora a embarcação adotada pelo

poeta seja outra, encontramos a descrição da mesma cena, ambientada também em uma

comunidade pesqueira, cuja letra e música constituem uma evidente paráfrase musical de Dori à obra

de seu pai:

Nem bem a noite terminou Vão os saveiros para o mar Levam no dia que amanhece As mesmas esperanças Do dia que passou

Quantos partiram de manhã Quem sabe quantos vão voltar Só quando o sol descansar E se os ventos deixarem Os barcos vão chegar Quantas histórias pra contar

Em cada vela que aparece

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Um canto de alegria De quem venceu o mar.

É no mínimo curioso como a mesma paisagem, com protagonistas similares, pode suscitar

significados tão distintos. O centro da narrativa já não é o retorno solitário de uma jangada, mas a

volta de quem venceu o mar. Desfaz-se toda a tragédia, não se trata aqui de contar as histórias do

passado dos pescadores, mas de suas proezas por terem vencido as forças da natureza,

representadas pelos ventos, pelo sol e, sobretudo, pelo mar. Observe-se que o canto é de alegria

pelo sucesso do retorno, pela sobrevivência dos pescadores. Não há, em princípio, como extrair

qualquer intervenção de Iemanjá, e seu canto de sedução à eternidade, desse novo contexto. São

atribuídos, em cada caso, significados distintos para o simples evento consistente em sair para

pescar quando ainda raia o dia e retornar no pôr do sol.

A primeira diferença evidente é que não há na forma musical da canção composta por Dori

a dualidade de partes encontrada em Dorival. Tanto a harmonia como a melodia propõem uma cena

contínua, velada, tranquila e plácida que vai desde antes do nascer até o pôr do sol no horizonte

marítimo. A cena desvela-se no decorrer da canção, com notas e acordes ascendentes na escala

tonal, e alcança seu ponto melódico mais agudo exatamente quando reaparecem as velas dos

saveiros que retornam. A partir de então sucedem-se notas descendentes rumo à conclusão da

canção, pois o canto de alegria é expressão da empreitada vitoriosa dos pescadores que venceram o

mar. A perspectiva impressionista adotada pelo compositor para narrar a cena pesqueira confirma a

forte influência dos compositores franceses Ravel e Debussy na obra de Dori, aspecto que foi

expressamente afirmado na entrevista que compõe o anexo deste texto.

Pode-se legitimamente objetar que os significados aqui extraídos das duas canções partem

mais do poder da imaginação exercitado neste texto do que de dados concretos das duas obras de

arte. Mas o que se pretende com a comparação das duas canções é justamente demonstrar que,

embora não se possa determinar o significado imanente de uma obra de arte, isto é, extraí-lo apenas

a partir de si mesma, esse significado pode, deve e é (re)construído pelo intérprete caso a caso, no

círculo hermenêutico. A comparação tem, por derradeiro, o objetivo de demonstrar que a descrição

de um mesmo evento e de uma mesma paisagem, por dois artistas, sob certos aspectos tão distintos

e tão similares, pode suscitar à percepção e à imaginação desdobramentos hermenêuticos tão

díspares. Em Dorival percebe-se uma tendência ao determinismo natural, pois o mar vence os

marinheiros; em Dori opera-se a significação em sentido contrário, onde o homem sobrepuja os

elementos naturais e doma a natureza.

A comparação nos permite também perceber como, no fenômeno da interpretação, estão

implicadas uma enorme gama de elementos inerentes ao intérprete (sua história) e ao mundo (ser no

mundo), além das características que o próprio objeto encerra. Mas não se pode negar o fato de que

o fenômeno decorre e é guiado pela força expressiva do artista. Ele é que, por primeiro, suscita ao

intérprete os caminhos que a compreensão poderá adotar. Ora, trata-se da mesma cena, do mesmo

contexto e de compositores unidos até por laços de sangue, mas cada qual sugere ao intérprete uma

gama infinita e, o que é mais importante, distinta de significados. Em um caso, a jangada traz a

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notícia da morte, na qual estão implicados o mar, a tempestade e Iemanjá, por exemplo; no outro,

apesar da dúvida de quantos voltarão da pescaria, o cenário trágico é substituído por um canto de

alegria dos que regressam com vida. Desaparecem Iemanjá, a tempestade ou a fadiga muscular, pois

o foco agora são os pescadores que voltaram, e não os que foram vencidos pelo mar. Isso demonstra

que, por maior que seja o espectro da compreensão, a liberdade do intérprete estará sempre, mesmo

que minimamente, atada à expressão artística do autor e à obra em sua forma original. Há um limite

para além do qual não se poderá mais falar de interpretação de uma canção, mas de uma nova

composição. Já não haverá mais, além dessa linha, o intérprete, mas a figura de um novo autor.

É que, embora pai e filho cantem a mesma cena praieira, partem de premissas e alcançam

significados distintos em cada uma das canções. O que impede, por exemplo, que se invertam as

interpretações construídas acima, tomando-se o que se disse em relação a uma como se fosse para

a outra. Alegria e dor são abordadas de maneira oposta pelos dois autores, e compreendemos bem

essa distinção ao dar asas à nossa imaginação. Adotamos caminhos opostos à compreensão, em

cada caso, assim que se instaura o círculo hermenêutico. Essa ponderação é importante para que

não se suponha que a perspectiva hermenêutica do significado da obra de arte, introduzida por

Gadamer, conduziria a um niilismo interpretativo, a um terreno meramente subjetivo, a um vale-tudo.

Com efeito, o interpretar não deve ser tomado como uma atividade autossuficiente.

Gadamer demonstra que o principal prodígio da interpretação é possibilitar a fusão entre o horizonte

histórico no qual se situa a obra e o nosso próprio horizonte, muito à maneira como se dá um diálogo,

com o formular progressivo de perguntas e a obtenção de respostas que expandem paulatinamente o

círculo da compreensão:

Quem quiser entender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido (GADAMER, 1997, p. 402).

Assim, tomada como diálogo, a interpretação pressupõe alteridade, de modo a permitir que

o texto confronte sua verdade com nossas próprias opiniões prévias. Quando as opiniões prévias não

são arbitrárias é que a compreensão se inicia legitimamente e realiza-se completamente. Essa

legitimação se dá na tradição e não apenas na vontade histórica do autor, ou em aspectos intrínsecos

do objeto interpretado, tampouco em traços idiossincráticos do sujeito interpretante. O intérprete

coloca-se, como afirma Gadamer (1993, p. 98), no papel de mediador entre a obra e a totalidade dos

múltiplos significados que lhe são subjacentes, vale dizer, a compreensão é, por excelência, um

fenômeno humano que ocorre na cultura. Desfazem-se, assim, a um só tempo, os mitos da

objetividade e da subjetividade e assume o foco central o fenômeno da compreensão, imerso em

tradições. Vista dessa forma, toda compreensão é, a um só tempo, um processo de contínua

significação e ressignificação, pois mudam constantemente o objeto, o sujeito e o próprio mundo, do

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que decorre ser o significado da obra de arte algo dinâmico, passível de ser determinado apenas de

maneira muito transitória e quando devidamente contextualizado.

3.2.3.3 O arranjo como forma de interpretação

A consciência de que inexiste uma única interpretação correta e, de igual modo, um único

significado musical, observados os limites opostos pela tradição, é crucial para a análise do processo

hermenêutico do arranjador. Isso porque o seu fazer é também eminentemente interpretativo. A

peculiaridade do arranjador é o compreender a obra sob uma perspectiva surpreendente, inusitada,

distinta da concepção primeira do próprio autor. Quando se afirma que o arranjador promove a

ressignificação da obra musical, o que se pretende é simplesmente demonstrar como o arranjo tem o

prodígio de propor um significado que, embora provenha da própria obra, era até então insuspeito,

quer ao compositor quer aos intérpretes que o sucederam. Trata-se, em qualquer caso, de sua

maneira de compreender a forma proposta pelo compositor, e não de compor uma nova forma; trata-

se, naquilo que caracteriza o arranjo como tal, de interpretação e não de criação musical.

A ressignificação musical é, por conseguinte, nada mais do que um simples processo de

significação que parte de pressupostos diferentes, vale dizer, de “pré-conceitos” distintos, em certa

medida, dos adotados em interpretações anteriores. No caso do arranjador, trata-se do resultado da

sua compreensão da obra musical, segundo determinado contexto e influenciado por seus conceitos

prévios. Um músico de jazz, por exemplo, ao ler ou ouvir uma dança de uma suíte de Bach, pode

interpretá-la como o motivo melódico e harmônico para uma improvisação tonal em tempo de valsa.

Um músico de samba pode (re)enquadrar o tempo ternário da mesma dança ao quaternário

sincopado do samba. Um músico erudito dedicado ao repertório barroco terá o pudor de interpretar

estritamente os sinais grafados na partitura, reservando-se maior liberdade apenas na manipulação

de elementos como andamento, dinâmica, articulação, técnicas do instrumento etc. É que a alteração

de elementos da melodia, de harmonia ou do ritmo escritos por Bach não são esperadas e sequer

toleradas no contexto da música erudita, mas são esperadas e festejadas no contexto do jazz e do

samba. Em qualquer caso, trata-se apenas de interpretar, e trata-se apenas da obra de Bach, sem

que se possa afirmar, sob o prisma hermenêutico, qual é a maneira certa ou errada de interpretar

Bach. Pode-se falar, apenas, do que é correto ou incorreto em determinado contexto, segundo os

parâmetros que nos são legados pela tradição.

3.2.3.4 Conclusão

A hermenêutica da obra de arte de Gadamer é invocada neste trabalho para a investigação

do significado musical, tomando-se este não como uma qualidade única e imutável da obra, mas

como um construto do intérprete, a partir de sua compreensão acerca da forma concebida pelo

compositor, o que se desenvolve em determinado contexto. Não como uma característica imanente

ou de natureza absoluta, e sim de feição precária e parcial, resultado de uma mediação entre o

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horizonte histórico da obra de arte e o horizonte histórico do intérprete. Interessa aqui, por

conseguinte, demonstrar como se realiza, em cada caso, a construção desse significado musical, que

não é de sentido unívoco e sim, por princípio, equívoco.

3.2.4 Nicholas Cook e a música como processo

3.2.4.1 Introdução

Em Music: a very short introduction, Nicholas Cook faz referência a uma passagem

envolvendo os compositores Maurice Ravel e Vaughan Williams. Segundo seu relato, o compositor

francês, em uma visita casual a Williams, teria encontrado o colega inglês absorto, escrevendo

música em sua escrivaninha, munido apenas de lápis e papel, ao que Ravel teria reagido com

espanto: “Como você pode encontrar novos acordes sem um piano?”

Trata-se de uma questão aparentemente simples, mas que suscita profundos

desdobramentos a respeito do significado musical, reflexão que está no cerne do pensamento de

Nicholas Cook e desta pesquisa. O episódio permite identificar em Ravel a percepção da música

como, essencialmente, um objeto sonoro: daí seu espanto quanto ao colega compositor conseguir

encontrar novos acordes sem antes conferir sua sonoridade ao piano. Para Williams, que nessa cena

aparece compondo diretamente no papel, a música é tomada essencialmente como um objeto

abstrato, concebido pelo compositor em um momento anterior ao acontecimento sonoro e, portanto,

dele desconectado. Daí Cook concluir: “A ideia de que há algo errado em compor ao piano é apenas

mais um exemplo do mito oriundo do século XIX da música como algo puro e desencarnado,

proveniente diretamente do mundo do espírito”3 (COOK, 2000, p. 68).

Observe-se a clara distinção entre o modo como transcorre a notação musical no caso de

Ravel e no caso de Williams. Para este, a música, concebida integralmente no campo da abstração, é

registrada diretamente na partitura; para aquele, a notação musical ocorre ao longo da concepção

sonora da composição ou, se ocorre antes, é experimentada no instrumento. Trata-se em Ravel de

um processo que combina abstração e esforço mecânico (tocar o piano); trata-se em Williams de uma

atividade estritamente abstrata, onde o único esforço mecânico decorre da fricção do lápis sobre o

pentagrama. É uma perspectiva que, segundo Cook, faz fronteira com o divino: na verdade, ecoa

relatos teológicos do momento da Criação, na qual Deus previu todos os desdobramentos mais

ínfimos do que Ele criou (COOK, 2000, p. 64).

Ora, a ideia de que o compositor “ouve” a música cerebralmente e a registra in continenti no

papel situa a performance como um acontecimento subalterno, um evento de (re)produção, um

fenômeno virtualmente desnecessário para a compreensão da música por quem saiba ler música,

“ouvindo-a” cerebralmente a partir da obra impressa. O texto escrito assume aqui total protagonismo.

Nesse sentido, o músico instrumentista torna-se um intermediário entre o produto (a obra de arte) e                                                                                                                3 The idea that there is something wrong with composing at the keyboard is just another example of the nineteenth-century

myth that music is something pure and disembodied, coming unbidden from the spirit realm.

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sua fruição para aquele que não saiba ler música, à maneira como se traduz um texto de uma língua

para outra, isto é, como um estrito intérprete. Para garantir o mínimo desvio entre a concepção

autoral e seu resultado sonoro, no momento da performance, o ideal é que o executante seja o mais

discreto possível, que ele seja vitualmente transparente (BERNSTEIN, 1959, p. 56).

Outro desdobramento importante da visão da partitura como o elemento central da criação

artística é o fato de todo o tipo de acontecimento sonoro não figurável pela escrita musical não ser

considerado estritamente música, pelo menos não a música artística de que ora se trata. Estabelece-

se, assim, uma relação de subordinação cultural, na qual a “verdadeira” música é aquela emanada da

mente do compositor e registrada diretamente no papel pautado, como um objeto estritamente formal.

Esse é um dos fundamentos da dicotomia entre a denominada música erudita e as “demais” músicas

(pop, rock, jazz, samba etc.). Cook salienta, nesse sentido, que a principal distinção estética entre

música clássica ou popular situa-se muito mais no fato de que músicos de jazz, rock ou pop etc.

comumente não escrevem ou leem música, do que nas diferenças de complexidade ou elaboração de

suas expressões musicais (COOK, 2000, p. 58).

Em “Mudando o objeto musical: abordagens para a análise da performance”, Cook coloca

em questão o fato de que, para a maioria das pessoas, em todas as partes do mundo, a música é

entendida como performance, seja ao vivo ou gravada, e não como partituras (COOK, 2007b, p. 7).

Na verdade, segundo Cook, a ideia de que a música é, na sua essência, uma forma de escrita

decorre, em grande medida, do fato de a musicologia ter florescido no contexto do nacionalismo

europeu do século XIX e adotado como sua metodologia as práticas da filologia, então em voga nas

ciências humanas: considerar obras musicais como textos que podem ser “reproduzidos” através da

performance [...] é em efeito considerar a música como um ramo da literatura (COOK, 2007b, p. 11).

Nessa perspectiva, o texto musical, à semelhança do texto literário, foi adotado como o

objeto da investigação filológica, a fim de se chegar novamente ao original concebido pelo

compositor. Buscava-se, assim, depurar a forma musical de todas as intervenções decorrentes das

interpretações que se sucederam ao momento sublime da criação, com o resgate do significado

musical originário. A edição era, por conseguinte, o principal objeto da musicologia:

A musicologia foi tradicionalmente uma disciplina retrospectiva: o acadêmico trabalha de encontro à maré da história, por assim dizer, voltando no tempo para chegar ao Urtext, ao conceito original do compositor sem os acréscimos subsequentes. E a concepção da música, essencialmente como um texto notado [grafado], transforma a execução na reprodução de um significado que já estava nas notas lá colocadas pelo compositor e recapturadas – pode-se dizer decodificadas – pelo intérprete ou pelo musicólogo (COOK, 2006a, p. 19).

Essa visão da musicologia somente seria superada nas duas últimas décadas do século XX,

deslocando-se o interesse do passado para o presente ou, como especifica Cook, da atenção às

obras do passado em termos de sua fruição no presente, e não apesar do presente. Para tal fato

teriam convergido, segundo o autor, a apropriação do repertório clássico da música erudita pelo

cinema, nas trilhas sonoras, e, na televisão, pela publicidade, alargando o conceito de significado

musical, entendido, a partir de então, como algo conectado ao uso social. É que a utilização de obras

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eruditas pela indústria cinematográfica, bem como para legitimar características de objetos de

consumo, pelos meios de comunicação de massa, deixou claro que o significado intrínseco ou

autêntico era apenas um entre múltiplos atributos de uma mesma obra de arte.

A Nova Musicologia, capitaneada por Joseph Kerman em seu seminal Contemplating music,

de 1985, propôs, como afirma Cook, uma nova agenda musicológica para a compreensão da música

artística ocidental, vista agora como algo plenamente social. Adotou-se, então, o conceito de Theodor

Adorno, segundo o qual a música apresentaria problemas sociais de acordo com sua própria

estrutura formal, cabendo ao musicólogo decodificá-los e decifrá-los. Apesar de Adorno não explicitar,

ou sequer indicar, de que maneira se daria essa decodificação, o fato é que sua definição, abraçada

pelos novos musicólogos, teve o prodígio de deslocar a discussão do significado musical dos

aspectos estritamente orgânicos e internos da forma musical para o contexto em que a obra está

inserida, tanto no momento da concepção, quanto da performance. A unidade orgânica deixa de ser

um critério universal e atemporal para adquirir a feição de construção histórica (cf. COOK, 2001, p.

170).

Tudo isso é dito não para negar que músicos possam ou devam desenvolver a habilidade

de compor ou transcrever música diretamente na partitura, sem a utilização de um instrumento

musical, ao modo de Vaughan Williams. É dito, sim, para tornar explícito que essa prática

composicional pode conduzir à falsa impressão de que se trata ali apenas de música, em sua pura

forma, desprovida de influências contextuais e que, por ser concebida em silêncio, prescinde da

performance. Mais do que conter informações do compositor para o músico, partituras transmitem um

modo de pensar sobre música (cf. COOK, 2000, p. 62). A objeção de Ravel, por outro lado, já

explicitava o que pode ser considerado um truísmo: a música é, antes de tudo, um evento sonoro e

performático. Em síntese, tudo isto é dito nas palavras de Cook (2001, p. 180): a música tem

potencial para que significados emerjam em circunstâncias específicas.

3.2.4.2 Significado potencial e significado emergente

Há, segundo Cook, pelo menos dois aspectos que precisam ser considerados quanto ao

significado musical. Em primeiro lugar, como a música expressa sentimentos humanos, múltiplos e

mutáveis por natureza, a relação entre música e significado não pode ser entendida com recurso a

uma lógica do tipo modus ponens: se A então B; mas B: portanto A. Como foi dito anteriormente, não

há aqui uma relação unívoca, e sim equívoca. Em segundo lugar, como o significado deriva de uma

experiência subjetiva, na qual convergem estados afetivos internos, devem ser consideradas três

diferentes perspectivas de significação: a do autor, a do intérprete e, de uma forma menos evidente, a

da própria obra. Como veremos adiante, essas perspectivas são indissociáveis do contexto cultural

no qual a obra foi concebida e é interpretada.

O desafio do teórico, segundo o autor, é encontrar um ponto médio entre a concepção

formalista, para a qual o significado musical é inerente e autorreferente, e o construtivismo-social, em

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que haveria sua permanente construção na cultura. Há, ademais, que tangenciar a tentação do

recurso à metáfora, pelo risco de reduzir o significado musical a um universo meramente verbal,

obscurecendo a distinção entre a música e a linguagem poética, por exemplo.

À maneira dos objetos físicos inseridos em determinada cultura, os registros musicais

comportam uma enorme variedade de significados possíveis, ao que Cook denomina significados

potenciais. Não são aleatórios, pois estão limitados pelo feixe de atribuições que a cultura reconhece

para os objetos em geral, dentre os quais se inserem os objetos musicais. É da sua efetiva

articulação que emergirá o significado, vinculado a determinado contexto, não como algo inerente ou

imanente, mas estritamente circunstancial.

Com efeito, segundo essa perspectiva, os objetos existentes na cultura ganham significado

através da construção social de sentido, o que é estabilizado pela gama de atributos que determinam

o ser desse objeto na cultura. Isso permite que haja múltiplos significados, mas todos eles, de alguma

forma, contidos no feixe de atributos que a cultura reserva a cada objeto. Esse aspecto é facilmente

identificável quando se depara com uma velha geladeira, desconectada da rede elétrica, sendo

utilizada como um simples armário. É o exemplo claro de como o mesmo objeto pode assumir

significados distintos, mas não arbitrários, de acordo com o contexto. Isso porque se trata, em

princípio, de um refrigerador elétrico, mas que também pode ser usado como móvel, guardadas as

devidas circunstâncias, pois ser um armário está no feixe de atribuições do refrigerador. Com a

música ocorre algo análogo, pois embora não se lhe possa precisar verbalmente um dentre múltiplos

significado potenciais, este emerge do contexto em que a obra é interpretada. Daí a conclusão de

Cook (2001, p. 179): com a construção na performance, o significado emerge. Não é reproduzido e

sim criado no ato performático.

O Hino Nacional Brasileiro é uma fonte permanente e eloquente de ressignificação. Não é

possível, apenas a partir da audição de sua melodia, precisar o que tinha em mente o autor da

música, Francisco Manuel da Silva, quando a compôs em comemoração à abdicação de Dom Pedro

I. Suponhamos que tenha composto a música sem o auxílio do piano, munido apenas de lápis e

pentagrama, à moda de Vaughan Williams. O posterior acréscimo de letra à melodia e sua adoção

como símbolo oficial da República fez emergir um novo significado para esse objeto, talvez insuspeito

ao próprio autor.

Afigure-se agora a performance cantada do Hino Nacional no Setor Militar Urbano de

Brasília, no Quartel General do Exército, pelos oficiais, suboficiais e soldados que comparecem à

Ordem do Dia. Emerge desse contexto um exasperado significado castrense, de hierarquia, disciplina

e dever cívico, e até mesmo na acentuação das frases musicais e na entonação dos versos

transparece a bravura inerente aos heróis dispostos a morrer pela Pátria.

O significado do Hino Nacional, também impregnado de patriotismo, emerge de maneira

diversa, surpreendente e paradoxal, quando entoado pela plateia que lota o salão térreo do Palácio

do Planalto, na sessão de instalação da Comissão da Verdade, instituída para investigar o

desaparecimento de ativistas políticos no período da ditadura militar no Brasil. Trata-se do mesmo

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hino, com a mesma letra, mas os significados extraídos de cada palavra e de cada nota musical são

muito distintos, pode-se arriscar, diametralmente opostos aos da cena anterior, embora haja aqui

também vívido patriotismo e sincera disposição por morrer pelo Brasil, pois morrer pela pátria é

também do que se trata aqui.

Nas três hipóteses pode-se afirmar que emergiram significados entre si discrepantes, mas

todos estavam contidos no feixe de atribuições do mesmo objeto musical (o Hino Nacional), sem que

se possa afirmar ser qualquer das performances mais correta do que a outra ou que se tenha

emprestado um sentido arbitrário a qualquer delas. O exemplo demonstra, por fim, como o modelo

teórico de Cook é preciso ao rejeitar a existência de um significado inerente, pois não se pode sequer

imaginar que um militar estivesse disposto a compor o coro com a família dos guerrilheiros

desaparecidos, e vice-versa. Se houvesse um significado inerente, a mesma música não se prestaria

a fins tão diversos.

O que cada um desses exemplos tem em comum é a reflexão sobre o significado potencial

do mesmo Hino Nacional, significado este que emerge em três contextos diversos e, a partir da

experiência pessoal viabilizada pela performance, produz diferentes significados efetivos, exprimíveis

verbalmente e compartilháveis socialmente. Há no modelo de Cook, como se vê, a tentativa de

conciliação entre os aspectos formais da obra musical (significados potenciais) e a construção social

que se dá quando algum de seus atributos emerge em determinado contexto (significado emergente),

tornando-se verbalizável e compartilhável (significado efetivo).

3.2.4.3 O significado musical e o arranjador

3.2.4.3.1 O compositor surdo

A imagem de Beethoven compondo a Nona Sinfonia, em sua escrivaninha, completamente

surdo, munido apenas de pena, tinta e papel habita o imaginário de profissionais e leigos em música

em todo o mundo, e constitui um mito que está no centro da redução da música ao objeto partitura,

que persiste na música erudita ainda hoje. Cook (2000 p. 24) afirma, nesse sentido, que muitos dos

conceitos profundamente enraizados em nosso pensamento sobre música podem ser identificados

com as ideias que cercavam a recepção da música de Beethoven. Atribui-se a Mozart, antecessor de

Beethoven, no mesmo sentido, a afirmação de que suas obras musicais eram concebidas

integralmente no silêncio reflexivo e, ao final e ao cabo, lançadas no papel como uma pintura, ou

talhadas na partitura à moda de uma escultura (cf. COOK, 2000, p. 53):

Para Mozart e Beethoven, como para Deus, a criação está focada no que poderia ser chamado de um momento de verdade em que todos os desdobramentos mundanos são comprimidos, e é este momento de verdade que editores, intérpretes,

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musicólogos e os críticos devem tentar, de diferentes formas, recuperar4 (COOK, 2000, .p. 65).

Essa visão, impregnada da crença do compositor como alguém iluminado por Deus e, como

tal, capaz de revelar a verdade, foi, no caso de Beethoven, desmentida logo após sua morte, quando

vieram à tona seus rascunhos e anotações musicais. A existência de rascunhos evidenciou, por si só,

que a criação passara por processos humanos intermediários. A partir deles concluiu-se, à época, o

que hoje pode nos parecer óbvio: o conjunto da fascinante música de Beethoven foi erguido não

apenas sobre o talento, algo que nos é legado pela natureza, mas sobretudo como resultado de

extenuante trabalho e de muita experimentação. A surdez, nesse caso, deveria ser destituída do

glamour de uma figura mítica que consegue compor música mesmo privada do sentido da audição, e

encarada como o que efetivamente representou para o compositor: um grave obstáculo a ser

transposto diariamente pelo artista que laborava na manipulação de objetos sonoros.

Mas reabilitar Beethoven, a par de não ser absolutamente necessário, não faz parte do

modesto escopo deste trabalho. O que se quer demonstrar é como o mito de um compositor que

compunha apenas com sua “voz interna” (porque ficara surdo) e que escrevia sua música

diretamente na partitura, sem a intermediação sonora de um instrumento, contribuiu, como afirma

Cook, para a consolidação de um conceito de música que prescinde da performance. Uma música

silenciosa que se aperfeiçoa antes de sua realização aural. A visão da música como produto abstrato

autônomo, a partir da qual a performance constitui apenas uma (re)produção. Uma atividade

subordinada, senão redundante, como afirma o Cook (2006b, p. 6), um paradigma que confere ao

processo uma posição subalterna ao produto.

Ocorre que, mesmo atribuindo a qualquer compositor a capacidade de escrever sua música

apenas com tinta e papel, existe outro aspecto relacionado à música reificada que é confrontado no

momento da performance: a partitura não exaure, em seus limites gráficos, todo o complexo

fenômeno que sua realização sonora desencadeia. Há questões de tempo, timbre e afinação que

devem ser negociadas entre os músicos, além de aspectos de expressão que são precariamente

sugeridos pelo autor. Como salienta Cook (2006b, p. 12), as obras musicais subdeterminam suas

performances. Foi dos estudos teatrais e da etnomusicologia que, como salienta o autor, extraiu-se

um novo paradigma para os estudos da performance, segundo o qual o significado musical emerge

do ato performático, por meio da negociação entre os músicos durante os ensaios e nos espetáculos.

3.2.4.3.2 A partitura como script

Daí Cook sugerir que as partituras sejam tomadas como scripts, como roteiros para a

coreografia de uma série de interações sociais que ocorrem no palco e nos ensaios, entre os

instrumentistas, em tempo real; uma norma de gestos a serem realizados coletivamente pelos

                                                                                                               4 “For Mozart and Beethoven, as for God, creation is focused on what might be called a moment of truth into which all

temporal unfolding is compressed, and it is this moment of truth that editors, performers, musicologists, and critics all try in their different ways to recapture.”

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músicos. Tomar o texto não como produto, mas como um dos elementos implicados no processo de

construção da performance, onde se dá a mediação entre o que está grafado e o que se efetiva

sonoramente:

Os músicos podem muito bem tocar as notas exatamente como Mozart as escreveu. Mesmo assim, eles não as tocam exatamente como Mozart as escreveu, porque cada nota na partitura está sujeita a uma negociação contextual de afinação, de valores precisos de dinâmica, de articulação, de qualidade tímbrica etc. Por exemplo, os performers mantêm o andamento não porque cada um acomoda a sua maneira de tocar a uma pulsação externa (como acontece com músicos de estúdio com o click track), mas porque cada um está continuamente escutando o outro, acomodando seu andamento ao dos outros, resultando em uma temporalidade compartilhada, comunal – o “tempo interno” compartilhado da “relação mútua de ajuste” de Schutz (o que literalmente também se aplica, claro, à esfera dos ajustes da afinação dos músicos) (COOK, 2007a, p. 14).

É nesse cenário de negociação que surge a figura do arranjador, um músico estritamente

ligado à performance. Com efeito, ao contrário da ideia do ato composicional silencioso que visa à

construção de uma obra de arte pura e abstrata, arranjar traz ínsita a atitude pragmática de

reorganizar os objetos musicais para uma expressão sonora. Embora o senso comum identifique o

arranjador, em regra, com o compositor e não com o intérprete, certo é que ele atua na cena artística

como alguém que viabiliza a performance de uma obra, reordenando a forma original para fazer com

que a música soe de maneira diferente. Ninguém escreve um arranjo apenas para registrar um

conceito abstrato, gerado mentalmente, ou para legar seus manuscritos para a posteridade. Arranjos

são concebidos para soarem em um contexto concreto: um espetáculo musical, uma gravação em

estúdio, um programa de rádio, um balé, um espetáculo teatral etc. São construtos formais

diretamente ligados à performance musical.

Trata-se de um processo de ressignificação pois, como foi demonstrado no item anterior, o

objetivo do arranjador é fazer emergir, dentre o feixe de atributos do objeto musical, um significado

efetivo distinto daquele extraído anteriormente. A surpresa proporcionada pelo arranjo está

justamente em, partindo da mesma obra musical, do mesmo objeto, obter um resultado sonoro

distinto do conceito original do autor. Em termos práticos, essa ressignificação pode ocorrer pela

simples substituição de um naipe de palhetas por um grupo de madeiras, em uma peça orquestral;

pela sua redução para a performance para um grupo de câmara; ou pela orquestração de uma

canção popular, para acompanhar o solo de um cantor em uma produção fonográfica. É nesse

sentido que o arranjador difere do compositor, porque sua atividade traz ínsita a ideia de uma

readequação, de uma adaptação, de uma revisão que tem por escopo viabilizar a performance de

uma obra musical em determinado contexto.

Tome-se, como exemplo, o “Concerto em Dó Menor para Dois Cravos e Orquestra de

Cordas”, de Bach, adaptado, por ele mesmo, para violino e oboé. As possibilidades expressivas

desses dois instrumentos melódicos são muito superiores ao resultado que se obtém com a

performance com os dois cravos. O contraste de duas fontes sonoras tão diferentes (as cordas e a

palheta) confere à segunda versão do concerto significados tão distintos que, por vezes, é difícil crer

que se trata da mesma obra escrita para os dois cravos. No que diz respeito às notas grafadas na

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partitura, trata-se de duas concepções praticamente iguais. O segundo movimento, em andamento

lento, adquire contornos melódicos poderosos, no diálogo entre o violino e o oboé, que passam

despercebidos na versão para dois cravos, na qual não há a diferença de timbres e os instrumentos

produzem, dadas as características acústicas do cravo, sons de curta duração. São duas peças

constituídas de praticamente as mesmas notas musicais, mas com resultados sonoros muito

distintos. Trata-se da mesma música com significados efetivos diversos, em cada um dos diferentes

contextos.

A intervenção promovida por Bach, em sua própria obra, muito comum no período Barroco,

em que a música era concebida mais no sentido vocal do que instrumental, pode ser considerada

tímida se comparada ao arranjo formulado por Seiji Ozawa, para o “Concerto em Fá”, de George

Gershwin. Na apresentação ao vivo dessa obra, à frente da Filarmônica de Berlim, na capital alemã,

que foi registrada em DVD, Ozawa substituiu toda a partitura do piano, escrita originalmente por

Gershwin, pela performance improvisada do trio do pianista de jazz Marcus Robert. Enquanto o

maestro dirige a orquestra com referência ao texto original de Gershwin, Robert, um autêntico jazzista

americano, acompanhado por contrabaixo e bateria, improvisa sobre os motivos melódicos e

harmônicos do Concerto como estivesse em uma jam session, secundado por uma big band. A

performance adquire ainda mais significado quando se sabe que Marcus Robert é cego e, portanto,

não poderia, em princípio, ler, nota por nota, a música escrita por Gershwin na partitura.

Tome-se agora o arranjo elaborado por Dori Caymmi para “O Trenzinho do Caipira”, de

autoria de Heitor Villa-Lobos, que faz parte do álbum Casa de Morar, do cantor Renato Braz. A

instrumentação singela adotada por Dori, composta apenas por violoncelo e violão, serve de suporte

para o canto, em ritmo lento, da melodia de Villa-Lobos, acrescida da letra composta pelo poeta

Ferreira Gullar. Toda a exuberância tímbrica e sonora que Villa-Lobos tão bem empregou para

retratar a paisagem rural brasileira nesta peça, é no arranjo de Dori reduzido a um singelo violoncelo

que, desde a introdução, desenvolve motivos melódicos no registro grave, em uma progressão

harmônica descendente, estruturada em intervalos de sexta menor, em uma indisfarçavelmente

alusão ao estilo villalobiano. A exposição inicial do tema, na voz grave de Dori, ocorre após a

modulação da tonalidade adotada inicialmente (dó maior) para uma terça menor descendente,

conferindo grande dramaticidade a essa passagem. Na segunda seção, há a reexposição do tema

por Renato Braz, agora na tonalidade inicial, o que proporciona vívido contraste, tanto pela

modulação, quanto pelo fato de a voz de Renato ser naturalmente mais aguda do que a de Dori.

É interessante observar como o arranjo consegue trazer à tona o viés melancólico do

“Trenzinho do Caipira”, que, com detida atenção, percebemos já estar presente na forma original de

Villa-Lobos, mas que se efetiva como significado explicitamente intimista e lamentoso no novo

contexto proposto por Dori. Pode-se afirmar que a forma orquestral escrita por Villa-Lobos é

impressionista, concebida à maneira da música descritiva, onde o naipe de metais é, a certa altura,

utilizado em homologia ao mecanismo da locomotiva e as flautas imitam o apito do trem: toda a

orquestração nos remete à imagem da locomotiva em progressivo movimento. No conceito de

Caymmi, reforçado pela letra de Ferreira Gullar, busca-se apenas compor uma paisagem etérea, a

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imagem inefável de um trem que “corre entre as estrelas a voar”. Há no dedilhado do violão a

intenção de mimetizar o aspecto do movimento do trem, tão bem realizado pelo compositor, mas Dori

mantém essa estrutura de maneira discreta, introduzindo-a em momentos específicos, e não

constantemente, como o fizera Villa-Lobos.

Utilizando a terminologia proposta por Cook, ambos os significados estão no feixe de

atribuições desse objeto musical, emergindo de forma diversa e até paradoxal quando confrontamos

o contexto original da partitura de Villa-Lobos e o significado efetivo da interpretação de Dori Caymmi

aqui descrita.

Tudo isso permite observar a pertinência da analogia proposta por Cook, que aproxima a

partitura, e, nesse sentido, também o arranjo, a um tipo de script onde os músicos, guiados agora

pelo arranjador, seguem um novo roteiro para fazer emergir novos significados de um mesmo objeto

musical. Caminhos distintos dos concebidos pelo compositor, uma coreografia diferente para um

mesmo enredo, enfim, uma nova interpretação para a forma musical originária. Nesse sentido, a

atuação do arranjador não difere, em sua essência, da atuação do músico em uma performance,

pois, como foi demonstrado acima, toda modalidade de interpretação musical pressupõe uma

margem de negociação:

Busoni, considerado por Samson como o representante arquetípico da cultura da performance, se recusava a admitir qualquer divisão ontológica entre partituras, performances e arranjos, porque os via igualmente como transcrições de uma ideia abstrata e platônica (COOK, 2006b, p. 12).

Embora Cook (2006b, p. 13) afirme que toda música (mesmo música erudita) representa

uma tradição oral, não importando o quão intimamente esteja ligada à notação escrita, é fato que no

âmbito da música popular, como vimos nos exemplos acima, há, tradicionalmente, um espectro de

atuação bem mais amplo para o arranjador. É que, como afirma Aragão (2001, p. 18), a instância de

representação do original, na música popular, é muito mais fluida e virtual, razão por que qualquer

performance de uma canção, por mais singela que seja, demanda do músico a formulação de, pelo

menos, um microarranjo. Nesse sentido, na música popular também se afigura pertinente a recusa de

Busoni (apud COOK, 2006b) em distinguir partituras, arranjos e performances. É que, assim como na

tradição erudita, os novos significados atribuídos pelo intérprete popular a uma canção são,

simultaneamente: 1) a afirmação da forma concebida pelo compositor, 2) uma (re)organização dos

objetos musicais para que deles emerjam novos significados e 3) a própria performance da obra

musical.

3.2.4.4 Conclusão

A perspectiva da música como evento sonoro, proposta por Nicholas Cook, desloca o foco

de atenção do produto, a obra musical, para o processo, a performance. Coerente com esse olhar,

Cook nos fornece um modelo de significação musical que reconhece na forma abstratamente

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considerada apenas potencialidades, um feixe de atributos dos quais o significado musical emerge no

contexto da performance, tendo por resultado o significado efetivo, exprimível verbalmente e

compartilhável socialmente.

O conceito da música como um fazer humano que somente se aperfeiçoa na performance

infirma a ideia do compositor que concebe suas obras diretamente de sua voz interna para a partitura,

sem a intermediação do instrumento musical. Este é, para Cook, um mito que colabora para a

perpetuação de um conceito de música que prescinde da performance ou nela vê uma atividade

subalterna e secundária, como a corrupção de um objeto puro que corresponde a uma verdade

revelada por Deus ao compositor.

O arranjador é, segundo a perspectiva performática da música, um intérprete musical, pois o

cerne de seu esforço é fazer emergirem, dentre o feixe de atributos de um objeto musical, novos

significados para a forma musical, distintos daqueles já tornados evidentes quer pelo compositor,

quer nas performances anteriores de determinada música. Nesse sentido, sua atenção está sempre

vinculada ao processo e não ao produto, pois a ressignificação parte de uma demanda social

concreta, isto é, um espetáculo musical, uma produção fonográfica, a trilha sonora de um filme etc.:

ele tem em perspectiva, ao contrário da imagem de um compositor surdo, a realização sonora de seu

trabalho.

Todo intérprete musical é, em certa medida, um arranjador, quer no domínio da música

popular, quer na erudita, pois os compositores subdeterminam fortemente como ocorrerá a

performance de suas obras, razão por que há decisões de timbre, dinâmica e andamento, entre

outras, que podem conferir à forma musical significados diametralmente opostos entre um intérprete e

outro. Na música popular isso é ainda mais evidente, pois toda performance, por mais singela,

pressupõe um microarranjo. Em ambos os casos, não obstante, há questões formais que deverão ser

convenientemente “arranjadas” pelo intérprete no momento da performance.

Com esses conceitos Cook propõe que, à semelhança da literatura dramática, o texto

musical seja tomado como um script, um mero roteiro para a performance, um ponto de partida para

a instauração do processo social de construção do significado musical. Seus conceitos nos colocam,

portanto, a meio caminho entre uma perspectiva formalista da música e a construção social do seu

significado, entendido agora como algo constantemente renovado e regenerado pelo uso social

(COOK, 2006a, p. 20).

3.2.5 Umberto Eco, a obra aberta e a superinterpretação

3.2.5.1 Introdução

Em seu cultuado livro Obra aberta, cuja 1ª edição data de 1958, Umberto Eco afirma que a

obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que

convivem num só significante (ECO, 2013, p. 22). Essa pluralidade instaura, para Eco, uma relação

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dialética entre forma e abertura, isto é, entre os aspectos orgânicos e internos da obra e a sua fruição

estética.

A questão central de Eco é como definir limites dentro dos quais “uma” obra de arte pode

lograr o máximo de ambiguidade e permitir um alto grau da intervenção de seu fruidor sem, contudo,

deixar de ser “esta” obra. Pois, como afirma Eco, a ambiguidade é inerente à mensagem artística,

inclusive na música.

Na década de 1990, Eco faz uma ponderação dessa abertura, isto é, do papel ativo do

intérprete na leitura de textos, da tensão entre “direitos dos textos” e “direitos dos leitores”, em função

de uma suposta exacerbação da perspectiva do intérprete nas três décadas antecedentes. A partir

dessa crítica, Eco estabelece uma dicotomia entre os conceitos de interpretação e

superinterpretação, para a oposição de limites a uma semiótica ilimitada. Esses limites existem,

nessa segunda perspectiva de Eco, porque o fato de a interpretação ser ilimitada não quer dizer que

não tenha objeto, que corra por conta própria.

Abdo (2000), a partir desta segunda reflexão de Eco sobre os limites da interpretação,

afirma que o arranjo seria uma forma de superinterpretação da obra musical, pois nele o intérprete

permitiria que suas reações ou pontos de vista sobrepujassem o próprio objeto interpretado. Essa

visão é compartilhada por boa parte dos teóricos ligados à tradição da música erudita, que identificam

a intervenção do arranjador mais como o resultado do trabalho de um compositor, e não de um

intérprete, juízo esse que, como se pode perceber, este trabalho busca infirmar.

Propõe-se, neste último item acerca do significado musical, demonstrar como o conceito de

abertura da obra de arte, lançado por Eco no limiar dos anos 1960, bem como o de

superinterpretação, em 1991, tem aplicação na interpretação musical, diferenciando a repercussão

dessas duas obras no conceito de arranjo na música popular, objeto de interesse nesta pesquisa.

3.2.5.2 A abertura da obra de arte

Pode-se dizer que é, no mínimo, uma feliz coincidência que Umberto Eco inaugure o

primeiro capítulo de seu trabalho sobre a abertura da obra de arte fazendo expressa referência à

música instrumental contemporânea. De fato, foi com recurso à música composta na primeira metade

do século XX que Eco contextualizou os conceitos de informalidade, desordem, acaso, causalidade,

ambivalência e indeterminação de resultados inerentes à nova dialética por ele proposta entre forma

e abertura. A abertura é definida por Eco (2013, p. 25), no prefácio da 2ª edição de Obra aberta,

como a ambiguidade fundamental da mensagem artística, uma constante de qualquer obra em

qualquer tempo.

Adotando a ambiguidade como valor, Eco instaura uma nova perspectiva para a

interpretação, reconhecendo uma ampla margem de liberdade para o intérprete. A escolha

justamente da música como ponto de partida para a reflexão a respeito da abertura da obra de arte

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em geral é a demonstração eloquente da pertinência de trazer a esta pesquisa a discussão do

significado musical à luz de seu pensamento. O papel central da música na reflexão de Eco confirma

a ponderação de Volpe (2007, p. 108) para quem a musicologia em geral, inclusive a brasileira,

deveria estar integrada às reflexões das ciências humanas e sociais, especialmente à crítica cultural,

e suas contribuições deveriam transcender a sua própria província.

Para Eco, uma forma, como obra realizada, ao mesmo tempo em que representa o ponto de

chegada de uma produção, instaura também o ponto de partida para a sua fruição, segundo

perspectivas diversas, mas que sempre retornam, de algum modo, à forma original (2013, p. 28). Em

um jogo mutável de múltiplos significados que a história faz convergir a um mesmo significante. O

modelo de obra aberta distancia-se, por conseguinte, de uma visão objetivista, atrelada ao

estruturalismo ortodoxo, pois, para Eco (2013, p. 29), uma forma só é perceptível a partir da relação

de fruição que desencadeia a ordem de suas múltiplas interpretações.

A música instrumental composta na primeira metade do século XX prestou-se como

exemplo perfeito para a demonstração do modelo de obra aberta proposto por Eco. É que havia

naquele momento um anseio comum: conferir ao intérprete maior grau de liberdade para intervir na

forma da composição, não raro estabelecendo a duração das notas ou a sucessão de sons, num ato

de improvisação criadora (ECO, 2013, p. 37). A possibilidade de várias organizações, confiadas à

iniciativa do intérprete no momento da performance, permitiu um novo olhar sobre as formas

musicais, vistas agora não como uma mensagem acabada e definida, mas como algo a ser revivido e

compreendido na direção estrutural proposta pelo compositor. A nova perspectiva de Eco tem por

foco principal o interesse em desvendar como obras “abertas” são finalizadas pelo intérprete no

momento da fruição estética, e não apenas desvelar suas estruturas orgânicas (2013, p. 39).

A questão que intrigava Eco era como “uma” mesma forma podia ser vista sob múltiplas

perspectivas, manifestando riqueza de aspectos e ressonâncias, e, ao mesmo tempo, manter sua

identidade, isto é, não deixar de ser “aquela” forma, aquela obra de arte. Quando analisamos, nessa

perspectiva, o repertório tradicional da música erudita, tomando como exemplo um prelúdio de

Chopin ou uma sonata de Beethoven, a questão da forma coloca-se de uma maneira que nos parece

estrita e fechada. Alimentamos, a partir da aparente coincidência entre a forma proposta pelo

compositor e o que está grafado na partitura, a convicção de que para apreendê-la nos bastaria

(re)produzir sonoramente os sinais ali registrados. As obras assim constituídas consistiriam, para nós,

um conjunto fechado de realidades sonoras, registradas na partitura pelo compositor e apenas à

espera de uma (re)produção. A música vista sob essa perspectiva, como um objeto ideal dotado de

perfeição platônica, teria na performance uma tentativa de aproximação com aquela forma pura: bem

interpretar significaria, nessa perspectiva, desviar-se o mínimo possível da forma lançada na partitura

pelo compositor.

O advento de um tipo de música que adotava o paradigma da ambiguidade e da imprecisão,

cuja finalização fora deslocada do ato de criação composicional para o momento da fruição estética,

permitiu a Eco demonstrar como algo mudara nessa relação platônica, entre a música (como o objeto

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ideal) e o resultado sonoro (objeto decaído) advindo da performance. A existência de um alto grau de

imprecisão nessas novas obras musicais, em que o intérprete era chamado a uma intervenção

criadora, deixou explícita a ambiguidade presente na obra musical e, consequentemente, em toda

obra de arte. Essa ambiguidade decorria de uma “abertura” para a interpretação, isto é, de um

momento posterior ao que a forma fora instaurada pelo seu autor, momento esse indispensável à sua

plena configuração sonora. Percebeu-se, a partir da ampla liberdade conferida ao intérprete na

música contemporânea, que, na verdade, toda obra de arte, por mais fechada e acabada que se

pretendesse, era também aberta, porque passível de infinitas interpretações diferentes, sem que tal

imprecisão fosse um elemento que a desfigurasse em sua singularidade (ECO, 2013, p. 40).

Compare-se, a título de exemplo, as partituras de um prelúdio de Chopin e de uma peça de

Boulez, para perceber o diferente grau de ambiguidade entre as duas formas musicais:

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Figura 1 − A partitura é vista sob uma perspectiva estrita.

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Reponz

Pierre Boulez

Figura 2 − A partitura explicita a abertura da forma musical.

A partitura escrita por Chopin é tida como supostamente mais precisa quanto à altura dos

tons, acordes e quanto à estrutura rítmica. Poder-se-ia dizer que, quanto ao prelúdio, bastaria ao

intérprete (re)produzir a partitura e, a partir desse procedimento, revelar integralmente a forma

composta por Chopin. Ocorre que há inúmeras possibilidades de andamento e timbre que irão

demandar, de cada intérprete, no momento da performance, a tomada de decisões sem as quais não

haverá o resultado sonoro. Ora, a possibilidade de obter múltiplos resultados sonoros, o que pode

variar em função de cada intérprete e em cada performance, mesmo quando é adotada uma mesma

partitura, demonstra haver, também aqui, uma abertura na obra musical que somente se aperfeiçoa

integralmente a partir de um intervenção criadora posterior ao compositor. Nesse sentido, apesar de

ocorrer em graus distintos, há sempre uma intervenção criadora, vale dizer, há sempre uma margem

de criação em qualquer ato de interpretação.

A peça de Boulez tem o prodígio de explicitar a abertura que também está presente no

prelúdio de Chopin, pois agora sequer a altura dos tons foi previamente determinada pelo compositor,

facultando-se ao intérprete escolher os arpejos mais adequados, segundo sua intervenção criadora,

no momento da performance. Isso não significa que a obra “Repóns”, acima citada, deixe de ser esta

obra, de Pierre Boulez, e não qualquer outra, a partir do momento em que se dão tais escolhas pelo

performer. Isso significa, apenas, que uma performance dessa obra jamais será igual a outra que a

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antecedeu ou a que a sucederá, pois em cada caso há a sua ressignificação pelo intérprete. Trata-se

aqui de uma forma que é, sob certos aspectos, muito mais ambígua do que a estrutura de Chopin,

mas isso não quer dizer – e esta foi a grande descoberta de Eco – que inexista ambiguidade também

na partitura do prelúdio.

Com efeito, por mais imprecisa que seja a forma proposta pelo compositor, instaurando-se

um jogo de intensa ambiguidade, a obra de arte afirma-se em sua singularidade, porque a

sensibilidade e a inteligência do intérprete atendem a uma sucessão de efeitos comunicativos

organizados previamente pelo autor, como afirma Eco (2013, p. 40). Isto é, o intérprete segue um

trajeto que pode não ser exato, mas esse não é um caminho escolhido pelo próprio intérprete,

tampouco é um caminho qualquer: o trajeto que ele adota é aquele que lhe é proposto pelo

compositor.

Por outro lado, uma obra musical, mesmo que se pretenda estritamente acabada, somente

será compreendida plenamente ser for reinventada (ressignificada) no momento da performance, em

um ato de congenialidade com o compositor (ECO, 2013, p. 40). No segundo caso temos, na

classificação proposta por Eco (2013, p. 62), uma obra “em movimento”, em que há múltiplas

possibilidades de intervenção pessoal. Isso não quer dizer, contudo, que se instaure um ambiente de

intervenção indiscriminada, pois nos inserimos no espectro de liberdade desejado pelo autor. Na

primeira hipótese, embora não se trate de uma obra em movimento, identificamos a presença da

mesma “abertura”, uma vez que há uma série virtualmente infinita de leituras possíveis do prelúdio,

cada uma das quais leva a obra a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma execução

pessoal (ECO, 2013, p. 63).

É interessante perceber como há um traço comum na obra “em movimento” e na obra

“fechada”, no que diz respeito à sua abertura. No caso de Boulez, há toda uma sorte de indefinições

que deverão ser solucionadas pelo intérprete no momento da performance, num ato de improvisação

criadora, como afirma Eco. Mas essa margem de liberdade e de criação não desfigura a

singularidade da obra musical, que, apesar dessa intervenção criadora, tem reafirmada a forma

proposta pelo compositor, sob pena de deixar de ser “esta” obra. O que Eco propõe, a partir de uma

situação-limite tão visível na música contemporânea, é que toda obra de arte, mesmo que não tenha

sido estruturada como uma obra “em movimento”, necessita, para realizar-se integralmente, mesmo o

prelúdio de Chopin, da intervenção criadora do intérprete, na performance, momento em que se dá a

sua plena fruição estética:

A abertura é a condição de toda fruição estética, e toda forma fruível como dotada de valor estético é aberta. É “aberta”, como já vimos, mesmo quando o artista visa a uma comunicação unívoca e não ambígua (ECO, 2013, p. 89).

A ressignificação musical de que trata este trabalho é o fruto da intervenção criadora do

intérprete, o arranjador, a partir da forma proposta pelo compositor. É nesse sentido que o autor

afirma que as poéticas contemporâneas explicitaram a necessidade de intervenção do sujeito fruidor,

a quem se atribui frequentemente o papel de reordenar o material proposto pelo autor, abrindo-se um

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campo de probabilidades ao invés de uma sequência unívoca e necessária de eventos (ECO, 2013,

p. 93). A interpretação afigura-se, nesse sentido, um permanente convite ao intérprete para, junto

com o autor, finalizar a obra no momento da performance. Daí Eco afirmar ser cada uma das

interpretações, para o intérprete, simultaneamente, a obra em sentido integral, sem que as múltiplas

interpretações se neguem reciprocamente, isto é, sem que deixem de ser interpretações da mesma

obra. Há um paralelismo entre as diversas performances, no qual cada uma sucessivamente exclui a

outra sem, contudo, tais interpretações negarem-se entre si, pois decorrem da mesma forma

concebida pelo compositor.

De fato, quando beltrano interpreta “Répons” após fulano e é sucedido por sicrano, embora

o resultado sonoro de cada uma das performances seja necessariamente diverso, cada uma delas

aspirará a ser a interpretação correta daquela forma, mas cada um dos três instrumentistas estará

consciente de que se trata ali da afirmação de uma mesma obra. De igual modo, uma performance do

prelúdio de Chopin, ao piano, soará distinta de sua transposição ao violão ou em um arranjo para

quarteto de violoncelos. Não obstante, em qualquer das interpretações não estaremos afirmando

outra forma senão a mesma obra musical, o prelúdio. São performances que se excluem

reciprocamente, mas não se negam como interpretação da mesma obra de Chopin. Desfaz-se aqui,

portanto, a dicotomia platônica entre um objeto musical ideal e sua realização sonora decaída, pois

cada performance é um objeto hígido, íntegro e autônomo.

3.2.5.3 O arranjador e a abertura da obra musical

É no campo da música popular que se percebe a grande pertinência e o acerto do modelo

teórico da abertura, formulado por Eco. É que a interpretação de uma obra musical popular exige do

intérprete um empenho autônomo especial (ECO, 2013, p. 93), o que se realiza na reconstrução do

material proposto pelo compositor. Ora, o conceito de microarranjo, citado anteriormente em Aragão

(2001 p. 18), amolda-se, perfeitamente, ao que Eco conceitua como um processo interpretativo que

nos conduz não a uma sequência unívoca e necessária de eventos, mas sim à abertura de um campo

de probabilidades, a uma ambiguidade capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas

sempre diferentes (ECO, 2013, p. 93). As músicas populares em geral, nesse sentido, poderiam ser

enquadradas, embora Eco não o faça expressamente, como obras em movimento, pois o nível de

ambiguidade que antecede a performance abre ao intérprete um vasto campo para a reordenação do

material proposto pelo compositor, para sua ressignificação, sem que, contudo, seja desfigurada a

forma elaborada pelo autor.

Ora, o papel do arranjador na música popular, sobretudo o tipo de arranjador sobre o qual

se debruça esta pesquisa, é justamente o de estruturar uma obra musical para a performance,

reduzindo o nível de ambiguidade da forma originária, em contínua reordenação dos materiais

propostos pelo autor. Trata-se de criação musical tanto quanto a interpretação o é em regra, um ato

de congenialidade, como afirma Eco. O arranjo é, nessa perspectiva, a maneira como se dá a

interpretação de uma obra musical pelo arranjador. Não se trata de um ato eminentemente

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composicional, porque a intenção do arranjo não é reordenar a forma a tal ponto de ela tornar-se

imperceptível, isto é, de deixar de ser “esta” obra. O objetivo do arranjador é extrair novos

significados à forma concebida por outro autor, um processo de ressignificação que se amolda

estritamente no conceito aberto de interpretação proposto por Eco.

3.2.5.4 A questão da superinterpretação

Em 1993, na 1ª edição da obra Interpretação e superinterpretação, Eco afirma que, apesar

da pluralidade contraditória de interpretações possíveis de uma mesma obra de arte literária, não se

pode atribuir a um texto, de maneira aleatória, um sentido qualquer (ECO, 2012, p. 165). Na visão do

autor, a partir da edição de Obra aberta, onde foi proposto um papel mais ativo para os intérpretes de

textos dotados de valor estético, teria havido, por parte dos leitores, uma exacerbação contra os

direitos dos textos (ECO, 2012, p. 27). É que, segundo Eco, a abertura ali proposta relacionava-se à

dialética entre os textos e seus leitores, sem que ele advogasse a exacerbação dos direitos de

qualquer deles.

Segundo essa perspectiva, ao afirmar a abertura da obra de arte e dizer que uma

interpretação é potencialmente ilimitada, Eco não pretendia afirmar que tudo corria por conta própria.

Daí o autor propor um ponto médio entre a intenção do autor e a intenção do intérprete, isto é, a

intenção do próprio texto (ou intenção da obra). Se algo deve ser interpretado, a interpretação deve

falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de certa forma respeitado (ECO, 2012, p.

51). Ocorre que, para Eco, a intenção do texto não pode ser validada apenas pela sua superfície

textual, pois trata-se de um objeto construído a partir do círculo hermenêutico, isto é, na relação

circular e contínua entre a forma e o resultado da interpretação (2012, p. 76). Voltamos aqui, por

conseguinte, à questão hermenêutica da organicidade de obra literária abordada no item 1 deste

capítulo.

De fato, Eco reconhece que, uma vez desencadeado o processo da compreensão, não há

limite para a imaginação humana, pois instaura-se o mecanismo da analogia e, desencadeado esse

processo, não há garantia de que este vá parar em algum momento ou até onde irá chegar. Pois

todas as coisas têm, em alguma medida, uma relação de similaridade e contiguidade com todas as

outras. Daí o exemplo, formulado pelo autor, com as palavras “enquanto” (advérbio) e “crocodilo”

(substantivo) que, como afirma Eco (2012, p. 57), não têm, entre si, até aqui, nenhuma relação

evidente, mas têm pelo menos a relação decorrente do fato de terem sido incluídas nesta sentença.

Uma superinterpretação deste parágrafo seria afirmar que não estou apenas parafraseando as ideias

de Eco, para fundamentar meu ponto de vista neste texto, e sim passando uma mensagem cifrada

para um dos componentes da banca, ou para um segmento da comunidade acadêmica, para revelar

que pertenço, na verdade, a uma irmandade universitária secreta e revolucionária.

No exemplo da canção praieira de Dorival Caymmi, uma interpretação sã de sua letra é que

os dois pescadores foram seduzidos por Iemanjá durante uma tempestade no alto-mar, razão de a

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jangada voltar só. Uma superinterpretação, ou interpretação paranoica, seria supor que o autor se

referia, na verdade, a dois perigosos subversivos que se evadiram do país com a ajuda do célebre

compositor baiano, na época da repressão política, a quem Caymmi prestou uma homenagem, após

o sucesso da empreitada: o paranoico vê por baixo de meu exemplo um segredo, ao qual estou

aludindo (ECO, 2012, p. 57). A saída proposta pelo autor para estabelecer um limite à interpretação

é, por fim, a mesma adotada por Gadamer e, em certa medida, por Cook e Meyer, isto é, considerar o

contexto da obra de arte:

Posso, com certeza, usar o texto de Wordsworth para uma paródia, para mostrar como um texto pode ser lido em relação a diferentes contextos culturais, ou para finalidades estritamente pessoais (posso ler um texto em busca de inspiração para minhas meditações); mas, se quiser interpretar o texto de Wordsworth, terei de respeitar seu pano de fundo cultural e linguístico (ECO, 2012, p. 81).

Ora, a ideia de um pano de fundo cultural ou linguístico conduz, como dito acima, ao mesmo

conceito de tradição manejado por Gadamer (cf. ECO, 2012, p. 169). Não se nega que o intérprete

possa, no exercício de sua liberdade, e para finalidades estritamente pessoais, estabelecer as mais

ousadas relações entre as palavras de um texto, para delas extrair um significado inimaginável ao

autor. Essa liberdade, não obstante, tem por limite o contexto em que a obra literária foi concebida e

no qual é interpretada. Ademais, se um texto pudesse ter qualquer significado incorreríamos na

encruzilhada de reconhecer que, ao mesmo tempo, esse objeto não teria significado algum: pois algo

que significa tudo, por um imperativo lógico, nada significa nada. O que Eco propõe, com essas

objeções a uma interpretação ilimitada, é que a liberdade do sujeito fruidor não pode redundar na

eliminação da forma, isto é, não deve conduzir a uma situação em que a obra deixe, virtualmente, de

ser obra.

Diversamente do que ocorrera em Obra aberta, Eco não faz aqui nenhuma alusão ou

comparação à interpretação musical. Sua perspectiva prendeu-se mais aos “direitos” dos textos

literários, sob a pressuposição de que houvera uma exacerbação da parte dos leitores. Trata-se de

uma perspectiva muito distinta da interpretação musical que, como vimos, pressupõe a performance

sonora, algo desnecessário ao hábito da leitura, cuja fruição pode ocorrer pela “voz interna”, algo que

é inerente ao contato com os textos. Nesse sentido, seu alerta é pertinente no campo da música

apenas em relação ao texto das obras lítero-musicais que, como vimos anteriormente na canção

praieira de Caymmi, não deve transbordar para o niilismo. Não parece ser factível, por outro lado, a

superinterpretação da própria mensagem sonora de uma obra musical.

Nessa perspectiva, entendo, com a permissão de Abdo (2000), que, no caso da

performance musical, a intervenção criadora do instrumentista não configura aquilo a que Eco se

refere como superinterpretação. Isso porque a autora afirma que o executante falha quando permite

que suas reações ou pontos de vista assumam foros de parâmetro interpretativo, o que configuraria

uma forma de arranjo ou releitura, isto é, um caso de superinterpretação. Não é disso que se trata,

por pelo menos duas razões: 1) não é possível uma performance em que reações ou pontos de vista

do músico não assumam protagonismo (é disso que se trata uma performance) e 2) esta é uma visão

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da música sob o enfoque filológico que aspira, a partir de um processo analógico, igualar a partitura

musical a um texto literário, isto sim uma forma de superinterpretação.

Tudo isso é dito para afastar o sentido pejorativo que o senso comum construiu em relação

ao arranjo musical no universo erudito e, em certa medida, na música popular. Como se fosse uma

atividade de segunda ordem, uma redução da genialidade da forma original, uma deturpação da

vontade do compositor, uma paródia da obra de arte para resolver problemas na “execução” musical.

Todo o esforço argumentativo deste trabalho dirige-se no sentido contrário, de que o arranjo nada

mais é do que a interpretação da obra musical, com o intuito de extrair novos significados que

exsurgem no novo contexto que é proposto pelo arranjador.

No universo erudito, com efeito, nada há de paranoico em interpretar um prelúdio do “Cravo

Bem Temperado” (de Bach) ao violão, tampouco em promover uma performance do “Concerto em

Fá” (de Gershwin), na qual o pianista, no momento da performance, improvisa a parte do solista. Não

se está à busca de nenhum segredo, ou mensagem oculta, ao qual o compositor teria aludido. O

limite interpretativo estabelece-se, em cada caso, pelo contexto em que a obra é executada: 1) se a

questão da originalidade dos instrumentos ou dos textos musicais é o valor central, e se espera uma

sonoridade histórica, há claros limites a serem observados pelo músico, ou 2) se a fruição da obra de

arte pode, pelo contexto, ocorrer com maior intervenção do intérprete, espera-se maior reordenação

do material proposto pelo compositor, hipótese em que os limites cabíveis serão absolutamente

diversos. Isso não desfigura o prelúdio de Bach, tampouco o Concerto deixa de ser uma obra de

Gershwin. O público dirá apenas “como soou bem aquele prelúdio de Bach tocado ao violão” ou,

“preferiria ouvir a parte de piano composta por Gershwin no Concerto em Fá”. Em qualquer caso,

entretanto, essas obras e esses compositores serão plenamente identificados pelo público.

No universo da música popular, de igual modo, nada há de paranoico em reescrever a

canção-tema do filme Cinema Paradiso, de Ennio Morricone, para conferir-lhe um novo significado,

sob um novo enfoque textural, harmônico e rítmico. A música, que tem um caráter eminentemente

pianístico, concebida segundo a tradição europeia, a partir do arranjo de Dori Caymmi adquire um

novo significado, inclusive pela introdução de elementos estéticos da Bossa Nova: deixa de ser uma

melódica canção italiana e passa a ser um sincopado samba brasileiro. São duas interpretações

muito contrastantes da mesma obra musical, mas não se pode afirmar, sob qualquer aspecto, que se

trate de falta de sanidade ou niilismo interpretativo, ao contrário, o arranjo em questão é uma clara

manifestação de congenialidade entre Morricone e Caymmi.

Com efeito, adotando o conceito de obra em movimento cunhado por Eco na Obra aberta, o

arranjo na música popular distancia-se claramente da superinterpretação da obra musical a que se

refere Abdo. É que a própria ambiguidade da forma de uma canção não só permite como exige do

intérprete a (re)ordenação do material proposto pelo compositor. No caso da música erudita há uma

resistência maior a reconhecer a legitimidade da intervenção do arranjador, em decorrência da visão

que nos foi legada desde os primórdios da musicologia, no século XIX, como salienta Cook (2007b,

p. 11), ou seja, a ideia de que a música é, em sua essência, uma forma escrita e, como tal,

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estritamente ligada aos valores e práticas da filologia, disciplina então dominante nas ciências

humanas.

3.2.5.5 Conclusão

O conceito de abertura da obra de arte, lançado por Umberto Eco na Obra aberta, é

amplamente aplicável ao campo musical, tanto que teve como ponto de partida os novos parâmetros

de imprecisão, ambiguidade e informalidade das obras musicais compostas na primeira metade do

século XX. A partir do reconhecimento da legitimidade da intervenção criadora do intérprete, inerente

à música contemporânea, Eco demonstrou como toda obra de arte está aberta a múltiplas

integrações, sem contudo deixar de ser obra, conceito que ele demonstrou ser aplicável também às

pressupostas obras “fechadas” do repertório tradicional da música erudita dos séculos antecedentes.

O conceito de obra musical em movimento, cunhado a partir da música contemporânea, é

igualmente aplicável à música popular (embora isso não tenha sido explicitado pelo autor). É que as

obras musicais do repertório popular abrem um vasto campo para a reordenação do material

proposto pelo compositor, sem que seja desfigurada a forma por ele proposta. É nesse momento que

surge a figura do arranjador, um profissional que trabalha sobre a ambiguidade inerente à abertura da

obra musical, como autêntica instância de mediação entre a forma original concebida pelo compositor

e a performance musical. O que de resto, como se viu, é o papel de qualquer intérprete.

A ponderação de Eco a respeito da exacerbação da interpretação literária restringe-se ao

texto das obras lítero-musicais, sob pena de reduzir o amplo espectro da produção musical do

ocidente ao que está grafado em partituras. Esta é uma postura que iguala partituras a textos

literários, em uma perspectiva filológica já superada, atrelada aos primórdios da musicologia no

século XIX, uma postura que desconhece ser a música um fenômeno eminentemente sonoro, e não

gráfico. A denominada superinterpretação não é, por conseguinte, aplicável ao arranjo musical.

A adoção do conceito de abertura proposto por Eco, a partir da constatação da ambiguidade

presente em qualquer obra musical, infirma categoricamente o senso comum que tende a enxergar o

arranjador como um tipo de compositor de segunda categoria ou de segunda ordem, alguém que

compõe sobre a ideia de outro compositor. Como busquei demonstrar acima, o papel do arranjador

nada mais é do que o de um intérprete, alguém que reordena o material proposto pelo compositor, de

modo a dele extrair o significado musical que exsurge no momento da performance.

3.2.6 A ressignificação musical na convergência dos pensamentos de Meyer, Gadamer, Cook e

Eco

Há um traço comum nas reflexões teóricas de Meyer, Gadamer, Cook e Eco: para os quatro

autores inexiste um significado unívoco ou autêntico da obra de arte. A resistência em admitir que

exista um sentido imanente à obra musical é essencial para bem compreender o processo de

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ressignificação empreendido pelo arranjador. Admitindo-se que o significado musical é construído

para a performance e durante a performance, caem por terra, a um só tempo, o mito da interpretação

autêntica e a visão do arranjo como uma corrupção ou desvio da forma original proposta pelo

compositor.

Meyer, como vimos, expande a perspectiva absolutista do significado musical ao situá-lo

entre o emissor e o receptor de um estímulo, ou termo, sonoro. É a partir da satisfação ou frustração

de uma expectativa no ouvir que ocorre a significação em música, o que desloca este debate da

estrutura interna e orgânica da obra musical para a sua vinculação a dados que lhe são

circunstanciais, provenientes do meio cultural em que estão inseridos emissor e receptor. O

arranjador é, nessa perspectiva, um (re)ordenador dos termos musicais concebidos pelo compositor,

a fim de deles extrair um resultado surpreendente que ressignifica a obra musical.

Gadamer rompe, de igual modo, a ideia do significado intrínseco da obra de arte, ao

demonstrar como ele é indissociável do círculo hermenêutico, para o qual convergem os “pré-

conceitos” do intérprete. A mensagem ambígua e polissêmica da obra-de-arte é, nessa perspectiva,

mediada pela fusão entre os horizontes históricos do intérprete e da própria obra, um construto

moldado pelo intérprete a partir da compreensão da forma que lhe é legada pelo autor. Partindo da

assertiva de Gadamer, de que não existe interpretação sem pressupostos, pode-se afirmar que o

arranjador propõe uma nova visão da obra musical a partir de seus “pré-conceitos”, extraindo sua

interpretação de um contexto distinto daquele em que a obra foi concebida.

A ideia manejada por Cook, de que existe um feixe de atributos em todo objeto estético, vai

ao encontro das abordagens de Meyer e Gadamer, pois, segundo sua perspectiva, o significado

musical emerge, dentre os múltiplos significados potenciais, no contexto da performance musical. A

forma musical original é portadora apenas de potencialidades que se efetivam, caso a caso, em um

fazer humano interpretativo. Desloca-se, assim, a atenção do produto (obra) para o processo

(performance). O arranjo pode ser então entendido como o processo a partir do qual o arranjador

constrói novos significados musicais, adotando a forma original como um mero script. O arranjador

não atua, por conseguinte, como um compositor que reescreve a obra musical, mas como um

intérprete que ressignifica a forma original para a performance.

Por fim, o conceito de obra aberta proposto por Eco reafirma as três perspectivas

antecedentes, ao demonstrar como a obra de arte está sujeita a múltiplas integrações, sem, contudo,

deixar de ser obra. Para o autor, toda obra de arte, sobretudo a musical é, em alguma medida,

construída durante a performance, mediante a (re)ordenação do material sonoro proposto pelo

compositor, sem, contudo, desfigurar a forma por ele proposta. Nesse sentido, o esforço do

arranjador deve ser compreendido como a interpretação levada a extremo, para a eventual

(re)ordenação de todos os elementos da obra musical. sem, contudo, que ela deixe de ser aquela

obra.

O traço comum entre os quatro autores é, por conseguinte, a constatação de que o

significado musical exsurge no contexto da performance, vale dizer, de que ele sequer existe em uma

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perspectiva abstrata e platônica. Toda interpretação é, nesse sentido, um processo de ressignificação

da obra musical no contexto da performance. A música, por mais óbvio que constitua esta afirmação,

é uma atividade humana essencialmente sonora. Creio ser esta uma acepção razoável para a

expressão que resume toda a riqueza deste fenômeno: “música em contexto”.

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CAPÍTULO 4 – DORI CAYMMI E O NACIONALISMO MUSICAL BRASILEIRO

Quero bate-papo na esquina

Eu quero o Rio antigo com crianças na calçada Brincando sem perigo, sem metrô e sem frescão

O ontem no amanhã Eu que pego o bonde 12 de Ipanema

Pra ver o Oscarito e o Grande Otelo no cinema Domingo no Rian

Hum, deixa eu querer mais, mais paz Quero um pregão de garrafeiro,

Zizinho no gramado, eu quero um samba sincopado Taioba, bagageiro

E o desafinado que o Jobim sacou (“Rio Antigo”, samba de Chico Anysio e Nonato Buzar).

4.1 A questão da síncope

O Dicionário Grove de Música (SADIE, 1994, p. 868) define a síncope como deslocamento

regular de cada tempo em padrão cadenciado sempre no mesmo valor à frente ou atrás de sua

posição no compasso. Lacerda (1966, p. 39) lança semelhante conceito ao defini-la como a

supressão de um acento normal do compasso, pela prolongação do tempo fraco ou parte fraca do

tempo, para o tempo forte ou parte forte do tempo. Priolli (1999, p. 48) afirma que ela ocorre quando

uma nota executada em tempo fraco ou parte fraca do tempo é prolongada ao tempo forte ou parte

do tempo seguinte, o que claramente remete à definição de Lacerda. Isso demonstra como esse é um

conceito há muito arraigado na teoria musical difundida no país.

Pode-se representar a síncope da seguinte forma no pentagrama:

Figura 3 − No primeiro compasso as figuras de tempo são simétricas. No segundo compasso há o prolongamento da segunda figura, resultando em uma colcheia que desloca a acentuação rítmica para o centro

do grupo de notas.

É interessante observar como, no segundo compasso, o prolongamento da segunda

semicolcheia sobre a terceira semicolcheia forma uma colcheia central e equidistante das demais, o

que desloca a acentuação rítmica para o centro do grupo de quatro semicolcheias originais que

compunham o primeiro compasso. Esse novo desenho rítmico pode ser assim representado, com a

eliminação das ligaduras:

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Figura 4 − As ligaduras entre a terceira e a quarta e entre a sexta e a sétima semicolcheias foram substituídas por apenas uma colcheia, situada no centro do primeiro e do segundo tempos, o que melhor representa o

deslocamento da acentuação rítmica para o interior do compasso.

Com efeito, o fato de a segunda e a sexta figuras de tempo terem o dobro da duração das

demais figuras do compasso desloca a acentuação rítmica da cabeça para a porção central do

primeiro tempo, padrão que se repete, de forma regular, na segunda metade do compasso, um efeito

típico da síncope, como leciona Med (2012, p.143), “A síncope produz o efeito de deslocamento das

acentuações naturais. Caracteriza-se pela desarticulação dos acentos normais do compasso e resulta

numa tensão causada pela ausência do acento esperado”.

Sodré (1998, p. 11) afirma que tanto no jazz quanto no samba a síncope incita o ouvinte a

preencher o tempo vazio com a marcação corporal por meio de palmas, meneios, balanços, dança

etc. Sua força viria do impulso decorrente dessa lacuna rítmica, levando o corpo a completar a

ausência com o movimento no espaço. Para Sodré, o corpo que é chamado a completar esse vazio é

o corpo do negro, o mesmo que o regime escravocrata ocupou-se sistematicamente em explorar e

violentar:

Apesar das características mestiças (misto de influências africanas e europeias), essa música fermentava-se realmente no seio da população negra, especialmente depois da Abolição, quando os negros passaram a buscar novos modos de comunicação adaptáveis a um quadro urbano hostil (SODRÉ, 1998, p. 13).

Como afirma Sandroni (2012, p. 28), a síncope virou uma espécie de panaceia para

justificar a influência africana na música popular brasileira, tendo sido largamente utilizada por

teóricos e compositores eruditos, a partir do século XIX, como sinônimo de “brasilidade”. A

possibilidade de representar graficamente o “balanço” do samba na partitura tradicional, segundo

esse autor, traduziria um ideal de congraçamento racial, de miscigenação em voga nas primeiras

décadas do século XX no Brasil. É, não obstante, um procedimento de extrema simplificação limitar

todo o “suingue” do samba à sua representação no pentagrama, reduzindo sua complexidade rítmica

à grafia da síncope segundo o padrão de notação musical europeu.

Com efeito, como ressalta Sandroni, há um aspecto diferencial da representação gráfica da

síncope na música brasileira. O que é considerado uma exceção na notação musical erudita, isto é, o

deslocamento do acento métrico (MED, 2012, p. 141), apresenta-se na escrita musical do país como

a regra, fenômeno que ocorre tanto no universo erudito quanto no popular. De fato, a ideia de

antecipação ou retardo do acento rítmico pressupõe um a priori, isto é, a existência de uma posição

“correta” desse acento na subdivisão do compasso, o que situaria o evento sincopado como algo

extraordinário, uma surpresa no fluxo melódico ou rítmico esperado. Ribeiro (2003, p. 88), ao abordar

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a questão, afirma que a síncope não faz sentido fora de um contexto métrico regular, pois a própria

conceituação do que seja métrica se faz necessária para o seu entendimento.

No samba, e na música brasileira em geral, ao contrário, a síncope não se apresenta como

surpresa, mas sim como a regra, à semelhança da música africana, quer na articulação da melodia,

quer na estruturação do acompanhamento:

Este caráter sistemático, regular da contrametricidade da música africana levou estudiosos como Simba Arom e Gehrard Kubik a abandonar não apenas os compassos, mas também o próprio conceito de síncope como instrumento de análise daquela música (SANDRONI, 2012, p. 24).

De fato, em termos de notação musical tradicional, essa contrametricidade resulta em que,

quanto mais “suingado” for o ritmo, mais sincopada será a sua escrita, com uma expressão por vezes

tão complexa no pentagrama que se torna virtualmente inviável a leitura da partitura (SANDRONI,

2012, p. 27). O paradoxo é ainda maior quando se observa que, se a leitura desses padrões rítmicos

escritos pode tornar-se extremamente difícil pela complexidade que resulta de sua notação na

partitura, no âmbito da tradição oral esses padrões pertencem, muitas vezes, ao senso comum e

podem ser facilmente identificados por simples menção à “levada” de determinado gênero musical. É

muito mais fácil, por exemplo, apreender a “batida diferente” da Bossa Nova ouvindo João Gilberto ao

violão do que pela leitura da notação musical extremamente complexa que resultaria da transcrição

minuciosa de sua performance.

Com efeito, ainda com recurso aos estudos de Simha Arom (apud SANDRONI, 2012),

constata-se que a rítmica ocidental é preponderantemente divisiva, pois baseia-se na divisão

simétrica do compasso. Já a rítmica africana resulta da adição de unidades menores que se agrupam

formando novas unidades, de feição, portanto, aditiva. Outro aspecto relevante é observar como na

música brasileira, para que se confira à canção o “tempo” de samba, é comum que a

contrametricidade da seção rítmica resulte na alternância de quiálteras aumentativas e figuras de

tempo “normais” (MED, 2012, p. 207) na melodia, o que confere um caráter “valseado” à subdivisão

rítmica. É o que ocorre, por exemplo, no samba “Se Todos Fossem Iguais a Você”, de Antonio Carlos

Jobim e Vinicius de Moraes:

Figura 5 − O que seria um ritmo contramétrico do tipo 2+3 é “comprimido” pela quiáltera para um 2+2. Ou, visto por outro ângulo, o tempo ternário da valsa é “expandido” com a maior duração da primeira porção do compasso.

A divisão rítmica da melodia de Jobim sugere tanto uma valsa cantada de forma expandida

em quatro tempos, quanto uma melodia estruturada em compassos alternados (5/4) comprimida na

divisão quaternária. O que seria um ritmo contramétrico do tipo 2+3 é “comprimido” pela quiáltera

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para um 2+2. Ou, visto por outra perspectiva, o tempo ternário da valsa é “expandido” com a maior

duração da primeira porção do compasso.

Sem a pretensão de esgotar neste momento a discussão sobre tema tão candente e

complexo, o que aqui se busca é demonstrar como o caráter híbrido do samba, produto do encontro

de diferentes culturas no solo americano, a partir do século XVI, tem sua expressão na grafia musical,

tanto pelo uso sistemático da síncope quanto da quiáltera aumentativa. Esse hibridismo, como afirma

Canclini (2006, p. 27), é o produto da mistura de colonizadores espanhóis e portugueses com os

indígenas americanos e os escravos trasladados da África, o que fez da mestiçagem um processo

fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo. Esta é, também, a perspectiva de Sodré

(1998, p. 25) sobre o tema:

A síncopa brasileira é rítmico-melódica. Através dela, o escravo – não podendo manter integralmente a música africana – infiltrou a sua concepção temporal-cósmico-ritmica nas formas musicais brancas. Em uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava.

De fato, a simetria imposta pela barra de compasso do pentagrama europeu, ao ser

confrontada com as tradições africanas, resultou em uma nova estrutura rítmica que, como vimos,

não é estritamente cométrica nem absolutamente contramétrica. Pode-se afirmar que a síncope se

coloca em uma posição intermediária, entre a intenção de submissão do corpo negro à disciplina

colonial (cf. SODRÉ, 1998) e a sua libertação, a libertação do que Susan McClary identifica como a

sensualidade do corpo africano (McCLARY; WALSER, 1994). Disto resultou, e é o que ora se afirma,

a síncope brasileira, uma terceira categoria rítmica, distinta da síncope tradicional europeia e

igualmente distinta da complexidade contramétrica (aditiva) da música africana. Essa constatação

confirma a assertiva de Adorno (2011, p. 57), segundo a qual a música apresenta os problemas

sociais em sua própria estrutura formal, cabendo ao musicólogo decodificá-los e decifrá-los.

O caráter sincopado do samba aqui analisado, citado com nostalgia na canção de Nonato

Buzar e Chico Anysio, mencionada na epígrafe, é essencial para bem compreender o processo de

ressignificação musical empreendido pelo arranjador brasileiro, o que o distingue dos músicos de

outras nacionalidades. Com efeito, a interpretação, pelo arranjador, de temas nacionais ou

internacionais, eruditos ou populares, mediante a adoção da “batida” do samba, desvela um contínuo

processo de hibridação cultural, de apropriação de elementos externos à cultura e de afirmação de

costumes e tradições internas. É evidente que essa fricção entre paradigmas culturais não se

processa de forma cândida, o que se confirma pelo desconforto com que certas práticas de arranjo

são recebidas em universos acadêmicos ou populares. No universo erudito, o arranjo sincopado de

temas clássicos é, por vezes, considerado mera paródia ou superinterpretação. No universo popular,

a sinfonização das canções é duramente rechaçada por subtrair-lhes todo o “suingue”. É, não

obstante, a partir dessa hibridação que se torna viável trabalhar democraticamente as divergências,

para que a história não se reduza a uma guerra entre culturas, como alerta Canclini (2006, p. 27):

podemos escolher viver em estado de guerra ou de hibridação.

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4.2 Meu Brasil brasileiro: a invenção das tradições

Lucio Costa, o notável urbanista autor do Plano Piloto de Brasília, é um dos personagens

indispensáveis para compreender a formação da denominada identidade brasileira ao longo do

século XX. Uma das figuras de proa do denominado “movimento modernista”, Costa (2000, p. 70)

ressalta a característica no mínimo curiosa da cultura nacional no que tange à conciliação entre

vanguarda e tradição:

No Brasil, tanto em 22 como em 36, os empenhados na renovação foram os mesmos empenhados na “preservação”, quando alhures, na época, eram pessoas de formação antagônica e se contrapunham. Em 22, Mário, Tarsila, Oswald & Cia., enquanto atualizavam internacionalmente a nossa defasada cultura, também percorriam as cidades antigas de Minas e do norte em busca “antropofágica” das nossas raízes; em 1936, os arquitetos que lutaram pela adequação arquitetônica às novas tecnologias construtivas foram os mesmos que se empenharam com Rodrigo M. F. de Andrade no estudo e salvaguarda do permanente testemunho do nosso passado autêntico.

De fato, os mesmos personagens que advogavam a vanguarda da cultura brasileira, no

alvorecer no século XX, empenhavam-se, ao lado de Rodrigo Melo Franco, na criação do Serviço do

Patrimônio Histórico (SPHAN), em pleno governo ditatorial de Getúlio Vargas. Atribui-se a Mário de

Andrade a autoria de anteprojeto que, com alguns ajustes, resultou no Decreto-Lei 25/1937,

responsável pela criação do Serviço do Patrimônio Histórico (hoje Iphan) e pelo regime legal de

proteção aos bens culturais ainda vigente no país (SANTOS, 2012). Um desses personagens

próximos a Rodrigo Mello Franco era Lúcio Costa, que, segundo seu próprio relato, foi incumbido pela

Sociedade Brasileira de Belas Artes, no ano de 1924, de visitar a cidade mineira de Diamantina para

fazer o inventário de bens coloniais. Lá chegando, deparou-se, segundo suas palavras, com um

“passado novo em folha”, uma “revelação”:

Em 1924, comissionado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes, conheci Diamantina. Foram trinta e tantas horas de trem, com baldeação em Corinto. Lá chegando, caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de verdade, que era novo em folha para mim. Foi uma revelação (COSTA, [ca. 2000], p. 71).

Vianna (2012, p. 96) afirma que os modernistas realmente buscaram caracterizar essa

“reviravolta” como uma iluminação, como uma forma de inauguração de um novo projeto estético

para o Brasil. Em uma primeira fase, a partir de 1917, o movimento trava, como afirma o autor, uma

verdadeira polêmica com o repúdio de todo apego ao passado e a busca por sua inserção nas

vanguardas europeias. Em um segundo momento, a partir de 1924, os modernistas passam a ter por

principal agenda a elaboração de um modelo de cultura nacional, contexto em que se deve situar a

“revelação” do passado de que nos fala Lucio Costa.

A busca das raízes culturais, empreendida por esses intelectuais brasileiros, para sua

conciliação com os novos paradigmas defendidos pela modernidade, tendo por cenário o recém-

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instaurado republicanismo no Brasil (de 1891 para 1922), pode ser mais bem compreendida a partir

do conceito de comunidade imaginada de que fala Benedict Anderson. Para Anderson (2012, p. 25),

o conceito de nação tenta reproduzir a solidariedade das antigas comunidades tradicionais, das

aldeias primitivas, onde todos os membros relacionavam-se cara a cara. Ocorre que, na

modernidade, mesmo os membros da mais pequena nação nunca conhecerão, nunca encontrarão ou

nunca ouvirão falar uns dos outros, o que, entretanto, não os impedirá de se sentirem conectados

pela mesma nacionalidade. Essa imagem de comunhão e de solidariedade entre pessoas que nem

se conhecem ocupa a mente de cada um desses membros, mas não é algo que decorra do contato

real, é uma união fruto da imaginação. A nação é também uma comunidade imaginada porque está

idealmente delimitada em espaço territorial onde não há fronteiras reais, delimitação esta que lhe é

inerente, uma vez que mesmo a mais abrangente nação não aspiraria a abarcar toda a humanidade

ou estender-se por todo o globo terrestre.

Tudo isso é dito para demonstrar como a busca empreendida pelos modernistas no início do

século XX não era, como pareciam supor, a procura de uma revelação do passado ou a redescoberta

do Brasil. Era, isto sim, a construção de um discurso a respeito da nacionalidade brasileira, como

forma de delimitá-la e diferenciá-la no contexto internacional. Uma busca coerente por parte de uma

elite cultural que lutava por sua inserção nos círculos europeus e, para tal, precisava ostentar valores

próprios, suas próprias tradições, deixar de ser colônia para situar-se de forma autônoma na

metrópole, mesmo que fosse necessário boa dose de invenção e criatividade para reunir tal

arcabouço.

Nesse sentido Hobsbawn (1983, p. 1) pondera que, apesar de nada nos parecer mais antigo

e vinculado ao passado do que a liturgia da monarquia britânica, em cerimônias públicas irretocáveis

como o casamento e o velório da princesa Diana, por exemplo, o que supomos serem traços da

imemorial nobreza inglesa são, em sua forma moderna, na verdade, produto recente do final do

século XIX e início do século XX. Hall (2014, p. 32) identifica nisso uma tendência inexorável do

nacionalismo, isto é, de localizar suas tradições em um passado distante e imemorial, como uma

espécie de “mito fundacional”. Tradições inventadas que, segundo o autor, tornariam a história mais

palatável, revestindo de heroísmo as confusões e derrotas, transformando a desordem social em

comunidade, os desastres em triunfos. É no âmbito desses conceitos que se pode melhor

compreender o “cair” no passado novo em folha a que se referia Lucio Costa em 1924.

E é precisamente na perspectiva da invenção das tradições que devemos situar a adoção

do samba como símbolo do Brasil brasileiro de que fala Ary Barroso em sua “Aquarela do Brasil”.

Vianna (2012, p. 126) demonstra, nesse sentido, como o samba, nas primeiras décadas do século

passado, alcançou em pouco tempo a posição de música nacional, colocando em segundo plano as

demais manifestações regionais. Não porque fosse a genuína e verdadeira manifestação da alma

nacional, um mito fundacional, como se viu, e sim porque moldava-se perfeitamente ao projeto

modernista de invenção das tradições brasileiras e que, logo após, seria transposto para o discurso

de nacionalização adotado pelo Estado Novo. Uma agenda que incluía o elogio ao mestiço, à

instalação da siderurgia nacional, ao monopólio do petróleo etc.

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Ora, a construção dessa nacionalidade passaria, necessariamente, pela inserção do negro

no projeto social brasileiro, uma questão candente pela tardia abolição da escravatura no país. De

fato, a Lei Áurea veio a lume apenas no ano de 1888, quase simultaneamente à queda da monarquia,

com um século de atraso em relação às demais nações do ocidente. O samba, que no alvorecer do

milênio apresentava-se como fruto de um longo processo de continuidade e resistência cultural,

traduzia essas contradições e passou a ser considerado fonte geradora de significações nacionalistas

(cf. SODRÉ, 1998, p. 39):

Do ponto de vista político, o fenômeno se ajustava às aspirações nacionalistas que percorriam o país desde o final da I Grande Guerra. Do ângulo das vanguardas culturais (Modernismo) da classe dirigente, o negro constituía, ao lado do índio, um elemento de “autenticidade” local, algo a ser retrabalhado artisticamente.

Getúlio Vargas, já em sua campanha eleitoral, como assinala Stella Caymmi (2013, p. 30),

tinha plena consciência da dimensão política da música popular brasileira, das rádios e das

gravadoras, um tripé importantíssimo para a consolidação de sua plataforma nacionalista. “Aquarela

do Brasil” seria adotada por Getúlio como prefixo de seu governo (GIRON, 2001, p. 221), tanto pelo

caráter de exaltação ufanista da composição de Ary Barroso, quanto pela influência norte-americana

identificada no arranjo elaborado por Radamés Gnattali, uma modernidade que servia como uma luva

à política de boa vizinhança empreendida pelo ditador às relações diplomáticas com os Estados

Unidos da América.

É interessante perceber como esse processo de formação da identidade nacional e de

“resgate” das tradições é um fenômeno contínuo, um dispositivo discursivo que aspira à construção

de uma unidade e de uma coerência imemorial, mas que se renova diuturnamente. O samba

“Aquarela do Brasil” é um bom desmentido da pretendida placidez subjacente a essa identidade. O

próprio Giron (2001, p. 221) ressalta o quanto Radamés foi criticado, na formulação de seu arranjo,

pela suposta influência que sofrera do maestro Xavier Cugat em seu trabalho, ao conferir caráter

percussivo ao naipe de metais. A transposição da síncope da sessão rítmica para o naipe de metais

foi, à época, considerada uma capitulação ao imperialismo cultural norte-americano. Hoje é

perfeitamente compreensível que a crítica a esse conceito tenha ficado ainda mais acirrada com a

associação entre Ary Barroso e o cineasta de Hollywood Walt Disney, o que proporcionou tanto ao

samba quanto ao arranjo de Gnattali grande repercussão internacional.

Irônico é que, passadas oito décadas da execução do arranjo de Radamés na feira de Nova

York, no ano de 1939, essa interpretação praticamente se confunde com a forma original do samba,

que é considerado, por muitos, um segundo hino nacional brasileiro. Tanto o samba quanto o arranjo

passaram, ao longo do século XX, a integrar o imaginário brasileiro em torno da “identidade nacional”

e estão umbilicalmente atrelados ao conceito de Brasil brasileiro, distantes de qualquer paradigma de

espúria americanização.

Justifica-se aqui, por conseguinte, a escolha desse arranjo para demonstrar como se dá a

ressignificação da obra musical pelo arranjador brasileiro, o que se fará no próximo capítulo, a partir

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da análise comparativa entre a interpretação conferida ao samba por Radamés Gnattali no ano de

1939 e, mais de cinquenta anos depois, a visão musical de Dori Caymmi em relação a esse mesmo

objeto estético.

4.3 Conclusão

Busquei aqui demonstrar como o conceito de brasilidade está envolto em um processo

contínuo de crítica e permanente construção. A síncope, considerada um traço característico da

música brasileira, já é produto de um processo de hibridação, de mistura que pressupõe o encontro e

a fricção entre as culturas europeia e africana em solo americano. Não se trata, portanto, de um

parâmetro autóctone ou de uma característica imanente à “alma brasileira”, e sim de um processo

histórico e sociológico de construção dessa identidade nacional.

Nesse sentido, a escolha do samba como símbolo de brasilidade atendeu a uma agenda do

país, entre outras razões, pela tardia inserção do negro no pacto social. O “Brasil brasileiro”

apresenta-se, assim, como um mito fundacional que se molda perfeitamente ao projeto modernista de

invenção das tradições brasileiras e que seria, logo após, abraçado pelo nacionalismo do Estado

Novo. Não pretendi, com estas reflexões, infirmar que o samba seja uma genuína manifestação da

cultura brasileira. O que busquei foi demonstrar como esta genuinidade é, na verdade, um construto

social, uma opção no contexto da invenção do Brasil.

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CAPÍTULO 5 – O ARRANJO COMO MEIO DE RESSIGNIFICAÇÃO DA OBRA MUSICAL

5.1 Introdução

Passo a seguir à análise de dois arranjos elaborados por Dori Caymmi: da canção-tema do

filme Cinema Paradiso, de autoria de Ennio Morricone, e do samba “Aquarela do Brasil”, de autoria de

Ary Barroso. Com a análise desses dois trabalhos pretendo tornar evidente como a elaboração de

arranjos musicais tem por escopo a interpretação da obra musical, em um processo de

ressignificação inerente à performance.

A canção de Morricone permitirá observar como ocorreu a ressignificação de uma obra

tipicamente europeia, que guarda rudimentos da música erudita composta nos séculos XVIII e XIX, no

contexto da Bossa Nova. A “Aquarela” de Ary Barroso, por outro lado, concebida como um samba

exaltação ao nacionalismo brasileiro, no contexto do Estado Novo, permitirá demonstrar como os

arranjos de Radamés Gnattali e Dori Caymmi conduzem a significações bem distintas.

5.2 A ressignificação de “Cinema Paradiso”

5.2.1 Introdução

Passa-se, a seguir, à análise comparativa de dois arranjos para a canção-título do filme

Cinema Paradiso de autoria do compositor italiano Ennio Morricone. A versão original, cujo arranjo foi

elaborado pelo próprio compositor, integra a trilha sonora da película dirigida pelo italiano Giuseppe

Tornatore. O arranjo de Dori Caymmi faz parte do CD Cinema: a Romantic Vision, criado sob

encomenda do produtor japonês Kas Hori, trabalho onde diversos temas de filmes receberam de Dori

um tratamento original.

A película foi premiada no Festival de Cannes de 1989 e venceu o Oscar de melhor filme

estrangeiro no ano de 1990. O fonograma adotado na pesquisa foi extraído do CD Cinema Paradiso

(Original Motion Picture Soundtrack), gravado sob a regência do próprio compositor.

O filme aborda a amizade do menino Totó (Salvatore) com o velho Alfredo, que

estabelecem uma relação lúdica e lírica, tendo por contexto as sessões diárias do Cinema Paradiso,

única sala de projeção da pequena vila no interior da Itália onde o drama é ambientado. O filme

começa no momento em que Salvatore, já adulto e renomado cineasta residente em Roma, recebe a

notícia do falecimento de Alfredo, fato que desencadeia um processo de reminiscências e de retorno

às origens, que culminará com o sepultamento do velho amigo na já, agora, esquecida cidade natal.

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5.2.2 A versão original de Morricone

O contexto da significação musical da versão original da canção-título é de inocência,

nostalgia e ternura, sentimentos que são evocados pelo diretor Tornatore ao longo de toda a película.

Já de início o roteiro nos propõe uma viagem ao passado, o que tem como ponto de partida o impacto

do telefonema que irrompe o silêncio do sono noturno, para a comunicação do óbito do personagem

Alfredo. A canção, com sua introdução em andamento lento, sugere um paulatino despertar. Com

estruturação muito singela, a forma resume-se à introdução e à exposição de um longo tema,

apresentado em 16 compassos. A cada casa de repetição são acrescentados novos timbres e novas

texturas cada vez mais densas, o que proporciona maior volume ao corpo sonoro a partir de cada

ritornelo. Isso coincide com a densidade emocional das cenas que se sucedem, já ambientadas na

infância do protagonista Totó.

Morricone adota o piano como instrumento-base para o arranjo, com desenhos melódicos

que se apresentam intercalados aos movimentos das notas arpejadas, o que proporciona às duas

mãos do pianista executarem o tema da canção. Esse desenho pianístico é bem característico da

música europeia do séculos XVIII e XIX, em um estilo que remete à escrita dos pianistas

compositores da Europa em atividade nesse período, que tem em Frederic Chopin um de seus

destacados expoentes. Confira-se um exemplo da escrita de Chopin:

Nocturne, Op. 15 No.1

Figura 6 − O tema é apresentado pela mão direita com apoio da voz mais aguda da mão esquerda.

Observa-se que o tema do noturno, que é apresentado pela mão direita do pianista na

região C4 do piano, é dobrado pela mão esquerda na região C3, conferindo ao desenho pianístico

uma grande força melódica. O mesmo recurso é adotado por Morricone na exposição do tema de sua

canção ao piano. Confira-se:

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Cinema Paradiso

Figura 7 − A partir do compasso 4 Morricone adota o mesmo recurso identificado em Chopin, com a melodia na mão direita sendo apoiada pela voz mais aguda da mão esquerda, em intervalo de 3a menor.

Observa-se que, a partir do quatro compasso, Morricone adota o mesmo recurso

identificado no “Noturno” de Chopin. A apresentação da melodia pela mão direita, na região C4 do

piano, é reforçada pela mão esquerda na região C2, com o intervalo de terça-menor ascendente

resultando, na verdade, em um intervalo de décima-menor.

A forma da versão cinematográfica da canção constitui-se, praticamente, de uma introdução

a que se sucedem três partes, idênticas e contínuas, da longa melodia de 16 compassos composta

por Morricone. Essa melodia é reapresentada em três casas de repetição que, após executadas,

conduzem à retomada dos elementos da introdução e, por fim, à barra dupla. A linearidade da forma

é compensada pela sucessiva adoção de diferentes timbres e texturas a cada vez que ocorre o

ritornelo. A apresentação da primeira parte do tema é feita exclusivamente pelo piano, até o

compasso 9. No compasso 10 é acrescentado o quarteto de cordas, com texturas contrapontísticas,

até o compasso 16. A barra de ritornelo está no compasso 17, onde ocorre a performance de toda a

orquestra de cordas, o que segue até o compasso 29. Após a casa 2, no compasso 30, é introduzido

o saxofone alto que segue, em uníssono com a orquestra e o piano, até o final da melodia no

compasso 41, quando ocorre o retardando que culmina na fermata dos compassos 42 e 43.

Por se tratar de um arranjo concebido como trilha sonora cinematográfica, sua estrutura

traduz a linearidade da película, razão por que à medida que são introduzidos novos elementos de

tensão emocional no roteiro há o adensamento das texturas orquestrais, vale dizer, estabelece-se

uma correspondência entre a tensão emocional da película e a complexidade textural do arranjo.

5.2.3 O arranjo de Dori Caymmi

O arranjo de Dori Caymmi extrai da canção significados bem diversos da concepção do

autor. Não se estabelece, em princípio, nenhuma relação entre o arranjo e a película. Com efeito,

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percebe-se que a interpretação de Dori não explora ou procura significar a relação inocente entre o

menino e o velho, pois tanto a melodia quanto o ritmo adotado no acompanhamento são aqui

estruturados com recurso à contramétrica característica da tradição do samba e da Bossa Nova

(SANDRONI, 2012, p. 27). De conotação muito mais corporal do que a concepção europeia de

Morricone, a canção resulta no arranjo quase como uma dança. Um ouvinte que não conhecesse a

versão original, isto é, que não estivesse investido desta pré-compreensão (cf. GADAMER), poderia

supor que se tratasse de uma samba do cancioneiro popular brasileiro.

A utilização da síncope e da quiáltera na reestruturação do acento métrico da melodia

confere ao arranjo um caráter de evidente sensualidade, certamente não almejado pelo autor quando

concebeu o tema como trilha sonora para a relação entre uma criança e um senhor da terceira idade.

Tanto a forma quanto a estruturação harmônica e rítmica são bem contrastantes com a

versão original. Desde a introdução, o violão substitui o piano como instrumento responsável pela

base harmônica, que, tal qual na versão original, estará presente do primeiro até o último compasso

da grade. Em lugar dos arpejos pianísticos chopinianos são utilizados acordes violonísticos

estruturados em bloco, em ritmo sincopado, concentrando-se a contramétrica no terceiro e quarto

tempos do compasso quaternário. A batida do violão adotada por Dori é característica da Bossa

Nova, o que remete ao universo bem brasileiro do violonista João Gilberto. Confira-se:

Figura 8 − A batida do violão estrutura-se sobre síncopes do 3º e 4º tempos.

De fato, o tempo é trabalhado no arranjo de uma maneira muito distinta da versão

cinematográfica da canção, embora autor e arranjador adotem o mesmo compasso quaternário. A

exposição da melodia ocupa, no arranjo, o dobro do tempo da versão autoral, além de serem

utilizadas as quiálteras que rompem radicalmente a simetria dos arpejos pianísticos. Disso resulta

cantar a melodia de uma maneira completamente nova. Vejamos:

Baixo elétrico

Sintetizador

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Baixo elétrico

Sintetizador

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Cinema Paradiso Arr. Dori Caymmi Ennio e Andrea Morriconi

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Figura 9 − Escrita de Morricone, com acentuação das notas mi bemol e dó, dos tempos 1 e 3, dos grupos simétricos de 4 colcheias.

Figura 10 − Escrita de Caymmi, com o deslocamento da acentuação para a nota ré do 2º compasso, em grupos assimétricos, ora de três semínimas em quiálteras, ora em duas semínimas planas.

Outro aspecto de grande distinção entre as duas interpretações da canção é a

apresentação do tema na voz grave de Dori Caymmi, em uma oitava abaixo do registro pianístico da

versão original. O piano apresenta o tema na região C4 da escala, enquanto Dori, um barítono, o

entoa na região C2. O recurso à voz masculina na primeira exposição do tema, articulada com muito

rubato, somado às quiálteras da melodia e às síncopes do violão, tudo isso converge para a ruptura

com qualquer alusão à origem europeia da obra musical, aqui integralmente “abrasileirada” e

ressignificada ao estilo da Bossa Nova.

O arranjo soma 86 compassos, em um total de 3’43”, ao passo que a versão original totaliza

43 compassos, com a duração de 3’. A tonalidade da canção, Bb maior, foi alterada no arranjo para D

maior. Na terceira e última exposição do tema a tonalidade modula ascendentemente uma terça-

menor, para F maior, na qual persiste até o final do arranjo. Essa modulação confere a esse trecho do

arranjo um expressivo caráter de ascensão, com o tutti das cordas e a introdução de texturas

polifônicas que, na planificação do arranjo, são feitos coincidir com a modulação.

Quanto aos elementos que estruturam a introdução na canção original, observamos que

Dori Caymmi transformou o que era arpejo na estrutura do acorde adotado no acompanhamento. De

fato, quer nos arpejos pianísticos, quer nos blocos de notas percutidos do violão temos o acorde

maior com o baixo em nona, ao que Dori Caymmi acrescentou a alternância da quarta justa, criando

maior tensão em decorrência da suspensão harmônica obtida pelo acordo Dsus4:

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Figura 11 − Introdução original, com o arpejo de BbM9.

Figura 12 − Seção “A” do arranjo, com acordes que alternam DM9 e D(sus4)9.

Do cotejo entre os trechos musicais acima transcritos, extrai-se que a estrutura arpejada

sobre o acorde de BbM9, isto é, esse termo musical (cf. MEYER), foi ressignificado na batida

sincopada no violão, com a alternância entre os acordes de D9M/E e Dsus4(9)/E. Esse padrão será

adotado na base harmônica ao longo de todo o arranjo, como um elemento de redundância

perceptual (cf. MEYER), assumindo um papel no todo muito mais relevante do que o de mera

introdução, ponte ou passagem que observamos na forma original.

O arranjo de Dori apresenta a melodia em uma estrutura típica da canção popular, o que

contrasta com a estética mais “erudita” de Morricone. A singela introdução original passa, como

vimos, a ter um papel estrutural, desenvolvendo-se ao longo dos oito primeiro compassos, razão por

que podemos considerá-la a parte “A” do arranjo. Essa seção será, ao longo da performance,

retomada quer como elemento central, quer como conclusão, para compor uma espécie de rondó.

A primeira exposição da melodia ocorre a partir do compasso 9, na voz de Dori Caymmi, o

que identificaremos como seção ou parte B, prolongando-se até o compasso 30. O retorno à

introdução, no compasso 31, traz a textura homofônica (cf. PISTON, 1984, p. 377) no naipe de

cordas, com a utilização da técnica de harmonização em blocos de violinos e violas até o compasso

35, o que, dadas as características distintas da primeira exposição da seção A, podemos designar

como A2. A partir do compasso 35 há a segunda exposição do tema, a seção B2, agora entoada

pelos cellos em uníssono real com a voz masculina, o que durará até o compasso 38. Mantém-se

discreta participação dos violinos e violas, aqui desenvolvendo contracantos passivos que não

chegam a configurar uma textura polifônica, mas sim uma textura com melodia secundária.

No compasso 39 ocorre uma surpreendente assimetria no arranjo, quebrando-se a

expectativa quanto à organização de suas seções estruturais. Com efeito, ao contrário do que seria

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esperado, não há o retorno à seção A, passando-se imediatamente à reexposição da melodia por

todo o naipe de cordas, em uma seção B3. Essa assimetria ocorre simultaneamente à modulação da

tonalidade, de D maior para F maior. A quebra de expectativa, tanto pela ruptura com a forma que

vinha até então sendo adotada (de alternância entre A e B), somada à modulação ascendente,

constituem um elemento de surpresa que confere a essa passagem grande significação musical (cf.

MEYER). Não por acaso, percebe-se esta passagem como como o ápice de tensão lírica e emocional

do arranjo. A partir do compasso 75, com o retorno da voz de Dori, observa-se uma curva de tensão

descendente, com a adoção do andamento retardando e da redução da dinâmica. A essa seção (B3)

sucede-se a última parte do arranjo (A3, compasso 79) até a barra dupla do compasso 86. A

assimetria pode ser resumida na seguinte expressão: A-B-A2-B2-B3-A3.

O maior número de compassos do arranjo decorre do fato de os elementos que compõem a

introdução da versão original assumirem, como afirmou-se anteriormente, um papel muito mais

relevante no arranjo. De fato, esse termo musical (cf. MEYER), é adotado por Dori também como

uma introdução, mas repetido na porção central, como uma ponte, e novamente após a última

exposição do tema. Ademais, Dori agrega ao termo musical uma outra significação, completamente

original em relação a Morricone, por se tratar de fragmentos melódicos do refrão “Oh, Dandá”, da

canção “Estrada Branca”, de Antonio Carlos Jobim.

Com efeito, a linha melódica original, que nada mais era do que o resultado das notas

arpejadas do acorde de si bemol maior com nona, assume no arranjo um desenho que evoca a

seguinte melodia de autoria de Antonio Carlos Jobim:

Figura 13 − Os elementos melódicos da introdução remetem a “Oh, Dandá”, de Antonio Carlos Jobim, aqui transcritos na forma original.

No arranjo, esse desenho melódico é apenas insinuado na introdução e na seção central,

pelo contrabaixo elétrico. Na seção final ele é claramente entoado por todo o naipe de cordas:

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Introdução

Figura 14 − A primeira citação do refrão de “Estrada Branca” (de Jobim) ocorre na introdução, pelo baixo elétrico.

Na seção final o mesmo elemento é explicitamente executado pelas cordas:

Figura 15 − O mesmo elemento é repetido na seção central, pelos violinos, e explicitado na seção final.

5.2.4 Conclusão

O arranjo de Dori parte de pressupostos bem distintos da versão original de Morricone,

distanciando-se completamente do enredo cinematográfico. De fato, uma canção que suscitasse um

romance não seria, no contexto do filme, adequada à trilha sonora. No novo contexto adotado por

Dori há a ressignificação musical da canção, vale dizer, dentre os múltiplos significados potenciais,

inerentes ao feixe de atributos desse mesmo objeto estético (cf. COOK), emerge outro significado,

distinto do original. Os significados extraídos da canção por Dori afastam-se da nostalgia adotada por

Morricone, vale dizer, ocorre a ressignificação da canção, assumindo um caráter romântico e sensual.

São significados efetivos bem diferentes, que, por isso mesmo, são aqui expressos verbalmente em

sentidos também contrastantes. Não por acaso, o nome do CD para o qual Dori Caymmi concebeu

esse trabalho é Cinema: a Romantic Vision.

Ora, o fato de o acento métrico ser moldado de uma maneira completamente nova no

arranjo, sem, contudo, descaracterizar a melodia, ao contrário, tornando-a mais explícita, confirma os

conceitos de ressignificação aqui manejados com fundamento em Cook e Eco. É que se percebe

como a forma musical está, de fato, aberta a múltiplas integrações, apresentando-se a versão original

com um roteiro (script) que pode ter seu curso alterado pelo intérprete para extrair da canção

significados sequer imaginados pelo compositor. Há um campo de ampla liberdade para que os

elementos formais, tais como timbre, acentuação, andamento, ritmo etc., sejam (re)trabalhados para

a performance.

Vemos, claramente, que a versão original foi adotada por Dori como um mero ponto de

partida, sem nenhuma preocupação em preservar a performance original contida na trilha sonora. A

melodia foi, nesse sentido, ressignificada ao ponto de ter alterado seus elementos estruturais,

Introdução-Baixo Elétrico

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1o. Violino

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mediante o deslocamento do acento métrico. Essa ressignificação não tem, contudo, o condão de

subtrair a Morricone a autoria dessa melodia ou desta canção: afirmar o contrário seria coonestar um

plágio.

A comparação da versão original da canção “Cinema Paradiso” e o arranjo de Dori Caymmi

permitiu, por conseguinte, explicitar a ressignificação dessa obra musical sob os quatro referenciais

teóricos anteriormente apresentados. É que a interpretação de Dori parte de pressupostos diferentes

dos adotados por Morricone, isto é, há uma outra pré-compreensão, como esclarece Gadamer, o que

possibilita situar o objeto estético no contexto sensual da Bossa Nova, em contraste com a inocência

da versão cinematográfica que tinha por contexto a amizade entre o velho e o menino.

A possibilidade de obter, de um mesmo objeto estético, significações tão distintas

demonstra o acerto da ponderação de Eco, de que a obra de arte é uma mensagem essencialmente

ambígua e polissêmica, sujeita a diversas integrações em face da abertura que lhe é inerente. A

interpretação de Dori, embora suscite questões estéticas e emocionais muito contrastantes com a

forma original de Morricone, não chega ao ponto de descaracterizar a identidade da canção, isto é,

não avança ao ponto de que esta obra, e não outra, esteja ali identificada.

Na perspectiva de Cook, a ressignificação empreendida por Dori nada mais é do que

emersão de um significado efetivo dentre os múltiplos significados potenciais da obra musical. O que

é, na versão original, um acalanto inocente composto para embalar a relação entre Totó e Alfredo

transforma-se em um samba sincopado e sensual, típico da Bossa Nova, de feição explicitamente

romântica. Não se pode afirmar qual o significado inerente ou imanente à canção, mas percebe-se

que compositor e arranjador extraem significações bem distintas da mesma forma musical. Disso

podemos constatar o acerto da afirmação de Cook, pois a partitura original de Morricone serve como

um mero script em relação a múltiplas possibilidades de interpretação dessa canção.

No que tange aos aspectos estruturais, observamos como Dori retrabalha os termos

musicais, reposicionando-os ao longo do arranjo, como forma de manter certo nível de redundância

perceptual, de modo que o arranjo não se distancie além do limite identitário da canção. Os conceitos

de Meyer auxiliam-nos a elucidar como o arranjador opera o distanciamento da forma original,

mediante a introdução de termos musicais que surpreendem o ouvinte conhecedor da versão original,

com a consequente ressignificação da canção. Por outro lado, constatamos que a denominada

redundância perceptual é obtida não apenas pela adoção de determinados termos musicais ao longo

do arranjo, bem como pelo retrabalho de fragmentos de ideias do próprio compositor, o que garante

ao ouvinte reconhecer no arranjo a canção original. Com isso mantêm-se níveis mínimos de

redundância perceptual e, por conseguinte, a identidade da canção.

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5.3 A ressignificação de “Aquarela do Brasil”

5.3.1 Introdução

Como vimos anteriormente, o samba “Aquarela do Brasil” está desde sua gênese associado

ao “Estado Novo” e ao apoio governamental conferido a esse gênero musical como símbolo de

brasilidade: a atuação dos governos de Getúlio Vargas (incluindo o período ditatorial do Estado Novo)

foi firme em seu apoio, oficial ou não, ao samba e ao carnaval (VIANNA, 2012, p. 124). Com efeito, a

melodia sincopada de Ary Barroso somada à exaltação nacionalista dos versos moldavam-se como

uma luva ao projeto nacionalista do Estado Brasileiro que se instaurara no país a partir da década de

1930. A letra do samba tem explícito caráter ufanista, para a afirmação da cultura nacional, algo que

fazia parte da agenda política da época, como afirma Vianna (2012, p. 125): [...] estão como que

condensadas várias ideias do nacionalismo triunfante no país, incluindo suas conotações “populares”,

o repúdio à influência estrangeira e o elogio da “novidade” (vencedora no futuro) da cultura brasileira.

Esses aspectos da questão já foram detidamente analisados no capítulo anterior.

Propõe-se a seguir a comparação entre os arranjos elaborados por Radamés Gnattali e Dori

Caymmi em dois momentos muito distintos da vida nacional, para deles extrair, segundo a visão de

cada um dos arranjadores, o significado nacionalista perseguido por Ary Barroso na versão original

de Aquarela do Brasil. O arranjo de Radamés, elaborado para o cantor Francisco Alves, é

praticamente contemporâneo à composição. Sua repercussão, à época, foi tamanha, nacional e

internacionalmente, que, como vimos no capítulo anterior, o arranjo de Radamés passou a ser

confundido com a versão original do samba.

O arranjo de Dori Caymmi para a mesma canção foi elaborado no ano de 1993, mais de

meio século após a conclusão do trabalho de Radamés. O contexto é bem distinto do Rio de Janeiro

dos anos 1930, pois já residia, na década de 1990, nos Estados Unidos da América, precisamente na

cidade de Los Angeles, Califórnia. Atendendo a encomenda do produtor norte-americano Quincy

Jones, Dori Caymmi gravou três trabalhos nesse período, nos Estados Unidos, mesclando

composições próprias e arranjos originais para músicas brasileiras e norte-americanas, entre elas o

famoso samba de Ary Barroso. Esse arranjo de Aquarela do Brasil está no CD Kicking Cans, lançado

no mesmo ano de 1993 pela gravadora Qwest Records.

O que se pretende a seguir, com a análise comparativa dos dois arranjos, é demonstrar

como a interpretação de uma mesma obra musical pode redundar em significados bem distintos,

decorrentes do contexto em que se encontrava cada arranjador e de seus preconceitos em relação à

obra musical, influindo no resultado de sua interpretação. No caso de “Aquarela do Brasil”, a questão

é saber como ocorreu, em cada caso, a ressignificação musical da brasilidade e do ufanismo

evocados por Ary Barroso, o que poderá redundar em resultados surpreendentes nas visões de

Radamés Gnattali e Dori Caymmi.

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É interessante anotar, por fim, que apesar da distância entre as datas de elaboração dos

dois trabalhos, Dori Caymmi e Radamés Gnattali foram contemporâneos de Ary Barroso, com quem

tiveram contato direto: Radamés era colega de Ary Barroso na Rádio Nacional e ambos eram

habituais frequentadores da família Caymmi, amigos do patriarca Dorival Caymmi, personagens com

quem Dori teve oportunidade de travar intenso contato pessoal.

5.3.2 A “Aquarela do Brasil” de Radamés Gnattali

Em sua tese de doutorado, denominada Aquarelas musicais das Américas, Rafael Henrique

Soares Velloso (2015, p. 97) afirma que o contato de Radamés Gnattali com músicos populares

cariocas, a partir de 1931, ano em que se fixou definitivamente na então Capital Federal, foi

fundamental [...] tanto para a assimilação das características rítmicas, harmônicas e melódicas da

música popular como para a construção da sua narrativa como compositor nacionalista e arranjador

de trilhas sonoras para o rádio. Como ressalta o autor, a atuação de Radamés como arranjador na

empresa RCA Victor – gravadora norte-americana estritamente vinculada ao projeto de integração

pan-americana entabulado pelos Estados Unidos da América durante a 2ª Guerra Mundial − foi

estratégica para possibilitar ao Maestro assumir protagonismo nas produções musicais responsáveis

pela projeção da identidade musical nacional em solo estrangeiro.

Em seu artigo sobre os arranjos brasileiros de Radamés Gnattali, Oliveira e Martins (2006,

p. 186) ressaltam o vanguardismo do maestro ao introduzir, em trabalhos elaborados para os

cantores Orlando Silva e Francisco Alves, naipes de sopros e cordas, alterando profundamente a

sonoridade das gravações realizadas no final da década de 1930. A partir do revolucionário arranjo

de “Aquarela do Brasil”, selecionado para representar o Brasil na Feira Internacional de Nova York de

1939, Radamés inovou por promover grandes alterações na forma da composição original, com o

acréscimo de introdução, melodias secundárias, modulações e variação na estruturação harmônica,

além de explorar os aspectos rítmicos com os instrumentos melódicos. Essa grande inovação

proposta por Radamés, como apontam Oliveira e Martins (2006, p. 187), foi a utilização da síncope

do samba nos naipes de sopro da orquestra, a fim de obter dessa seção um efeito tipicamente

percussivo.

Passarei a seguir à análise de aspectos orgânicos do arranjo de “Aquarela do Brasil”

elaborado por Radamés Gnattali, sem a intenção de transcrevê-lo integralmente no pentagrama, com

o escopo de identificar, em seus aspectos estruturais, a significação do nacionalismo que se atribui a

esse trabalho

A forma adotada pelo arranjo de Radamés tem na letra do samba um parâmetro

predeterminado, pois se trata, em princípio, como foi dito anteriormente, de acompanhar a

performance do cantor Francisco Alves. A estrutura apreendida a partir da audição do fonograma é a

seguinte:

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1) 0” a 15’’ (compasso 1 a 6) – A introdução instrumental, iniciando-se em anacruse, com a

adoção do compasso quaternário (4/4), na tonalidade da “A” bemol maior. A introdução instrumental

está estruturada em quiálteras e é executada pela seção de metais e palhetas. Há o destaque para o

timbre da clarineta que aparece sobreposto aos saxofones. Traduz-se aqui a sonoridade típica do

contexto em que o arranjo foi elaborado, com clara influência das grandes orquestras jazzísticas em

atividade nas rádios do país à época (FRANCESCHI, 2002, p. 295). A introdução termina em

ralentando.

Figura 16 – A introdução instrumental do arranjo remete à sonoridade típica das grandes orquestras em atividade nas rádios do país na década de 1930.

2) 0’16’’ a 0’33’’ (compasso 6 a 10) – Apresenta-se o tema na voz do cantor Francisco

Alves, ainda em compasso quaternário, com uma textura orquestral típica de melodia e

acompanhamento. As partes dos metais estão harmonizadas em blocos de acordes, sem

descaracterizar a homofonia dessa seção, para a apresentação do tema em andamento lento e em

tom solene:

Brasil Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos.

Figura 17 − Os primeiros versos são introduzidos ainda no compasso quaternário, com a estruturação da melodia entoada pelo cantor em quiálteras.

3) 0’34’’ a 0’44” (compasso 11 a 28) – A divisão rítmica do arranjo passa a ser binária, com

a adoção do compasso 2/4. Acrescenta-se a seção de percussão da orquestra, tendo por base

harmônica as palhetas que continuam a harmonização em bloco, ao que se acrescentam os metais

em contracanto passivo.

O Brasil, samba que dá Bamboleio, que faz gingar; O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil!... Brasil!... Prá mim!... Prá mim!...

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Figura 18 − Os metais executam o contracanto passivo, aqui representado pela melodia notada a partir do compasso 9 dessa transcrição.

4) 0’57’’ a 1’02’’ (compassos 29 a 32) – Concluída esta 1ª parte do samba, é elaborada uma

nova transição, uma ponte, para a seção seguinte, termo musical esse que, de tão marcante, ficaria

identificado definitivamente com a composição original de Ary Barroso. Esse elemento melódico do

arranjo consiste na sucessão sincopada das notas Eb, E e F. Essas notas são a quinta, sexta-menor

e sexta maior do acorde de Ab:

Figura 19 − As notas que compõem esse fragmento melódico e rítmico foram retiradas da quinta, sexta menor e sexta-maior do acorde de Ab6. Observe-se sua interação com a melodia a partir do compasso 18 da figura

anterior.

5) 1’02’’ a 1’23’’ (compassos 33 a 40) − Quando o cantor entoa o verso “ô, abre a cortina do

passado”, esse termo melódico é mantido ao longo de todo o período, quase como um ostinato, o que

confere ao arranjo um forte caráter de exaltação, ascendendo em uma segunda maior no mesmo

movimento da harmonia que passa para o acorde de Bbm7. Esse motivo melódico suscita uma

ambiguidade entre o modo maior e menor da tonalidade de Ab, pelo movimento cromático que alterna

a quinta do acorde, a sexta-menor, por empréstimo do modo menor, e a sexta-maior pertencente ao

centro tonal. O recurso ao empréstimo modal nesse motivo melódico pode ser considerado tanto uma

influência jazzística do blues norte-americano quanto do impressionismo francês, duas vertentes

culturais de confessada influência no trabalho de Gnattali.

Esse termo musical funciona tanto como contracanto para a melodia quanto como um pulso

rítmico para a naipe de percussão, pontuado com notas em estacato emitidas pelos trompetes. No

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final dessa seção, a repetição da palavra Brasil traz o acréscimo do coro, estruturado em uníssono

com a voz principal, o que também nos remete a um sentido de exaltação da nacionalidade.

Ô, abre a cortina do passado; Tira a mãe preta do cerrado; Bota o rei congo no congado. Brasil!... Brasil!...

Figura 20 − A 1ª Voz, nesta transcrição, representa a melodia do samba, cantada por Francisco Alves. A 2ª Voz

refere-se à linha melódica dos metais, com estruturação sincopada, o que é considerado um marco na orquestração popular brasileira.

6) 1’24’’ a 2’15’’ (compassos 41 a 87) − Na segunda parte do samba, esses elementos

sincopados são mantidos, o que tem início aos 1’24’’. Há um diálogo entre o cantor e as palhetas, que

pode ser resumido na transcrição do seguinte fragmento:

Deixa cantar de novo o trovador À merencória à luz da lua Toda canção do meu amor. Quero ver essa Dona caminhando Pelos salões, arrastando O seu vestido rendado. Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!..

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Figura 21 − Na 2ª Parte do samba o naipe de sopros, aqui representado na 2ª voz, persiste no contracanto sincopado, até o seu encerramento com uma escala cromática ascendente estruturada em quiálteras, à

semelhança do que ocorrera na introdução do arranjo.

7) A seção é uma repetição da apresentação do tema do samba, tal como descrito no item 2

acima, agora para a performance exclusivamente instrumental da clarineta. Adota-se aqui novamente

o compasso para permitir ao intérprete apresentar a melodia de maneira acentuadamente cantabile.

O protagonismo da clarineta revela-se até mesmo na modulação em uma 2ª Maior ascendente, para

o tonalidade de Bb, mais adequada à performance desse instrumento transpositor. Esta seção é

simétrica às descritas nos itens 1 e 2 acima, com grande destaque de todo o conjunto de sopros.

8) A seguir o arranjo retorna à tonalidade inicial, com a integral reapresentação instrumental

das duas partes do samba, tendo o naipe de metais como solista, o que repete os elementos

estruturais dos itens 3 e 4.

9) Na exposição instrumental da 2ª parte do samba há grande alternância nos instrumentos

solistas em clara intenção de expor todos os recursos de timbre do conjunto orquestral.

10) Exatamente aos 4’00’’ o cantor retoma a exposição dos versos do samba, à semelhança

do que foi descrito a partir do item 2 acima, como um autêntico ritornelo:

Brasil, terra boa e gostosa Da moreninha sestrosa De olhar indiferente.

O Brasil, verde que dá Para o mundo admirar. O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!...

Esse coqueiro que dá coco, Onde eu amarro a minha rede Nas noites claras de luar. Ô! Estas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede

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E onde a lua vem brincar. Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro É o meu Brasil Brasileiro, Terra de samba e pandeiro. Brasil!... Brasil!

11) Após a longa e complexa exposição de todo o material composicional, o arranjo termina

abruptamente, aos 5’45’’, em um glissando dos metais em movimento ascendente, realizando a

cadência harmônica perfeita entre a dominante (Eb) e a tônica (Ab).

12) Da análise dos elementos estruturais do arranjo percebe-se que Gnattali conferiu à

Aquarela do Brasil um caráter nitidamente orquestral, com a inclusão de instruções e interlúdios a fim

de possibilitar a performance da melodia não apenas pelo cantor, mas por todo o conjunto de

instrumentos. Isso possibilitou aos sopros a performance da rítmica sincopada do samba. Além disso

foram utilizadas texturas mais complexas do simples acompanhamento da melodia entoada pelo

cantor pela orquestra, explorando-a a partir de diversas combinações contrastantes, como se

pretendesse expressar as diversas cores de uma mesma aquarela. Por fim, a ponte criada por

Gnattali entre a 1ª e 2ª parte do samba, fortemente sincopada, conferiu ao arranjo o caráter de

exaltação nacionalista evocado pelo contexto histórico no qual foi concebido.

5.3.3 A ressignificação da “Aquarela do Brasil” por Dori Caymmi

O arranjo elaborado por Dori Caymmi para a “Aquarela do Brasil” está registrado no CD

Kicking Cans, gravado no ano de 1993 na cidade de Los Angeles, Califórnia, nos Estados Unidos da

América, onde Dori já residia desde o início da década de 1990. A performance foi gravada com a

participação do cultuado pianista de jazz Herbie Hancock.

A forma adotada no arranjo de Dori tem na letra do samba um parâmetro secundário, pois

se trata aqui de uma performance instrumental que tem não o cantor, mas o pianista como o principal

personagem. De fato, a primeira parte do samba foi aqui eliminada e a letra nas demais partes foi

quase integralmente omitida, dando-se relevo apenas ao fragmento do último verso da segunda

parte: “Brasil pra mim”. A forma original da obra musical, portanto, que era em três partes, foi

reduzida a uma estruturação binária.

Passarei a seguir à análise de aspectos orgânicos do arranjo, sem a pretensão de

transcrevê-lo integralmente no pentagrama, com o escopo de identificar em seus aspectos estruturais

a ressignificação do nacionalismo.

1) 0” a 3’’ (compassos 1 e 2) Introdução – O arranjo inicia-se em anacruse, apenas com a

bateria e a percussão, em uma levada de partido-alto, com a marcação do surdo, do bumbo e do

chimbal. A tonalidade escolhida foi C Maior, a mais conveniente para a improvisação pianística, e o

compasso é de 2/4.

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2) 0’4’’ a 0’29’’ (compassos 3 a 15) – No terceiro compasso já entram o violão e o piano,

anunciando uma harmonização por acordes suspensos, de nítida construção quartal. O contrabaixo

executa um pedal na nota sol, acentuando o caráter de suspensão harmônica que será adotado ao

longo de todo o arranjo. Esta seção, para efeito da presente análise, assume a seguinte

representação no pentagrama:

Figura 22 − O caráter grave do arranjo revela-se no seu registro na região C2 do piano. A partir do compasso 6 (da representação acima) observa-se a citação da famosa ponte introduzida por Gnattali em seu arranjo

analisado acima. O baixo executa o pedal harmônico na nota G1.

Observe-se que o caráter grave desta passagem do arranjo acentua-se no seu registro

predominante na região C2 do piano. A partir do 6º compasso da transcrição acima, Dori Caymmi cita

o famoso motivo melódico de Radamés Gnattali que ficou identificado com o arranjo elaborado em

1939. O que era uma ponte entre a primeira e a segunda parte do samba aqui serve como a

introdução do arranjo, pois a primeira parte da melodia foi integralmente suprimida.

A divisão rítmica adotada por Dori é também diferente da concebida por Gnattali, o que

confere a esse termo musical um significado distinto nesse novo contexto em que o caráter sincopado

é exacerbado pela supressão do acento rítmico da cabeça do tempo:

Gnattali

Caymmi

3) Esse termo musical será utilizado por Dori em todo o arranjo como um elemento de

redundância perceptual (cf. MEYER), quer para a configuração e o reconhecimento da nova forma

musical por ele proposta, quer para permitir a identificação da forma original concebida pelo

compositor. O piano, no quinto compasso, alterna acordes suspensos de quarta com improvisações

melódicas que acentuam o caráter modal desta seção introdutória, enquanto o violão e o baixo, em

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background, introduzem o contracanto original de Gnattali, estruturado sobre a quinta, sexta-menor e

sexta maior do acorde, aqui representadas nas notas G, Ab e A do acorde de C Maior. Essas notas

estão posicionadas na quarta dos acordes transcritos no pentagrama:

Figura 23 − Os elementos do contracanto original estão representados na quarta dos acordes acima, exatamente as notas G, Ab e A do centro tonal de C Maior.

4) 0’30’’ (compasso 16) – A melodia é apresentada em vocalise por Dori Caymmi, sobre a

mesma harmonização em quartas, com a acentuação do caráter sincopado da melodia. De toda a

letra do samba é pronunciada apenas o verso “Brasil pra mim, Brasil”. O piano continua em

contracanto, em linhas improvisadas de forte expressão melódica, desenvolvendo fragmentos do

tema central da canção. Transcreve-se a seguir parte da linha melódica e do acompanhamento

contramétrico do violão:

Figura 24 − À semelhança de Gnattali, Dori mantém o contracanto sincopado como acompanhamento da melodia que aqui merece tratamento ainda mais contramétrico.

5) Esta seção é repetida, mantendo-se ainda a levada de partido-alto, com menor

intervenção melódica da improvisação pianística, agora mais estruturada em acordes, e com maior

destaque para o vocalise, que entoa novamente o bordão da canção “Brasil para mim”, encerrando

aqui a primeira parte do arranjo. O violão e o piano persistem no mesmo contracanto da introdução.

7) 1’47’’ – Inicia-se a segunda parte do arranjo, com a introdução do sintetizador,

acrescentando uma textura homofônica de harmonização em bloco para o acompanhamento da

melodia executada ainda em vocalise. Durante toda esta seção o contracanto é executado com

grande vigor pelo piano, em linhas improvisadas na região aguda, que se alternam com blocos de

acordes na região média do instrumento, regiões claramente utilizadas para contrastar com o registro

grave do vocalise que, tal qual ocorreu na seção anterior, termina com o verso “Brasil pra mim,

Brasil”.

8) 2’57’’ (compasso 49) − A terceira parte do arranjo destina-se à improvisação pianística,

com a redução da forma, pois o piano improvisa apenas sobre a parte B. Há algumas incursões

esparsas do vocalise e do sintetizador, reforçando também aqui os registros graves.

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9) Observe-se que foi dada ampla liberdade de improvisação ao pianista, que demonstra

grande virtuosismo e energia em sua performance, o que permite situá-la, dentro da estrutura do

arranjo, como o ponto alto (clímax) dessa interpretação.

10) 5’05’’ (compasso 83) − E é sobre a base harmônica da parte A que se estrutura,

também, a última e quarta parte do arranjo, que, similar à introdução, reforça o contracanto do arranjo

de Gnattali, restrito agora às notas Bb e B, o que reforça o caráter de desconstrução da melodia e da

harmonia nesta seção, e o sentido de esvaziamento das texturas que foram adotadas na parte central

do arranjo:

Figura 25 − Na seção final do arranjo, o bordão de Gnattali é fragmentado com maior destaque para as notas Bb e B.

11) Esvazia-se a instrumentação gradativamente e cada um dos instrumentos é retirado.

Inicialmente o sintentizador, depois o violão, o baixo elétrico e, por fim, o piano e a voz, restando

apenas a percussão até a barra dupla.

12) Dos elementos estruturais do arranjo extrai-se como Dori Caymmi conferiu à “Aquarela

do Brasil” um caráter nitidamente instrumental, pela adoção de uma estética mais próxima do jazz do

que do samba, em que a improvisação do pianista assume papel preponderante na performance.

Coerente com esta opção estética, é mantida a suspensão harmônica durante todo o arranjo, pela

larga utilização de acordes com intervalos de quarta justa, o que confere grande tensão ao trabalho.

Há no arranjo uma clara alusão ao trabalho de Radamés, pois o contracanto elaborado por

ele no ano de 1939 é adotado por Dori Caymmi como um elemento de redundância perceptual,

executado continuamente pelo violão durante praticamente toda a performance. O caráter sincopado

da melodia, que em Radamés foi transposto para o naipe de sopros da orquestra, é aqui exacerbado

para conferir a esta interpretação de conotação jazzística o suingue de um samba de partido-alto. A

exacerbação da utilização da síncope confere a esta performance um caráter mais contramétrico do

que o resultado obtido por Radamés Gnattali.

5.3.4 Conclusão

Os arranjos de Gnattali e Caymmi extraem significados distintos e contrastantes do samba

“Aquarela do Brasil”, inclusive no que se refere à expressão do nacionalismo. A interpretação de

Radamés exacerba o sentido de exaltação ufanista, contido já na versão original de Ary Barroso, e

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tem nos versos do samba um parâmetro programático. Em torno da letra foi estruturado o arranjo,

mediante o acréscimo de introduções, interlúdios e da performance de sua melodia em seções

instrumentais. Dori Caymmi, diversamente, não adota a letra como um parâmetro formal, optando por

apresentar a melodia do samba em vocalise, limitando-se a pronunciar o verso “Brasil para mim”. O

significado do nacionalismo assume aqui uma perspectiva intimista e subjetiva. A visão expressionista

de Radamés busca compor um retrato exuberante do país, o que serviu perfeitamente ao projeto

nacionalista do Estado Novo de Getúlio Vargas, no final nos anos 1930, contexto em que o arranjo foi

elaborado. A visão impressionista de Dori retrata a crise desse mesmo ideário nacionalista no

governo de Fernando Collor, no início dos anos 1990, em que o Brasil se viu envolto em episódios de

corrupção que redundaram na renúncia do Presidente da República.

São duas perspectivas distintas que conduzem a resultados contrastantes, decorrentes da

diversidade dos contextos em que foram gestadas. O arranjo de Radamés, concebido em solo

brasileiro, tinha por escopo expor um retrato exuberante do Brasil para o mundo, como parte da

agenda governamental de inserção do país na comunidade internacional. O arranjo de Dori,

concebido em solo norte-americano, buscava retratar toda a indignação do artista brasileiro pelo

fracasso dessa mesma agenda nacional. São esforços diferentes: Radamés buscava mostrar o Brasil

lá fora; Dori tentava compreendê-lo lá de fora. O que fora concebido como um panfleto ufanista

transformou-se em uma elegia cívica, cujo traço fúnebre está representado desde o início do

fonograma, quando a marcação solene do surdo faz clara alusão ao ritual de exéquias que sucede a

morte de um grande sambista nos morros cariocas.

A diferença da instrumentação adotada nos dois arranjos retrata também o contraste entre

as perspectivas do nacionalismo de Radamés e Caymmi. Toda a exuberância orquestral do primeiro

arranjo, com grande destaque para o naipe de sopros, sobretudo em sua parte central, é reduzida à

performance por um combo popular, composto por percussão, bateria, contrabaixo, violão, piano e

voz. O destacado papel que Radamés atribui à orquestra e à seção de sopros é deslocado, por Dori,

para a terceira e última parte do arranjo, na qual ocorre a improvisação do pianista Herbie Hancock.

De fato, nas duas primeiras partes, Dori apresenta uma surpreendente concepção melódica,

harmônica e rítmica para o samba, para que, na terceira parte, todo esse material seja utilizado como

base para a improvisação do pianista. Esse encontro resulta em um autêntico processo de

hibridação, em que samba e jazz se fundem e confundem, uma colaboração recíproca entre Dori

Caymmi e Herbie Hancock em que nenhum dos dois renuncia às suas raízes culturais: o resultado é,

ao mesmo tempo, jazz e samba.

O fato de os dois trabalhos terem sido concebidos em contextos tão diferentes e sob

perspectivas tão distintas, ao contrário do que se pode supor, aproxima os dois arranjadores. É que

em ambos observa-se a busca por uma visão cosmopolita, de diálogo entre culturas, de abertura

diante da diversidade musical. O que hoje é tido como uma sonoridade típica do Brasil foi, como

vimos, motivo de severas críticas a Gnattali, por supostamente americanizar o samba. Dori Caymmi,

ao exacerbar esse diálogo, coloca-se como o legatário dessa tradição de arranjadores que, embora

ciosos da importância de preservar suas raízes culturais, estão sempre abertos às influências do

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mundo e da modernidade. Indivíduos que, conhecendo a fundo o passado, são senhores de seu

tempo e almejam o futuro.

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CAPÍTULO 6 – CONCLUSÃO GERAL

Dori Caymmi é um personagem central para compreender a construção do conceito de

música popular brasileira no século XX. Filho de Dorival Caymmi, interagiu ainda menino com os

artistas da geração de seu pai, responsáveis pela invenção da identidade nacional, por forjar a ideia

de um Brasil brasileiro indispensável à inserção do país no concerto das nações durante as primeiras

décadas dos anos 1900. Sua formação musical ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito

Federal, no berço da nascente consciência nacional, sob a influência de personagens centrais da

cultura brasileira.

Iniciou sua carreira musical aderindo à Bossa Nova e, logo a seguir, participou ativamente

dos denominados Festivais da Canção, contexto do qual brotaria a moderna música popular urbana

brasileira, designada pela sigla MPB. Após intensa atuação junto à televisão, ao cinema e ao teatro,

Dori Caymmi migra para os Estados Unidos da América, onde se fixa como arranjador, compositor,

violonista e cantor, colaborando com alguns dos maiores expoentes da música norte-americana.

Paralelamente a isso estabelece intensa parceria com o poeta Paulo César Pinheiro, para criar

canções com indisfarçável característica regionalista, nas quais busca retratar o Brasil rural, nativo,

dos rios, das florestas e dos pássaros, fincado em raízes que antecedem até mesmo as referências

estéticas de seu pai, Dorival Caymmi. Coloca-se, assim, como um indivíduo, ao mesmo tempo,

centrado na modernidade e guardião de uma concepção telúrica de nação. Percorre, nesse sentido,

um caminho de contínua ressignificação pessoal, para a construção de uma identidade a um só

tempo provinciana e cosmopolita.

Sua atividade como arranjador traduz a natureza híbrida da cultura brasileira, bem como da

personalidade de um artista nela plenamente inserido. Os dois arranjos analisados trilham caminhos

opostos que convergem, cada qual à sua maneira, à ressignificação da obra musical segundo uma

perspectiva pessoal. No caso de “Cinema Paradiso”, Dori Caymmi revive o processo de fricção entre

a cultura europeia e africana que se instalou no Brasil desde o início da colonização portuguesa,

trazendo para o contexto estético do samba uma típica canção italiana. É com a performance

sincopada da melodia de Ennio Morricone, mediante sua interpretação segundo os elementos

contramétricos do samba, que Dori Caymmi transforma um tema hollywoodiano de cinema em uma

sensual Bossa Nova jobiniana.

No caso de “Aquarela do Brasil”, o arranjo resulta em um hibridismo que percorre o caminho

inverso. Este samba, que é considerado por muitos um hino nacional alternativo, surge agora

plenamente ambientado na estética do jazz, resultado que Dori obtém, dentre outros recursos, pelo

deslocamento do centro da atenção do arranjo para a improvisação vigorosa do pianista norte-

americano Herbie Hancock. As características ufanistas do samba são ressignificadas para compor

um retrato sombrio de brasilidade, pela busca por retratar uma visão intimista de Brasil: um Brasil

“para mim”, mais do que um Brasil “brasileiro”. A significação perseguida por Dori passa ao largo da

visão ufanista de nação de que fala a letra do samba, que foi durante muito tempo apropriada para a

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construção de uma imagem exuberante do país no cenário internacional. Se em “Cinema Paradiso”

Dori trouxe a canção italiana para o Brasil e a ressignificou segundo os parâmetros estéticos locais,

em “Aquarela do Brasil” é o samba que vai aos Estados Unidos e se amalgama aos parâmetros do

jazz. O interessante é perceber que, em qualquer caso, o resultado que se obtém é samba, é música

brasileira, é Dori Caymmi: não é canção italiana, tampouco jazz.

A possibilidade de o arranjador extrair significados tão diferentes da concepção do

compositor confirma a hipótese com que trabalhei ao longo da pesquisa, isto é, de que o significado

musical não é algo imutável ou imanente à obra musical. Tanto o “Cinema” quanto a “Aquarela” são

objetos estéticos dotados de um enorme feixe de atribuições, de significados potenciais que

possibilitam ao arranjador extrair significados efetivos distintos e até mesmo opostos àqueles

tencionados pelo compositor: do contrário não seria possível transformar um samba exaltação em

uma peça fúnebre; uma canção ingênua em uma sensual bossa.

A questão que se coloca imediatamente após a constatação dessa abertura da obra de arte

é como estabelecer limites à sua interpretação, para que esse objeto estético não perca sua

identidade. Com efeito, nos dois trabalhos de Dori aqui analisados, embora se perceba a emersão de

significados contrastantes em relação aos arranjos paradigmas, é sempre de “Cinema” ou de

“Aquarela” que se trata, e não de outras obras quaisquer. A resposta está em que a forma original da

canção deve ser adotada como um roteiro para o arranjador, que pode e deve desviar-se do caminho

proposto pelo compositor, mantendo, contudo, o equilíbrio entre surpresa e redundância, a fim de

possibilitar ao ouvinte a percepção de que se trata ali, ainda, de determinada obra. Há uma relação

de aproximação e distanciamento, na qual alguns elementos devem ser mantidos a título de

redundância perceptual e outros eliminados ou acrescentados a título de surpresa, um equilíbrio

tênue que é a arte do arranjador. Esse jogo estabelece uma tensão entre a forma original da canção

e a originalidade que o arranjador tenciona imprimir à sua interpretação. Ser original assume, por

conseguinte, significados opostos sob a perspectiva do compositor e do arranjador, enquanto

intérprete da obra musical, pois quanto mais o arranjador se distanciar da forma original composta

pelo autor, mais original será a sua interpretação dessa forma musical.

Com isso, acredito ter respondido à questão central da pesquisa, isto é, de como Dori

Caymmi ressignifica suas obras musicais. Em primeiro lugar, constatei que, nos dois arranjos

analisados, houve a introdução ou a exacerbação dos elementos contramétricos do samba, para

conferir às duas interpretações uma inegável identidade brasileira. No caso da canção italiana, com o

uso da síncope, houve a ressignificação para o universo da Bossa Nova. No caso do samba de Ary

Barroso, com a exacerbação da contrametricidade, houve a fusão entre jazz e samba sem, contudo,

que se perdesse a identidade nacional.

Esse equilíbrio está, por outro lado, relacionado ao contexto e à personalidade do próprio

Dori Caymmi, um personagem traduzido que, como tal, é habitante simultâneo de pelo menos duas

casas, condicionado a negociar e a relacionar-se com diferentes culturas sem perder suas raízes

nacionais. Isso lhe possibilita interpretar o objeto estético e apropriá-lo segundo seus “pré-conceitos”,

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firmando-se como um mediador entre o horizonte histórico do compositor e o contexto em que a obra

é compreendida na contemporaneidade.

A pesquisa e as reflexões aqui realizadas possibilitaram-me confirmar que o sentido

subalterno construído na academia acerca da atividade do arranjador, como um fazer de segunda

categoria, está atrelado ao conceito de interpretação autêntica ainda largamente adotado no universo

da música erudita. Tomando a partitura original como autêntica, o arranjo afigura-se sempre uma

corrupção ou diminuição da vontade suprema do compositor. Ademais, sendo a obra musical erudita,

por definição, produto de gênio do compositor, não haveria por que o intérprete ocupar-se em

melhorá-la. A genialidade do autor é, nesse sentido, a um só tempo, fonte de legitimação da obra

musical e parâmetro para sua correta interpretação. Há, na tradição erudita, por conseguinte, um forte

sentido de hierarquia entre o altar dos grandes mestres europeus e a fidelidade obsequiosa dos

intérpretes.

Na música popular, domínio mundano dos mortais, graça a liberdade, razão por que o

arranjo é central. É que toda obra musical popular pressupõe a elaboração de um arranjo, mesmo

que diminuto, dada a sua fluidez e abertura formal. Isso faz com que o arranjador seja alguém que

viabiliza a performance da obra musical e não aquele que a corrompe. Por mais óbvio que possa soar

tal assertiva, a música é antes de tudo um fazer humano sonoro e, nessa perspectiva, a função do

arranjador é precipuamente viabilizar que a obra musical soe aos ouvidos da audiência, seja em uma

performance ao vivo, seja para sua fixação em um fonograma.

Esse aspecto foi também confirmado na presente pesquisa, pois a análise musical partiu

dos fonogramas dos arranjos e do depoimento do próprio Dori Caymmi. Ademais, no universo popular

não há a necessidade de escrever no pentagrama todas as notas que serão executadas por todos os

instrumentos, reservando-se ao instrumentista certa margem de liberdade criativa. Como vimos, a

escrita de elementos sincopados do samba pode-se tornar muito complexa no pentagrama e

extremamente simples de ser transmitida oralmente aos componentes de um grupo musical. Os

registros em partitura configuram, assim, um mero script para o arranjador e para os próprios

músicos, e o resultado dependerá da mediação empreendida pelo arranjador no momento da

performance. Com isso confirmei a segunda hipótese com que trabalhei ao longo da pesquisa, isto é,

de que, na música popular, a figura do intérprete e a do arranjador equivalem-se.

O tipo de arranjo musical elaborado por Dori Caymmi aproxima-o das origens dessa prática

cultural que tem suas raízes nas rodas de samba cariocas do início do século XX. Dali, nos quintais

das “tias baianas”, brotaram os primeiros sambas, como arranjos de elementos poéticos, melódicos,

harmônicos e rítmicos inseridos em um fazer musical coletivo. O samba era ali, ainda, puro processo.

Esses primeiros arranjos musicais possibilitaram ao samba constituir-se como objeto estético, como

algo distinto da prática comunal. A concepção sincopada da “batida” do violão de Dori Caymmi

possibilita-lhe extrair das canções que interpreta significados tipicamente brasileiros, aproximando-as

da gênese do samba, daquelas rodas de umbigada. Essa contrametricidade é adotada para

ressignificar as obras musicais segundo uma estética nacional, algo característico e privativo do

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processo de ressignificação musical do arranjador brasileiro, contexto no qual Dori Caymmi se

apresenta como um expoente, como se viu ao longo deste trabalho.

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ANEXOS

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ANEXO I – ENTREVISTA CONCEDIDA POR DORI CAYMMI EM 3 DE MARÇO DE 2014

1 – Rio 40 Graus

As marteladas pareciam nos acordar de um breve cochilo, pois dormíamos há menos de

quatro horas: – Como é possível reformar um hotel lotado em plena manhã de uma segunda-feira de

Carnaval, no Rio de Janeiro? Apesar do sono e do sonoro incômodo, pulamos da cama

imediatamente.

Eram onze horas da manhã e a obra transcorria em ritmo acelerado, a tirar pelo vigor das

marteladas na laje do andar de cima. Nossa primeira noite no Sambódromo terminara já na manhã de

segunda-feira; chegamos ao hotel amanhecendo e aproveitamos o café da manhã como um fim de

noite. Desmaiamos sob o rugir do ar-condicionado ligado a todo vapor e despertamos, poucas horas

depois, graças à agitação da inusitada reforma. Não fosse aquela sinfonia concreta executada pelos

operários, acabaríamos perdendo a hora.

Tínhamos marcado, Márcia e eu, um almoço com Dori Caymmi e sua esposa, Helena Leal,

no centro de Copacabana, às 12h30. Nessa ocasião eu aproveitaria para gravar uma conversa com o

Maestro, para tratar de música brasileira em geral e de sua trajetória como músico de renome

nacional e internacional. A viagem ao Rio, para assistir ao desfile das escolas de samba no

Sambódromo, servira de pretexto para encontrar o casal de amigos e dar sequência às atividades

acadêmicas do mestrado em música na Universidade de Brasília, cujo objeto é justamente o trabalho

de Dori como arranjador musical.

Tomamos sem dificuldade um táxi em frente ao hotel e fomos observando, ao longo do

trajeto até o restaurante não muito distante dali, a movimentação de foliões de rua misturados com

banhistas que, como é usual, dividem-se na paisagem entre os que ainda se dirigem e os que já

regressam da praia, os indefectíveis homens alcoolizados desta segunda-feira ou os ainda

alcoolizados da noite anterior, alguns travestidos de mulher, o olhar surpreso dos turistas

estrangeiros, os exíguos trajes de banho, o lixo acumulando-se nas ruas em decorrência da greve

dos garis, que, por óbvio, fora deflagrada em pleno carnaval.

Desembarcamos em frente ao restaurante e encontramos Dori e Helena dando atenção a

um grupo de fãs. Dori falava aos tietes da importância da música brasileira, de sua trincheira pela

preservação das tradições nacionais, de seu mais recente trabalho com Mário Adnet para a

gravadora Biscoito Fino, em homenagem ao centenário de seu pai, Dorival Caymmi.

Saudamo-nos, fraternalmente, e adentramos imediatamente o ambiente fortemente

climatizado que contrastava com os quase quarenta graus que derretiam o carnaval carioca. A

especialidade da casa, o bacalhau, seria regado ao “Cartuxa”, vinho tinto português. Mais tarde, uma

breve caminhada nos conduziria ao antigo apartamento do “velho” Dorival Caymmi para o derradeiro

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cafezinho. Foi nesse contexto que transcorreu a presente entrevista, na qual Dori falou de forma

descontraída e arrebatadora, como é seu estilo, sobre sua maior paixão: a música do Brasil.

2 – Uma explicação necessária

Meu primeiro contato com a música de Dorival Tostes Caymmi, vulgo Dori Caymmi, ocorreu

no ano de 1977, quando foi lançado o programa televisivo “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, estruturado

sobre a obra imortal de Monteiro Lobato. Dori, primeiro diretor musical do programa produzido pela

Rede Globo de Televisão, assinava também um dos mais belos títulos da trilha sonora, o tema de

Pedrinho, além de atuar como arranjador em músicas de outros autores, como Gilberto Gil, Ivan Lins

e seu próprio pai, Dorival Caymmi. Esse primeiro contato foi impactante e, talvez porque tenha

ocorrido ainda em minha infância, inesquecível.

Anos mais tarde, já na década de 1980, interessei-me pelas interpretações de Nana

Caymmi e deparei-me novamente com o talento de Dori, então o mais frequente arranjador e

instrumentista do repertório da irmã. No ano de 1987, outra grande cantora, a norte-americana Sarah

Vaughan, trabalharia sob a colaboração de Dori, no long-play Brazilian Romance, produzido pelo

compositor e pianista brasileiro radicado nos Estados Unidos, Sérgio Mendes. Neste que seria o

último trabalho da grande diva da música estadunidense, todos os arranjos foram elaborados por

Dori, que assinou, também, como compositor, quatro das dez faixas do LP. A beleza dos arranjos de

cordas desse disco, um raro consenso no meio musical, despertou um interesse por esse naipe

orquestral que me acompanharia por toda a vida.

Quando a compositora e cantora paulista Simone Guimarães me convidou para produzir

uma das faixas de seu 2º CD encomendado pela gravadora Biscoito Fino, uma valsa de nossa autoria

denominada “Confissão”, marcamos um almoço no restaurante “Gula-Gula”, em Copacabana, no Rio

de Janeiro, para falar do assunto. Era janeiro de 2004 e eu estava de férias com minha família na

capital carioca, razão por que aproveitei para dar início àquele importante projeto, que, mais tarde,

nos daria a alegria de uma indicação para o Grammy Latino. Antes de pedirmos o prato principal,

decidimos sem dificuldade a instrumentação dessa faixa. Deveria ser voz e piano, acompanhados por

cordas: o nome de Dori surgiu imediatamente em nossas mentes como o mais indicado para elaborar

os arranjos. Ninguém melhor do que ele para traduzir o lirismo que pretendíamos imprimir àquela

faixa do disco. Mas como estabelecer contato com o Maestro?

A solução veio de um amigo comum, o cantor paulista Renato Braz, que nos forneceu o

número do telefone de Dori em Los Angeles, Califórnia, sua residência habitual desde o início da

década de 1990. O contato por telefone foi muito amável, mas direto: − Você me manda uma fita com

a música gravada, se eu gostar da canção eu faço o arranjo com prazer. O prazer foi grande, meu e

de minha parceira, ao longo das gravações dessa faixa que viria integrar o CD “Flor de Pão”, pelo

selo Biscoito Fino. Os registros de voz e piano começaram na Sexta-Feira da Paixão daquele ano,

nos estúdios da Companhia dos Técnicos, sob a direção do Maestro. Meses depois estenderam-se à

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sede da própria Biscoito Fino, no Humaitá, onde foi gravado o arranjo para orquestra de violoncelos.

Aprendemos muito com o Dori, não só pela sua alta capacidade técnica e musical, mas por sua

simplicidade no trato pessoal e por sua modéstia, estabelecendo-se, a partir de então, uma relação

de amizade e contínua admiração.

Em 2010 lancei meu segundo CD independente, “Urubupeba”, acompanhado por orquestra

de cordas arranjadas e conduzidas por Dori, o que nos rendeu a indicação para o 23º Prêmio da

Música Brasileira, sob a categoria de melhor arranjo. Em 2013 ingressei no Mestrado em Música da

Universidade de Brasília com o projeto de pesquisa “Dori Caymmi: a ressignificação da obra musical

por um arranjador brasileiro”. Desde então, a obra de Dori Caymmi tem ocupado o centro de minha

atenção, uma fonte prolífica de aprendizado sobre a música brasileira.

3 – A entrevista

Nosso encontro ocorreu no dia 3 de março de 2014, em um simpático restaurante português

no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, em uma segunda-feira de carnaval, a partir das 13 horas,

com a presença de minha esposa, Márcia Bittar Bigonha, e de Helena Leal, esposa de Dori. A

entrevista foi gravada, com o consentimento do Maestro, em meu aparelho Iphone4 colocado sobre a

mesa, ao longo de todo o almoço e, logo após, durante o cafezinho servido no apartamento que foi a

última residência do casal Dorival e Stela Caymmi.

3.1 Uma Aquarela do Brasil

AC: Dori, como foi sua relação com o maestro Radamés Gnattali?

DC: Radamés era muito amigo do papai. Eu tive uma conversa com ele quando eu tinha 15

anos. Ele só falava assim: harmonia, o negócio é harmonia. Ele só dizia pra estudar harmonia. Foi

passando o tempo e eu argumentei com ele, naquela época, que eu não gostava das músicas do

meu pai com orquestra, achava que tirava toda espontaneidade. Os discos todos tiram: Arruda Paes,

todos eles, Lindolfo Gaya, principalmente o Gaya.

AC: E tem a dificuldade de a orquestra tocar o tresilo, de sincronizar aquele tempo

sincopado. Aí o arranjador tem que escrever tudo quadrado, simétrico e descaracteriza a síncope do

samba.

DC: Eu disse isso e o Radamés ficou meu fã. Harmonia, harmonia. Um dia o Hermínio Belo

de Carvalho disse a Nana: “Tem uma música que a Zezé Gonzaga cantou, muitos anos atrás, do

Radamés, que é linda; você devia gravar, chamada ‘Amargura’ (1)”. A Nana também gostava muito

do Radamés, da Ida, mulher dele. Foi amiga da filha do Radamés, e gostou da música, pediu para eu

escrever. Isso eu já estava maduro. A Nana estava gravando, acho que na EMI, aí fiz o arranjo e

gravei com ela, direitinho.

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AC: E como foi a reação do Radamés?

DC: Um dia entrei no estúdio “Level”, onde a Globo gravava o Sítio do Pica-Pau Amarelo e

lá estavam Guio Moraes, Zé Menezes, todos arranjadores e músicos da Rede Globo de Televisão,

contratados, empregados da emissora. Tive a maior surpresa, nessa época da minha vida, porque o

Radamés estava quase chorando, ele veio falar comigo: “Você quer me matar?”. Eu disse: “O que foi

Radamés?”. Ele disse: “Não, esse troço que você e sua irmã fizeram com ‘Amargura’, que coisa

maravilhosa!”. Quando recebi esse elogio...

AC: Você mexeu na harmonia?

DC: Um pouquinho, mas não no conteúdo. A Nana cantando está lindo, e ela canta essas

coisas com uma facilidade impressionante. Foi um elogio de que eu gostei. Então, na minha vida, fui

pago com essas alegrias.

AC: Quando você fala que mexeu um pouquinho, você está querendo dizer que você acha

que tem um limite para mexer, para ser o justo?

DC: Eu acho; porque, se você extrapolar, tira a originalidade, a pureza do cara, aí você vira

compositor.

AC: A medida é essa?

DC: A medida é você respeitar o horizonte do cara, porque eu fiz isso com o Noel Rosa,

para a voz da Gal Costa, com uma harmonia muito moderna: “Seu garçom, faça o favor de me trazer

depressa” (2); saí até do embalo daquele regional da época; saí daquela coisa tradicional para uma

concepção mais moderna, mas com o espírito do Noel.

AC: Tanto na harmonia quanto no tempo?

DC: É. A música, aliás, não é do Noel, é do Vadico. Aliás, isso é uma carioquice danada.

AC: Mataram o Vadico.

DC: Mataram o Vadico. Eliminaram o Vadico do mapa, ainda vou dizer isso e ainda vou

fazer um disco com as composições dele.

AC: Você fala assim: “Como um cara pode ser tão genial como Noel Rosa, com melodias

lindas?”. São do Vadico.

DC: Tem uns seis ou sete hits da pesada, tudo do Vadico. Se você voltar a 1935, 1936,

onde Noel fazia música, você continua quase que com o mesmo espírito da ideia do Noel.

AC: Mas é interessante também que você consegue transpor aquela ideia para uma

tecnologia atual, de gravação, instrumentação.

DC: Mas, nesse caso, não teve muita novidade na instrumentação, não; foi muito negócio

de conjunto ... [cantarola] .... “Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa”. E tudo é acorde

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lançado [cantarola as alterações que propôs à harmonia e melodia], mas fica tudo dentro do espírito

do Noel, do Vadico. Então, esse foi um ponto que eu adorei ter feito.

AC: E como foi o “Medo de Amar” (3), do Vinícius?

DC: O “Medo de Amar” não acho bom. Enquanto eu estou tocando com Novelli

(contrabaixo), violão e voz, eu fico embevecido.

AC: Muito bonito.

DC: É lindo.

AC: Tem um silêncio, não é?

DC: É, e tem uma coisa brutal que a Nana faz, não é por ser irmão, não; mas fico

enlouquecido porque ela sabe pegar você, sabe onde tem que pegar, uma coisa que as cantoras

novas não têm mais. Quando eu toco ali com Novelli, aquele princípio, eu fiquei vidrado. Quando eu

coloquei as cordas, eu tive vontade de me matar, aquilo é resultado do famoso cochilo, é muito ruim.

Agora, tem coisas que eu fiz que eu adoro; quando a Bethânia cantou: “Ah, a lua que no céu

surgiu...” (4) .

AC: Isso é bonito demais.

DC: A colocação dela é maravilhosa. Ela cantou esse troço, ela muda um pouquinho a

melodia, mas eu não interferi.

AC: Mas ninguém espera que você vá entrar naquele tom. Dá uma guinada no arranjo, pois

sobe uma terça menor. Ela vinha cantando desde o início em sol menor e, de repente, você entra em

si bemol menor.

DC: É porque eu não fiz o óbvio. Eu fiz a transformação harmônica na mesma nota.

Geralmente eu faço uma malandragem, e nessa eu entrei, exatamente, onde estava marcado para

entrar. Você vê que a nota segue e a Bethânia volta na mesma nota em sol menor.

AC: É surpreendente.

DC: Agora, ela cantou muito bem. A Nana cantou: “Ai Ioiô eu nasci para sofrer...” (5). Esse,

por exemplo, eu transformei essa música um pouco, sem tirar o espírito original, quando ela entra

[cantarolando] ... coisa de louco.

AC: Aí você trabalha o tempo?

DC: Exato, o tempo é bem lento. E eu preparei os americanos, a minha base lá, o pianista

Bill Cantos. “Ai, Ioiô, eu nasci pra sofrer, fui olhar pra você ...” Esse acorde, a Nana, no princípio, não

conseguiu cantar, ela levou um susto, mas ele está dentro do espírito do que eu vinha fazendo. É

muito moderno, é uma outra onda. Têm coisas de que eu gosto muito. Têm momentos, por exemplo,

no “Matita Perê” (6), que eu gosto muito das descobertas. [cantarola] ... você vem cantando

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[cantarola] ... É uma coisa linda que tem a ver com a literatura de Guimarães Rosa, do Adonias Filho,

daquele universo do campo do Brasil, do personagem Manuelão.

AC: Você, outro dia, estava falando do arranjo do Radamés, no “Aquarela do Brasil” (7).

DC: O que ficou daquele ufanismo da época foi: PA, PA, PAM, PA, PAM, PA, RA

[cantarola].

etc.

Fig. 1. Transcrição livre do contracanto introduzido por Radamés Gnattali em seu arranjo de “Aquarela do Brasil” para o cantor Francisco Alves, elaborado em 1939.

AC: Que era dele?

DC: É. Que é a criação do Radamés como arranjador. [canta] “Brasil ...pa,pa,pa”. É

inteligente. Quando eu fui para os Estados Unidos, depois de um tempo eu comecei a me desgostar

do Brasil, do rumo que o País estava tomando em todos os setores. Eu peguei o violão, e a música

que eu menos gostava do Brasil, dessas famosas, era a “Aquarela”. Peguei o violão e estava tocando

até uma música minha, com a afinação alterada, aí dei uma diminuta: “Brasil, Brasil...”. Eu falei, isso

aí vai sair, aí comecei harmonizar o “Brasil”. Nessa, eu mudei a harmonia mesmo.

AC: Mas esse é o seu Brasil?

DC: É. E agora, em público, eu canto “ouve essas fontes, murmurantes, aonde eu mato a

minha sede”, e tal, mas pouquinho.

AC: Mas na gravação não tem, não é?

DC: Não, não tem, não. E eu pensei assim: o único pianista que poderia tocar essa coisa

com a cara que eu quero é o Herbie Hancock, aí eu falei com a Louise Velasques, produtora do

Quincy Jones, a Helena falou com um conhecido nosso que pediu para mandar um cassete para o

Herbie.

AC: Tinha a base gravada?

DC: Sim, somente a base, com a minha voz.

AC: Só conceito mesmo.

DC: É, aí mandei a ideia do que seria para ele, com voz e violão. E aí, no dia da gravação,

no estúdio, ele chegou, estávamos eu, Cláudio Slon e Jerry Watts, e não tinha percussão nem nada.

O Cláudio não tocou bateria, ele tocou um surdo. E existe uma diferença, você vê um músico que vai

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para o sacrifício do dia a dia, ganha uma graninha sem vergonha para sustentar a família, e o Herbie

Hancock, que veio de Masserati, de Ferrari, tal, o próprio Dave Grusin, com todo aquele dinheiro.

AC: Chega com outra autoestima.

DC: Usei ali os caras que eu mais gostava do jazz da época − o Branford Marsalis, o Dave

Grusin e o Herbie Hancock. O Paulinho da Costa gravou a percussão depois, em overdube. E saiu o

“Aquarela do Brasil” com essa proposta high depression; o arranjo, porque eu nunca fui deprimido. Eu

não entro por essas veredas; e aí a ideia começou a armar na minha cabeça e fizemos com o Herbie.

Ele fez o primeiro take conosco e eu disse: “Herbie, não quero o solo lento como a base, não; quero

que você quebre com tudo em cima”. Eu tive que dizer para ele porque o primeiro solo dele era

[cantarola] ... dentro daquela coisa bem lenta, no espírito da base. Eu falei: “Não, o que eu quero é

que você faça um solo com bastante energia” [canta] ....

AC: Todo o arranjo virou uma base para ele.

DC: Aí não, amigo, o cara foi numa só. Ele erra um pouco algumas notas em relação à

harmonia.

AC: Aquela nota fora que ele dá.

DC: Ele erra uma nota, mas, e o espírito? Aí o espírito é que conta.

AC: Ficou espontâneo, ficou chique, não é?

DC: Eu tenho isso nas minhas gravações. O que vale para mim é transmitir a ideia. Agora, o

cara chega e diz: “Não, tem uma nota errada no quarto compasso”.

AC: Começa a corrigir.

DC: É. Aí vem o Don Grusin, que é um músico perfeccionista, e diz: “Ah, mas ele errou uns

acordes”. Eu falei assim: “Ele errou os acordes, mas tocou o que eu queria que ele tocasse”. Já no

arranjo que eu fiz do “Você já foi a Bahia” (8), o solo do Don Grusin foi gravado por partes.

AC: Quando tem edição fica que músico teve todas aquelas ideias brilhantes ao mesmo

tempo e tal. Mas isso que você falou do sujeito tocar umas notas fora, e que fica bom, subverte até o

conceito do que é certo ou errado em música.

DC: Claro, por quê? Existe uma coisa em que as cantoras e os músicos de hoje não estão

pensando. Você está transmitindo uma ideia e as pessoas têm que receber o impacto disso aí. Eles

têm é que ficar emocionados com o que você está propondo, e se tem nota errada eles nem vão

perceber. Vem o técnico e percebe − “Oh, tem uma nota errada”. E digo, tem sim, e o azar é seu.

AC: Isso com a música popular, então, é mais livre ainda, porque não tem uma partitura.

Não tem como falar que não bateu com a partitura.

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DC: Luizinho Eça foi aplaudido de pé na Bahia, com uns 16 anos de idade, quando

improvisou Mozart, porque ele esqueceu o que registrava a partitura. Pois é, chegou um momento e

ele improvisou. Foi aplaudido de pé, e reprovado no concurso, evidentemente.

AC: Conhecia a harmonia, foi no campo harmônico.

DC: Foi, claro, porque o Luizinho era um gênio. E o Mozart não é tão complexo do ponto de

vista harmônico, mesmo Beethoven. Mas não é a coisa de que eu mais goste na música clássica,

sem negar o valor deles, evidentemente. Eu penso no Tchaikovsky, com aquela melodia linda.

Cantem a valsa dele, é mais bonita até que a de Strauss [cantarola] ... parece música de filme

italiano. É um gênio, aí vem a melodia maravilhosa.

AC: Nino Rota quem bebeu disso aí.

DC: Ô. Esse Nino Rota não sai debaixo de Tchaikovsky. A música italiana tem muito disso

aí. O Tchaikovsky era um poeta mesmo, assim, uma coisa, você pega, tudo dele tem um fio melódico,

tem a encheção de linguiça daqueles balés longos, agora, quando vem a melodia... [canta].

AC: Dori, uma coisa que eu acho muito forte na estrutura musical. O tema. O tema que o

compositor constrói; que força que isso tem, não? Eu queria te ouvir sobre isso.

DC: É, o compositor é maravilhoso. As melodias do meu pai, as melodias do Ary Barroso,

Braguinha, Noel e do Vadico. Tem cada compositor maravilhoso no Brasil.

AC: É uma ideia que se impõe.

DC: Claro, e até hoje você consegue trabalhar na música deles e dar um colorido. Eu fico

feliz porque ainda consigo colorir a ideia deles. Mas, sem a melodia, vira uma porção de notas, vai

ficar aquela coisa cerebral.

AC: Acho que o mistério é a melodia. É um negócio misterioso. Vira um ser independente.

DC: É, a melodia é vital. Sem a melodia, nem a harmonia nem nada tem importância.

3.2 O ofício de arranjador

AC: Vamos falar um pouco do Claus Ogerman. Ele é um arranjador que trabalha bem

mantendo o respeito à melodia?

DC: Eu tenho o disco que ele toca os compositores clássicos, você conhece esse?

AC: Com o Bill Evans (9)?

DC: Acho que é com o Bill. Esse disco é lindo, mas para o resultado concorre também a

ideia que o Bill Evans passou para ele orquestrar [cantarola].

AC: Tem uma composição (10), de Bach, arranjada em tempo de valsa, que ficou linda.

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DC: Tem coisas maravilhosas naquele disco [cantarola]. Acho que essa é a “Pavane” (11),

de Gabriel Fauré. É um negócio impressionante a categoria desse disco.

AC: Mas aí é interessante como ele absorve o conceito do artista, do cantor, do pianista etc.

O trabalho autoral do Claus Ogerman é bem diferente do que ele propõe em seus arranjos para

outros artistas.

DC: Sim. É diferente. Veja o que ocorreu na colaboração dele com o Tom Jobim em

“Saudade do Brasil” (12)”. Você já confrontou com a partitura do cancioneiro do Tom? Observe o

arranjo do Claus e como o próprio Tom escreveu. O que ele orquestrou parte exatamente das ideias

originais, de como o próprio Tom executava essa peça ao piano. Agora, ele tem uma orquestração de

qualidade impressionante; os sons que ele tira da orquestra são insuperáveis.

AC: o Ian Guest salientou isso quando deu aula no Curso de Verão da Escola de Música de

Brasília; o fato de o Claus Ogerman ter incorporado os contracantos compostos pelos próprio Tom

Jobim nos arranjos que fez para as músicas do Maestro Soberano.

DC: Quando nós fizemos o “Matita Perê” para o Tom, ocorreu isso também, pois o Claus é

um tremendo instrumentador. Ele conhece os diferentes pesos dos naipes orquestrais. Isso é muito

bonito.

AC: É semelhante ao que Ravel fez com a música do Mussorgsky, “Quadros de uma

Exposição” (13). O Ravel atua ali como um típico orquestrador, não é?

DC: Exatamente. O Ravel declarou em uma entrevista que o que ele mais gostava do

próprio trabalho era o “Bolero” (14), que, se você prestar atenção, vai perceber que é, antes de tudo,

uma orquestração, a repetição de uma ideia para dar destaque aos diversos timbres da orquestra.

AC: Exato! É você estruturar a peça em torno de uma melodia forte e mostrar, sob diversas

formas, como a orquestra pode sempre dar novos significados àquela ideia.

DC: E a orquestra vai crescendo de uma maneira linda. Ele era um homem maravilhoso,

esse Ravel. Eu queria tê-lo conhecido, mas, se eu for pensar no que sinto quando ouço o prelúdio do

Debussy, do “Fauno” (15), aí não tem Ravel que me segure.

AC: Aquela escola ali foi muito forte, aquele pessoal ali da França não estava de brincadeira

[risos].

DC: É uma conexão do Ravel com os russos, pois o Mussorgsky integrou o “Grupo dos

Cinco”, do qual fazia parte o Rimsky-Korsakov, que foi professor do Conservatório de São

Petersburgo.

AC: E tem aquele vídeo do Karajan regendo o “Bolero” do Ravel. Ele destaca cada seção

da orquestra e toca do pianíssimo até o fortíssimo, é realmente emocionante.

DC: O vídeo em geral é uma coisa que me cansa. Eu gosto do encantamento do som.

Gosto de ouvir música quietinho no meu canto. Ouço tudo, ouço o trabalho das pessoas. Ouço todo

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disco que me dão. Pelo menos as três primeiras faixas. Se o cara não tem jeito, pelas três primeiras

sei que ele não vai a lugar nenhum e não vou precisar ouvir as demais faixas. Mas ouço tudo; lá em

casa, me fecho no quarto e ouço um por um. Quando eu gosto, eu ligo pro artista.

AC: E fazer arranjo para cantores, tem alguma particularidade?

DC: Eu estava tendo exatamente essa discussão com o Mário Adnet agora. Estamos

gravando um CD (16) em homenagem ao centenário de meu pai e nos dividimos na elaboração dos

arranjos. Não era nem uma discussão, era uma imposição de minha parte mesmo [risos]. É difícil

fazer um bom arranjo, equilibrado, sem saber antes como o artista vai cantar. Como elaborar um

acompanhamento sem saber como ele vai cantar aquela música?

AC: É a visão do arranjo como acompanhamento, não é?

DC: Exato. Como acompanhar se você não sabe como o artista vai cantar? Você fica

idealizando como o sujeito deve cantar. Esse é o primeiro erro do arranjador, nesse tipo de trabalho,

na minha opinião. O truque é colocar um contrabaixo, talvez um violão fazendo um andamento e

dirigir o cantor. Por exemplo, nesse CD, na faixa “É doce morrer no mar” (17), eu fiz isso com a Nana.

Coloquei o piano fazendo aquele movimento de violão do papai. “No Abaeté tem uma lagoa

escura” (18) [cantarola] ... “de manhã cedo se uma lavadeira” − é outro andamento − ... “vai lavar

roupa no Abaeté”. A outra − “A noite tá que é um dia diz alguém ... E na praia...” A Nana tem esses

três andamentos com certeza absoluta, então eu já a preparei para isso. Você só tem essa nuance se

você estiver acompanhando o cantor, com pouca coisa, até mesmo ao piano, pra depois colocar

orquestra em cima.

AC: Entendi. Esse é o truque?

DC: O arranjo é mais ou menos isso. Eu ouço muito a música e a interpretação do próprio

artista; quando eu não tenho a possibilidade de ouvir a interpretação, é muito mais difícil. Quando o

arranjo é para eu cantar, obviamente, eu sei o que vou fazer.

AC: A Nana, por exemplo, você sabe o que pode pedir e esperar dela. Sabe os caminhos

melódicos e rítmicos mais confortáveis para ela.

DC: Sim. Mas, eu preparo a base e a ouço cantar no estúdio primeiro; é muito melhor

assim; senão, complica. Chegar absolutamente dono da verdade, aí complica. No Brasil é assim. Lá

nos Estados Unidos eles fazem direto com o cantor.

AC: Com o cantor, na hora, em tempo real?

DC: Sim. Mas, se o cantor reclamar, você tem que mudar o arranjo. Se pegar uma Barbra

Streisand pela frente, ela manda mudar o arranjo na hora. Ela diz: “Aqui não está bom, tal”. Ela quer

que seja feito da maneira dela. O pior é que ela manda e eles fazem! O nível técnico ali é muito alto.

AC: Ela sabe o que ela quer e sabe mandar também.

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DC: Aqui no Brasil, quando não é possível fazer da forma tradicional, o mínimo a fazer é

gravar os arranjos já concebidos e mandar para os cantores, se possível com uma voz guia, que é

para eles se prepararem antes de entrar no estúdio de gravação.

AC: Pré-produção, fazer em casa. Acho que a relação econômica também pesa. Quem está

pagando estabelece a relação hierárquica; de certa forma, corta a asa do artista.

DC: Exato. O arranjador não discute com o produtor. O produtor manda e está mandado. E

o artista, normalmente, obedece ao produtor. Eu tive uma grande surpresa com o Johnny Mathis, por

exemplo. Ele me disse, certa vez − “Não apito, quem apita é o arranjador, ele traz e eu canto”. Eu

disse, não, você não canta essa música antes no banheiro? “Não, eles escolhem a música e mandam

eu cantar.” Poxa, qual a graça que isso tem? A Barbra Streisand, não. O Sinatra, não tinha dúvida,

ele escolhia; tanto que ele deu mancadas homéricas, por exemplo, na escolha de repertório. Quando

ele rejeitou a canção “When I Fall In Love” (19), entregaram-na e ele não quis, o que veio a ser um

dos maiores hits do Nat King Cole. Ele falou isso em vídeo. Acho que o vídeo, em relação à música,

não serve para mostrar muita coisa, a não ser a personalidade dos cantores, a história deles, para

você saber quem foi, como foi etc.

AC: E como foi o reconhecimento de seu trabalho como arranjador?

DC: Eu nunca fiz música buscando reconhecimento, não. Nem subiu à cabeça nenhum

elogio aqui ou ali. Eu ganhei alguns prêmios de arranjador na minha vida, uns troféus que eu não sei

onde estão. Um deles foi da Playboy. Melhor arranjador da revista Playboy, prêmio da crítica

especializada. Depois ganhei festival da canção, arranjo pra uma canção do Fernando Leporace,

chamada “Embriagador” (20), que a Leny Andrade cantou. Lembro que fiz uma introdução e uma

ponte (cantarola), e foi o Radamés quem me deu o troféu.

AC: Ela gravou isso outras vezes depois.

DC: Sim. Linda canção, um bolero do “Lepô”. Aí ele me deu pra arranjar e quando analisei,

pensei, vou fazer um negócio aqui no meio [cantarola], acho que ficou bom porque, quando tocou no

festival, o pessoal ficou doido.

AC: Uma ponte para fazer a ligação entre as duas partes do bolero, não é?

DC: É, uma ideia no meio, muito legal. A gente anima o arranjo com essas coisas. Os

músicos adoram. Quando o cara gosta de tocar, não é? Eles ficavam felizes: “Poxa, vê aí o arranjo do

Dori”.

AC: O arranjo tem isso, ele levanta a música também. Dá tempo para o público ouvir,

reorganiza a forma da canção.

DC: Exato. Eu errei em alguns, por exemplo, no “Dois Dias”, quando eu fiz o arranjo pro

Eduardo Conde cantar no Festival Internacional da Canção de 1967. Não ficou legal. Na hora da

execução em público, ficou baixinho, não tinha volume, ninguém ouvia nada.

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AC: Porque tem questões acústicas envolvidas também?

DC: Claro, você escreve para uma orquestra daquelas, tem uma série de implicações

acústicas de timbre, de ataque, peculiaridades de cada naipe orquestral. E o “Dois Dias” não pedia

muito isso. Aí a vida te proporciona algumas quebradas de cara, principalmente quando você não tem

estudo suficiente para se considerar, para se achar o tal, vai aprendendo com os erros também.

AC: Por outro lado, às vezes, o sujeito tem muito estudo, mas fica constrangido de fazer,

fica tímido, com medo de errar. É uma outra face da mesma moeda.

DC: Em outros arranjos eu acertei na mosca. No Maracanãzinho, quando executamos o

“Embriagador”, principalmente no solo que a banda faz na parte central, eu nem escrevi a parte da

bateria, só cheguei no ouvido do baterista e dei umas instruções de levada, essas coisas. Até para

não ofender o músico com a arrogância de “faz a virada que eu quero, porque eu sou absolutamente

o dono da verdade”. É bom abrir espaço para a banda, pois é um trabalho coletivo.

3.3 Texturas musicais e as influências nos arranjos em um debate peripatético

Neste ponto encerramos o registro de nossa conversa no restaurante, pois já havíamos

terminado o almoço. Saímos em direção ao apartamento em que Dori e Helena estavam hospedados,

antiga residência de Dorival e Stella Caymmi. Durante o caminho liguei novamente o gravador do

Iphone e fomos conversando sobre aspectos técnicos relacionados à escrita musical de Dori. São

detalhes preciosos que permitem identificar, mesmo que de maneira precária, os elementos que

conferem tanta originalidade e beleza aos seus arranjos musicais.

No meio do trajeto, uma surpresa. Deparamo-nos casualmente com Chiquito Braga, o

grande violonista mineiro, há anos radicado no Rio de Janeiro. O calor intenso não nos permitiu uma

pausa muito grande, mas de imediato nos veio à mente e à conversa os nomes dos violonistas

Toninho Horta e Juarez Moreira, também mineiros, com quem Chiquito gravou, há alguns anos, o

belo CD “Quadros Modernos” (21). Dori ressalta a importância de Chiquito como um remanescente

mineiro da grande escola de violonistas do Brasil. O encontro, apesar de fugaz, é emoldurado por

grande emoção, o que transparece no abraço e no forte aperto de mão, que são selados ao final, sob

o solferino da meia tarde de Copacabana.

AC: Você sempre foi muito identificado no meio musical com o naipe de cordas. Como

você estrutura seus arranjos para as cordas?

DC: No tema de “Cinema Paradiso” (22), por exemplo, quando eu faço o solo (23), eu

coloco a melodia nos violinos e a harmonia no violoncelo e na viola. Eu sempre gosto de trabalhar

desse jeito, mas depende da música.

AC: E aquelas inversões de que você estava falando? As inversões do acorde, para dar

aquelas segundas menores no meio ou embaixo das vozes?

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DC: Eu uso muito essa posição no acorde, por exemplo: fá#, sol, si, ré, no mi menor. Nos

celos e nas violas, para não ficar chocando na cabeça deles, eu intercalo, faço primeira e terceira,

segunda e quarta. Os celos tocam aqui embaixo, intercalando com as violas tocam uma logo acima

do celo e outra na posição mais aguda. Então, tiro o choque entre as vozes que estão no mesmo

instrumento. Se você pegar um celo, por exemplo, e colocar para tocar o fá# sustenido e sol, na

posições mais graves, minha experiência é que fica muito ruim. Então, coloco a viola para fazer o sol,

porque a viola está tocando uma nota que soa bem pra ela e não choca com o celo .

Fig. 2. Para evitar problemas de afinação, Dori intercala os elementos do quarteto de cordas, evitando intervalos muito tensos no mesmo grupo de instrumentos.

AC : Entendi.

DC: Porque se eu colocar o fá# e o sol no mesmo timbre, no mesmo instrumento, colado,

até mesmo para a afinação é um desastre.

AC: Ah, essa é uma dica preciosa.

DC: É, eu uso, 1, 2, 3,4: cielo, viola, cielo, viola. Tenho quatro notas: fa#, sol, si, ré. Eu faço

Fa#2, si2, sol2, ré3.

AC: A viola toca o sol. Mas ela está soando uma oitava acima?

DC: Não, a viola vai lá no dó2, e o cielo mais lá vai embaixo no dó1: Dom Um Romão,

evidentemente [risos].

AC: Mas esse truque de abrir os intervalos é muito legal. Por isso é que fica tão bonito além

do que não fica pesado e contorna o problema da afinação, porque, como o intervalo de segunda

menor é muito tenso, os tons são muito próximos, um pouco desafinado que estivesse já apareceria

muito.

DC: Quando você tem um acorde em terças sobrepostas, na posição fundamental, por

exemplo, mi, sol, si, ré, não tem problema, você pode alternar também, botar quinta, mas, de

qualquer maneira, o melhor para mim é ter o mi, sol, aqui nos celos e o si e o ré, nas violas.

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Fig. 3. Quando a harmonização é em terças, a questão da afinação é menos preocupante razão por que não há necessidade de intercalar celos com violas.

AC: O legal daquela construção com o fá# sustenido na fundamental, seguido pelo sol, é

que, no caso do mi menor, a harmonia já fica com a nona, o que para mim soa mais bonito.

DC: Os celos, por exemplo, você pode trabalhar com eles no grave, vir fazendo uma

melodia no registro grave e deixar a harmonia nas violas e nos violinos. Depende da música, eu vario

muito. Outro dia vi uma aula do Claus Ogerman sobre os arranjos que ele fez para o disco (24) da

Diana Krall, onde ele tirou os violinos, não chamou os violinos para gravação, gravou tudo com oito

violas e oito violoncelos.

AC: Ficou bonito?

DC: Ficou lindo e com aquele piano Fender Rhodes que ele sempre usa.

AC: Tudo é a questão do programa da música e aí ele deixa a parte aguda do arranjo para

a cantora, fica o espaço todo aberto para ela.

DC: É. O João Gilberto, por exemplo, não gosta de violinos no agudo.

AC: E no piano? Quando você faz aquelas coisas bonitas que você desenha no piano, você

pensa tudo sem a fundamental?

DC: Eu gosto, porque é a mão esquerda do pianista de jazz, pode ficar muito redundante

quando você coloca a tônica. Eu quando comecei a escrever botava os celos no baixo, fazia

harmonia nos violinos e era muito ruim [risos]. Depois comecei a observar a movimentação da

orquestra, passei a entender melhor.

AC: Eu estava fazendo a transcrição daquelas grades de arranjo do Brazilian

Romance (25), que você fez para a Sarah Vaughan, mas é impressionante como você consegue toda

aquela sonoridade com tanta nota longa! Como é bonito aquilo.

DC: Cordas é uma coisa muito difícil, tem muitos estilos. Michel Legrand faz de uma forma,

Johnny Mandel usa de outra maneira. Eu gosto, como acompanhador de cantor, do Johnny Mandel,

de longe. Agora, o trabalho no Michel Legrand, com a Barbra Streisand, no Yentl (26), aí é uma

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maravilha. Ele tem outra dinâmica, ele é o nervosinho, aquela orquestra sempre está agitada. Ele

gosta de tensão.

AC: A influência da música de cinema, que ele fez muito, não é ?

DC: O craque disso chama-se Pete Rugolo. Ele usava os instrumentinos, mais

instrumentinos do que qualquer outra coisa. E orquestrava para uma cantora chamada Julie Christi;

era o capeta. Eles são muito melhores, tenho que reconhecer.

AC: Cada um na sua praia, evidentemente. E tem aquele disco (27), do João Gilberto, que

tem muitos instrumentinos, com o Claire Fisher.

DC: O Claire odeia o João e o João odeia o Claire, ficaram os dois se odiando.

AC: Mas é bonita aquela movimentação dos instrumentinos naquele disco.

DC: É bonito, mas ele chorou; ele ligou para minha casa e falou: “Esse seu amigo João

Gilberto quase me matou, quase me enlouqueceu”.

AC: E as seções de metais e palhetas, como você trabalha? A gente observa que você

gosta, aqui também, de fazer intercalar as vozes.

DC: Isso, vozes intercaladas. No acorde de fá maior, por exemplo, na terceira inversão, com

o baixo em mi. Eu coloco o 1º trombone fazendo o baixo e logo acima a 1ª trompa, que vai tocar a

fundamental do acorde. O 2º trombone vai soar na nota lá e a 2ª trompa no dó, a nota mais aguda do

acorde: mi-fá-lá-dó. Se o acorde é de cinco notas, eu coloco as flautas, por exemplo, na ponta.

Principalmente se for dar choque, intervalos muito próximos, eu separo o naipe, substituo por outro

instrumento.

Fig. 4. Os naipes são escritos em vozes intercaladas para evitar o choque em intervalos de segunda maior e menor no mesmo naipe.

AC: Tudo intercalado.

DC: Só que aí não dá o choque muito próximo deles, no mesmo naipe. O choque é entre

eles, a distância. Não sei se estou certo com isso, mas, à semelhança do grupo de cordas, sempre

funcionou.

AC: E quais são as suas influências em arranjos desse naipe de orquestra?

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DC: A minha maior influência dos metais é norte-americana. Existe o estilo do Johnny

Mandel, por exemplo, de usar muito clarone, trompa e clarinete, que são timbres doces. Você vê bem

isso nas orquestrações que ele fez para o Tony Bennett, em um disco chamado The Movie Song

Album (28).

AC: Esse álbum eu não conheço.

DC: Muito antigo e lindo, lindo. Tem umas coisas que arranjadores como Pete Rugolo, de

quem lhe falei há pouco, que usavam os instrumentinos da orquestra, acho que foi a primeira vez

que eu ouvi daquela forma na música popular. Nós fomos iniciados nesse repertório todo, norte-

americano, pelo Chico Pereira, um desenhista que fazia as capas do Aloysio de Oliveira, para a

gravadora Elenco. Aquelas capas brancas, misteriosas, branco e preto, que eram só silhueta dos

artistas. Ele como que dissolvia as imagens, criou um estilo próprio e inconfundível.

AC: E ele tinha muitos LPs importados, raros naquela época, suponho.

DC: Tinha. Ficou famoso. Chico fotógrafo. Ele tinha uma coleção de discos que você não

pode imaginar. Ele importava tudo. Tinha um cara que trazia tudo pra ele. Tinha Johnny Christie,

Chris Connor, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, todas as cantoras e cantores de jazz, todos os

pianistas. A primeira vez que eu ouvi o “Modern Jazz Quartet” foi no apartamento do Chico; tudo esse

cara tinha. Tenho até um pecadilho, porque eu nunca mais devolvi um disco dele, que gostava tanto

que eu estava estudando o Pete Rugolo. E fui conhecer o Rugolo, pessoalmente, mais tarde.

AC: O que te chamou a atenção no Pete Rugolo?

DC: Eu fiquei encantado, como arranjador, pelo trabalho daquele cara. Ele tinha umas

introduções que eram completamente diferentes dos outros e tirava um timbre de orquestra diferente

dos outros, que mais tarde apareceu no Nelson Riddle, nos arranjos que ele fez para o Frank Sinatra

no LP Frank Sinatra Sings for Only the Lonely (29). A introdução que o Riddle fez para a canção

“Blues in the Night” (30) [cantarola] é um negócio de louco. O Sinatra cantando [cantarola] uma

música tradicional, mas com outra cara, uma concepção absolutamente original.

AC: E como foi o seu encontro com o Pete Rugolo?

DC: A convite da esposa do Henry Mancini, fui participar de um concerto em homenagem

ao Henry, que tinha morrido havia pouco. A morte dele para mim foi um choque, pois ele morreu

jovem, com câncer na cabeça. E eu fiquei muito triste. Fui convidado pela Fundação Mancini porque

eu fiz aquele arranjo da Pantera Cor-de-Rosa (31), com uma outra cara.

AC: Acho que você atribuiu novos significados a essa que talvez seja a música mais

conhecida do Mancini.

DC: É o que eu digo, não muda o aspecto geral do compositor, mas muda a harmonia dele,

a rítmica, mas continua a mesma coisa, só que não tem mais cara de desenho animado.

AC: E como essa história envolveu o Rugolo?

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DC: No evento promovido pela Fundação Mancini, a Ginny Mancini, esposa dele, chegou

pra mim e falou: “Queria te apresentar a um grande amigo do Henry, que gostou muito do seu

trabalho”. Aí, disse: “Você tem que falar alto porque ele está velhinho”. Aí ela se virou pra mim e

disse: “Vou te apresentar; este aqui é o Pete Rugolo”. Rapaz! Quase caí. Foi como se fosse um chute

abaixo da cintura. Virei pra ele e disse: “Se o senhor soubesse a importância que o senhor tem na

minha vida como músico, como arranjador!... A decisão que eu tomei de fazer arranjo tem muito a ver

com o seu trabalho com June Christy”. Eu falei e olhei bem nos olhos dele e vi aquela lágrima

rolando. Foi um momento emocionante e inesquecível.

AC: A lágrima rolou porque o sujeito não ouve isso de todo mundo, nem todo dia.

DC: Não ouve mesmo. O pior é o negócio da rivalidade. Tem sempre um cara que não

reconhece as ajudas que teve, eu adoro reconhecer isso. Se você tem influência, vai negar por quê?

Eu fiquei tão feliz por reconhecer. Fiquei tão feliz de ver aquele cara, que quase chorei também. Aí eu

disse: “Meu Deus do céu!”. Passei o resto da tarde voando.

AC: Mas que encontro, hein? Porque nessas horas parece que a sua vida atou um nó.

DC: Exatamente. Aquele homem, com 90 anos de idade, já gagazinho, eu falei − que

brincadeira boba, nego quer me matar. Foi uma beleza. Foi a coisa mais bonita que me aconteceu

nessa minha longa estrada. São momentos bonitos na vida. E é só. E é o bastante. Agora, essa

satisfação que você e outros amigos estão me dando de usar o meu trabalho e de achar que eu sou

bonzinho, que eu sou legal, estudar o meu trabalho...

AC: É porque é uma forma de estudar a música brasileira.

DC: Um crítico disse no jornal que a música brasileira agora está toda no meu nome. Que

aos 70 anos eu é que seguro essa peteca. Ele disse: “Será que vai ficar só no Dori?”.

AC: Eu li. É porque você conseguiu manter um conceito musical e de identidade nacional,

enquanto outros artistas ficaram meio assim − “ah, temos que ganhar muita grana, temos que mudar

sempre, para manter o fluxo de caixa” [risos].

DC: Fica muito mais fácil você se adaptar à moda do que você brigar contra isso. Não é

exatamente brigar, mas, pelo menos, firmar o seu ponto de vista. Faço isso há 50 e poucos anos da

minha vida. Estou com 70. Faz 53 anos que eu falo a mesma coisa, que não admito esse descaso

com relação à música do Brasil. A coisa que mais me entristece é olhar para o músico depois de

velho e ver que o cara fez um trabalho lindo e ninguém prestou atenção.

3.4 O Triunvirato da Música Brasileira: Noel, Dorival e Ary

Não poderia haver nada mais carioca do que o prédio de esquina, em frente à “Praça do

Lido”, onde estavam hospedados Dori e Helena, e que finalmente alcançamos após a breve

caminhada. Último refúgio do casal Stella e Dorival Caymmi na Cidade Maravilhosa, a fachada de

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mármore adornada com a esguia porta de ferro e vidro bipartida, o átrio de pé direito duplo, o

acabamento escuro de madeira do antigo elevador com sua característica porta pantográfica, tudo

nos remetia à atmosfera “Art Déco” das primeiras décadas dos 1900. Foi justamente nesse período

que Dorival Caymmi deixou a Bahia para afirmar-se, no Rio de Janeiro, como um dos nossos maiores

compositores de todos os tempos. O que seria apenas o derradeiro cafezinho transformou-se em

uma viagem pelo tempo. No apartamento ainda repleto dos vestígios da presença do patriarca, Dori

acomodou-me na cadeira de balanço de seu pai e embalou-nos a todos com as muitas histórias da

música do Brasil de que foi testemunha ocular e auricular.

AC: Dori, vamos falar um pouco das suas influências. Como foi a transição da geração de

seu pai para a Bossa Nova?

DC: Houve uma época na vida do meu pai que ficou uma lacuna deste tamanho quando

entrou a minha turma, quando entrou a Bossa Nova. Acabou Ary Barroso, acabou meu pai, acabou

tudo.

AC: Eles, para os olhos da época, de repente, ficaram velhos.

DC: Eles ficaram velhos, na hora. Teve um programa de TV, graças à produção de São

Paulo, que começou a chamar papai, Ary, Ataulfo, colocaram aquela velha guarda no ar novamente.

E as pessoas cantando músicas deles sem saber que eram deles. João Gilberto ajudou muito a

levantar esse lado, principalmente Ary e o papai, com o negócio de “Aos Pés da Santa Cruz” (32) e

“Doralice” (33), naquele disco que ele gravou com Stan Getz (34) nos Estados Unidos.

AC: Mostrou que a música deles não tinha idade.

DC: O Ary, harmonicamente, tocando piano, era uma desgraça total. Agora, ele compondo,

eu nunca vi uma coisa tão linda. O estilo de música do Ary é um dos meus favoritos. No triunvirato do

Brasil são ele, Caymmi e Noel, quer dizer, Noel com Vadico.

AC: Muito inspirado. Grande melodista.

DC: O Ary tinha coisas como “Na Batucada da Vida” (35), essa música que Tom gostava

tanto [cantarola]. Poxa, começar uma música assim naquela época − “ ... no dia em que apareci no

mundo, pintou uma porção de vagabundos, da orgia ...” Vai vendo onde o Ary vai parar.

AC: Vai virando o tema, vai abrindo a ideia.

DC: [cantarola] O Tom tocava isso no piano com água nos olhos, porque é muito bonito, e

digo mais, para a música do Tom foi uma referência fortíssima.

AC: “E como eu fui pra ele muito boa, me largou na vida à toa, desprezada como um cão ...”

DC: [cantarola]. Que compositor maravilhoso!

AC: Já usava o acorde meio diminuto direto.

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DC: Eu acho o rock’n roll pobre porque não tem diminuta. O dia que eu fiz uma gravação lá

nos Estados Unidos, com aqueles roqueiros amigos do Sérgio Mendes, porque ele chamou todo o

mundo pop, quando eu dei a diminuta no meio da música os caras fizeram “Oh, He is so diferent!” [ele

é tão diferente!]. Eu gravei com os roqueiros, no primeiro disco com Sérgio Mendes − Brazil’s 86 (36),

e aí comecei a colocar os acordes, por exemplo, com a sétima e a quinta aumentada, que os caras

pouco conheciam. Você usa a sétima e os caras, “mas, como?”. E o jazz já está aí fazendo isso tudo

há um tempão, mas eles não conheciam. Eu falei pra eles: “A geração antes de vocês já estava

fazendo isso aí e vocês não viram”.

AC: Mas vamos voltar ao Ary e ao Tom, da relação que você vê entre os dois.

DC: Você vê a influência do Ary na balada do Tom, o samba-canção do Tom tem a

estrutura do Ary Barroso na cabeça, tem tudo dele, você pega: “Teu olhar é um sonho azul, teu

sorriso uma promessa louca” (37) [cantarola]. Papai cantou isso lindo num disco chamado Ary

Caymmi e Dorival Barroso. Queria que você escutasse esse disco. Ele cantava só de violão: “Maria, o

teu nome principia, na palma da minha mão e cabe bem direitinho dentro do meu coração” (38). Ary

era um craque. Ele talvez seja, do ponto de vista brasileiro, o cara mais completo, na minha opinião.

A cara do Brasil. Noel é a cara do Rio, é muito mais carioca, o trabalho dele é de cronista. E papai é

baiano, quer dizer, a música dele ficou internacional na época, mas ele é baiano. Ficou internacional

por causa da Carmem Miranda, porque o negócio dele é tão único que agora Zuza Homem de Mello

escreveu, de novo: “Não tem antes, não tem depois, não tem seguidor”. A única pessoa que

consegue cantar canção praieira sou eu, quando eu acabar não tem outro. Por que eu traduzo esse

sentimento que eu vi ali do meu lado, desde de priscas eras, como se dizia.

AC: É uma música misteriosa.

DC: Eu agora usei na orquestra [cantarolando uma melodia muito grave]: “O Abaeté tem

uma lagoa escura” (39). Era um encantamento que eu não sei de onde vinha. Eu dizia: “Mas, Dorival

Caymmi! Quem diria...”.

AC: Ele ouvia muito os compositores eruditos?

DC: Eu não sei, rapaz. Pode ter ouvido pouco e ter sido muito influenciado. Calçou a

cabeça dele de uma tal maneira. Ele adorava [Jules] Massenet. Tem uma coisa de Massenet, “...Por

que despertar-me, oh! sopro de primavera?” (40). Não tem nada a ver com a música dele, mas ele

adorava. Ele adorava o “Prelúdio, Coral e Fuga” (41) de César Franck, ele ficava escutando essas

coisas todas, mas não escutava com frequência, passavam por ele. Agora, “O Mar” (42), por

exemplo, teve gente que o acusou de roubar a “Alvorada” (43) de Grieg [cantarola].

AC: É diferente.

DC: Não é só uma questão de ser diferente, é uma outra coisa, uma outra colocação. O

Tom é muito mais evidente. Papai, você acha pouca coisa dele com relação à música clássica. O

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Tom, você pega o “La Plus que Lente” (44), é muito mais evidente o que ele tomou para si, e ainda

colocou o verso “Pétalas de rosas espalhadas pelo vento” etc. (45)

AC: E tem uma citação dos versos do Manoel Bandeira, que está na canção do Villa-Lobos,

“a frescura das gotas úmidas” (46).

DC: Você pega o Ravel, também [cantarola]. Você pensa em “Tristão e Isolda” (47), mas é o

“Daphnis et Chloé” (48). Tem hora que é muito descritivo, que mistura uma com a outra, porque casa

tanto que você pensa no Wagner, mas é Ravel.

AC: E no caso do Jobim, também tem uma citação disso?

DC: No Matita Perê (49) [cantarola]. Ele abrasileira o Ravel. Fazia muito parte do show dele

captar essa atmosfera e traduzir isso nas próprias composições. Ele trabalhava muito de madrugada.

Ele dormia cedo, chegava dez horas da noite e já estava dormindo. Três horas da manhã acordava,

ia para o sótão tocar piano e ouvir música. Então as coisas vinham. Agora, tinha um negócio que ele

fazia na hora, em tempo real, que era genial, imbatível. Por exemplo, quando fomos gravar pela

primeira vez, eu fiz o arranjo do “Saudade da Bahia” (50) no disco “Caymmi Visita Antônio Carlos

Jobim” (51). Quando eu cantei o primeiro verso “Ah, que saudade eu tenho da Bahia”, para mostrar

para ele a harmonia, ele já fez aquele contracanto belíssimo, extremamente melódico e criativo.

Pensei, não pode ser, um cara desse tem que ser reverenciado. Ele tinha essa musicalidade extrema,

a influência do Ary, brutal, a influência do Villa, brutal.

AC: Ele era vidrado no Villa-Lobos.

DC: O Villa-Lobos, tem uma coisa dele que eu ouvi no piano, na minha época de pianista,

que eu queria muito tocar: “A Lenda do Caboclo” (52) [cantarola].

AC: Villa-Lobos tinha uma melodia interna forte, muito na linha do Dorival Caymmi.

DC: É Brasil na veia. Ele teve um encontro com o papai. Ele tem coisas lindíssimas, a

própria melodia do “Trenzinho do Caipira” (53) é uma coisa de uma beleza louca.

AC: E tem as coisas do folclore que ele incorporou.

DC: A “Bachiana nº 5” dele, que abre com uma voz para baixo e outra para cima, e vai

subindo [cantarola]. É o canto brasileiro! Não podia ter brega no Brasil. Se todos tivessem escutado

Villa-Lobos do jeito que tinha que escutar não podia ter mais brega no Brasil. O problema é a falta de

acesso a essa fonte genuína e fica desse jeito. Minas foi salva pelos negros.

AC: Foi. Em todos os aspectos.

DC: É, em todos os aspectos, eu acho. A musicalidade mineira vem muito desse canto

brasileiro, antes dos Beatles, naturalmente. Você vê que o Milton Nascimento vem dessa escola, o

Sérgio Santos, agora, vem dessa escola.

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AC: Voltando um pouco. É importante você mostrar como João Gilberto foi decisivo no

resgate dessa geração, anterior à Bossa Nova.

DC: João Gilberto é a essência de como se portar diante de uma canção, quando você está

cantando. A posição do meu pai tocando violão e cantando, ele também tinha a mesma coisa, ele

nunca colocava um acorde num lugar errado que atrapalhasse, então, com isso a pessoa abre um

campo limpo para você poder trabalhar e cantar sem nenhuma trapalhada.

AC: Sem criar armadilhas para o cantor. Até armadilhas harmônicas.

DC: Exatamente. Fica bem óbvia a diferença entre o instrumentista que toca como solista e

o que sabe acompanhar. O Tom trabalhou em boate, acho; quando ele começou não tinha 20 anos,

acompanhava uma cantora chamada Dora Lopes, num bar aqui na Princesa Isabel, chamado

“Tasca”. Essa foi para mim a melhor época dele, a composição dessa fase contrasta com o que ele

fez depois, na minha opinião. “Quando um coração está cansado de sofrer, encontra um coração

também cansado de sofrer” (54): brincadeira! “Ah, você está vendo só do jeito que eu fiquei” (55) −

que sambas maravilhosos. Estrada do Sol − “É de manhã, vem o sol mas os pingos da chuva que

ontem caiu” (56) [cantarola]: que melodia bonita. Essa fase dele é uma fase que não tem igual:

“Quero que você me dê a mão, vamos sair, por aí”. Essa e a fase com o Vinícius de Moraes, quando

ele também musicou os sonetos do Vinícius. Estrada Branca (57) ou Caminho de Pedra (58): “Velho

caminho por onde passou, carro de boi, boiadeiro ....”, aí faz a segunda parte, “caminho perdido na

serra, caminho de pedra... ou ..... vai me ver, só sei que hoje tenho em mim um caminho de pedra no

peito também. Hoje sozinho nem sei pra onde vou, é o caminho que vai me levando”. Quando ouvi

essa música com Elizeth Cardoso (59), eu desabei, fiquei chorando do lado da vitrola [cantarola].

AC: Tá na “Sinfonia do Alvorada” (60)?

DC: Está. O Radamés ajudou muito o Tom nesse trabalho; parece que o Radamés estava

com ele nesse disco com a Elizeth também.

AC: Ideias que ele utilizou no “Gabriela” (61), também, não é?

DC: É. Porque é muito difícil você, depois de construir tantas coisas bonitas, depois de ter

construído tanta beleza, ainda ter alguma coisa original. E esse troço de “Caminho perdido na serra,

caminho de pedra onde não vai ninguém”. Para época... “Só sei que hoje tenho em mim o caminho

de pedra no peito, também. Hoje sozinho eu nem sei pra onde vou, é o caminho que ...”. Sabe, um

Brasil desse tamanho na cara desses pamonhas e os caras não percebem.

AC: Aquela que você gravou várias vezes, arranjou várias vezes, inclusive com o Renato

Brás, que tem a segunda parte em modo menor. “Eu sei que você sabe, já que a vida quis

assim” (62).

DC: João Gilberto fez a introdução [cantarola] e preparou o início da canção. Eu ouvi aquilo

e falei, quem é esse cara? Era do disco, antes do dele, parece que no disco produzido pelo selo

“Festa”, do Irineu Garcia. Foram apenas dois discos, esse e da Lenita Bruno (63), cantando “Por

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Toda a Minha Vida” (64). Ele faz: “Oh, meu bem amado, quero fazer-te um juramento uma canção”

[cantarola]. “Mas, quero as janelas abrir, para que o sol possa vir, iluminar nosso amor” (65). São

melodias fenomenais. Isso é um estudo de música popular que tem que ser feito com urgência, a

respeito desse tipo de melodia, desse tipo de canção. Inclusive porque tudo isso tem a alma do Ary

Barroso. É brincadeira! Um dia cantei essas canções num show em São Paulo, uma atrás da outra,

só de violão, e fez-se aquele silêncio. Cada música dessa que eu tocava, eu queira homenagear o

Antônio Carlos Brasileiro. Tom tinha morrido, aí peguei o violão e comecei a tocar Tom Jobim e

Vinícius de Moraes, eu toquei umas cinco dessas. “Estrada Branca” é imbatível, quando você manda

“Estrada Branca” o público rapidamente compreende.

AC: “Estrada Branca” é demais, com o Sinatra, é uma das coisas mais bonitas daquele

segundo trabalho (66) que ele gravou com o Tom Jobim.

DC: “Estrada Branca, lua branca, noite alta, caminhando ... uma saudade uma vontade tão

doída de uma vida ... oh, estrada!” Não há nada melhor do que o Tom e o Vinícius dessa época aí.

Nem “Garota de Ipanema” (67) chegou perto.

AC: Era o Brasil brejeiro do Tom Jobim.

DC: Sim. O Brasil do Tom que teve muita identificação com o Bonfá também. Curioso que,

com o tempo, esse tipo de música que eles fizeram juntos ficou praticamente identificado só com o

Tom, como “A Correnteza” (68). É do Bonfá Coelho também. “A correnteza do rio vai levando aquela

flor ...”, esta parte é a cara do Bonfá. Depois vem, “E choveu uma semana, o barro ficou marcado

aonde a boiada passou”, uma formação melódica típica do Tom. Agora mesmo o Paulo César

Pinheiro escreveu a “Toada do Carro de Boi” (69), que eu musiquei, e deixou marcado isso, visitou

novamente esse tema. É reflexo dessa coisa toda.

AC: Dori, obrigado pela entrevista e pela tarde de conversas musicais de que, certamente,

nos lembraremos com muito carinho e saudade nos anos que estão por vir. Como você gostaria de

encerrar este nosso encontro musical?

DC: Brindando uma dose de uísque. Obrigado.

4. Caía a Tarde Feito um Viaduto

Deixamos o apartamento dos Caymmi já no cair da tarde. O anfitrião fez questão de descer

conosco e nos embarcar no táxi que, muito solícito, foi chamar do outro lado da rua. O bar na lateral

do prédio já está fervilhando de foliões que se aquecem, com chope gelado, para mais uma jornada

nos festejos de Momo. A batucada de samba soa alto e nosso entrevistado comenta, em tom de

brincadeira, que aquela seria mais uma noite longa e ruidosa. Para nós tudo soa extremamente

musical: não haveria uma trilha sonora melhor para expressar nosso entusiasmo, após aquelas horas

de conversa com o renomado maestro, compositor, violonista e cantor Dori Caymmi, genuíno

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representante da música popular do Brasil. Guardião do segredo e de sua incomunicabilidade, como

disse o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Lista de citações musicais:

(1) Amargura (Radamés Gnattali e Alberto Ribeiro)

(2) Conversa de Botequim (Noel Rosa e Vadico)

(3) Medo de Amar (Vinicius de Moraes)

(4) Serenata do Adeus (Vinícius de Moraes)

(5) Linda Flor (Luiz Peixoto, Henrique Vogeler e Marques Porto)

(6) Matita Perê (Antonio Carlos Jobim e Paulo César Pinheiro)

(7) Aquarela do Brasil (Ary Barroso)

(8) Você já foi à Bahia? (Dorival Caymmi)

(9) Bill Evans Trio with Symphony Orchestra (1966)

(10) Valse (Siciliano In G Minor) (J. S. Bach)

(11) Pavane (Gabriel Fauré)

(12) Saudade de Brasil (Antonio Carlos Jobim)

(13) Quadros de uma Exposição (Modest Mussorgsky) (orquestrado por Maurice Ravel)

(14) Bolero (Maurice Ravel)

(15) “L'Après-midi d’un faune” (Poema Sinfônico composto por Claude Debussy)

(16) Dorival Caymmi – Centenário (Gravadora Biscoito Fino, 2014)

(17) É Doce Morrer no Mar (Dorival Caymmi)

(18) A Lenda do Abaeté (Dorival Caymmi)

(19) When I Fall in Love (Edward Heyman e Victor Young)

(20) Embriagador (Fernando Leporace e Nelson Wellington)

(21) CD “Quadros Modernos” (Minas Records, 1998)

(22) Cinema Paradiso (Ennio Morricone)

(23) CD “Cinema, a Romantic Vision” (Dori Caymmi, 1999)

(24) CD “The Look of Love” (Diana Krall, 2001)

(25) LP “Brazilian Romance” (Sarah Vaughan, 1987)

(26) Yentl, filme americano estrelado e dirigido por Barbra Streisend, com trilha original de Michel

Legrand

(27) CD “João” (de João Gilberto, com arranjos de Claire Fisher, 1991)

(28) “The Movie Song Album” (Tony Bennett, 1966)

(29) “Only the Lonely” (Frank Sinatra, 1958)

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(30) “Blues in the Night” (Johnny Mercer e Harold Arlen)

(31) The Pink Panter (Henry Mancini)

(32) Aos Pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda)

(33) Doralice (Dorival Caymmi)

(34) Getz/Gilberto (1963)

(35) Na Batucada da Vida (Ary Barroso)

(36) Brazil’s 86 (grupo de Sérgio Mendes)

(37) Tu (Ary Barroso)

(38) Maria (Ary Barroso)

(39) A Lenda do Abaeté (Dorival Caymmi)

(40) “Pourquoi me Réveiller” (Jules Massenet)

(41) Prelúdio, Coral e Fuga (César Frank)

(42) O Mar (Dorival Caymmi)

(43) Alvorada (Morning Mood, Peer Gynt, Suite nº 1, Op.46 nº 1, Morning Prelude, Edvard Hagerup

Grieg)

(44) La Plus que Lente (Claude Debussy)

(45) Chovendo na Roseira (Antonio Carlos Jobim)

(46) Seresta no. 9 (Heitor Villa-Lobos sobre o poema de Ribeiro Couto)

(47) “Tristan und Isolde” – Prelude (Richard Wagner)

(48) “Daphnis et Chloé” (Maurice Ravel)

(49) Matita Perê (Antonio Carlos Jobim e Paulo César Pinheiro)

(50) Saudade da Bahia (Dorival Caymmi)

(51) Álbum “Caymmi Visita Tom” (Elenco, 1963)

(52) A Lenda do Caboclo (Heitor Villa-Lobos)

(53) O Trenzinho do Caipira – Bachianas nº 2, Toccata (Heitor Villa-Lobos)

(54) Caminhos Cruzados (Antonio Carlos Jobim e Newton Mendonça)

(55) Por Causa de Você (Antonio Carlos Jobim e Dolores Duran)

(56) Estrada do Sol (Antonio Carlos Jobim e Dolores Duran)

(57) Estrada Branca (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(58) Caminho de Pedra (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

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(59) Long-play “Canção do Amor Demais” (selo Festa, 1958)

(60) Brasília, Sinfonia da Alvorada (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(61) Tema de Amor para Gabriela (Antonio Carlos Jobim)

(62) Eu Não Existo Sem Você (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(63) Long-play “Por Toda a Minha Vida” (de Lenita Bruno, selo Festa, 1959)

(64) Por Toda a Minha Vida (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(65) Janelas Abertas (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(66) “This Happy Madness” (Antonio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes e Gene Lees, no LP “Sinatra &

Companny”, 1971)

(67) Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes)

(68) A Correnteza (Antonio Carlos Jobim e Luís Bonfá)

(69) Toada do Carro de Boi (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)