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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA - UNAMA MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA CCHE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA: LINGUAGEM E ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS CULTURAIS José Maria Damasceno Ferreira ENTRE O RIO E A PONTE: letras e identidades às margens do rio Acará, na Amazônia paraense Belém 2012

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA - UNAMA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGEM E CULTURA

CCHE – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGEM E ANÁLISE DISCURSIVA DE PROCESSOS

CULTURAIS

José Maria Damasceno Ferreira

ENTRE O RIO E A PONTE:

letras e identidades às margens do rio Acará, na Amazônia paraense

Belém

2012

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José Maria Damasceno Ferreira

ENTRE O RIO E A PONTE:

letras e identidades às margens do rio Acará, na Amazônia paraense

Dissertação de Mestrado apresentada à

Universidade da Amazônia – Unama, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Comunicação, Linguagem e

Cultura, linha de pesquisa: Linguagem e

Análise Discursiva de Processos Culturais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ivânia dos Santos

Neves.

Belém

2012

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José Maria Damasceno Ferreira

ENTRE O RIO E A PONTE:

letras e identidades às margens do rio Acará, na Amazônia paraense

Dissertação de Mestrado apresentada à

Universidade da Amazônia – Unama, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Comunicação, Linguagem e

Cultura, linha de pesquisa: Linguagem e

Análise Discursiva de Processos Culturais.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ivânia dos Santos

Neves.

BANCA EXAMINADORA:

______________________________________________

Presidente/orientador: Prof.ª Dr.ª Ivânia dos Santos Neves (UNAMA)

______________________________________________

Professora Dr.ª Maria do Rosário V. Gregolin – Examinadora Externa (UNESP – Araraquara)

______________________________________________

Professor Dr. Agenor Sarraf Pacheco – Examinador Interno (UFPA)

______________________________________________

Professora Dr.ª Fátima Cristina da Costa Pessoa – Examinadora Externa (UFPA)

______________________________________________

Ana Célia Bahia da Silva – Examinadora Interna (UNAMA)

Nota: _____________

Belém, ____/ ______/ 2012.

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Dedico este trabalho à memória de meus pais:

Júlia Damasceno Ferreira e José Ferreira

Neto, que foram os grandes colaboradores de

minha educação e de minha formação. Eles

que muitas vezes remaram contra a maré para

permitir que os filhos pudessem viajar nos

remansos da vida.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus pela oportunidade dada a mim de ter a vida e de

ser o que sou, e pela realização de cursar o mestrado, cujos efeitos se fizeram nas minhas

incipientes remadas em águas da ciência e meu mergulho na cultura em que nasci.

À Mãe Maria Santíssima por se fazer presente em todos os momentos de minha vida,

permitindo-me proteção, amor e a razão em minhas decisões.

Meu agradecimento, em tom de imenso respeito e gratidão, a minha esposa Jucimare

Monteiro Ferreira que se constituiu em companheira e amiga, acompanhando-me nas viagens

rumo ao lócus da pesquisa e até, algumas vezes, me servindo como fotógrafa; e que mesmo

quando não queria se vestiu de compreensão me deixando livre para pensar, analisar e

produzir esta dissertação. Ex-ribeira como eu foi muito participativa em minhas observações e

além do mais uma grande incentivadora de meus estudos.

A meus filhos Márcio, Taiara e Leuan que me concederam compreensão e apoio nos

momentos em que necessitei saltar no rio e nadar em busca do entendimento de práticas

escolares produzidas no ambiente da escola e da sociedade. Além da compreensão Taiara

ainda, favorecida por seus conhecimentos de psicóloga, contribuiu para que eu entendesse o

processo de introjeção derivado de relações de poder, permitindo assim, que eu alcançasse

melhor entendimento sobre alguns acontecimentos observados entre os sujeitos sociais da

pesquisa. Obrigado Leuan pelas fotografias passadas para o computador e pelos textos dos

alunos que passaste horas escaneando-os. Meus filhos, Deus vos abençoe por me autorizarem

a escrever sem me tirarem a concentração com qualquer falha comum à adolescência e à

juventude.

Aos meus irmãos agradeço o apoio, mesmo quando distantes estão sempre

demonstrando contentamento, dando Graças a Deus em todas as conquistas e oferecendo

apoio nas dificuldades. As muitas conversas que travei com alguns, por conta de nossa

história ribeira, contribuíram com esclarecimentos de dados sobre a realidade às margens de

rios e igarapés da Amazônia paraense. Um muito obrigado especial aos meus irmãos Afonso

Nivaldo e Júlia Cristina, a ele pela contribuição metodológica já que recentemente concluíra

seu mestrado; a ela pela disponibilidade dispensada sempre que lhe solicitei alguma ajuda,

seja como orientação ou por indicação de referencial no plano da educação. Deixo aqui um

aplauso de contentamento a nossa mãe por ter nos ensinado a rir com a vitória alheia e a

estender as mãos nos momentos de deslize.

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A meus cunhados que diversas vezes me economizaram nas tarefas domésticos,

auxiliando minha esposa em seus chamados para aquilo que requeria uma mão masculina.

À professora doutora Ivânia Neves, orientadora deste trabalho, por ter abraçado meu

projeto mesmo sem a firmeza inicial, de que chegaríamos a algum lugar, mas com a

empolgação de uma antropóloga me incentivou ao desbravamento de meu próprio espelho,

porque como ex-ribeiro eu teria de ver o ribeirismo que talvez não conhecesse ou o soubesse

de outro ângulo. Sua tese sobre “A invenção do Índio” foi muito relevante para que eu

assimilasse a condição subalterna do ribeiro como acontecimento de “colonização social”.

Professora, obrigado por seu comprometimento e seriedade nas pesquisas que realiza e orienta

sobre a Análise do Discurso, especialmente no espaço amazônico.

Ao corpo docente desse mestrado pelo comprometimento com o ensino e pela

disponibilidade sempre que solicitado; porém deixo aqui um agradecimento especial ao

professor Agenor Sarraf pelo entusiasmo contagiante com que passa seus conhecimentos e

saberes e pela completa disponibilidade desejando que cada cursando pudesse se encontrar e

se realizar na pesquisa abraçada; e à professora Ivone Xavier que se mostrou amiga e

conselheira no momento em que eu iniciava a pesquisa, mas estava com dificuldade em me

distanciar para produzir o estranhamento necessário, já que tudo parecia tão íntimo meu; e

ainda pelo apoio dado a minha escrita.

Agradeço à banca examinadora, professoras Maria do Rosário Gregolin, Ana Célia

Bahia da Silva e Fátima Cristina da Costa Pessoa, que se dispuseram a colaborar comigo, na

finalização deste trabalho

À professora Rosângela, que mesmo sempre cheia de muitas tarefas, abriu as portas da

escola Ronaldo Passarinho para que eu adentrasse e ali armasse meu observatório no intuito

de analisar as ocorrências identitárias e o processo de letramento naquela sociedade ribeira.

Esse agradecimento se estende de modo muito carinhoso e com todo respeito e gratidão às

crianças e adolescentes – sujeitos da pesquisa – que com muita dedicação e disposição

contribuíram para a produção de dados. Sem eles a pesquisa não aconteceria.

Meu obrigado respeitoso aos pais dos alunos e aos demais membros da sociedade

ribeira do baixo Rio Acará pelas contribuições dadas a esse trabalho, seja com a produção de

dados, seja com apoio logístico.

Agradeço à Secretaria de Estado de Educação – SEDUC - PA – por acreditar em meu

trabalho, deferindo assim minha solicitação de licença para realizar o curso.

Aos meus colegas da “turma mágica”, que mesmo sem saber somaram muito para o

conhecimento que adquiri no curso do mestrado e para a preparação desse texto.

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Quero registrar um agradecimento muito especial, em memória, à professora Maria de

Fátima, que nos deixou em 2011, em pleno processo de pesquisa, ela que foi a mentora da

escola que hoje recebe o nome de Ronaldo Passarinho, pois antes mesmo do poder público

construir a escola, essa mulher e cidadã, que se tornara professora – primeiro por convicção e

mais tarde por formação, já ensinava os próprios filhos e algumas crianças das proximidades

na sala de sua casa. É Dona Fátima, como era conhecida pela sociedade do Baixo Rio Acará,

Deus lhe levou, mas a senhora plantou o seu legado da escrita e da leitura, possibilitando

visibilidade a quem talvez tivesse fadado ao silenciamento.

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RESUMO

Este trabalho é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada a partir da Escola

Municipal de Ensino Fundamental Ronaldo Passarinho, localizada no município de Acará, na

margem direita do Baixo Rio Acará e a sociedade ribeira que vive em seu entorno. A escola

está posicionada em ponto de confluência da estrada com o rio. Os sujeitos da minha pesquisa

foram os alunos da classe multisseriada que reúne a terceira e quarta série, a única professora

da escola e a sociedade do entorno. O estudo buscou reconhecer os processos de letramento

que são desenvolvidos em sala de aula a partir da observação participante e da análise de

textos e desenhos produzidos pelos alunos durante as atividades da pesquisa. Procurei mostrar

como estes sujeitos constroem suas identidades naquele contexto de entrelugar, onde

convivem entre a tradição de suas famílias e os discursos urbanocêntricos. A construção da

estrada da Alça Viária, em 2002, representou a chegada de outros padrões aos moradores da

região, cuja consequência está na inserção acelerada dessas populações nos acontecimentos

globais. Esse acesso às mídias contribui para as alterações em suas práticas culturais ou as

ressignificações delas. Tomei como principais referências de pesquisa e análise as discussões

teóricas da análise do discurso de linha francesa e dos princípios de Bakhtin, bem como

algumas referências dos Estudos Culturais Britânicos e Latino-americanos.

Palavras-chave: Sociedade ribeira. Classes Multisseriadas. Contexto de Entrelugar.

Letramento. Identidade. Discurso.

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ABSTRACT

This work is the result of an ethnographic study from the Municipal School of

Ronaldo Finch Elementary School, located in Acará on the right bank of the Lower Acará

River and society that lives around it. The school is located between the road and the river.

The subjects of my research were students in the class that meets multisseriate the third and

fourth grade, the only teacher at the school and the surrounding society. The study sought to

recognize the literacy processes that are developed in the classroom from the participant

observation and analysis of texts and drawings produced by students for research activities. I

tried to show these individuals construct their identities in that hybrid context, where the

tradition of living with their families and speeches focused on urbanity. Road construction

Road Grip, in 2003, was the arrival of other standards to local residents, whose result is the

accelerated integration of these populations in global events. This access to the media

contributes to changes in their cultural practices or the reinterpretation of them. I took as the

main references of research and analysis the theoretical discussions of discourse analysis of

the French and the principles of Bakhtin, as well as some references of British cultural studies

and Latin American.

Keywords: River Society. Class Multiseriated. Literacy. Hybrid context. Identity. Discurse.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: soltando a canoa ...................................................................... 12

CAPÍTULO I – FAZENDO E REFAZENDO CAMINHOS: percursos da

Pesquisa ..................................................................................................................

21

1.1 ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL RONALDO

PASSARINHO ........................................................................................................

22

1.2 OS SUJEITOS DA PESQUISA ........................................................................... 26

1.3 ENTRE INTIMIDADES E ESTRANHAMENTOS: MINHA “BRIGA DE

GALO” .....................................................................................................................

28

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................................................... 29

1.4.1 Dialogismo e práticas de leitura à margem do rio Acará ....................... 31

1.5 O DISCURSO EM IDENTIDADES RESSIGNIFICADAS ............................. 36

1.5.1 Tessitura em memórias discursivas ............................................................ 40

CAPÍTULO II – ENTRE A TELEVISÃO E O RIO ACARÁ:

movimentações de sentidos ...................................................................................

43

2.1 LETRAMENTOS ENTRE VIVÊNCIAS DIFERENTES ................................ 44

2.1.1 Sentidos da leitura entre alunos ribeiros .................................................... 46

2.2 IMBRICAMENTOS DE VIVÊNCIAS E CULTURAS ................................... 50

2.2.1 Havia um boto no meio do caminho .......................................................... 52

2.2.2 Um caso que teve no rio de janeiro: a tragédia de Realengo .................... 55

2.2.3 Entre rios e cores........................................................................................... 56

CAPÍTULO III – DISCURSOS E IDENTIDADES ........................................... 61

3.1 MICROPODERES NO BAIXO RIO ACARÁ ................................................. 62

3.2 A DESTREZA E A NATUREZA COMO IDENTIDADE .............................. 66

3.3 A ESTRADA NÃO APARECE NO “NOSSO LUGAR” ................................. 69

3.4 UM PAÍS MELHOR ESTÁ DISTANTE ......................................................... 77

CAPÍTULO IV – RIBEIRO: à margem do discurso ......................................... 80

4.1 IDENTIDADES NA PÓS-MODERNIDADE .................................................. 81

4.1.1 A canoa, as meninas e o celular ................................................................... 82

4.1.2 Entre pedaladas e remadas .......................................................................... 84

4.2 INVENTANDO DISCURSOS .......................................................................... 85

4.2.1 Caboclos ou ribeirinhos? atualização de memórias .................................. 87

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4.3 DE QUE LUGARES SE FALA SOBRE OS “RIBEIRINHOS”? .................... 89

4.4 “RIBEIRINHOS” EM SALA DE AULA ......................................................... 94

4.5 RIBEIROS OU RIBEIRINHOS? ENTRE “EU” E O “OUTRO” .................... 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS: atracando a canoa .............................................. 99

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 103

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 01 – Escola Ronaldo Passarinho - Prédio atual 23

Figura 02 – Antigo prédio da escola Ronaldo Passarinho 23

Figura 03 – Atividades de leitura na escola 25

Figura 04 – Alunos da escola na canoa, voltando para casa 26

Figura 05 – Caso de Boto 53

Figura 06 – A tragédia de Realengo lida Baixo Acará 55

Figura 07 – O rio azul 57

Figura 08 – Alunos da escola Ronaldo Passarinho 62

Figura 09 – O carro e a ponte 64

Figura 10 – Baixo Rio Acará 67

Figura 11 – Casa de um aluno da escola 69

Figura 12 – Texto sobre o meu lugar 70

Figura 13 – O desenho de Darilene 72

Figura 14 – O texto de Darilene 74

Figura 15 – Painel um país melhor 77

Figura 16 – Aluno dirigindo um rabudo no Baixo Acará 84

Figura 17 – Matéria veiculada no portal G1 90

Figura 18 – Matéria da Carta Capital 91

Figura 19 – Divulgação de projetos universitários 92

Figura 20 – Propaganda turística 93

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INTRODUÇÃO: soltando a canoa

As identidades são transitórias e precárias. O problema é que elas são quase

sempre vividas como definitivas e eternas. Mais grave ainda é que a identidade

toma-se a si mesma muito a sério. E atira-nos para a tentação de nos definirmos

como essências, entidades puras, certezas inabaláveis que justificam guerras e

cruzadas.

Mia Couto

Meu interesse por sociedades que organizam suas práticas culturais a partir da relação

que estabelecem com os grandes rios da bacia amazônica não é recente. Sou natural do

município de Barcarena, no estado do Pará, e nasci às margens do rio Pará. Aos embalos das

marés, fui, até os meus oito anos, um “beirante de rio” – expressão usada por Dalcídio

Jurandir, em sua obra Primeira Manhã, para se referir aos habitantes das margens de rios no

Marajó.

Os romances de Dalcídio Jurandir representam uma das mais autorizadas fontes de

pesquisa antropológica e histórica sobre a Amazônia paraense no século XX, especialmente

quando os interesses estão voltados para sociedades que vivem às margens dos rios

amazônicos. Nessa obra o escritor marajoara não fala em “ribeirinhos” para se referir a estas

sociedades. E ainda que não fosse uma discussão da obra de Dalcídio, assim como ele, aqui

neste trabalho, minha posição política é usar a palavra ribeiro. Entendo que a denominação

“ribeirinho” é uma construção de cunho colonialista, que forja, dentro de perspectiva

evolucionista, uma identidade singular para estas populações, que lhes deixa à margem da

história de desigualdades sociais que marcam profundamente a estrutura sociocultural de

sociedades latino-americanas. Ao longo desta dissertação, eu me detive a analisar a

movimentação de sentidos que constitui esta questão identitária.

Minha saída daquele espaço “aquocêntrico” se deu por decisão de meus pais, que

partiram para a capital do estado, Belém, a fim de que os filhos pudessem estudar em escolas

melhores, mais estruturadas. Minha trajetória de vida se atravessa, portanto, pela questão da

escola – a razão por que minha família decidiu morar em uma cidade maior. Esta condição

inicial já denuncia uma educação precária em áreas rurais da Amazônia, especificamente a

paraense, com sérios problemas em relação às obrigações primárias do Estado. Após 37 anos

de minha partida para Belém, retorno agora, como pesquisador, e vejo – com pesar – que se

deram poucas mudanças naquilo que consiste às políticas públicas na região em que nasci.

A pesquisa aconteceu na Escola Municipal de Ensino Fundamental Ronaldo

Passarinho, localizada no município de Acará, na margem esquerda do baixo rio Acará,

próxima à escola antes pretendida para a pesquisa. O acesso a esta escola pode ser realizado

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por intermédio de barco – a duas horas e meia de Belém – ou de carro pela Rodovia PA- 283,

a 45 km do município de Marituba, componente da Grande Belém.

Realizei neste trabalho aquilo que se chama de etnografia, dentro de uma sala de aula

multisseriada e multietária. Estive com os sujeitos por várias sextas-feiras e pude participar

das atividades de leitura. A princípio, apenas observava, mas depois do primeiro encontro

com a turma, tive a oportunidade de propor uma oficina com os alunos, que tiveram como

resultado os textos e desenhos que analiso nesta dissertação. A partir da convivência com eles,

pude compreender um pouco mais sobre a realidade daquela região, para onde, em 2011,

retornei um estrangeiro.

As crianças que estudam, nesta escola, constituem suas identidades cambiantes a partir

de um entrelugar, espaço de trânsito que cruzado pelo tempo produz “[...] figuras complexas

de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.”

(BHABHA, 2007, p. 19). Então, o que Bhabha pensa sobre os entrelugares é que “[...]

fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva –

que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação,

no ato de definir a própria ideia de sociedade.” (BHABHA, 1998, p. 20).

Em 2002, o Governo do Estado do Pará, em parceria com o Governo Federal,

finalizou o projeto de abertura e pavimentação da estrada, incluindo a construção de diversas

pontes sobre rios e igarapés, que hoje forma o complexo conhecido como Alça Viária. Estas

pontes e as novas rodovias têm por objetivo ligar o estado de uma ponta à outra por meio de

uma malha viária. A chegada das rodovias estabeleceu novas ordens discursivas entre as

populações “beneficiadas” pelo acesso mais facilitado aos centros urbanos da região,

especialmente à capital do estado – Belém.

As crianças que estudam na escola Ronaldo Passarinho convivem com a cultura de

suas famílias, com os saberes de seus antepassados relacionados à floresta e aos rios,

conduzindo-os a práticas de vida muitas vezes silenciadas pela própria escola. Por outro lado,

a construção da estrada da Alça Viária representou a chegada de outros padrões, vindos com a

eletricidade e com os mais diferentes meios mediáticos, que penetram esse “mundo”, indo

desde os rios até as áreas de “colônias”, como são conhecidas as regiões que se distanciam

dos rios maiores e das cidades da Amazônia, e que se apresentam encravadas na floresta –

muitas vezes em regiões de terra firme – espaços um pouco mais isolados.

A nova condição proporcionada pelo mundo atual (meios de locomoção mais velozes),

acelera a inserção dessas populações nos acontecimentos mais globais, e com isso o maior

acesso às mídias aparece como relevante contribuição, promovendo sensíveis alterações nas

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práticas culturais destas sociedades, como as inserções das programações das televisões nos

temas dos diálogos cotidianos, substituindo as conversas da “boca da noite” em que vários

casos de visagem e assombração eram contados, principalmente quando se recebiam visitas,

conforme a fala de uma senhora com seus mais de noventa anos.

Não é minha intenção questionar esse trânsito intercultural nem mediar se há perdas

para alguém, no entanto é necessário enfatizar que este, como todo encontro cultural, é

marcado por relações de poder, há os que preconceituosa ou discriminatoriamente são postos

à margem dos valores sociais, cujos padrões demandam poder. Na questão aqui colocada, os

ribeiros são olhados como o povo colonizado, cuja subordinação se manifesta em relação ao

colonizador – por hora neste texto, caracteriza aquele que representa os ideais

urbanocêntricos, que são legitimados pela mídia. Neste mesmo sentido Gregolin (2007, p.

16), argumenta que:

Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel de mediação

entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a

realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de

representação da sua relação com a realidade concreta.

Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio

do qual é construída uma “história do presente” como um acontecimento que

tenciona a memória e o esquecimento. É ela, em grande medida, que formata a

historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que

nos liga ao passado e ao presente.

Estas duas ordens, no entanto, não convivem de forma pacífica. O entrelugar marca

também um tempo-espaço de tensões. As novas possibilidades que ele abre podem, inclusive,

representar o silenciamento das culturas locais. A presença da mídia, embora não deva ser

interpretada, necessariamente, como um fator de desagregação cultural, como sinaliza

Gregolin (2006), é bastante significativa na formação de novas práticas culturais e está

presente na produção de textos dos alunos na escola, como pude constatar em meu trabalho de

campo.

Em meio a esta realidade polifônica é que, hoje, as crianças entram na escola. Lá, elas

devem aprender a ler e a escrever. Estarem, portanto, envolvidas em práticas sistemáticas de

letramento. A escola, porém, por inúmeras razões que analisarei nesta pesquisa, quase nunca

considera relevante para o aprendizado as condições em que estes estudantes vivem. Também,

não foram encontradas estratégias didáticas que fizessem um enfrentamento em relação à

mídia, ou mesmo que propusessem práticas de leituras e de produção de texto que

permitissem aos alunos apropriarem-se desta tecnologia, cuja manifestação modifica o

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homem e seu espaço, a partir do processo de hibridização, assim se tornando um novo e

poderoso elemento cultural.

A base da educação, nas instituições educacionais do campo em Acará, segue um

paradigma educacional urbanocêntrico; e quando utilizo a categoria escola de campo, faço

porque tanto a Secretaria de Educação Municipal quanto o Ministério da Educação incluem as

escolas ribeiras na categoria de escola de campo, isto é, não há uma política educacional

voltada para escola ribeira. Também nestas escolas de campo, tão distantes das editoras do sul

e do sudeste do país, fica evidente que as orientações impostas pelo livro didático, com

discursos construídos em outros lugares, institucionalizam-se como “verdades” e estabelecem

matrizes culturais que muito pouco dialogam com a realidade em que estas crianças vivem e,

de certa forma, estabelecem novas verdades locais. Para Foucault (2007, p. 05):

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele

produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,

sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz

funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir

os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as

tendências e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o

estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

Existe uma política educacional no Brasil, que estabelece regras de funcionamento

para as escolas. Quando se olha para uma realidade tão micro, como a da escola Ronaldo

Passarinho, é possível perceber como estas estruturas de poder se organizam nas práticas

pedagógicas e na eleição de uma verdade e de uma matriz cultural. Nos textos produzidos

pelas crianças, é possível sentir estes micropoderes.

Dentro destas condições, a realidade vivida por escolas ribeiras, como a escola

Ronaldo Passarinho, vai de encontro ao que propõe Paulo Freire (1987, pp. 203-4), ao se

referir à educação libertária, já que para ele o professor deveria orientar os alunos, sem

manipulá-lo. Entretanto para tais escolas, que sequer são reconhecidas em suas singularidades

ribeiras pelo poder público, sem projetos políticos educacionais voltados para suas realidades,

e na maioria das vezes sem um projeto educacional, fazendo com que todas as obrigações

educacionais sejam “jogadas” às mãos de uma única pessoa – a professora – o que resta então

a esta docente é por em prática a “ditadura” do livro didático. Atualmente, fornecido aos

alunos pelo Governo Federal, é este livro que vai orientar as práticas didáticas e

metodológicas da professora, o que torna a realidade de vida dos alunos ainda mais distantes

da sala de aula.

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A formulação teórica desta dissertação se circunscreve a partir do meu interesse em

construir um diálogo interdisciplinar que envolva discussões sobre práticas educacionais,

análise do discurso e estudos culturais. Se em algumas circunstâncias, autores destes últimos

dois campos podem ser conflituosos, em meu trabalho, por suas peculiaridades, estes campos

são complementares.

A minha opção por Análise de Discurso aconteceu, porque ela advém da consciência

de que a língua se constrói em forma de enunciados, a partir do contato entre seres humanos,

reproduzindo as condições e os objetivos requeridos pelo instante da produção e sua

construção histórica. Dessa feita, como o letramento se faz pela prática social da língua oral e

escrita, requerendo uma intensa interação entre os sujeitos, vejo a AD como relevante marco

teórico para a análise das práticas de letramentos entre as crianças da escola Ronaldo

Passarinho. Dentro dessa mesma ideia Gregolin (2006, p. 13) diz que:

A análise do discurso (AD) é um campo de estudo que oferece ferramentas

conceituais para a análise desses acontecimentos discursivos, na medida em que

toma como objeto de estudos a produção de efeitos de sentido, realizada por sujeitos

sociais, que usam a materialidade da linguagem e estão inseridos na história.

Nesta perspectiva metodológica, é importante que sejam consideradas a posição social

da professora, dos alunos e das pessoas entrevistadas, suas inscrições na história e as

condições de produção da linguagem. Analisei, segundo esse domínio de estudos, as relações

estabelecidas entre a língua e os sujeitos que a empregam e as situações em que se

desenvolvem (enunciado/enunciação). Da teoria enunciativo-discursiva (BAKHTIN, 1990),

esta pesquisa se valeu da definição de enunciado como fenômeno social da interação verbal e

verdadeiro constituinte da língua, para trabalhar o texto, relacionado à sua condição de

produção.

Também fiz uso da memória discursiva como significativa ferramenta de análise. Esta

que, de acordo com J. J. Courtine – primeiro a apresentar uma definição para Memória

Discursiva – está relacionada a parâmetros espaciais, temporais e epistemológicos. Para

Courtine (2009), as diversas retomadas que se faz de discurso – definido por esse estudioso

como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico – provocam um

desnivelamento discursivo que nos afasta do enunciado relatado inicialmente, impregnado

numa memória social, a qual já é produto de outros discursos que se confluem

(interdiscursos). Isto serve de sustentação à enunciação e também influi na organização dos

caracteres enunciativos – marcas do meio social, histórico e cultural – constituintes da

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produção de um sujeito enunciador, que posteriormente será reproduzida por um outro “eu”,

em processo de assujeitamento.

Sobre esse tema, assim se refere Pêcheux (1997, p. 52):

A memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge como

acontecimento a ler, vem estabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente,

os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que

sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.

É bom que se diga que a memória discursiva independe do sujeito, porque ela

funciona num pretérito e em outro lugar, mobilizada pela produção do sentido e este sentido

vai se dar pela ida à memória, mas poderá ser ressignificado pela interpretação feita no

presente.

De um outro lugar teórico, mas numa pulsante discussão sobre memória, Michael

Pollak (1989, p. 3) nos chama a atenção para os acontecimentos de interdiscursividade:

Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam

seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com

suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que

a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base

comum.

Estes acontecimentos de encontros de memórias podem gerar um processo de

dominação, porque o outro poderá se apresentar em condições superiores de poder, o que

parece se tornar comum, quando se relacionam “memórias subterrâneas” e “memória oficial”.

Na produção escrita das crianças e adolescentes, sujeitos desta pesquisa, é possível

perceber um entrelugar de memórias, um espaço de encontro de saberes que se interpenetram.

As produções textuais dos alunos materializam as memórias discursivas que atravessam seu

cotidiano. Tanto os textos escritos quanto os desenhados são conjuntos de enunciados

reveladores de realidades diferentes da tateada por eles, cujo atravessamento se faz pelo

acesso a tecnologias, até há pouco tempo, apenas urbanas.

Os textos produzidos, durante esta pesquisa, na escola Ronaldo Passarinho, de certa

forma, revelam as condições históricas em que vivem as crianças e a percepção da

interferência de discursos estrangeiros que nem sempre dialogam com a realidade delas, mas

que apresentam sentidos, cujos valores em encontro com outros – imanentes de sua realidade

cotidiana – produzem novas identidades e alteram as fronteiras culturais em que transitam. Os

sentidos, então, são constituídos em face de uma formação ideológica, que conforme Pêcheux

(1997, p. 129), está nas forças materiais a constituir indivíduos em sujeitos.

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Em discursos fronteiriços, ou intervalares, como os textos produzidos pelas crianças e

adolescentes – alunos da escola Ronaldo Passarinho – e de alguns outros sujeitos habitantes

do espaço pesquisado, ficam muito evidentes marcas de elementos externos que passam a

produzir sentidos em suas histórias.

A formação discursiva – definida por Foucault (2007), como fazeres e dizeres regidos

por regularidades – permite às palavras mais sentidos, adquiridos em conformidade com a

posição do sujeito. Esse autor entende que analisar o discurso é compreender os enunciados e

as relações que tal discurso põe em circulação; isto porque ele define discurso como um

conjunto de enunciados que remetem a uma mesma formação discursiva.

Para Foucault o discurso é constituído por um sistema de dispersão, que é a falta de

ligação, por meio de algum princípio, entre os elementos que o constitui; ainda pode ser

entendida como as várias posições assumidas pelo sujeito nas práticas discursivas,

fundamentando a existência do sujeito ou do objeto. Nesta perspectiva a formação discursiva

se torna possível porque podemos detectar, entre um grupo de enunciados, a dispersão. Sobre

esse tema Foucault (2007, p. 37), expõe:

De modo paradoxal, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual

consistiria em descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios

que os separam, medir as distâncias que reinam entre eles – em outras palavras,

formular sua lei de repartição.

Nesse argumento do autor, fica evidente que todo enunciado está associado a outros

enunciados, desempenhando sua função no meio dos demais e ao mesmo tempo se

relacionando com eles e se distinguindo deles. Dentro desse aspecto estão as práticas

discursivas da sociedade pesquisada, vivenciando interstícios de discursos e

consequentemente identidades.

Já em Pêcheux, com relação à formação discursiva, percebe-se a ênfase dada ao

sujeito com sua força ideológica na construção do discurso. Nesse sentido Pêcheux (1997, p.

161) nos afirma que:

[...] se uma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber

sentidos diferentes – todos igualmente “evidentes” – conforme se refiram a esta ou

aquela formação discursiva, é porque [...] uma palavra, uma expressão ou uma

proposição não tem um sentido que lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade.

Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que

tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou

proposições da mesma formação discursiva.

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Do exposto acima, conclui-se que o discurso pressupõe o sujeito e que este pressupõe

a ideologia, dadas as condições históricas da produção discursiva e de sua enunciação; tem-se,

mais que sentidos, efeitos de sentidos. Nesta dissertação, eu me propus a analisar,

especialmente, os efeitos de sentidos colocados em circulação pelas crianças.

No primeiro capítulo, deixo em destaque meu espaço/tempo de pesquisa, esclarecendo

que como pesquisador também tenho raízes imbricadas na realidade ribeira, mesmo que seja

numa época em que a categoria identitária do, hoje, “ribeirinho”, era a de caboclos. Para a

efetivação dessa pesquisa, segui alguns percursos, todos voltados ao meu interesse pela

condição humana, nesse caso específico, crianças estudantes de uma escola ribeira, no baixo

rio Acará. A problemática inicial traz a interrogação de como se autoidentificavam aquelas

crianças ribeiras de um “entrelugar” e quais significados produziam para as "identidades"

vigentes nesse espaço.

Nesse capítulo, ainda, será desenvolvida a tese de que as políticas educacionais estão

muito mais voltadas aos interesses particulares, especialmente os políticos, do que aos

interesses sociais. Isso já fica claro com o nome dado à escola, que foi proveniente de uma

relação de troca, já que o deputado homenageado conseguira a verba para a construção do

primeiro prédio, apesar de a estrutura institucional escolar ter recebido somente carteiras, um

quadro verde, giz e uma professora que cumula diversas funções – o que vigora ainda hoje.

Esse descaso é ratificado pela ausência de um projeto voltado especificamente à

realidade da educação e da vida ribeira. As ações educacionais não acontecem a partir de uma

construção participativa com a sociedade local, mas sim de forma unilateral, determinada pelo

poder municipal, que põe em prática nas escolas de campo (o que inclui as ribeiras) a mesma

estratégia educacional dos ambientes urbanos.

O segundo capítulo deste texto está organizado em torno do conceito de processos

identitários e de discursos. Inicialmente, realizo uma discussão teórica sobre identidades e

analiso, a princípio, a perspectiva no campo dos Estudos Culturais e logo na sequência

trabalho com algumas categorias da Análise do Discurso. Foi em busca desse encontro com as

identidades e com os discursos que circulam nesta sociedade de “entrelugar” que dei início à

pesquisa de campo, sentindo-me íntimo, ao mesmo tempo em que busquei me tornar estranho

à realidade local.

No terceiro capítulo, procurei desconstruir a categoria ribeirinho, a partir do percurso

histórico da categoria caboclo, que surge sob o poder colonialista, sofrendo imposições de

marcas dessa colonização que expande o eurocentrismo pela Amazônia. Então é mostrado que

o caboclo não traduz uma identidade européia, mas sim representa um misto étnico.

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Quem são os “Ribeirinhos” nos discursos oficiais e acadêmicos? Para tentar responder

a essa questão, considerei como referência alguns autores na tímida produção bibliográfica

encontrada. Também procurei recompor a formação etimológica e o usual do termo

“ribeirinho”, apoiando-me em Rebouças Macambira (1993) para analisar os efeitos de sentido

do sufixo -inh- nos discursos postos em circulação, para a construção desta identidade.

O quarto capítulo está voltado para as discussões teóricas sobre processos de

letramento, que como diz Magda Soares (2002): " é, sobretudo, um mapa do coração do

homem, um mapa de quem você é, e de tudo que pode ser.” Procurei analisar as condições de

produção dos discursos e as práticas de leitura administradas pela professora na escola

Ronaldo Passarinho. Para Angela Kleiman (2003), uma das representações do professor é a de

agente de letramentos: “promotor das capacidades e recursos de seus alunos e suas redes

comunicativas para que participem das práticas sociais de letramento, as práticas de uso da

escrita situadas, das diversas instituições”. E depois de ter convivido com a realidade da

escola e das pessoas do lugar, não há como desconsiderar as dificuldades da docente: como

esta professora, com tantas incumbências, fará para transformar sua prática educacional,

afastar-se um pouco do ensino tradicional? Apenas o livro didático, editado tão longe da

região amazônica, será suficiente para dar conta do entrecruzameno de memórias em que se

constituem as identidades destes alunos?

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CAPÍTULO I

FAZENDO E REFAZENDO CAMINHOS: percursos da pesquisa

Na ribeira desse rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada

Vejo os rastros que ele traz

Numa sequencia arrastada

Do que ficou para trás.

Dorival Caymmi

Quando criança, passava muito tempo de frente para o rio, olhava o movimento das

águas e queria entender por que o leito enchia e vazava. Naquela época, não encontrei uma

explicação convincente para este movimento e esta inquietação se somava às dúvidas e

incertezas que sentia diante da vida . Deste período, guardei comigo apenas uma certeza:

aquele fluxo e refluxo das águas podia levar muitas coisas, mas depois as trazia.

Então, um dia tive que deixar meu lugar, fui levado para distante daquele “mundinho”

tão íntimo de mim, que tinha um pé de tangerina, onde refugiava meus pensamentos e

repousava em suas sombras minhas brincadeiras. Mas a separação não foi de toda dolorosa,

pois estava saindo para estudar e além do mais, as águas vão e voltam e isso me dava a

certeza de que um dia eu poderia retornar, fazendo valer o movimento delas.

Não imaginava que, algumas décadas depois, meu retorno acontecesse na condição de

pesquisador, pensando em analisar discursos ainda bem isolados do contato com os centros

urbanos. Estava, no entanto, equivocado, pois o mundo globalizado provocou o aceleramento

de encontros entre diferentes identidades, proporcionando negociatas, que materializam as

relações de poder, e neste aspecto tomo como referência Foucault (2006, p. 148) ao

argumentar que:

Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da

exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se

apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se é forte, é porque

produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também

a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz.

Procurando estar atento ao saber foucaultiano acerca das consequências das posições

sociais, mas sedento de estudo de uma realidade, antes minha, permiti-me o mergulho nestes

pequenos espaços de produção de sentidos. Porém, vestido da intelectualidade acadêmica,

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tomo os textos verbais e os não verbais (desenhos), produzidos pelos alunos, como objeto de

pesquisa, onde me debrucei para análises, levando em consideração Foucault (2007, p. 151),

ao nos ensinar que:

O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos.

Cabe àqueles que batem e se debatem encontrar eles mesmos os projetos, as táticas,

os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é fornecer os

instrumentos de análise [...]. Trata-se, com efeito, de ter do presente, uma percepção

densa, de longo alcance, que permita localizar onde estão os pontos frágeis, onde

estão os pontos fortes, a que estão ligados os poderes.

Neste capítulo, trato, especificamente, dos passos metodológicas de minhas pesquisas

e minhas análises. Apresento a escola e seus sujeitos, alunos, professoras e a comunidade

envolvida, primeiro, e na sequência o cotidiano da pesquisa, como foi o meu “estar lá”, entre

eles. Realizei uma etnografia de sala de aula, que considera a fala e os textos destes alunos,

mas vai além, entende que são representações com densidade histórica e que deixam ver as

diversas práticas culturais e as diferentes possibilidades de construírem suas identidades. Por

isso, também se fez necessário entrevistar as pessoas da região, os pais dos alunos, mas

também personagens que ajudaram a escrever a história desta escola e compreender como

vivem hoje, entre o rio e a ponte.

1.1 ESCOLA MUNICPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL RONALDO PASSARINHO

A escola está situada na margem esquerda do rio Acará, em confluência com Alça

Viária, que liga Belém a municípios do Sudeste e Sul do Pará. Faz parte de um universo de

194 escolas administradas pelo município do Acará. Como já foi dito, está identificada na

categoria de “escolas do campo”, já que a Secretaria de Educação desse município, seguindo a

mesma classificação feita pelo Ministério da Educação, não se utiliza da categoria de “escolas

ribeirinhas”.

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Figura 01 – Escola Ronaldo Passarinho – Prédio Atual

Fonte: Pesquisa de campo em 05 mai. 2011

O nome da escola foi dado em homenagem ao, na época da edificação, 1982, deputado

estadual Ronaldo Passarinho, porque esse político teria conseguido liberação de verbas para a

construção do prédio escolar, conforme relatos da senhora Maria de Fátima, primeira professora

da instituição, que me concedeu uma entrevista. A primeira escola era uma pequena construção

em madeira com uma sala de aula e um pequeno pátio, localizada em terras do sítio São José, de

propriedade do senhor Benedito Guerreiro, esposo da então professora.

Figura 02 – Antigo prédio da escola Ronaldo passarinho

Fonte: Pesquisa de campo em 05 mai. 2011.

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Não havia energia elétrica e nem água tratada para consumo e, como é prática do povo

ribeiro, a água era tirada do próprio rio. No início das atividades, a merenda escolar, quando

tinha, era preparada utilizando os utensílios domésticos da professora, assim também como o

sanitário usado pelas crianças era o da casa da professora.

No ano de 1999, a escola ganhou nova construção, ainda em madeira, mas desta vez

um pouco mais ampla: uma sala de aula, uma sala para documentos, um trapiche próprio e um

sanitário próprio, dividido em dois cubículos seletivos: meninos e meninas. O prédio era todo

avarandado e disponibilizava uma área às crianças, fora da sala.

Em 2008, foi construído um prédio em alvenaria, a 500m do antigo e em terras

pertencentes ao estado do Pará, tangente à ponte da Alça Viária, sobre o rio Acará. Ele conta

com uma sala de aula de aproximadamente 6m x10m, contém perto de 25 cadeiras em

madeira (bastante deterioradas), um quadro verde para giz – feito na própria parede – e uma

pequena mesa, para uso da professora.

Passando por um corredor lateral chegamos à copa, onde encontramos um fogão semi-

industrial, algumas panelas em alumínio; pratos, copo e colheres plásticos. Mais adiante, indo

pelo corredor, nos fundos do prédio, há um sanitário, com vaso de louça e caixa de descarga.

O prédio inteiro é coberto com telhas de barro; desde 2009, já tem energia elétrica e caixa

d’água, apesar da água continuar sendo puxada diretamente do rio, com a ajuda de uma

bomba.

O ambiente da única sala de aula é bastante quente e não possui nenhum ventilador; as

cadeiras são de uma madeira muito comum na região, Angelim-pedra, e foram projetadas para

alunos adultos, o que as torna muito pesadas para as crianças. Há uma porta que pode ser

trancada a chave, mas não existem janelas, apenas aberturas gradeadas, deixando a sala sujeita

a insetos como moscas, carapanãs, mutucas, maruins etc.

Pelas paredes, como mostra a fotografia a seguir, há muitas atividades executadas

pelos alunos, o que demonstra o esforço da professora em cumprir seu papel de formadora.

Algumas dessas atividades na parede denunciam uma prática antiga de ensino – a

alfabetização apenas pelo reconhecimento gráfico das letras – o que nos permitiu, de

imediato, sentir, e depois em conversas com alguns pais confirmar, que a maior preocupação

da família com processo de ensino está em inserir as crianças na sociedade grafocêntrica, sem

muita consciência dos usos sociais da escrita.

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Figura 03 – Atividades de leitura na escola

Fonte: Pesquisa de campo em: 22 mai. 2011.

Atualmente, na política educacional do município, não há nenhum projeto educacional

voltado especialmente a essas escolas ribeiras, o que caracteriza e denuncia o grau de descaso

do poder municipal pelas políticas públicas educacionais. Como não existe uma classificação

particular de escola ribeira, ela está entre as 185 escolas da área rural e na Secretaria

Municipal de Educação não existem números quantificadores de escolas às margens de rios.

1.2 OS SUJEITOS DA PESQUISA

A escola mantém em seu quadro funcional apenas uma funcionária – a professora –

que acumula todas as funções necessárias a uma instituição educacional: professora

(multidisciplinar), supervisora, orientadora, secretária, inspetora, porteira, servente,

merendeira, carpinteira etc.

A educadora a quem os alunos chamam, intimamente, de “Rose”, é casada, mãe e

residente na margem direita do rio Acará, no mesmo espaço ribeiro em que moram os seus

alunos. Como nativa da região, ela conhece muito bem a realidade em que seus alunos vivem.

Diferente de muitas situações encontradas no interior do estado do Pará, esta professora

concluiu o Ensino Médio em magistério e atualmente está cursando a graduação em Letras, na

UEPA – Universidade do Estado do Pará – na cidade do Acará.

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A professora, como moradora da região, também convive com as mesmas situações

adversas ao trabalho educativo, como: o período das marés, o atraso de pagamento do

transporte escolar – este, para algumas crianças, feito por pequenas embarcações; a falta da

merenda escolar – quando isso acontece, as crianças menores são liberadas mais cedo.

Sempre que ocorre algum fato problema, como falta de merenda, de livro didático,

dificuldades com o transporte escolar é a professora quem se desloca até a Secretaria de

Educação, na cidade sede do município, para fazer as devidas reivindicações.

A instituição conta, atualmente, com 44 alunos do Ensino Infantil à 4ª série, divididos

em dois turnos, com turmas multisseriadas e multietárias. Pela manhã, funciona com o Ensino

Infantil e a 2ª série (até 9 anos). No turno da tarde – funciona com a 3ª e a 4ª séries e os alunos

de 2ª série, com idade acima de 9 anos. A iniciativa de dividir a 2ª série, levando em

consideração a idade, foi, exclusivamente, da professora.

Figura 04: Alunos da escola na canoa, voltando para casa

Fonte: Pesquisa de campo em: 05 mai. 2011.

A turma com a qual realizei a pesquisa era composta por 22 crianças e adolescentes,

entre 9 e 15 anos, e as aulas aconteciam no turno da tarde. Deste total, cinco alunos cursavam

a 2ª série. Como em minha pesquisa fiz uma análise das práticas de letramento voltadas para o

texto escrito, necessitei fazer um recorte e optei em me concentrar nos alunos da 3ª e da 4ª

séries, que somaram um total de 17 alunos entre crianças e adolescentes, que já mantém um

contato sistemático com a língua escrita.

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As crianças que estudam na escola Ronaldo Passarinho encontram-se envolvidas em um

turbilhão de saberes e valores urbanos, chegados, na sua maioria, pela mídia ou pela “estrada”, que

mantém contato direto com a grande Belém, capital do estado do Pará, em distância espacial de

aproximadamente 55 quilômetros. De modo concomitante, eles também convivem arraigados nos

saberes locais de suas famílias e como demonstra a Figura 04, eles continuma fazendo do rio seu

principal caminho. Envoltos em pelo menos duas significativas ordens discursivas, naturalmente

estes sujeitos passam a produzir novos sentidos em sua realidade cotidiana.

Para o Estado e a mídia, assim como para as discussões acadêmicas, as comunidades

semelhantes à do baixo Acará sempre estiveram à margem de rios, à margem dos direitos, à margem

dos discursos “oficiais”. A forma como estas pessoas constroem suas identidades também se

atravessa por este discurso urbanocêntrio, que, ainda hoje, se inscreve em bases paradigmáticas

colonialistas e elege uma matriz cultural como ideal.

Não quero, entretanto, prender estas crianças a uma identidade circunscrita a este discurso

estabilizado que as coloca ora como inferiores, ora como vítimas do sistema. Até porque a chegada

da mídia também abre novas possibilidades para que estas sociedades se ressignifiquem.

Desde muito cedo, os alunos participam das atividades econômicas de seus pais,

mesmo quando a família não depende de sua força de trabalho, mas assim mesmo esse

trabalho é complementar para a obtenção da subsistência da família. A maioria dos alunos, se

não todos, é de família proprietária de pequena porção de terra que vive da extração de frutos

da floresta e da criação de animais, da caça e da pesca, do trabalho na roça e do comércio. A

colheita do açaí é a principal atividade da região. Isso faz com que meninos (em trabalhos

como colher o açaí, fazer viagem em barcos para a venda de produtos etc.) e meninas

(trabalho na roça, cuidar da casa – cozinhar, lavar...) sirvam como força de trabalho para

ajudar os pais.

É bem provável que a pouca formação leitora desses sujeitos, conforme notado

durante nossas atividades, deva-se a fatos como o aqui exposto – associação trabalho/escola,

cuja situação impõe grandes compromissos e responsabilidades a crianças e adolescentes. E

para piorar, a prática de ensino direcionada pelo sistema não contribui para que a escola

inclua esses sujeitos na sociedade letrada.

Por parte de alguns pais, não há muita perspectiva de futuro por meio da aquisição do

conhecimento no ambiente escolar. Nas conversas que tive com eles, quando perguntava

sobre as conquistas, por intermédio da escola, alguns resumiam, de modo isolado, no

enunciado: “quero que meu filho seja alguém na vida”. Quando interrogados sobre que tipo de

alguém, dois pais falaram em ser um doutor e uma mãe falou: “Ah, professor como o senhor”.

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A maioria dos pais entrevistados, sete, resumiu sua resposta a enunciados do tipo: “ser pessoa

de bem”, “uma pessoa honesta”, “honesto e trabalhador”.

1.3 ENTRE INTIMIDADES E ESTRANHAMENTOS: minha “briga de galo”

A intimidade e aproximação com os costumes, a culinária e as dificuldades deste povo

facilitaram a minha entrada e permanência nos ambientes em que necessitei me fazer presente para

realizar meu trabalho como pesquisador. Em todas as entrevistas fui muito bem acolhido e tentei

fazer com que as pessoas ficassem sempre bem à vontade. A professora Rosângela esteve sempre de

braços abertos em todos os momentos em que estive na escola, permitindo-me adentrar e até alterar,

em alguns momentos, seu planejamento para que as atividades da pesquisa pudessem ser realizadas.

Nas reflexões sobre etnografia, uma das mais significativas metáforas estabelecidas por

Clifford Geertz (1989) diz respeito à “briga de galo”. Quando ele e sua esposa chegaram a Bali,

colônia inglesa, para a realização de seu trabalho de campo, os balineses os ignoravam. Esta situação

só mudou depois que o casal estava assistindo a uma briga de galo, prática cultural proibida pela

Inglaterra, e a polícia chegou atirando. Todos correram, inclusive Geertz e sua mulher. A partir deste

momento, como se viram na mesma situação, os balineses passaram a aceitá-los como um deles.

No meu caso, mesmo sendo um “filho ribeiro”, não posso afirmar que sou a mesma pessoa

de há alguns anos, pois a vida na cidade grande me atravessa com uma nova identidade e eu me

constituí em novos entrelugares. Nesta pesrpectiva eu me aproximo da condição de Geertz. Por outro

lado, ainda que exista um certo estranhamento em relação à condição de pesquisador, vivi parte

significante de minha vida entre estas águas e não precisei passar por um ritual de iniciação

demorado, por tudo que havia de familiar a mim entre aqueles alunos.

As crianças em todos os momentos foram muito acolhedoras, recebiam e praticavam as

atividades com muito afinco. Minha presença entre eles fazia sentido, o que me deu a liberdade de,

algumas vezes, depois das aulas, até jogar bola com os meninos e nadar nas águas do Acará. Assim

os sentia ainda mais próximos, o que ajudou nas observações.

A inquietação e desejo de entender melhor a realidade de sujeitos que constroem suas

práticas sociais às margens dos rios da Amazônia começou a ganhar corpo e possibilidade,

quando iniciei a faculdade de Letras na Universidade Federal do Pará – UFPA. Nas aulas de

linguística, a professora, cujas pesquisas eram sobre línguas indígenas, apresentava as

diversidades de falares destas sociedades. Esse fato foi relevante para que eu passasse a

intencionar, um dia, realizar um estudo em que mantivesse o contato de pesquisador com um

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meio que, até então, parecia-me bem próximo, mas que só durante a realização da pesquisa

pude perceber quão distante já me encontro dele.

Agora, no mestrado, chegou o momento de realizar este desejo de conhecer e reconhecer

as práticas culturais desta sociedade mergulhada em valores oriundos de seu espaço, mas vindo à

tona respirar outros saberes que atravessam sua realidade pelo olhar da academia. Estas crianças

vivem entre o contato mais próximo com a natureza, particularidade da vida ribeira, brotada das

entranhas de rios e florestas, e a modernidade tecnológica que trafega pela estrada da Alça Viária.

O Programa de Pós-Graduação interdisciplinar em Comunicação, Linguagem e

Cultura foi o primeiro no estado com estas características de multidisciplinariedade. Ele

representa um marco de elevada importância para ampliar discussões sobre interrelação

comunicativa e cultural numa formação identitária, o que contribui para o desenvolvimento de

lugares e sociedades sob referência de um espaço em constante construção e reconstrução,

envolvendo o global e o local amazônico.

Sob este prisma, ao decidir o tema de minha pesquisa, como já dito, priorizei um

assunto que há muito me perseguia, na perspectiva de um encontro com o meu passado e de

uma melhor compreensão do presente destas crianças ribeiras: o percurso que segue a

formação das identidades e o encontro com o conhecimento do mundo “lá de fora” a partir

dos processos de letramentos.

1.4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Durante o trabalho de campo, foi necessário realizar várias viagens até a região, a maioria de

carro, compartilhando com minha esposa o prazer de, por intermédio do piso preto da estrada,

executar o exercício de “afastamento” dos ideais urbanos para adentrar nas cores e odores do campo

e mergulhar na sociedade ribeira do baixo Acará. Lá compartilhei muitos momentos de busca do

conhecimento, numa reciprocidade fervorosa, em que meu copo parecia estar sempre mais cheio do

que o deles, pois era muito o que eu bebia de conhecimentos e saberes, tudo isto se dava comigo,

atravessado pelas memórias da infância, quando me sentia plenamente protegido, em “meu ninho”

familar.

O período que durou a pesquisa permitiu-me onze encontros, que se deram em ação de

trabalho direto com os alunos. Porém em outros tantos momentos, em que atravessei o espaço

daquela sociedade ribeira em busca de informações junto a outros sujeitos, sempre mantinha

algum tipo de contato com esses estudantes, em muitos momentos fora do ambiente escolar.

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Como já falei na apresentação, nossos encontros aconteceram sempre às sextas-feiras,

com vinte e dois alunos, no turno vespertino, período destinado pela professora e com aval

dos pais. E também como já referido, embora as atividades propostas envolvessem todos os

alunos, fiz um recorte em minhas análises e me detive apenas nas produções dos 17 alunos

das séries maiores (3ª e 4ª), um grupo misto de 08 meninos e 09 meninas.

Em todas as visitas feitas, como chegava sempre às 14 horas ou um pouquinho mais

(às 14h 15m), a aula já havia iniciado, pois as atividades iniciam, no turno vespertino, às 13h

30m. Assim, quase sempre, a professora já estava executando junto com os alunos alguma

atividade, na maioria das vezes, usando o livro didático de língua portuguesa: A escola é

nossa, de Marcia Paganini Cavéquia; editora Scipione, PNLD 2010, 2011 e 2012 do

Ministério da Educação.

A prática pedagógica mais comum era a de leitura em voz alta, pela professora, e a

resolução das questões de compreensão e interpretação do texto. Durante essas atividades ou

durante as aulas expositivas, as cadeiras não ficavam dispostas em sala uniformemente, pois

cada aluno punha sua cadeira onde quisesse, dentro do espaço da sala.

Quando entrava na sala de aula, eu cumprimentava a todos e me punha a observar –

ora sentado, ora de pé, andando por entre as cadeiras, às vezes participando junto com a

professora. Após a conclusão da tarefa ou suspendendo-a, a professora me dava a palavra e eu

passava à regência da aula. Ressalto que, naturalmente, as atividades que eu propunha

estavam relacionadas à pesquisa, mas sempre tentando não sair do foco da aula do dia. Então,

normalmente, colocava os alunos em círculo para que assim pudéssemos interagir melhor, já

que as atividades feitas para produção de dados foram, basicamente, de leitura, contação de

história, diálogo sobre o texto trabalhado e produção textual: verbal, não verbal ou mista.

Na primeira visita que fiz à escola, já para dar início à pesquisa propriamente dita,

cheguei às 14h, mas, por conta do período da maré, a água havia invadido a terra, dificultando

o meu acesso ao prédio – o que tive de fazer descalço, calça enrolada e com a água acima dos

joelhos – os alunos haviam entrado, 30 minutos antes, com as mesmas dificuldades. Neste dia,

detive-me apenas à observação e depois de me apresentar aos alunos e explicar um pouco o

meu trabalho, coloquei uma cadeira bem ao fundo da sala para tentar passar despercebido. É

claro que não é fácil lidar com a curiosidade da turma, mas não fiz nenhuma interferência no

andamento da aula e assim aconteceu o nosso contato inicial.

No segundo contato com as crianças, em atividades na escola, depois de ajudar a

professora com a tarefa de leitura de um texto do livro didático da 3ª série, comecei a propor

as atividades de leitura e produção de texto. O texto tinha como temática principal a

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identificação do personagem com o lugar em que morava, então, entreguei a todos os alunos,

apesar de os sujeitos serem os alunos de 3ª e 4ª séries, algumas questões em que perguntava se

eles se consideravam “ribeirinhos” e por quê.

Neste trabalho, há a consciência de que a AD apresenta uma determinação mútua

entre enunciado e sujeito na construção da enunciação. Este sujeito é um efeito ideológico,

partindo-se do princípio de que o indivíduo só será sujeito em um discurso, o que implica

conhecer a linguagem para melhor conhecer o sujeito.

Por intermédio dos discursos das crianças e adolescentes da escola será possível

chegar às memórias discursivas que constituem a sociedade em que vivem. Marcadas por

interseções de óticas e comportamentos urbanos e ribeiros, estas memórias estão

materializadas em discursos de interstícios culturais. Assim, interpreto e configuro o sujeito

dessa pesquisa como: dividido, disperso, assujeitado e determinado não só ideologicamente,

mas também pelo inconsciente.

Se o discurso expressa a ideologia do sujeito, a ideologia apresenta parte de seus

traços identitários, pois nesse discurso ideológico está amarrada a sua formação discursiva

(doravante FD), que reproduz o meio que o envolve, em atos enunciativos. Porém, em

tempos de globalização, as fronteiras culturais ganham certa invisibilidade; de acordo com

Hall (2006), a crise de identidade que o indivíduo passa nessa virada de milênio se deve ao

fato de que as fronteiras definidas de identidade – classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade – antes eram sólidas localizações sociais e culturais, hoje se deslocam e

tornam-se fragmentadas.

Os discursos, hoje, trazem seus traços diretamente vinculados a identidades

relacionadas à modernidade e consequentemente à industrialização. O que resulta de um

estado de globalização, e leva a um outro resultado: o da pluralização das identidades

nacionais e mesmo locais.

1.4.1 Dialogismo e práticas de leitura à margem do Rio Acará

Entendo que as práticas de sala de aula são um processo de comunicação interativa e

corroboro com a concepção de Bakhtin (2004), para quem a linguagem é entendida como um

fenômeno de duas faces, articulada à história e à ideologia, desse modo cada enunciado está

orientado para um interlocutor, dentro de uma situação social. O discurso é constitutivamente

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dialógico, o que permite pensar as questões da linguagem para além do sistema dicotômico de

significante e significado.

Para exemplificar como estas práticas de leitura acontecem na escola pesquisada, vou

analisar um fato decorrido na aula que marcou minha primeira visita à escola. Como era o

primeiro dia, eu me detive apenas à observação, conforme havia acordado com a docente.

Quando cheguei, sentei no fundo da sala e de lá dava para ver, sem nenhum esforço, todos os

alunos.

A professora, antes de iniciar a leitura do texto base para aquela aula, fez uma

inquirição, cujas perguntas pareciam ter o objetivo de incitar as crianças a refletirem sobre os

diferentes discursos que o texto revela. O que acontece, contudo, é que ela dá mais ênfase a

alguns pontos que refletem sua própria ótica do tema. E, talvez, sem intenção, ela conduz a

leitura em um ritmo que alcança, apenas, alguns educandos que possuem um grau maior de

letramento, apesar de a proposta ser a de atender ao multisserialismo.

A seguir transcrevo uma parte da aula:

P. – Esse texto que nós vamos ler agora, fala de um assunto muito comum hoje em

dia, então antes da leitura vou conversar com vocês. O que vocês acham da

discriminação?

A¹ – É falar mal de preto.

P – Tá certo A. Mas não são só os negros que sofrem discriminação. E os idosos e as

mulheres?

A² – É professora, tem marido que bate na mulher.

P – Isso, V.. mas as mulheres também são discriminadas no mercado de trabalho

com salários menores que o dos homens.

A³ – Mas é porque o homem é mais forte.

P – Vamos deixar de brincadeira Y. vamos à leitura.

Observa-se aqui, nessa interação, que a professora já apresentava uma opinião

formada, o que contribuiu para a condução indutiva da fala dos alunos e que fez valer o seu

pré-conceito sobre a discriminação. A professora, como é bem frequente nas salas de aula

brasileiras, acabou fechando o tema nos fatos que estavam sendo colocados no texto:

discriminação contra mulher e contra idosos.

A fala de Y poderia ter sido tratada com mais seriedade, no entanto, ela entendeu

como uma “molecagem” e interrompeu uma troca de opiniões que poderia ser até mais

proveitosa do que simplesmente realizar a leitura. A partir desse pequeno diálogo, já seria

possível tirar algumas conclusões do lugar social de onde a professora fala, se o propósito

aqui fosse este.

A orientação dialógica do discurso assume o papel central no modo de ver a

linguagem em funcionamento, o que se faz mister na pesquisa proposta, cuja ação linguística

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está em sua execução oral e escrita e na compreensão do sujeito sobre processo de linguagem

relacionada ao seu contexto. Neste caso, será necessário entender o enunciado como unidade

real de comunicação e compreendê-lo na interação verbal, em situação concreta entre dois ou

mais indivíduos socialmente organizados.

Os sujeitos da pesquisa, como já dito, são crianças e adolescentes entre os nove (9) e

os quinze (15) anos, que habitam as margens do baixo rio Acará e que, ao mesmo tempo,

mantém um contato íntimo com a estrada, por onde passam ou chegam todos os dias culturas

dos espaços citadinos. Este sinestésico urbano atravessa a vida interiorana e deixa suas

marcas, ora prazerosas, ora incômodas; mas sempre estabelecendo algum diálogo, cujas

características se pautam no diferente ou no um tanto diferente.

Para analisar essa situação, cabem os estudos de Bakhtin (2004), já que esse teórico

nos diz que o discurso tem natureza social, produz significados a partir da interação entre os

participantes. Num processo dialógico, os sujeitos se envolvem e passam a envolver outros

que possam contribuir para a fundamentação do sentido, cujo processo estará intrínseco ao

contexto discursivo. Nesta condição, a alteridade e o contexto se formalizam, pois os sujeitos

do discurso mantêm uma interação, que está diretamente relacionada aos discursos circulantes

no meio.

Para Bakhtin (2004), não existe fala monológica, já que toda e qualquer fala traz em

seus aspectos comunicativos marcos implícitos ou explícitos de dialogicidade. Ao falar,

pretendemos dizer algo para alguém, ou seja, instituímos a situação dialógica do discurso.

Todo dizer tem uma intenção, um objetivo determinado; é dito de um lugar social que contém

em si outros discursos. Até mesmo o mais inconsequente dos enunciados ou uma conversa

nem tanto agradável, apenas como “preenchimento de tempo” diz muita coisa, seja pelo

sentido prático da enunciação ou, posso dizer, pelos silêncios intervalares entre uma fala e

outra.

Tomar esse pensamento bakhtiniano, da natureza social do discurso, como ponto de

referência, facilita para se apresentarem exemplos bem pragmáticos, basta pensar em

sociedades que vivam em contextos mais “exóticos”, em relação às vivências urbanas, e que

se encontrem olhando bem para dentro de si mesmas; porque na relação com o outro decorre,

reciprocamente, certo estranhamento. Então seus sentidos culturais se alterariam mais

lentamente, se fosse possível manter um ciclo dialógico fechado no grupo, isto é, discursos

preparados para atender dentro do grupo; no entanto é evidente que na nossa realidade

contemporânea isso é irreal, se é que realmente um dia foi assim. Para Hall (2006, p. 7): “As

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sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e

permanente. Esta é a principal distinção entre as sociedades ‘tradicionais’ e as ‘modernas”.

Desta realidade, fazem parte sociedades ribeiras, indígenas e remanescentes de

quilombolas, já que tais sociedades, em decorrência do distanciamento em que estão dos

centros urbanos, tornam-se um pouco condicionadas a sua própria intimidade, produzindo e

reproduzindo seus costumes. Porém, algo assim limita a produção de sentidos; confirmando a

fala de Bakhtin (2004, p. 35), de que: “O significado é um construto negociado pelos

participantes, isto é, não é intrinsecamente à linguagem”. Todo tipo de leitura exerce no leitor

uma ação modificadora, pois faz com que este reaja de alguma maneira em relação ao que lhe

foi dito (informado) e essa reação estará em acordo com o sentido que esse leitor atribui ao

texto.

Os discursos se afirmam e se refutam sempre havendo alguma disputa. Então devemos

levar em consideração o processo discursivo encampando o aspecto estrutural e o do

acontecimento, são dois níveis que andam juntos, que se modificam de acordo com a história:

os fatores sociais, culturais, políticos, econômicos; ou seja, toda exterioridade mantendo o

diálogo com a interioridade.

Essa compreensão da manifestação discursiva pode ser bem caracterizada em

aquosociedades – sociedades ribeiras – no seu direito de dizer o que desejem e necessitem,

autolegitimando a sua cultura, o seu modo de vida e tudo aquilo que lhe produz prazer, por

intermédio de seu discurso; não permitindo uma mensura com a cultura urbana com o intuito

de conceituar o que é bom e o que é ruim para essa sociedade que povoa as margens de rios e

igarapés da Amazônia.

Entre estes estudantes, ainda que de maneira bem inicial, podemos perceber a

capacidade de sustentar seus discursos; levando, aqui, em consideração que a esses estudantes

foi dado o direito de falarem de seu lugar e praticado o dever do pesquisador de dar escuta a

esses sujeitos (GEERTZ, 2004).

Entretanto, quando a sociedade está em espaço de “entrelugares”, nota-se que este

construto de significados ganha velocidade em suas mudanças, permitindo que sua memória

discursiva se hibridize ainda um pouco mais, o que resulta em certo “choque” de valores num

período diacrônico. Num sentido mais macro, veja o que diz Ortiz (1994, p. 106) acerca desse

tema:

[...] A velocidade das técnicas leva a uma unificação do espaço, fazendo com que os

lugares se globalizem. Cada local, não importa onde se encontre, revela o mundo, já

que os pontos desta malha abrangente são susceptíveis de intercomunicação. Neste

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sentido o mundo teria se tornado menor, mais denso, manifestando sua imanência

em todos os lugares.

Nesse aspecto concordo com Ortiz e, ainda, acredito que isso se torna notório também

no plano emocional, em que, inicialmente, haverá sensível diferença entre o apresentado ao

sujeito e o que esse sujeito apresenta ao outro, porém é nessa posição de dar e receber que a

história se ressignifica e significa o ambiente, acrescendo novas práticas culturais. E tudo isso

transcorre numa via de mão dupla.

Nesse caso, especificamente, observo a consciência das crianças ribeiras do baixo

Acará sobre, o que para elas, é ser “ribeiro”: por mais que estas sofram a influência de

discursos de terceiros, elas estabelecem para si traços, ou simplesmente se colocam dentro de

identidades, que marcam sua origem; pois as marcas do local estão nos sujeitos, evidenciando

que as pessoas moldam suas identidades a partir de discursos circulantes mais significativos,

com os quais mantêm interação, isto é, as pessoas são formadas e depois contribuem para a

formação de outras. Em suma, os discursos que atravessam o espaço contribuem para a

formação da memória discursiva. Conforme dizem Gama-Khalil e Gomes (2008, p. 37):

O discurso do sujeito vai representá-lo, caracterizá-lo, construí-lo. Mas esse mesmo

sujeito não é considerado passivo, totalmente assujeitado, pois há as fugas, as

criações, as negações e as atitudes de resistência. O discurso nos coloca em sujeito

plural, ocupante de várias posições subjetivadoras, e não um sujeito pronto e

acabado. Quando falamos em identidade móvel, não dizemos sobre uma identidade

que muda a todo instante sem permanecer algo. É uma idéia de construção,

construímos algo sobre uma base, é lógico que há uma essência, alguns pontos que

permanecem na identidade construída, mas também não podemos negar que ela não

seja fixa, imutável. Entramos na ordem das metamorfoses, das diferenças, das

descontinuidades e dispersões. [...] E, nessa relação dialógica, ocorrem trocas de

experiências, de posições; são possibilidades de práticas discursivas identitárias.

E pelo que já foi dito até aqui, não se deve considerar a língua como um mero

instrumento de transmissão de mensagens, entre um sujeito que escreve e outro sujeito que lê.

Considere-a como principal processo de interação entre os sujeitos, para a comunicação

humana; processo em que os interlocutores vão estabelecendo sentidos e significados ao

longo de suas relações. Essa produção linguística-histórica a que chamamos discurso,

certamente, independe da existência da escola, porém esta instituição tem o papel de

intensificá-lo e dar-lhe eficácia comunicativa.

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1.5 O DISCURSO EM IDENTIDADES RESSIGNIFICADAS

Em época de tantas transformações, marca evidente da contemporaneidade, são

notados diversos deslocamentos de valores identitários, todos sempre conduzidos por

processos de informação, e que promovem encontros de culturas diversas. Esses se tornam

bem mais sensitivos em sociedades cujas práticas discursivas se dão em espaços mais

isolados, porém com grande fluxo de culturas, o que possibilita a formação de um sujeito

híbrido, e por que não dizer sujeito intervalar, já que apreende outras culturas que vão se

misturar com as primárias em sua vida, aparecendo um sujeito que servirá de partida para

outros sujeitos, que terão também suas inscrições na história, diferente sim, mas marcando sua

importância.

Esses movimentos de constituição da memória e da legibilidade mostram a

indissociabilidade entre o intradiscurso e o interdiscurso: a materialidade das formas

(verbais e não-verbais) são vestígios por meio dos quais a repetição se inscreve na

ordem do discurso, nessa ordem em que o enunciado é determinado pela

exterioridade do enunciável. (GREGOLIN, 2007, p. 52).

É comum, em nossa contemporaneidade, dizermos que a maior causa de toda essa

mescla está na globalização moderna – causada pela tecnologia da informação. Esse processo

provoca um imbricamento entre o eu e o outro, de maneira acelerada, fazendo com que os

movimentos culturais se misturem e surjam posteriormente ressignificados, em novas

ideologias, as quais podem silenciar o que foi dito ou dizer o que estava silenciado.

As mudanças, resultantes do tempo em que se encontram esses novos sujeitos sociais,

produzem uma interação com as tecnologias de comunicação, que alteram as relações

tempo/espaço e introduzem “novas formas de conhecimento”. É nesse quadro que se encontra

a sociedade ribeira do baixo Acará, que está a 55 quilômetros de Belém e a 75 quilômetros da

cidade sede do município.

Atualmente, para chegarem às cidades de Belém e de Acará, os ribeiros do baixo rio

Acará podem fazer uso de transporte rodoviário, o que se tornou mais usual, por conta da

rapidez com que vão às cidades e retornam para as suas casas. Este é um fato que acelera

ainda mais o envolvimento dessa sociedade com a realidade urbana, contribuindo para a

acentuação do hibridismo cultural. Mas também, para qualquer uma das duas direções pode

ser usado transporte fluvial, o que deixa a viagem mais longa em tempo e espaço; no entanto a

pessoa permanece mais próxima da cultura ribeira. Neste caso, para o sujeito do lugar,

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decorre, ainda, um maior convívio com a própria realidade, marcando e escrevendo a sua

história, cujo registro se dá principalmente na língua.

Todo esse permear cotidiano entre a realidade local e a urbana nos possibilitou

argumentar melhor porque se trata de um espaço em entrelugar, isto é, um ambiente em que

os sujeitos convivem com interações culturais, que resultam em intensa ebulição de discursos:

novos e antigos. Veja o que diz Gregolin (2003, p. 11):

Quando adotamos o ponto de vista da Análise do Discurso, focalizamos os

acontecimentos discursivos a partir do pressuposto de que há um real da língua e um

real da história, e o trabalho do analista de discurso é entender a relação entre essas

duas ordens, já que o sentido é criado pela relação entre sujeitos históricos e, por

isso, a interpretação nasce da relação do homem com a língua e com a história.

O esclarecimento acerca da localização da sociedade em análise neste trabalho é feito

por conta da compreensão que tenho de que os estudos que envolvem a Análise do Discurso

se apresentam voltados a entender o processo pelo qual o conhecimento e a sociedade se

constituem interativamente. É claro que isto depende de como o sujeito se relaciona com as

ideologias atravessadoras do contexto vivenciado, pois aí está a base de sua formação

discursiva e consequentemente o trato que dará à enunciação, dentro de circunstâncias de

linguagem. No caso dos discentes da escola Ronaldo Passarinho, devido ao seu espaço

histórico se constituir em espaço de intenso atravessamento cultural, eles, a todo momento,

são abordados por discursos de interferência na sua formação primeira; o que os leva a

constantes reelaborações de suas identidades.

As teorias que fundamentam a Análise do Discurso se apresentam a partir da ação

sobre outrem, em contexto de interatividade, logo o processo de linguagem não dispõe de

neutralidade de reflexão ou de descrição, dessa maneira se faz necessária a percepção e

análise de todos os elementos constituintes do discurso. Pinto (2002, p. 28) argumenta que:

Definir os discursos como práticas sociais implica que a linguagem verbal e as

outras semióticas com que se constroem os textos são partes integrantes do contexto

sócio-histórico e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externa às

pressões sociais. Têm assim papel fundamental na reprodução, manutenção ou

transformação das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades

com que se definem numa sociedade [...].

O enunciado, por ser uma unidade real da comunicação discursiva, deve ser

compreendido dentro do próprio processo de interação verbal, socialmente organizado. Com

isso, nas análises articulei alguns aspectos epistemológicos que demarcam a Análise do

Discurso de linha francesa, como um campo teórico-metodológico do estudo da linguagem. A

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partir desta teoria, buscarei, por intermédio das materialidades produzidas pelos alunos –

textos e desenhos – avaliar como eles se situam neste entrelugar em que vivem.

Foi na França, na segunda metade da década de sessenta do século XX, que se deram

as difusões das teorias que baseiam a AD, com a passagem de uma linguística da frase para

uma linguística do discurso. Isto significa dizer que o desenvolvimento moderno dos estudos

linguísticos, prioritariamente, visou à descrição e à análise interior do enunciado, eixo que se

organiza dentro de uma orientação social e que pressupõe um código que a realize a partir de

uma determinada performance, cuja denominação dada é de enunciação, processo em que os

enunciados partilham de uma realidade comunicativa que rompe os limites internos da

linguagem. O deslocamento para o discurso significou um interesse por aspectos até então

pouco destacados dentro do valor da comunicação, tais quais: enunciação, psicanálise, história

etc., que contribuiu para enfatizar aquilo que Pêcheux (1997) postulou sobre a AD, a

interpretação.

Foucault, na obra A “Arqueologia do saber” (2007, p. 135), faz uma definição de

discurso: “Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma

formação discursiva”. O ponto fundamental desta definição está em que as práticas de

comunicação são dadas dentro de certo grau de coesão com o espaço, isto é, tomando a

memória discursiva do sujeito como elemento de relevância para a prática discursiva. Assim o

enunciado aparece atrelado a signos diversos.

De acordo com Maingueneau (1997), a análise do discurso constitui-se em disciplina

teórica e metodológica que busca, no interior das ciências humanas, desvendar as

singularidades linguísticas do discurso como produção social. Representa a possibilidade de

olhar os eventos do cotidiano como manifestações semióticas, ou seja, materializadas na

atividade da linguagem e dotadas de significados, determinando, de alguma maneira, como,

quando e por que alguns fenômenos da vida assumem regularidades ou descontinuidades.

O russo Bakhtin (2004), ao apresentar a concepção de que a linguagem é um

fenômeno de duas faces, ele define o discurso como constitutivamente dialógico, fugindo à

imobilidade linguística, cuja palavra é mero código comunicativo. Nesse caso, a minha fala

não diz “eu”, mas o ajuntamento de muitos outros discursos que atravessam meu ciclo vital,

aquilo que caracteriza o que constitui minha memória discursiva.

Nesta pesquisa, especificamente, busco avaliar como se dá o discurso de meninos e

meninas ribeiras, estudantes em uma escola também ribeira, mas localizada em um espaço por

onde atravessam práticas discursivas diversificadas – muitas fomentadas a partir do livro

didático e legitimadas pela escola. A professora, talvez sem perceber que está envolvida por

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relações de poder, põe em circulação um discurso padronizado para sociedades urbanas. Nesta

perspectiva, sobre o sujeito, acompanho o pensamento de Canclini (2005, p. 201) para quem o

sujeito pós-moderno vive em processo de trânsito, de escolhas temporárias com constantes

alterações em suas relações sociais.

Em uma inquirição escrita, direcionada à professora, quando perguntei sobre o

significado do aprender a ler e escrever, para quem mora numa região “ribeirinha”, ela deu a

seguinte resposta:

É o mesmo significado de quem mora na zona urbana, pois para mim não há

diferença de aprendizagem para quem mora nesses diferentes locais. O importante é

que realmente eles aprendam a ler e a escrever, mas também a ser cidadãos críticos,

com opiniões próprias e principalmente que sejam pessoas com força de vontade

para crescerem na vida. (Professora R. informação verbal).

Estes enunciados esclarecem o lugar de onde a professora fala e ela se mostra

interessada em, imediatamente, apresentar um confronto com a zona urbana. Isso ocorre,

provavelmente, como uma consequência das constantes analogias feitas entre os dois espaços

e a sempre marginalização dos “ribeirinhos”. Esta situação já começa a se materializar no uso

do sufixo - inh -, denotando o coitado, aquele que conforme o olhar urbano é merecedor de

piedade.

Há, nessa resposta dada pela professora, uma posição de defesa, um desejo de mostrar

que quem habita esses locais é tão digno quanto os citadinos. Esta postura da professora

permite identificar certa consciência política dessa docente e, principalmente, a lucidez de seu

papel quanto educadora. Porém ela se utiliza de expressões vagas, mas que denunciam um

discurso comum nas escola, a partir de uma ótica materialista, como: “ser cidadãos críticos,

com opiniões próprias e principalmente que sejam pessoas com força de vontade para

crescerem na vida”.

Ao usar a expressão “...crescerem na vida”, a professora retoma uma memória

discursiva, com suas regularidades e suas dispersões (FOUCAULT, 2007). Este enunciado

parece fazer a reprodução do ideal capitalista de conquistas materiais, pois o verbo usado em

âmbito educacional denota o sentido de conquista, de se tornar maior, superior, adquirir

poder, seja pelo saber ou pelo dinheiro. Mas no final, parece que a leitura – tema central da

pergunta – naquele espaço e na ótica da inquirida, não apresenta outro significado que não

seja o de contribuir para a formação cidadã, ainda que não fique muito claro o que seria esta

cidadania.

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1.5.1 Tessitura em Memórias Discursivas

Um dos objetivos específicos da pesquisa tem o intuito de saber se os discursos

circulantes na escola representam um processo dialógico do aluno com o seu meio,

proporcionando-lhe o desenvolvimento de habilidades comunicativas e o seu reconhecimento

no espaço. Então partimos de inquirição escrita e de incitação para que as crianças

produzissem textos em gêneros e temas definidos por nós, para que desta forma pudéssemos

analisá-los, em busca de alcançarmos as práticas sociais que, possivelmente, demarquem a

memória discursiva dessas crianças e adolescentes.

Em uma das visitas, percebi que a professora mantinha o livro didático como principal

recurso e que este, como a grande maioria deles, estabelece uma cultura, quase,

essencialmente urbana, o que o distancia daquela realidade e torna o conteúdo ainda mais

insignificante dentro daquele contexto de ambiente ribeiro. Foi então que resolvi solicitar a

criação de um poema no qual cada estudante, a sua maneira, falasse do lugar onde mora, que

me seria entregue na sexta-feira seguinte.

Chegado o dia combinado, ao recolher o material, verifiquei que alguns alunos

tomaram a iniciativa de ilustrar seu texto, procurando fazer relação entre o espaço e o que fora

escrito sobre seu lugar. Abaixo transcrevo o poema de uma aluna de 8 anos de idade, que

cursa a 3ª série do ensino fundamental, preferi fazer as correções ortográficas, mas mantive a

estrutura e disposição dos versos.

UM LUGAR BONITO DE SE VIVER

No lugar onde eu moro

tem um rio para nadar,

as flores para cheirar,

e a canoa para navegar,

e o verde das florestas,

tem a fruta para comer e

tem o açaí para beber

e o peixe para pescar.

Tem a chuva que molha as plantas.

Os passarinhos voam no céu

Trazendo alegria para todos,

O Acará é uma terra abençoada.

Este é o meu lugar,

Onde eu moro. (Pesquisa de campo, 2011)

O tema desse texto fora estipulado pelo fato de eu ter pretensão em observar se a ponte

é reconhecida como fazendo parte do lugar assim o poema foi produzido conforme a temática

definida pelo interesse da pesquisa.

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A menina, então, fala de seu lugar voltando seu foco para o que ela reconhece como

elementos formadores do seu lugar: rio, flores, canoa, floresta, frutas, peixe, chuva, plantas e

passarinhos. Fica perceptível um estado ufanista da autora do texto, mas esse ufanismo

decorre do orgulho e do interesse demonstrado em exaltar o seu espaço, apresentado como um

local ameno de paz e tranquilidade, onde ocorre um relacionamento harmonioso entre o

homem e o meio em que vive. No discurso aparece a memória do extrativismo, pois os

enunciados denunciam que a natureza oferece tudo o que o homem do lugar necessita para sua

sobrevivência. Um espaço edênico: “terra abençoada”.

A estudante preferiu a idealização do lugar a ter que apresentar alguma imagem ou

cena cotidiana que denunciasse a dureza de vida, como, por exemplo, o trabalho pesado,

viagens longas em barcos e as representações dos medos que povoam homens e mulheres

ribeiros, em relação aos mitos de rios e floresta.

Embora sua memória discursiva esteja envolvida por uma realidade que permeia sua

existência, certamente a estudante toma contato com diversos textos, naturalmente

representantes de diferentes matrizes culturais, por intermédio dos próprios livros didáticos,

mas também por outras mídias como revistas, catálogos, televisores. No entanto nos discursos

constituintes do texto, os elementos urbanos que atravessam o lugar não tem manifestação no

poema, isto é, eles não fazem parte daquele espaço. Um grande exemplo está na ponte da Alça

Viária, construída sobre o rio Acará, com a qual a aluna tem contato todos os dias, já que sua

escola fica ao lado dessa ponte, mas que fica claro que a estudante não a reconhece como

fazendo parte do seu lugar.

O poema dá ênfase à realidade idílica do lugar, à relação bucólica harmoniosa do

homem com o meio. A chuva é vista como importante para as plantas, certamente esse

destaque não é dado somente por uma necessidade vital dos vegetais, mas como reprodução

de um discurso adulto comum entre os ribeiros, que vê na chuva, controladamente, recurso

para boa produção, já que a maior parte dos frutos colhidos são produtos de extrativismo e

como tal não recebem irrigação mecânica.

É curioso a aluna dizer: “tem frutas para comer” e logo em seguida diz “e tem açaí

para beber” esses versos esclarecem que o açaí não é reconhecido como fruta pela aluna, é

provável que isso aconteça pelo significado que esse fruto tem para as sociedades ribeiras do

norte e nordeste paraense um dos principais alimentos e como, para muitas famílias, a

principal fonte econômica.

Neste capítulo segui uma metodologia de análise, partindo do enunciado escrito em

textos contextualizados à realidade das crianças, para isso desenvolvi algumas atividades

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entre os alunos da escola Ronaldo Passarinho, permitindo-me melhor entendimento da

formação de seus discursos. Ainda neste capítulo, fiz a apresentação do espaço, destacando

seu distanciamento do o ambiente urbano; e dos sujeitos da pesquisa e sua relação com os

valores advindos das cidades. Falei também de meu envolvimento relacional com o meio e

sua sociedade e costumes.

No próximo capítulo, tomaremos como fundamento outras análises sobre a produção

destes alunos, sempre procurando mostrar como suas memórias se constroem a partir deste

entrelugar em que vivem hoje, profundamente marcados pelas práticas tradicionais de suas

famílias e pela nova ordem estabelecida por fatores, tais como a chegada da Alça Viária, da

eletricidade e das novas mídias.

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CAPÍTULO II

ENTRE A TELEVISÃO E O RIO ACARÁ: movimentações de sentidos

Antes mundo era pequeno

Porque Terra era grande

Hoje mundo é muito grande

Porque Terra é pequena

Do tamanho da antena

Parabolicamará

Ê volta do mundo, camará

Ê, ê, mundo dá volta, camará

Antes longe era distante

Perto só quando dava

Quando muito ali defronte

E o horizonte acabava

Hoje lá trás dos montes

dendê em casa camará

Gilberto Gil

Neste capítulo, sob a temática do encontro entre culturas, mostro a chegada da energia

elétrica como elemento bastante favorável para o uso de novas tecnologias e a influência

destas, neste meio ribeiro, e procuro mostrar como este novo momento se traduz nas

produções escritas e visuais dos alunos, sinalizando para a ampliação de saberes por

intermédio de meios de comunicação como a televisão, que vai contribuir com o processo de

letramento. Os discursos que esses sujeitos materializam em suas produções escritas ou

faladas estão profundamente atravessados pela mídia, porém isso não significa que nessas

produções de sala de aula a cultura local não esteja presente.

Nesta perspectiva faço uma abordagem teórica sobre letramento, avaliando, inclusive,

como esse processo se faz sentir entre os sujeitos dessa pesquisa. Para isso analiso, ainda, três

trabalhos de alunos da escola Ronaldo Passarinho, os quais foram produzidos durante as

atividades que desenvolvi com esses estudantes. A primeira apresenta uma atualização da

narrativa do Boto, a segunda mostra como o universo globalizado está presente na vida desses

alunos e a terceira tem características de exaltação da vida naquele espaço ribeiro, dando

ênfase para a realidade local.

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2.1 LETRAMENTOS ENTRE VIVÊNCIAS DIFERENTES

No Brasil, houve uma geração de pensadores da educação que se preocupou em

entender a leitura além da simples decifração do código escrito. Talvez o maior expoente

desta geração seja Paulo Freire, cuja obra vai mudar a forma de se olhar para a educação na

América Latina, especialmente para as aulas de leitura e interpretação de texto. O método de

Alfabetização Paulo Freire reivindica práticas de leitura que envolvam o conhecimento local e

que abram possibilidades para um universo maior que vai além da escola.

Atualmente, depois da publicação dos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa,

as pesquisas realizadas nas universidades brasileiras voltadas para as práticas de leituras

passaram a eleger uma nova orientação teórica que segue os rastros de Paulo Freire e as

discussões de Bakhtin. Sistematicamente, a partir dos anos de 1990, embora nenhum dos dois

tenham se utilizado desta palavra, começam os estudos de letramento, no Brasil.

O fenômeno do letramento, que para muitos ainda é pouco compreendido, portanto,

gerador de muitos estudos e discussões sobre sua definição e, principalmente, sua mensura

dentro da realidade social, é introduzido no Brasil na década de 80 do século XX. As questões

levantadas acerca do letramento têm proporcionado novas perspectivas para o ensino da

leitura e da escrita, tomando posturas diferenciadas em relação à linguagem na compreensão

de que essa se pauta em contexto individual mas também social. O que, naturalmente, nos

remete ao entendimento de que quanto maior for a prática social de linguagem maior será o

nível de letramento do indivíduo.

Magda Soares (2002), uma das principais pesquisadoras no assunto, professora da

UFMG, universidade que mantém um dos mais importantes grupos de pesquisa no assunto,

concebe que a denominação letramento é uma versão, em português, da palavra inglesa

literacy, que quer dizer pessoa capacitada para a prática da leitura e da escrita. Tanto Magda

Soares quanto Ângela Kleiman (1995), professora do departamento de Linguística Aplicada

da Unicamp, que também reúne um grupo de pesquisadores sobre a temática, ao buscarem a

origem da discussão do letramento, afirmam que o termo começou a ser utilizado no Brasil, a

partir da publicação, em 1986, da obra da professora Mary Kato, No mundo da escrita: uma

perspectiva psicolinguística. A partir deste livro, infere-se que a língua falada culta é

consequência do letramento.

Os estudos sobre o fenômeno do letramento são complexos, desde sua definição, pois

são diversas as tentativas de defini-lo. Profissionais da área da linguagem e educação

perseguem compreensões nesse campo de estudo. Para Magda Soares, deve ser entendido em

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duas dimensões, individual e social, isto sem desconsiderar que para se pensar em uma pessoa

letrada, ela precisa, necessariamente, estar capacitada à leitura e à escrita.

Ângela Kleiman (1995, p. 81) define letramento como “um conjunto de práticas

sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia em contextos

específicos, para objetivos específicos”. Para outra estudiosa do tema – Leda Tfouni – em sua

obra, Letramento e alfabetização (1995), expõe que o letramento será medido não somente

entre as pessoas que adquiriram a tecnologia do ler e do escrever, como também aquelas

consideradas “analfabetas”. Nesta segunda situação, aporto a minha tese de que deve ser

considerado letramento o conjunto de saberes adquiridos ao longo da existência, por

intermédio da leitura gráfica ou não. Não desconsidero, também, que as práticas de leitura e o

não acesso à escola fazem parte da história de desigualdade de nosso país.

Entretanto, na atual conjuntura social, é importante ter a habilidade de receber e

transformar ideias e sentimentos em palavras orais e escritas, adequadamente. Compreender e

se fazer compreender por meio da palavra sempre foi uma grande exigência social, no

entanto, em época de acentuada exploração de imagens como a atual, esta compreensão ganha

novos significados. Agora é necessário buscarmos novas estratégias de leitura e de produção

de textos.

A escola, ao trabalhar seja com a língua oral ou com a escrita, continua buscando

objetivos padronizados nacionalmente, muitas vezes diferentes daqueles necessários à

sociedade, o que acarreta sérios problemas aos alunos. Esses problemas ficam ainda maiores,

quando analisamos ações de letramento em escolas rurais; incluídas nessa categoria

reconhecida pelo MEC, estão as escolas ribeiras. Essa realidade permeada de situações

complexas se apresenta condicionada a inúmeras causas, conforme matéria divulgada na

revista escola – versão online:

A maioria das escolas do campo não tem biblioteca. Também é uma raridade

encontrar computador, impressora, fotocopiadora e projetores. Essa é a realidade das

escolas de campo, categoria em que estão 58% das instituições de Ensino

Fundamental no Brasil (cerca de 77 mil). Elas recebem 4,8 milhões de crianças - ou

18% das matrículas. Mesmo com essa representatividade, não existe uma política

pública eficaz para atender às necessidades dos estudantes e dos educadores que

vivem e trabalham nessa realidade.

Em 2009, pela primeira vez, o Ministério da Educação (MEC) aplicou a Prova

Brasil em 10 mil unidades rurais. Até então, os testes de Língua Portuguesa e

Matemática para alunos do 5º e do 9º ano eram feitos apenas por estudantes da zona

urbana. Contudo, as turmas multisseriadas - que reúnem estudantes de idades

variadas e nas quais estão 60% dos estudantes do campo - não foram incluídas. Para

suprir essa lacuna, a Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA) fez

uma pesquisa com o Instituto Paulo Montenegro (IPM)/Ibope Inteligência para obter

mais dados sobre a infraestrutura, as condições de ensino e aprendizagem e o perfil

de professores e alunos nessa situação. Entre fevereiro e março, um exame no

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mesmo molde da Prova Brasil foi aplicado em 50 escolas do Rio Grande do Sul,

Paraná, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia,

Pará, Pernambuco e Tocantins.

<http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/> Acesso em: 14 fev. 2012.

Esses fatos nos levam, enquanto construtores de uma consciência linguística, a pensar

em alguma proposta de ação acerca do letramento, para que o estudante de escola rural vá

mais além do que simplesmente ser alfabetizado, isto é, obter a competência de decodificar e

codificar a língua escrita. Esta tarefa se mostrou complexa na escola Ronaldo Passarinho, já

que em conversa com alguns pais ficou claro que a maioria quer que o filho aprenda ler e

escrever, não demonstrando maiores ambições galgadas por meio dos estudos.

É possível que essa falta de perspectiva tenha como causa maior o fato de que a

maioria dos pais está entre o não alfabetizado e a 4ª série do Ensino Fundamental: dos 15

alunos consultados em minha pesquisa, 07 responderam que os pais não foram alfabetizados,

06 afirmaram que os pais cursaram entre 2ª e 3ª séries e apenas 02 informaram que os pais

concluíram a 4ª série. Entre as mães, o resultado é um pouco melhor: apenas 03 alunos

disseram que a mãe não foi alfabetizada, 07 afirmaram que a mãe concluiu a 4ª série, 04

esclareceram que a mãe fez a 5ª série e 01 aluna falou que a mãe concluiu o Ensino Médio.

Mediante o resultado da pesquisa sobre a escolarização dos pais, não foi muito fácil

avaliar o letramento entre os sujeitos da pesquisa, uma vez que o termo abrange habilidades,

conhecimentos, capacidades, valores, usos e funções sociais complexos a serem mensurados.

Corroboro com Soares (2002), quando essa autora afirma que o ideal seria que a

Alfabetização e o Letramento estivessem lado a lado, para que o indivíduo, de posse do

código, soubesse articulá-lo de acordo com as suas intenções.

2.1.1 Sentidos da leitura entre alunos ribeiros

Entre os alunos da escola Ronaldo Passarinho, o ato de ler está intimamente ligado ao

ato de estudar, como se ler fosse uma necessidade exclusiva do ambiente escolar. A maioria

desses estudantes, em resposta dada à pergunta “O que é a leitura para você?”, não reconhece

na leitura um valor social extra escola.

Transcrevo, a seguir – preservando a estrutura, mas com algumas alterações

ortográficas em relação ao texto original – algumas respostas à pergunta citada, em atividade

executada no dia 17 de junho de 2011:

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C. (4ª série) Ler pra aprender não adianta ler e não prestar atenção.

N. (4ª série) É escutar os outros participar da leitura.

A. (4ª série) É prestar atenção quando a professora está explicando e também

quando fazemos atividade.

L. (4ª série) É pegar os livros e ler e ir meditando na leitura, pensando, prestando

atenção na explicação do professor se meter dentro da história ou da leitura, ler os

cartazes pensar e se encaixar na leitura e eu acho que é isso.

F. (4ª série) Aprender a ler não esquecer mais quando o professor fizer uma prova a

gente já tem na mente. Isso é aprender.

D. (4ª série) Aprender a decifrar e conhecer os lugares diferentes entrar nas

diversões é aprender mais histórias e diversões.

S. (3ª série) É ler a lição e a atividade.

T. (3ª série) É escutar os outros participarem da leitura em sala.

A. (3ª série) É aprender a ler com a professora e com as cartilhas quando a

professora está explicando.

I. (3ª série) É ler o que a professora passa pra gente, ler o dever pra fazer em casa e

na escola, ler o texto do livro.

V. (3ª série) Ler é alguém pegar um texto e lê ou um livro lê.

R. (3ª série) Ler é uma coisa muito boa pra fazer eu gosto de ler eu leio jornal

história da turma da Mônica.

D. (3ª série) Ler é definir as letras e palavras para ler. (informações verbais)

Nesses enunciados, construídos como resposta para falar de leitura, os estudantes

partem, em primeiro lugar, para o ambiente escolar e a maioria não manifesta valor social

extensivo ao ato de ler. Apenas dois alunos da 4ª série – L. e D. – têm uma ótica um pouco

mais alargada a respeito do significado da leitura. Isto é a denúncia de que o ensino da leitura

praticado na escola em análise não proporciona orientações para a prática social das

atividades da leitura e da escrita, o que deve ser o objetivo central dos ideais de letramento.

Porém não esqueçamos que a escola faz parte do aparelho estatal e como tal acaba por

colocar em circulação discursos que materializam ideologias dominantes, nessa linha de ideia

Foucault (2000, p. 17) afirma que:

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre

um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um

compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como sistemas dos livros,

da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios de

hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente, sem dúvida, pelo modo

como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído,

repartido e de certo modo atribuído.

Não podemos ignorar que estes enunciados remetem às práticas educativas impostas

pela última Ditadura Militar, no Brasil. Boa parte dos professores, que hoje atuam nas salas de

aula, fora formada por currículos que não traziam discussões relacionadas à perspectiva social

da leitura. A sociedade, de certa forma, ainda se filia a esta memória, que entende as aulas de

língua portuguesa como explicação de conceitos gramaticais, aos quais não se dá muito

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sentido na “vida real”, nem na escola, nem fora dela. Nesse aspecto Foucault (2000, pp. 44-

45) faz o seguinte questionamento:

O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra, senão uma

qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam, senão a

constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e

uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

Durante minhas observações, percebi que a professora sempre esteve bastante

preocupada com a decodificação e a codificação de textos escritos, numa clara reprodução de

um sistema escolar ainda muito usado, apesar de ultrapassado, mas baseado nas práticas

alfabetizadoras. Pelas conversas, já citadas nesse trabalho, que tive com alguns pais, esta é

uma prática que atende aos preceitos educacionais dos moradores da região.

Também quis saber dos alunos quais textos escritos circulam em suas casas. Então

para isso elaborei as seguintes perguntas:

Seus pais compram Jornal? ( )Sim ( )Não;

Quantas vezes por semana?

Seus pais compram revistas? ( ) Sim ( ) Não;

Quais temas (assuntos)?

Que outros tipos de textos você encontra em sua casa?

A atividade foi realizada com 17 alunos da 3ª e da 4ª série, usando a seguinte

metodologia: na aula do dia 03 de junho, solicitei aos estudantes que observassem o que havia

pelas suas casas que lhes exigisse leitura, porque precisaríamos dessa informação para a

próxima aula. Essa solicitação foi reforçada pela professora, que também faria uma atividade

oral, mas ela não especificou a sua atividade, que seria solicitar a cada um que falasse de um

texto que mais tivesse lhe chamado atenção.

Como minha atividade fora escrita, na aula seguinte, dia 17 de junho, entreguei-lhes

uma folha de papel com as perguntas acima, digitadas. Fiz a leitura para os alunos e expliquei

cada questão, dando-lhes um tempo para responderem individualmente. O resultado obtido

entre 17 alunos que responderam à inquirição foi o seguinte: para a primeira pergunta, 15

disseram que os pais não compram jornal e apenas 02 disseram que os pais compram, um

desses dois disse que isso se dá três dias por semana e o outro falou que, às vezes, dois dias

por semana.

Para a segunda questão, que questionava sobre a aquisição de revistas pelos pais, dos

17 alunos, 10 disseram que não (os pais não compram revistas), e sete afirmaram que sim (os

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pais compram algum tipo de revista). Quanto ao assunto dessas revistas foram apresentadas as

seguintes respostas, conforme escritas pelos alunos:

sobre a bíblia, receitas de bolos e comidas, desenhos de unhas e receitas para bolo,

receitas de perfume e revista em quadrinhos, de novelas e filmes, revistas de

histórias, revistas que falam da vida de artistas.

Dessa questão cheguei à conclusão de que dos poucos alunos que têm alguma revista

circulando em seu meio, essas são de gêneros restritos, isto é, apresentam pouca diversidade

de gêneros em seu contexto, como acontece com revistas de receitas, por exemplo.

Quanto à questão solicitando aos alunos pesquisados que buscassem em casa outros

textos com os quais mantinham contato de leitura, nas repostas foram citados livros didáticos

de história, geografia, português, matemática, histórias de contos de fadas, como Branca de

Neves, A Bela adormecida, Os três porquinhos; catálogos da Avon e de produtos para casa;

Bíblia Sagrada; folhinhas (calendários).

Essas questões tiveram o objetivo de identificar quais textos circulam no ambiente

familiar das crianças e adolescentes que formam o grupo discente pesquisado. Assim

obtivemos a informação de que os gêneros são diversificados, mas em conversa com esses

alunos, ao receber as atividades, ficou claro que dos textos citados, aqueles que despertam

algum interesse são os contos de fada e os textos bíblicos. Diante destes resultados, fica

evidente que o letramento, no sentido de prática social cotidiana de leitura e escrita,

apresenta-se pouco materializado na vida dessas crianças e adolescentes do baixo rio Acará.

Segundo Kleiman (2005), uma das representações do professor é a de agente de

letramento, aquele que age para promover em seus alunos recursos para estender suas redes

comunicativas, possibilitando-lhes práticas sociais de letramento. Mas na escola Ronaldo

Passarinho, essa atitude é pouco notada. Por uma conjuntura bastante limitadora, a professora

fica restrita às atividades de ensino de gramática, referendando o continuísmo do mecanismo

de alfabetização dentro do ambiente escolar. É claro que essa prática da educadora é apenas o

reflexo de todo um contexto marcado pelo descaso com a educação, que vem desde a

formação de professores até a falta de condições de trabalho destes mesmos professores,

some-se a isso a localização e as instalações em grande parte deficitárias com que se

apresentam escolas como as ribeiras.

E Kleiman (2005) ainda afirma que qualquer prática de letramento, na escola,

necessita ir além da mera atividade de ler, escrever, discutir oralmente. Para essa autora, as

ações de escrita só têm significado se existir uma razão para fazê-las. O que se observa nas

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práticas da escola Ronaldo Passarinho, que provavelmente não é muito diferente da maioria

das escolas da região, entretanto, é que há o desejo de que o aluno aprenda determinado

gênero, sem lhe apresentar a justa razão de por que aprendê-lo.

2.2 IMBRICAMENTOS DE VIVÊNCIAS E CULTURAS

Nas análises a seguir, trabalho com as produções dos alunos, considerando que as

práticas sociais em que estão envolvidos, incluindo aí a presença da televisão em seu

cotidiano, são fundamentais para a compreensão dos discursos que esses sujeitos colocam em

circulação. Também considero significativo dirigir o olhar às relações de poder em que as

práticas da escola estão envolvidas e neste sentido, corroboro mais uma vez com Foucault

(2000, p. 8-9):

Suponho que em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de

procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigo, dominar seu

acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

O que encontrei nas produções que analiso, a seguir, está atravessado pela história

destes alunos e pelo poder que mantém a ordem discursiva em que eles vivem.

Com a facilidade do acesso a baterias e a motores geradores e, posteriormente, com a

chegada da energia elétrica, o uso da televisão se popularizou na região atendida pela escola

Ronaldo Passarinho.

Embora os ribeiros sejam compreendidos dentro de uma generalidade, posso afirmar

que há sensíveis diferenças econômicas entre estas pessoas e, se é verdade que algumas

famílias têm muitas dificuldades em adquirir um aparelho, encontramos outras que em casa

possuem dois ou mais televisores. Como essa região está muito próxima de Belém, para

receber os mesmos sinais televisivos da capital, basta apenas a utilização de uma simples

antena externa, o que facilita ainda mais a obtenção desses aparelhos, hoje, considerados de

grande utilidade doméstica. Apesar de tudo isso, a popularização da televisão nessa sociedade

do baixo Acará tem início a partir de 2002, quando fora construída a estrada da Alça Viária, e

em 2006 ganha força com a chegada da rede de energia elétrica.

Apoiado no entretenimento lúdico e na exploração do sentido visual, esse meio de

comunicação representa, em sua programação, uma verdade ilusória, cuja contemplação

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contribui para a subtração ou ressignificação de costumes locais, em um processo de

imbricamento cultural, conforme Hall (2006). Este acontecimento recebe a colaboração do

olhar urbano – amplamente publicado na mídia – que estigmatiza os ribeiros como seres que

necessitam de auxílio. Contudo, por intermédio de negociação, seja esta feita consciente ou

inconscientemente, o certo é que a maior parte desse povo acata esse estigma e sua condição

de colonizado.

O ribeiro do baixo Acará apreende valores culturais erigidos diante de seus olhos, por

intermédio da mídia, de pessoas que por ali transitam e, até mesmo pela escola. Esses valores

lhes são apresentados como padrões da macro sociedade, então são compreendidos como

superiores aos que ele conhece e com os quais convive.

Por conta dessa estigmatização, pode decorrer a perda de práticas culturais locais e a

aquisição de outras novas. Isto promove, ao longo do tempo, certas alterações em seus valores

ancestrais, passando a juntar às identidades presentes traços de outras identidades legitimadas

como representantes da “normalidade” social de padrões. Nesse sentido a linguagem (nível

“culto” ou padrão) aparece como “carro chefe” desse enquadramento social, fato em que a

própria escola, por meio de conteúdos programáticos padronizados, está incumbida de excluir

a fala cotidiana desse povo e se possível realizar o apagamento deste falar.

Sobre o estigma, entendido como marca, sinal infamante, e que acaba por ser a

situação de muitas sociedades que sofrem os efeitos da subalternização cultural, Goffman

(2008, p. 18) diz que:

A característica central da situação de vida do indivíduo estigmatizado pode, agora,

ser explicada. É uma questão do que é com freqüência, embora vagamente, chamado

de “aceitação”. Aqueles que têm relação com ele não conseguem lhe dar o respeito e

a consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social os haviam

levado a prever e que ele havia previsto receber; [...]

Como a pessoa estigmatizada responde a tal situação? Em alguns casos lhe seria

possível tentar corrigir diretamente o que considera a base objetiva de seu defeito,

tal como quando uma pessoa, tal como quando uma pessoa fisicamente deformada

se submete a uma cirurgia plástica, uma pessoa cega a um tratamento ocular, um

analfabeto corrige sua educação e um homossexual faz psicoterapia.

Estes fatos vêm nos provar que em sociedade os indivíduos estão sempre negociando

sua estada no espaço, ora apreciando ora depreciando valores; porém tudo demandado pelas

relações de poder. Isto aparece bem evidente entre os sujeitos dessa pesquisa, nos quais as

ressignificações são favorecidas por discursos urbanos que atravessam o espaço por variados

meios.

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2.2.1. Havia um boto no meio do caminho

No terceiro encontro com a turma, comecei minhas atividades, que se dividiam em

duas estratégias: a observação, que se mostrou bastante eficaz para a pesquisa, já que pude

obter informações importantes sobre as práticas sociais que permeiam a docente e os

discentes, inclusive, fazer o reconhecimento dos discursos que atravessam aquele ambiente

escolar. A segunda parte era voltada para a estratégia da produção textual.

Depois de contar, em atividade interativa, e solicitar a eles a leitura de outras

narrativas, todas extraídas do livro “Histórias de visagem em Belém”, de Walcir Monteiro

(2007) , pedi que me trouxessem uma narrativa, ocorrida no lugar onde moram, conhecida por

eles, ou que fosse contada por alguém mais velho. Podiam consultar suas famílias. Para isso,

tiveram o prazo de oito dias até a entrega de seus textos.

No momento em que solicitei a atividade, algo muito curioso ocorreu: ao falar em

narrativa, todos ficaram me olhando num gesto interrogativo. E diante da situação, sem

entender o que estava acontecendo, interpelei-os perguntando se não haviam entendido. Foi aí

que um menino, o menor da turma, me perguntou: “É pra gente inventar uma história?” Não,

eu disse. E imediatamente os inquiri: “estas histórias que nós acabamos de ler foram

inventadas pelo autor?”. Logo uma menina respondeu: “eu sei que a da mulher do táxi não

foi, minha mãe conta que foi um caso que aconteceu em Belém”.

Nesse momento, compreendi que, na memória discursiva daquelas crianças, a palavra

narrativa devia ter o sentido de “história inventada”. Para eles, os acontecimentos

supostamente do cotidiano eram os casos. Então, resolvi testar minha dedução e disse: “e se

eu pedi um caso?”. Todos, ou pelo menos a grande maioria concordou, e alguns até

anteciparam, em voz alta falando a outros colegas, qual caso apresentariam. Senti necessidade

de dirimir qualquer dubialidade de sentido entre os termos narrativa e caso que pudesse nos

trazer problemas futuros na compreensão dos discursos que circulam naquela sociedade; por

isso fiz a eles (os alunos), oralmente e de maneira bem direta, as seguintes perguntas:

– O que é narrativa ? O que é caso ?

Neste momento, várias vozes, uníssonas, responderam à primeira pergunta dizendo

que “é a história que alguém inventa”; já à segunda, responderam que “é aquilo que acontece

mesmo”, neste enunciado a palavra mesmo se apresenta com o sentido de realidade. E

algumas daquelas crianças e adolescentes ainda acrescentaram: “e dá medo”. Então a partir

deste enunciado em que os estudantes acrescem um sentimento – medo – fica evidente uma

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maior complexidade para a representação semântica de caso, pois por extensão está

relacionado a fatos sobrenaturais, de terror.

Depois, repeti as respostas dadas a cada uma das perguntas e perguntei se alguém

discordava do que havia sido respondido, mas nínguém se manifestou contrário. Para fechar

disse: “então todos concordam com as respostas?”, o que imediatamente foi respondido com

um sonoro sim.

A produção a seguir foi resultante desta primeira atividade proposta sobre os casos.

Figura 05 – Caso de Boto

Nesta atividade, a estudante retoma a história do boto, um ser encantado que se

transforma em homem, mas atualiza a memória da narrativa, quando conta alguns

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acontecimentos em que pessoas de sua família estão envolvidas. A presença de sua

bisavó caracteriza o “acontece mesmo” da definção de caso dos alunos e o sobrenatural é

compreendido a partir das transformações do boto.

Nestas situações, os relatos não acontecem de modo vago e impreciso porque são

apresentados elementos que servem para confirmar, estabelecer a veracidade, como na

narrativa acima é dito que a avó chegou com muita dor de cabeça. Esse enunciado é

documental, confirma que a avó não está mentindo, pois a dor serve para materializar o

sofrimento daquela mulher em consequência do encontro dela com o boto.

A expectativa diante desta narrativa, a partir de uma memória discursiva que circula na

região e que já faz parte da cultura amazônica – a história do boto – é que uma mulher fique

grávida e não com dor de cabeça, mas a aluna retoma apenas uma parte da história e a

particulariza na experiência cotidiana de sua família. Para analisar o inesperado da produção

destes alunos, corroboro com Foucault (2007, p. 28), quando ele diz que:

É preciso renunciar a todos estes temas que têm por função garantir a infinita

continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência

sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do

discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que

aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido,

esquecido, transformado, apagado, até nos menores traços, escondido bem

longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o

discurso à longínqua presença de sua origem; é preciso tratá-lo no jogo de

sua instância.

Essa narrativa-caso (em respeito às crianças) já mostra ser de um espaço fronteiriço

quando, mesmo enunciando situações supostamente verídicas, ela usa o “era uma vez”, o que

provavelmente marca seu contato por leituras ou audição de contos infantis de outras regiões.

Mas, ao mesmo tempo, utiliza expressões bem peculiares do lugar de onde ela fala: “Tudo de

branco”, “todo ano da cheia”, enunciados que tanto deflagram a linguagem, quanto a própria

vivência.

2.2.2. Um caso que teve no Rio de Janeiro: a tragédia de Realengo

Durante a realização do trabalho de campo, um acontecimento trágico, ocorrido no

mês de abril de 2011, dentro de uma escola deixou toda a sociedade brasileira estarrecida: a

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tragédia de Realengo, Rio de Janeiro1. Neste momento, eu trabalhava com as crianças sobre

narrativas ou casos. Mais uma vez, a densidade da história do presente destes alunos está

presente nos discursos que eles materializam em sala de aula. Como falar em casos e

narrativas, sem considerar este acontecimento?

Figura 06 – A tragédia de Realengo lida Baixo Acará

Na produção do aluno P., podemos observar como as informações sobre este

acontecimento, chegadas pela televisão, tornam-se fatos íntimos desses estudantes em espaços

tão distantes geograficamente.

1 Na quinta-feira, 07 de abril de 2011, na cidade de Rio de Janeiro, no bairro de Realengo; Wellington Menezes

de Oliveira, de 23 anos entrou, armado com dois revólveres, no prédio da escola Tasso da Silveira, da qual era

ex-aluno, e matou 12 estudantes adolescente, entre 12 e 14 anos (10 meninas e 2 meninos) e depois cometeu o

suicídio.

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Nesta produção do aluno, estão presentes enunciados dados em nítida reprodução de

informações passadas por discursos midiáticos: escrito, falado e principalmente visualizado.

Neste atravessamento de discurso, um novo elemento surge para estas crianças – a violência

física dentro de escola, nunca foi vivenciada na escola Ronaldo Passarinho, conforme

afirmação da primeira e da atual professora. Pela televisão, chegava uma nova ordem

discursiva e seu estranhamento, marcava o lugar de fala destas crianças.

O aluno intitula o texto como “um caso que teve no Rio de Janeiro”, e dá à palavra

caso o sentido de acontecimento, realidade e tem o cuidado de delimitar o espaço – Rio de

Janeiro. Parece que a delimitação objetiva produzir uma garantia de que essa violência foi

longe de nós, o que pode aliviar o medo e a tensão. Esses sentimentos se materializam em

determinados enunciados, que se mostram denunciadores da opinião do sujeito: “muito feio”,

“nunca queria que acontecesse na minha”, “muito triste”.

A reprodução do discurso midiático, especificamente da televisão, fica evidente na

fragmentação dos enunciados que se apoiam nas imagens. Neste caso, em particular, como a

televisão não possuía as imagens reais, então os profissionais do jornalismo criaram desenhos

ilustrativos, a partir do relato das vítimas, tentando reproduzir toda a ação do atirador.

O aluno recontou aquilo que ouvira e assistira, dando ênfase na imagem ilustrativa

para a morte de uma menina, Carol. Por algum motivo especial, o qual não fica claro na

produção do aluno. A morte desta menina, especificamente, chamou mais a atenção desse

aluno, conforme é apresentada no trecho a seguir: “...as mães tinham filhos uma era a carol

que morreu no tiroteio”.

2.2.3 Entre rios e cores

A situação de vida das populções ribeiras na Amazônia apresenta sérios problemas

básico de infraestrutura: a educação revela estatísticas lamentáveis, há sérias deficiências em

relação a saneamento básico e à saúde de forma geral. Enfim, as garantias sociais estão bem

distantes de serem satisfatórias.

Entre as atividades que propus para os alunos, uma delas foi a de que eles deveriam

produzir um texto escrito e um desenho sobre o o lugar onde vivem. Não sei se motivados

pela orientação que dei, ou se por verdadeiro sentido de resistência a discursos colonialistas e

urbanos que inferem uma condição inferior às sociedades ribeiras; o certo é que todos

redigiram textos que exaltavam apenas a beleza natural do Baixo rio Acará, como no texto a

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seguir, em cuja linguagem verbal e não verbal está posto todo encantamento de uma

adolescente de 15 anos, pelo lugar onde mora.

Figura 07 – O rio azul

A seguir faço a transcrição literal do texto acima, criado por uma adolescente,

cursando a 4ª série:

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Entre as águas do rio Acará rir o rio Acará belo

Pro sua própria naturesa.

entre as águas do rio Acará rir o rio pro sua arvóre

e pro seu rio e as arvore au redo.

entre o azul do céu que encantam os olhos das pessoas

que passa pro lá que beleza e essa que encantal

o sol quente e comessa a chuvisca e sinau que o

arco-iris está pra rir pra nós e bebe água no rio

e depois as cores dão ão céu. esse e o luga onde eu moro.

o rio Acará tem tudo a ver com Barco – canoa tem

tudo a ver com água.

No discurso circulante neste texto, que se constitui num misto de linguagem verbal e

não verbal, nota-se a presença de um sujeito orgulhoso do seu lugar, um sujeito que dá ênfase

ao conhecimento que tem de todos os percursos diários na vida de quem ali vive. A

intimidade com que fala da beleza do rio é materializada nas imagens de cores fortes e alegres

como se tivesse a intenção vestir a ilustração com o próprio sentimento. A posição da aluna é

de mostrar que o seu lugar é perfeito. Em nenhum momento ela sinaliza com um elemento

negativo em relação à região.

O rio aparece animalizado e cheio de vida. O contato tão intenso que mantém com os

outros elementos deixa ver a floresta velando-o e o céu fundindo-se a ele, em uma metáfora

que retrata bem a realidade amazônica. É o rio que penetra na floresta, ou a floresta penetra o

espaço do rio? E como os homens se significam nestes espaços?

É na segunda parte que o rio Acará aparece em sintonia com as belezas celestiais, os

pássaros voam numa referência à biodiversidade do lugar e há a presença do arco-íris; mas

tudo isso não impede, nem pode impedir que a chuva caia, pois ela também constitui o lugar.

Pela disposição dos elementos enunciados, esta chuva também é muito aprazível, faz parte da

vida no Acará. Neste momento a aluna aproveita para retomar uma narrativa oral muito usual

por essas “bandas”: “O arco-íris é como uma entidade da natureza que tem a função de ajudar

na formação da chuva, pois ele aparece para beber a água do rio e depois dar ao céu, onde se

transformará em chuva e voltará para o rio”.

Toda a produção coloca em evidência o rio e seu entorno, com árvores, aves, céu e

água. Junto a tudo isso, apesar de não aparecer em figura física, está o homem alcunhado por

metonímias – “os olhos das pessoas” – e em objeto de seu uso e domínio –“tem tudo a ver

com barco, canoa”. Nesse caso, vejo que o poema consegue reproduzir o que há de mais

representativo no espaço ribeiro: rio, floresta, animais, canoa, barco e, logicamente, o próprio

homem.

A tarefa solicitada foi para fazer um poema sobre seu lugar, e nesse texto fica claro

que o lugar aqui é a junção de vários elementos e seres que se formam em torno do rio Acará,

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que se sobrepõe como elemento de maior importância na imagem. O colorido, como disse

antes, materializa o elevado grau de orgulho pelo lugar e contentamento por ali viver. O que

se confirma nas primeiras linhas em que é feita alusão ao Hino Nacional – Gigante pela

própria natureza: “belo pro sua própria naturesa”.

A aluna marca sua identidade a partir da relação com o rio e, neste sentido, não há

problemas a serem revelados. Mas ainda que idealize sua realidade, e neste sentido ela resiste

ao “coitadinho” da definição de ribeirinho, ela pinta o rio de azul. E aí, a harmonia do rio

produz novos sentidos. Em vez das águas barrentas do Acará, sua idealização traz as marcas

de uma outra referência cultural. Talvez, para ela, seja mais fácil ser “ribeirinha” e toda a

memória discursiva que esta identidade retoma, se a águas foram azuis.

Neste capítulo, trabalhei análises sob a perspectiva de mostrar a influência da televisão

e de outros meios midiáticos na vida dos alunos da escola Ronaldo Passarinho e como seus

discursos são atravessados por culturas urbanas e por discursos característicos das regiões

amazônicas.

Também, neste capítulo, fiz uma análise das ocorrências de práticas de letramentos, e

com isso acabei esbarrando em relações de poder, materializadas na fala de pais que

compreendem que se seus filhos aprenderem ler, escrever e resolver pequenos problemas

matemáticos já alcançaram grande conquista. Assim fica evidente que nesses pais foi

silenciado o discurso que apresenta a progressão pelo estudo como algo acessível a qualquer

pessoa.

Foucault (2007), em seus estudos, já afirmava que toda prática discursiva está

envolvida em relações de poder, dessa forma tudo que é dito ou visto é resultado da

hierarquização determinada pelo querer e pelo saber daqueles que em dada relação tem o

poder nas mãos. Esse poder será obtido pelos sentidos que vão além da simples produção de

fala. Conforme diz Foucault (2007, p. 56):

Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que

utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna

irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer

aparecer e que é preciso descrever.

No caso da escola Ronaldo Passarinho, o livro didático de língua portuguesa – A

escola é nossa, de Márcia Paganini Cavéquia, editora Scipione – determina aos estudantes o

aprendizado de uma estrutura linguística que muitas vezes se choca com o que eles falam e

ouvem diariamente. Isso faz com que o ribeiro, muitas vezes, silencie sua expressão porque se

compreende como alguém que não sabe “falar ou escrever direito”.

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CAPÍTULO III

DISCURSOS E IDENTIDADES

Ser, parecer

Entre o desejo de ser

e o receio de parecer

o tormento da hora cindida

Na desordem do sangue

a aventura de sermos nós

restitui-nos ao ser

que fazemos de conta que somos

Mia Couto

A decisão de partir para um trabalho de pesquisa em sociedade ribeira exige que se faça

uma reflexão sobre identidade, o que no momento não traduz uma tarefa muito fácil, pois são

muitas as discussões teóricas, travadas no que consiste à identidade. Este cenário fez com que

esse tema tenha se tornado objeto de estudos de diversos profissionais: linguistas, historiadores,

sociólogos, antropólogos, psicólogos e filósofos.

Apesar de todas as divergências possíveis, parece que há, pelo menos, entre os que se

interessam pelo tema, um consenso: tem-se que pluralizar esta definição. Deve-se falar em

identidades, já que cada sujeito, socialmente reconhecido, desempenha variadas posturas

identitárias. Essa é uma questão constante em estudos sobre culturas que ganha expressão

significativa no meio acadêmico/científico, portanto a compreensão dos elementos identitários

torna-se relevante para qualquer pesquisa que se interesse pelo homem em seu estado social e, até

mesmo, individual.

Não tenho a pretensão de querer esgotar o debate sobre conceito de identidade, tampouco

tecer uma defesa de identidade(s). Então, deixo as convergências e divergências sobre esse tema

e parto para algumas considerações sobre percursos de identidades, que mantêm relação íntima e

direta com os processos de acontecimentos históricos, estabelecidos no modo de vida de crianças

do Baixo Rio Acará.

Neste e no próximo capítulo, fundamentado nas discussões da análise do discurso,

especialmente a definição de micropoderes de Michel Foucault e nos debates promovidos pelos

estudos culturais, analiso como acontece a construção de uma identidade fixa para estas

sociedades ribeiras, que sistematicamente entram na mídia, na escola e na história a partir da

generalização “ribeirinhos”.

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3.1 MICROPODERES NO BAIXO RIO ACARÁ

Nas pesquisas em análise do discurso, a identidade é tomada como uma construção

discursiva, forjada por relações de poderes que estabelecem as “verdades sociais sobre o

sujeito”. Para os debates atuais, nesta área, as reflexões de Michel Foucault deram profundas

contribuições. Para Gregolin (2007: p. 7):

Michel Foucault (1978) enxerga, nesses intensos movimentos, uma microfísica do

poder: pulverizados em todo o campo social, os micro-poderes promovem uma

contínua luta pelo estabelecimento de verdades que, sendo históricas, são relativas,

instáveis e estão em permanente reconfiguração. Eles sintetizam e põem em

circulação as vontades de verdade de parcelas da sociedade, em um certo momento

de sua história. As identidades são, pois, construções discursivas: o que é “ser

normal”, “ser louco”, “ser incompetente”, “ser ignorante”... senão relatividades

estabelecidas pelos jogos desses micro-poderes?

No contexto em que vivem os alunos da escola Ronaldo Passarinho, as relações de poder,

a partir de um discurso “urbanocêntrico”, já impressas em suas práticas cotidianas, inclusive em

seus livros didáticos, na escola, colocam a identidade ribeira como subalterna. Foucault (1979)

chama a atenção para este funcionamento do poder, que vai se instalando nos menores e mais

íntimos espaços sociais.

Figura 08: Alunos da escola Ronaldo Passarinho

Fonte: Pesquisa de campo em: mai. 2011.

Foto: José Damasceno

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Nesta fotografia, podemos ver ao fundo uma das colunas que sustenta a ponte da Alça

Viária, sobre o rio Acará. Os alunos estão na frente da escola, isto mostra que, literalmente, a

ponte atravessa a escola. Também há, na foto, uma caixa acústica, um objeto que só passou a

ganhar sentidos entre eles depois da chegada dos postes de energia elétrica, trazidos com a

construção da ponte.

Quando defini que realizaria minha pesquisa em uma região fora dos grandes centros

urbanos, ou pelo menos com a teoria de sê-la, sabia que chegaria a lugares desconhecidos

das culturas urbanas. Este espaço que se institui entre a ponte e a escola é profundamente

atravessado por relações de poder. Cheguei com prudência e cautela para sentir, com

respeito, a realidade destas pessoas e seu momento histórico. Meu percurso me levou para

as “extremidades do poder”. Foucault (2006, p. 182) tece um discurso dizendo que:

Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar

o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto

em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga,

penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de

intervenção material, eventualmente violentos.

Esta forma de organização do poder, que ocupa os menores espaços, eu pude ver

materializado na escola e, em atividades pedagógicas que se pautam em matrizes culturais

distantes da realidade dos alunos. Como já mostrei nos capítulos anteriores, muitas vezes estes

discursos são reforçados pela professora, independente de sua vontade. Sem consciência do que

está fazendo, ela reproduz estes micropoderes que aparecem legitimados pelos livros didáticos,

pelos textos jornalísticos, pelas produções artísticas (televisão) que atravessam tal sociedade.

Essas atitudes contribuem, persuasivamente, para a formação de uma memória discursiva

que pode levar a criança ribeira a silenciar suas práticas culturais cotidianas orientadas pelos

saberes locais. Quando esta ordem discursiva externa chega e não dialoga com a sociedade,

afirma um processo de exclusão do conhecimento local. Para estes estudantes, pode se instituir a

sensação de que pertencem a uma “cultura inferior”, já que suas práticas culturais destoam dos

comportamentos e estéticas (identidades) transmitidos pela escola, a partir de enunciados,

constituídos, em sua maioria, nos espaços de cidades.

Não pretendo aqui abdicar do processo de globalização, mas entender e apreender a

necessidade de defesa de uma relação simétrica, já que o global depende das tradições locais,

vestidas de todos seus coloridos e excentricidades. Assim como Néstor Canclini (2000), também

compreendo da mesma maneira que o global influencia o local e que este mesmo local deixa sua

marca no global, num processo tenso, quase bélico de hibridismo cultural.

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Na fotografia seguinte, a imagem gigantesca da ponte e sua estrutura de concreto, comum

nas paisagens urbana, contrastam com estrada de terra por onde agora também transitam os

moradores. Ainda que interfira bastante na vida das pessoas moradores da região, a Alça Viária

não foi construída para lhes trazer benefícios sociais, ela representa a passagem e não passou a ser

o caminho natural deles.

Figura 09 – O carro e a ponte

Fonte pesquisa de campo em: mai. 2011.

É dentro destas condições de produção que os moradores da região constroem suas

identidades. Na realidade das crianças ribeiras do Baixo Rio Acará, nas proximidades da Alça

Viária, as diferenças sociais também se materializam na arquitetura da ponte.

A formação educacional se confunde e se atravessa com esta história do presente. E,

ainda nem há como a escola encontrar estratégia de diálogo com esta poderosa ordem que se

impõe nos grandes e pequenos espaços híbridos em que as pessoas da região, hoje, constroem

suas identidades.

Com conteúdos e metodologias que privilegiam as práticas urbanas, a escola não leva

em consideração as práticas sociais dos educandos, isto é, os conhecimentos adquiridos no

próprio meio em que vivem. Para exemplificar esta situação, é só pensar na quantidade de

alunos que se utilizam dos conhecimentos matemáticos em seu cotidiano, mas acabam

reprovados nas disciplinas da escola

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O aluno Igor Luís, de 11 anos, tinha dificuldade, na escola, com as operações

matemáticas, mas ao estar em uma rabeta (pequeno barco: sem tolda, com um motor potente –

sem marcha-ré, e que atinge acentuada velocidade), sabia o momento exato de desligar o

motor para que o barco atingisse o porto, sem se chocar; e ainda: usa o recurso de se

aproximar do porto contra a corrente da maré, para que assim a embarcação sofra o repuxo da

força da água, o que lhe permite maior domínio da direção, proporcionando que o encoste saia

perfeito.

Fora outros saberes matemáticos, físicos, medicinais, linguísticos ou geográficos, que

os habitantes de regiões imbricadas nas florestas e debruçadas aos rios não aprendem na

escola, mas acabam se tornando “doutores” pela vivência. Um conhecimento que, inúmeras

vezes, contribui para a prática de distinção em relação a outras pessoas. Estas distinções se

dão por representações culturais que materializam as diferenças identitárias ocorridas entre

grupos de culturas diferentes.

Nesse ponto, Foucault, em sua análise em Genealogia e Poder (1979, p. 171), nos

deixa uma boa reflexão sobre a instituição escolar.

Não é um empirismo nem um positivismo, no sentido habitual do termo, que

permeia o projeto genealógico. Trata-se de ativar os saberes locais, descontínuos,

desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia

depurá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos

direitos de uma ciência detida por alguns. [...] não que se trate da recusa de saber ou

de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda captada

pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os

métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de

tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao

funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade

como a nossa.

As palavras desse autor são bem representativas, quando se pretende analisar a

produção de conhecimento entre as comunidades tradicionais, cuja formação acontece um

pouco mais influenciada por suas ancestralidades familiares, isto é, sofre uma menor

influência externa. Estas construções não são levadas em consideração no momento de se

apontar o conhecimento científico ocidental ou as práticas de consumo instituídas a partir das

relações capitalista como o ideal a ser alcançado para tais sociedades e a instituição desta

ordem discursiva é exemplo de subalternização de culturas.

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3.2. A DESTREZA E A NATUREZA COMO IDENTIDADE

A discriminação em relação a sociedades que vivem às margens dos rios da Amazônia

é oficializada em discursos produzidos por eminentes intelectuais, autorizados socialmente a

falar sobre as populações amazônicas. A maior parte deles se refere às comunidades

tradicionais como produtoras de “saberes” e à academia como produtora de conhecimentos.

Neste caso, especificamente, o termo saberes é significativo àquilo que advém de um acúmulo

de experiências, que é representativo somente para aquele espaço – é uma espécie empirismo

“folclórico”, sem diferenças e sem história.

Figura 10 – Baixo Rio Acará

Fonte: Pesquisa de campo mai. 2011.

Nesse propósito, é possível que o povo das regiões margeadas por águas receba a

alcunha de “ribeirinho”, primeiro, pela relação que se faz desses sujeitos com o espaço em

que habitam, e posteriormente, por sua destreza perante as águas límpidas, escuras ou

barrentas de rios, furos e igarapés. Esta identidade, neste caso, estaria restrita a esta destreza

que lhes permite navegar por essas vias, com competente intimidade e domínio sobre o rio.

Podemos defini-lo ainda como portador, condutor e vivificador de uma memória

discursiva que imbrica mitos, lendas e saberes imersos em águas e florestas. E mais uma vez

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temos um aspecto que lhes fixa uma identidade: suas narrativas não tem perspectiva histórica,

apenas dão conta de fantasias fantásticas. No capítulo anterior, vimos como a história está

presente em qualquer narrativa, pois no caso contado pela aluna, em vez de engravidar uma

mulher, o boto lhe causou dor de cabeça. Atribuir às narrativas dos “ribeirinhos” as categorias

de lendas e mitos, significa colocá-los em um sistema de exclusão. Nesse aspecto, Cuche

(2002, p. 176-7) argumenta que:

A questão da identidade cultural remete, em um primeiro momento, à questão mais

abrangente da identidade social, da qual ela é um dos componentes. [...] A

identidade social de um indivíduo se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações

em um sistema social: vinculação a uma classe sexual, a uma classe de idade, a uma

classe social, a uma nação, etc. A identidade permite que o indivíduo se localize em

um sistema social e seja localizado socialmente.

Mas a identidade social não diz respeito unicamente aos indivíduos. Todo grupo é

dotado de uma identidade que corresponde a sua definição social, definição que

permite situá-lo no conjunto social. A identidade social é ao mesmo tempo inclusão

e exclusão.

Com essa consciência de inclusão e exclusão, observam-se as ações da mídia a serviço

desta ordem discursiva urbanocêntrica, pois essa, quando enfoca o contexto bucólico no qual

se insere o homem ribeiro, espetaculariza a vida dessas sociedades como um espaço de

“pureza”, que vive em profunda harmonia com a natureza. Simultaneamente e de forma

ambígua, também constrói a ideia de que esse povo vive em uma condição de profunda

miséria, sendo merecedor de piedade. Nesses casos, não se leva em consideração o que aquela

sociedade pensa de sua própria condição de vida, quais são suas predileções, se ela realmente

quer ou simplesmente aceita o “urbanocentrismo” por não encontrar outro meio de formação,

Durante a pesquisa, verifiquei entre as crianças e adolescentes ribeiros do baixo Acará

a ocorrência de um discurso bastante recorrente, de que a felicidade está nas conquistas do

materialismo, vivenciado, principalmente, nos ambientes urbanos. Infelizmente, a escola é

uma das instituições que servem de reprodutora desses discursos. Isso é discutido por Cuche

(2002, p. 188):

Com a edificação dos Estados-Nações2 modernos, a identidade virou um assunto de

Estado. O Estado torna-se o gerente da identidade para a qual ele instaura

regulamentos e controles. A lógica do modelo do Estado-Nação o leva a ser cada vez

mais rígido em matéria de identidade. O Estado moderno tende à mono

identificação, seja por reconhecer apenas uma identidade cultural para definir a

identidade nacional [...] A ideologia nacionalista é uma ideologia de exclusão das

diferenças culturais.

[...]

2 O Estado-Nação é o principal resultado político da Revolução Capitalista. É a combinação de estado, de nação

e de sociedade civil dentro de um território delimitado e composto por um governo e uma população de

composição étnico-cultural coesa, quase homogênea, sendo esse governo produto dessa mesma composição.

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Nas sociedades modernas, o Estado registra de maneira cada vez mais minuciosa a

identidade dos cidadãos, chegando em certos casos a fabricar carteiras de identidade

“infalsificáveis”. Os indivíduos e os grupos são cada vez menos livres para definir

suas próprias identidades.

Nessa perspectiva, em que o poder do Estado parece sobrepujar os anseios de uma

educação democrática, a instituição escolar acaba tornando-se uma demarcadora das

conquistas, segregando os que podem dos que não podem, impondo-lhes uma identidade que

deve ser apreendida para que eles passem a acreditar que são o que nunca foram, mesmo que,

no papel, as propostas políticas sejam outras.

A realidade encontrada no município do Acará-Pa emana de uma falta de

compromisso com as políticas educacionais por parte do poder da prefeitura, o que favorece a

execução de um único projeto educacional, cuja funcionalidade entre as escolas ribeiras torna-

o segregador. Este tipo de projeto contribui para que a escola perca o sentido para a maior

parte de seus estudantes.

Para tentar definir o que seria este modo de vida que chamarei de “ribeirismo”, em

quase oposição a urbanismo, vou relacionar algumas práticas culturais recorrentes que fazem

parte das tradições de pessoas que residem à margem de rio ou igarapé amazônicos – linhas

líquidas que, paradoxalmente, ligam e separam as muitas terras e vidas que fazem a

Amazônia. São traços comuns entre os ribeiros acaraenses: o entrar descalço, deixando as

sandálias à porta para não sujar a casa; a constante comunicação com o céu, para consultar o

clima e até mesmo as horas; as brincadeiras das crianças durante o banho, como a “pofia”

(disputa a nado), a pira mãe, os saltos de cima de galhos, barcos ou trapiches – brincadeiras

que causam muita irritação aos pais.

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Figura 11 – Casa de um aluno da escola

Fonte: pesquisa de campo em: jun. 2011.

Faz parte da realidade destas crianças também o acordar antes do nascer do sol e

dormir, hoje em dia, logo após a novela; os trajes para o trabalho na floresta quase sempre

feitos de roupas já velhas e até remendadas; o cotidiano “apanhá açaí pro bebe” (colher açaí

para tomar – comer – ao jantar); a intimidade com embarcações no seu leva-e-traz de pessoas

e coisas; o reconhecimento e denominações das marés: viva, morta, de lua, de quebra, maré

grande, etc., das quais dependem a maioria dos afazeres diários do homem; o dormir em redes

(certamente, uma das mais vivas heranças indígenas). Todas as formas de sobrevivência nesse

meio, as quais, forçadas ou não, decorrem de necessidade e intimidade com o espaço/tempo.

3.3. A ESTRADA NÃO APARECE NO “NOSSO LUGAR”

A educação no ambiente ribeiro tem um papel de grande importância como em

qualquer outro espaço. Ela deveria, num primeiro momento, focar, fortalecer e valorizar a

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cultura local, que por si só já é bastante heterogênea e se materializa na escola de diversas

formas, desde a performance do corpo no assento escolar até o comportamento social dos

alunos, por exemplo. O ideal seria que depois deste primeiro momento a criança fosse levada

à “desterritorialização”, voltada para obter outros saberes em outras culturas, mas sem nunca

desperdiçar o trazido para a escola. Neste aspecto, a instituição educacional estaria levando

em consideração o currículo oculto, o que nos dias de hoje é muito relevante, por conta de que

esse currículo é formado fundamentalmente por atitudes, comportamentos, valores e

orientações que atravessam o ambiente escolar.

Com o intuito de ver como os alunos materializam o que é ser “ribeirinho” em seus

textos escritos e visuais e de que maneira percebem a legitimação ou não do seu modo de

vida, solicitei às crianças um poema sobre seu lugar. A produção a seguir foi resultante desta

atividade.

Figura 12 – Texto sobre o meu lugar

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Transcrição fiel do texto do aluno F. de 11 anos, cursando a 4ª série:

Poema do meu lugar

Moro nesse lugar chamado Baixo Acará

As vezes fico pensando e

mi perguntando meu deus o que seria

de mim se não estivesse esse mar

Pra mim nadar

deus e tão bom por que deu esse lindo

lugar pra gente morar vejo tantos lugares

Mara mas não quero morar por que eu

Amo meu lugar ele e muito bom pra morar.

Olho para o lado veja tantas

plantas a Balançar olho para o outro

e vejo as estrelas a brilhar

esse lugar e o Baixo Acará

Fim

Este aluno é capaz de sustentar sua argumentação e, durante nossa pesquisa, ele pode

falar sobre o seu lugar. Neste texto, diferente da expectativa das pessoas que moram nos

grandes centros urbanos e que elegem sua forma de viver como o ideal para qualquer pessoa,

o estudante afirma que, embora saiba da existência de outros lugares, ele é feliz onde mora.

No poema, identificamos a produção de um discurso marcado pela contemplação e

pelo estado confessional sobre o lugar, onde a natureza é referência de felicidade, porque ela

aparece em abundância. Quando utiliza a palavra “mar”, alude ao sentido de grandiosidade do

rio. O texto resume-se a elogios ao lugar, numa visão bem bucólica: natureza, paz e

tranquilidade.

Também é possível ver nestes enunciados a presença do discurso religioso e toda a

beleza natural é atribuída a “deus”. O rio e a floretas materializam a bondade divina e a forma

como ele fala traduz uma espécie de devoção inquestionável pelo lugar onde vive. A presença

da igreja católica e de igrejas evangélicas é bastante significativa na região e nem neste

aspecto há uma homogeneidade de práticas. Assim como há escolas às margens dos rios, há

também uma série de igrejas para onde os moradores da região vão em suas embarcações.

A partir da mesma proposta de atividade, outra aluna reproduziu o seu lugar, de modo

encantador, por intermédio do desenho colorido, que fora outra possibilidade dada aos alunos

para falarem do seu lugar. Vejamos tal discurso imagético:

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Figura 13 – O desenho de Darilene

O texto acima foi criado em linguagem não-verbal, com a intenção de representar o

seu lugar. Nele, vemos a reprodução de um barco, num rio de vida farta, o que fica claro na

imagem do peixe e nas margens desse rio com bela vegetação, ilustrada pelas árvores

frutíferas (o açaí sempre presente) e flores. Toda essa vivacidade do espaço é projetada no

sorriso aberto e encantado da menina dentro do barco, que navega rumo a (ou por) um mundo

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de certezas, pois ao longe, no horizonte temos o Sol, cuja simbologia, pelo que tudo indica,

passa a ideia de que a vida naquele espaço é marcada por realizações de plena felicidade.

A imagem desponta uma visão clássica de vida bucólica, porque mostra a natureza

oferecendo tudo que é necessário para a sobrevivência. A manifestação tecnológica aqui

apresentada é aquela observada na canoa, meio de transporte comum nesta realidade. Vemos

ainda que, apesar desse grupo de crianças, hoje, conviver com a estrada da Alça Viária, em

suas produções a ponte sobreposta ao rio Acará não aparece como característica do seu lugar.

O que mais me chamou atenção em relação aos textos que ao alunos produziram neste

atividade é que, nem nestes dois apresentados, nem nos outros, a ponte da Alça Viária

apareceu. Isso talvez aconteça porque eles constroem uma memória sobre a relação com o

lugar onde vivem a partir das falas de suas famílias, e neste caso, a presença da ponte ainda

não se instituiu. Também é possível fazer uma associação com o fato de que a escola não olha

para a realidade em que eles vivem, mesmo que haja uma ponte enorme no fundo do quintal e

a atividade foi proposta em sala de aula.

O LUGAR ONDE VIVO.

O MEU LUGAR É BONITO DE SI VER.

POEMA:

um livro parece a nossa floresta com folhas e flores é bichos e cores.

é um barco no mar é um amigo companheiro

ó meu rio é bonito águas azul é peixes canoa navegando é barco.

Nossa Floresta com folhas, flores e frutos, é bichos. como macaco, pássaro, que vôo.

tem árvores frutíferas como cacau, cupuaçu, cupuai, maracúja, bacuri,

é tem o açaí, uma fruta vai rolando para os nossos alguidares. E se entrega ao

sacrifício Fruta santa fruta mártir tens o Don de seres muito onde muitos não têm

nada uns te chamam Jussara Põe tapioca Põe farinha d’água Põe açúcar não põe

nada ou me bebe como um suco

Que eu sou muito mais que um fruto

Sou sabor marajoara

Sou sabor marajoara

Sou sabor...

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Figura 14 – O texto de Darilene

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A aluna que produziu este poema tem 11 anos de idade. O tema foi definido pelo

interesse da pesquisa e a menina seguiu esse tema, voltando seu foco para o que reconhece

como marcas de sua cultura: floresta, folhas, bichos, rio, barco, canoa, cacau, cupuaçu,

cupuaí, bacuri, açaí. Demonstrando clareza que a redação deveria ser sobre o lugar onde eles

moram, ela recorreu aos elementos que socialmente se identificam com a região,

principalmente, aqueles que estão presentes na realidade observável, como frutos, rio e barco.

No entanto, percebemos a intromissão de elementos que fogem à realidade local quando ela se

utiliza das expressões “um barco no mar” e “o meu rio é bonito águas azul”.

A estudante poderia ter dito rio ou igarapé no lugar de “mar” e águas barrentas ou

águas pretas no lugar de “águas azul”. Estas representações são referências de outras

realidades. E, embora não estejam presentes na realidade da aluna, estão presentes em sua

memória discursiva. Ela retoma estes elementos e os atualiza a partir de sua realidade.

Embora situada em uma realidade física local, certamente a estudante tem acesso a textos que

dão conta de diferentes matrizes culturais, por intermédio dos próprios livros didáticos, mas

também por outras mídias como revistas, catálogos, televisores.

Nas representações que constrói sobre o espaço em que vive, a menina fez uso, em seu

enunciado, da palavra “mar” e da expressão “água azul”, talvez, por achar mais bonitas esses

termos ou por já ter transitado por alguma imagem que reproduzisse o mar. Ela não

estabeleceu nenhuma distinção de sentido, criando então uma pseudo-imagem do seu lugar a

partir de uma ressignificação metafórica.

Observamos também que a aluna cita várias frutas que fazem parte do seu contexto,

mas uma, ela apresenta de modo especial – açaí – sexta linha, pois quando a palavra aparece

determinada “o açaí”, isto enfatiza a ideia do valor que esta fruta tem para o contexto. Este

produto está presente entre os ribeiros tanto como delicioso alimento, quanto como principal

fonte econômica destas sociedades, daí, talvez, explique a fala orgulhosa ao se referir ao fruto.

Continua exaltando o fruto, ao fazer um empréstimo da letra da música de Nilson

Chaves, um dos mais notabilizados cantores paraenses, cujas composições se caracterizam

pelo forte apelo regional. Os versos “Que eu sou muito mais que um fruto /Sou sabor marajoara /

Sou sabor marajoara / Sou sabor...” são da música Sabor Açaí, de Nilson Chaves & João Gomes, a

qual faz uma descrição poética do açaí, desde a palmeira até o suco. Esta é uma canção que se

tornou verdadeira declaração de amor a esse fruto natural de nossas florestas. A aluna se

apropria, de maneira transcrita, revelando novamente a influência externa, urbana, que chega

de Belém pelas rádios.

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Da letra da música, ela seleciona a palavra “alguidares”, que denomina um utensílio

doméstico feito de barro e em forma de bacia, pouco conhecido nas grandes cidades, mas de

íntima convivência entre os ribeiros, apesar de que hoje em dia começa a ser substituído por

bacias de material plástico. Para a estudante, o significado de tal palavra deve estar bem vivo

em sua memória discursiva, o que provavelmente lhe permitiu transcrever tal verso.

Os textos até aqui analisados revelam que aqueles a quem o poder colonizador e a

sociedade, em geral, se deu o direito de denominar “ribeirinhos”, mas que neste trabalho

altero para a categoria de ribeiros, não se enquadram nessa alcunha somente por habitarem as

margens de leitos fluviais, mas também por manusearem os elementos que fazem parte das

terras e águas que lhes permeiam. Neste caso, podemos considerar que a cultura ribeira,

familiarizada à floresta e aos rios, interage com os fenômenos autóctones e (re)cria os

símbolos constituintes de uma realidade, aos olhos da ignorância, inferior e que precisa ser

alterada ou pelo menos ajudada com o nosso “materialismo capitalista”.

Esta expectativa revela um discurso colonialista, numa relação

colonizador/colonizado, na qual aqueles que fazem parte de uma sociedade de menor poder

aquisitivo e menor nível de escolaridade estão, historicamente, subjugados às “verdades”

emanadas de ordem discursiva dominante, cuja ação mais comum é a de impor,

persuasivamente, seus valores identitários, normalmente baseados em ideais capitalistas e, por

que não dizer, academicistas.

Todas essas atitudes externas impostas vêm pautadas em um discurso de “melhoria de

vida”, conduzindo as sociedades tradicionais ao afastamento de sua realidade e ao mergulho

em ideais capitalistas, o que as conduz a um processo de despersonalização, no século XXI,

analisando Fanon, Bhabha (2007, p. 72 e p. 75) argumenta que:

[...] A análise da despersonalização colonial não somente aliena a ideia iluminista do

“Homem”, mas contesta também a transparência da realidade social como imagem

pré-dada do conhecimento humano. Se a ordem do historicismo ocidental é

perturbada pelo estado colonial de emergência, mais profundamente perturbada é a

representação social e psíquica do sujeito humano. Isso porque a própria natureza da

humanidade se aliena na condição colonial e a partir daquela “declividade nua” ela

emerge, não como uma afirmação da vontade nem como evocação da liberdade, mas

como uma indagação enigmática.

[...]

A demanda de Fanon por uma explicação psicanalítica emerge das reflexões

perversas da virtude civil nos atos alienantes do governo colonial: a visibilidade da

mumificação cultural na ambição declarada do colonizador de civilizar ou

modernizar o nativo, que resulta em “instituições arcaicas inertes [que funcionam]

sob supervisão do opressor como uma caricatura de instituições anteriormente

férteis”; a validade da violência na própria definição do espaço social colonial; [...]

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As palavras de Bhabha são materializadas na relação social urbano-ribeira, que se dá a

partir de comportamentos colonizadores, cujo poder indutor conduz esse homem, residente

nas margens dos rios amazônicos, ao desejo de possuir bens e, até obter valores tão bem

anunciados pelos “dominantes”. Esses desejos supervalorizam o espaço urbano,

inferiorizando o meio ribeiro, determinando aos “dominados” uma posição de subserviência.

3.4. UM PAÍS MELHOR ESTÁ DISTANTE

Na figura a seguir aparece um painel que os alunos construíram sobre “um país

melhor”. O que podemos observar é que todas as imagens mostram cenas urbanas. Embora

nos textos que estes mesmos alunos produziram sobre o seu lugar, a região apareça como um

lugar idealizadamente maravilhoso, no painel, eles não colocaram nenhuma referência direta

ao seu cotidiano.

Figura 15 – Painel um país melhor

O certo é que o educando, que vive nesta região, não tem um trabalho voltado para

seus interesses, pois a instituição que deve indicar caminhos para o bom encontro com sua

Foto: José Damasceno

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realização futura é a mesma que, muitas vezes, corrompe seus ideais, agride seu espaço e sua

realidade; questiona, assim, suas identidades.

Na escola Ronaldo Passarinho, percebe-se um plano educacional estabelecido a partir

de práticas educacionais e formativas comuns e usuais em realidades urbanas, por tanto não

consegui detectar nenhuma preocupação em criar um projeto voltado para a realidade e a

condição local. Em visita à SEMED (Secretaria de Educação do Município do Acará), no dia

05-07-2011 às 12h, tomei ciência de que o Poder municipal considera dois espaços

educacionais: escolas urbanas e escolas do campo, nesse caso entre as escolas do campo estão

incluídas as localizadas nas margens de rios e igarapés, as quais nesse trabalho são

classificadas como escolas ribeiras.

Conforme informações obtidas junto à Secretaria, não existe nenhum projeto

educacional, nem estudos voltados especificamente para escolas ribeiras. Tais instituições,

como fica evidente em minha pesquisa, têm inúmeras peculiaridades, como as têm também

aquelas localizadas em áreas mais distanciadas dos rios (colônia ou centro), essas sim podem

ser chamadas escolas de campo.

Por tudo isso se torna importante e relevante que os projetos e planos educacionais

deem ênfase a esta cultura local, da mesma forma que na cidade é dado ao urbanismo.

Imaginemos que, assim como no ambiente urbano, educamos as crianças para a convivência

com o trânsito de automóveis, trens, metrôs; voltamos os jovens para as profissões de médico,

engenheiro, químico, biólogo, advogado, professor. Não há nada de errado que estas

informações também cheguem aos alunos ribeiros. O problema é que apenas elas chegam em

suas escolas.

O ideal seria que estes alunos também recebessem orientações sobre os riscos com os

motores e com as próprias embarcações, sobre segurança na navegação, sobre as melhores

maneiras de usar a mata, os rios e a terra, mantendo-os preservados, sem deixar de ser útil e

demais ações que viabilizariam uma interação entre a escola e o meio. Se a escola fosse palco

de um multiculturalismo, as crianças construiriam um sentimento de ser pertença em relação à

escola e ao seu, hoje, tão multifacetado ambiente.

Infelizmente, prefeituras como a do município do Acará não têm nenhum projeto

voltado, exclusivamente, para a educação do campo e muito menos com especificidade para

as escolas ribeiras. Isto, certamente, denuncia o descaso do Poder Executivo com as políticas

educacionais e das políticas educacionais com a sociedade por completo, mas principalmente

com a rural, cuja formação aparece ainda mais desqualificada e subjugada a planos

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educacionais que pouco atendem às sociedades urbanas e muito menos às rurais/ribeiras. Isso

dá ainda mais corpo à subalternização cultural.

Os adolescentes e as crianças da escola Ronaldo Passarinho, que têm suas vidas

atravessadas com intensa constância por discursos urbanos, demonstraram uma acelerada

assimilação desses discursos externos; é certo que muito mais por imitação do que por

participação propriamente dita. Nesse encontro entre a cultura dessa sociedade ribeira e

aquela advinda de espaços citadinos decorrem ressignificações que se dão quase em tempo

real, devido ao contato cotidiano desses discursos, cujos reflexos aparecem, principalmente,

no almejar os produtos tecnológicos.

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CAPÍTULO IV

RIBEIRO: à margem do discurso

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Fernando Pessoa

Nesta dissertação, proponho a desconstrução da categoria “ribeirinho” porque entendo

que dela decorre um discurso de desqualificação das sociedades ocupantes de espaços que

margeiam os rios e os igarapés da Amazônia. Por sua construção histórica, esta categoria

parece materializar uma classificação colonialista, galgada da dicotomia entre culturas

inferiores e culturas superiores. Talvez fosse possível até afirmar que essa categoria é produto

de uma invenção, de um simulacro já que não resulta de autodenominação destas sociedades.

O certo é que “ribeirinho” dá vazão ao estado de “supremacia” de um discurso

eurocêntrico e étnico, atualmente reproduzido, com frequência, pela mídia. Normalmente,

aparece em classificações que se ordenam a partir de uma ótica “urbanocêntrica”, capitalista,

tecnologicista e academicista, cujos traços aparecem bem talhados em duas esferas quase

sagradas das sociedades contemporâneas: a formação acadêmica e o nível do poder aquisitivo.

A categoria “ribeirinho” tornou-se convencional e hoje é comumente usada, pela

maioria da sociedade, de forma despretensiosa como se fosse um vocábulo neutro, sem a

percepção das relações de poder que a envolvem e a constituem. Nessa atmosfera de relações

de poder Foucault (2000, p. 17) esclarece que:

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre

um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um

compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como sistemas dos livros,

da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios de

hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente, sem dúvida, pelo modo

como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído,

repartido e de certo modo atribuído.

À luz desse pensamento foucaultiano, digo que o uso de “ribeirinho” aparentemente

trata de um discurso estabilizado sobre estas sociedades, exclusivamente vinculado à

localização geográfica, ou seja, refere-se àqueles que vivem à beira de rios. Há ainda os que

resistem em discutir esta categoria e defendem que esse discurso reproduz um tratamento

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poético e, quase incoerentemente, afirmam que “ribeirinho é bonitinho”, sem sequer atentar

aos possíveis sentidos deste diminutivo e sua prática de uso repleta de discriminação ou

restrição.

Neste capítulo, mostro como funciona esta memória discursiva que constantemente

retoma e atualiza os discursos que circulam sobre as pessoas que vivem às margens dos rios.

4.1. IDENTIDADES NA PÓS-MODERNIDADE

“As identidades não são nomes. São verbos que se

enunciam sempre no futuro”

(Mia Couto)

A discussão a respeito de identidade alcança todo e qualquer processo cultural, pois é

no contexto espaço/tempo que os sujeitos vão tendo suas identidades formadas e

transformadas, proporcionando transformações que sempre marcaram o homem em

sociedade, mas ficaram mais acentuadas a partir da sociedade moderna, cujas identidades se

concentram em uma atmosfera de velocidade. Agora passo a abordar como se dá esse

processo de construção de identidades em sujeitos da pós-modernidade.

Stuart Hall (2006), em A identidade cultural na pós-modernidade, faz uma apologia às

ideias ou afirmações de que as identidades no mundo atual estão se diversificando e

descentrando, o que provoca certa fragmentação no indivíduo, mas indubitavelmente isso tem

ocorrência de modo diferente, nos diversos lugares. Cada espaço/tempo tem suas

manifestações culturais peculiares e as interações humanas – hoje mais intensas –

proporcionam encontros entre manifestações culturais que podem apresentar postura

convergente ou divergente, mas que acabam se encontrando e aplicando relações de

entendimentos e conveniências, em mostras de hibridização, fazendo surgir novos sujeitos. Se

essas ocorrências se dão em espaços de entrelugares, as mudanças podem ser ainda mais

aceleradas, correspondendo à velocidade do mundo moderno.

No contraponto deste movimento de descentramento, no ambiente contemporâneo,

observam-se muitos indivíduos em busca de uma identidade plena, “perdida” mas que na

prática se encontram esfacelados em diversas identidades, as quais são construídas,

desconstruídas e reconstruídas, pelo movimento da história.

Tomando como ponto de partida a concepção de Hall (2006, pp. 10-13), acerca dos

sujeitos: “do iluminismo, sociológico e pós-moderno”; é possível compreender os processos

de construção de identidades por que passaram, os sujeitos ribeiros do Baixo Rio Acará,

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participantes desta pesquisa, como cumuladores da categoria de sujeito sociológico e sujeito

pós-moderno.

Sociológicos porque, pela sua subjetividade cultural, podem ser visto como elo entre

os valores de sua ancestralidade, antropologicamente afro e indígena, preservados em muitos

de seus saberes medicinais, suas crenças, suas culinária e suas características físicas; e os

valores urbanos impostos, em nome de uma civilização herdada de comportamentos

colonialistas, bastante vigentes no meio amazônico, resíduo da condição do “caboclo” e

originado com a colonização da Amazônia, ainda no século XVII.

As crianças e adolescentes ribeiros desta pesquisa vivem em espaço, nitidamente, de

interstício: às margens do rio – por onde navega uma cultura de identidades mais passadistas,

isto é, conservadora de costumes ancestrais – e à margem da estrada – por onde correm o

progresso, a tecnologia e parte do “alimento” do capitalismo mundial. Por tal fato esses

sujeitos internalizam discursos advindos das duas realidades, e atravessadores do mesmo

espaço, possibilitando a formação de um espaço de encontro cultural, um “entrelugar”.

Essa é uma realidade vivida pela sociedade acaraense desta pesquisa, na qual a

identidade se apresenta instável, resultando em um imediatismo social na medida em que

desqualifica o valor de memória coletiva e não apresenta estabilidade da noção de perspectiva

de futuro – o que vale é o “agora”. Isso caracteriza bem o sujeito pós-moderno. Sobre esse

sujeito na pós-modernidade, Hall (2006, p. 12) comenta que:

O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se

tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,

algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as

identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa

conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando

em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio

processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

4.1.1 A canoa, as meninas e o celular

Dentre as muitas situações vividas no trabalho de campo, algumas delas me

possibilitaram acompanhar como as pessoas do Baixo Rio Acará estão se relacionando com

os, para eles, novos objetos tecnológicos. Alguns alunos da escola Ronaldo Passarinho

mantêm consigo, em sala de aula, um aparelho celular, mesmo sem fazer uso do sentido

primeiro deste aparelho – telefonar, já que na região esse uso depende de estar conectado a

uma antena. No entanto me foi possível observar dois fatores determinantes para que esse

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objeto transite em meio aos educandos daquela instituição: primeiro o aparelho é utilizado

como um portador de música, as quais, antes e depois das aulas, são ouvidas em expressivo

volume, como se tivessem orgulho em publicar o que ouvem. O segundo fator está

condicionado à ideia de status. A narrativa a seguir, descreve uma situação de campo que

exemplifica esta condição:

Um dos garotos que possui um desses aparelhos, num momento em que eu

conversava com ele, mostrou-se interessado em que eu notasse seu celular, e assim

vez ou outra tirava do bolso e depois guardava (olhava a hora, mexia em uma tecla).

No momento em que ele teceu breve comentário sobre o design do aparelho resolvi

interpelá-lo, brincando:

– Dá pra eu ligar pra minha casa?

Ele sorriu e me respondeu que dali não, só se nós fôssemos até o alto da ponte ou

adaptasse o telefone numa antena, mas que na verdade ele não tinha crédito e nem

em sua casa tinha antena.

Então voltei a perguntar:

– E por que você tem esse aparelho?

Sua resposta foi imediata e sem pestanejar:

– Pra escutar música e olhar a hora. Quando a gente tá no barco, a gente vem

ouvindo e cantando, as meninas gostam.

– Ah! Então ele serve pra “pegar” as meninas, não é? – falei.

– É, né... – respondeu o menino.

Nesse momento, percebi que o termo “pegar” – gíria corriqueira nas cidades com o

sentido de “paquerar” – já faz parte da fala daqueles adolescentes. Essa situação

vivenciada é um bom exemplo de identidades cambiantes citadas e analisadas por

Hall (2006) e vivenciadas na sociedade do Baixo Acará, o que me permite, fazendo

referência aos sujeitos e ao seu “entrelugar”, usar a metáfora de “sujeito camaleão”.

Toda essa oscilação identitária, vivida pela sociedade pós-moderna, está imbricada nos

processos de globalização. O que pode ser confirmado com as seguintes palavras de Hall

(2006, p. 14), acerca das identidades em contexto de globalização:

Um outro aspecto desta questão da identidade está relacionado ao caráter da

mudança na modernidade tardia; em particular, ao processo de mudança conhecido

como ‘globalização’ e de impacto sobre a identidade cultural.

Em essência, o argumento é que a mudança na modernidade tardia tem um caráter

muito específico.

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4.1.2 Entre pedaladas e remadas

Na experiência do trabalho de campo entre eles, pude observar como está funcionando

este movimento de hibridização que se estabelece a partir da construção da estrada da Alça Viária.

Como passei a infância nesta região, sem dificuldades consigo perceber a introdução de novas

práticas culturais entre eles. Para pessoas que sempre viveram em cidades, com suas ruas

esburacadas ou devidamente asfaltadas, o acontecimento a que me reporto a seguir, talvez,

passasse despercebido. Lembro que quando contei esta história, durante a qualificação, de

imediato, algumas pessoas não entenderam o que havia de novidade na situação.

Figura 16 - Aluno dirigindo um rabudo no Baixo Acará

Fonte: Pesquisa de campo em: jun. 2011.

Um dos pais dos alunos mantém em sua casa – na beira do rio – uma bicicleta, que ele

leva na canoa até o porto da Alça Viária, onde troca o remo (instrumento usado para locomover e

dirigir as canoas não motorizadas) por pedais e guidom. Sempre habilidoso no manuseio de

canoas e barcos, este pai aprendeu a usar a bicicleta (meio de transporte, normalmente, de

cidades) desde a construção da estrada, em 2002. Assim como acontece com ele, essa prática em

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duas rodas passa a ser também de algumas das crianças pesquisadas. Antes da Alça Viária, as

crianças da região não andavam de bicicleta.

Como a globalização pode ser entendida como um aproveitamento político do

desenvolvimento tecnológico, então é normal que se vejam as forças capitalistas, em

sociedades tradicionais, engolirem memórias culturais e, a partir desse encontro, implantarem

novas identidades, marcadas pela tecnologia e, consequentemente, por sua velocidade. Por

exemplo, o remo – antes, objeto de extrema importância para sociedades ribeiras que flutuam

de um lado a outro como meio de vida – hoje cede lugar a pequenos motores de popa, que por

seu desenho, recebem o sugestivo nome de “rabudo”.

Esta estrada atravessa o rio e a vida daquela gente, antes mergulhada num ritmo mais

lento do rio e na aparente tranquilidade do lugar, hoje tangendo à velocidade que cruza o espaço,

oferecendo novas práticas sociais que proporcionam trânsitos de identidades. Esta história do

presente, de fato, constrói aquilo que Bhabha (1998) chama de entrelugares.

4.2. INVENTANDO DISCURSOS

A professora Ivânia Neves (2009), em sua tese de doutorado, levanta uma série de

questionamentos sobre a invenção do índio pelas instituições europeias. Aqui, retomo

algumas destas inquietações e transfiro às discussões que me proponho a fazer acerca dos

ribeirinhos: “...que sentidos se movimentam em torno desta história contada por uma única

versão? Que memória discursiva evoca? Que discursos silenciam?”. E é nesse passo de

questionamento que corroboro com as mesmas interrogações em relação à alcunha utilizada

para identificar as pessoas que vivem nas margens das águas amazônicas, em regiões

normalmente de várzeas.

De acordo com Bakhtin (2004), a língua é um sistema de signos específicos, social e

historicamente constituído; pelo qual o ser humano consegue significar o mundo com o qual

se comunica. Então corroborando com esse pensador russo, fica evidente a necessidade do

homem em nomear. É lógico que a necessidade linguística e de comunicação exige que o ser

humano nomeie tudo que o rodeia, para garantir a boa fluência comunicativa.

As nominações, no entanto, não são neutras e são dadas em consonância com o

contexto – espaço/tempo – imbricando em si uma determinada ideologia. Justamente, por isso

podem ser avaliadas e mexidas sempre que sua posição for entendida como defectiva em

relação ao outro, ou construída com um significado, historicamente, pejorativo,

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principalmente quando se tratar de sociedades. E me parece que toda essa situação está muito

evidente no caso da categoria “ribeirinho”; amplamente usada no meio acadêmico e social.

Quando Neves (2009, p. 105) questiona a construção de significados voltados aos

povos indígenas, em geral, e as suas sociedades, em particular, é porque a pesquisadora

entende que em meio a estes processos históricos há profundas imbricações de poder:

A história é contada pelos homens, atravessada por relações de poder, administrada.

Seria ingênuo acreditar que existem sociedades cujos historiadores não marquem

posições ideológicas. A ficcional neutralidade da história, ainda que muito poderosa,

é apenas um dispositivo discursivo que serve para transformar a versão parcial na

verdade absoluta.

[...]

A história dos índios na América não é diferente neste sentido. Mas, naturalmente,

mantém suas peculiaridades. As histórias contadas pelos próprios índios falam de

um lugar diferente da história ocidental. Há de certa forma, um deslocamento de

sentidos da história ocidental, quando o assunto são as sociedades indígenas. Salvas

algumas poucas exceções, não são os historiadores que trabalham com elas, são os

antropólogos.

Na realidade amazônica, é bastante recorrente este “olhar de fora” para falar das

sociedades que se encontram imbricadas nas florestas e nas águas. Podem ser sociedades

indígenas, remanescentes de quilombolas e sociedades ribeiras. Este olhar exterior, muitas

vezes, resulta em uma visão estereotipada, fundamentada na ideia de inferioridade. Quem

produz este discurso é, normalmente, o vivente e consumidor de uma ótica, de dominação,

urbana. Por conta disso, a mensura que ele faz de sua realidade citadina com a daqueles

habitantes de ambientes mais afastados dos grandes centros tem como resultado a tese de que

a sociedade ribeira é inferior e, portanto, formada de uns “coitadinhos” que necessitam de

ajuda, porque levam uma vida de penúria – o que marca a reprodução do comportamento

colonialista. Neste caso, as culturas urbanas acabam aparecendo como o paradigma de

civilidade e realização.

Ao se assumir nessa categoria de “ribeirinho”, a pessoa se vê do ponto de vista do

poder, pois é este que, ao categorizar os seres dentro da sua localização geográfica, ou

simplesmente por restrição espacial e de meio de trabalho, segrega as pessoas em categorias

sociais definidas e hierarquizadas pela condição de acesso aos bens materiais.

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4.2.1 Caboclos ou ribeirinhos? Atualização de memórias

Como uma construção discursiva herdada da categoria “caboclo”, predominante em

anos anteriores à década de 1970, o “ribeirinho” arrasta consigo os sentidos de inferioridade,

aquele que está fora dos avanços modernos e que pensa a partir do outro. Apresenta-se

distante da identidade nacional, já que esta, formalizada em ideia de subalternização, tem seu

paradigma nas matrizes culturais das regiões mais desenvolvidas técnica e economicamente –

Sul e Sudeste – enquanto as demais regiões apresentam apenas traços regionalistas, isto é, não

constituem a identidade do Brasil.

“Ribeirinho” tem sua representatividade no plano geográfico e aparece na literatura

antropológica, pela primeira vez, em 1977, quando Miller, ao se referir às cidades, localizadas

às margens do rio Amazonas, chama-as de “comunidades ribeirinhas tradicionais”. Essa

afirmação feita conforme Rodrigues (2006, p. 124-5), que em seus estudos diz que:

O termo ribeirinho, hoje usado amplamente pela mídia local para falar das

populações amazônicas, não aparece na literatura antropológica antes dos anos

setenta, quando Miller (1977) refere-se às “comunidades ribeirinhas tradicionais”,

pequenas cidades localizadas ao longo do rio Amazonas, não muito próximas aos

centros mais desenvolvidos, ainda não alcançadas pela malha rodoviária, e ignoradas

pelos projetos desenvolvimentistas aplicados à região.

É histórico que, no geral, as sociedades amazônicas que habitavam fora dos grandes

centros urbanos, ou seja, na área rural, eram alcunhadas de caboclas, termo etmologicamente

pejorativo e nascido em um plano étnico (oriundo da mistura do branco com o índio), portanto

já surge discriminado, pois está cravado em si o olhar do colonizador.

Durante a colonização da Amazônia, e ao longo da sua formação populacional, essa

miscigenação se diversificou, mas a categoria de caboclo continuou a serviço do poder e

assim servindo para identificar todos aqueles que habitavam o interior amazônico. Dessa

forma, o caboclo é compreendido, genericamente, como uma categoria social marginalizada.

Entretanto, na literatura acadêmica, é a denominação que categoriza os trabalhadores rurais,

em geral. O que dissemos anteriormente e confirmado em Lima (1999, p. 05), quando diz que,

no plano coloquial, essa categoria é marcada por ideologias dominantes e ganha potência

discriminatória.

O termo caboclo é amplamente utilizado na Amazônia brasileira como uma categoria

de classificação social. É também usado na literatura acadêmica para fazer referência direta

aos pequenos produtores rurais de ocupação histórica. No discurso coloquial, a definição da

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categoria social é ambígua e está associada a um estereótipo negativo. Na antropologia a

definição de caboclos como camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes

tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país. Ambas as acepções de

caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas

por pessoas que não se incluem na sua definição.

Sobre estes processos de nomeação, analisa o professor Agenor Sarraf Pacheco (2011:

p. 1).

Oriundas de históricos trânsitos culturais, urdidos em assimilações, trocas,

empréstimos, enfrentamentos, resistências, negociações, sociabilidades, perdas e

ganhos, essas populações locais, filhas das múltiplas mesclas indígenas, europeias,

africanas, asiáticas, realizaram, por meio de continuas mediações, traduções de

códigos culturais formulados por grupos de contato antes, depois da colonização e

nos sequentes tempos contemporâneos. Nos fluxos e lutas para persistir com

memórias de seus saberes e tradições, índios, negros e seus descendentes, em

condições adversas de vida, misturaram seus corpos, almas, sentimentos e culturas,

forjando uma nova identidade cambiante em territórios da “diferença colonial”.

Por intermédio desse argumento, vejo que grande parte do material que existe na

academia, com a acepção de caboclo, foi produzida a partir de práticas discursivas urbanas e

não caboclas. É evidente que a visão urbanocêntrica, que comumente constrói conceitos

imbuídos em padrões materialistas, sobressai-se e cristaliza-se, até mesmo, em meio aos

próprios discriminados. Essa visão dá força à ideia de que as sociedades rurais são

inferiorizadas, já que estão um pouco mais distanciadas desses ideais materialistas. Por isso o

caboclo é visto diretamente relacionado à pobreza, sem ser questionado do que seja para ele,

caboclo, o bem viver. Isso pode ser confirmado em Lima (1999, p. 14):

Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito cultural. O

caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos ou internacionais,

mas também em relação a uma expectativa elevada para a performance econômica

e social deste neobrasileiro na Amazônia. Essa expectativa deriva da intenção

colonial de se estabelecer um campesinato empresarial na Amazônia. Também se

relaciona ao mito de que o meio ambiente amazônico é um reino de riquezas, que

o campesinato ideal iria explorar materialmente.

O aparecimento do caboclo também está relacionado às intenções políticas das classes

dominantes, colonizadoras e, ao longo dos séculos, várias ações foram praticadas; como

exemplo, a exploração da borracha, do século XIX para o XX e os diversos projetos para o

desenvolvimento da região, no período da Ditadura Militar no Brasil, nas décadas de 60 e 70

do século XX, principalmente no governo do General Geisel.

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Estes fatos contribuíram acentuadamente para a expansão populacional e social nessa

região. Com isso a etnia que, há muito já deixara de ser a grande referência para denominar

grupos sociais, agora cede de vez espaço para outros referentes de categorização; então,

gradativamente, foi-se adotando novos termos e outros já existentes foram se massificando. O

certo é que essas novas categorias estão relacionadas às práticas de trabalho ou à localização

espacial (geográfica). Desta maneira se reduziu o uso do termo caboclo e tornaram-se usuais

outras categorias como: ribeirinho, colono, seringueiro, lavrador, pescador, barqueiro,

marreteiro, povo da floresta, roceiro, vaqueiro e outras tão discriminadas quanto à originária,

caboclo.

Ao se autodenominar em uma dessas categorias, a pessoa está se vendo do ponto de

vista do poder e, então, ela traz consigo a herança de “inferioridade” encravada na semântica

constituída, ao longo dos anos no termo caboclo, no qual se resume a ideia de negatividade

imposta pela ausência do poder, medido pela capacidade de acesso ao materialismo

capitalista.

Vejamos as palavras de Lima (1999, p. 21) sobre o caboclo, num enfoque pejorativo:

“O fato do caboclo não ser um termo de autodesignação está relacionado, em primeiro lugar,

com a conotação pejorativa do termo e o significado de ‘índio domesticado’ (e não como o

resultado de cruzamento do branco com o índio), que ele transmite entre a população rural.”

Entendo ser bastante coerente pensar que a categoria ribeirinhos funciona como uma

atualização dos discursos, hoje bastante refutados, sobre a categoria de caboclos. Neste

sentido, a nova denominação, supostamente mais poética, atenua a carga negativa atribuída

aos caboclos.

4.3 DE QUE LUGARES SE FALA SOBRE OS “RIBEIRINHOS”?

Neste tópico, vou analisar 04 postagens de internet em que a palavra ribeirinho é

utilizada. São enunciados de diferentes instituições e todos tomam esta definição como um

discurso estabilizado, ou seja, como uma verdade eleita socialmente (FOUCAULT, 2002).

A intenção é mostrar o funcionamento histórico desta categoria em diferentes espaços

sociais. Os enunciados apresentados a seguir, partem de diferentes lugares de fala e se

constituem a partir de objetivos diferentes.

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Figura 17 – Matéria veiculada no portal G1

Fonte: http://www.globoamazonia.com/Amazonia/0,,MUL1041847-16052,00-RIBEIRINHOS+FAZEM+

PESCA+SUSTENTAVEL+DE+PEIXES+ORNAMENTAIS+NO+AM.html

Desde o início, estamos falando sobre alunos que vivem no Baixo Rio Acará, no

estado do Pará. A manchete da matéria do G1 fala em ribeirinhos. De imediato, somos

levados a pensar que se trata da realidade do entorno da escola Ronaldo Passarinho. Este

estranhamento evidencia as diferenças entre as sociedades que vivem às margens dos rios da

Bacia Amazônica. Não vivem na mesma realidade, não enfrentam as mesmas frentes

econômicas e, principalmente, construíram e constroem histórias diferentes, ainda que seja

possível encontrar nelas algumas regularidades.

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A próxima matéria traz uma fotografia que retoma e reforça uma memória genérica

sobre estas populações.

Figura 18 – Matéria da Carta Capital

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/sem-dinheiro-barco-hospital-pode-deixar-ribeirinhos-

a-deriva/

A manchete, a imagem da menina, que aparece exposta, a própria situação denunciada

sinalizam para outro aspecto identitário destas sociedades ribeiras: “os coitadinhos”, vítimas

impotentes, que necessitam de ajuda. Então, nesta linha de raciocínio, eles precisam ser

tutelados, já que supostamente não conseguem se autossustentar.

O lugar de fala desta postagem é a academia. Um projeto aprovado pelo FINEP –

Financiadora de Estudos e Projetos, uma das mais importantes agências de financiamento em

nível federal e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas.

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Figura 19 – Divulgação de projetos universitários

Fonte: <http://www.finep.gov.br/imprensa/revista/edicao5/inovacao_em_pauta_5_pag10e11_emfoco.pdf>

Nos projetos de cunho acadêmico, os ribeiros são tomados como populações

tradicionais e demarcam uma identidade sem história. Podemos até pensar que quando os

europeus chegaram à América, os ribeiros já estavam lá, na beira dos rios.

A seguir veremos uma imagem marcada pelo ideal bucólico da Amazônia, a figuração

do exotismo num espaço de paz e tranquilidade; e dentro desse espaço, segundo a

propaganda, o homem ribeiro é mais um elemento a ser contemplado.

Deixei esta postagem para o final, porque é uma propaganda de uma agência de

turismo e diferente das demais postagens, ela fala especificamente da região em que se

localiza a escola Ronaldo Passarinho. Não é objetivo deste tipo de texto olhar para a realidade

dos moradores da região e focalizar as diferenças e singularidades sociais, neste caso

especificamente se tornou até interessante para a venda do produto retomar o termo caboclo.

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Figura 20 – Propaganda turística

Fonte: <http://www.inteligentesite.com.br/modelos/modelo11/subconteudo.asp?ID=255&IDSUBLINK=798>

Esta propaganda tem como principal interlocutor as pessoas que não moram na região

amazônica. Seu objetivo é vender o passeio para quem vem de fora, então, usam uma

linguagem que pode ser reconhecida. Os enunciados passam pelo processo de mundialização

(ORTIZ, 1994). Na compreensão externa que se tem destes moradores, caboclos e

“ribeirinhos” funcionam como sinônimos.

4.4 “RIBEIRINHOS” EM SALA DE AULA

Em uma das atividades que desenvolvi na escola Ronaldo Passarinho, uma delas

tratava especificamente da denominação ribeirinho. Pedi aos alunos que escrevessem sobre

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esta identidade “ribeirinha”. Então apresento, a seguir, os discursos que mostram como quinze

crianças e adolescentes da escola Ronaldo Passarinho, no município do Acará, se significam a

partir desta categoria.

Para dar início a esta atividade elaborei e repassei aos sujeitos discentes, digitada em

folha de papel A4, a seguinte pergunta: “Você se considera um ribeirinho? Por quê?”. As

respostas foram construídas ali mesmo, em sala de aula, por escrito também, sem interferência

minha, nem da professora.

Vejamos agora o que responderam doze destas crianças, já que três delas apenas

disseram que sim, mas não explicaram. Mantive na transcrição a escrita original:

Aluno 1 (4ª série) – Sim, por que moro na beira de um rio e chamado de ribeirinho e

por que agente mora aqui na beira do rio Acará. Por isso sou ribeirinho.

Aluno 2 (3ª série) – Sim, por quê ribeirinho mora na beira do rio e têm bastante açaí

e anda de barco e canoa.

Aluno 3 (3ª série) – sim, porque eu moro na beira de um rio e eu sempre tomo banho

no rio.

Aluno 4 (4ª série) – sim, porque eu moro na beira de um rio belo e bonito de si ver e

por isso nós somos chamados de ribeirinho.

Aluno 5 (4ª série) – sim, porque eu nasci no interio e mi orgulho disso.

Aluno 6 (4ª série) – sim, por que eu moro na beira do rio desde crianças e poriso que

eu sou ribeirinho.

Aluno 7 (4ª série) – sim, eu entendo que se alguém mora na beira de um rio e

ribeirinho.

Aluno 8 (3ª série) – sim, porque eu acho o ribeirinho um estado lindo pessoas

trabalhando pessoas cuidando dos filhos, eu entendo que é preciso trabalhar muito.

Aluno 9 (4ª série) – sim, porque eu moro na beira do rio e entendo que ribeirinho é

uma pessoa que trabalha e uma pessoa que gosta de peixe.

Aluno 10 (3ª série) – sim, por que eu moro aqui no Acará, eu entendo que os

ribeirinhos trabalham, estuda, comem e constroem casas.

Aluno 11 (3ª série) – sim, o ribeirinho apanha açaí, corta palmito e tira madera.

Aluno 12 (3ª série) – sim, eu entendo que se eu tenho uma casa e moro na beira do

rio é ribeirinho.

Nas falas dos alunos, fica evidente que se identificam como ribeirinhos. Nenhum deles

questionou a pergunta. Para eles, em primeiro plano, é a compreensão geográfica, ou seja, a

questão de morarem à beira do rio que assim os define. As resposta retomam uma memória

discursiva que embala os enunciados da mídia e da escola.

Como segundo argumento, também aparece na fala destes alunos a presença do

trabalho. Embora nenhum deles fale sobre as dificuldades de se morar à beira do rio, eles

identificam o trabalho como muito importante. Relacionam o entendimento de ser

“ribeirinho” ao trabalho desempenhado pelas suas famílias e por eles mesmos: colher o açaí,

extrair madeira, pescar, extrair palmito, construir casas. Quanto às práticas cotidianas,

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enfatizam bastante o contato mais íntimo com as águas: tomam banho no rio, andam de canoa

e do mesmo rio extraem parte de seu alimento.

O discurso que subjaz a estas falas se filia a uma memória discursiva que se construiu

historicamente imbricada com os processos de colonização. Quando perguntados sobre sua

identidade, mesmo sem consciência, é possível que desejem reagir aos discursos de

inferioridade e exclusão que a palavra “ribeirinho” carrega. É como se nestes enunciados, a

exaltação da vida à beira do rio funcionasse como uma autodefesa, como o interposto na

resposta de P. ao enfatizar que se orgulha de ter nascido ali; e também nos discursos de D. e

de R. ao enfatizarem a beleza do espaço, como a dizer que ali há coisas belas a serem

contempladas. Por outro lado, estas falas resistem aos discursos urbanocêntricos, pois para

estes alunos, não é a vida na cidade que aparece como ideal de existência.

Eles assumiram esta identidade de “ribeirinho”, inclusive como se fosse

autodenominação, isto porque essa sociedade parece fazer uma relação direta ao fato de

residir à beira de rio; portanto essa condição já está estabelecida no meio como um fator

determinante. Apenas um dos alunos, que apesar de seu discurso de enaltecimento da beleza

do ambiente, também sente que as atividades de trabalho exigem muito esforço.

4.5 RIBEIROS OU RIBEIRINHOS? ENTRE “EU” E O “OUTRO”

Após este breve passeio pela história da categoria “ribeirinho”, partimos para a devida

justificativa da alteração, nesta dissertação, das categorias de “ribeirinho” para ribeiro.

Primeiro, é bom que se esclareça que nem um, nem outro enquadra uma significação étnica,

os dois exercem a função morfológica, na língua, de adjetivo, e como tal não justifica a

presença do sufixo –inh, marcador de grau diminutivo.

Não se pode esquecer, no entanto, que esta palavra não é o único adjetivo, em

português, a receber esse sufixo diminutivo e nem o fato de que ela já era utilizada em

Portugal na Idade Média, é só lembrarmos do título da mais antiga, conhecida, cantiga de

amor: “Cantiga da ribeirinha”. Para Macambira (1993), os adjetivos só assumem o sufixo –

inh- em situação de familiaridade, o que implica-nos o entendimento como: afetuoso, irônico

ou pejorativo; porém nunca com sentido de pequeno, o que é gramaticalmente a função

primária desse sufixo.

Em algumas construções enunciativas, a palavra “ribeirinho” pode aparecer como

substantivo, o que resulta num tipo de formação de palavra conhecido como derivação

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imprópria; por exemplo: “Os ribeirinhos costumam acordar bem cedo”; nesse caso observe

que aparece subentendido, antecedendo o vocábulo “ribeirinhos”, o substantivo homens ou

meninos ou povos ou trabalhadores, Então é possível argumentar que mesmo em um

enunciado como esse, o termo traz em si o sentido de caracterizador, isto é, funciona como

um adjetivo substantivado quando determinado pelo artigo definido o(s).

Esse acontecimento linguístico estabelece, também, uma relação metonímica (a

adjetivação gentílica pelos habitantes do lugar). Por intermédio de tais argumentos será

corroborada a ideia de que o sufixo –inh-, acrescido à palavra ribeiro (adj. Marginal, que está

na margem do rio, na ribeira. Lat. Riparius. – (Bueno – Dicionário Etimológico), estabelece o

valor semântico de afeto ou piedade.

Pelo histórico de discriminação imposto às sociedades caboclas e a lógica de que

“ribeirinho” é uma ramificação de caboclo, deixa ver que este sufixo foi primeiro posto com o

sentido de afeto e de piedade – para identificar as sociedades, cuja vivência se encontra à

margem do poder capital e, consequentemente, dos direitos e valores estabelecidos pela classe

dominante.

A construção de “ribeirinho” vem de fora, mas nela o ribeiro, de maneira pacífica,

passa a se reconhecer, o que é confirmado pela autodenominação. Bakhtin, em seus estudos,

faz referência a esse aspecto significativo da construção do “eu” pelo olhar do “outro”.

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos entender como a construção do colono pelo olhar

do colonizador, ou, mais estritamente do “ribeirinho” pelo olhar do urbano ou urbanizado.

Vivemos em constante negociação de sentidos, pela necessidade que temos de atender o outro

ou de sermos atendidos por ele e nesse aspecto decorre de qualquer contato certa troca de

vivências. Como nos informa Bakhtin (2000, p. 101):

Minha vivência própria e minha consciência própria da vida, e, consequentemente a

auto-expressão que ela reveste (a expressividade da minha expressão) enquanto algo

unificado, possuem fronteiras estáveis que delimitam, acima de tudo, meu corpo

exterior: este, enquanto valor estético evidente-visível, suscetível de entrar em

combinação harmoniosa com a orientação material interna da minha vida, situa-se

mais além das fronteiras da minha vivência própria unificada [...] Estou por inteiro

dentro da minha vida e, se eu de alguma maneira pudesse ver o exterior da minha

vida, esse exterior se integraria imediatamente à minha vivência interna, a

enriqueceria de um modo imanente, ou seja, deixaria de ser exterioridade, que de

fora, proporciona acabamento à minha vida, deixaria de ser a fronteira eventual de

um finito estético que me proporcionaria de fora meu próprio acabamento.

Neste aspecto, está a condição de representação da cultura ribeira do entrelugar em

análise, em que tal representação aparece como resultado da ótica estendida do outro,

fundindo-se à assimilação negociada do ribeiro, cujos interesses proporcionam a abdicação de

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raízes culturais e a aceitação de elementos externos, no entanto essa “negociata” não faz

desaparecer a prática de relação de poder.

Ainda sobre esta questão da construção do sujeito pelo olhar do outro, Mikhail

Bakhtin (2000, p. 97) escreve, ainda: “O enredo de minha vida pessoal é construído por outros

indivíduos”. Utilizando dessa tese, entendo que o sentido de “coitado”, imbricado no sufixo –

inh-, aparece determinante na criação do termo “ribeirinho”, designado ao “povo da várzea”

os quais optei por chamar. Essa construção traz consigo a materialização de um olhar

paradigmático, o qual revela a falta de (re)conhecimento, por parte da classe dominante, da

cultura de sociedades que vivem às margens dos rios amazônicos.

Este fato estabeleceu uma mensura da vivência ribeira, tomando como paradigma a

realidade dos ambientes urbanos, condicionada às facilidades promovidas pelas tecnologias e

pelo estado de intimidade do homem citadino com essas tecnologias contemporâneas a ele.

Não podemos desconsiderar que o ribeiro sempre teve menos acesso a essas tecnologias, mas

não menor desejo, fomentando no ribeiro a admiração e a contemplação do ambiente e da

vivência urbanos, o que os leva à assimilação do termo “ribeirinho”, apesar dessa

classificação os colocar em patamar de inferioridade.

Em situações assim, marcadas por relações de poder, torna-se natural que o

subalternizado deseje possuir aquilo que o dominador possui. No caso do ribeiro seus desejos

maiores podem estar em ter posse de valores ambientados nas cidades; isso confirma o

histórico de dominação cuja atuação legitima, no passado, olhar como “coitadas” essas

sociedades às margens das águas e distante do paradigma de existência ideal, referendado no

sufixo -inh-, em “ribeirinho”.

A sociedade ribeira – predominantemente denominada ribeirinha – não vive somente à

margem de rios e de igarapés, mas também grande parte também está, de fato, à margem de

direitos básicos como saúde, educação, segurança e justiça; resultado de relações de poder,

cujas causas estão no olhar pejorativo (de piedade) e diminuto dirigido ao ribeiro, por aqueles

que aparecem instalados no topo da pirâmide social. Esses comportamentos contribuem para

que tais descendentes do caboclismo se autodenominem “ribeirinho”, isto é, formem sua

consciência nesse signo, compreendido, principalmente, como referência topográfica.

Aludindo a Bakhtin, diremos que esse signo, ao se estabelecer em discursos, foi refletido e

refratado, de modo que o homem ribeiro passou a aceitar o vocábulo “ribeirinho”, como

natural e único capaz de identificá-lo dentro da sua categoria de vida, própria do espaço em

que habita. Com isso acaba não percebendo que sua cultura e seus valores são silenciados

pelo poder circundante

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: atracando a canoa

Mesmo que o papel do pesquisador ao preocupar-se em

entender a produção das identidades locais não se exima

a ater-se à necessidade de saber com quais

representações sociais esses sujeitos históricos operam

cotidianamente, um mergulho nos processos sociais e

historicidades que gestaram aquela maneira de afirmá-la

ou negá-la é indispensável. Por esses termos, é possível

acompanhar o movimento politicamente tênue, sinuoso

e, muitas vezes, contraditório, pelos quais atravessam

determinadas identidades culturais e entender

conveniências históricas a visibilizá-las ou silenciá-las.

Portanto, entre apagamentos e evidências as culturas

amazônicas vão revelando suas múltiplas identidades,

entre estas a face afroindígena não pode ser mais

negligenciada.

Agenor Sarraf

Quando pensei em falar sobre identidades, sabia que entraria em um campo de muitas

fronteiras e negociações, envolvidas em tempo e espaço, numa ebulição de relações de poder,

que qualificam e classificam as culturas conforme os seus interesses. Os processos

colonizatórios que generalizam identidades, como as denominações índios, ribeirinhos,

africanos, caiçaras, só para citar alguns exemplos conhecidos no Brasil, prendem as pessoas,

muitas vezes, numa condição de marginalidade instransponível.

Bem depois da chegada dos europeus, o movimento da história já inventou novas

formas do poder se estabelecer. Então, quando se pretende atribuir ao Brasil uma identidade:

diz-se nacional o que meneia o eixo sudeste, condição determinada pelo poder econômico;

que administra, por exemplo, a mídia, as maiores universidades do país, as histórias que se

constroem nas demais regiões são classificadas como regional.

Para Stuart Hall (2003), a representação coletiva e a identidade se apresentam em um

conjunto de significados partilhados. Nessa vivência das identidades o subjetivo e o coletivo

se congregam, formando “quadros de referência e sentidos estáveis, contínuos e imutáveis por

sob as divisões cambiantes e as vicissitudes de nossa história real” (HALL, 2006, p. 17).

Estamos vivenciando um período de sujeitos fragmentados e múltiplos, sujeitos de

variadas identidades, sujeitos que põem em questão uma série de “certezas”. No jogo de poder

imposto pela história, há uma ordem que insiste em não questionar. Como pode se duvidar

que exista uma identidade “ribeirinha”? Na mídia, nas escolas, nas universidades, hoje,

instituem-se identidades impostas por intermédio do discurso capitalista de modernidade, que

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em sua última edição estabelece que devemos estar “antenado”, incluídos no “mundo

tecnológico”, sob pena de sermos considerados “atrasados”.

A partir desta nova condição, aquele que vive longe da agitação eletrônica dos grandes

centros urbanos é alguém que ficou para trás. As sociedades ribeiras, com suas práticas

culturais, figuram, neste universo, como exóticas e continuam precisando de colonizadores.

Em todo processo de caracterização identitária está, de modo relevante, a linguagem,

materializadora do simbólico utilizado como valisador dos feitos concretos ou abstratos do

homem. Assim é a avaliação mensuradora do discurso que hierarquiza e legitima o que será

ou não tido como identidade coletiva nacional. Esse fato implica a caracterização dada à

condição de produção, conforme Pêcheux (1997, p.181): “Entendido como o resultado da

ação regulada de objetos discursivos correspondentes a superfícies lingüísticas que derivam,

elas mesmas, de condições de produção estáveis e homogêneas”

Ao desenvolver os estudos sobre identidades que circulam na escola Ronaldo

Passarinho, procurei apresentar a dependência que existe entre o processo identitário e as

práticas culturais destes sujeitos. Descrevi, inicialmente, as identificações primárias que são

herdadas do seio familiar – sua referência inicial, e que como tal, por mais que sofra pressão

de outras identidades culturais, alguns resíduos de ancestralidade se eternizarão. Essas

identidades são entendidas como alicerce para outras identidades e, muito importante, é

que são indissociáveis da cultura.

Esta pesquisa tomou a definição de entrelugar dos estudos de Bhabha (2003)

como referência para abordar a confluência do tempo/espaço dos sujeitos, pois esse é

atravessado por práticas culturais e discursivas reveladoras de fronteiras . Entre a

comunidade do entorno da escola Ronaldo Passarinho, foi possível perceber que uma

variedade de discursos de sociedades, ditas tradicionais, encontram-se com discursos

urbanos dominantes, a serviço do poder capital.

Este movimento da história do presente, entre eles, fez chegar tradutores de

realidades até então pouco conhecidas, mas que, imbricadas com as suas identidades

ancestrais, produzem, conforme Bhabha (2003, p. 20): “...estratégias de subjetivação –

singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores

de colaboração e contestação,[...]” . Ao final, entendi que, enquanto houver o

movimento da história, os entrelugares sempre estarão presentes.

A singularidade é que, nos dias de hoje, os encontros culturais fomentam

identidades que vão se formando e se transformando, com tamanha velocidade que

dialogam com a globalização de nosso momento histórico, projetando sujeitos

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hibridizados, cujos discursos forneceram dados relevantes para minha análise, em

relação ao letramento e às identidades.

Para consolidar as definições identitárias, percorri os discursos de alguns teóricos

como Bhabha (2003), Canclini (2002), Cuche (2002), Hall (2003 e 2006), que corroboram

as ideias de imbricamento cultural e a convicção da pluralização da identidade, isto é,

devemos falar em identidades.

Esta pesquisa investigou também práticas escolares, assim como os seus sujeitos;

portanto o estudo etnográfico foi muito importante, pois possibilitou a observação de ações e

relações, em práticas pedagógicas e sociais, dos sujeitos envolvidos no cotidiano da escola

Ronaldo Passarinho, da rede municipal do Acará, no estado do Pará, na Amazônia brasileira.

A abordagem metodológica que norteou essa pesquisa teve base na análise do

discurso. Na medida do possível, procurei observar o lugar de fala da professora, dos alunos,

das pessoas da comunidade. Também tentei não perder de vista o lugar de onde eu mesmo

falava. Fiz uma etnografia de sala de aula, porque foi esta o espaço principal de investigação.

Procurei mostrar como os micropoderes (FOUCAULT: 2006) se organizam nestes pequenos

espaços sociais.

Nesta combinação que concebe as práticas culturais a partir de sua perspectiva

histórica, procurei entender como a chegada da ponte, recente, que data de 2003, junto com a

eletricidade e a televisão provocou algumas transformações na vida destas pessoas. E, estar

com eles também me faz perceber que a história continua. Como disse, alguns deles já

possuem aparelhos de celular, mas não pegava o sinal dentro da escola. Tenho certeza que em

breve pegará. Assim também, como até lá chegarão os computadores e a internet. A história

sempre continua.

Fiz, portanto, uma pesquisa qualitativa, compreendida como uma investigação que tem

o objetivo de perceber as experiências dos sujeitos, como eles as interpretam e como

estruturam sua vida social. Na escola, minha atuação, como pesquisador, não se limitou à

observação e, como já dito, estive envolvido em atividades didáticas com os alunos, realizei

uma observação participante. Acredito e desejo que minha participação, de alguma forma,

contribuiu em seus processos de letramento. Em nossas discussões, esta realidade

multifacetada em que vivem estava sempre presente.

Assim, a tarefa pretendida e abraçada por mim, de realizar estudos junto a crianças e

adolescentes, alunos das 3ª e 4ª séries da escola municipal de ensino fundamental Ronaldo

Passarinho, intitulado: “Entre o rio e a ponte: letras e identidades às margens do rio

Acará, na Amazônia paraense”, permitiu-me compreender, de forma mais sistemática e

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ampla, que urge as sociedades ribeiras da Amazônia terem suas especificidades,

singularidades e diversidades afirmadas e respeitadas nas políticas públicas e nas práticas

educacionais vigentes, pois, mesmo sem a eficácia necessária, já existem as Diretrizes

Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo; entretanto se faz necessária a

criação de diretrizes voltadas especificamente para as escolas ribeiras, pois essas têm

especificidades que precisam ser olhadas com maior respeito.

Minha história, como contei, na introdução desta dissertação, começou em uma região

ribeira, no estado do Pará, vizinha da escola Ronaldo Passarinho. Assim como os alunos que

fizeram parte de minha pesquisa, eu também aprendi as primeiras letras e comecei a cosntruir

minhas práticas identitárias entre o rio e a floresta. A vida de meus pais me permitiu pegar o

rumo das águas e sair daquela região. Deixei para trás o rio, o açaí, as brincadeiras de

moleque, que reencontrei muitoa anos depois, quando meu olhar já era, em parte, estrangeiro.

Tantos outros ainda vivem por lá, alguns não tiveram oportunidade de sair e muitos

deles não quiseram mesmo sair. Consideram vida na cidade grande um coisas de gente doida.

Não somos todos iguais, nunca fomos iguais. Havia, inclusive, desigualdade econômica entre

nós e diferentes oportunidades de acesso à cidade grande.

Quando retornei, num primeiro momento, atravessado pelos discursos

“urbanocêntricos”, olhei para a realidade local e não gostei nada do que vi. As políticas

públicas na região são precárias e há problemas em relação à saúde, à educação, à oferta de

empregos. E, entendo que uma etnografia deva mostrar esta situação, mas que não deve

limitar a identidade destes moradores a isso. Muitos alunos escreveram que são felizes em seu

lugar, assim como já fui um dia, nesta região. A história está além da desigualdade social.

Muito mais que “ribeirinhos”, na medida do possível, escrevemos nossas histórias,

transitando por diferentes universos culturais. Ninguém, no entanto, pode viver sem

identidade, mas ela precisa ser compreendida de forma plural e não representar a exclusão e

restringir as possibilidades de trânsito social. Não sei se foi melhor ou pior ter saído de lá e

tampouco isto interessa agora.

Alimento o desejo de que um dia nossa sociedade, herdeira de práticas culturais

colonialistas, encontre estratégias de poder menos auteras, que permita compreendermo-nos

em nossas diferenças, com direitos diferentes, com escolas que respeitem estas diferenças.

Aqui atraco minha canoa para um breve descanso, mas logo mais pretendo voltar às

águas que banham, saciam a sede, guardam medos e segredos, levam e trazem esse povo

ribeiro.

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