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1 1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” INSTITUTO A VEZ DO MESTRE PEDAGOGIA FREINET: UM CONTRAPONTO A PEDAGOGIA TRADICIONAL CAPITALISTA Por: Débora Imada de Jesus Orientador Prof. Gilberto Santos Crespo Santos 2010

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PEDAGOGIA FREINET: UM CONTRAPONTO

A PEDAGOGIA TRADICIONAL CAPITALISTA

Por: Débora Imada de Jesus

Orientador

Prof. Gilberto Santos Crespo

Santos

2010

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

PEDAGOGIA FREINET: UM CONTRAPONTO

A PEDAGOGIA TRADICIONAL CAPITALISTA

Apresentação de monografia à Universidade

Candido Mendes como requisito parcial para

obtenção do grau de especialista em

Administração escolar.

Por: Débora Imada de Jesus

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais pelo incentivo e

aos meus professores pelo

despertar o amor pela educação.

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DEDICATÓRIA

A todos que acreditam na educação

e em um mundo melhor.

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RESUMO

A escola tradicional com a qual estamos habituados não é uma

instituição neutra que tem por objetivo promover a ascensão e igualdade

social, mas o resultado de um processo histórico.

Neste trabalho procuraremos desmistificar a escola e apresentá-la

por um lado como um importante aparelho para a manutenção do sistema

capitalista e, por outro, como um espaço de contradição que possibilita a

resistência e a luta.

Para tanto, apresentaremos a pedagogia Freinet como uma

alternativa a pedagogia tradicional. Partiremos de um breve histórico de

seu fundador a fim de compreendermos suas influências para a

construção de sua pedagogia e terminaremos com a apresentação das 30

invariantes por ele pregadas com o objetivo de percebermos como os

princípios da pedagogia Freinet se contrapõem aos da escola capitalista.

Desse modo, procuraremos mostrar como as pedagogias são

influenciadas pelo contexto em que surgem e apresentar alguns princípios

e valores que são trazidos por cada tipo de pedagogia.

Pretendemos, por fim, com este trabalho, proporcionar uma reflexão

sobre a importância da escolha da pedagogia como um ato político de

opção por valores e princípios que passaremos para nossos educandos e

que os formarão como cidadãos.

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METODOLOGIA

Com o intuito de estudar a origem da escola capitalista para

mostrar suas imperfeições buscamos, através de uma abordagem

dialética, elaborar um trabalho teórico que apresente a maneira como

suas características e práticas se conflituam com a sociedade e

determinam um ao outro, pois de acordo com um dos princípios da

dialética tudo se relaciona (princípio da totalidade):

“Para a dialética a natureza se apresenta como um todo coerente onde objetos e fenômenos são ligados entre si, condicionando-se reciprocamente. O método dialético leva em conta essa ação recíproca e examina os objetos e fenômenos buscando entendê-los numa totalidade concreta. A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não se pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes”. (Gadotti, 1990)

Assim, partimos de uma breve contextualização do capitalismo,

seguido da análise de como se constitui a escola dentro deste sistema

para mostrar suas relações. A partir deste estudo, concluiremos um

segundo princípio desta abordagem que afirma que a totalidade nunca é

um todo já feito e formalizado, porém que está sempre em transformação

(princípio do movimento):

“A dialética considera todas as coisas em seu devir. O movimento é uma qualidade inerente a todas as coisas. A natureza, a sociedade não são entidades acabadas, mas em contínua transformação, jamais estabelecidas definitivamente, sempre inacabadas.” (Gadotti, 1990)

Esse movimento pode ser explicado pelo seguinte princípio

dialético da contradição:

“A transformação das coisas só é possível porque no seu próprio interior coexistem forças opostas tendendo

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simultaneamente à unidade e à oposição. É o que se chama de contradição, que é universal, inerente a todas as coisas materiais e espirituais. A contradição é a essência ou a lei fundamental da dialética”. (Gadotti, 1990)

Com base na dialética, buscamos pesquisar como a escola

determina a sociedade e é também determinada por esta dentro deste

movimento dialético. Além de procurar em suas contradições, espaços

que possibilitem mudanças que beneficiem a sociedade como um todo e

não apenas a um pequeno grupo de elite do capitalismo.

Como base para esta pesquisa, consultamos os seguintes autores

marxistas Gadotti (1990), Freitas (2003), Saviani (2003), Fernández

Enguita (1989), Cunha (1980), Carnoy (1984), que nos permitiram através

da dialética fazer uma apresentação do sistema capitalista, sua proposta

de escola e suas contradições.

Em seguida, apresentaremos um pouco da biografia do educador

Celéstin Freinet com o objetivo de compreender melhor de onde ele parte

para criar sua pedagogia.

Para que fosse possível fazer uma apresentação da vida deste

educador, tivemos como base um livro escrito pelo próprio Freinet, além

de estudos de diversos autores que investigaram e analisaram o histórico

deste educador sob diferentes ângulos: Freinet (1978 e 1979), Sampaio

(2002), Oliveira (1995).

Por fim, apresentaremos as 30 invariantes propostas por Freinet

contrapondo-as aos valores implícitos nas práticas capitalistas.

Objetivamos assim, mostrar que uma pedagogia, muito além do que

apenas uma opção por metodologia, é uma opção por princípios e

valores. Portanto, uma opção política que deve ser crítica, pois influencia

na construção de um determinado tipo de sociedade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................9

CAPÍTULO I – As lógicas por trás da escola capitalista...........................14

1.1 A lógica do sistema capitalista........................................................14

1.2 A lógica do surgimento da escola capitalista..................................18

1.3 A lógica das relações entre a escola e o capitalismo.....................19

CAPÍTULO II - As origens e influências da pedagogia Freinet.................24

2.1 Freinet: sua história e percursos para a elaboração de uma nova

proposta pedagógica......................................................................24

CAPÍTULO III - Os 30 princípios de Freinet e suas oposições aos valores

da escola capitalista..................................................................................34

3.1 A natureza da criança.....................................................................35

3.2 As reações da criança.....................................................................36

3.3 As técnicas educativas....................................................................40

CONCLUSÃO............................................................................................49

BIBLIOGRAFIA..........................................................................................54

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INTRODUÇÃO

O presente estudo apresenta a pedagogia tradicional capitalista

versus a pedagogia Freinet, mostrando como as invariantes da pedagogia

proposta por Freinet contrariam os princípios implícitos da pedagogia

tradicional capitalista.

Acreditamos que a importância deste trabalho está nele apresentar

uma pedagogia alternativa que não a tradicional.

Iniciemos pela definição do termo Tradição. Tradição é um dos

meios de dominação que Weber (1991) elaborou para explicar como o

poder pode ser exercido por indivíduos ou por um grupo sobre o outro. De

acordo com o autor, a tradição baseia-se “na crença estabelecida da

santidade de tradições imemoriais e na legalidade do status dos que

exercem autoridade apoiada por elas”. Isso significa que a legitimidade

vem da crença em algo ou alguém que “sempre existiu”.

Quando pensamos em escola logo nos vem à cabeça uma

concepção de escola. Por exemplo, se imaginamos sua estrutura física,

podemos logo pensar em carteiras enfileiradas com uma lousa na frente.

Ao falarmos em avaliação dentro da escola, podemos associá-la

imediatamente provas e das notas. Se focarmos nas relações humanas,

logo nos vem à mente a hierarquia do professor sobre os alunos.

Estas são apenas algumas das infinidades de concepções

presentes nas sociedades. Pode-se afirmar que as representações

escolares apresentadas acima são as que mais se destacam no

imaginário social. Pode-se sugerir com isso que essas idéias induzem a

maior parte da sociedade pensar que não há outro modo de se constituir

uma escola se não aquela. Ou seja, como se a escola sempre tivesse

sido assim e que deverá continuar a mesma por gerações. Dessa maneira

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é que a escola se torna tradicional e por fazer parte de nossas

concepções, não questionamos; aceitamo-la passivamente.

Vivemos em uma sociedade repleta de dificuldades e caracterizada

pelas desigualdades sociais. Diante desta situação precisamos de uma

fonte de esperança que nos permita sonhar com um futuro melhor para as

próximas gerações e buscar uma sociedade mais justa para vivermos.

Essa esperança geralmente é depositada na escola que é vista

como promotora de igualdade e meio de ascensão social. A hipótese para

explicar essa visão pode estar no direito a todos à educação assegurada

por lei. Uma vez que todos possuem o direito de freqüentar a escola,

caberia ao esforço de cada um, construir e promover sua própria

progressão social. Neste sentido, está posta, pois uma visão meritocrática

que crê que todos competem em condições iguais e que se destacam

conforme seus esforços. Justificando assim a desigualdade e prometendo

que se todos se esforçassem poderia haver uma igualdade social.

De acordo com Dermeval Saviani (2003), esta é uma concepção

não-crítica por desconhecer as determinações sociais do fenômeno

educativo, considerando apenas a ação da educação sobre a sociedade e

aceitando assim que uma das funções da educação seria a correção de

um problema social que é a desigualdade. Nesta visão, a escola teria uma

autonomia em relação à sociedade e, por isso, teria a capacidade de

intervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor,

corrigindo as injustiças, ou seja, promovendo a equalização social.

Muitos estudos (Freitas, 2003; Enguita, 1989) vem desmistificando

esse ideário de escola comprovando que na educação, o desempenho de

cada estudante varia muito de acordo com o seu nível socioeconômico,

que, portanto, não partem de condições iguais. Isso mostra que a escola

não é uma instituição neutra, mas social. E sua não neutralidade se

justifica por a escola ser resultante de um processo histórico e integrante

de um sistema econômico: o capitalismo.

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A escola que aceitamos como tradicional, e que por ser tradicional

não questionamos, é a escola capitalista que surgiu com o advento deste

sistema econômico para assegurar a manutenção do mesmo sendo um

importante aparelho ideológico do Estado como estudou Althusser (Apud

Enguita, 1989).

O sistema capitalista possui sua lógica na obtenção do lucro, da

mais-valia. A mais-valia, segundo a teoria de Marx, seria a sobra total da

mercadoria menos o capital fixo (equipamentos, matéria-prima...), menos

o capital variável (mão-de-obra). Ou seja, ela é a quantidade de valor

produzido pelo trabalhador além do tempo de trabalho necessário, isto é,

do tempo necessário para produzir um valor igual ao que recebe sob a

forma de salário. E a única maneira de se aumentar a mais-valia é

mexendo no capital variável, ou seja, na mão-de-obra (demitindo-se

trabalhadores, reduzindo salários, aumentando a carga horária sem

aumentar o salário, aumentando o ritmo de produção...

Enfim, a única maneira de se aumentar a mais-valia é através da

exploração da mão-de-obra o que faz do capitalismo um sistema baseado

na exploração. Sendo a escola tradicional produto deste sistema, ela

precisa apresentar os mesmos valores, que são transmitidos através das

relações sociais dentro da instituição, para que se possa reproduzir tal

sistema sem questionamentos.

Sendo assim, a escola não estaria muito preocupada com os

aspectos cognitivos e com a ascensão social, mas sim com as relações

sociais porque é a experiência cotidiana que sustenta o sistema.

Contudo, não podemos restringir a escola como um simples reflexo

do sistema social. Apesar de sua dependência a ele, ela ainda possui

certo grau de autonomia que lhe permite interferir no contexto social,

possibilitando uma via de mão dupla. Isso só é possível devido à

coexistência de contrários.

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Enquanto no capitalismo esses contrários se apresentam no

caráter social da produção versus o caráter privado da propriedade, que

ao mesmo tempo em que é necessária para manter o sistema, é também

a causa que levará o fim do mesmo ao explorar cada vez mais o homem

e aumentar a disparidade social; na escola se mostra sendo ela,

simultaneamente, um instrumento necessário para a manutenção da

ideologia dominante e um instrumento para a sua transformação, a

serviço da classe dominada.

“Conforme a teoria gramscianiana, como uma instituição da sociedade civil, onde se trava a luta política, a escola não teria como único papel a reprodução das relações de dominação, através da propagação da ideologia dominante, à escola caberia, também, a função de minar a ideologia dominante, questionando o “consenso” e a “harmonia social”. Amplia-se, assim, a visão do papel da escola no contexto social.” (Machado, 1996).

Entretanto para que sirva como um instrumento de transformação é

preciso primeiro se ter consciência de como a escola funciona a favor do

sistema, para, questionando-a e desmistificando-a, poder melhor se

organizar para agir e buscar alguma mudança. É apenas criticando a

nossa própria prática que podemos alterá-la e aprimorá-la ao nosso favor.

Há algumas pedagogias que fizeram esse processo e propõem

outras práticas que possuem valores que diferem dos encontrados nas

escolas tradicionais capitalistas. Uma delas é a pedagogia que começou

com o educador francês Célestin Freinet. Ele sugere uma escola popular,

pensada no povo, de novos instrumentos e ideias simples que possam

ser seguidas com facilidade, porém com valores primorosos.

A escola popular pensada por ele promove a cooperação ao invés

da competição, o protagonismo ao invés da passividade em se aprender,

uma igualdade ao invés de hierarquias.

A pedagogia Freinet traz uma riqueza de assuntos a serem

estudados. Neste trabalho optamos por focar nas 30 invariantes que dão

base à pedagogia Freinet. Suas invariantes são pouco conhecidas, mas

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são de fundamental importância, pois retratam a essência e os valores

que estão por detrás das práticas e instrumentos tão mais amplamente

difundidos.

Este trabalho encontra sua relevância, então, ao mostrar através

da apresentação das invariantes de Freinet que há mais do que uma

pedagogia; e que pedagogias não são meramente uma opção por

metodologias, mas também uma opção por princípios e valores a serem

ensinados juntos e além dos conteúdos.

Nosso maior objetivo é, portanto, desmistificar a pedagogia

tradicional capitalista e apresentar uma pedagogia alternativa. Para isso,

buscaremos mostrar como as pedagogias são influenciadas pelo contexto

em que surgem e apresentar alguns princípios e valores que são trazidos

por cada tipo de pedagogia. E, assim, verificar se o modo como se

estrutura um processo educativo varia de acordo com a Pedagogia que se

adota e esta, por sua vez, é influenciada e influencia no contexto em que

se encontra. Dois contextos diferentes geram pedagogias distintas em

seus princípios e valores que reflete em sua metodologia e instrumentos,

e na formação de seus educandos.

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CAPÍTULO I

As lógicas por trás da escola capitalista

1.1 A lógica do sistema capitalista

“A história de toda a sociedade até nossos dias é a

história da luta de classes. Homem livre e escravo,

barão e servo, mestre de ofício e companheiro,

numa palavra, opressores e oprimidos, se

encontraram sempre em constante oposição,

travaram uma luta sem trégua, ora disfarçada, ora

aberta, que terminava sempre por uma

transformação revolucionária de toda a sociedade,

ou então pela ruína das diversas classes em luta”

(Marx, s/d)

De acordo com as análises de estudiosos de Marx (CARNOY,1984;

CUNHA, 1980), para Marx, a história da humanidade se caracteriza pela

luta de grupos humanos que chamamos de classes sociais. A definição

de luta de classes sociais implica uma dupla característica: por um lado, a

de comportar o antagonismo dos opressores e dos oprimidos e, por outro,

de tender a uma polarização em dois blocos.

Para o marxismo, o motor do movimento histórico é a contradição.

A dialética da história é constituída pelo movimento das forças produtivas

que entram em contradição com as relações de produção, isto é, tanto as

relações de propriedade como a distribuição de renda entre os indivíduos

ou grupos da coletividade.

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Nessa contradição entre forças e relações de produção podemos

compreender a luta de classes. Nos períodos revolucionários, isto é, nos

períodos dessa contradição, uma classe está associada às antigas

relações de produção que constituem um obstáculo ao desenvolvimento

das forças produtivas, enquanto que a outra classe é progressiva,

representando novas relações de produção que, em vez de ser um

obstáculo no caminho do desenvolvimento de forças produtivas,

favorecerão ao máximo o desenvolvimento dessas forças.

Essa dialética das forças e das relações da produção sugere uma

teoria das revoluções. Dentro dessa visão histórica, as revoluções não

são acidentais, mas sim a expressão de uma necessidade histórica. As

revoluções preenchem funções necessárias, e são produzidas quando

ocorrem determinadas condições. E essas revoluções levarão a uma

nova formação econômica.

Um exemplo deste processo foi a passagem do sistema feudal

para o sistema capitalista. Mota e Braick (1999) nos explicam que o modo

de produção feudal era caracterizado por duas forças de produção: o

senhor feudal e os servos. O senhor feudal dava um pedaço de suas

terras para o servo. Este, possuindo meios de produção, podia produzir

para sua própria sobrevivência e, em virtude do laço de servidão, deveria

entregar o excesso de sua produção ao seu superior imediato. A garantia

dessa entrega do excesso de produção para os senhores feudais era feita

por meios extra-econômicos fundados na violência e na tradição.

Os senhores feudais, ao começarem a exigir maiores rendimentos

de seus servos, intensificaram a exploração sobre os mesmos, fato que,

juntamente com a emergência das cidades e do comércio, culminou em

uma revolta por parte dos pequenos e médios produtores, acentuando a

luta de classes e determinando, a longo prazo, a dissolução da economia

feudal e a transição para o modo capitalista de produção.

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Marx é um pensador materialista, logo, sua teoria irá explicar a

história de um ponto de vista também materialista. Isso significa explicar a

história por fatores materiais – pelos fatores econômicos e técnicos, em

essência. É então, em seu próprio princípio, um determinismo econômico.

Ainda partindo das análises dos estudiosos de Marx (CARNOY,

1984; CUNHA, 1980), o modo de produção capitalista se organiza

visando a obtenção da mais-valia que seria a quantidade de valor

produzido pelo trabalhador além do tempo de trabalho necessário, ou

seja, do tempo preciso para produzir um valor igual ao que recebe sob a

forma de salário.

Para que possa haver a mais-valia, o capitalismo se estrutura em

duas grandes forças de produção: a burguesia e o proletariado. O

primeiro detem os meios de produção que lhes são propriedades privadas

e ao segundo resta apenas a mão-de-obra.

Assim, esse modo de produção estabelece uma relação de

produção assalariada na qual, para sobreviver, o proletariado deve vender

seu único bem que a é força de trabalho para a burguesia que é o dono

do capital. Desta maneira, cabe ao proletariado o trabalho braçal e a

obediência e aos capitalistas o trabalho intelectual e o poder de mando.

Quando observado sob o ângulo da relação social, nota-se que a

relação de trabalho apresenta uma estratificação social cada vez maior.

Isso se justifica, pois, sendo a busca e acúmulo da mais-valia o objetivo

deste sistema, o meio para que isso possa ser alcançado é uma

intensificação na exploração da burguesia sobre o trabalhador. E se a

riqueza de um aumenta, é porque a do outro está diminuindo,

aumentando a disparidade entre as duas classes. É uma estratificação

gerada por um processo de proletarização e pauperização. O primeiro

significa que, à medida que se desenvolve o regime capitalista, as

camadas intermediárias, entre capitalistas e proletários, serão

desgastadas, corroídas, e um número crescente de membros dessas

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camadas serão englobados pelo proletariado. O segundo processo é a

tendência de o proletariado se tornar cada vez mais miserável à medida

que se desenvolvem as forças de produção. Logo, se uma classe

enriquece, a outra necessariamente empobrece, sendo esta outra o

proletariado. Quanto mais se tira de uns para “dar” para outros, mais se

aumenta a desigualdade social fazendo com que cada vez mais poucos

tenham muito e muitos tenham pouco.

Deste modo, o capitalismo provoca uma estratificação social não

só no âmbito econômico (pois os bens se encontram cada vez mais

concentrados na burguesia enriquecendo esta e empobrecendo o

proletariado), mas também político (uma vez que por possuir o capital,

peça fundamental do capitalismo, assume o poder em detrimento da outra

classe) e profissional (por se desvalorizar o trabalho braçal do

proletariado e valorizar o intelectual da burguesia).

Para garantir a manutenção desse sistema desigual é preciso

existir algumas superestruturas que legitimem esse sistema. Para que

elas possam ser um instrumento regulador e conservador do sistema

garantindo a sua estratificação social, faz-se necessário que tais

estruturas se mostrem supridoras de uma necessidade social para todos,

burguesia e proletariado, apresentando-os como um todo hegemônico.

Tais estruturas não surgem em virtude do desenvolvimento geral

da mente humana ou da vontade dos homens, mas, como nos explica

Carnoy (1984), emergem das relações de produção:

“O Estado capitalista é a expressão política da estrutura de

classes inerente à produção. Desde que a burguesia, na

produção capitalista, tem um controle particular da mão-de-

obra no processo de produção, ela também estende sua

relação de poder ao estado e a outras instituições sócias”.

Emergindo das relações de produção, o Estado, como as demais

instituições que constituem a superestrutura de um sistema, apenas

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aparentam representar o bem comum, contudo, são, na verdade, uma

expressão política da classe dominante.

“O Estado capitalista é a resposta à necessidade de mediar o

conflito de classe e manter a “ordem”, uma ordem que reproduz

o domínio econômico da burguesia” (Carnoy, 1984).

A escola é uma dessas superestruturas!

1.2 A lógica do surgimento da escola capitalista

Com o advento do capitalismo, principalmente a partir da sua forma

industrial, para que este sistema se consolidasse, era preciso levar

milhões de pessoas a trabalhos radicalmente diferentes do que

correspondiam seus desejos, costumes e padrões culturais. Para tanto,

tiveram que privar-lhes de quaisquer outras possibilidades de subsistência

e arrancar os homens do campo. Foi necessária também uma sistemática

política repressiva dirigida contra os que se negavam a aceitar as novas

relações sociais. Além de encontrar um meio de assegurar os

mecanismos institucionais para que cada novo indivíduo pudesse inserir-

se nas novas relações de produção de forma não conflitiva. Neste último

ponto é que se encontra a escola. Enguita (1989) nos esclarece isso

quando nos explica que a escola atual é produto do desenvolvimento do

sistema capitalista que trouxe consigo “mudanças radicais na função e

nas características do trabalho e de seu lugar na vida das pessoas”.

“Inventou-se e reinventou-se a escola; criaram-se escolas onde

não as havia, reformaram-se as existentes e nela se introduziu

à força toda a população infantil. A instituição e o processo

escolares foram reorganizados de tal forma que as salas de

aula se converteram no lugar apropriado para acostumar-se às

relações sociais do processo de produção capitalista, no

espaço institucional adequado para preparar as crianças e os

jovens para o trabalho.” (Fernández Enguita, 1989)

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A história da escola é geralmente contata a partir de uma análise

da evolução do discurso pedagógico, da sucessão de escolas modelares

através das épocas. É contata de uma maneira idealizadora, pois é

contada pelos vencedores. Como nos previne Fernández Enguita (1989):

“é bem sabido que a história é escrita pelos vencedores, que

não gostam de mostrar a roupa suja: sempre é mais

conveniente apresentar a história da escola como um longo e

frutífero caminho desde as presumidas misérias de ontem até

as supostas glórias de hoje ou de amanhã que, por exemplo,

como um processo de domesticação da humanidade a serviço

dos poderosos”.

Enquanto proclamamos a universalização da escola como uma

conquista trabalhista e a exaltarmos, não percebemos que, no fundo, isso

foi uma necessidade do capitalismo que, em sua forma industrial,

impunha uma nova força de produção, mais numerosa e qualificada, não

apenas intelectualmente, mas, também, em seu comportamento.

“Análises marxistas mais recentes dão grande ênfase à

superestrutura no processo de reprodução. É neste ponto que

a escolarização é considerada, porque é nesse processo que a

reprodução se reveste de sua forma mais organizada: as

crianças, desde tenra idade, freqüentam a escola e são-lhes

sistematicamente inculcados as habilidades, os valores e a

ideologia que se adaptam ao tipo de desenvolvimento

econômico adequado à continuação do controle capitalista.

Argumenta-se que, através da escola e de outras instituições

superestruturais, a classe capitalista reproduz as forças de

produção (mão-de-obra, divisão do trabalho e divisão do

conhecimento) e as relações de produção” (Carnoy, 1984)

1.3 A lógica das relações entre a escola e o capitalismo

Por muito tempo o marxismo foi incapaz de fazer uma análise

materialista da educação. Isso aconteceu em razão de a educação,

fazendo parte do campo das superestruturas, não merecia atenção dentro

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de uma visão mecanicista do materialismo uma vez que não podiam ser

transformadas antes de se transformar a infraestrutura.

Foi só com Althusser que a escola passou a ser vista como cenário

de relações sociais mais complexo. Deixou-se de enxergar a escola com

um único papel de transmitir ou deixar de transmitir idéias, e passou-se a

entender que era importante analisar além das idéias transmitidas, o

modo como isso era feito, como se inculcava e do que se revestia.

Althusser elabora uma teoria da ideologia na qual esta não é vista

como ideias que surgem sem razões, mas que possuem seu valor e

reprodução essencialmente ligados a práticas materiais que ele localiza

no interior do que denomina “aparato ideológicos de Estado”. Para o

autor, uma ideologia não se adquire por inculcação, mas sim, por práticas

materiais que se encontram dentro desses aparatos que seriam todas as

instituições de vida social, menos as econômicas. Dentre esses, Althusser

(s/d) diz que a escola, juntamente com a família, é o aparelho mais

poderoso na sociedade moderna:

“(...) Um Aparelho Ideológico de Estado desempenha, em todos os seus aspectos, a função dominante, embora não se preste muita atenção à sua música, de tão silenciosa que é: trata-se da escola. A escola recebe as crianças de todas as classes sociais desde o maternal, e já desde o maternal, tanto com os novos como com os antigos métodos, inculcam-lhes durante anos, precisamente durante os anos em que a criança é extremamente “vulnerável” (...). (...) Nenhum Aparelho Ideológico de Estado dispõe durante tantos anos de audiência obrigatória (...)”

O principal papel deste aparelho que é a escola, para Althusser, se

encontra na reprodução da força de trabalho, uma vez que ela oferece a

reprodução das habilidades necessárias para a força de trabalho, ao

mesmo tempo em que reproduz a submissão às regras e às ordens

estabelecidas.

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Baudelot e Establet aplicaram o modelo de Althusser para estudar

o sistema escolar francês. Seu objetivo era mostrar como a escola

contribui para a reprodução da divisão social do trabalho e das classes

sociais. Para isso, demonstraram a existência de duas redes de escolas:

chamaram uma de primária-profissional e a outra de secundário- superior.

Ao analisar as duas, denunciaram como se transmite a cultura em uma

rede e em outra, qual relação se estabelece, em cada rede, entre o aluno

e o saber. Opondo as duas redes, puderam encontrar “a propedêutica

frente à repetição, o culto ao livro frente à lição de coisas, o problema

matemático frente ao exercício de cálculo, a dissertação frente ao ditado,

o estímulo à emulação frente ao deixar fazer, o abstrato frente ao

concreto, etc” (Fernández Enguita, 1989)

Além disso, Cunha, ao analisar a teoria da escola capitalista de

Baudelot e Establet, nos trás a colaboração da teoria deles para

desmistificar algumas noções ideológicas (no sentido de falsa

consciência) que impedem a compreensão da natureza da escola.

Uma primeira ideologia é aquela que compreende a escola como

unificada e unificadora. Acreditando-se na escola como uma instituição

cujo único fim é educar e formar, ela se caracteriza em unificada pela a

existência de uma “base comum” e um “tronco comum”. Assim sendo:

“na base do edifício escolar se encontraria um conjunto indiferenciado de crianças escolarizáveis e uma escola elementar, comum a todas elas. Sobre essa base, se ergueriam elementos diferenciados (ramos, cursos, especialidades), garantindo-se a unidade pela continuidade do ensino: cada etapa forneceria um ensino cada vez mais completo articulando-se a gradação de idade com a gradação do saber” (Cunha, 1980)

A crença como unificadora se dá por acreditar que é função da

escola reduzir até que desapareçam as diferenças sociais vindas da

origem familiar, profissional, de classe social, sendo isso possível pela

escola oferecer a mesma oportunidade para todas as crianças. Seria,

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portanto, função da escola “unificar, no seio de uma cultura comum,

aquilo que a política divide” (Cunha, 1980).

Essa ideologia que prega a escola como unificada e unificadora

permeia todas as classes sociais e, ainda segundo Cunha, isso pode se

explicar por dois motivos: primeiro pela reivindicação pelos trabalhadores

de uma escola que assegure a construção de seus filhos; e, segundo,

pela experiência dos professores que tendem a ver a escola a partir

apenas de seu interior.

Baudelot e Establet vão nos dizer que devemos olhar a escola do

topo e não de sua base. Partindo desta referência, encontraremos alguns

poucos alunos oriundos da burguesia que se encontram no ensino

superior para os quais os níveis anteriores da escola funcionaram como

uma escada. O restante dos estudantes se viram obrigados a abandonar

a escola após o ensino fundamental ou após uma escola técnica. Para

estes, a escola não é contínua, mas descontínua. Assim, fica claro que

não há uma escola única, mas duas redes de escolarização e, portanto,

ela não é única e também não unifica como proclamamos.

O que devemos nos conscientizar é que as contradições que se

encontram na escola não são meras imperfeições, mas são necessidades

fundamentais com sentidos e funções históricas que são explicadas por

suas condições materiais de existência no modo de produção capitalista.

Compreendida e desmistificada esta primeira ideologia pode-se,

mais facilmente, criticar a segunda ideologia da escola capitalista que

apresenta a instituição como se tivesse uma função de fornecer meios

para a “promoção profissional” dos indivíduos, desse modo oferecendo a

oportunidade de ascender a postos cada vez mais elevados de

experiências de qualificação, e, portanto, de salário, prestígio e poder.

Quando se compreende que há duas redes distintas de escolarização

destinadas uma para a classe trabalhadora e outra para a burguesia,

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pode-se perceber que promoção é uma ilusão que a escola nos prega,

pois seu real efeito é a discriminação mantendo a divisão social intacta.

A última ideologia a ser questionada por Baudelot e Establet diz

respeito à escola como um sistema, entendendo por este a idéia de um

mecanismo bem lubrificado, automático, perfeitamente regulado e

adaptado aos sistemas econômico e social. Por seguirem a tese de

Althusser, eles vão defender que a escola não é um sistema, mas um

aparelho, no sentido de prótese. Entendida deste modo, a escola passa a

ser definida como “um instrumento de luta encarregado de assegurar, a

qualquer preço, a dominação da ideologia burguesa contra um adversário

real: o proletariado” (Cunha, 1980)

Fernández Enguita (1989) reconhece a importância do trabalho de

Baudelot e Establet, mas faz uma crítica quanto a este trabalho alegando

que eles entraram apenas obliquamente na questão das relações sociais

da educação:

“Ao pretender analisar o que Althusser denomina as “práticas”

e os “rituais” do “aparato ideológico” escolar continuam

movendo-se, sobretudo no terreno da análise da mensagem

escola, da escola como relação de comunicação e não como

cenário de constantes práticas materiais. Por isso em sua

análise aparecem apenas aqueles aspectos das relações

materiais que se apresentam diretamente vinculados a

diferenças no campo dos símbolos – por exemplo, o cálculo e o

problema ou o ditado e a dissertação -, mas não o fazem com

outros que não apresentam tal vinculação, como ter que

cumprir um horário, permanecer horas sentado ou ser avaliado

individualmente” (Fernández Enguita, 1989)

No terceiro capítulo deste trabalho, quando contrapusermos as

invariantes de Freinet e as práticas materiais da escola capitalista será

possível compreender melhor como esta contribui para a reprodução da

força de trabalho para este sistema econômico.

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CAPÍTULO II

As origens e influências da pedagogia Freinet

2.1 Freinet: sua história e percursos para a elaboração de

uma nova proposta pedagógica

Queremos aqui apresentar apenas alguns acontecimentos

importantes da vida de Célestin Freinet para entendermos um pouco

melhor as raízes de sua proposta pedagógica. Sabemos das limitações

desta apresentação não apenas por ser uma síntese de sua vida, como

também por se tratar de uma personalidade múltipla, em permanente

ebulição, que costumava ter uma ideia nova por dia, como costumava

brincar um de seus amigos. Seria, portanto, incoerente pretendermos

aprisioná-lo em esquemas lineares como costumam ser as biografias que

acabam por revelar apenas a superfície dos fatos e oculta o essencial.

“Apreender o pensamento de Freinet é tarefa árdua. Seria incoerente tentar enquadrar sua vasta produção em esquemas lineares, apresentando-a como um pensamento acabado e coeso. Uma leitura mais atenta de seus escritos mostrará uma criação intelectual multiforme e, não raramente, contraditória.” (Nascimento, 1990)

Freinet nasceu em 15 de outubro de 1886 no sudeste da França,

em vilarejo chamado Gras. Esta era uma das regiões mais atrasadas do

país onde ainda predominavam modos de produções agrícolas antigos e,

consequentemente, padrões tradicionais de relações sociais. Ainda

existiam latifúndios (o que já não era típico da França desta época) e o

poder dos donos dessas terras era apoiado nas estruturas locais de

dominação, no caso, a Igreja. Quanto aos trabalhadores, por falta de

oportunidade de emprego e de uma maior organização deles para lutar

por seus interesses, acabavam por se submeter quase que totalmente

aos poucos donos de terra.

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Enquanto isso, a França deste final do século XIX se encontrava

com a República consolidada: o positivismo gozava de uma difusão quase

universal apoiado pela moral. E a escola pública primária “laica, gratuita e

obrigatória” se enraizava em todos os lugares do país, inclusive os

menores. É essa escola, que trazia consigo o ideário republicano, que

penetrava na região ainda pré-capitalista de sobrevivências do medieval

onde nascia Freinet,

Freinet nasceu em uma família pobre, porém não miserável, de

pequenos camponeses. Oliveira (1995) nos fala a respeito da visão de

mundo que provavelmente a família de Freinet compartilhava:

“(...) uma visão de mundo em que o trabalho ainda era

percebido como força relativamente autônoma. Talvez venha

daí, pelo menos em parte, uma das faces incontestáveis do seu

pensamento, a dimensão libertária, a adesão a certos aspectos

do ideário anarquista”.

Por ser de uma família pobre, desde pequeno, Freinet conhece as

tarefas da lavoura e assume o pastoreio de cabras que frequentemente

era trabalho destinado às crianças. Brincadeiras gratuitas não eram um

costume, logo, ele encontrava seu prazer nos seus fazeres atribuídos.

Suas atribuições por terem valor social, faziam com que ele se sentisse

parte de um coletivo onde adultos e crianças tinham sua contribuição a

dar.

Infância como um período em que os mais jovens são vistos como

um ser dependente dos adultos foi uma criação moderna surgida com o

advento da burguesia como disserta Philippe Ariès (1981). Para as

classes populares, as crianças não eram seres a parte, ao contrário, sua

contribuição no trabalho comum era muito necessária e, portanto, levada

a sério.

Essa vivência que teve em sua infância popular contribuiu com a

concepção que Freinet sempre teve sobre a atividade infantil e que

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determina sua proposta de escola. Para ele, a criança não é um ser em

espera por um futuro, um vir a ser. Ao contrário, Freinet assume que elas

tem sua contribuição para dar no presente, são membros da comunidade

trabalhadora da qual fazem parte.

“Este é, sem dúvida, um dos fundamentos principais da escola do trabalho tal como ele a define e que vê no ser humano um ser que se faz pelo trabalho criador, isto é, por um trabalho necessariamente dotado de utilidade social, produtor de valor de uso real. Nesta perspectiva, a escola não é a preparação, como na concepção clássica e sim, desde já, vivência e inserção concreta” (Oliveira, 1995).

Freinet, por crescer no campo, traz consigo uma profunda

identificação com o mundo rural. Isso acrescido de suas leituras de

Rousseau e pela incorporação de parte das teses materialistas, faz com

que defenda uma perspectiva naturalista. Para ele, somos parte de um

grande universo, em si, bom e fecundo. Um autêntico reencontro do

homem com sua condição implica que ele seja capaz de colocar-se de

novo em harmonia com esta respiração universal da mãe natureza.

Ele se baseia muito na natureza para traçar paralelos com a

aprendizagem. Observando como a natureza procede em suas

transformações (por ensaio e erro, num imenso e constante “tatear”),

Freinet estabelece um tipo de ensino baseado na pesquisa o qual chama

de “método natural”. Em sua concepção, do mesmo modo como uma

criança aprende a falar “naturalmente”, como que movido por uma lei da

natureza, sem métodos pré-estabelecidos, sem decorar regras, apenas

através de sua observação dos modelos a sua volta, se autocorrigindo e

recebendo algumas intervenções; do mesmo modo a criança seria capaz

de aprender a ler e resolver problemas matemáticos “naturalmente” a

partir das suas necessidades do seu cotidiano.

Para Freinet, era muito importante um retorno à natureza, no ser e

no viver, se não há esse retorno, não pode haver uma aprendizagem

autêntica. Por isso, ele preferia que a escola se situasse no campo.

Contudo, diferente de Rousseau que quando preconizava um retorno a

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natureza estava condenando a sociedade, Freinet prega um campo

social. Como nos explica Oliveira (1995):

“O campo freinetiano é social, não é separável da sociedade maior em que está inserido. A escola tampouco, mesmo que situada num ambiente rural, pode fugir um minuto aos determinantes sociais maiores que a condicionam.”

Com esta concepção, além contrariar em parte o naturalismo de

Rousseau, Freinet também se opunha aos escolanovistas que

acreditavam na possibilidade de uma escola afastada dos conflitos

sociais.

Quando não fosse possível a escola se encontrar no campo,

Freinet acreditava ser importante que houvesse, ao menos, elementos

“naturais” que a rodeasse: água, terra, plantas, animais.

Em sua prática pedagógica, Freinet continuará a buscar a

conciliação entre pares que, para outras pedagogias ou pensadores são

inconciliáveis, por tantas vezes são vistos como opostos, mas, para

Freinet, fazem parte de um todo no qual não se pode descartar nenhuma

de suas partes:

“Freinet, que buscou ardosamente a conciliação entre pares nem sempre conciliados, tais como escola e sociedade, pedagogia e história, criança e adulto, sociedade e natureza, aluno e professor, moral e política, trabalho e vida” (Nascimento, 1990)

Freinet frequentou a escola pública do vilarejo que tinha como

objetivo inculcar o saber aos futuros cidadãos, inculcar-lhes a visão de

mundo que os governantes republicanos julgavam apropriada a sua

condição subalterna na sociedade. Era, portanto, uma escola que não

valorizava a visão de mundo do povo e cujos ensinamentos não se

relacionavam em nada com a vida que ele levava em seu vilarejo. Era um

ambiente a parte e sem razões para ele e que, por isso, lhe causava tédio

que chegou a o levar a rejeição, mesmo que a essa idade ele não

entendesse a essência dos fundamentos ideológicos desta instituição e

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sua crítica, assim como a dos escolanovista clássica, se resumia ao

ensino nestas instituições públicas serem tradicional, escolástico e

desprezasse a vida.

Aos poucos, Freinet vai se conscientizando do papel que a escola

pública desempenhava no reforço da dominação e aí sua participação

política se intensifica ainda mais em luta por uma escola do povo que

busque por uma mudança radical das estruturas sociais.

Aos 15 anos, Freinet, assim como muitos jovens camponeses da

sua época, opta por ser professor primário e entra na Escola Normal

masculina de Nice.

Freinet assume o ensino como uma militância e não como um

sacerdócio como muito queria inculcar-lhes a formação nas Escolas

Normais. Sacerdócio era um meio pelo qual a burguesia procurava tornar

aceitáveis as péssimas condições de vida e trabalho dos professores

públicos. Trabalhava-se e se dedicava ao trabalho ao máximo mesmo

com as piores condições por uma fé, por uma vocação que se tinha. Ao

assumir como militância, Freinet também se dedicava ao máximo mesmo

com as péssimas condições que tinha, porém fazia isso não por uma fé

incondicional, porém era um engajamento voluntário que conservava

sempre seu poder de crítica e contestação frente à instituição escolar.

Militando no sindicato e influenciado pelo pensamento socialista, é

depois da primeira guerra mundial que o ideário da escola como meio de

elevar o povo lhe veio definitivamente por terra, tomando total consciência

do destino de sua classe e das mentiras interesseiras propagadas pela

educação que tinha recebido tanto na escola quando criança, quanto na

Escola Normal.

“A guerra lhe deixou seqüelas físicas e emocionais: seu pulmão funcionava precariamente, ao passo que Freinet criou uma forte repulsa contra a destruição e o impulso de morte inerentes às guerras” (Nascimento, 1990)

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Na guerra, ainda com 19 anos, ele sofre ações de gases tóxicos

que comprometem seus pulmões. Todavia, não deixou de trabalhar

apesar de poder parar por invalidez. Sofreu outros golpes em sua vida: foi

expulso do ensino público, teve toda a sua obra destruída durante a

ocupação alemã, passou por centro de concentração, foi expulso do PCF

(Partido Comunista Francês). Entretanto, Freinet era um otimista e

continuou a exercer seu magistério.

Por mais que estivesse consciente do papel importante de

reprodução que a escola exercia, Freinet não pregava por seu fim como

queriam os anarquistas. Para Freinet, a escola, como um espaço

dialético, de contradição, era onde se manifestava também a luta de

classes e ele dizia: “Lutamos para fazer surgir, do próprio seio da escola

pública, esta Escola do Povo, cujos alicerces técnicos elaboramos

minuciosamente (...)” (Freinet, 1980)

Após sua vivência na primeira guerra, a ideia republicana de pátria

perde todo o sentido para Freinet. Ele passa a crer que a verdadeira

pátria dos trabalhadores é a classe trabalhadora para além das divisões

geográficas. Freinet se torna, assim, um internacionalista militante sem,

contudo, deixar de ser francês. E ainda por esta mesma experiência, ele

também se torna um pacifista convicto que tem o internacionalismo como

fundamento.

Freinet assumiu sua primeira turma em 1920 ainda em Bar -sur-

Loup. Era uma turma de 35 meninos de diversas idades em sua maioria

filhos de camponeses e pobres que falavam apenas o dialeto local e não

francês, a única língua permitida dentro das escolas.

Apesar da sua condição física que não lhe permitia falar muito

como demandaria num ensino tradicional, Freinet recusa-se a se

aposentar por invalidez e aceita o desafio de ensinar a esses meninos.

Mais do que lhe passar os saberes que os governantes republicanos

julgavam apropriados e que não fazia sentido algum para aqueles

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meninos, Freinet tinha como objetivo trazer vida para aquela turma e fazer

de seu ofício seu meio de batalha contra o que ele recriminava:

“Em 1º de janeiro de 1920 Freinet entra pela primeira vez numa sala de aula, obstinado a combater, através do trabalho, aquilo que ele tanto recrimina. (...) contra a morte se impõem a vida, contra a destruição a construção, contra o isolamento se impõem a cooperação” (Nascimento, 1990)

Em busca de um caminho concreto, ele encontra em Ferriére uma

contribuição importante na criação de sua pedagogia que diz respeito ao

trabalho partir da vida das próprias crianças, de seus interesses e não do

que ditam terceiros. Deste modo, a escola não estaria à parte da vida do

aluno. Entretanto, mantendo-se crítico, Freinet percebe que do modo

como é proposto, a “escola ativa” acaba sendo uma ilha dentro da

sociedade e se tornando um meio eficaz apenas para as classes mais

altas, classes estas que nem ele e nem seus alunos faziam parte.

“Freinet encontra em Ferriére (“escola ativa”) uma influência decisiva que irá marcar todo o seu ideário pedagógico, os fundamentos da atitude de colher na própria vida das crianças/educandas os elementos para seu trabalho pedagógico. Aos poucos, contudo, ele percebe os limites desta “pedagogia ativa”, que descreve como “intelectualizada”, “cheirando a laboratório”, cujo risco era isolar-se do social” (Nascimento, 1990)

Freinet, então, ao perceber que as crianças que ele tinha ali não correspondiam com as crianças de nada que ele lia, decide criar suas próprias técnicas pedagógicas que fossem válidas para todos, independente das diferenças de rendimento entre cada educando e suas origens.

Ele mantém a certeza que era preciso captar essa vida que suas crianças emanavam para assim tornar a educação significativa para elas, pois, para Freinet, a vida se preparava pela própria vida. Porém nota que esta vida estava fora dos muros da escola. Então, ele decide que a primeira coisa a se fazer era sair daquela prisão que a escola era para os garotos como lhe era quando pequeno, um lugar que iam a força por não verem sentido, mas que iam apenas por serem obrigados. Assim, surge a aula-passeio que nega o disciplinamento forçado dos corpos e das mentes das crianças do povo. Ao passear pela aldeia e se envolviam com a vida que lhes circundava. Entretanto, quando voltavam, as aulas

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continuavam monótonas. Foi quando Freinet passou a sugerir que escrevessem um texto sobre o vivido e assim surge o texto livre que marca o ponta pé da pedagogia Freinet por despertar a livre expressão.

“o texto livre libera o pensamento da criança, facilita a criatividade da criança (...) progressivamente responsável por seus comportamentos afetivos, intelectuais e culturais. Eis aí um começo seguro para a conquista de uma vida adulta” (Freinet, 1979)

As crianças quando voltavam escreviam o que haviam observado sem constrangimento em francês. Freinet descobre que o melhor e mais eficaz meio de se aprender é quando há um envolvimento afetivo entre o conteúdo de ensino aos interesses reais dos alunos.

Com o tempo, Freinet passa a usar uma pequena impressora e cria-se assim o texto impresso, outra importante ferramenta de seu trabalho.

Uma nova técnica vai se afirmando; pouco a pouco, ela vai mudar o clima e o trabalho da classe, instaurar a vida onde a tradição mantinha seus direitos, operar uma inversão decisiva de toda a prática escolar, abrir novos caminhos para o comportamento da criança real e sensível” (Freinet, 1979)

Os textos que eram impressos eram colocados em cartolinas e paulatinamente iam compondo um pequeno livro chamado de Livro da vida por servir como um registro de tudo que a turma havia vivido e produzido.

Acreditando ser importante compartilhar suas experiências, Freinet as relata para uma revista francesa de orientação marxista chamada École Émancipée. É reconhecido e, provavelmente, por causa desta experiência é que ele tem a idéia de uma nova técnica pedagógica que é a correspondência escolar. Seus primeiros correspondentes foram: Ferrérie, através da “Casa dos Pequeninos” do Instituto Jean Jacques Rousseau, de Genebra; e o diretor do Colégio de Aplicação de Charville, Sr. Husson, que manteve correspondência com Freinet até a sua morte.

Assim, percebe-se que as técnicas de Freinet foram surgindo de acordo com a necessidade da turma, foram surgindo de suas experiências num eterno tatear em busca de respostas e alternativas para os problemas e desafios que a prática lhe propunha. Isso se fazia coerente uma vez que Freinet acreditava e nos alertava que as teorias podem ser mortais para os indivíduos se elas forem simples construções do espírito sem bases sólidas na realidade.

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“Isto quer dizer que as nossas técnicas tiveram como primeira razão de ser a resposta às necessidades das nossas escolas públicas. Longe de provirem de quaisquer projetos imaginários, ou de teorias pedagógicas, elas partem exclusivamente da base, do próprio trabalho, e da vida das crianças nas nossas classes renovadas” (Freinet, 2001)

Com essas técnicas em andamento, paulatinamente as crianças começam a sentir necessidade de uma nova organização e passam a tomar decisões importantes como fazer os planos de passeios ou de trabalho, a levantar fundos para as correspondências, surge a idéia de se criar uma cooperativa na qual os alunos se reúnem semanalmente para discutir as melhores soluções para os problemas encontrados na concretização do trabalho escolar, organizam conferências a partir da consulta à biblioteca de trabalho e deste modo, o clima da escola vai mudando ainda mais onde “uma colméia em que o trabalho, a ordem e a disciplina se tornam as próprias. normas da vida triunfante” (Freinet apud Nascimento, 1990)

Quando se começa a trabalhar deste modo, faz-se necessário que as crianças tenham autonomia e, portanto, liberdade é uma palavra chave dentro dessa pedagogia. Freinet acreditava que a liberdade era muito importante, porém não uma liberdade na qual as crianças pudessem tudo. Ele acreditava que a liberdade individual disciplinada gera felicidade, mas que felicidade não significa poder fazer o que quiser. Ao contrário, para ele, deixar uma criança fazer o que quiser e ter tudo o que quiser é a maneira mais segura de se tornar uma criança infeliz

“Não, não somos pela liberdade total da criança (...). Não existe, nem na escola nem na sociedade, liberdade pura e simplesmente. Pense a liberdade de trabalhar, a liberdade de se deslocar, de falar ou escrever; mas então, naturalmente, essa liberdade (...) é subordinada ao meio e à liberdade semelhante dos indivíduos com os quais vivemos. A realização de um máximo de liberdade de trabalho, de movimento, de expressão, supõe por isso um máximo de organização técnica, sem a qual a noção de liberdade será sempre apenas um engodo” (Freinet apud Nascimento, 1990)

Freinet acreditava que a liberdade produz felicidade e esta é critério para uma boa educação no sentido de uma educação bem sucedida. Sem felicidade, não se aprende, pois não há motivação. E sem liberdade, dificilmente se é feliz. A liberdade, ao contrário do que alguns possam pensar, nasce, para Freinet, da disciplina e a liberdade gera disciplina, uma vez que a organização deveria estar ao serviço da vida e

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do trabalho, e não o trabalho e a vida coagidos e dominados pela organização.

O ser humano é, portanto, para Freinet, um ser livre e feliz. Ele também é moral e social. Isolado, o homem perde inclusive sua consciência de individualidade, sua liberdade e sua felicidade e só ao lado dos outros é que adquire valores morais e sociais.

É desta maneira, a partir dessas vivências e crenças, que neste capítulo tentamos trazer, é que Freinet vai tateando e traçando sua pedagogia sempre dentro de uma verdadeira práxis pedagógica.

“O ponto talvez mais importante a ser retirado desta primeira experiência de Freinet com o magistério é este reencontro intuitivo com uma autêntica práxis pedagógica, uma práxis onde a ação gera conhecimento e onde o conhecimento, por um movimento dialético, vem realimentar essa mesma ação.” (Oliveira, 1995).

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CAPÍTULO III

Os 30 princípios de Freinet e suas oposições aos

valores da escola capitalista

Como buscamos mostrar nos capítulos antecedentes, Célestin

Freinet recebeu e procurou durante toda a sua vida influências que o

faziam questionar o sistema capitalista e seu sistema de ensino.

Sendo um eterno crítico e inconformado com as injustiças dos

sistemas, em sua prática profissional, ele sempre se dedicou a atuar de

acordo com seus princípios respeitando a si mesmo e aos seus alunos.

Freinet, ao propor uma nova prática pedagógica, não quis sugerir

uma metodologia como um método fechado a ser seguido. Sua busca por

uma nova escola fez com que contasse com colaboradores do mundo

inteiro que compartilhavam do mesmo ideal. Criou-se não uma

metodologia estática, mas um movimento por uma nova pedagogia.

Freinet, mesmo sendo seu maior idealizador, não queria, entretanto que

este movimento recebesse seu nome, por achar injusto já que não era um

movimento que ele levasse sozinho, portanto, o movimento não era por

uma pedagogia Freinetiana, mas por uma Escola Moderna.

“Nunca poderemos dar esta tarefa por concluída, porque em grande parte ela continuará a ser uma tarefa de adaptação constante; não pode caber a um só homem, por muito genial que ele seja. Deve resultar da colaboração de todos os educadores diretamente interessados na tarefa que encetaram” (Freinet, 1978)

Apesar de seu desejo de não ter seu nome batizando o movimento,

por ser seu idealizador, seu nome passa a ser referência e sinônimo para

a escola Moderna.

Por ser um movimento, a escola Moderna está sempre mudando,

se adaptando e se aprimorando, entretanto, alguns aspectos são

essenciais para que uma escola seja verdadeiramente Moderna, para

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tanto, Freinet escreve o Código de Educação, onde se encontram os 30

princípios chamados pelo autor de invariantes pedagógicas da escola

Moderna.

“Freinet percebeu que somente a transmissão de conselhos técnicos corria o risco de ser insuficiente, se estes não fossem acompanhados de instruções mais exatas. Por isso ele organizou uma série de princípios que chamou de Invariantes Pedagógicas. Ele queria, assim, estabelecer uma nova gama de valores escolares, numa busca da verdade, que deveria ser feita à luz da experiência e do bom-senso” (SAMPAIO, 2002)

As 30 invariantes podem ser divididas em 3 aspectos: a natureza

da criança, as reações da criança e as técnicas educativas.

3.1 A natureza das crianças:

Esse primeiro grupo é constituído por 3 invariantes:

A primeira variante prega uma igualdade entre crianças e adultos.

Fazendo uma comparação com a natureza como Freinet costumava

fazer, é como se a criança fosse uma árvore que ainda não terminou de

crescer, mas que age: se nutre, cresce e se defende exatamente como

uma árvore adulta.

Invariante 1:

"A criança e o adulto têm a mesma

natureza"

Continuando nessa concepção, Freinet enfatiza que o adulto é

apenas maior que a criança, porém que isso não implica que ele está

acima constituindo uma hierarquia.

Invariante 2:

"Ser maior não significa

necessariamente estar acima dos

outros"

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Freinet condena o uso de pedestais e a postura de chefe que os

professores assumem dentro da escola capitalista:

“Suprima o pedestal, de repente você estará ao nível das

crianças. Você as verá não com olhos de pedagogos e chefes,

mas com olhos de homens e crianças, e com este ato você

reduzirá seguidamente a perigosa separação entre aluno e

professor que existe na escola tradicional” (Freinet apud

Sampaio, 2002)

Já a terceira preza por se enxergar a criança e seu comportamento

dentro de seu contexto, reconhecendo que ela é um ser complexo que

sofre influências do ambiente, de suas condições de saúde, de todo um

equilíbrio e não são simples tabulas rasas que recebem apaticamente as

informações que os adultos tem a passar.

Invariante 3:

"O comportamento escolar de uma

criança depende de seu estado

fisiológico e orgânico, de toda a sua

constituição"

Faltou nesta invariante acrescentar ou esclarecer que as questões

de ordem sociais, econômicas e psicológicas também devem ser

consideradas como influências para o estado que a criança se encontra e,

portanto, como variantes importantes para se compreender o

comportamento do aluno.

3.2 As reações das crianças:

As 7 invariantes seguintes constituem este segundo grupo.

Mantendo-se de acordo com as invariantes anteriores, a seguinte

vem dizer que as crianças assim como os adultos não gostam de

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imposições autoritárias. Elas querem poder falar, opinar, serem ouvidas,

sendo consideradas como membros importantes da comunidade e da

ação que lhes cabe.

Invariante 4:

"A criança e o adulto não gostam de

imposições autoritárias”

O problema do autoritarismo se faz por ninguém gostar de ser

obrigado a obedecer a mandos que não compreendem como acontece na

escola capitalista. Disso, Freinet prescreve a invariante seguinte:

Invariante 5:

"A criança e o adulto não gostam de

uma disciplina rígida, quando isso

significa obedecer passivamente

uma ordem externa"

Freinet não quer dizer com isso que uma ordem não seja

necessária. Ela a é, e as crianças precisam dela. Porém, precisam de

uma ordem, de uma organização que compreendam a necessidade, que

se faça sentido.

“Existe uma certa disciplina necessária para a convivência dos

grupos mais ou menos bem organizados. As crianças

compreendem-na, aceitam-na, praticam-na, organizam-na; elas

próprias sentem essa necessidade. É esta disciplina que

devemos procurar” (Freinet apud Sampaio, 2002)

O educador em sua invariante seguinte vem nos alertar que a

coerção é tão prejudicial que pode tornar uma atividade que até agrada a

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criança em algo que não goste, ou que se recuse a fazer pelo modo

imposto da atividade.

Invariante 6:

"Ninguém gosta de determinado

trabalho por coerção, mesmo que,

em particular, ele não o desagrade.

Toda atitude coerciva é paralisante"

Decorrendo das invariantes anteriores, a próxima defenderá a

liberdade de escolha da criança em relação ao seu trabalho.

Invariante 7:

"Todos gostam de escolher seu

próprio trabalho, mesmo que essa

escolha não seja a mais vantajosa"

Para que isso possa ocorrer, é necessário que a escola assuma

uma outra organização que não limite tanto as crianças quanto o espaço

da sala de aula e o tempo da seriação.

Ainda como decorrência das demais invariantes, Freinet se mostra

contra o mecanicismo do trabalho que acaba acontecendo na escola

capitalista na qual o professor sendo autoritário, o aluno submisso,

aceitando ordens e tarefas que não lhe fazem sentido, acaba realizando-

as de forma alienada e mecânica sem nenhum gosto pelo que faz.

Invariante 8:

"Ninguém gosta de trabalho sem

objetivo, atuar como máquina,

sujeitando-se a rotinas nas quais

não participa"

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Freinet conclui estas invariantes com a seguinte:

Invariante 9:

"É fundamental a motivação para o

trabalho"

Para que tudo até aqui proposto seja possível de ser aplicado na

prática, para que haja motivação, é necessário que o trabalho dentro da

escola faça sentido para a vida da criança. Faz fundamental que a escola

não esteja à parte da vida, mas faça parte dela. Nas palavras de Freinet:

Invariante 10:

"É preciso abolir a escolástica"

“A escolástica é uma regra de trabalho e de vida própria da

escola e que não é válida fora desta, sendo incapaz de

proporcionar a preparação necessária para enfrentar as

diversas circunstâncias da vida” (Freinet apud Sampaio, 2002)

Dentro da escolástica, Freinet reforça, ainda em sua décima

invariante, dois pontos que precisam ser revisto na pedagogia. O primeiro

é a avaliação competitiva que destrói as crianças pelo fracasso e o

segundo é o jogo como algo que é prazeroso para a criança, porém que

não traz consigo sentido para a vida da criança. No lugar destas práticas,

ele sugere uma pedagogia que pregue e valorize o sucesso e o trabalho

ao invés do jogo.

Invariante 10 – a:

"Todos querem ser bem-sucedidos.

O fracasso inibe, destrói o ânimo e o

entusiasmo”

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Invariante 10 – b:

"Não é o jogo que é natural na

criança, mas sim o trabalho"

3.3 As técnicas educativas:

As demais invariantes dizem respeito às técnicas educativas. Não

vão descrever ferramentas, uma vez que Freinet nunca se propôs a criar

uma metodologia fechada, mas propõe uma prática sempre em

movimento e criação. As invariantes educativas tem por objetivo

apresentar características que as ferramentas utilizadas devem levar em

conta.

A décima primeira invariante vem valorizar a experiência com o

meio mais natural de aprendizado.

Invariante 11:

"Não são a observação, a explicação

e a demonstração - processos

essenciais da escola - as únicas

vias normais de aquisição de

conhecimento, mas a experiência

tateante, que é uma conduta natural

e universal"

Desta maneira, Freinet critica o sistema tradicional:

“A escola tradicional atua exclusivamente por meio de

explicações. As experiências, quando são feitas, intervêm

apenas como complemento de demonstração” (Freinet apud

Sampaio, 2002)

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Outra crítica do educador à escola tradicional diz respeito ao uso

exagerado da memória preconizado por esta. Ele não chega a condenar a

memória, porém alerta para a importância que da significação desta que

só é alcançada pelo tateamento, pela experiência.

Invariante 12:

"A memória, tão preconizada pela

escola, não é válida nem preciosa, a

não ser quando está integrada no

tateamento experimental, onde se

encontra verdadeiramente a serviço

da vida"

Percebe-se, então, que para Freinet o aprendizado parte da

experiência. Primeiro se vivencia para depois estudar e compreender as

regras que explicam o vivenciado. E não o contrário como é proposto no

tradicional no qual primeiro se explica e depois, às vezes, se faz uma

experiência para demonstrar o ensinado. Não partindo da vivência da

criança, o ensino de regras e leis são recebidos pelos alunos como

fórmulas sem valor.

Invariante 13:

"As aquisições não são obtidas pelo

estudo de regras e leis, como às

vezes se crê, mas sim pela

experiência. Estudar primeiro as

regras e leis é colocar o carro à

frente dos bois"

A invariante seguinte alerta para o não julgamento dos alunos que

estipula que uns são inteligentes e outros não. Inteligência é uma

característica que não é inata, mas depende de outros aspectos que

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constituem o indivíduo como o ambiente que está inserido e sua história

vivida.

Invariante 14:

"A inteligência não é uma faculdade

específica, que funciona como um

circuito fechado, independentemente

dos demais elementos vitais do

indivíduo, como ensina a

escolástica"

Outro erro que a escola tradicional comete é valorizar apenas um

tipo de inteligência como sendo a única ou a de maior importância.

Apenas a inteligência racional, lógica, matemática é realmente valorizada.

Inteligência artística, sensível, especulativa, política e social não são

valorizadas.

Invariante 15:

"A escola cultiva apenas uma forma

abstrata de inteligência, que atua da

realidade viva, fixada na memória

por meio de palavras e ideias"

Condizendo com variantes anteriores que preconizam a

importância da motivação e do significado dos aprendizados, Freinet vem

nos alertar que:

Invariante 16:

"A criança não gosta de receber

lições ex-cathedra"

Ele nos clareia sua idéia do que chamamos de lição de casa:

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“Se você explica uma lição valendo-se de sua autoridade,

ninguém o ouve. Mas organize o trabalho de tal modo que a

própria criança atue, experimente, inquira, leia, selecione e

classifique documentos; então ela fará perguntas a respeito de

fatos que a tenham mais ou menos intrigado. Responda às

suas perguntas: isso é o que chamamos lição a posteriori”

(Freinet apud Sampaio, 2002)

Como pode ser entendido, quando Freinet diz que as crianças não

gostam de lição de casa, lição pós escola como é dado na escola

tradicional, ele não queria de modo nenhum desvalorizar a importância de

atividades após o período da escola e nem tão pouco fazer uma crítica as

crianças como se fossem preguiçosas ou tivessem má vontade. O

problema não está nas crianças, mas na falta de sentido das lições ex-

cathedra.

A invariante 17 vem ser condizente com este fato ao nos explicar

que não é o esforço que é contra a natureza da criança. O homem se

esforça desde que não seja por imposição. A imposição é que vai contra a

natureza da criança. Quando não está sob este peso de imposição e

encontra sentido em suas tarefas, a criança se esforçará.

Invariante 17:

"A criança não se cansa de um

trabalho funcional, ou seja, que

atenda os rumos de sua vida"

Outra crítica a escolástica foi quanto às sanções tão presentes nas

escolas tradicionais as quais Freinet responsabiliza por ser um dos

principais motivos que levam as crianças a não gostarem da escola:

“A posição de inferioridade e a sensação de se encontrar

sempre em falta é fundamental degradante. Constitui

certamente uma das principais causas dos fracassos escolares

e da aversão que a criança bem cedo nutre pelas coisas da

escola” (Freinet apud Sampaio, 2002)

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Disto, ele propõe a próxima invariante:

Invariante 18:

"A criança e o adulto não gostam de

ser controlados e receber sanções.

Isso caracteriza uma ofensa à

dignidade humana, sobretudo se

exercida publicamente"

Dentre as sanções criticadas, ele reforça o prejuízo que a nota e

classificações:

Invariante 19:

"As notas e classificações

constituem sempre um erro"

Ele vem nos explicar que quando optamos pelas notas, estamos

optando apenas pelo mínimo que é o conteúdo e por vezes o mínimo

ainda deste, e deixamos de valorizar os processos que não podem ser

mensuráveis.

“Professores e pais, no entanto, apóiam essa prática nas atuais

condições da escola, com crianças que não têm desejo de

trabalhar, as notas e as classificações bem que este meio mais

eficaz de sancionar e estimular. Se bem que este meio tenha

uma contrapartida sumamente perigosa: como se trata de dar

notas com um mínimo de erro, recorre-se, em Pedagogia, a

tudo o que é mensurável. Um exercício, m cálculo, um

problema, a repetição de um curso, tudo isso pode supor,

efetivamente, uma nota aceitável. Mas a compreensão, as

funções da inteligência, a criação, a invenção, o sentido

artístico, científico, histórico, não se podem mensurar. Ficam

então reduzidos ao mínimo, na escola, e são abolidos da

competição” (Freinet apud Sampaio, 2002)

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Ao contrário da escola tradicional que prega o ensino através de

muitas exposições, Freinet solicita para que se fale o menos possível,

acreditando que quanto menos se fala, mas se faz e é fazendo que se

aprende melhor.

Invariante 20:

"Fale o menos possível"

Freinet tão pouco acredita que fazer com que todas as crianças

executem a mesma tarefa ao mesmo tempo seja algo produtivo, e

adiciona, por isso, a seguinte invariante:

Invariante 21:

"A criança não gosta de sujeitar-se a

um trabalho em rebanho. Ela prefere

o trabalho individual ou de equipe

numa comunidade cooperativa"

Apesar de ser contra a disciplina da escolástica que obriga a todos

fazerem o mesmo trabalho simultaneamente, Freinet não nega a

necessidade de uma ordem e uma disciplina na sala.

Invariante 22:

"A ordem e a disciplina são

necessárias na aula"

Freinet acredita que as crianças buscam por uma ordem verdadeira

e não imposta.

“Pratique as técnicas modernas pelo trabalho vivo, que as

crianças se disciplinarão por si próprias, porque querem

trabalhar e progredir segundo regras adequadas. Você terá

então em suas aulas uma ordem verdadeira” (Freinet apud

Sampaio, 2002)

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A invariante seguinte se apresenta sendo contrário ao castigo que

seria uma sanção que ele já se apresentava contra na invariante 18.

Invariante 23:

"Os castigos são sempre um erro.

São humilhantes, não conduzem ao

fim desejado e não passam de um

paliativo"

Ele reconhece que não seja fácil deixar de punir. Porém, acredita

que a ordem e a disciplina sejam resultado final de todas as condições de

trabalho na aula, se estas estiverem bem estruturadas, não será

necessário os castigos, pois as crianças seguirão as ordens.

As invariantes até aqui expostas, se seguidas, nos levam a uma

nova estrutura escolar que implica em deixar a competição e o

individualismo de lado e assumir uma atitude de cooperação entre todos.

Invariante 24:

"A nova vida da escola supõe a

cooperação escolar, isto é, a gestão

da vida e do trabalho escolar pelos

que a praticam, incluindo o

educador"

Para que possa haver uma cooperação no trabalho, faz-se

necessário que não se sobrecarreguem as salas para que todos possam

assumir seu papel dentro da produção do trabalho coletivo. Por isso,

Freinet sempre lutou por classes de no máximo 25 alunos.

Invariante 25:

"A sobrecarga das classes constitui

sempre um erro pedagógico"

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Quando se prega o cooperativismo e se coloca contra o

individualismo, Freinet não está negando a individualidade dos alunos. Ao

contrário, ele valoriza que se conheçam cada um, aluno ou professor, e

não os conduzam ao anonimato generalizando todos como se fossem

apenas alunos ou apenas professores. Todos são pessoas com suas

personalidades e devem ser valorizadas.

Invariante 26:

"A concepção atual dos grandes

conjuntos escolares conduz

professores e alunos ao anonimato,

o que é sempre um erro e cria sérias

barreiras"

Se preocupando com a formação cidadã dos alunos, Freinet

adverte para que, se queremos uma sociedade democrática, precisamos

aprender a viver numa democracia desde pequeno e, logo, a escola deve

ser um ambiente democrático.

Invariante 27:

"A democracia de amanhã prepara-

se pela democracia na escola. Um

regime autoritário na escola não

seria capaz de formar cidadãos

democratas"

A invariante 28 é uma premissa que deveria ser válida para

qualquer relação humana, pois se refere à necessidade de haver respeito

entre as pessoas.

Invariante 28:

"Uma das primeiras condições da

renovação da escola é o respeito à

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criança e, por sua vez, a criança ter

respeito aos seus professores; só

assim é possível educar dentro da

dignidade"

Como militante, Freinet está ciente que uma manifestação

pedagógica deste tipo que contraria todo um sistema certamente trará

reações, não sendo, portanto, um caminho fácil a ser percorrido.

Invariante 29:

"A reação social e política, que

manifesta uma reação pedagógica, é

uma oposição com a qual temos que

contar, sem que se possa evitá-la ou

modificá-la"

Ele nos diz que isso é irremediável em virtude da natureza

humana:

“A natureza humana é de tal ordem que os interesses criados

se instalam egoisticamente, não importa onde; e se defendem,

indo até à injustiça e à violência, contra qualquer um que

pretenda, em nome do progresso, perturbar a tranqüilidade dos

seus detentores” (Freinet apud Sampaio, 2002)

A última invariante, por fim, é aquela que justifica todas as

tentativas em busca de uma nova alternativa de escola.

Invariante 30:

"É preciso ter esperança otimista na

vida"

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CONCLUSÃO

Buscamos ao longo deste trabalho fazer dois grandes movimentos:

em um primeiro momento, nosso objetivo foi o de desmistificar a escola

tradicional demonstrando como ela faz parte de uma construção histórica

e está diretamente relacionada e a serviço do sistema capitalista. E, em

um segundo momento, por partirmos de uma análise dialética, buscamos

mostrar que a escola pode ser um espaço de contradição que permite

criticarmos o sistema em que se encontra inserida e usá-la como

ferramenta contra o mesmo, possibilitando a criação de outras

pedagogias.

Deste modo, na primeira parte do trabalho mostramos que a escola

é um aparelho muito importante para o Estado por exercer um papel

muito importante para a manutenção do capitalismo através da persuasão

discreta que acontece através de suas práticas cotidianas muitas vezes

similares as práticas do trabalho capitalista. Assim, a escola vai, desde

cedo, ensinando as crianças a aceitarem e assimilarem valores do

sistema de forma naturalizada.

“Algumas situações típicas do modo de produção capitalista

manifestam-se, de forma diferenciada e, até bastante sutil no

espaço escola” (Machado, 1996)

Enquanto no capitalismo “o trabalho aparece ao indivíduo como

algo externo a ele, representado pela mercadoria que coloca o valor de

troca como propriedade principal do trabalho, em detrimento do valor de

uso” (Machado, 1996), na escola, paralelamente, o trabalho aparece ao

aluno também como algo externo a ele, representado pelo conhecimento

que coloca a nota como propriedade principal, em detrimento da utilidade

do conhecimento.

Em ambos os casos, a alienação se faz presente. Se na fábrica é

negado ao trabalhador o direito de decidir o que produzir, bem como o de

se apropriar de seu produto, cabendo a ele cumprir regras e produzir; o

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mesmo ocorre na escola. O aluno também se vê limitado em cumprir

regras e seguir aquilo que lhe é determinado. Ele se encontra fora do

processo de escolha do que estudar, como, quanto, quando... Todas

essas decisões cabem, em geral, ao professor - seu superior-, ainda que

este esteja subjugado ao sistema, assim como caberá ao seu chefe em

seu trabalho.

Desse modo, tanto aluno quanto trabalhador estão alienados de

todo o processo de produção. Além disso, nenhum deles é dono do

resultado de seu trabalho. Na fábrica, o produto do trabalho pertence à

burguesia, já na escola, “não parece tão certa a apropriação do produto

do trabalho pedagógico pelo aluno, pois o saber “apreendido” não é

dotado de significação, não possui valor d uso para ele e, na maioria das

vezes lhe é estranho, distante” (Machado, 1996).

Contudo, apesar do paralelismo, não é correto restringir a escola

como mero e puro reflexo do sistema social. Apesar de sua dependência

a ele, ela também possui certo grau de autonomia que lhe permite

interferir no contexto social.

“Seria um contra-senso que um modelo social e um

modelo pedagógico autoritário conservador tivessem

no seu âmago uma prática democrática. Isso não

quer dizer que no seio da sociedade conservadora e

no contexto de uma pedagogia autoritária não

surjam os elementos contraditórios e antagônicos

que vão possibilitar a sua transformação” (Luckesi,

2003)

A coexistência entre contrários dentro do capitalismo, que se

apresenta no caráter social da produção versus o caráter privado da

propriedade, ao mesmo tempo em que é necessária para manter o

sistema, é também a causa que levará o fim do mesmo ao explorar cada

vez mais o homem e aumentar a disparidade social. Do mesmo modo, a

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escola também é, simultaneamente, um instrumento necessário para a

manutenção da ideologia dominante e um instrumento para a sua

transformação a serviço da classe dominada.

“Conforme a teoria gramsciniana, como uma

instituição da sociedade civil, onde se trava a luta

política, a escola não teria como único papel a

reprodução das relações de dominação, através da

propagação da ideologia dominante; à escola

caberia, também, a função de minar a ideologia

dominante, questionando o “consenso” e a

“harmonia social”. Amplia-se, assim, a visão do

papel da escola no contexto social”. (Machado,

1996)

Acreditando na escola como esse espaço de contradição a quem

cabe o questionamento do consenso e da harmonia social é que partimos

para o segundo objetivo de nosso trabalho, o de apresentar uma outra

pedagogia que assumisse este papel questionador e não o papel de

reprodutor das relações de dominação. Optamos dentre as pedagogias

alternativas existentes por apresentar a pedagogia da escola moderna

que teve início com o educador Freinet.

Entretanto, ao começarmos a primeira parte deste trabalho

reafirmando Marx (s/d) ao dizer que “a história do Homem é a história da

luta de classes”, nós afirmamos que está só acontecerá a partir da

consciência de classe. A história só pode mudar através da prática –

história concreta -, mas, para que essa se altere, é preciso antes que os

homens conheçam a história abstrata. As teorias – história abstrata – são

úteis porque elas geram os debates e conhecendo as ideologias pode-se

compreender como funciona a história e assim é mais fácil organizar uma

maneira de mudar a realidade. Esta nova realidade só surgirá a partir de

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ações concretas porque teorias e ideologias por si só não modificam

nenhuma sociedade.

Por isso, quisermos apresentar um pouco da história de Freinet.

Por tudo o que viveu, o contexto em que se encontrava, levou Freinet a

questionar tudo aquilo que não concordava e buscar compreender as

razões que se escondiam por trás das práticas pedagógicas que

vivenciara em sua educação e as ideologias pregadas pela escola. Só

quando teve consciência do papel reprodutor da escola – história

abstrata- mas ainda acreditando nela como um espaço de contradições e

luta social é que Freinet passou a construir e propor uma escola do povo-

história concreta-, sempre partindo e sendo influenciado por sua própria

história de vida, por suas experiências e realidade.

A escola capitalista prima por uma hierarquia na qual o adulto está

acima da criança, onde apenas os conhecimentos dele são aceitos e

valorizados, em que se descarta o contexto em que a criança vive. É

espaço onde há abuso de autoridade que obriga que os alunos sejam

passivos e exerçam seus afazeres por coerção e não por escolha própria,

sem refletir e agindo como máquinas. Onde não há motivação, pois a

escola está separada da vida, não havendo trabalho que tragam

significados para as crianças. Local no qual, por não se aprender por

experiência, faz-se necessário fazer uso da memória sem garantir a

compreensão. Uma escola que só valoriza um determinado tipo de

inteligência sem reconhecer outras e sem reconhecer que a inteligência

varia com as condições que o indivíduo vive, que manda lições de casa

sem sentido tornando-as mais uma obrigação; que humilha, que compete

sem nunca cooperar e que inibi ao se fixar nos fracassos e as castigá-las

por tais. Espaço que se baseia em seu maior tempo na fala do adulto e

que massifica todas as crianças. Local que não há democracia, respeito e

nem se preocupa com a vida social e política que a influencia, e aonde se

vai matando, aos poucos, a esperança na vida. Os princípios da Escola

Moderna vem se opor a toda esta escola capitalista, buscando formar não

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apenas trabalhadores para um sistema, mas cidadãos críticos,

cooperativos, cientes de seus direitos e que lutem por um mundo mais

igualitário e justo.

Acreditamos que com este breve estudo tenhamos comprovado

nossa hipótese de que o modo como se estrutura um processo educativo

varia de acordo com a Pedagogia que se adota e esta, por sua vez, é

influenciada e influencia no contexto em que se encontra. Dois contextos

diferentes geram pedagogias distintas em seus princípios e valores que

reflete em sua metodologia e instrumentos, e na formação de seus

educandos.

Esperamos ter contribuído para uma maior conscientização da

importância de nós, educadores, assumirmos nossa profissão como

agentes históricos cientes do espaço em que estamos inseridos, também

cientes que existem diversas pedagogias e não apenas uma e que nossa

escolha em nossa prática por uma determinada pedagogia é uma opção

política e não apenas metodológica.

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