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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR
Por: Marcus Vinicius Quadros Machado
Orientador
Prof. William Rocha
Rio de Janeiro
2010
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
INSTITUTO A VEZ DO MESTRE
SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR
Apresentação de monografia ao Instituto A Vez do
Mestre – Universidade Cândido Mendes como
requisito parcial para obtenção do grau de
especialista em Direito das Relações de Consumo.
Por: . Marcus Vinicius Quadros Machado
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Milton e
Zilda, com carinho e suprema
admiração, por toda minha trajetória,
iniciada há 29 anos atrás e ainda
promissora...
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DEDICATÓRIA
À minha querida mulher, Luanda, com
quem divido meu pouco tempo disponível
ao lazer e que acredita, sempre, no
sucesso próximo e duradouro.
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RESUMO
O superendividamento do consumidor constitui tema de grande
relevância, seja pela atualidade, seja pelas divergências existentes e até
mesmo por sua complexidade.
O exame da problemática envolvendo a origem do crédito, sua
evolução e sua essencialidade nos dias de hoje são pontos centrais do
presente estudo, cujo objetivo é facilitar a compreensão do superendividamento
e suas conseqüências sociais, econômicas e jurídicas.
A questão ora sob exame passa por um panorama histórico mundial do
crédito, com todos seus reflexos, onde se pode ratificar sua natureza de
instrumento de sobrevivência e conveniência, decorrente de um acelerado
desenvolvimento econômico e de implacável globalização.
Debater sobre crédito é adentrar nos aspectos mais abstratos dos
conceitos de sociedade, economia e ordenamento jurídico, ante as múltiplas
características desse indispensável e poderoso instrumento.
Mais que a análise do crédito, o presente estudo versa sobre o
superendividamento, ou, como adiante se observará, sobre seu melhor
conceito: democratização do crédito ao consumo, que deve ser encarada
como mazela social, de responsabilidade de todos. Como é cediço, o
superendividamento, estimulado pelos mercados capitais, torna-se hipótese de
revisão de contratos de crédito, justamente por sua concessão irrestrita (na
maioria dos casos) e pela alteração da condição econômica do consumidor
que, em decorrência das irresponsáveis ofertas de “dinheiro”, acaba por
contrair crédito sem observância das exigências necessárias para um
adequado adimplemento.
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METODOLOGIA
Metodologia nada mais é que o conjunto de técnicas utilizadas para se
alcançar o objetivo do estudo e seu desenvolvimento, necessária, portanto, à
elucidação das questões debatidas e apresentadas no presente trabalho.
Através de leitura especializada, mister se faz trazer à baila breve
histórico da origem do crédito, bem como suas constantes mudanças ocorridas
ao longo dos anos; inevitável evolução pelo desenvolvimento econômico
globalizado.
Pesquisa em livros especializados, consulta aos artigos sobre o tema e
análise de jurisprudência abalizada são exercícios obrigatórios para conclusão
do trabalho em comento, cuja confecção conta, também, com leitura de
doutrina obsoleta, essencial ao entendimento do direito e seus
desdobramentos.
Traçar o histórico da origem, bem como explicitar as modalidades de
contratos de crédito são ações essenciais à compreensão do
superendividamento; verdadeira conseqüência do crescimento voraz da
economia e da mídia estimuladora do consumo.
Os tópicos abordados tratam do crédito e sua inserção nos mercados
mundiais, narram seu desenvolvimento, aplicação e princípios reguladores,
além de apresentar toda construção do status superendividamento, cujo
embasamento se pôde extrair da melhor doutrina e jurisprudência acerca do
tema.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO I – PANORAMA HISTÓRICO DO CRÉDITO 10
CAPÍTULO II – SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS 25
- CRÉDITO AO CONSUMO -
CAPÍTULO III – CONTRATOS DE CRÉDITO AO CONSUMO 36
CAPÍTULO IV – INSTITUTO JURÍDICOS ANÁLOGOS AO
SUPERENDIVIDAMENTO 47
CAPÍTULO V – CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO
SUPERENDIVIDAMENTO 60
CAPÍTULO VI – O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR
COMO HIPÓTESE DE REVISÃO JUDICIAL
DOS CONTRATOS DE CRÉDITO 76
CONCLUSÃO 85
BIBLIOGRAFIA 86
ÍNDICE 87
FOLHA DE AVALIAÇÃO 89
8
INTRODUÇÃO
O crédito nada mais é que o principal mecanismo sócio-jurídico
disponibilizado ao homem para viabilizar seu consumo e realizar os desejos
materiais. Surgiu como real possibilidade de realização de sonhos, mas assim
não permaneceu. Mesmo sendo instrumento destinado ao favorecimento do
consumo e da “felicidade”, o crédito é igualmente responsável pelo pior
pesadelo econômico do consumidor: o superendividamento.
O superendividamento surge como o lado negro da democratização do
crédito ao consumo, passando a ser mais que um simples problema
individualizado; uma questão social, justamente por envolver a massificação do
crédito, sem a devida acuidade na sua concessão e, por outro lado, todo
sistemática de crédito, necessária ao crescimento da economia.
O Estado pode e deve criar mecanismos jurídicos para dar uma nova
oportunidade para o devedor, em caso de superendividamento, a reequilibrar
sua situação econômica, atendendo, também, aos interesses do credor. Nesta
hipótese, há vantagem para o devedor, que vê possibilidade de solucionar suas
pendências, para o credor, que poderia não receber ante a insolvência do
devedor e mais, para sociedade que tem a vantagem da poupança da despesa
pública, irradiação de um sistema de maior segurança social, garantia de uma
justiça distributiva e manutenção da concessão de crédito.
Como no Brasil não existe sistema específico para tratamento do
superendividamento a exemplo de países como França, Finlândia, Bélgica e
EUA, não resta alternativa senão a ratificar aplicação dos conceitos do Código
de Defesa do Consumidor.
No presente estudo, elegeu-se a revisão do contratual prevista na
mencionada legislação como mecanismo capaz de reformular os pactos
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firmados pelo consumidor quando constatada a excessiva onerosidade
superveniente à contratação em razão do superendividamento.
Para compreensão de todo fenômeno creditício, inicia-se, no capítulo
primeiro, uma incursão histórica que analisa os aspectos sociais do crédito
como ponto de partida para o superendividamento e, após, adentra-se aos
contratos de crédito ao consumo até a inevitável hipótese revisão contratual
para se garantir o adimplemento do crédito e seu ciclo.
Ponto inovador do presente trabalho é a nova interpretação a ser dada
ao art. 6°, inciso V, do CDC – que dispõe expressamente o direito do
consumidor ter suas relações contratuais revistas em virtude de circunstâncias
posteriores ao ajuste, as quais o tornam excessivamente oneroso – aplicável à
hipótese de superendividamento, justamente para dar equilíbrio na relação de
consumo de crédito e, antes de tudo, tornar justo o contrato celebrado entre
fornecedor e consumidor.
A monografia em comento discorre também sobre vários aspectos
jurídicos do superendividamento, seus princípios norteadores e sua natureza
jurídica, os quais influenciam na interpretação do artigo que prevê a regra
revisionista dos contratos, até os pressupostos necessários para que o
consumidor possa pleitear seu “direito”.
No Brasil, não é possível medir com rigor as causas principais do
superendividamento e nem sequer apurar o número de superendividados, já
que a única informação sobre inadimplência dos consumidores é colhida por
bancos de dados de consumo. Daí porque é possível afirmar que a
materialização do fenômeno ocorrerá apenas nas hipóteses de litígios
revisionais de contratos de crédito ao consumo, nos quais o
superendividamento servirá como hipótese jurídica do pedido.
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CAPÍTULO I
PANORAMA HISTÓRICO DO CRÉDITO
1.1 – Fenomenologia creditícia
O crédito é um dos caracteres essenciais da economia moderna. Sua
operação pode ser definida como a troca de bens, a qual se concede a
disposição efetiva e imediata de um bem econômico, em vista de uma
contraprestação futura.
Sob um prisma sociológico, o crédito pode ser entendido como a
confiança que inspira as boas qualidades de uma pessoa: a verdadeira boa
fama. O vocábulo crédito é originário da antiga Roma, pois credere é a forma
infinitiva de um verbo latino que significar crer. Pode se dizer que é a partir da
relação de confiança que se inicia qualquer negócio jurídico relacionado ao
crédito.
Sob a ótica social, o crédito é o principal catalisador do prazer humano,
porém, sob uma roupagem individualista, se presta a muitos abusos: de um
lado o não pagamento, de outro, a exigência de uma remuneração exorbitante
ou prática de penalidades excessivas impostas no caso de inadimplemento.
Nesse sentido, é possível afirmar que a evolução do crédito esta
intimamente relacionada com a idéia de fé. Não fé religiosa, mas sim inter-
relacional, porquanto só se concede crédito a alguém, seja na forma de
dinheiro ou mercadoria, quando verdadeiramente se crê na sua promessa de
pagamento futuro, ou seja, na sua capacidade de conduzir bem seus próprios
negócios de modo que possa satisfazer a obrigação quando chegar o dia do
vencimento.
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Do ponto de vista sócio-econômico o crédito foi, é, e será a mola
propulsora do desenvolvimento econômico, ou seja, um instrumento de
transformação de grande amplitude, capaz de modificar a sociedade como um
todo. Todavia, o fenômeno creditício possui uma faceta sombria.
É o endividamento o resultado patológico do crédito. Se for verdade
que ele é o responsável pelo aumento do bem estar dos homens, também é
possível denotar sua ligação com o empobrecimento sobre o qual cristalizam
os prejuízos de uma população abatida pela adversidade dos tempos e a má
gestão de uma sociedade de estruturas rígidas. Levados às últimas
conseqüências, o endividamento torna-se o chamado
superendividamento, fato comum a partir do século XII.
Os efeitos do fenômeno creditício, tanto do ponto de vista positivo
(bem-estar social e propulsor econômico), como do negativo (endividamento e
superendividamento) podem ser verificados ao longo da história, sempre numa
relação de alternância, ou seja, se num dado momento histórico o crédito
funciona como agente catalisante, certamente ele provocará, em seguida, o
efeito contrário. Ainda que essa observação não se aplique a todos os eventos
históricos que lidaram com esse fenômeno, certamente esta constatação serve
para explicar porque a sociedade atual busca soluções jurídicas para o
problema do superendividamento, da mesma maneira que outras fizeram para
regular situações análogas num passado não tão remoto.
1.2 – Evolução do fenômeno creditício na antiguidade
A origem do crédito remonta ao sedentarismo agrícola do neolítico. Ele
será, por conseqüência, anterior à indústria, ao banco e a cunhagem de
moedas. Surge, assim, como uma decorrência natural da possibilidade de
satisfazer as necessidades fundamentais do homem, quais sejam, a
sobrevivência, o aumento do bem estar e desenvolvimento da vida econômica.
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Todavia, a matéria creditícia não foi alvo de regulação em todas as
sociedades. Algumas, apoiando-se na revelação divina, proibiram o
empréstimo a juros, dogma este que atravessou séculos, gerando inúmeras
tensões. A regulamentação do empréstimo a juros, principal modalidade
contratual creditícia, encontra-se no centro dos primeiros corpus jurídicos
elaborados na antiguidade. É por isso que certos historiadores supõem que o
crédito pode ter tido uma origem ainda mais remota, na fase de sedimentação
da agricultura no neolítico.
1.3 – O Código de Hamurabi
O código de Hamurabi é um dos mais antigos e bem conservados
códigos gerais. Editado na mesopotâmia destaca-se por conter um conjunto de
normas consagradas sobre litígio entre devedores e credores. No dizer de Jonh
Gilissen:
“O código de Hamurabi e os numerosos atos de prática do mesmo período dão-nos a conhecer um sistema jurídico muito desenvolvido [...] Os Mesopotâmicos praticavam a venda (mesmo a venda a crédito) [...], o empréstimo a juros, o título de crédito à ordem (com a cláusula de reembolso ao portador). Eles faziam operações bancárias em grande escala a tinham já comandita de comerciantes.” (GILISSEN, 2001, p.63)
Na época da sua elaboração, a Mesopotâmia, detentora de uma rica
agricultura irrigada, possuía uma economia intensa e um comércio florescente.
O empréstimo, feito em uma das duas moedas, açúcar ou dinheiro, era
corriqueiro. Todas as operações de crédito, com ou sem juros, eram objetos de
um contrato escrito em pequenas tábuas e certificados por um funcionário.
É neste documento que aparece, pela primeira vez, um dispositivo
sobre usura, qual seja o art. 71. Nele são punidos todos aqueles que
ultrapassarem o valor dos juros pactuado com a perda da própria vida.
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Ainda tratando de crédito, os artigos 48 a 52 representam a base
normativa aos camponeses endividados. Estes não são obrigados a devolver o
capital e os juros em ano de inundação ou seca. Se eles não tivessem nem
moeda, nem trigo, eles podiam liberar deixando aos credores a produção de
suas terras. Dentro do mesmo espírito de moralização da prática, o artigo 113
proíbe o credor de apoderar ele próprio do trigo do devedor, sob pena de ser
obrigado a devolver este trigo e perder seu crédito.
Vê-se que se trata de um conjunto coerente que define o crédito em
todas as suas facetas, suas taxas, sua base jurídica, seus métodos de
reembolso, suas garantias, e suas coberturas.
1.4 – O crédito na Grécia antiga
As leis que mais marcaram a história da Grécia antiga foram editadas
em um período de grandes perturbações sociais. O crédito, largamente
praticado pelos templos, onde representava uma parte considerável do lucro,
tornou-se um dos pontos centrais da legislação e do debate público nas
cidades Gregas.
Como marco evolutivo econômico, conseqüentemente do fenômeno
creditício, temos a passagem da propriedade ao domínio individual, antes
limitada às famílias originárias das primeiras tribos helênicas do primeiro
milênio ac. Tal evento permitiu o desenvolvimento da agricultura, fonte primária
de geração de riquezas. Porém, essa não é a única fonte de acumulo de bens
desenvolvida nesta época. Compondo as fontes econômicas, a atividade
manufatureira dos gregos desperta, fruto do progresso comercial e do
desenvolvimento de técnicas de manipulação.
Em contrapartida desta dissolução gradual dos clãs e da escalada do
individualismo social, a situação dos humildes se torna fortemente penosa face
aos enormes rendimentos do comércio e das grandes propriedades. O
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camponês pobre vive em um pequeno pedaço de terra suficiente apenas para
a manutenção de sua família, e onde a posse precária, condicionada a um
processo de sucessão e demarcação.
Com efeito, é válido mencionar que as condições econômicas de
crédito no século VIII aC., estão longe de ser a única causa da servidão.
Todavia, elas favoreceram o aumento e acentuaram o caráter opressivo desta
instituição. Surgem, assim, diversas demandas de caráter social que os
arruinados formulam, especialmente a extinção das dívidas e a redistribuição
de terras.
Confiando nesta aposta do grupo ideológico, a reforma de Dracon,
aproximadamente em 621 aC., resulta em um sensível progresso. Com ela, o
direito antigo, fundado na família solidária tanto na repressão quanto na
responsabilidade, dá lugar a conceitos mais modernos onde o indivíduo é
colocado frente ao Estado. Todavia, esta reforma se revela insuficiente porque
ela não remedia as crises sociais e políticas.
Para remediar esta crise social, Sólon, um nobre enriquecido pelo
comércio, grande viajante, poeta e homem de Estado, elabora diversas
reformas legislativas. No campo obrigacional é retirado dos credores o direito
de transformar em escravo o devedor insolvente ou um membro de sua família.
Ele restitui também aos antigos proprietários as terras que eles haviam perdido
ao se endividar.
Apesar das perturbações políticas que, no decorrer do século IV ac.,
afetam um grande número de cidades gregas, o progresso do comércio e da
indústria favorece o aumento das fortunas. O empréstimo comercial se
desenvolve e se torna, a partir do século V aC., um dos fatores da
prosperidade econômica do país. O aumento da riqueza e de numerário
favorece os investimentos para atividade crescente do mercado de créditos.
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O papel positivo desempenhado pelo crédito nos séculos V e VI aC., e
sua plena aceitação pela população e autoridades não impediu de ser
condenado por filósofos como Platão e Aristóteles, cujas ponderações serviram
na Idade Média pelos teólogos na elaboração da doutrina da usura, doutrina
esta que influenciou nossa maneira de racionar sobre o crédito.
Para Platão, a intenção da legislação é prevalecer os valores morais
sobre a força bruta. De uma maneira geral, se mostra pouco favorável ao
desenvolvimento econômico. Na República o comércio se torna pouco
importante, os mercados raros. Na sua cidade utópica onde ouro e moeda são
banidos, Platão exclui, bem logicamente, o empréstimo.
Aristóteles também condena a usura, porque ele a considera
incompatível com a própria natureza da moeda. Esta não passa de uma
convenção que tem por objetivo principal facilitar as trocas e ainda admite que
lê apoderia também servir como reserva de valores.
Através do pensamento aristotélico, é perfeitamente compreensível o
ódio em relação ao empréstimo a juros. Por causa dele, justifica Aristóteles, a
moeda tornou-se ela própria produtiva e se desviou do próprio objetivo que é
facilitar as trocas.
1.5 – Sociedade Romana
Como em todas as sociedades arcaicas, o Direito Romano, foi no início
um direito de costume. Entretanto, a partir da República, o costume passa ter a
concorrência da lei. E é na Lei das XII Tábuas, resultado da luta entre a plebe e
o patriciado, cujo objetivo era acabar com a incerteza do direito e o arbítrio dos
magistrados patrícios, onde verificamos as primeiras manifestações jurídicas
para regular a relação creditícia em Roma.
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Por volta do século II aC., a economia romana se encontra em plena
expansão com as guerras púnicas e orientais. Vastas extensões de terra foram
anexadas ao estado romano. O fluxo de dinheiro, de escravos, de gado, de
gênero alimentícios de toda espécie estimula a vida econômica. Roma
consome, mas produz pouco e tem de pagar suas compras no estrangeiro com
o ouro recolhido dos tesouros obtidos com as guerras. As transformações
econômicas, a diversidade das atividades, a concentração de grandes fortunas
transtorna o equilíbrio social responsável pela força da república do século III.
O tradicional regime aristocrático romano, fundamentado numa armada
de camponeses livres, se degenera progressivamente em uma oligarquia de
famílias opulentas, enquanto declina a força militar. Depois de quase um século
de perturbações e de desordens políticas, que levam à instauração do Império,
são empreendidas reformas sociais que respondem aos votos das massas
populares, especialmente através da adoção de medidas assistenciais que
permitem a redução das dívidas mediante a concessão de uma moratória aos
pequenos arrendatários. Assim, graças ao crédito, cria-se um subterfúgio para
problemática social, sem a necessidade de adentrar na regulamentação dos
problemas gerais de base.
Faltando freqüentemente liquidez e não possuindo espírito
empreendedor, as famílias dominantes concentram suas atividades em três
tipos de negociações: a firmeza nos impostos pagos provincianos, os
investimentos que tem como objetivo essencial em bens de raiz, e os
empréstimos usuários.
Pode-se afirmar que a usura foi a grande indústria romana, o pilar do
Império. Foi isto que Montesquieu escreveu soberbamente: “uma usura
medonha sempre fulminante e sempre renascendo se estabeleceu em Roma”
(GELPI, p. 26). O empréstimo com muita usura não era socialmente bem visto.
Mas, como recompensa, a usura era perfeitamente aceita e não havia
nenhuma vergonha de a ela se entregar. Ao contrário, era uma maneira nobre
de enriquecer.
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No decorrer dos dois primeiros séculos de nossa era a situação
econômica evolui: o comércio marítimo estrangeiro se constitui na primeira
fonte de riqueza do Império. Esses progressos aumentam a importância da
fortuna mobiliária e favorece claramente o desenvolvimento de uma burguesia
provincial que conhece o apogeu de sua fortuna no século II, quando a
segurança das transações através do maré nostrum se vê garantida pela pax
romana, prosperidade, entretanto curta, porque suas bases econômicas são
frágeis.
A crise estoura no século III o comércio declina e a ruína da burguesia
ativa se faz sentir com as entradas fiscais, além disso, as necessidades dos
exércitos de ocupação e as despesas de uma burocracia crescente
sobrecarregam pesadamente o tesouro.
Em Atenas, o tomador de empréstimo era freqüentemente um
comerciante preocupado em tirar proveito do dinheiro que lhes emprestavam;
em Roma, é um camponês em apuros ameaçado pela ruína da guerra, as
intempéries e também pelos juros dos empréstimos anteriores.
O financiamento se fazia através da usura. A gratuidade da festa é
compensada pelo ganho da usura, ou seja, diz-se que é a própria plebe que
paga suas festas. Este círculo eminentemente viciado explica um grande
número de levantes populares. Mas como uma tara da sociedade a usura
prossegue sua obra. Alguns pensadores da igreja, como são Jerônimo, se
escandaliza que seja corriqueiro emprestar a juros de 50%. A usura aparece,
destarte, como um mal endêmico tornado cada dia mais grave. Eis porque a
Igreja Católica nascente, baseando sua vitalidade numa reexibição total da
sociedade, coloca a usura em primeiro plano dentre suas preocupações.
No mesmo impulso, os reformadores acreditam ter achado um remédio
para a crise do Império com uma moderação no empréstimo a juros. Dentro
dessas soluções, a mais importante é a proposta por Justiniano que remaneja
totalmente a legislação do empréstimo. Sem chegar a suprimir o juro com quer
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a Igreja ele o reduz, fixando 6% para empréstimos comuns entre particulares.
Os banqueiros e outros comerciantes podem estipular juros até 8%. A taxa de
12% continua sendo admitida para empréstimo marítimo ou empréstimo para
gêneros alimentícios. Justiniano decide que o empréstimo não mais produzirá
juros quando por seu valor igual ao capital, mesmo quando eles terão sido
pagos.
A execução das sentenças não é mais deixada a cargo do reclamante
que obteve ganho de causa, ela é assegurada de maneira direta pelo juiz, seja
com penhora de bens, seja in natura, seja excepcionalmente com pena de
prisão. Trata-se historicamente do primeiro documento jurídico moderno
consagrado ao credito, já que define o conjunto de uma atividade, as taxas
máximas de cobertura de autorizadas, diferenciando tipos de empréstimos e de
mutuantes (emprestadores). O Código de Justiniano demonstra a preocupação
louvável de moralização, evidenciando uma proposta parcial ao grave problema
social que dinamizou desaparecer o Império do Ocidente com as convulsões
que se sabe. Ainda mais uma vez, o crédito é acusado por algo que não é, ou
seja, uma causa dos males dos tempos, pois ele não é senão aquele que nos
revela.
Os dispositivos do código de Justiniano serão apenas aplicados na
parte bizantina do Império, no ocidente o encolhimento da sociedade será tal,
sob efeito das invasões e seus corolários, que o crédito desaparecerá do
cotidiano sociedade sem horizonte, criando uma sociedade sem crédito.
1.6 – O crédito no pensamento da Igreja Católica
Quando Justiniano publica no século VI suas complicações e regras, os
criadores da Igreja já estavam engajados há mais de dois séculos no combate
ao empréstimo a juros e na condenação da usura.
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Imagina-se freqüentemente o surgimento da moral cristã no seio do
mundo romano como um fenômeno importado dos flancos do Império. A Igreja
que nascia encontrou um eco favorável às suas teses ultrapassadas. Desde o
século III, em nome da caridade e do amor ao próximo, a igreja católica adota
as regras do Velho Testamento proibindo o empréstimo a juros. A prática de
usura, simplesmente regulamentada pelas leis civis, se vê então condenada à
maldição eterna.
No inconsciente coletivo cristão a usura constitui-se no pólo repulsivo
da esmola: de um lado, a sublimação em si, de outro a banalização do
cotidiano. Terá que se esperar as grandes reformas dos séculos XV e XVI para
que a esmola seja vista como um símbolo do parasita, e o empréstimo
dignificado como prova de empreendedorismo.
Apoiando-se nos preceitos de deuteronômio e na famosa frase de
Lucas em seu evangelho, o bispo de César se lança contra a usura. Terrível é
a sua condenação porque ela atinge o cotidiano. A usura é vista como o
comércio da mentira, ela desenvolve a ingratidão e o perjúrio. Os juros nascem
devorando a casa dos devedores.
Os pais da igreja latina atacam igualmente a usura desde o século IV,
Santo Ambrosio de Milão dedica a ela seu livro, ele condena o empréstimo a
juros em nome da religião, porque ele compromete gravemente a salvação
eterna e é contrária á Lei Natural.
Ao redor dessas premissas da doutrina nota-se em alguns pensadores
uma argumentação filosófica emprestada do pensamento aristotélico. Suas
condenações tem, entretanto, como principal objetivo, não mais o crédito a
juros, mas sim seus abusos, uma das chagas sociais mais agudas do mundo
romano. A usura condenada é aquela manifestamente opressiva imposta aos
pobres.
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Assim, a comunidade cristã se amolda através de uma miragem muito
particular de solidariedade. Oferecendo esmolas e uma chance de emprego
aos membros mais desprovidos de sua comunidade, os cristãos, mas também
os judeus, podem proteger seus correligionários de uma vulnerabilidade total
frente aos patrões ou aos cristãos ímpios.
A prática de esmolar torna-se para os pobres o maior sinal da
solidariedade dos crentes. A substituição do modelo do profano de Roma,
jogos e usura, por um modelo baseado na solidariedade dos ricos com respeito
aos pobres, torna-se desgraça um dos mais claros exemplos da mudança do
mundo pagão em um mundo cristianizado.
Desde o final do século IV, os concílios, notadamente o de Nysse em
325, colocam penalidades contra a usura praticada pelos clérigos por ser
incompatível com a solidariedade cristã e a divisão de riquezas. Entretanto,
enquanto a proibição feita a respeito dos clérigos se generaliza a partir do
século V, a proibição aos laicos só se torna efetiva com Carlos Magno.
Até o século XII, o princípio da proibição da usura permanece absoluto,
fundamentado nos escrituras e na tradição dos criadores da igreja, tendo São
Basílio à frente. A argumentação teológica que prevalece se baseia na
fraternidade e na índole, o discurso se torna filosoficamente vago, a justificativa
racional sumária, a distinção dos casos com penas esboçadas.
Dando uma nova roupagem interpretativa nas escrituras, textos
cristãos do século XII, ao tratar do crédito concluem que emprestar é
recomendado pela Bíblia (em Eclesiastes especialmente), mas exigir em
dinheiro, mais do que foi emprestado, constitui-se um ato de usura. Adiantar
uma quantia em dinheiro, a ser reembolsado em mercadorias ultrapassará
aquela do empréstimo, é igualmente usura.
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1.7 – Crédito e a Reforma
Pela doutrina escolástica, a atividade econômica só se justifica à
medida que ela possui uma finalidade moral. Ela ensina a seus fiéis recear as
motivações meramente econômicas. Ela se coloca na defensiva contra o
comércio, necessário, mas perigoso à salvação e principalmente contra as
finanças que, na melhor das hipóteses, enlameia a alma e, com freqüência à
torna infame. Certamente, entre a Igreja primitiva, aquela dos mártires ou das
sublimações, e a Igreja instalada nos últimos séculos da idade média, as
diferenças a serem consideradas são sensíveis.
A instituição na qual a Igreja se tornou não pode permanecer às cegas
frente às forças que agitam a sociedade. Com o tempo, o rigor das doutrinas se
atenua e sua aplicação torna mais branda. Mas a base doutrinal se conserva
quase intacta: o empréstimo a juros continua proibido e algumas vezes ainda
condenado civilmente.
Entre as aspirações da burguesia ávida para harmonizar, ao mesmo
tempo, sua ação e as soluções tão irrisórias, tão mal adaptadas se propõe a
ela uma Igreja que se torna anacrônica, um abismo que se aprofunda cada dia
mais. Deste abismo surge a Reforma.
A Igreja reformada não mais existe para fazer o papel de intermediária
de cavaleiro de almas. O católico, para se confessar e se livrar dos seus
pecados, para afrontar a morte, para se conciliar com a benevolência de Deus,
se volta obrigatoriamente para a Igreja, consoladora, mediadora, depositária do
tesouro de graças e do poder da absolvição. Diferentemente do protestante, o
qual encontra na sua solidão sua salvação, ou seja, só frente a Deus ela
ocorrerá.
A partir dessa dependência da consciência, dois grandes caminhos se
apresentam: o Luteranismo e o Calvinismo.
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Indulgente com a fraqueza humana, Lutero coloca toda sua esperança
na bondade de Deus, mas seus olhos continuam voltados ao passado, monge
de origem camponesa, ele não separa dentro de uma sociedade cristã, lugar
para a classe média. O comércio internacional, o banco de crédito, a indústria
capitalista, todo o complexo de forças econômicas que, mesmo após a
Revolução Luterana, deveriam ser o mais forte solvente do mundo medieval, a
ele parece pertencer ao reino das trevas que deve afugentar os cristãos.
Quando ele debate detalhadamente problemas econômicos como nos
dois sermões sobre a usura, de 1519 e de 1520, ele coloca suas doutrinas
dentro de uma interpretação conservadora da jurisprudência eclesiástica, que
não modera nenhuma restrição pela quais os canônicos que eles próprios
haviam tentado adaptar os rigores às exigências da vida prática. Não contente
de insistir com o fato que o crédito deve ser gratuito, ele estigmatiza o
pagamento de juros em compensação de uma perda sofrida, o dammum
emergens, assim como o hábito de colocar dinheiro a juros em fundos públicos.
Na verdade esse Lutero da época dos dois sermões sobre a usura é aquele
que se aproveita do descontentamento que culminará com a famosa guerra
dos camponeses para fazer avançar sua causa.
Quando o descontentamento se transforma em insurreição, Lutero que
havia lançado a idéia da moratória geral volta atrás ao se dar conta do risco de
desordem social que ela comporta. Quando desta tomada de consciência, ele
se agarrava na idéia que o empréstimo a juros é de natureza civil, cada
príncipe determinando sua lei, e que só os excessos nesse assunto
alcançavam a condenação teológica.
Já o perfil de João Calvino (1509-1564) é de um cidadão cosmopolita,
esclarecido, conhecedor do mundo dos negócios, que aceita as instituições
essenciais de uma civilização comercial já bastante desenvolvida. Sua obra
inteira consiste em fornecer uma nova fé às classes que, por sua habilidade
social, são levadas a dominar o destino.
23
Os pensadores do calvinismo endereçam seus ensinamentos às
classes engajadas no comércio e na indústria, que dispõem, dos elementos
mais modernos principalmente os mais progressistas da vida do século. Eles
começam por reconhecer, sinceramente, a necessidade do capital, co crédito,
e do banco, do grande comércio, e das finanças e outras atividades causadas
pelo mundo dos negócios.
Assim eles rompem com a tradição que considerava repreensível toda
a utilização de juros econômicos, a não ser aquele que é necessário para a
subsistência. Eles colocam os benefícios do comércio e das finanças no
mesmo plano de respeitabilidade do salário do trabalhador e do aluguel de uma
propriedade, destruindo o estigma do intermediário como um parasita e o
usuário como um ladrão.
Trata-se do primeiro corpo sistemático de doutrina religiosa e por isso
pode-se dizer que ele reconhece e aprova as virtudes econômicas. Seu inimigo
não é o acúmulo de riquezas, mas o mau uso delas. Assim, o sacrifício do
monge submetendo-se as privações do regulamento para assegurar a salvação
dos seus irmãos não mais parece a ele um dever louvável, mas um simples
parasitismo social. O verdadeiro cristão deve reprimir a mendicância e insistir
ns virtudes do trabalho e da economia. O mundo é santificado pelo empenho.
Conseqüentemente a preguiça do mendigo é, por sua vez, um pecado contra
Deus e um crime contra a sociedade. Em compensação, a atividade de um
comerciante próspero revela a virtude cristã e se revela um bem para a
comunidade.
Para Calvino, o único ato de boa fé neste mundo é o sucesso. Dar
trabalho se torna o ato de boa fé, por excelência; o capitalismo pode assim se
considerar como o escolhido de Deus. Todavia, o capitalismo que a sociedade
calvinista honra não é o rico inútil, grande proprietário ou que vive de rendas; é
o capitalista ativo que trabalha seu capital empregando trabalhadores. O
negociante que abre perspectivas, aquele que aumenta seu capital graças ao
seu próprio trabalho.
24
Calvino não admite as passagens freqüentemente citadas do Velho
Testamento e dos pensadores da Igreja Católica por serem inadequadas,
porque estas foram concebidas em condições que não mais existem.
Observador da vida econômica de seu tempo, ele sabe que o crédito é um ato
normal e inevitável da vida social.
O pagamento de juros de um capital é tão razoável quanto o
pagamento de um arrendamento de terra. Deixa-se, assim, à consciência do
indivíduo a obrigação de cuidar para que estes juros não excedam as cifras
ditadas pela Justiça Natural. O financista não é um paria, mas um membro útil
da sociedade. O empréstimo a juros, na condição de que as taxas sejam
razoáveis, não é mais usurária que qualquer outra transação econômica que
acompanha os negócios humanos. Assim, graças a Calvino ocorre o golpe de
misericórdia na teoria escolástica da usura, destruindo o famoso argumento de
Aristóteles: “Dinheiro não gera dinheiro”.
25
CAPÍTULO II
SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS
- CRÉDITO AO CONSUMO -
2.1 – Primeiras considerações
Até o século XIX, o crédito ao consumo aparecia como face oculta do
funcionamento da sociedade. Mais ou menos proibido, mas mais ou menos
praticado porque era mais ou menos necessário. Desenvolvia-se uma história
ao mesmo tempo esporádica e sombria com relação às outras formas de
crédito e com freqüência cheia de abusos.
A partir do século XIX e mais ainda no século XX, houve claro
aceleramento do seu desenvolvimento, fruto do desligamento dos modelos
antigos europeus e a consagração da forma revolucionária de venda parcelada,
surgida nos Estados Unidos para financiar equipamentos domésticos.
Desde logo, ele se tornou o mais evidente apoio da melhoria do nível
de vida dos americanos, depois dos europeus e, indiretamente, da carreira
industrial desses países, pois não podia dissociar o nível de civilização atingido
pelo Ocidente da idéia de venda parcelada. Nesse sentido, o crédito ao
consumo era o melhor agregador social já criado pelo homem.
2.2 – Origem e evolução do crédito ao consumo nos EUA
Suas primeiras manifestações mostram um crédito mais
freqüentemente associado às vendas no varejo. Começava a prática dos
26
pequenos créditos através da simples marcação em cadernos, principalmente
no que tangia aos gêneros de primeira necessidade. Nas grandes cidades,
onde os salários eram pagos trimestral ou semestralmente, os empregadores
também tinham por hábito combinar tal tipo de crédito com seus operários.
Quando o consumo de bens duráveis se inicia, surge uma outra
modalidade: a venda alienada. Ela, efetivamente, reúne as condições de
segurança pedidas por esse tipo de transação, porquanto o artigo comprado
passa a ser a própria garantia do crédito. É o famoso “hire-purchase”
(locação/aquisição) dos países Anglo-Saxões. O devedor se obriga por
contrato a efetuar pagamentos periódicos que são considerados como
pagamento pela utilização do artigo. É pedida geralmente, uma quantia inicial à
vista, e o comerciante continua sendo dono do artigo até o pagamento final. A
inovação, como se vê, foi considerável. Sobre ela se alicerças todo
desenvolvimento do crédito ao consumidor pelo mundo.
A venda alienada que acaba de começar a balbuciar se desenvolve
rapidamente depois da Guerra da Secessão. Ela se torna menos tímida: os
prazos se alongam; a quantia à vista diminui; os produtos oferecidos se
diversificam. Assim, por volta de 1870, os fabricantes de móveis das principais
cidades do leste começam a venda alienada. Tal evolução é favorecida pela
grande urbanização que acontece entre Guerra da Secessão e os anos vinte.
Diante disso, é possível notar que o crédito ao consumidor moderno
nasceu em momento e situação social propícios, onde o dinheiro é o único
instrumento de compra do proletário que não tem condições de dar as
garantias exigidas pelos Bancos.
Apesar de seu papel social incontestável, o crédito conservava,
entretanto, uma imagem ruim. Nos Estados Unidos, o tomador do crédito passa
a ser discriminado. Entretanto, com o tempo, a imagem melhora e o crédito
passa por uma nova fase de aceitação social.
27
No decorrer dos anos vinte, o fenômeno se acelera: cada rico ou pobre,
antigo, morador ou chegado a pouco, quer possuir um carro. O recurso do
crédito deixa de ser um sinal de pobreza ou de prodigalidade, todo mundo
passa a utilizá-lo, seja para um pequeno Ford ou um grande Cadillac.
Além disso, a disponibilidade imediata de bens duráveis contribui
fortemente para melhorar o bem estar dos lares. A partir dos anos vinte, o
problema das famílias americanas não é mais obter o mínimo vital, mas
melhorar seu nível de vida, aumentar sua satisfação e sua segurança. Mesmo
em certos momentos o crédito pode também ajudar a manter o poder de
compra, principalmente quando a economia desacelera. Sobre o tema, valiosa
é a lição de Maria Manuel Leitão Marques:
“[...] o crédito ao consumo esteve durante muito tempo relacionado com aquisição de equipamentos domésticos para o conforto básico das famílias. Depois, à medida que englobou outro tipo de despesas mais difusas, tornou-se um puro instrumento de antecipação de rendimentos [...] verificamos que o crédito ao consumo concede a oportunidade de obter a posse ou propriedade de um bem ou usufruir da prestação de um serviço, sem dispor de imediato de rendimento necessário para suportar essa aquisição. Este é o efeito hedonista do crédito, o de propiciar uma gratificação instantânea ao adquirente do bem ou o serviço.” (MARQUES, 2000, p.16-17)
Devido a essas observações, os economistas perceberam,
rapidamente, que o crédito ao consumidor era elemento indispensável ao
desenvolvimento das atividades econômicas e fator de melhora do nível de
vida, justamente porque, ao contrário das mentalidades do velho Continente, o
crédito ao consumidor americano nunca esteve contaminado por preconceitos
ideológicos.
Em uma sociedade tradicional, o conveniente é poupar primeiro para
depois, eventualmente, consumir. A América inverteu esta proposta: compra-se
primeiro, depois se poupa sob a forma de pagamentos mensais. O crédito
28
permite aplainar a curva do rendimento, já que os salários têm uma tendência
de serem baixos no início, alcançando um máximo na idade madura.
Por se tratar do mercado mais antigo e mais desenvolvido do crédito
moderno, os consumidores americanos são por excelência o espelho desse
setor de atividade. Espelho para a profissão que lá vai procurar fontes de
inovação; após a idéia de venda alienada, passando por técnicas de pontuação
ou os métodos de pagamento.
Espelho também para os representantes dos consumidores e dos
poderes públicos. O próprio conceito do consumerismo é americano; remonta
com positivismo e espírito concreto seus semelhantes europeus que, às vezes,
se perdem na utopia própria aos neófitos. Da onde advém o fato deles
freqüentemente considerarem o espelho americano, como um “anti-espelho”.
Todas as mazelas da América, que se podem resumir como muitas são
atreladas à famosa taxa de endividamento das famílias que, sem a menor
reflexão é responsabilizada por todo o mal.
Na verdade, sem ingenuidade ou tomada de partido, o endividamento
das famílias americanas indicam, antes de tudo, a ampla difusão do crédito ao
consumidor a todas as classes da sociedade, contrariamente à Europa, onde
ele permanece demarcado social e de consenso, o pequeno crédito, aquele de
uso diário, possui um papel importantíssimo. Por onde quer que se parta, seu
papel social ou sua função na economia, o crédito ao consumidor constitui-se
em um dos motores do êxito americano.
2.3 – Aparição do “consumer credit” na Grã Bretanha
As grandes lojas de departamentos inglesas e as cooperativas
varejistas surgem e com elas se desenvolvem as compras de bens duráveis
com alienação.
29
Em 1881, a Providence Clothing Company instaura facilidades de
pagamento. Para os clientes era preferível então comprar uma roupa nova a
crédito do que pagar juros para recuperar uma vestimenta usada.
É também no decorrer do século XIX que aparece e se desenvolve a
locação-venda em bases muito diferentes daquelas do empréstimo com
penhor. Inspirada na origem nos métodos franceses de aluguel com opção de
compra em móveis de luxo, ela é utilizada para pianos, máquinas de costura,
móveis e é endereçada a uma clientela acostumada a pouco risco.
Realmente, a elevação do nível de vida favorece o aparecimento de
novas modalidades de crédito que não são mais destinadas a assegurar a
subsistência ou a cobrir problemas acidentais, mas que servem para financiar a
compra de bens. Surge a vontade de possuir equipamentos duráveis. Ao
mesmo tempo em que os empréstimos com penhor declinam, o crédito
oferecido pelos comerciantes, bancos, sociedades financeiras têm um
desenvolvimento espetacular.
Em 1968, um comitê presidido por Lord Crowther examina a situação
caótica da legislação creditícia e analisa, ponto por ponto, os impactos do
crédito ao consumidor na sociedade britânica. O relatório termina sua análise
com essas palavras:
“Nossa principal conclusão é que o crédito ao consumidor é benéfico, porque ele contribui utilmente no patrão de vida e no bem estar sócio-econômico da maioria da população britânica”. Para resumir, nós acreditamos que o primeiro princípio da política social deve tratar os usuários do crédito ao consumidor como adultos plenamente capazes de gerenciar seus próprios negócios financeiros e não ter sua liberdade de acesso restringida sob o pretexto de proteger uma pequena minoria que se coloca em dificuldade.” (GELPI, 2000, p. 179)
Publicado em março de 1971, o “Consumer Credit Act”, de 31 de julho
de 1974,foi um texto extremamente complexo e completo que, como seu nome
30
indica, globaliza o acesso ao crédito. Criou um quadro geral regendo o conjunto
dos empréstimos ao consumidor inferiores a 15.000 libras. Regulou o campo
de aplicação cobre as licenças de exploração, o sistema de concessão dos
créditos, o cálculo das taxas de juros, a documentação e a publicidade
destinadas aos consumidores, assim como os procedimentos de arbitragem e
os regulamentos do contencioso. Os decretos para a aplicação desta lei
levaram mais de dez anos para aparecer.
De fato, o papel de integração social do “Consumer Credit” foi também
muito forte na Grã-Bretanha, em períodos diferentes, mas com as mesmas
técnicas e o mesmo equilíbrio legislativo fundamentado por uma forte influência
da proteção aos consumidores. Esta proteção trouxe na sua essência, a moral
das ofertas e o respeito pela vida privada. Não se preocupou em definir a
relação desta ou daquela modalidade, deixando o ajuizamento ao mercado e o
controle dos abusos aos tribunais.
2.4 – Visão francesa do crédito ao consumo
Na França, o crédito ao consumidor se desenvolveu de uma maneira
um pouco envergonhada, limitando sua aplicação nas pequenas lojas que
fizeram dele uma arma contra seus concorrentes. Apesar desse terreno
ideologicamente pouco favorável, esses primeiros movimentos foram os
responsáveis pela criação do crédito moderno ao consumidor surgido no
decorrer da segunda metade do século XIX.
Em 1856, Crépin, filho de camponês, abre em Paris, no Boulevard
Bardès, uma loja de móveis. Em 1865, ele decide sistematizar a venda de
móveis através de carnês. Para obtê-los, o cliente deixa um quarto (1/4) do
valor da compra a ser efetuada e paga o restante com mensalidades. Mais
tarde, Crépin propõe a outros comerciantes a aceitar seus carnês. Ele
regulamenta os comerciantes e recebe uma porcentagem sobre as vendas
como também os ágios dos clientes.
31
Dufayel tem o mesmo perfil. Vindo de Vendée para fazer fortuna no
comércio. Empregado, depois sócio de Crépin, deu ao negócio uma dimensão
inegável. Construiu na Rua Chstiani, o Palácio da Novidade, um grande
magazine fortemente voltado para móveis e equipamentos domésticos. Vendia
com preço mais baixo porque comprava grandes quantidades e facilitava suas
vendas com ajuda do crédito que aperfeiçoava.
O sucesso de Crepín e Dufayel foi evidentemente fundamentado no
mercado de massa. Eles compreenderam que não era possível satisfazer a
população sem colocar à disposição de modestos salários uma maneira de
pagar que lhes permitissem comprar bens que, num primeiro momento, se
revelavam acima de suas posses.
Em meados de 1900, inúmeros magazines em Paris como no interior,
já praticavam a modalidade de venda através dos carnês. No campo, como nos
subúrbios, se houve uma época gloriosa do crédito parisiense, em parte, deve-
se ao sistema Dufayel. Vêem-se mesmo pequenas lojas se reunindo com o
único intuito de juntar um capital que lhes permitissem praticar vendas com
carnês.
Na França, como em outros lugares, o crédito moderno ao consumidor
serviu de ligação entre as necessidades mais fortes e os produtos mais
diversificados.
No começo dos anos sessenta, muitas pessoas ainda reprovavam as
compras a crédito, considerando que aqueles que tomavam emprestado só
poderiam ser miseráveis ou prodígios. Uma parte da opinião pública via o
crédito como uma espécie de enfermidade americana e como uma maneira de
enganar os tolos, um jogo onde só o banco ganhava. Para os moralistas, o
crédito continuava uma praga vergonhosa, incitava a viver acima de suas
posses e a realizar despesas de ostentação e supérfluas. É mais “virtuoso”
poupar “primeiro” que pagar “depois”.
32
Apesar dessas correntes desfavoráveis, a expansão do crédito aos
particulares é praticamente contínua nos trinta anos que se seguem, sem, no
entanto, tirar o atraso em relação a países como os Estados Unidos ou a Grã-
Bretanha. As condições econômicas quase não se prestando a sua proibição
se conciliam a suspeita e a necessidade elaborando uma regulamentação
muitas vezes, incômoda. Nesse setor, a França termina por ultrapassar os
outros países industrializados e por vezes de referência à legislação européia.
Desde 1954, o Conselho Nacional de Crédito regulamenta a duração e
a quantia máxima de crédito com alimentação feita como proteção ao
consumidor. As modalidades normativas dos tetos seriam redefinidas pela lei
Meiertz de 31 de dezembro de 1989. Finalmente, a Lei Scrivener de 10 de
janeiro de 1978, relativa à informação e à proteção dos consumidores no setor
de certas operações de crédito e as Leis de 23 de junho de 1989 e de 31 de
dezembro de 1989, chamadas Leis Neirtz representam hoje o corpo da
legislação básica no qual se encontra hoje o crédito ao consumidor na França.
Estas leis fixam as condições gerais das operações de crédito, e
precisamente, em particular, as disposições concernentes à publicidade sobre
o custo dos créditos a formalidade dos contratos, os prazos de reflexão e
cancelamento oferecidos aos consumidores, o vínculo entre o contrato de
empréstimo e o contrato de venda do material pelo vendedor, a execução do
contrato de crédito (pagamentos antecipados, parciais ou totais, anulação de
indenizações antecipadas, indenizações por atraso, falência do devedor,
competência dos tribunais) assim como mecanismos de renovação de
vantagens permanentes que alguns preferem chamar de “créditos renováveis”
para evitar conotações negativas devidas a atraso no pagamento.
A Lei Neiertz de 31 de dezembro de 1989, também trata da “prevenção
e da regulamentação das dificuldades ligadas ao endividamento privado e
familiar”, agregando a lei da informática e liberalidades ( de 06 de janeiro de
1978) que não é específica, mas trata das listas, cuja consulta é intimamente
ligada à concessão e a recuperação do crédito ao consumidor.
33
Este conjunto de leis fez do consumidor francês um dos mais
protegidos do mundo.
Com cinqüenta anos de atraso em relação a “Russell Sage Foundation”
dos Estados Unidos e uns vinte sobre o “Crowther Report” da Grã-Bretanha, a
França teve regulamentada sua ideologia sobre o crédito.
2.5 – Dimensão brasileira do crédito ao consumidor
A inserção do crédito ao consumo no Brasil tem como ponto de partida
o surgimento dos bancos de dados de proteção ao crédito. Antônio Bertram
Stümer esclarece que, antes dos anos 50, houve notável expansão do sistema
de concessão direta de crédito pelo comerciante, o que gerou a necessidade
de o lojista obter, cada vez mais, um número maior de informações:
“A concessão de crédito era demorada, trabalhosa e complexa. O candidato ao crédito preenchia um longo cadastro de informações, entre elas indicando o armazém onde realizava compras, o seu alfaiate e, eventualmente, outras lojas onde comprava a crédito. A loja, por sua vez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada de informante que [...] percorriam, diária e pessoalmente, os locais indicados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. O setor de crediário dessas lojas pioneiras possuía cadastro de grande número de pessoas, o que fazia com que ficassem, no início de cada manhã, apinhados de informantes de outras lojas em busca de dados e informações dos clientes já por ela cadastrados.” (STÜMER, 1992, p. 59)
Percebeu-se, naturalmente, que a coleta de informações seria mais
ágil, eficaz e barata se exercida por entidade voltada, com exclusividade, para
tal fim. Em julho de 1955, vinte e sete comerciantes reuniram-se em Porto
Alegre, na sede da associação de classe, para fundar o Serviço de Proteção ao
34
crédito – SPC. Poucos meses depois, em outubro de 1955, foi instituído em
São Paulo sistema semelhante. Em 1962, foi a vez de Belo Horizonte.
Todavia, a modernização do crédito brasileiro só veio a ocorrer a partir
da reforma do Sistema Financeiro em 1965. Um dos desdobramentos desta
reforma foi a instituição do crédito direto ao consumidor (CDC), com a emissão
de novos papéis regulamentadores através da resolução n° 45 de 31/12/66 que
obrigava as financeiras a destinar 40% dos seus recursos para o crédito direto
ao consumidor.
A adoção dessa nova política gerou expansão imediata sobre o
movimento dois negócios em geral. No período compreendido entre 1965 e
1975 a demanda por bens de consumo cresceu em média 20% ao ano.
Na mesma linha expansionista, o implemento do Real foi visto pelos
consumidores como uma nova oportunidade de renovar os seus ativos e
retomar a sua qualidade de vida. A grande diferença observada com relação
aos períodos passados era de que, desta vez, não havia escassez de produtos
nas lojas. Pelo contrário, com a abertura comercial e com a taxa de câmbio
supervalorizada a situação era francamente favorável ao consumidor. Sobre
esta fase, relata Belik:
“Os efeitos se fizeram sentir rapidamente. A venda de refrigeradores aumentou em 140% nos três anos posteriores ao início do Real. Da mesma forma, a venda de televisores cresceu 123% e o consumo de cimento saltou 39% no mesmo período. Comparando-se estas taxas com o crescimento da economia como um todo, os sinais eram claros de um surto de consumo limitado. Nesta época, havia o receio por parte das autoridades do governo de que, em termos macro econômicos, a continuidade da explosão de consumo poderia representar até mesmo algum tipo de pressão inflacionária a se manter a mesma capacidade instalada e o mesmo nível de investimento. Os anos de 1995 e 1996 mostraram que nada disso ocorreu.” (BELIK, 1998, p. 3)
35
Por outro lado, como aumento do consumo foi sustentado basicamente
com o aumento de importações e aumento dos juros – condicionados pela
necessidade de atrair capital externo – o aumento do consumo de crédito, hoje,
esbarra em um teto, além do qual não consegue superar, especialmente em
razão da inadimplência do consumidor-tomador. Outrora visto como um
elemento macroeconômico de menor importância, o endividamento do
consumidor assumiu peso cada vez maior na política de crédito, bem como
posição de destaque no judiciário brasileiro, fruto do crescimento no número
dos litígios que versam sobre relações de consumo.
36
CAPÍTULO III
CONTRATOS DE CRÉDITOS AO CONSUMO
3.1 – Tripartição funcional dos contratos
O exame de certos dados de base é essencial para se compreender a
estrutura dos contratos, uma vez que tratam de mecanismos de
regulamentação jurídica das mais variadas operações sócio-econômicas
existentes. Desse modo, é preciso recorrer ao campo da história do
pensamento jurídico para melhor alcançar a compreensão do tema, porquanto,
como leciona Miguel Reale, “toda regra corresponde a uma estrutura de
equilíbrio que, em dada situação histórica e social, se verifica entre um
complexo de fatos e um complexo de valores”. (REALE, 1999, p. 55)
Assim, o contrato surge como um padrão de convivência social, em
outras palavras, uma forma de regulamentação jurídica das operações de
circulação de riqueza. Desse modo, tem-se verdadeira dupla feição: a primeira
de natureza econômica, por se caracterizar como instrumento jurídico que
possibilita e regulamenta o movimento de riquezas dentro da sociedade.
Já a segunda feição, alude às implicações e às conseqüências legais
que o sistema jurídico impõe, na elaboração e estrutura das normas que regem
a matéria, despontando, destarte, sua função jurídica.
Contudo, ao lado dessas funções, é importante destacar também a
função social do contrato, já que ele aproxima os homens pelo acordo de
vontades (princípio consensualista), tornado obrigatório o seu cumprimento. No
dizer de Orlando Gomes, a função econômico-social do contrato foi
reconhecida, ultimamente, como a razão determinante de sua tutela jurídica,
37
portanto o Direito intervém, tutelando determinado contrato, devido à sua
função econômico-social. Em conseqüência, os contratos que regulam
interesses sem utilidade social, fúteis ou improdutivos, não merecem proteção
jurídica, só merecendo os que têm função econômico-social reconhecidamente
útil.
3.2 – Contrato e sua evolução
Ao longo da pretensão de conferir um tratamento exaustivo ao tema,
este item do trabalho enfocará, primeiramente, as origens do conceito no direito
romano até a noção tradicional trazida a partir do código de Napoleão, para a
partir daí delinear as razões de sua crise, cujo resultado culminou com o
ressurgimento do Instituto deduzido da normatização atualmente voltada ao
direito dos consumidores, tendo como paradigma a transformação do próprio
Estado, o qual assumiu preocupações mais voltadas ao coletivo, ou seja, com
o interesse da sociedade, deixando de lado a concepção de contrato como
instrumento de realização meramente individual.
Com efeito, é no direito romano, onde, a princípio, as origens do
contrato são buscadas. Segundo Judith Martins da Costa
“no Direito Romano o termo, como conotação objetiva, era utilizado para designar acordos, reconhecidos como obrigatórios e providos de actio, discernindo-se de outros acordos, não obrigatórios e nomeados como pacta, ou seja, nem todo contrato gerava obrigações no Direito Romano, isto porque para a caracterização da obligatio, era preciso, além do acordo, um fundamento jurídico: a causa civilis”. (DA COSTA, 2003, p. 127)
Sobre esse assunto, Thomas Marky esclarece que é a “causa civilis
que elevava o ato jurídico bilateral a um contractus e só o credor de um tal
contrato tinha à sua disposição uma ação (actio) reconhecida pelo direito
quiritário para constranger o devedor a efetuar a prestação” (MARKY, 1995, p.
35)
38
Assim, o contractus era visualizado como um vínculo objetivo, mais
propriamente servindo para designar as conseqüências do acordo, vale dizer, a
vinculação daí decorrente.
Essa idéia evoluiu a partir dos quatro pactos mais utilizados em Roma
(venda, locação, mandato e sociedade), os quais foram munidos de actio e,
portanto, elevados à categoria de contratos, fazendo surgir os contratos
consensuais, dando início à construção do consensualismo, um dos pilares do
direito contratual liberal.
Não obstante a importância da construção da figura contratual em
Roma, e de a tipologia aí estruturada ter embasado todo o direito contratual
dos ordenamentos jurídicos adeptos da família romano-germãnica, vale frisar,
que o contrato nesse período era visto sob uma óptica objetiva, mais
propriamente para designar as conseqüências do acordo, vale dizer, a
vinculação obrigacional daí decorrente, e não como a manifestação de duas
vontades opostas convergentes ou a expressão da liberdade autodeterminação
individual.
Desse modo, temos que o consentimento e a vontade, enquanto
elementos do conceito de contrato, foram introduzidos a partir do Código
Napoleônico, numa expressão mais subjetiva ou voluntarista, ao qual subjazia
o brocado “qui dit contractue, dit juste”, com a força de uma verdade
indiscutível, colocado aí, em primeiro plano, o aspecto subjetivo do vínculo.
Mais de um século depois, por obra da pandectística alemã, uma outra
noção é atrelada ao conceito de contrato, a de negócio jurídico, cujo grande
paradigma foi o BGB vigente em 1900, o qual mais tarde, por intermédio da
elaboração doutrinária, chegaria ao direito civil brasileiro.
Assim, é com base na idéia de indissociabilidade conceitual de contrato
e autonomia da vontade, a qual funda-se a corrente liberal, é que as
codificações civis do início do século XIX marcam no Código Civil Italiano de
39
1865, o português de 1867, o espanhol de 1889, o BGB de 1896, bem como o
brasileiro de 1916.
Nasce o contrato no sentido moderno. Porém, esse modelo de cunho
liberal, que tem na vontade a única fonte criadora de direito e obrigações,
formando lei entre as partes, bem como a visão do Estado Mínimo, a despeito
de ainda constar na maioria dos códigos civis em vigor, refletindo, na verdade,
um momento histórico que não corresponde mais à realidade atual. O Estado
liberal, com a sua máxima de não intervir nas relações intersubjetivas, incapaz
de resolver os grandes problemas sociais, talvez gerados pela sua própria
abstenção total, deu lugar ao Estado social, o qual mudou a maneira de pensar
o contrato.
Dessa forma, o contrato se transforma para se adequar às exigências
da nova realidade, passando, no dizer da Cláudia Lima Marques,
“de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas” (MARQUES, 2002, p. 101)
Na verdade, as transformações sociais sempre influenciaram o mundo
jurídico. Assim, impulsionado pelas grandes transformações sociais do XX, o
contrato passou, então, a ter a chamada função social, num fenômeno
semelhante ao ocorrido com a propriedade. Essa mudança, onde a noção de
equidade, de boa-fé e de segurança passou a ser o centro de gravidade da
teoria dos contratos, levou à chamada socialização da teoria contratual. Esta
evolução do contrato, produto da transformação e evolução da teoria
contratual, foi muito bem sintetizado por Cláudia lima Marques, segundo a qual:
“A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde à condição social e econômica
40
das pessoas nele envolvidas ganha importância.” (op.cit p. 37)
Assim, entendia-se que a presumida igualdade criada pela autonomia
da vontade e a liberdade contratual era apenas formal, não passando de utopia
impraticável. Sob esta nove idéia, cabia ao Estado promover uma igualdade
rela, substancial, que fosse além daquela que estava apenas preconizada na
ordem jurídica.
Desse modo, percebemos que o contrato se transformou
profundamente, já que precisou se adequar ao novo modo de viver da
sociedade. Nesse sentindo, importante é a opinião de Enzo Roppo:
“O contrato, portanto, transforma-se, para adequar-se ao tipo de mercado, ao tipo de organização econômica em cada época prevalecente. Mas justamente, transformando-se e adequando-se do modo que se disse, o contrato pode continuar a desempenhar aquela que é – e continua ser – a sua função fundamental no âmbito das economias capitalistas de mercado: isto é, a função de instrumento da liberdade de iniciativa econômica. Está agora claro que as transformações do instituto contratual, que designamos em termos de sua objectivação, não contrariam, mas antes secundam, o princípio da autonomia privada, dês que se queira ter deste princípio não noção realista correcta...” (ROPPO, 1988, p. 310)
Uma grande marca da evolução da teoria contratual, em consonância
com a evolução da sociedade, e a conseqüente passagem do Estado Liberal
para o Estado Social, foi a superação do dogma da autonomia da vontade
como o máximo balizador do direito contratual, para a adoção de dois novos
princípios para tal posição – o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da tutela
do hipossuficiente.
Com efeito, tendo em vista a sistematização das idéias aqui
apresentadas, é possível concluir que o conceito e disciplina do instrumento
contratual que eventualmente vislumbramos, com todas as características que
41
lhe são inerentes, são fruto de um grande período de evolução que se inicia na
antiguidade romana e tende a percorrer toda a história da humanidade.
3.3 – Contrato de crédito ao consumidor
Falar de consumidor de crédito pressupõe enquadrá-lo como um
sujeito que obtém recursos em dinheiro como destinatário final, ou seja, para a
sua utilização pessoal. Com efeito, o serviço de prestação de crédito conta com
uma presunção júris tantum de que se trata de uma relação de consumo, em
outras palavras, que o dinheiro sempre será destinado às necessidades
pessoais daquele que tomou o crédito.
Se o crédito for utilizado com um fim pessoal ou familiar, teremos uma
relação de consumo regida pelo Código de defesa do Consumidor. Tratando-se
de uma pessoa física, haverá, segundo a doutrina, uma presunção júris tantum
de utilização não profissional do crédito.
Todavia, se o tomador de crédito for uma pessoa jurídica, então não
haverá uma presunção de utilização profissional do empréstimo. Sendo assim,
a inclusão da pessoa jurídica dependerá da finalidade consignada à relação de
consumo, isto é, da destinação dessa contratação bancária e, a partir daí, da
análise a ser realizada pelo Poder Judiciário da sua vulnerabilidade, que será
perquirida caso a caso.
Desse modo, a definitiva caracterização da relação de consumo é
necessário que o tomador do crédito (consumidor) apresente a característica
de vulnerabilidade.
Para Márcio Mello Casado (CASADO, 2000, p.30) a vulnerabilidade é
uma condição que deve ser pesquisada em diversos momentos obrigacionais:
a) antes da contratação; b) durante a contratação; c) após a contratação.
Dependendo da presença dessa característica em cada processo das
42
obrigações, se aplicará ou não o microssistema consumerista (desde que
presentes os outros requisitos que a lei 8078/90 exige) ou as demais normas
do macrossistema positivo nacional.
A posição apresentada diverge da maior parte da doutrina no que se
refere aos consumidores pessoa física, porquanto a vulnerabilidade é tida
como característica ínsita a qualquer relação de consumo qualquer que seja a
fase da relação contratual.
Além dos consumidores definidos no caput do art. 2°, também o art. 29
do CDC assimilou à proteção do código todas as pessoas determináveis ou
não, expostas às práticas disciplinadas no Capítulo V (práticas comerciais, que
disciplinam a oferta, a publicidade; as práticas comerciais abusivas; a cobrança
de dívidas e os cadastros de consumidores) e no Capítulo VI (Proteção
Contratual).
Esta norma está dirigida aos terceiros atingidos pelo fato danoso ou
simplesmente expostos à sua prática, mesmo que não se consiga apontar,
concretamente, um consumidor que esteja em vias de adquirir ou utilizar o
produto ou serviço. Assim, na hipótese de concessão inadequada de crédito,
não só aquele que tomou o crédito estará legitimado a ingressar com a ação de
indenização, mas também os terceiros prejudicados.
Pode-se concluir que as normas do Código de Defesa do Consumidor
aplicam-se a todas as situações nas quais um crédito é acordado por um
fornecedor a um consumidor (stricto sensu ou equiparados), como nos casos
de empréstimo simples ou vinculados à aquisição de determinado produto ou
serviço, dos chamados cheques especiais, de vendas a prazo com reserva de
domínio, dos cartões de crédito, do crédito imobiliário.
Ao lado do consumidor temos também o fornecedor de crédito, os
quais, em sua maioria, são instituições financeiras. Sobre o tema, não é preciso
fazer qualquer digressão, pois já está pacificado na doutrina e na jurisprudência
43
que todas as operações e contratos bancários se encontram sob o regime
jurídico do Código de Defesa do Consumidor, haja vista que os bancos
exercem uma função tipicamente comercial, segundo a antiga definição do art.
119 do Código Comercial.
”Em suma, os bancos sempre estarão sujeitos ao regime do CDC como fornecedores, pois sua caracterização de comerciante encontra-se descrita no caput do art. 3° do CDC, sendo o § 2°. Do mesmo artigo, quando fala em serviços bancários, apenas uma expressão expletiva do significado do caput”
Nesse mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
precisa que “as relações das instituições bancárias com os usuários dos seus
serviços são reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor, como está
previsto no art. 3°§2°”.
3.4 – Inadimplemento do crédito ao consumo
O credor espera que a obrigação se cumpra espontaneamente, isto é,
que a prestação lhe seja entregue pelo devedor no tempo e lugar devidos. Num
certo sentido, a sociedade como um todo também tem a expectativa de que as
obrigações sejam tempestivamente pagas.
Sobre o tema, observa Fábio Ulhoa Coelho:
“O cumprimento generalizado das obrigações contribui para ampliar o grau de confiança entre pessoas e, conseqüentemente, a sensação geral de segurança. E não se trata apenas de conforto psicológico. Viver num meio em que há elevado nível de cumprimento voluntário das obrigações, além da sensação de segurança, representa pagar menos pelos bens e serviços de consumo e impostos. Onde todos costumam pagar o que devem, isto é, onde o risco de inadimplência é baixo, os credores em geral não precisam embutir nos seus preços uma alta taxa (spread) pra neutralizar os efeitos do atraso
44
ou descumprimento da obrigação.” (COELHO, 2004, p. 165)
A maioria das obrigações é de fato, paga no vencimento por
espontânea iniciativa do devedor. Delas o Direito não cuida. O direito cuida,
assim, das obrigações que não são cumpridas, daquelas em que o devedor
não entrega a prestação ao credor no tempo e lugar devidos.
Surge então o chamado não-cumprimento, inexecução ou
inadimplemento da obrigação, sempre que a respectiva prestação debitória
deixa de ser efetuada nos termos adequados. Este conceito representa,
todavia, um simples ponto de partida, visto que na sua moldura ampla se
incluem várias situações com efeitos jurídicos muito diferentes, fruto das
diversas causas que geram esse comportamento.
Assim, inicialmente, temos conceito proposto por Orlando Gomes:
“Verifica-se o inadimplemento quando o devedor não cumpre a obrigação, voluntária ou involuntariamente. Pode o inadimplemento resultar de fato imponível os devedor ou evento estranho à sua vontade, que determine a impossibilidade de cumprir.” (GOMES, p. 143)
O conceito apresentado atende à origem do inadimplemento, ou seja, a
causa comportamental que propiciou a danificação da prestação obrigacional.
Nessa linha, o inadimplemento é classificado, respectivamente, de culposo ou
fortuito (não-culposo), tomando como referência a conduta do sujeito passivo
da relação obrigacional.
O inadimplemento culposo consiste, pois em síntese, numa omissão.
Ocorre por se abster o devedor do que devia fazer para a satisfação do crédito,
seja deixando totalmente de cumprir a obrigação, seja deixando de cumpri-la
pontualmente, seja cumprindo-a defeituosamente.
45
Já o inadimplemento fortuito é aquele gerado por fato não-imputável ao
devedor. A inexecução decorrente do acaso caracteriza-se pela impossibilidade
da prestação, determinada por evento estranho e superior à vontade do
devedor. Deve tratar-se, obviamente, de impossibilidade superveniente, visto
como, se for originária, a obrigação jurídica será nula. Se a prestação se torna
impossível sem culpa do devedor, o inadimplemento é a conseqüência natural.
Mas é preciso saber o que é impossibilidade em Direito e determinar as
conseqüências jurídicas que a ordem jurídica lhe atribui.
Ocorre que a flexibilidade do conceito de jurídico de impossibilidade
abre margem à insegurança. Para reduzi-la às suas proporções menores, a
doutrina tem-se esforçado por delimitá-lo a processo analítico.
Para o estudo vertente o que interessa é a análise da chamada
impossibilidade econômica. Sob este ângulo, considera-se impossível, a
prestação que exige do devedor gasto absurdo, que o sacrifica inteiramente,
sujeitando-o a perda material intolerável.
A impossibilidade econômica decorre da imoderada agravação da
prestação. É freqüente a confusão entre a inexigibilidade econômica e a
cláusula “rebus sic stantibus”, mas esta implica alteração fundamental na base
objetiva do contrato, devido a circunstâncias extraordinárias que provocam a
excessiva onerosidade da prestação.
Outra distinção comumente referida pelos autores faz-se entre a
impossibilidade objetiva e a subjetiva. A primeira existe igualmente para todas
as pessoas, enquanto a outra diz respeito, pessoalmente, ao devedor. Quem
deixa de cumprir obrigação de fazer por estar acamado, encontra-se
subjetivamente impossibilitado de satisfazer a prestação. Mas se nem ele e
ninguém poderia cumpri-la, nas circunstâncias presentes, a impossibilidade é
objetiva. A impossibilidade subjetiva produz efeito liberatório em alguns casos.
46
Outra perspectiva utilizada para a definição das modalidades de
inadimplemento atende ao seu efeito ou resultado, no que concerne à relação
obrigacional. Sob esta ótica temos o inadimplemento definitivo, o simples
atraso no cumprimento ou o cumprimento defeituoso. Sobre essas
modalidades de não cumprimento obrigacional Mário Júlio de Almeida Costa
explica:
“A primeira hipótese ocorre (inadimplemento definitivo), quando a prestação, que ficou por efectuar na altura exacta, não mais poderá sê-lo, pois tornou-se para sempre irrealizável, mercê da sua impossibilidade material ou da perda do interesse do credor (...) Do não cumprimento definitivo se autonomiza o simples retardamento jurídico na prestação – a que se dá o nome de mora. Neste caso, a prestação ainda poderá ser cumprida, embora não tempestivamente(...)Às duas formas de não cumprimento a que já nos referimos – não cumprimento definitivo e mora – ainda se acrescenta a de cumprimento defeituoso ou imperfeito. Incluem-se nesta modalidade várias hipóteses de ofensa do direito do credor que não cabem; isto é, em que se verifica uma violação de crédito, apesar de o devedor não se encontrar em mora, nem haver o incumprimento definitivo”. (COSTA, 2001, p. 966-968)
Como decorre do exposto, as várias causas do não cumprimento têm
diferentes conseqüências jurídicas: enquanto umas determinam a pura
extinção do vínculo obrigacional, outras constituem o devedor em
responsabilidade indenizatória e conduzem à realização coativa da prestação;
e outras, ainda, deixam inalterado o vínculo obrigacional, sem agravarem a
responsabilidade do devedor, podendo até verificar-se um direito de
indenização deste contra o credor.
47
CAPÍTULO IV
INSTITUTOS JURÍDICOS ANÁLAGOS AO
SUPERENDIVIDAMENTO
4.1 – Superendividamento e Teoria da Imprevisão
A teoria da imprevisão situa-se no campo do intervencionismo
contratual. Para que a prestação assumida num contrato não se tornasse,
algumas vezes, a ruína de um dos contratantes e, quase sempre, o
enriquecimento sem causa do outro, diante de um acontecimento imprevisível e
extraordinário, é que foi criada a cláusula rebus sic stantibus, modernamente
denominada teoria da imprevisão. Trata-se da flexibilização do princípio da
intangibilidade contratual, visando o restabelecimento da comutatividade
(equilíbrio das prestações), por meio de intervenção judicial que tem por
objetivo a revisão da avenca ou sua resolução.
Rogério Ferraz Doninni, ao explicar sobre a rebus sic stambibus,
define-a sob um ponto de vista etimológico, o qual permite uma avaliação mais
precisa de seu significado:
“[...] cláusula é a palavra de origem latina (clausula), e seu significado é conclusão, disposição, fim, o que se decide, o que se conclui. No sentido técnico-jurídico, é o dispositivo convencional inserto num contrato, convênio, tratado ou ato escrito, privado ou público, a que obedecem as partes estipulantes. Rebus é o ablativo do plural res, rei (coisa, acontecimento, fato, circunstância, sorte, estado de coisas). Sic é advérbio, apócope de sice (assim, desse modo, dessa maneira, a tal ponto) stantibus é ablativo plural do particípio presente do verbo intransitivo latino sto, stas, statum, stare (estar, ficar durar, conservar-se, manter-se)...” (DONINNI, 2001, p. 09)
48
Essa cláusula é a abreviação da fórmula contractus qui habent tractum
sucessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur. Sua
tradução é a seguinte: nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo
obrigatório entende-se subordinado à continuação daquele estado de fato
vigente ao tempo de sua estipulação.
Feitas essas considerações de caráter etimológico, absolutamente
indispensável faz-se perquirir sobre o passado para o estudo sobre a Teoria da
Imprevisão. Investigar os acontecimentos de tempos pretéritos é útil para
eliminar certos erros e alguns mitos que envolvem esse tema.
É no direito romano que a idéia de uma cláusula tácita de imprevisão
nasce. Porém, alguns doutrinadores afirmam que o documento mais antigo que
tangencia o tema é a lei 48 do Código de Hamurabi, a qual já trazia latente a
noção veicula na teoria da imprevisão: “se alguém tem um débito a juros, e
uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água
não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor,
deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”.
Anísio José de Oliveira, ao tratar da origem histórica da rebus stantibus
afirma que, embora os romanos tenham esboçado a idéia de uma cláusula de
imprevisão, nunca chegaram a aplicá-la, porque as condições da época não
autorizavam. Assim, é na Idade Média que a doutrina imputa a sistematização
da teoria, cuja aplicação ressurge após a Primeira Guerra Mundial, em razão
do desequilíbrio trazido pela conflagração aos contratos de longo prazo.
Em 1918 a França promulgou uma lei excepcional em relação ao
conteúdo do Código de Napoleão, que visava especificamente a atender às
modificações imprevistas no meio social e econômico decorrentes da Guerra.
Tal lei, conhecida como Loi Failliot, permitiu a resolução de alguns contratos,
considerado aqueles cujo adimplemento, no estado de guerra, geraria para um
dos contratantes ônus excessivamente elevado, se a importância devida
superasse em muito as previsões da época da contratação.
49
Com efeito, após a Primeira Guerra Mundial a instabilidade econômica
mundial fez ressurgir a cláusula rebus sic stantibus, que, por obra dos
tratadistas do século XIX, já era conhecida como teoria da imprevisão.
A esse respeito, preleciona Miguel Maria de Serpa Lopes:
“...a imprevisão consiste, assim, no desequilíbrio das prestações sucessivas ou diferidas, em conseqüência de acontecimentos ulteriores à formação do contrato, independentemente da vontade das partes, de tal forma extraordinários e anormais que impossível se tornava prevê-los razoável e antecedentemente. São acontecimentos supervenientes que alteram profundamente a economia do contrato, por tal forma perturbando o seu equilíbrio, como inicialmente estava fixando, que se torna certo que as partes jamais contratariam se pudessem ter podido antes de antever esses fatos. Se. Em tais circunstâncias, o contrato fosse mantido, redundaria num enriquecimento anormal, em beneficio do credor, determinando um empobrecimento anormal, em beneficio do credor, determinando um empobrecimento da mesma natureza, em relação ao devedor. Conseqüentemente, a imprevisão tende a alterar ou excluir a força obrigatória dos contratos...” (LOPES, 1991, p.69)
Não é qualquer contrato nem qualquer situação que possibilita sua
explicação. Em primeiro lugar, devem ocorrer acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, os quais “devem atingir uma camada mais ou menos ampla da
sociedade. Caso contrário, qualquer vicissitude na vida particular do obrigado
serviria de respaldo ao não-cumprimento da avença.
Um fato será extraordinário e anormal para o contrato quando se
afastar do curso ordinário das coisas. Será imprevisível quando as partes não
possuírem condições de prever, por maior diligência que tiverem. Não é
possível atribuir a qualidade de extraordinário ao risco assumido no contrato
em que estavam cientes as partes da possibilidade de sua ocorrência.
50
Tomemos uma hipótese recente de aplicação desta teoria. Há pouco
tempo, noticiou-se uma grave crise financeira marcada pela fuga expressiva de
investimentos estrangeiros em nosso país, o que acarretou a alta explosiva da
taxa do dólar. Muitos contratos para a aquisição de bens móveis duráveis
(automóveis, por exemplo), utilizavam indexadores atrelados à variação do
dólar, para a atualização das parcelas devidas pelo consumidor. Ora, em
função da alta imprevisível do dólar, uma vez que a majoração operouse de
forma desarrazoada, muitos consumidores invocaram a teoria da imprevisão
para obter a revisão judicial do contrato, com o escopo de se reequilibrar o eixo
obrigacional da avença evitando, com efeito, o indevido enriquecimento do
credor.
Assim, temos que a aplicação da Teoria da Previsão pressupõe a
materialização de alguns pressupostos:
A) a alteração radical no ambiente objetivo existentes ao tempo da
formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis;
B) onerosidade excessiva para o devedor e não compensada por
outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda esperáveis, diante dos
termos do ajuste;
C) enriquecimento inesperado e injusto para o credor, como
conseqüência direta da superveniência imprevista.
Quanto aos efeitos da teoria da imprevisão, Zaki anota que nem
sempre a resolução do contrato é a melhor solução, uma vez que sendo
possível e razoável, poderá o juiz revisar os termos da avença, adaptando-a as
novas condições fáticas.
Fixadas tais premissas, duas importantes advertências devem ser
feitas. Primeiramente, cumpre lembrar que a teoria da imprevisão não aboliu
simplesmente o princípio da força obrigatória dos contratos, nem permitiu que
51
se pretendesse a resolução ou revisão judicial do negócio, simplesmente
porque a execução ficou mais onerosa, dentro da previsibilidade natural inserta
na álea de todo o contrato, ou seja, não se admite a aplicação da teoria
simplesmente porque a parte fez um mau negócio (risco previsto).
A segunda observação que merece destaque é um erro muito comum
em confundir-se a teoria da imprevisão com as hipóteses de caso fortuito ou
força maior. A teoria pressupõe a superveniência de fato imprevisto que
dificulta excessivamente a prestação de uma das partes, impondo, como
regra, a revisão das cláusulas contratuais; ao passo que o caso fortuito e a
força maior ocasionam a impossibilidade absoluta no cumprimento da avença,
determinando a extinção do contrato, a teor do art. 393 do CC.
Depois de fixados os pontos fundamentais da Teoria da Imprevisão,
cumpre analisá-la em sua esfera de realização positiva.
O Código Civil de 1916 não consagrou, de modo expresso e em
capítulo próprio a teoria da imprevisão como regra geral de revisão dos
contratos, embora haja consignado, segundo a doutrina, em alguns dispositivos
esparsos, aplicações particulares da teoria (ex.: no Direito de Família: a
alteração da situação econômica do alimentante e do alimentando autoriza a
revisão da pensão alimentar – art. 401, CC; no Direito Obrigacional, ao credor
assiste o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no
contrato: III – se cessarem, ou se tornarem insuficientes as garantias do débito,
fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las – art. 954,
CC).
Já o novo Código Civil, fugindo do individualismo acentuado, sedimenta
idéias como a função social do contrato, sob a influência de valores como a
boa-fé e probidade, os quais serviram de terreno fértil para a definitiva
positivação da teoria da imprevisão no ordenamento civil brasileiro.
52
Assim, atendendo a reclamos da doutrina e atento à mais recente
jurisprudência, o Código Civil previu expressamente a teoria da imprevisão nas
relações civis, em consonância com o que já preconizava a doutrina e
jurisprudência mais autorizadas.
No Direito Público, a consagração da teoria da imprevisão é
amplamente admitida pela doutrina, no que tange aos contratos
administrativos, com vistas á preservação do equilíbrio contratual (art. 65, II, d,
da Lei n° 8666/93).
Finalmente, também o Código de Defesa do Consumidor consagra a
possibilidade de modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam
prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas (art.6°, V, do CDC).
Frise-se, em linha de princípio, que respeitável corrente doutrinária não
reconhece a perfeita adequação desta norma aos pressupostos gerais da
teoria da imprevisão, uma vez que não faz referência à imprevisibilidade do
acontecimento.
E é neste aspecto a diferença valorativa entre a teoria da imprevisão e
a hipótese revisional por superendividamento do consumidor, justamente
porque o instituto sob análise na presente dissertação alinha-se melhor a teoria
da onerosidade excessiva, consagrada na lei n° 8078/90, a qual admite a
revisão contratual em termos menos rígidos do que os da teoria da imprevisão,
em atenção à hipossuficiência do consumidor.
Seguindo a linha de pensamento de Nelson Nery Jr., verdade é que no
sistema do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da obrigatoriedade do
contrato (pacta sunt servanda) não atinge de modo integral o consumidor, nem
o próprio fornecedor. O primeiro, por força do art. 6°, V, do CDC, que consagra
a possibilidade de revisão do contrato; o segundo, por força do art. 51, § 2°, do
CDC, que permite a resolução – não a revisão – do contrato, quando, da
53
nulidade de uma cláusula, apesar dos esforços de integração do contrato,
decorrer ônus excessivo para qualquer das partes.
A esse respeito, João Batista de Almeida conclui que
“[...] pela sistemática do Código de Defesa do Consumidor, busca-se garantir a conservação do contrato, de tal sorte que, expurgado das cláusulas abusivas, tenha condições de sobreviver e ser cumprido pelas partes, já que restabelecido o equilíbrio contratual. Caso não seja possível restabelecer-se esse equilíbrio, apesar dos esforços de integração, pois que o ônus excessivo terá que ser suportado por uma das partes, nessa hipótese permite o Código de Defesa do Consumidor a resolução do contrato (art. 51, § 2°) [...].” (ALMEIDA, 2000, p. 33)
Assim, não sendo possível a composição da lide e nem o caso de
nulidade incontornável, poderá o juiz, por força do poder revisionista que lhe é
conferido, em defesa do direito do consumidor (art. 6°, V), prolatar sentença
constitutiva para rever o eixo obrigacional do contrato, alterando a base
normativa da avença, inclusive quando este eixo é deslocado em razão do
superendividamento.
4.2 – Superendividamento e Lesão
A lesão é mais um antigo instituto que sofreu repúdio do Racionalismo
e do Liberalismo, sendo excluído de diversas codificações oitocentistas, o que
ocorreu também no código civil de 1916.
No dizer de Otavio Luiz Rodrigues Junior a lesão pode ser definida
como:
“[...] um vício mediante o qual o contratante experimenta um prejuízo, quando, em contrato comutativo, não recebe, da outra parte, valor igual ao da prestação que forneceu. É o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resulte da desproporção existente entre as
54
prestações das duas partes [...].” (RODRIGUES JR, 2002, p. 98)
Relata-se que a lesão é um dos institutos jurídicos que remonta ao
Direito Romano: “na fase imperial do ius romanum é que se aponta o
monumento fundamental do instituto da lesão”.
Sobre o surgimento deste instituto, Fabiana Rodrigues Barletta afirma
que ele está relacionado a dois fragmentos do Código do Imperador Justiniano,
que faziam menção a duas Constituições, de Diocleciano e Maximiliano,
prendendo-se especificamente a um texto que, ao responder uma consulta
realizada por Lupos, dizia:
“...Se tu ou teu pai houver vendido por preço menor uma coisa de maior preço, é equitativo que, restituindo tu o preço aos compradores, recebas o fundo vendido intercedendo a autoridade do juiz, ou, se o comprador preferir, recebas o que falta para o justo preço. Menor porém presume-se ser o preço, se nem a metade do verdadeiro preço foi paga....” (BARLETTA, 2002, p. 136)
A lesão é tratada pelo Código como defeito do negócio jurídico,
podendo gerar a anulabilidade do negócio na forma do seu artigo 171, II. O
Código de Defesa do Consumidor também contém positivada a lesão. Trata-se,
porém, de conceder efeitos diversos a esse instituto nas três vezes em que o
menciona, embora não se utilize expressamente do termo lesão.
A lesão está contida na primeira parte do inciso V do artigo 6°. do CDC,
razão pela qual referida lei concede ao consumidor lesado o direito e modificar
as cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.
Está contida também no artigo 30, V, que veda ao fornecedor de
produtos ou serviços exigir do consumidor vantagem manifestamente
excessiva, e, por fim, está contida na regra do artigo 51, IV, que dispõe serem
nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos ou serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
55
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. Estabelece, ainda, o § 1°. Desse
mesmo artigo os casos em que se presume a vantagem, sem desconsiderar,
contudo, outras possíveis presunções.
Feitas essas considerações, cumpre agora efetuar apenas ao
regramento previsto na primeira parte do inciso V do artigo 6°. do CDC
algumas observações, o qual cuida da modificação de cláusulas contratuais
que estabeleçam prestações desproporcionais (a lesão), a fim de indicar em
que ponto ele difere da revisão contratual por fatos supervenientes que tornem
as prestações excessivamente onerosas.
Sobre o assunto, Fabiana Rodrigues Barletta afirma:
“[...] a lesão ocorre no momento da formação do contrato, no momento em que as prestações desproporcionais, que oneram excessivamente o consumidor, são estabelecidas. Assim, a desproporção entre as prestações deve verificar-se no momento do contrato e não posteriormente. Pois, se naquele instante não houve disparidade entre os valores, inocorreu a lesão [...]” (op cit p. 6)
Caio Márcio da Silva Pereira, ao analisar o elemento objetivo da lesão,
também assevera:
“[...] E tal desproporção somente as há de aferir ao tempo mesmo do contrato, o que é da maior importância, porque as condições externas, como por exemplo a valorização natural da coisa, pode ao fim de pouco tempo criar um desequilíbrio, inexistente sem dúvida ao tempo do negócio, mas que surgiu ulteriormente [...]” (PEREIRA, 1993, p.75)
Portanto, o artigo sob análise concede ao consumidor dois direitos
baseados nos mesmo fundamento axiológico da preservação do contrato, com
base nos princípios do Código do Consumidor e mormente no princípio
constitucional de defesa do consumidor. O primeiro direito é o de modificar
56
cláusulas contratuais quando, no momento da formação do ajuste, tiver
ocorrido a lesão. O segundo direito é o de revisar prestações que, no momento
da celebração do contrato, não se mostram lesivas, mas que, por motivos
supervenientes ao contrato, prejudicaram a manutenção do vínculo contratual,
essa é a hipótese lesiva que caracteriza o superendividamento.
4.3 – Superendividamento e Concordata
A concordata apresenta-se no mundo jurídico como um instituto do
Direito Falimentar, mais suave que a falência, mas com o escopo de proteger o
crédito do devedor comerciante e a recuperação imediata da situação
econômica em que se encontra temporariamente.
Na pesquisa da origem da concordata, é possível deparar-se com
institutos no Direito Romano bem semelhantes. Dentre esses institutos
podemos citar: a moratória imperial, a moratória convencional dada aos
credores e os pactos firmados entre credores que perdiam parte do crédito ou
que acusassem a diminuição proporcional nos seus créditos.
Contudo, a concordata é o instituto de criação falimentar aplicada
principalmente na Idade Média. Chegou ao Brasil através do direito português,
conseqüência das Ordenações do Reino, sendo mais tarde incorporada no
Código Comercial Brasileiro de 1850, o qual dispunha de artigos regulando a
concordata como forma de suspender a falência.
É na verdade, um favor legal para salvar o empresário honesto e
gerador de emprego e renda, que por certo lapso temporal se ache cheio de
dívidas a serem pagas. Com efeito, o ordenamento jurídico faculta-lhe um
benefício, como forma de evitar os percalços de falência, justamente para
evitar a quebra da empresa, a qual representa um dos principais propulsores
para a geração de riquezas para qualquer país.
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Segundo o dicionário Aurélio, concordata é o “benefício concedido por
lei ao negociante insolvente e de boa-fé para evitar ou suspender a declaração
de sua falência, ficando ele obrigado a liquidar suas dívidas segundo for
estipulado pela sentença que concede o benefício”.
Em linguagem jurídica, concordata é “o instituto que objetiva regularizar
a situação econômica do devedor comerciante, evitando (concordata
preventiva), ou suspendendo (concordata suspensiva), a falência”.
Para uns doutrinadores, trata-se de um favor legal, como diz Fábio
Ulhoa Coelho, para outros como Sampaio de Lacerda é um ato processual
onde o devedor propõe em juízo uma forma mais justa de pagar aos credores
para evitar ou suspender a falência.
Enfim, concordata é uma pretensão jurídica objetivando uma dilação de
prazo para o pagamento dos credores, visando uma reorganização e uma
reestruturação econômica e financeira da empresa. Não se trata de um acordo
entre devedor e credores, mas de uma demanda, um remédio legal e jurídico,
um favor legal concedido ao empresário honesto e de boa-fé, em virtude dos
ricos que envolvem a atividade.
Para se descobrir a natureza jurídica da concordata, é mister efetuar
um retrocesso ao Direito Romano. Em Roma as moratórias eram feitas de
forma convencional com os credores, onde esses poderiam perder parte do
crédito, diminuir seus créditos, tudo realizado perante o pactum. Assim, a
configuração clássica da concordata era convencional, ou seja, realizada
mediante acordo entre as partes.
Os doutrinadores modernos concluem que não há contrato na
concordata, mas uma pretensão jurídica, um favor ou faculdade legal da
utilização da concordata. Não se trata de um negócio jurídico, porém de um
direito de pleitear a prestação jurisdicional do estado para conceder uma forma
de viabilizar a reestruturação econômica e financeira do devedor.
58
Possui legitimidade ativa exclusiva para requerer a concordata o
devedor que seja empresário, ou seja, não podem pleitear o benefício o
devedor civil e as sociedades civis. No dizer de Fábio Ulhoa Coelho, o
“exercente da atividade civil, ainda que, em tese, preencha os mesmos
requisitos da lei falimentar, não tem acesso ao favor legal. Trata-se de uma das
últimas manifestações, no direito brasileiro, da teoria dos atos do comércio.
Para ter acesso à concordata, deve o empresário atender a certos
requisitos da lei. Tais requisitos são de duas ordens: os gerais, pertinentes
tanto à concordata preventiva quanto à suspensiva, e os específicos, relativos
apenas a uma dessas modalidades.
O instituto da concordata pode oferecer três efeitos importantes, a
saber: o remissório, o dilatório e o misto.
A concordata é remissória, quando é requerida visando o pagamento
dos credores tendo em vista a relativa composição do percentual dos créditos a
serem satisfeitos. É dilatória, quando o devedor faz a proposta de um prazo
mais longo para saldar suas obrigações de forma integral aos débitos
quirografários. E, finalmente, é mista quando o devedor propõe um percentual
para o pagamento de suas dívidas e uma dilação de prazo para o pagamento
dos credores quirografários.
Além disso, a concordata possibilita ao devedor empresário, ora
concordatário, a livre administração dos seus bens, diferentemente da falência
que lhe priva desta administração. Com isso, o concordatário pode continuar
administrando pessoalmente o seu negócio.
Vê-se que o status adquirido pela concordata é o mesmo pretendido
pelo instituto do superendividamento, qual seja, salvar o consumidor honesto,
assim como a concordata salvou o empresário com o mesmo perfil, de
eventuais transtornos causados por uma falência da sua capacidade de
consumo indesejada.
59
O fundamento é simples: aquele que se encontra temporariamente
indicado não merece uma medida tão violenta como a insolvência civil. Por
isso, o ordenamento jurídico deve dar-lhe a faculdade de utilizar o
superendividamento como uma forma de evitar esta situação que propicia a
total exclusão do mercado de consumo.
4.4 – Superendividamento e Insolvência Civil
O inadimplemento da obrigação pode ter por motivo a incapacidade
patrimonial do devedor honrar todas as suas dívidas. Se em seu patrimônio o
passivo superar o ativo (quer dizer, seu patrimônio líquido é negativo), o
devedor, cedo ou tarde, começara a ter dificuldades para pagar os credores.
Costumam, então, suceder-se várias inadimplências, uma atrás da outra. Este
fato jurídico, qual seja, ter dívidas que superam o valor dos bens, autoriza os
legitimados (em geral os credores) a requere, em juízo, a declaração de
insolvência do devedor.
A declaração de insolvência é tratada tanto no Código Civil como no
Código de Processo Civil, podendo ser definida como um concurso de
credores, ou seja, uma execução da qual participam todos os titulares de
crédito contra o mesmo executado (insolvente) e que alcança a totalidade dos
bens do patrimônio deste. Trata-se, na verdade, da hipótese de falência da
pessoa natural.
Claramente, o instituto do superendividamento tem como objetivo evitar
que o consumidor endividado tenha declarado sua insolvência civil, permitindo
a manutenção de sua capacidade de consumo e o direito de administrar e
dispor de seus bens, até a liquidação total de seu passivo. Esse é o principal
traço distintivo dos institutos, justamente porque na declaração de insolvência a
administração e a disposição negocial dos bens são removidos do poder do
endividado, passando à custódia e responsabilidade de um administrador.
60
CAPÍTULO V
CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO
SUPERENDIVIDAMENTO
5.1 – Natureza Jurídica do Superendividamento
O estudo do superendividamento, por tratar-se de conceito pouco
explorada pela ciência dogmática do direito, aparece sob as mais diversas
rubricas, as quais, muitas vezes, dificultam a compreensão de sua unidade
lingüística. Tal fato, por si só, justifica uma análise semântica preliminar antes
do estudo de sua natureza jurídica, porquanto a determinação do correto
entendimento de uma expressão, ou seja, do signo lingüístico, tem como
objetivo identificar as condições de decibilidade de conflitos e o seu campo de
inserção social.
Pois bem, o aspecto onomasiológico da palavra superendividamento,
isto é, o seu uso corrente para a designação de um fato, traz a percepção de
um estado de passividade obrigacional. Nesse sentido, superendividado é
aquele que possui muitas dívidas, é aquele que compõe o pólo passivo de
diversas prestações, podendo ou não vir a inadimpli-las.
Todavia, é fácil notar que o aspecto onomasiológico do
superendividamento não é um problema em si mesmo. Isso é assim porque, se
ele ocorrer em um contexto de crescimento econômico, de estabilidade do
emprego e, sobretudo, se não atingir camadas sociais com rendimentos
próximos do limiar de pobreza, é apenas um processo de antecipação de
rendimentos, contribuindo para o aumento de bem estar das famílias.
61
Desse modo, a expressão superendividamento do consumidor passará
ter relevância jurídica quando a idéia de passividade obrigacional for agregada
ao fenômeno do inadimplemento obrigacional, porém não de uma maneira
eventual, ou seja, a falta de cumprimento de uma obrigação aqui e acolá, pois
esta questão está inserida no estudo da teoria geral da inexecução
obrigacional, cujas regras e conseqüências jurídicas estão inseridas nos artigos
389 a 420 do Código Civil.
Assim, as hipóteses de inadimplência obrigacional estarão afetas à
idéia de superendividamento, mais precisamente ao aspecto jurídico-
semasiológico desse termo, quando identificar um estado em que o
consumidor, como já explicitou Maria Manuel Leitão Marques, “se vê
impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto das
suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que o não possa
fazer no momento em que elas se tornarem exigíveis”.
Contudo, a lição da doutrinadora portuguesa não é suficiente para
determinar a natureza jurídica do superendividamento, porque a compreensão
desse instituto demanda um processo hermenêutico que parte do conceito de
animal laborans introduzida por Hannah Arent, justamente porque ele, assim
como o consumidor superendividado, é movido por uma necessidade, qual
seja, a manutenção de sua sobrevivência social.
A sociedade dominada pela idéia do animal laborans, ou seja, a
sociedade de operários ou sociedade de consumo, é aquela que impõe uma
mentalidade massificada que uniformiza coisas e seres humanos para, depois,
desvalorizar tudo, transformando coisas e homens em bens de consumo, isto
é, bens não destinados a permanecer, mas serem confundidos com o próprio
sobreviver.
Assim, ciente da descartabilidade social do consumidor,
superendividamento não pode ser encarado meramente como um estágio de
inadimplência obrigacional, mas sim como um status de uma pessoa dotada de
62
uma carência de necessidades (comer, viver, vestir-se, morar etc.)
instrumentalizadas através do crédito ao consumo que são reveladoras de
interesse e proteção jurídica.
Contudo, esses interesses, especialmente nas relações sociais com os
credores, encontram-se incompatíveis, exigindo-se fórmulas capazes de
harmonizá-las ou de resolver o conflito, tendo em vista o sentido e a
importância da manutenção do consumidor na ordem econômica. Desse modo,
a essência da tutela jurídica do superendividamento impõe aos
credores/fornecedores solidarizarem-se aos consumidores, pois na relação
obrigacional do consumo de crédito existem aspectos importantes da vida
humana, desse modo a proteção à autonomia privada deve ser menor quando
estiverem em jogo bens essenciais para a vida humana com dignidade,
justamente o caso do direito ao acesso do crédito ao consumo.
Conseqüentemente, a natureza do superendividamento também está
ligada à eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, a
vinculação dos particulares, ou das entidades privadas, ao direito fundamental
de acesso ao crédito pelo consumidor. Entretanto, a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações do consumo de crédito envolve uma ponderação de
interesses, em que, no outro lado da balança (do fornecedor), quase sempre
vai figurar alguma emanação de autonomia privada, entendida em sentido
amplo.
Portanto, para conferir maior previsibilidade e reduzir as margens de
arbítrio na ponderação judicial de interesses ligados à aplicação de direitos
fundamentais na relação entre particulares, é importante delinear alguns
standarts. Ao tratar do consumo de crédito o superendividamento é um deles,
pois é um parâmetro sócio-jurídico apto a mensurar a assimetria da relação de
consumo creditício. Sobre alerta Daniela sarmento que a assimetria de poder
numa determinada relação “tende a comprometer o exercício da autonomia
privada da parte mais fraca, expondo a um risco maior seus direitos
fundamentais. Por isso, quanto mais a relação for assimetria, maior será
63
vinculação da parte mais forte ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela
da autonomia privada”.
Nestas ponderações, outro fator relevante para determinar a natureza
das questões sobre as quais gravitam as hipóteses que geram o
superendividamento é a essencialidade dos bens que foram instrumentalizados
pelo crédito ao consumo, visto que a proteção da autonomia privada será
maior, quando estiverem em jogo bens considerados supérfluos para a vida
humana, e menor quando o caso envolver bens essenciais para a dignidade da
pessoa.
Resumidamente, a natureza jurídica do superendividamento do
consumidor, ou seja, a essência da proteção jurídica desse status, decorre da
necessidade de cooperação social dos agentes da ordem econômica, para
garantir a manutenção digna da capacidade de crédito do consumidor, crédito
este visto como um instrumento de acesso aos bens para sua sobrevivência
social mínima. Noutras palavras, o superendividamento é um standart jurídico
que permite a correção da assimetria de uma ou diversas relações jurídicas
contraídas pelo consumidor, em razão da existência de um conjunto de dívidas
estruturais ajustadas de boa-fé, capazes de ameaçar ou lesionar sua dignidade
pessoal.
5.2 – Incidência do superendividamento
O superendividamento do consumidor tem incidência em qualquer
contrato de consumo oneroso, especialmente aqueles que envolvem outorga
de crédito.
Por contrato de consumo entendem-se todos aqueles submetidos à
ratione personae do CDC, aplicando-se a hipótese de superendividamento
somente aos contratos onde está presente um consumidor ante um fornecedor
de produtos ou serviços.
64
Ao explicitar o tema, Claudia Lima Marques aponta que:
“Denomina-se contratos de consumo todas aquelas relações contratuais ligando um consumidor a um profissional fornecedor de bens ou serviços. Esta nova terminologia tem como mérito englobar a todos os contratos civis e mesmo mercantis, nos quais, por estar presente em um dos pólos da relação um consumidor, existe um provável desequilíbrio entre os contratantes. Este desequilíbrio teria reflexos no conteúdo do contrato, daí nascendo a necessidade do direito regular estas relações contratuais de maneira a assegurar o justo equilíbrio dos direitos e obrigações das partes, harmonizando as forças do contrato através de uma regulamentação especial.” (op. cit. p. 252)
Além da doutrina, a jurisprudência brasileira, ainda que de maneira
oblíqua, aponta no mesmo sentido de resguardar a aplicação do
superendividamento apenas nos contratos que haja plena caracterização da
relação de consumo, sob pena de não incidência da hipótese do instituto,
conseqüentemente exclusão da possibilidade do pleito revisional sob este
argumento.
Também é a onerosidade do negócio é um pressuposto do
superendividamento, uma vez que este instituto tem como escopo a
remodelagem de uma ou mais relações jurídicas estabelecidas pelo
consumidor que inviabilizam ou inviabilizarão a manutenção de sua capacidade
de consumo, em razão de uma inaptidão no adimplemento da ou das
prestações debitórias contraídas.
Como contrato oneroso, ou a título oneroso deve-se entender todos
aqueles que se realizam para a utilidade de ambas às partes. Ao explicitar o
tema, Mário Júlio de Almeida Costa alerta que os contratos são gratuitos ou
onerosos consoante originem “de acordo com a intenção das partes, vantagens
pra uma só delas ou para as duas. Atende-se à existência de um espírito de
liberdade (animus donandi, animus beneficiandi). Mas os contratos onerosos
não supõem forçosamente um perfeito equilíbrio objetivo ou absoluta
65
contrapartida econômica das prestações. O que importa é a equivalência
subjetiva, quer dizer, a que corresponde à avaliação das vontades dos
contratantes.
Sendo assim, sem onerosidade, não haverá paridade jurídica que
qualifica os contratos pariéticos, descabendo falar em simetria ou assimetria
entre a posição do fornecedor e o consumidor superendividado. Tal fato, por si
só, exclui do âmbito de aplicação do instituto os contratos gratuitos porque sua
vontade inicial, como, por exemplo, de doar ou emprestar dinheiro sem juros,
pressupõe uma liberdade ou um sacrifício, nulificando qualquer idéia de
equilíbrio, tornando impossível à intervenção do Poder Judiciário para resolver
ou rever o contrato gratuito.
5.3 – Da forma de argüição do superendividamento
A situação do superendividamento do consumidor deve ser
necessariamente reconhecida pelo Poder Judiciário, pelo menos no atual
momento da evolução desse instituto no Brasil, sob pena de não se
caracterizar um pressuposto formal da teoria. Se o consumidor
superendividado não demanda, confiante na evidência de seu estado,
fatalmente ingressará na categoria de infrator contratual, em face da
inexecução culposa das obrigações.
No atual estágio que se encontra a argüição do superendividamento no
Brasil, sua aplicação prática muito se assemelhará à forma revisional que toma
como base argumentativa à teoria da imprevisão, daí porque falar-se,
necessariamente, da impossibilidade de dispensar a tutela jurisdicional do
estado. Neste sentido, o acórdão abaixo explicita bem a jurisprudência sobre o
tema:
CONTRATO – Teoria da imprevisão – Oneração excessiva da prestação contratual derivada de
66
inesperada e imprevisível alteração da situação de fato contemporânea à celebração. Circunstância que não o dissolve de pleno direito ou autoriza o prejudicado a alterar unilateralmente seu conteúdo – Imprescindibilidade de intervenção judicial para apuração dos requisitos indispensáveis à aplicação da teoria revisionista – Recusa ilegítima do contratante em receber o valor contratualmente ajustado (RT 643/90 – TJSP)
Todavia, a solução de controvérsias que envolvam a aplicação do
instituto do superendividamento no Brasil não deve limitar-se a uma argüição
num pleito de natureza revisional. Isso é possível graças à inserção no
ordenamento jurídico brasileiro da chamada recuperação judicial e extrajudicial
por meio da lei 11.101/05, instituto que se encontra numa zona híbrida, ou seja,
a solução é tanto pelas partes como pelo Judiciário.
O mecanismo da recuperação extrajudicial do devedor empresário
surge, justamente, para, conforme a dicção do art. 47 da referida lei, “viabilizar
a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de
permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores, e
dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa,
sua função social e o estímulo á atividade econômica”.
Vê-se, claramente, que a essência do instituto recuperação judicial e
extrajudicial muito se assemelham à natureza jurídica do superendividamento,
daí porque se falar na aplicação dos dispositivos que regulam essas matérias
numa relação de consumo.
Esta aplicação extensiva do tema da recuperação judicial e extrajudicial
conduz a uma interpretação sistemática da ordem econômica. Esta forma de
interpretação, como leciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior, permite a ampliação
do “sentido da norma para além do contido em sua letra. Isso significa que o
intérprete toma a mensagem codificada num código forte e a decodifica
conforme um código fraco. Argumenta-se, não obstante, que desse modo
estará respeitada a ratio legis, pois o legislador (obviamente o legislador
67
racional) não poderia deixar de prever casos que, aparentemente, por uma
interpretação meramente especificadora, não seriam alcançados.
Nessa proposta de interpretação extensiva da nova Lei de Falência
submeter-se-ia ao regime de recuperação judicial e extrajudicial, além dos
empresários e das sociedades empresárias (art. 1° da Lei 11.101/05), o
consumidor superendividado, justamente porque a recuperação dos primeiros
depende intrinsecamente da capacidade creditícia do último. Tal assertiva, num
primeiro momento, pode causar certa estranheza, justamente porque as
normas jurídicas destinadas aos empresários são aplicadas restritivamente, ou
seja, aquele que não é considerado empresário não pode gozar dos privilégios
legais da classe.
Porém, se a questão for analisada sob óptica constitucional (art. 170 e
seguintes), tomando a ordem econômica como um todo interdependente, é fácil
perceber que a criação e a aplicação de mecanismos legais para a
manutenção e a recuperação do crédito do consumidor, aptos a propiciar um
ambiente capaz de estabilizar a capacidade de adimplemento das obrigações
contraídas com seus credores (empresários fornecedores), é a única saída que
o ordenamento jurídico dispõe para garantir, efetivamente, a livre iniciativa e a
livre concorrência, noutras palavras, é o alimento que o mercado dispõe para a
criação e manutenção da fonte produtora, dos empregos dos trabalhadores e
da atividade empresarial, e também é o único recurso que dispõe o empresário
para viabilizar a superação de uma crise econômico-financeira.
Sem recuperação do crédito do consumidor superendividado não há, e
nunca haverá qualquer possibilidade de recuperação do empresário ou da
sociedade empresária, não teremos a preservação da empresa e muito menos
estímulo à atividade econômica. Hoje, mais do que nunca, a inserção do
consumidor no âmbito de aplicação da recuperação judicial e extrajudicial é
necessária, pois não existem regras específicas de recuperação de crédito do
consumidor endividado no CDC com a mesma amplitude que as dispostas na
Lei n° 11.101/05, especialmente porque o disposto no inciso V do art. 6° do
68
referido Código é aplicado de maneira muito tímida nos caos de revisão e
nunca como hipótese de recuperação do crédito.
5.4 – Do momento da argüição do superendividamento
A hipótese mais concreta de aplicação do instituto do
superendividamento, qual seja o pedido de revisão judicial dos contratos de
crédito, poderá ocorrer antes como depois de atestado que o consumidor se
encontra superendividado.
Desse modo, ao tratar do pressuposto formal do momento da argüição,
percebe-se uma clara distinção entre o instituto do superendividamento e da
teoria da imprevisão. Justamente porque a hipótese revisional perfilhada pela
imprevisão deve ser anterior à ocorrência de qualquer conduta inerente às
causas de extinção anormal do contrato – rescisão, resilição ou anulação,
resolução por inexecução voluntária ou resolução involuntária. No dizer de
Otávio Luiz Rodrigues Junior:
“Extrai-se desse terceiro pressuposto, como uma derivação lógica, que a teoria da imprevisão deixa de ser aplicável quando há inexecução culposa ou voluntária, pios, nesse caso, estar-se-ia diante de uma clássica hipótese de resolução contratual, o que daria ensejo à responsabilização do infarto segundo a teoria dos riscos”. (RODRIGUE JR, 2002, p. 127)
5.5 – Da lesão do mínimo vital do consumidor e sua conseqüente reconstrução através d aplicação do instituto do superendividamento
O chamado estado da incapacidade global de adimplemento é uma
situação jurídico-obrigacional que guarda uma estreita relação com diversos
fatos sociais, a exemplo do desemprego, da doença, bem como da má gestão
do orçamento familiar. A aparição conjunta ou individual desses fenômenos
69
pode submeter o consumidor numa situação de letargia obrigacional, a qual
impede “de uma forma durável ou estrutural” o pagamento do complexo de
suas dívidas, o que para muitos caracteriza o superendividamento.
Sob o ponto de vista estritamente obrigacional, o estado da
incapacidade global de adimplemento atinge o chamado princípio da
pontualidade, porquanto o consumidor devedor se vê impossibilitado de
ajustar-se inteiramente à prestação devida, além do princípio da integralidade
do cumprimento, pois o pagamento das prestações durante este estágio, via de
regra, são efetuadas parcialmente e não na sua totalidade. Porém, este
aspecto da incapacidade global de adimplemento é um fator de menor
importância, justamente porque ele é uma conseqüência lógica desta situação,
ou seja, que sofreu uma lesão da sua capacidade de obter renda, em razão
das mais variadas situações propiciadas pela vida, não tem condições de arcar
regularmente com suas obrigações.
Todavia, o estado da incapacidade global de adimplemento revela uma
outra faceta do consumidor-devedor que é a lesão do seu mínimo existencial, a
qual permite a sua exclusão do mercado e a conseqüente falência da sua
aptidão de consumo. Surge, assim, a necessidade de aplicação do instituto do
superendividamento, como uma forma de garantir os meios essenciais de
existência do consumidor-devedor, noutras palavras, a manutenção do que a
doutrina francesa denomina de reste à vivre.
O chamado reste à vivre, ou numa acepção já incorporada pela
dogmática brasileira: mínimo existencial, nada mais é do que um conjunto de
recursos patrimoniais do devedor, cuja apuração se dá pela diferença entre o
numerário auferido e o que é comprometido pelos pagamentos, sob qual o
ordenamento jurídico impede o recaimento do pagamento das obrigações
assumidas, pois esse equivale ao menor grupo de bens vitais necessários para
manutenção das despesas da vida cotidiana do consumidor. Em outras
palavras: vale e tem importância, ainda e cada vez mais, a proteção do
patrimônio necessário à manutenção da existência do indivíduo, mas esta
70
proteção agora é legitimada naquilo que o patrimônio tem de imprescindível
como meio de realização da pessoa humana enquanto ser dotado de
dignidade.
A adoção do mínimo existencial como filtro de compreensão do direito
de propriedade está plenamente inserida num contexto moderno da liberdade,
ou seja, na liberdade de ser e não ter; a liberdade de realizar-se numa
sociedade solidária e não numa ordem individualista. A liberdade, neste
quadrante do tempo, é a liberdade de inclusão – de si e dos outros – e não a
liberdade de exclusão dos outros e de si. Assim, a construção do mínimo
existencial passa pelo construir coletivo, onde todos são chamados a colaborar,
dando de si e do que é seu.
Assim, garantir o patrimônio, ou melhor, o mínimo existencial, por
intermédio de outras formas de ver as titularidades pode ganhar impulso a
partir da concepção que os bens, longe de ser um fim em si mesmo, servem
para a subsistência física e moral do ser humano. Além de se ressaltar que a
titularidade das coisas não pode ser um fim em si mesmo, cabe destacar que
as titularidades garantem a inserção da pessoa concreta – com seus medos e
circunstâncias, suas fomes e suas paixões – na teia de relações da qual ela é
parte e nó, ou seja, no mercado de consumo.
Por outras palavras, a apropriação de bens merece ser vista e
protegida enquanto atribuição de titularidade às pessoas no sentido de lhes
garantir o existir como pessoas plenamente inseridas na sociedade de
consumo moderna. Não se trata, então, de uma titularidade abstrata sobre as
coisas que se abstraem porque mercadorias, mas uma titularidade funcional,
dirigida à manutenção da dignidade da pessoa humana, e exercitável sobre as
coisas concretas porque têm importância concreta para o homem.
Numa sociedade em que a propriedade passa a ser o princípio
organizativo do sistema, a transcendência – leia-se: a existência de um valor
para além do valor da troca – das coisas é dificilmente percebida ou
71
visualizada, e assim permite-se a negação do indivíduo enquanto pessoa.
Recuperar a transcendência das coisas, reaver o que a titularidade das coisas
tem de instrumento para a realização concreta da existência humana, significa
ver a apropriação de bens por outros olhos. Estes olhos devem enxergar que
as coisas de que o homem se apropria servem para realizar o homem, e não
para serem realizados no homem.
Com efeito, a aplicação do instituto do superendividamento,
especialmente nas hipóteses de revisão judicial dos contratos de crédito, tem
como objetivo garantir a manutenção do mínimo existencial do consumidor
superendividado, evitando, assim, a sua falência da capacidade de consumo,
mediante de mecanismos que garantam a sua subsistência, bem como sua
remoção do estado da incapacidade global de adimplemento, sem, por óbvio,
olvidar os direitos obrigacionais dos fornecedores envolvidos.
O professor Ricardo Lobo Torres é um dos poucos a cuidar do tema
entre nós. Em sua visão, o mínimo existencial representa um conjunto de
condições iniciais para o exercício da liberdade, que ele assim especifica:
“Os direitos à alimentação, saúde e educação, embora não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à parcela mínima sem a qual o homem não sobrevive”.
Mas é com a edição da Lei n° 10.835 de janeiro de 2004 que se verifica
a melhor proposta de concretização do mínimo existencial, bem como algumas
reflexões sobre aspectos práticos de eficácia jurídica positiva que a ele atribui,
especialmente nas hipóteses de superendividamento do consumidor. Por este
diploma fica instituída a chamada renda básica de cidadania que nada mais é
do que uma definição da abrangência do conteúdo do reste à vivre ou mínimo
existencial, in verbis:
“Art. 1° É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituíra no direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há
72
pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. §1° A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população. §2° O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias. §3° O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e mensais. §4° O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de pessoas Físicas.” (Grifos Nossos)
Da leitura desse dispositivo, observa-se que a alimentação, a educação
e a saúde formam um primeiro momento do mínimo existencial, no qual se
procura assegurar condições iniciais tais que o indivíduo superendividado seja
capaz superar o estado da incapacidade global de adimplemento.
Como se pode intuir, ao longo do processo de revisão judicial dos
contratos de crédito, principal fator do estado de incapacidade global de
adimplemento do consumidor superendividado, os credores e o judiciário, não
poderão impor qualquer modalidade de pagamento que interfira na capacidade
de consumo do mínimo alimentar, educacional e medicinal.
Frente a esta opção de conteúdo do mínimo existencial adotada na
presente dissertação, muitos poderão identificar que ela se afirma com a lógica
da mediocridade, pela qual se pretenderia nivelar pelo mínimo. É, como tudo
na vida, uma forma de ver. Do ponto de vista do consumidor superendividado,
o qual está submetido ao estado da incapacidade global de adimplemento,
entretanto, verdadeiramente progressiva é dispor de uma dogmática, tanto
material como processual consistente, capaz de dar conseqüência jurídica
universal às decisões político-jurídicas mais fundamentais da sociedade e do
73
Estado brasileiro. Para quem vive no absoluto desamparo e às margens do
consumo vital, a distância que o separa da dignidade, ainda que seu conteúdo
mínimo, é todo o caminho de volta à sua própria humanidade.
5.6 – Da quebra objetiva da base dos negócios jurídicos celebrados pelo consumidor superendividado
A teoria quebra a base do negócio jurídico surge como um pressuposto
caracterizador do superendividamento porque permite racionalizar as
conseqüências obrigacionais do negócio celebrado, mediante um trabalho
intervencionista do intérprete para evitar a submissão do consumidor
endividado a uma prestação impraticável, a qual decorre de circunstâncias
supervenientes à sua formação. Com efeito, esta teoria tem como objetivo
primordial guiar o fenômeno contratual, adequando-o ao escopo
originariamente avençado entre as partes.
Sobre o tema, salienta Luiz Renato Ferreira da Silva que a teoria da
quebra da base “resguarda situações onde o contrato resta frustrado, perdendo
seu sentido por rompimento de sua base”. Desse modo, sua aplicação permite
a revisão do sinalagma contratual, justamente para evitar o florescimento de
uma desigualdade econômica excessivamente acentuada, a qual caracteriza a
situação entre o consumidor superendividado e o fornecedor de crédito.
Todavia, a transformação das circunstâncias existentes na conclusão
de um contrato, ou seja, a quebra base deste negócio, pode ser entendida em
dois sentidos distintos. O primeiro toma-a numa acepção subjetiva. Esta é
responsável pela determinação da vontade de uma ou de ambas as partes,
noutras palavras, trata-se de uma representação mental existente ao concluir o
negócio e que influenciou determinantemente na formação de seus motivos, ou
seja, na estruturação da manifestação de vontade.
74
Se porventura a base subjetiva do negócio desaparece ou é quebrada,
o contrato ou a disposição contratual respectiva é ineficaz. Daí porque a
perquirição desse fenômeno ocorrerá no campo da teoria dos vícios de
vontade. Todavia esse tema não merece um estudo detalhado na presente
dissertação, porquanto o aspecto subjetivo da quebra base não interessa ao
tema do superendividamento, pelo menos, não pode ser encarado como um
dos seus pressupostos caracterizadores.
Ao lado da concepção subjetiva, temos a noção objetiva da base do
negócio jurídico. Esta deve ser entendida enquanto um complexo de sentidos
inteligíveis, ou seja, como um conjunto de circunstâncias cuja existência ou
persistência pressupõem materializadas na formação e devidas na execução,
ou seja, tratam-se dos propósitos ou o fim perseguido no negócio celebrado.
Perdendo o sentido de sua materialização, ou seja, ruindo o fim
originariamente previsto no momento da conclusão da relação contratual, fruto
da alteração das circunstâncias da base do negócio, surge um dever de
renegociação entre os parceiros contratuais, justamente para evitar a
destruição da relação de equivalência prestacional e a função do contrato
enquanto operação econômica distributiva.
Esta sim é a hipótese caracterizadora do superendividamento, pois as
circunstâncias que os negócios entabulados pelo consumidor superendividado
foram concluídas sofreram uma transformação fundamental, as quais, via de
regra, decorre de fatos de difícil controle, fruto da expansão normal do crédito
ao consumo. Desse modo, se o fornecedor de crédito executar negócio
entabulado sob as circunstâncias originais, sem a devida socialização dos
efeitos negativos da alteração percebida, ele perderá por completo seu sentido,
permitindo, conseqüentemente, a manifestação da ruína econômica do
consumidor.
Diante disso é possível concluir que a alteração das circunstâncias do
negócio, ou seja, a quebra objetiva da sua base, a qual se fundamenta na
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frustração da finalidade do contrato permite ao consumidor superendividado
realizar sua prestação de forma a garantir perseguição dos objetivos ínsitos a
qualquer relação de consumo de crédito, qual seja, o de proporcionar uma
gratificação instantânea ao adquirente do bem ou do serviço ou de propiciar a
antecipação de rendimentos para aquisição de bens de consumo.
Trata-se, aqui, não de uma salvo conduto para um comportamento
desenfreado ao consumo e, sim, de uma simples constatação objetiva que
“pressões” existem na sociedade e que desequilibram estruturalmente as
contratações realizadas, daí nascendo a necessidade de uma resposta jurídica
reequilibrada, ou seja, se a contratação já se deu num ambiente desequilibrado
para o fornecedor, este deve garantir uma revisão do sinalagma contratual
quando as circunstâncias de base propiciarem uma relação de
insustentabilidade ao consumidor, mesmo porque o interesse deste último é no
sentido da continuidade da relação contratual, melhor dizendo, na continuidade
do acesso ao crédito.
76
CAPÍTULO VI
O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR COMO
HIPÓTESE DE REVISÃO JUDICIAL DOS CONTRATOS
DE CRÉDITO
6. 1 – A revisão como direito básico do consumidor
Pode-se afirmar que, ao Direito privado, ao qual antes cabia tão-só a
tutela do indivíduo e de seus interesses patrimoniais – tais como a propriedade
e a vontade manifestada contratualmente – cabe agora a tutela do indivíduo
imerso em uma sociedade onde seus direitos subjetivos estão funcionalizados
aos interesses que dizem respeito a terceiro, surgindo nesse contexto o direito
do consumidor, e juntamente com ele, a tônica atual do direito de revisão
contratual que é um dos fenômenos mais importantes para reequilibrar o
mercado de consumo de crédito e evitar o superendividamento.
Diante desse contexto, a revisão judicial dos contratos surge no CDC
no rol dos direitos básicos do consumidor, os quais podem ser entendidos,
resumidamente, como uma síntese das normas protetivas desse
microssistema:
Art. 6°. – São direitos básicos do consumidor: (...) V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.
Assim agindo, o legislador adotou a teoria da quebra da base do
negócio, com isso mitigando o princípio da obrigatoriedade, justamente para
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permitir o restabelecimento do equilíbrio contratual, modificando-lhe as
cláusulas ou determinando sua revisão, num verdadeiro ato de intervenção
estatal na área dos contratos. Esta opção do legislador é uma decorrência da
insuficiência do modelo contratual que considerava vinculante as
manifestações e condutas das partes no momento em que esta fora feito, sem
considerar as ocorrências que podem afetá-lo durante o lapso temporal
decorrido entre a manifestação inicial e o momento da execução. Claramente,
no atual estágio dos contratos de consumo, especialmente dos de crédito, é
mister considerar “mudanças flexíveis na relação contratual, tanto devido a
circunstâncias cambiantes como às mudanças nas necessidades das partes”.
Como o próprio dispositivo legal mencionado sugere, a revisão
contratual pode ocorrer em decorrência de causas contemporâneas ou
concomitantes à formação do contrato, fruto da incidência de cláusulas
abusivas e prestações desproporcionais, ou em razão de fatos supervenientes,
como é o caso do superendividamento, que tornem a relação contratual
excessivamente onerosa.
Tanto quando a lei faz referência à modificação das cláusulas
contratuais que estabelecem prestações desproporcionais como quando a
referência dirige-se à revisão contratual das prestações em razão de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, um mesmo valor guia
essas duas orientações legais: a conservação dos contratos por meio da
atuação do poder judiciário. Logo, nos dois casos mencionados, a lei admite
que o juiz intervenha no conteúdo contratual a fim de equalizar a situação de
desequilíbrio entre as prestações, para promover justiça social no caso
concreto.
Portanto, na sistemática do CDC, para que se faça a revisão do
contrato basta que, após ter ele sido firmado, surjam fatos que o tornem
excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data
de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros.
78
Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar os contratos excessivos
para o consumidor.
6.2 – Requisitos para revisão contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação no CDC
Como o superendividamento é um fato, ou melhor dizendo, um status
jurídico, via de regra, ulterior à formação dos vínculos dos contratos de crédito,
o qual, entre outras conseqüências,, gera uma excessiva onerosidade das
prestações obrigacionais, a aplicação do direito de revisão contratual
estampado no art. 6°, V, segunda parte, do CDC, impõe o cumprimento dos
requisitos comuns a qualquer revisão por onerosidade excessiva
superveniente.
O primeiro requisito diz respeito à prestação que será revisada. Deve
tratar de prestação duradoura ou periódica, justamente um traço marcante dos
contratos de crédito ao consumo.
As prestações duradouras classificam-se em divididas, fracionadas ou
repartidas, caso seu cumprimento se efetue em parte, em momentos temporais
distintos, com seu preço pago em parcelas. As duradouras podem ser também
continuativas, contínuas ou de execução continuada, quando a prestação
consiste numa ação ou numa abstenção que prolonga ininterruptamente, como
ocorre na obrigação do locador de assegurar ao locatário o uso do gozo do
locado.
As prestações que se enquadram nessa classificação serão objeto de
revisão contratual quando sua excessiva onerosidade decorrer de fatores
posteriores á formação do contrato, pois as obrigações instantâneas, que se
realizam num só momento, não têm tempo para resultar excessivamente
onerosas por motivos supervenientes.
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Outro requisito necessário à revisão será a bilateralidade dos contratos
ajustados, ou seja, a bilateralidade no sentido da reciprocidade entre as
prestações das partes contratantes. “São contratos sinalagmáticos, bilaterais,
ou com prestações recíprocas, aqueles que fluem, ao mesmo tempo e para
cada uma das partes, obrigações e direitos a prestações recíprocas, ligadas
entre si por uma relação de interdependência”.
Impõem-se o requisito da bilateralidade contratual em virtude de existir
nessa espécie de contrato um sinalagma funcional, que justifica a possibilidade
de revisão contratual por onerosidade excessiva superveniente, pois, neste
caso, não existe falta da prestação correspondente, a qual daria ensejo à
exceção de contrato não cumprido.
Nesse contexto, o contrato de mútuo merece análise pormenorizada,
pois além de ser a hipótese de contrato de crédito ao consumo mais comum, é
um contrato unilateral.
Observa-se que apesar de tratar-se de um contrato unilateral e gratuito,
o contrato de mútuo, quando feneratício, passa a ser oneroso. Por isso, em
decorrência da imposição obrigacional de o mutuário pagar juros, em caso de
inadimplemento, o mutuante demandar a resolução do contrato, o que constitui
singularidade, pois a resolução por inexecução é própria dos contratos
bilaterais ou sinalagmáticos. Deste modo, a revisão contratual por excessiva
onerosidade superveniente à formação do ajuste de contrato de mútuo
onerosos, como é o caso dos financiamentos bancários, consubstancia
também uma singularidade, pois a revisão em comento também é própria dos
contratos bilaterais, onde há um sinalagma funcional. Uma relação de
interdependência entre as obrigações de ambas as partes.
Assim, dada a onerosidade do mútuo feneratício e seu pagamento em
parcelas pelo devedor, como ocorre no financiamento, justifica-se o fato desta
modalidade contratual incorrer na hipótese de revisão no caso de excessiva
onerosidade superveniente. Afinal, o fato de o mutuário executar
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parceladamente suas obrigações cria a possibilidade de as prestações que se
prolongamento tempo serem afetadas pela vultosa onerosidade decorrente de
transformações posteriores à contratação.
Outro requisito a ser mencionado diz respeito ao consumidor,
beneficiário da revisão contratual, o qual não pode ser agir como causador da
excessiva onerosidade. Afinal, admitir tal possibilidade seria o mesmo que
anuir com má-fé.
Em princípio, também se nega ao consumidor que esteja em mora a
revisão contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação.
Todavia, esse aspecto é afastado quando caracterizado o estado de
superendividamento, pois nessa hipótese a extrema dificuldade de
cumprimento da prestação decorre da incidência material dos pressupostos
caracterizados do referido instituto, os quais são suficientes para a
caracterização da onerosidade.
Não se exige também que a excessiva onerosidade superveniente para
o consumidor importe em estrema vantagem para o fornecedor. O art. 6°, V do
CDC não menciona este requisito, ao contrário do Código Civil, que dispõe
expressamente que o devedor pode pedir a resolução do contrato se sua
prestação se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a
outra parte. Observe-se que a resolução contratual fulmina o contrato e todos
os efeitos que ele pode produzir. Portanto, resolução não se apresenta como a
solução mais adequada. A revisão contratual, ao contrário, objetiva preservar o
vínculo contratual que, por vezes, necessita apenas de alguns ajustes para se
manter e realizar as expectativas objetivas dos contratantes. Ademais, exigir
também extrema vantagem para a outra parte para que ocorra intervenção
judicial na órbita do contrato quando a excessiva onerosidade para uma parte
está latente é demasiado prejudicial ao excessivamente onerado, no caso do
presente estudo, o consumidor superendividado.
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Finalmente, na perspectiva adotada pelo CDC, não será necessário
também que os acontecimentos supervenientes, que tornaram a prestação
pactuada muito onerosa, sejam anormais, extraordinários, imprevistos, ou
imprevisíveis. A excessiva onerosidade superveniente é, por si, suficiente para
dar respaldo à revisão contratual.
Como se vê, exige o CDC que os fatos sejam tão somente ulteriores,
mas não que sejam imprevisíveis e extraordinários como é a hipótese do
Código Civil de 2002, do Código Civil Italiano de 1942 e do Código Civil
Português de 1966.
Enfim, cumpre mencionar que os efeitos da revisão contratual operam-
se retroativamente, desde a ocorrência da nova circunstância desencadeadora
da enorme majoração da prestação. Portanto, a sentença que conceder ao
consumidor revisão contratual por excessiva onerosidade posterior à
contratação terá efeito retroativo entre as partes contratantes.
6.3 – Hipótese de aplicação do superendividamento na revisão judicial do contrato de crédito ao consumo
Ao lado das hipóteses regulares que autorizam a revisão dos contratos
de crédito por onerosidade excessiva supervenientes ao vínculo de formação,
temos também aquela relativa ao superendividamento do consumidor. Todavia,
sua aplicação difere das demais, justamente porque não é qualquer
consumidor que pode valer-se deste instituto.
Assim, somente o superendividado, ou seja, aquele indivíduo que
necessita da tutela jurisdicional do Estado para garantir a manutenção digna de
sua capacidade de crédito para sua sobrevivência social mínima é quem possui
legitimidade ativa para esta hipótese revisional. O objetivo aqui, como bem
descreveu Geraldo de Faria Martins da Costa, é salvar o náufrago do crédito,
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tratando sua situação financeira, resgatando sua cidadania econômica. Em
última análise, lutando contra a exclusão social.
Diante disso, o pleito revisional por aplicação do superendividamento
não poderá versar apenas sobre um determinado vínculo contratual isolado, e
sim de todo o seu passivo debitório, justamente para permitir a correção da
assimetria das relações jurídicas contraídas pelo consumidor, em razão da
existência de um conjunto de dívidas estruturais ajustadas de boa-fé, capazes
de ameaçar ou lesionar sua dignidade pessoal.
Trata-se, em verdade, de uma hipótese de revisão concursal, na qual
os interesses dos credores não são ignorados, mas são tratados de maneira
subsidiária, justamente para proteger aquele que se encontra em situação de
fraqueza à beira da indignidade.
O fenômeno concursal garante aos fornecedores um tratamento
paritário de seus créditos e a coibição da má-fé presumida do
superendividamento. Todavia, é válido lembrar que a paridade no tratamento
não impede a classificação dos créditos, da mesma forma que é feita na
falência e recuperação de crédito do empresário. Porém, a falta de diploma que
discipline a matéria do superendividamento no Brasil impede a aplicação desta
classificação nas ações revisionais em geral, cabendo ao juiz a aplicação
referencial dos dispositivos da lei 11.101/05 na hipótese de
superendividamento.
Uma vez deferida o pedido revisional ao consumidor superendividado,
o Estado através de seu poder jurisdicional efetuará, além da modificação da
base dos negócios praticados pelo consumidor superendividado, um plano de
pagamento de suas dívidas mediante uma análise de sua condição sócio-
econômica-financeira para possibilitar a continuidade de sua capacidade de
consumo sem tolher os direitos creditícios dos fornecedores envolvidos. Nesse
sentido, o plano de pagamento do superendividamento, descrito e detalhado
em sentença, não será apenas um conjunto de ações de curto prazo para dar
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alivio a situação pessoal do consumidor, mas sim, um planejamento de
reestruturação sustentável de sua capacidade de consumo.
Mais uma vez, devido à falta de diploma sobre a matéria, caberá ao juiz
utilizar a analogia com fenômeno de integração do direito. Nesse ponto, válida
é a aplicação da oitava proposição interpretativa descrita por Juarez Freitas
que tem como objetivo superar antinomias axiológicas, permitindo que os
objetivos fundamentais do Estado Democrático, a exemplo da manutenção e
proteção da dignidade da pessoa humana, que atua como elemento genético
condicionante do sistema, tenha um entendimento dominantemente
substancial:
Oitava proposição interpretativa – “Os direitos fundamentais (inclusive os sociais) reclamam, nos limites do economicamente possível (sem os exageros de determinadas interpretações econômicas nem o excesso de ímpetos conducentes a oscilações caóticas), que as regras sejam lidas em harmonia com o telos da efetividade sistemática, não se admitindo qualquer subsunção mecânica ou irrefletida, pois deve haver espaço para uma ponderação que considere o balanceamento suscitador da gradativa ampliação eficacial dos direitos, à luz de cuja preocupação hermenêutica afasta-se, mesmo no plano das regras, a idéia de uma lógica do tudo ou nada. (...) Nesse sentido, não é exagero cobrar, em relação à íntegra dos direitos fundamentais, o imediato reconhecimento do mínimo nuclear de realização.”
Assim, tomando como base a assertiva de Juarez de Freitas é
necessário, mais uma vez, tomar como referência as disposições da Lei
11.101/05 à hipótese revisional do superendividamento. Isso se deve à ameaça
ou a efetiva lesão na dignidade sofrida pelo consumidor superendividado, daí a
possibilidade de extensão da eficácia, mediante um processo hermenêutico
das regras da recuperação judicial, para garantir a manutenção do mínimo
nuclear de sua capacidade de consumo.
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Com efeito, a ação revisional por aplicação do superendividamento
pode ser encarada como um mecanismo jurisdicional apto a tratar as dívidas
do consumidor de maneira a evitar sua ruína completa e, se possível, a
restabelecer uma situação de consumo sustentável. Trata-se de uma
verdadeira resposta do Estado social ao fenômeno da usura, que durante
longos períodos da história foi responsável pela miséria e pela penúria dos
homens.
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CONCLUSÃO
Por tudo que foi exposto, pode-se concluir que o crédito é mecanismo
capaz de catalisar o bem estar do ser humano e propulsionar o
desenvolvimento econômico, como também gerar o endividamento e
conseqüente superendividamento. Diante desse “novo” fenômeno, os
fundamentos da teoria clássica dos contratos sofreram uma releitura (liberdade
contratual e força obrigatória dos contratos), permitindo-se a interferência do
Estado nas relações contratuais para evitar-se uma ruína econômica por
inadimplência geral.
A falta de contornos jurídicos para tratar do superendividamento no
Brasil impõe a aplicação e análise de institutos similares, como o da lesão e
insolvência civil, a fim de se possibilitar a manutenção da capacidade de
consumo do indivíduo e administração de seus bens. Nesse mesmo sentido,
para se tratar de superendividamento, necessário se faz a aplicação de
princípios como da boa-fé objetiva, dignidade da pessoa humana e da
cooperação.
O superendividamento, no atual cenário jurídico, é situado como uma
condição sócio-econômica, que permite a correção da assimetria de uma ou
diversas relações jurídicas contraídas pelo consumidor, em razão da existência
de um conjunto de dívidas estruturais ajustadas de boa-fé, capazes de
ameaçar ou lesionar sua dignidade pessoal.
Nessa esteira, no Brasil, o superendividamento do consumidor surge
dentro de uma análise do art. 6°, V, do CDC, permitindo que se faça uma
revisão nos contratos de consumo de crédito daqueles que sofreram alteração
econômica substancial capaz de torná-los excessivamente onerosos,
respeitando-se o princípio da boa-fé e possibilitando um equilíbrio financeiro
necessário à dignidade humana.
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BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, João Batista. A revisão dos Contratos no Código do Consumidor. SP: Revista de Direito do Consumidor, 2000. BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. SP: Saraiva, 2002. BELIK, Walter. Estabilidade Econômica e Inadimplência do Consumidor. SP: Centro de Tecnologia do Varejo do Senac. CASADO, Márcio Mello. Proteção do Consumidor e do Crédito Bancário e Financeiro. SP: RT, 2000. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Civil. V. 2. SP: Saraiva, 2004. DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. 2ª Ed. SP: Saraiva, 2001. GELPI, Rosa-Maria. Historie du Credit à La Consommation. Paris: Editions La Decouverte. Texte à l’appui/série économie. LEITÃO MARQUES, Maria Manoel. O Endividamento dos Consumidores. Coimbra: Almedina, 2000. MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8ª Ed. SP: Saraiva, 1995. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª Ed. SP: RT, 2002. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. V. 1. 20ª Ed. RJ: Forense, 2004. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19ª Ed. SP: Saraiva, 1999. RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos - Autonomia da Vontade e Teoria da Imprevisão. SP: Atlas, 2002. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988.
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ÍNDICE
FOLHA DE ROSTO 2
AGRADECIMENTO 3
DEDICATÓRIA 4
RESUMO 5
METODOLOGIA 6
SUMÁRIO 7
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO I PANORAMA HISTÓRICO DO CRÉDITO 1.1 – Fenomenologia creditícia 10 1.2 – Evolução do fenômeno creditício na antiguidade 11 1.3 – O Código de Hamurabi 12 1.4 – O crédito na Grécia antiga 13 1.5 – Sociedade Romana 15 1.6 – O crédito no pensamento da Igreja Católica 18 1.7 – Crédito e a Reforma 21
CAPÍTULO II SOCIEDADES CONTEMPORÂNEA - CRÉDITO AO CONSUMO - 2.1 – Primeiras considerações 25 2.2 – Origem e evolução do crédito ao consumo nos EUA 25 2.3 – Aparição do “consumer credit” na Grã Bretanha 28 2.4 – Visão francesa do crédito ao consumo 30 2.5 – Dimensão brasileira do crédito ao consumidor 33
CAPÍTULO III CONTRATOS DE CRÉDITO AO CONSUMO 3.1 – Tripartição funcional dos contratos 36 3.2 – Contrato e sua evolução 37 3.3 – Contrato de crédito ao consumidor 41 3.4 – Inadimplemento do crédito ao consumo 43
CAPÍTULO IV INSTITUTO JURÍDICOS ANÁLOGOS AO SUPERENDIVIDAMENTO 4.1 – Superendividamento e Teoria da Imprevisão 47 4.2 – Superendividamento e Lesão 53 4.3 – Superendividamento e Concordata 56 4.4 – Superendividamento e Insolvência Civil 59
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CAPÍTULO V CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DO SUPERENDIVIDAMENTO 5.1 – Natureza Jurídica do Superendividamento 60 5.2 – Incidência do superendividamento 63 5.3 – Da forma de argüição do superendividamento 65 5.4 – Do momento da argüição do superendividamento 68 5.5– Da lesão do mínimo vital do consumidor e
sua conseqüente reconstrução através da aplicação do instituto do superendividamento 68
5.6 – Da quebra objetiva da base dos negócios jurídicos celebrados pelo consumidor superendividado 73
CAPÍTULO VI O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR COMO HIPÓTESE DE REVISÃO JUDICIAL DOS CONTRATOS DE CRÉDITO 6.1 – A revisão como direito básico do consumidor 76 6.2 – Requisitos para revisão contratual por excessiva onerosidade
superveniente à contratação no CDC 78 6.3 – Hipótese de aplicação do superendividamento na revisão judicial do contrato de crédito ao consumo 81
CONCLUSÃO 85
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 86
ÍNDICE 87
FOLHA DE AVALIAÇÃO 89
89
FOLHA DE AVALIAÇÃO
Nome da Instituição:
Título da Monografia:
Autor:
Data da entrega:
Avaliado por: Conceito: