cândido 52_literatura afro-brasileira

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  • 7/24/2019 Cndido 52_Literatura Afro-Brasileira

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    JORNAL DA BIBLIOTECA PBLICA DO PARAN

    CANDIDO NOVEMBRO2015DW

    Ribatski

    52 www.candido.bpp.pr.gov.br

    Entrevista | Nei Lopes Perfil do leitor| Ciro Pessoa Poema| Xico Chaves

    A literatura

    afro-brasileirapede passagem

    O Cndidotraz um panoramada produo de autores negrosna literatura brasileira, dos precursores

    at a novssima gerao

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    2 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    EDITORIAL

    EXPEDIENTE

    Todos os textos so de responsabilidade exclusivado autor e no expressam a opinio do jornal.

    CANDIDOCndido uma publicao mensalda Biblioteca Pblica do Paran

    BIBLIOTECA PBLICA DO PARANRua Cndido Lopes, 133. CEP: 80020-901 |Curitiba |PR.Horrio de funcionamento:Segunda sexta, das 8h30 s 20h.Sbados, das 8h30 s 13h.

    Governador do Estado do Paran: Beto Richa

    Secretrio de Estado da Cultura: Joo Luiz Fiani

    Diretor da Biblioteca Pblica do Paran: Rogrio Pereira

    Presidente da Associao dos Amigos da BPP: Marta Sienna

    Coordenao Editorial:

    Rogrio Pereira e Luiz Rebinski

    Redao:

    Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy

    Estagirios:

    Kaype Abreu e Lucas de Lavor

    Coordenao de Desenho Grfico| CDG | SEEC

    Rita Solieri Brandt | coordenao

    Bianca Franco, Marlia Costa, Marluce Reque

    e Raquel Dzierva | diagramao

    Colaboradores desta edio:

    Alessandro Rolim Moura, Bianca Franco, Claudecir de O. Rocha, D.W.

    Ribatski, Eduardo de Assis Duarte, Fernando Severo, Gil Jesse, HenryMillo, Jair Ferreira dos Santos, Kraw Penas, Laura Santos, Marlia

    Costa e Xico Chaves.

    Redao:

    [email protected] | (41) 3221-4974

    Foto: Kristiane Foltran

    Acontribuio da cultura negra paraa formao do Brasil inegvel efundamental. Na literatura no diferente. No ms em que se co-

    memora o dia da Conscincia Negra(20 de novembro), o Cndidoresgata o

    percurso de escritores afro-descenden-tes em nossa histria literria.

    Dos fundamentais e clssicosMachado de Assis e Lima Barreto, pas-sando por nomes menos conhecidos,como Luiz Gama, at chegar a poetase prosadores contemporneos, como ocuritibano Celio Jamica (foto), a ediomostra como e sobre o que esses auto-

    res escreveram.Assuntos como preconceito, mi-litncia e poltica racial so levantados apartir de matrias e ensaios. A equipe doornal ouviu crticos, autores e pesquisa-dores, que comentam diversos aspectosda literatura feita por afro-brasileiros.

    A literatura espelha o preconcei-to social e torna a questo ainda maisvisvel, observa Regina Dalcastagn,professora da Universidade de Bras-lia (UnB) que coordenou pesquisa en-volvendo 700 romances brasileiros, cujo

    resultado apontou que 96% dos autoresso brancos.

    Em ensaio indito, Eduardo deAssis Duarte, professor da Universida-de Federal de Minas Gerais (UFMG),analisa o percurso dos nomes mais rele-vantes da literatura afro-brasileira, co-nhecidos ou no dos leitores do pas.

    Autor de mais de 20 livros, Nei

    Lopes lanou neste ano seu mais re-cente romance. Em entrevista ao Cn-dido, o escritor fala sobre Rio Negro,50, ambientado no Rio de Janeiro, en-to capital federal, na dcada de 1950,perodo de liberao e efervescn-cia cultural que tambm marca a re-

    tomada, no Brasil, de um movimentode reconhecimento da contribuio donegro vida cultural brasileira, con-forme explica Lopes.

    J o ensaio assinado pelo pro-fessor Claudecir de O. Rocha resga-

    ta a histria da poeta negra curitibanaLaura Santos. Influenciada pela estticaparnaso-simbolista, principalmente porOlavo Bilac, ela criou uma potica di-ferenciada e moderna, com traos bio-grficos, por meio dos quais elucidavaa realizao dos seus anseios, ao mesmotempo em que expressava um desejo detranscendncia.

    A 52 edio do Cndidoainda trazoutros contedos, como poemas de XicoChaves, Laura Santos e Gil Jesse, almde tradues de Jair Ferreira dos Santos eAlessandro Rolim Moura para poemas doargentino Mximo Simpson e dos gregosMosco e Bon, respectivamente.

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    3JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

    CURTAS DA BPP

    At fevereiro de 2016, permaneceem cartaz, no Museu Oscar Niemeyer(MON), a mostra Nos pormenores umuniverso Centenrio de Vilanova Ar-tigas, sobre o arquiteto curitibano JooBatista Vilanova Artigas (1915-1985),

    Vilanova Artigas

    Conscincia

    Negra 1Em novembro, a Biblio-

    teca Pblica do Paran promo-ve programao especial em ho-menagem ao Dia da ConscinciaNegra, comemorado no dia 20.No Hall rreo da BPP, a artistaFernanda Castro expe seus tra-balhos sobre a realidade das mu-lheres quilombolas no Paran. Amostra ser aberta no dia 10 denovembro e segue at dezembro.

    Msica de CmaraEm dezembro, a Biblioteca P-

    blica do Paran recebe duas apresenta-

    es de msica de cmara. Os eventosfazem parte do Simpsio de Violo daEscola de Msica e Belas Artes do Pa-ran (EMBAP), que leva concertos erecitais de violo a espaos pblicos deCuritiba. No dia 7 de dezembro, s 17h,o Quarteto Zenamon interpreta peasde compositores brasileiros como Ho-mero Pereira, Leo Brouwer, Celso Ma-chado e Dilermando Reis. No dia 11,s 17h30, o Duo Zabrocki-Lentz (foto)apresenta repertrio com peas de Fer-dinando Carulli, Claude Debussy eMarlos Nobre, entre outros composito-res. Os eventos so gratuitos e aconte-cem no Hall rreo da BPP.

    Conscincia Negra 2Em parceria com o Museu da

    Imagem e do Som do Paran (MIS-

    -PR), a Biblioteca Pblica do Para-n exibe quatro longas-metragens namostra Escritores Afrodescendentesno Cinema Brasileiro. So eles: Me-mrias pstumas de Brs Cubas, de An-

    Prmio So PauloCristovo ezza e Rodrigo Gar-cia Lopes esto na fase final do Prmio

    So Paulo de Literatura 2015. ezzaconcorre com o romance O professor;Garcia Lopes est na disputa com Otrovador. Este o segundo prmio emque os dois autores concorrem este ano.Seus livros j haviam sido selecionadosentre os semifinalistas do Prmio Oce-anos. Ao todo, so 21 finalistas do Pr-mio So Paulo, que distribui R$400 milaos vencedores de trs categorias.

    que completaria 100 anos em 2015. Aexposio traz projetos originais, dese-nhos artsticos do arquiteto e maquetes(de vrios formatos e escalas), fotogra-fias e documentos do acervo da famlia.Mais informaes: (41) 3350-4400.

    Divulgao

    Divulgao

    dr Klotzel (dia 05), Policarpo Quares-ma, heri do Brasil, de Paulo Tiago (dia

    12), Macunama, de Joaquim Pedro deAndrade (dia 12), e Cidade de Deus, deFernando Meirelles (dia 26). As exibi-es so gratuitas e acontecem s quin-tas-feiras, s 15h.

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    4 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    ENTREVISTA|NEI LOPES

    Divulgao

    A invisibilidadedo meu povome incomoda

    muitoMARCIO RENATO DOS SANTOS

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    5JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

    Nei Lopes, 73 anos, um autor que, por prazer e misso, tem a afrobrasilidadecomo tema. O seu mais recente romance Rio Negro, 50, publicado peloGrupo Editorial Record neste ano, ambientado no Rio de Janeiro, ento capitalfederal, na dcada de 1950, perodo de liberao e efervescncia cultural quetambm marca a retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimentoda contribuio do negro vida cultural brasileira, explica o escritor, nascido no Iraj,subrbio carioca, atualmente vivendo em Seropdica, municpio do Rio de Janeiro,

    localizado a 50 quilmetros da capital. Rio Negro, 50, se me permite a ousadia, um romance de tese que tem por objetivodizer coisas que at hoje s tm sido ditas nos livros cientficos, afirma o escritor comdezenas de ttulos publicados, entre os quais Vinte contos e uns trocados(2006) e Potnica(2014), tambm compositor e intrprete de msica popular, autor de canes gravadas,entre outros, por Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Dudu Nobre, Martinho daVila e Zeca Pagodinho.

    Lopes concedeu entrevista ao Cndidorespondendo, exclusivamente,perguntas sobre Rio Negro, 50. Na longa narrativa ficcional, ele inventa ebatiza um bar, com o nome que d ttulo ao livro, onde personagens negrosse encontram e discutem, entre outros assuntos, poltica, msica, teatro,dana, religio, esporte, crime e racismo. Pesquisador da temtica africana e afro-originada, autor de obrasque so referncias sobre o tema, como Dicionrio da antiguidade africana(2011), Enciclopdia da dispora africana(2011), Novo dicionrio banto doBrasil(2012) e do recm-publicado, em parceria com Luiz Antonio Simas,Dicionrio da histria social do samba. Ele afirma, por exemplo, que a abolio dos escravos no aconteceucomo de fato se comenta: A chamada Lei urea s tem um artigo.Nenhuma de suas consequncias foi contemplada. Aboliu-se a escravido ejogou-se seus problemas no lixo. Lopes tem pontos de vista contundentessobre samba, religio, reveillon carioca e outros temas so, enfim,reflexes elaboradas a partir de vasta pesquisa que compem este bate-papo realizado por e-mail.

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    ENTREVISTA|NEI LOPES

    Na pgina 47 de Rio Negro, 50,um personagem fala: Mas parece quepreto s bom mesmo no futebol, nosalto e na corrida. Por que ser?. Emseguida, o dilogo entre as vozes pro-move um debate, menciona-se que nanatao no tem atletas negros, at queh uma ponderao: Ento, eles somelhores nos esportes onde as barrei-ras econmicas so menores. Uma das

    linhas de fora de seu livro justamen-te discutir e questionar lugares-co-muns ditos e repetidos sobre os negros?

    Rio Negro, 50, se me permite aousadia, um romance de tese que tempor objetivo dizer coisas que at hoje stm sido ditas nos livros cientficos.

    H meno a pensadores, gen-te que gostava de conversar e discutir,muitos dos quais se reuniam no bar, in-ventado, que d nome ao livro pos-sivelmente inspirado em um bar que defato existiu. Aquele tempo foi o incio

    A dcada de 50constituiu um perodo deliberao e efervescnciacultural que tambmmarca a retomada, no

    Brasil, de um movimentode reconhecimento dacontribuio do negro vida cultural brasileira.

    A movimentao cultural do Riode Janeiro da dcada de 1950 foi bem

    mais ampla do que apenas, por exem-plo, a bossa nova. Levando em conta oseu romanceRio Negro, 50, o que maisaconteceu culturalmente na ento ca-pital federal durante os anos 1950?

    A dcada de 1950 constituiu umperodo de liberao e efervescnciacultural que tambm marca a retomada,no Brasil, de um movimento de reco-nhecimento da contribuio do negro

    vida cultural brasileira. Por esse tempo,revivem organizaes culturais e polti-cas negras, abafadas durante o EstadoNovo; criam-se ou se expandem orga-nizaes importantes, como o Renas-cena Clube e A Unio dos Homens deCor. nesse contexto, de afirmao daescola de samba Imprio Serrano, quenascem as revolucionrias escolas de

    samba Acadmicos do Salgueiro e Mo-cidade Independente; que se consolidao eatro Experimental do Negro; quese formata a dana afro, com Merce-des Batista; que reluzem os musicais deCarlos Machado, em que o samba tempapel importante; e em que a religio-sidade de base africana, pela exubern-cia dos rituais dos candombls, comeaa ser reavaliada.

    H a morte de Vargas, a derrotada seleo brasileira no Maracan nafinal de uma Copa do Mundo, entreoutros fatos que ficaram marcados noimaginrio brasileiro. Ento, ambien-tar o romanceRio Negro, 50na dcadade 1950 foi um escolha decisiva, fun-damental? Faltava algum tratar lite-rariamente do perodo?

    Faltava quem tratasse do pontode vista do povo negro; e isso que eutenho procurado fazer em toda a minhaobra ficcional.

    No dia 13 de junho deste ano, Nei Lopes lanou Rio Negro, 50no Rio de Janeiro, ao lado dos amigos Pedro Amorim (esq.)e Ruy Castro (dir.)

    Crdito: Cludia Lamego

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    de tomada de conscincia pelos negros?O bar representa isso, o espao para a

    reflexo sobre as questes do mundo?Eu no vivi intelectualmente a d-cada, pois nasci em 1942 e s tomei cons-cincia da questo social na dcada de1960, quando ingressei na Faculdade Na-cional de Direito. Mas logo senti o eco doque se discutiu antes; e percebi que o barera, sim, como foi ainda por muito tem-po, o espao dessas trocas de ideias.

    O samba um dos assuntos queganha espao em Rio Negro, 50. Pelasvozes dos personagens, h uma dis-cusso a respeito do que se tornou osamba, dominado pelo comrcio, ocarnaval transformado em mercado-ria. Desde quando o samba deixou deser samba, deixou (deixou mesmo?)de ser expresso dos negros? Desde

    quando o carnaval, o desfile das esco-las de samba, perdeu a essncia? Hou-ve uma essncia? Qual?

    Na fico, antecipei no tempo adiscusso das questes do samba. Por-que as grandes transformaes, no uni-verso do samba, eclodiram, mesmo, nadcada de 1970, quando a msica per-deu em importncia para a cenografia eos figurinos. E, nesse quadro, a correla-

    o de poder se modificou totalmente.At, ento, nas escolas, os compositoresainda tinham alguma fora. Eu sem-pre lembro que, no incio das escolas,os grande lderes eram Paulo da Porte-la, Cartola, Antenor Gargalhada, ManoEloi etc, todos compositores.

    Em um momento do livro, al-gumas personagens femininas discu-tem se h ou no racismo no Brasil e,pela discusso, h um contraponto.Quando te perguntam se h racismono Brasil, o que diz? De 1950 at hoje,o que mudou?

    O que mudou foi que na Repbli-ca Velha havia polticas pblicas com oobjetivo de neutralizar a influncia afri-cana e at mesmo embranquecer o Bra-

    sil, o que ainda ecoava na dcada de 1950,poca de nossa primeira lei contra dis-criminao racial. E da dcada de 1980pra c criaram-se, bem ou mal, polticasde incluso social da populao negra. Oque, inclusive, neste exato momento, causa de muita tenso. Mas mudou.

    Se fosse possvel sintetizar umaresposta, o que dizer da contribuio

    negra para a cultura brasileira? E, ain-da, h reas nas quais no houve, mes-mo que indiretamente, contribuionegra no Brasil?

    Esta contribuio foi decisiva.Mas um fenmeno cruel comea a fazerefeito: a apropriao de boa parte dessacontribuio, principalmente no campoda cultura, por outros segmentos. Co-meou na msica instrumental, passoupela capoeira... E hoje chega ao exerc-cio das artes culinrias. Quando certasatividades ganham prestigio, os afrodes-cendentes so excludos de seu exerccio.Por razes puramente econmicas.

    No romance, fala-se de umaconspirao oficial contra os negros?

    Aconteceu mesmo? s uma brincadeirinha.

    Em sua opinio, aconteceu defato abolio no Brasil?

    A chamada Lei urea s tem umartigo. Nenhuma de suas consequnciasfoi contemplada. Aboliu-se a escravidoe jogou-se seus problemas no lixo.

    As religies de origem africanasganham espao no livro, h reflexo so-bre o impacto delas no Rio de Janeiro. Acrena do carioca passa pelos ritos afros?

    No atual momento, as igrejas ele-trnicas dominam. Mas o Rio na dca-da de 1950 via a religiosidade afro combastante interesse. E a sofisticao doscandombls, como eu j disse, atraa

    muita gente. Em Rio Negro, 50ficciona-lizo o episdio real da primeira Festa deIemanj na orla da zona sul. Que se tor-nou um evento turstico, para depois serafastada para as praias ou deslocada paraa vspera do dia 31. O sagrado do re-veillon carioca, hoje, a queima de fogos.

    EmRio Negro, 50, h um comen-trio dando a entender que o pessoal da

    zona norte do Rio tem inveja apenas domar da zona sul. isso mesmo?

    Respondo a esta pergunta, tendoacabado de ler no jornal que a Prefeiturado Rio inaugurou uma praia artificial emMadureira, na zona suburbana. A ques-to no exatamente inveja: o caso queas praias fora da zona sul, como as daIlha do Governador, de Ramos, Sepetibaetc., no recebem os cuidados necess-rios e a se tornam difceis de frequentar.Se a Baa de Guanabara, principalmen-te, fosse efetivamente despoluda, o Riotodo teria belas praias. E ningum teriainveja nem precisaria brigar.

    Sou um autorque tomou a

    afrobrasilidade comotema, por missoe por prazer.

    De 1950 pra c, houve mudan-as e avanos para os negros no Bra-

    sil. Racismo crime. Mas o que aindaprecisa avanar? Quais as conquistasque os negros ainda precisam ter?

    O Brasil precisa dar o bsico atodo mundo: sade, educao, mora-dia digna, transporte eficiente. Este o primeiro passo. Depois, criar polti-cas de incluso na mdia, na propagan-da... bastante desconfortvel, parans afrodescendentes, no nos vermos

    representados nos veculos de comuni-cao, nas campanhas de publicidade...Isso a primeira coisa que os negrosestrangeiros observam quando chegamaqui: Onde que est a outra metadeda populao?.

    Toda a sua obra publicada dia-loga com o legado dos negros desde

    o primeiro ensaio O samba, na reali-dade... at o Dicionrio da histria so-cial do samba, parceria com o profes-sor Luiz Antonio Simas. O senhor seconsidera um militante ou um autorcoerente com as origens? Como definea sua atuao intelectual?

    Sou um autor que tomou a afro-brasilidade como tema, por misso e porprazer. A invisibilidade do meu povo e a

    inferiorizao dos nossos valores me in-comoda muito.

    Na dcada de 1980, o senhortrocou a carreira de advogado pela decompositor de msica popular. Ana-lisando, com a percepo de 2015, foiuma deciso complexa ou no? Queadvogado o senhor poderia ter sido, setivesse continuado, se houvesse se naHistria?

    Foi a deciso mais acertada daminha vida. Porque deixei a advocaciapara viver da minha criao intelectual,mas sem abandonar o Direito.g

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    POEMAS | MXIMO SIMPSON

    O HOTEL MELANCLICO EL HOTEL MELANCLICO

    O hotel melanclico navega

    na noite rumo morte,com seus corredores escuros onde passeiamremotos marechais do grande czar Alexandre,com velhos samovares e garrafes tristes,e seus ladrilhos trincados, sua autocracia exaustae sua ptina ilustre:poltronas em farrapos,pequena arqueologia do pensionista pobreque conserva entre runas a metade de sua alma,e de outra parte a atmosfera de inverno,

    os ptios suspeitos e os altos ciprestesque protegem a casa.Tem um colecionador de seres minsculos,entomlogo suave de um musical enigma,que atravessa os ptios com um presunto e um trovo;tem um delgado junco tradutor de novelas:todos os dias come sua rao de consolo,mas tudo intil porque a visode um escndalo celeste domina sua alma.

    E Maria Ivanovna cheia de lembranas:em Petrogrado, quandoa vida era bela nos sales.

    O ar convalesceno orgulho ferido da casa:temos aqui um raro clima de perdo,e adolescentes velhoscomo a jovem aranha de rosto milenrioque instalou grandes mquinas ferozes

    no quartinho de um antigo jovem que morreu.H a mulherzinha que vive nas trevas,que se veste de luto espera do acaso,por apreenso com o talvez,em seu quarto imperial coberto pelo p.E h tambm a viva do rei da Tasmnia,com seu chapu vermelho de general ingls.

    E aqui estou eu que escrevo isto:eu busco o equilbrio das coisas,e por isso navego neste hotel profundorumo a meu grande destino:eu que sou feliz, sereno e apolneo,preparo com minha rgua de clculoas leis da terra.

    (Poemas del Hotel Melanclico, 2004).

    El hotel melanclico em la noche

    navega hacia la muerte,com sus pasillos negros por donde se paseanremotos mariscales del gran zar Alejandro,com samovares viejos y tristes damajuanas,y sus baldosas rotas, su extenuada autocracia,y su ptina ilustre:sillones andrajosos,pequea arqueologa del pensionista pobreque conserva entre ruinas la mitad de su alma,atmsfera de invierno de outra parte,

    los patios sospechosos y los altos cipresesque defienden la casa.Hay un coleccionista de minsculos seres,entomlogo suave de musical enigma,que atraviesa los patios com un jabn y un trueno;hay un delgado junco traductor de novelas:todos los das come su racin de consuelo,pero es intil todo porque domina su almala visin de un escndalo celeste.

    Y Maria Ivanovna com sus grandes recuerdos:em Petrogrado entoncesera bella la vida em los salones

    El aire convaleceem el golpeado orgullo de la casa:hay aqui un raro clima de perdn,y adolescentes viejoscomo la araa joven de rostro milenario,que instal grandes mquinas feroces

    em su pequeo cuarto de antiguo joven muerto.Y est la mujercita que vive em las tinieblas,que se viste de luto por si acaso,por aprensin em tal vez,em su cuarto imperial cubierto por el polvo.Y est tambin la viuda del rey de la Tasmania,com su sombrero rojo de general ingls.

    Y estoy yo, que esto escribo:yo busco el equilibrio de las cosas,y por eso navego em este hotel profundohacia mi gran destino:y yo que soy feliz, sereno y apolneo,com mi regla de clculo preparolas leyes de la tierra.

    raduo: Jair Ferreira dos Santos

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    9JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

    FALA JANTO HABLA JANTO

    Janto, o corcel de ps ligeiros, baixou a cabea e

    disse: Hoje te salvaremos, impetuoso Aquiles, masest prximo o dia da tua morte.

    Ilada, Canto XIX

    Cuando el caballo habla,treme toda a casa do olvido.treme toda a casa,treme todo o olvido:as portas da noite recuam.

    Quando o cavalo clama,quando o cavalo augura, profetiza,escurecem as janelas e os portes,e o homem deriva d um volteioe para, e espera.

    Cuando el caballo habla e se antecipa,todos se calam prontamente,e o pobre orgulho da espcie

    se amontoa sobre a lngua.Cuando el caballo habla,o pampa sonha com o mar,e o ginete desmonta,se aventura por seus olhos adentro,se desnuda.

    Cuando el caballo habla,quando sabe,a memria perdida se instala na existncia

    e corri as mais fundas certezas.Quando o corcel floresce na tormenta,quando suas mos se erguem para o cu,quando, sbito, brinca e vaticina,um ambguo claro empana os cristais,uma chuva indecisa retorna para o alto.

    Quando o cavalo sabe,quando o ginete escuta,o sacerdote declina dos trofus.

    Quando el caballo habla,o homem pe os ps na terra,pensa nos ancestrais,se prepara.(Antologia potica, 2004)

    Janto, el corcel de ligeros pies, baj la cabeza y

    dijo: Hoy te salvaremos, impetuoso Aquiles, peroest cercano el dia de tu muerte.

    Ilada, Canto XIX.

    Cuando el caballo habla,tiembla toda la casa del olvido.Tiembla toda la casa,tiebla todo el olvido:las puertas de la noche retroceden.

    Cuando el caballo clama,cuando el caballo augura, profetiza,se oscurecen ventanas y canceles,y el hombre a la deriva da un rodeo,hace un alto y espera.

    Cuando el caballo habla y se anticipa,todos callan de pronto,y el desvalido orgullo de la especie

    se amontona em la lengua.Cuando el caballo habla,la pampa suea com el mar,y el jinete desmonta,se aventura por dentro de sus ojos,se desnuda.

    Cuando el caballo habla,cuando sabe,la memoria perdida se instala em la existencia

    y corroe las hondas certidumbres.Cuando el corcel florece em la tormenta,cuando su manos de alzan hacia el cielo,cuando de pronto brinca y vaticina,un ambiguo claror empaa los cristales,una lluvia indecisa retorna hacia lo alto.

    Cuando el caballo sabe,cuando el jinete escucha,declina el sacerdote sus trofeos.

    Cuando el caballo habla,pone el hombre pie em tierra,medita em sus ancestros,se prepara.

    10 CNDIDO |

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    10 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    POEMAS | MXIMO SIMPSON

    plida, violcea, transparente, rubra mas verde, azul mas emana rupturas de desejo.

    nica talvez,ou mltipla, incorprea.

    No ausncia nem olvido,

    e espreita de longe, de perto,de dentro do nufrago e seu traje.

    o centro sem centro da dor,a fonte inexplicvel dos dias que passam.

    (La casa y otras visiones, 1995)

    Es plida, violcea, transparente,es roja pero es verde,es azul pero emana rupturas del deseo.

    Es nica tal vez,o es mltiple, incorprea.

    No es ausencia ni olvido,

    y acecha desde lejos, desde cerca,desde dentro del nufrago y su traje.

    Es el centro sin centro del dolor,la fuente inexplicable de los das que pasan.

    A gua em flor exibe seus rinchos,seus cristais,esmeraldas, turquesas, frutos brancos.

    A areia, igualitria, isola suas ddivas.O sol preside a injustia.

    (La casa y otras visiones, 1995)

    El agua em flor exhibe sus relinchos,sus cristales,esmeraldas, turquesas, frutos blancos.

    La arena igualitaria discrimina sus dones.El Sol preside la injusticia.

    A FONTE

    LA FUENTE

    CANCUN

    CANCN

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    11JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

    Oh entranhas dos nmeros,oh balano de pagamentos, Oh, madrastaenergia na Bolsa das frutas:a alma perturbada de Adam Smithsobrevoa campos e cidadesentoando o Te deum do pelicano ferido,do homem que dormita com um baco

    partidoenquanto o marceneiro sem razese o pescador sem guas nem ribeirasatravessam nus, levados pela mo,o vasto cemitrio dos ofcios antigos.

    (Antologia potica, 2004)

    Oh entraa de los nmeros,oh balanza de pagos, oh madrasta,energia burstil de las frutas:el alma perturbada de Adam Smithsobrevuela los campos y ciudadesentonando el Tedeum del pelcano herido,

    del hombre que dormita com un baco roto,mientras el ebanista sin races,y el pescador sin aguas ni riberasatraviesan desnudos, tomados de la mano,el vasto cementerio de los viejos oficios.

    Os sapatos que comprei outrorasem rastro de orgulho,sem pensar na forma ou na medida,usei-os de perfil, na contramo,e cheguei caminhando at a minha idade,desde a loja obscuraque vendia sapatos,destinos,

    estradas.

    (Antologia potica, 2004).

    Los zapatos que antao me comprsin asomo de orgulho,sin pensar em la forma o la medida,los us de perfil, a contramano,y llegu caminando hasta mi edad,desde essa tienda oscuraque venda zapatos,destinos, carreteras.

    ALMAS DE ADAM SMITH

    EL ALMA DE ADAM SMITH

    SAPATOS

    ZAPATOS

    Mximo Simpsonnasceu em Buenos Aires em 1929. Morou no Mxico e no Brasil, onde foiprofessor e jornalista. Publicou trabalhos de teoria poltica e comunicao, paralelamente aquase uma dezena de livros de poesia, cuja recepo lhe concedeu prmios importantes nacena literria latino-americana. Vive em Buenos Aires.

    Jair Ferreira dos Santosnasceu em Cornlio Procpio (PR), em 1946. ficcionista, poeta eensasta. Vive no Rio de Janeiro desde 1971. autor do ensaio O que ps-moderno (1985)e da coletnea de poemas A faca serena (1983). Seu livro de contos Cybersenzala (2006) foifinalista do prmio Portugal Telecom.

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    12 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    NA BIBLIOTECA DE SANDRA M. STROPARO

    A casa-bibliotecaA professora da Universidade Federal do Paran Sandra M. Stroparomostra seu acervo de 7 mil livros, que est distribudo por quasetodos os cmodos de seu apartamento

    LUIZ REBINSKI

    Fotos Kraw Penas

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    J |

    Aprofessora e tradutora Sandra M.

    Stroparo tem a vida pautada pe-los livros. Alm dos ttulos que aauxiliam em seu trabalho na Uni-

    versidade Federal do Paran (UFPR),onde leciona desde 1998 no curso deLetras, h livros sobre os mais diversosassuntos em sua biblioteca (de guiasculinrios a tratados sobre o ioi).

    Casada com o tambm tradutore professor Caetano W. Galindo, eles

    juntaram as bibliotecas em 2003, oque resultou em um acervo que hoje de aproximadamente 7 mi l livros. Paraguardar tudo, o casal transformou oapartamento em que vivem no bair-ro Alto da XV, em Curitiba, em umagrande biblioteca. No h um cmodoreservado aos livros. Eles esto distri-budos pela casa toda. S no h pra-teleiras no banheiro. Apesar da quan-tidade, tudo est em seu devido lugar.No h pilhas de livros pelos mveis,por exemplo.

    O acmulo de volumes e a faltade espao obriga Sandra a fazer do-aes de tempos em tempos. S noltimo semestre, foram mais de 500ttulos, em geral direcionados a alu-nos da UFPR. Infelizmente j no

    h mais espao, mas difcil parar decomprar. Nos ltimos anos, no entan-to, tenho adquirido tambm muitoslivros digitais.

    Em 2012 Sandra concluiu dou-torado na Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC). O tema erao poeta francs Stphane Mallarm(1842-1898) e parte do trabalho con-sistia em traduzir trechos da correspon-

    dncia do autor, que foi publicada naFrana entre 1959 e 1985. Para conse-guir os 11 volumes com as missivas doescritor, a tradutora mobilizou livreirose amigos de diversas partes do mundo,como Canad e Austrlia. No Brasil,

    no conheo nenhuma biblioteca, privada

    ou pblica, que tenha essa coleo, diz.Alis, Mallarm faz parte do pa-cote moderno de poetas franceses dasegunda metade do sculo XIX queSandra aprecia muito. Uma das estantesde sua biblioteca repleta de obras, nooriginal, de autores como Charles Bau-delaire, Paul Valry e Arthur Rimbaud,entre outros.

    Mas o acervo vai muito alm do

    interesse profissional da tradutora. Hmuitos livros sobre histria da arte, li-teratura brasileira (em especial de po-esia) e teoria da literatura. Uma biblio-teca interessante e diversificada, que oCndidomostra a seguir.

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    NA BIBLIOTECA DE SANDRA M. STROPARO

    Cinemateca (2008), de Eucana FerrazO Eucana recupera e d nova cara nossa tradio potica. Algumas pessoas o criticam por isso, mas ele noest preso ao passado, pelo contrrio, consegue um resultado interessantssimo por meio do lirismo.

    Stphane Mallarm, Correspondance (1959-1985), 11 VolumesMallarm morreu em 1898 e at 1959, quando suas cartas comearam a ser publicadas, a recepo crtica desua obra foi tortuosa. A correspondncia do autor tambm importante para entender vrio s aspectos de suaproduo, que foi essencial para o nascimento da poesia moderna.

    A histria da arte (1950), de E. H. GombrichJ dei aulas sobre histria da arte e essa uma rea que me interessa muito. O livro do Gombrich umareferncia que sempre indico aos meus alunos. um timo resumo dos movimentos art sticos atravs

    dos sculos.

    Lavoura arcaica (1975), de Raduan NassarTenho vrios livros em primeira edio que comprei em um sebo. Os ttulos eram do crtico TemstoclesLinhares. Entre eles est Lavoura arcaica. interessante notar, comparando com as edies mais recentes, comoo escritor mudou frases e palavras. Esta edio tambm traz uma posfcio em que Raduan fala das refernciasque aparecem na obra.

    Fotos Kraw Penas

    15JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

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    O Vampiro de Curitiba (1964/1965), de Dalton TrevisanLanado oficialmente em 1965 pela editora Jos Olympio, o livro mais famoso de Dal ton Trevisan teve outraverso, feita e distribuda pelo prprio autor, um ano antes do lanamento nacional. Sandra conseguiu seuexemplar em um sebo de Curitiba.

    Tratado dos anjos afogados (2008), de Marcelo ArielO Marcelo Ariel vive na periferia de So Paulo e sobre os problemas de uma grande metrpole que trata suapoesia. Ou seja, fala de realidades que no cabem no mundo. E o que impressiona tambm que ele tem umaenorme leitura da tradio potica.

    Poesia e prosa (1973), de Carlos Drummond de AndradeGanhei esse livro de aniversrio da minha me quando ainda estava na graduao. Drummond um dos meuspoetas preferidos. Acho-o fundamental para entender o sculo XX. Ele o melhor resultado de nossa poesia.

    Tenho uma edio igual, da editora Jos Aguilar, com a poesia do Joo Cabral de Melo Neto.

    Posies et un pome (1947), deStephane MallarmEsse o primeiro livro do Mallarm publicado no Brasil. Mas no se trata de uma traduo. Os poemas estoem francs. O livro foi feito por uma editora brasileira, mas impresso em Roma, na Itlia. Foi com esse ttuloque os poetas concretos os irmos Campos e Dcio Pignatari conheceram o poeta francs. A partir dacomearam a disseminar a obra de Mallarm no Brasil.

    Fotos Kraw Penas

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    POEMA |XICO CHAVES

    CHUVA.....................

    livrecomo

    agua

    caicho

    eiraeiraeiraeira

    pingo gotaque

    vailvai

    noazul do

    ventose

    juntar a

    mais uma emuitomais l

    vai

    formar o

    barco vela abertatempo oral

    raios vozestroves luzesfogos pingos

    deluz

    no olhodo

    furaco

    pra ondevai achuva que

    arma otempooral ?

    (interrogao cabode guarda chuva)

    pingo reluzenteasteroide transparenteparte da arteporta estandarte da vialctea

    cante conteonde

    caicomo o pingodegua livre prismaquevai

    evem

    no ar

    pingopontopontopingo nos

    isvira chuva grossapingo sobrepingo

    vai evem traoponto pingotrao pingopingo

    traopontocaicomoelemesmodiantedele e

    pronto

    servento evapor arte

    nemcomo

    lagonem

    como mar

    chova relampejetrovoe maremoteieraie fasque

    pingos de

    fogo nafasca da solda eltrica

    culosvermelhos

    solda solda pingafogo espirra raiono

    azul cobalto

    chuva trovorelmpago

    e pingod?gua

    salva mar nguasalve mangua!terra de pau dgua

    guagua quevenha mais

    gua

    aaqu

    aquaraquriorioaquaauraarcoirisdenoite

    nuvens que passamplumas lquidas aquarelas

    17JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

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    chovem nodeserto o oasisa

    miragem

    chapude guachapude

    gelochapude ventochapu de chuvaque voaao vento

    vem achuva chovechove chovechove chuva

    devento

    chovegente chove canivetes

    choveum ciscoao

    ventooolhoda

    serpenteoolhodo videntechove smente

    chove lgrimachove

    amorchove versochove guarda chuvachove palavra

    brilhao solna gotada

    chuvanoar sol e

    chuvanoolho do cu

    orvalho ponto deluz

    vento

    leva nuvemleva papelnuvem escuranuvem claracara

    dedrago

    muda vira gentemuda

    vira caradeleo

    cada gotacadauma uma vidacadaponto um mundo

    chove chovemesmo

    chovesemparar chove tudosem chorar

    (rio,1973).Xico Chaves letrista, poeta e artista plstico.Tem mais de 200 msicas gravadas por vriosartistas da MPB, entre os quais Nara Leo, Jards

    Macal, Caetano Veloso, Vincius Canturia, RobertoMenescal e Elba Ramalho. Chaves participou daGerao Mimegrafo. Entre seus livros, destacam-se Pssaro verde(1967), Pipa(1976), Purpurina(1977), Urucumfumaa(1979) e Poeta clandestino(1986). Vive no Rio de Janeiro (RJ).

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    ENSAIO | HENRY MILLO

    CLIQUESEM CURITIBA

    O paranaenseHenry Millo comeou a fotografar com 17 anose atua h mais de duas dcadas como fotojornalista. Atualmen-te integra a equipe de reprteres fotogrficos do jornal Gazeta doPovo. Entre seus trabalhos autorais, destaca-se a srie que Millochama de fotografia do ordinrio, em que retrata cidades e cida-dos comuns, buscando histrias que precisam ser contadas. Para

    realizar o ensaio Sineiros, publicado pelo Cndido, o fotgrafoacompanhou, durante trs anos, a celebrao de Corpus Christi eo trabalho dos garotos que tocam os sinos da Catedral de Curitiba.

    19JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

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    ESPECIAL | LITERATURA AFROBRASILEIRA

    Percurso recriadopela palavra escrita

    Morena Madureira

    Inicialmente apenas representados em obras de prosa e de poesia, os afro-brasileirospassaram a escrever, a publicar e se afirmam, cada vez mais, na literatura brasileira e noimaginrio cultural do pasMARCIO RENATO DOS SANTOS

    Impossvel como nunca ter tido um rosto,o prximo, e o nono, livro de Ricar-do Aleixo, rene poemas escritos en-tre 2012 e 2015, entre os quais, Na

    noite calunga do bairro Cabula. O tex-to potico surgiu aps o poeta minei-ro receber a notcia do assassinato de13 jovens negros na periferia de Salva-dor, na noite de 6 de fevereiro deste ano.O poema comea assim: Morri quan-tas vezes na noite mais longa?/ Na noi-

    te imvel, a mais longa e espessa, morriquantas vezes na noite calunga?/ A noi-te no passa e eu dentro dela morrendode novo sem nome e de novo morrendoa cada outro rombo aberto na muscula-tura do que um dia eu fui./ Morri quan-tas vezes na noite mais rubra?

    Apesar das origens, de todo umpercurso artstico que inclui crticas aoracismo e dilogo com o legado cul-

    tural africano, Aleixo, 55 anos, no seconsidera um poeta negro. Esse rtulo limitante e eu quero expandir ao m-ximo a minha atuao, quero a liberda-de. Sou, mais do que tudo, um poeta,diz o artista mineiro, comentando que,O mineiro Ricardo Aleixo no se considera um poeta negro. Esse rtulo limitante. Sou, mais do que tudo, um poeta, diz.

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    Divulgao

    ao assumir a postura, amigos, colegas emilitantes de movimentos negros rom-

    peram relaes com ele.Aleixo, que nasceu e vive em

    Belo Horizonte, participa de eventosculturais no Brasil em outros pases. Jesteve em territrio alemo, em Berlime em Frankfurt, na Espanha e no M-xico. Em geral, convidado para reali-zar performances. Ele se autodenomi-na um performador e explica o motivo:

    Meus textos potico so vocalizadosem voz alta. H casos em que a musi-calidade tanta que agencio o corpo, ogesto e a dana e, ento, estou diante dealgo que requer, mais do que uma leitu-ra, uma performance.

    Dialogando com os dadastas ecom os concretistas, produziu os pri-meiros poemas autorais aos 17 anose comenta que nem nos delrios juve-

    nis cogitou que teria o atual reconhe-cimento: O meu crculo de atuao restrito, mas tenho alguma visibilida-de. Prefere, porm, no expor as di-ficuldades que enfrenta desde o inciodo seu percurso artstico. Era ingnuo,

    por exemplo, em relao ao racismo. Se

    algum dissesse que eu no poderia fa-zer poemas, eu daria risada. Afinal, ti-nha tudo em casa: papel, caneta, mqui-na de escrever, memria, corpo e voz,comenta, completando, sem entrar emdetalhes, que nem tudo tranquilo.

    Um espelho do mundoO meio literrio em certa

    medida a representao, embora com

    suas singularidades, das imposturas eimposies raciais e econmicas da so-ciedade. A afirmao de Ronald Au-gusto, autor entre outros, dos livros Cairde costas (2012), Empresto do visitan-te (2013) e Nem raro nem claro(2015).

    Minha experincia como poeta e escri-

    tor negro em Porto Alegre me ensinoua reconhecer a existncia de um descon-forto mtuo, isto , s vezes represen-to o outro, o estranho e, de outra parte,os demais escritores, que deveriam seraquilo que chamamos os [meus] iguais,formam um grupo com o qual no al-cano ou nem quero alcanar a menoridentificao, diz.

    Felizmente, acrescenta Augusto,

    a literatura brasileira tem uma srie deartistas que, para ele, servem de para-digma tanto porque afrontaram, quan-to porque se afirmaram apesar desseestado de coisas: Machado de Assis,Cruz de Sousa e Oliveira Silveira

    O gacho Ronald Augusto lembra que alguns autores negros, como Machado de Assis e Cruz e Souza, se afirmaram comoartistas apesar do preconceito e de outras barreiras sociais.

    ambos negros. Algum argumentarque eles so excees que confirmam

    a regra, mas, lembrando Jean-Luc Go-dard, digo que o cnone, o conven-cional, a regra, e a arte exceo mesmo, argumenta o poeta gacho.

    Esse fosso, literal e real, que se-para autores brancos e negros, mencio-nado por Ronald Augusto, tem com-provao cientfica. A professora daUniversidade de Braslia (UnB) Regi-

    na Dalcastagn coordena o Grupo deEstudos em Literatura Brasileira Con-tempornea que, numa pesquisa envol-vendo 700 romances brasileiros, apon-tou que 96% dos autores so brancos foram consultadas longas narrativasficcionais publicadas em 3 perodos, de1965 at 1979, entre 1990 e 2004 e, fi-nalmente, de 2005 a 2014.

    alvez, no caso da criao ar-

    tstica, fosse diferente, mas a literatu-ra espelha o preconceito social e tornaa questo ainda mais visvel, observaRegina. E, ela acrescenta, uma vez queos escritores, em geral, escrevem a res-peito daquilo que conhecem, o fato de

    22 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    S C A | T AT A A O AS A

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    ESPECIAL | LITERATURA AFROBRASILEIRA

    EM EVENTO LITERRIO NO H NEGROS

    Os negros no conseguem visibilidade no Brasil, arma Paulo Lins. Dezoito anos

    aps o lanamento do romance Cidade de Deus(1997), o carioca nascido no bairro Estcio de S

    vive em So Paulo e, apesar de ter conquistado uma situao nanceira mais confortvel, ainda

    identica uma mesma realidade social: Em evento literrio, congressos mdicos ou encontros

    de dentistas no h negros. Voc s encontra negro nas camadas mais baixas da sociedade.

    Ele convidado para bate-papos e mesas em encontros ligados ao universo dos livros,

    acompanha a produo dos escritores contemporneos, entre os quais destaca Ferrz, Ana Paula

    Maia, Milton Hatoum e Daniel Munduruku. A literatura brasileira vai bem, obrigado. No entanto,

    elogia mais do que qualquer outra obra contempornea o romance Um defeito de cor, de Ana

    Maria Gonalves. uma obra-prima, um livro to bom e complexo quanto Grande serto: veredas,

    do Guimares Rosa.

    Colaborador de roteiro da novela I love Paraispolis, da TV Globo, Lins diz estar, j fazalguns anos, muito interessado em audiovisual escreveu roteiro para televiso e para cinema,

    entre os quais Quase dois irmos(2004), lme de Lcia Murat prmio de melhor roteiro da

    Associao Paulista de Crticos de Arte (APCA), em 2005.

    haver poucos autores negros publicandoromance o gnero com mais prestgiono pas se reflete em poucos persona-gens negros na fico brasileira.

    Entre os 4% de autores negrosapontados pela pesquisa da UnB, hpelo menos duas vozes literrias comressonncia. Uma delas a da mineira

    Conceio Evaristo, autora, entre ou-tros ttulos, de dois romances a respei-to da identidade negra, Ponci Vicncio(2003) e Becos da memria(2006).

    O outro destaque o cario-ca Paulo Lins, autor de Cidade de Deus(1997), romance sobre as transforma-es de um conjunto habitacional doRio de Janeiro, e em alguma medida doprprio Brasil, sobretudo pelo impac-

    to do narcotrfico. Adaptado para o ci-nema em 2003 por Fernando Meirel-les o longa-metragem homnimoconquistou prmios em diversos pasese foi indicado ao Oscar em quatro ca-tegorias. Em 2012, Lins lanou o seusegundo romance, Desde que o samba samba [Leia mais sobre no autor noBOX ao lado].

    No gueto e fora deleDesde 2006, o curitibano Celio

    Jamaica, 38 anos, escreve poemas, cr-nicas e contos, como ele mesmo diz,levando em considerao temas uni-versais. Posto logo existo, conto pu-blicado na antologia Flupp Brasil: no-vos autores (2014), um exemplo: otexto de fico dialoga com a realida-

    de contempornea, num contexto emque as redes sociais so onipresentes:

    Reproduo

    23JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

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    Hoje pela manh fui conferir a mi-nha pontuao no Lulu. Fiquei pre-ocupado, pois no havia nenhum co-mentrio e a frase matinal que haviapostado no Facebook tinha recebidoapenas trs curtidas.

    Anteriormente, Jamaica era maisengajado na causa negra. No que te-

    nha deixado de problematizar, por meioda palavra falada e escrita, questes re-lacionadas, por exemplo, violnciae racismo. que os textos universaispodem atingir mais pessoas e so umaporta de entrada para, em um segundomomento, eu falar de temas como direi-tos humanos, afirma.

    O curitibano Celio Jamaica se vale de textos mais universais para, em um segundo momento, discutir questes urgentespara ele, como direitos humanos.

    Reproduo

    Jamaica participa de saraus reali-zados em bairros da periferia de Curi-tiba e em cidades da Regio Metropo-litana, inclusive em ocupaes. Nessesencontros, ele diz que dezenas de jovensnegros declamam textos e, na maiorparte do caso, a temtica da cha-mada literatura hiphopiana quase

    a mesma: famlias desestruturadas, fal-ta de educao, comida e oportunidade,entre outros problemas.

    J o paulistano Allan da Rosa, 39anos, acredita que dialogar apenas com amilitncia pode ser uma ao de poucoimpacto e ressonncia limitada. Almdisso, a literatura tem de ser imprevisvel

    e deve ir alm do discurso, do questio-namento de valores e, por exemplo, daexigncia de cotas. Gosto da beleza e daplstica do texto, comenta o autor, en-tre outros, dos livros Vo(2005),Morada(2007) e Da cabula(2008).

    Entre 2005 e 2009, Rosa esteve frente da Edies or, selo indepen-

    dente que viabilizou obras para 20 es-critores e poetas, sobretudo, das peri-ferias paulistanas. Ele chama atenopara o fato de que, cada vez mais, au-toras e autores negros escrevem e pu-blicam prosa e poesia no Brasil. Acon-tece que o sistema cultural excludentee apenas alguns autores so badalados.

    O paulistano Allan da Rosa comenta que autoras e autores negros escrevem e publicam, cada vez mais, prosa e poesia no Brasil.

    Kristiane Foltran

    A literatura espelha opreconceito social e torna a

    questo ainda mais visvel,Regina Dalcastagn

    24 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    ESPECIAL | LITERATURA AFRO BRASILEIRA

  • 7/24/2019 Cndido 52_Literatura Afro-Brasileira

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    ESPECIAL | LITERATURA AFROBRASILEIRA

    E tem mais: no basta publicar. O livroprecisa entrar em circulao, ser lido,discutido e o sujeito tem de participar

    do circuito literrio, muitas vezes con-quistar prmios, para ser reconhecidocomo escritor, completa.

    Eu enunciadorO negro est recriado em pro-

    sa e poesia desde o incio da literatu-ra brasileira, por exemplo, nos poemasde Gregrio de Matos Guerra e, pos-teriormente, nas obras dos autores do

    Romantismo e do Realismo. Mas osnegros aparecem quase que confundi-dos com os mveis e demais objetosda casa, pois, em geral, no tm voz natrama romanesca. Ocupam o lugar dosubalterno, do escravo domstico que

    convive no mbito familiar para servira seus senhores, explica a professorada Universidade Federal do Rio Gran-

    de do Sul (UFRGS) Zil Bernd.Autora, entre outros, de O que negritude? (1988), Zil lembra queCastro Alves (1847-1871) conheci-do como o poeta abolicionista, apesarde que, em seus poemas, o negro ainda retratado em terceira pessoa, ou seja, aquele a respeito de quem se fala. Aestudiosa cita outro autor, Luiz Gama(1830-1882), filho de escrava e pai bran-

    co, como o primeiro a dar voz ao perso-nagem negro que assumir, no poema,a primeira pessoa do discurso assu-mindo a sua condio de negro. Hojereconhecemos sua fora potica e o fatode ter sido uma espcie de precursor da

    Esse rtulo [poeta negro] limitantee eu quero expandir ao mximo a minhaatuao, quero a liberdade. Sou, mais doque tudo, um poeta,

    Ricardo Aleixo

    Luiz Gama considerado o primeiro autor brasileiro a dar voz ao personagem negro que assumir, no poema, a primeira pessoa do discurso.

    Reproduo

    25JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN | CNDIDO

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    TRS MESTRES

    A convite do CNDIDO, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zil

    Bernd comenta, brevemente, o legado de 3 autores negros, Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-

    1922) e Machado de Assis (1839-1908):

    Cruz e Sousa [imagem] foi equivocadamente lido, inclusive pela comunidade negra, como um autor

    deslumbrado com a cor branca. que se s se liam seus poemas simbolistas, deixando-se de lado poemas

    em prosa como o Emparedado, texto profundamente empenhado na denncia do racismo. Em relao a Lima

    Barreto, quanto mais se l a sua obra mais se percebe sua necessidade de denunciar o cinismo do preconceito

    no Brasil que aceita o negro desde que ele que no seu lugar. Isso lindamente tematizado por ele no

    romance Recordaes do escrivo Isaas Caminha.Quanto a Machado de Assis, preciso captar o simbolismo

    de sua crtica hierarquizao das classes sociais e a tendncia a deixar os escravos e seus descendentes

    na periferia do sistema. Ao ler atentamente seus contos e crnicas encontramos exemplos eloquentes de suacrtica mordaz ao preconceito e ao apagamento da comunidade negra na sociedade brasileira.

    negritude, deixando emergir em seuspoemas o eu que se quer negro e issoem pleno perodo escravocrata, portan-

    to, anterior a Castro Alves, afirma.Zil inciou o curso doutorado naUniversidade de So Paulo (USP) na d-cada de 1980. O objetivo de sua tese, de-fendida em 1987, era comparar a produ-o literria afro-brasileira com a poesiada negritude do caribe de lngua france-sa: Meu ponto de partida foi uma d-vida. Se a msica brasileira conta com acontribuio decisiva de compositores e

    letristas negros, por que essa contribui-o [dos afro-brasileiros] , aparente-mente, pouco expressiva na literatura?.

    Em seguida, analisou as obras te-ricas e crticas existentes e diz ter encontra-do, em sua maioria, o esquema binrio que

    No entendimento de Zil Bernd,o critrio epidrmico, ou da cor da pele,leva a equvocos porque um autor ne-

    gro no precisa necessariamente fa-lar de negritude, enquanto um autorbranco pode ter uma memria asso-ciada cultura afro: O critrio tex-tual, da recuperao de uma mem-ria individual ou coletiva associadaao passado mais rico, possibilitan-do descobertas ligadas a temas de umacomunidade que est reescrevendo oseu percurso por meio dos rastros me-

    moriais. A literatura, talvez mais doque a Histria, pode reabilitar os apa-gamentos dessa histria pontuada porsofrimentos e sacrifcios. g

    falava em produo literria de autoresbrancos e de autores negros. Como achoos binarismos redutores e li praticamen-

    te toda a produo potica de 1960 ataquele momento [dcada de 1980], ve-rifiquei que muitas vezes quando nohavia uma foto do autor na capa eu noconseguia identificar se era obra de bran-cos ou de negros. Alm disso, autoresaparentemente brancos se identificavamcomo negros e vice-versa, conta.

    A especialista diz ter constru-do o conceito do eu enunciador:

    Seria a emergncia no texto ou poe-ma de um eu enunciador que assumea identidade, a memria e os valoresa comunidade afro, o diferencial quepassaria a adotar para classificar comoliteratura afro-brasileira ou no.

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    Abdias do Nascimento considerado um dos maiores pensadores e expoentes da cultura negra no Brasil e no mundo.Alm de ter escrito uma srie de livros sobre o assunto, fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental doNegro e o Museu da Arte Negra.

    ENSAIO

    Literaturaafro-brasileira,configuraesO professor da Universidade Federal de Minas Gerais

    (UFMG) Eduardo de Assis Duarteanalisa a produoliterria das autoras e dos autores negros no Brasil, dosmais antigos aos contemporneos

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    Na segunda metade do sculo XX,e mais fortemente a partir da d-cada de 1970, a literatura brasilei-ra exibe um quadro de progressi-

    vo esgotamento e superao do projetomodernista, em especial dos mpetos denegao do passado e de celebrao de

    uma brasilidade fundada na mestia-gem e representada a partir de uma vi-so distanciada do outro. Mais do queisto, salta aos olhos o vazio marcadopela ausncia de um projeto unificador,que rena as diferentes formas de ex-presso em torno, por exemplo, da afir-mao de um esprito nacional uno noseio de uma cultura multifacetada.

    Embora persistam em grande me-

    dida os valores estticos consagrados noOcidente e canonizados no Alto Mo-dernismo, de que so exemplos Guima-res Rosa e Clarice Lispector; ou o queFlora Sussekind classifica como escritado eu a marcar a poesia dos remanes-centes da gerao mimegrafo; ou, ain-da, textos que buscam narrar a nao,como o Viva o povo brasileiro (1984), de

    Joo Ubaldo Ribeiro, patente a inexis-tncia do clima de movimento e, mes-mo, de gerao, que marcou a recepoentre ns dos caminhos apontados pelasvanguardas histricas do sculo XX.

    Resulta da o quadro em que so-bressaem a diversidade de projetos e abusca de afirmao de parcelas minorit-rias perante o poder cultural. Cabe entoressaltar iniciativas oriundas de segmen-

    tos marginalizados, em que o sentimentode comunidadese sobrepe ao de nacio-nalidade.Nesse contexto, ganha corpo aproduo literria dos afrodescendentes.

    A partir da dcada de 1970, escri-tores negros se organizam em coletivos,a exemplo dos grupos GENS, na Bahia,

    Negrcia, no Rio de Janeiro, Palmares, emPorto Alegre e Quilombhoje, em So Paulo.Buscam a construo de uma literatura em-penhada no combate ao racismo e na afir-mao dos valores culturais desse segmentohistoricamente excludo da cidadania. Em1978, tem incio a srie Cadernos Negros, com

    a publicao anual (e at hoje ininterrupta)de um volume coletivo, ora de fico, ora depoesia. E surgem nomes como os de Cuti(Luiz Silva) e Conceio Evaristo, em meio adezenas de outros, com uma produo vigo-rosa que vem se juntar a trabalhos como os deLino Guedes, Carlos de Assumpo, Solanorindade, Abdias Nascimento, Oswaldo deCamargo, Joel Rufino dos Santos, Nei Lo-pes, Muniz Sodr e tantos mais.

    ais autores tm como refernciaa herana da literatura da dispora ne-gra, cujo incio, enquanto movimento, sed com a Harlem Renaissanseestaduni-dense, na dcada de 1920, para chegar ao

    Negrismoe aoIndigenismodos pases cari-benhos e Frana daNgritude, na dcadaseguinte. Este legado passa a enegrecera escritura de inmeros remanescentes

    da escravido em diversos pases, inclusiveno Brasil, com o incio das atividades doEN eatro Experimental do Negro,em 1944. A estes, soma-se o repertrio deinmeros precursores que, desde o sculoXVIII, colocaram em letra impressa seusversos e narrativas, de modo a inscrever oponto de vista interno ao existir negroe asuas formas de expresso. Emerge entoa memria marcada por sculos de desu-

    manizao e rebaixamento a mera forade trabalho, tudo isto respaldado por umaampla cadeia discursiva que abarcava tan-to o discurso filosfico (Hegel) quanto ocientfico (Gobineau, aine, entre outros),e terminava por naturalizar a inferiori-dade e a excluso.

    Percussores e Machado de AssisDentre os precursores, dois exem-

    plos brasileiros surpreendem: a mara-

    nhense Maria Firmina dos Reis e obaiano radicado em So Paulo LuizGama. Firmina publica, em 1859, oromance rsula, primeira narrativaabolicionista de nossas letras, em quea frica surge como espao de civili-zao e o trfico inscrito como bar-brie de origem branca e ocidental,a partir mesmo da descrio detalha-da do poro onde era amontoada a

    mercadoria humana. J Luiz Gamatraz a pblico, tambm em 1859, suasPrimeiras trovas burlescas de Getuli-no, em que no apenas se apresentacomo Orfeu de carapinha e se re-fere respeitosamente mulher negra,mas tambm se ocupa em satirizar

    de modo impiedoso as elites escravo-cratas de seu tempo. J prevendo paraseus escritos o lugar marginal ocupado

    mais tarde por outros afrodescenden-tes, Gama afirma que seus textos se si-tuam nas abas do Parnaso.

    odavia, nem todos os autoresnegros do passado explicitam o pon-to de vista afro-identificado, fato queremete ao contexto e ao pblico leitorde outras pocas, sobretudo do sculoXIX e de pelo menos metade do scu-lo XX. O prprio Machado de Assis se

    considerava um caramujo a dissimu-lar sua negrciaperante o leitor brancode seu tempo. um capoeirista da lin-guagem, como j afirmou Luiz CostaLima. Por trs da aparente superficia-lidade de muitos de seus contos e ro-mances, como Helena,est a crtica ao

    A relao da obra de Machado de Assis com o tema racial controversa. Mas o pensador Octvio Ianni aponta-o,juntamente com Cruz e Sousa e Lima Barreto, como fundador da literatura negra no Brasil.

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    Autor de uma obra vasta, Joel Rufino dos Santos ganhou o Prmio Jabuti em duasoportunidades: em 1979, com Uma estranha aventura em Talalaie; e 2008, com O barbeiro e ojudeu da prestao contra o Sargento da Motocicleta.

    Evandro Teixeira

    discurso senhorial e branquitude quebusca naturalizar esse discurso comoverdadeiro. Machado um ancestralque deixou inmeras lies. em razoOctvio Ianni quando, no ensaio Lite-ratura e conscincia (1988), aponta-o,juntamente com Cruz e Sousa e LimaBarreto, como fundador da literaturanegra no Brasil, sendo, portanto, cls-sico duas vezes: da literatura brasileirae da literatura negra. Ousaria dizer queo considero trs vezes clssico, pois o

    tambm da literatura ocidental e, nes-te ponto, concordo com Harold Bloom.O autor de Dom Casmurro pre-

    cursor da literatura afro-brasileira pordiversas razes, conforme procurei de-monstrar em Machado de Assis afrodes-cendente(2007). Ressalto apenas duas, asegunda decorrente da primeira: o pon-to de vista afro-identificado, no brancoe no racista, apesar de toda a discrio

    e compostura do caramujo; e o fato dematar o senhor de escravos em seus ro-mances, criando um universo ficcionalque alegoria do fim da escravido e dadecadncia da classe que dela se benefi-ciou ao longo de nossa histria.

    Outro precursor Jos do Nasci-mento Moraes. Em 1915, em pleno SoLuiz do Maranho dominado pelas oli-garquias herdeiras do escravismo, ele pu-blica o romance Vencidos e degenerados.Olivro se inicia s 8 da manh do dia 13 demaio de 1888, algo raro na fico brasi-leira. Alm de toda a agitao ali ocor-rida, traz, quase como crnica histrica,as reaes provocadas pela nova situaona subjetividade e no comportamento deantigos senhores e dos agora ex-escravos.E o leitor se depara com cenas de vio-

    lncia at ento inditas: negros que de-volvem no rosto dos antigos senhores asbofetadas que sofriam diariamente; ou-tros que apedrejam suas manses; ou-tros que deixam o jantar queimando nofogo... E h brancos revoltados que se

    articulam para dar o troco, ou que, emdesespero, se descontrolam. NascimentoMoraes traa um panorama realista doregime servil e de sua continuidade sobnovas formas de explorao, respaldadaspelo racismo, tal como previsto por Ma-chado de Assis. E, muito antes de Gil-berto Freyre, desconstri o 13 de maioenquanto happy endapaziguador e con-sagrador do mito da escravido benigna.

    Novos e novssimas

    A fico mais recente reproduz es-tas linhas de fora, em especial a recupe-rao crtica do passado, como emO carrodo xito(1972),A descoberta do frio(1979)ou Obo(2014), de Oswaldo de Camar-go; Zumbi(1980), Crnica de indomveisdelrios (1991) ou Bichos da terra to pe-quenos(2010), de Joel Rufino dos Santos;Ponci Vicncio (2003), Becos da memria(2006), Insubmissas lgrimas de mulheres

    (2011) ou Olhos dgua(2015), de Con-ceio Evaristo; Vinte contos e uns trocados(2006),Mandingas da mulata velha na ci-dade nova(2009), Oiobom(2010) ou Rio

    Negro, 50(2015), de Nei Lopes; Santugri(1988) ou A lei do santo(2000), de Mu-niz Sodr; Cidade de Deus(1997) ou Des-de que o samba samba(2012), de PauloLins; alm de Um defeito de cor(2006), de

    Ana Maria Gonalves, ganhador do Pr-mio Casa de las Amricas.Em paralelo, persiste uma linhagem

    contundente sem se descuidar da levezavinda do humor, a exemplo deContos crespos(2009), de Cuti, ouMulher mat(r)iz(2011),de Miriam Alves, ou S as mulheres sangram(2011), de Lia Vieira. E no se pode esque-cer a produo de jovens ficcionistas, comoCidinha da Silva, Allan da Rosa, Sacolinha,

    Lande Onawale, Fbio Mandingo ou Cris-tiane Sobral, todos com trabalhos de relevo,sobretudo no conto. E impe-se mencionarainda autores que optam por edies cole-tivas como Cadernos Negros,a exemplo deMrcio Barbosa e vrios outros.

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    Eduardo de Assis Duarte professor da Faculdadede Letras da UFMG, organizador de Machado de

    Assis afrodescendente: escritos de caramujo(2007),Literatura a afrodescendncia no Brasil: antologia

    crtica(2011, 4 vol.), Literatura afro-brasileira: 100autores do sculo XVIII ao XXI(2014) e Literaturaafro-brasileira: abordagens na sala de aula(2014).Vive em Belo Horizonte (MG).

    Ana Maria Gonalves autora do elogiado romance Um defeito de cor(2006), vencedordo Prmio Casa de las Amricas. O romance conta a histria de uma africana idosa, cegae beira da morte, que viaja da frica para o Brasil em busca do filho perdido h dcadas.

    J na poesia, pode-se destacar,de incio, as coletneas Obra reunida(2012), de Oliveira Silveira e A cor da

    palavra (2009), de Salgado Maranho.Alm dessas, Um homem tenta ser anjo(1959), 15 poemas negros(1961) e O es-tranho(1984), de Oswaldo de Camargo;

    A cor da pele(1980) e Texturaafro(1992),de Ado Ventura; Plano de voo(1984) eTodo o fogo da luta(1989), de Paulo Co-lina; Zeozrio blues(2002) eAs coisas ar-cas (2003), de Edimilson de Almeida

    Pereira;A cor da demanda(1997) e Tudoo que est solto (2010), de le Semog;Sanga, (2002), Negroesia (2007) e Ki-zomba de vento e nuvem(2013), de Cuti;

    Estrelas no dedo(1985), de Miriam Al-ves; Poemas de recordao e outros movi-mentos(2008), de Conceio Evaristo; e

    No vou mais lavar os pratos (2010), deCristiane Sobral, entre outros. So for-mulaes poticas que expressam de di-

    versas formas a identidade do negro,mulher ou homem, revisitam a hist-ria, celebram os ancestrais e as divinda-des dos cultos afro, ou denunciam, s ve-zes de forma explicitamente militante, adiscriminao contempornea. Mas quetratam tambm de tpicos mais univer-sais, situando-os em nova perspectiva, aexemplo do erotismo.

    Os nomes e textos acima arrola-dos so apenas parte do conjunto presen-te na antologia Literatura e afrodescendn-cia no Brasil(2011, 4 volumes), que trazum conjunto de cem escritoras e escrito-res, a maioria ausente da histria de nossaliteratura. Cada autor contemplado comum artigo crtico contendo dados biobi-bliogrficos, apresentao geral da obra,fontes de consulta, e ainda um conjunto

    de textos representativos. um forma-to voltado para a divulgao e o estudointrodutrio destes autores, resgatandomuitos deles do esquecimento.

    Noutra frente de atuao, nossoprojeto mantm na internet o literafro

    Portal da literatura afro-brasileira, con-sidervel arquivo de livre acesso atravsdo endereo www.letras.ufmg.br/litera-fro. At o momento, o portal contm:dados biogrficos de 120 autores; rela-o de aproximadamente 2.500 obraspublicadas, entre livros e textos em an-tologias; indicao de mais de 1.000fontes de consulta sobre os autores; co-nexo imediata com centenas de ende-reos digitais com informaes sobre asobras relacionadas; mais de 200 artigos

    crticos sobre as obras elencadas no por-tal, acrescidos de ensaios tericos e rese-nhas de obras recentes. E ainda centenasde textos, entre poemas, contos, crnicase excertos de romances, disponibilizadosgratuitamente. Alm disso, o projetopublica a newsletter literafro novidades,de periodicidade bimensal, com infor-maes e resenhas de lanamentos, di-vulgada por e-mail e facebook para lei-

    tores do pas e do exterior.Hoje, no meio acadmico, a li-

    teratura afro-brasileira um concei-to em construo, isto , em discusso.Quando acrescentado ao texto do es-critor negro, o suplemento afro ga-nha densidade crtica a partir da exis-tncia de um ponto de vista especficoa conduzir a abordagem da questo,seja na poesia ou na fico. al pers-pectiva permite elaborar o tema demodo distinto daquele predominantena literatura cannica. Por outro lado,ao verificarmos o volume de textosacumulados todo este tempo, no hcomo duvidar da existncia desta ver-tente de nossas letras, ao mesmo tem-po dentroeforada literatura brasileira,como preconiza Octvio Ianni no en-

    saio Literatura e conscincia. Frutode uma articulao contempornea eps-nacional, o veio afroconstitui umsuplemento algo a mais que chegapara abalar a inteireza do todo, da su-posta unicidade antes existente. g

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    O cineasta Fernando Severotraa um panorama das obrasde escritores negros brasileiros que foram adaptadas para o cinema

    Presena restrita

    Se escasso o nmero de escrito-res afrodescendentes de destaquena literatura brasileira, menor ain-da o nmero daqueles cuja obra

    chegou s nossas telas. Para dar algumarelevncia numrica a esse fator, ne-cessrio que se inclua entre eles os au-

    tores cuja ascendncia negra foi omiti-da, obscurecida ou minimizada anos afio, como o caso de Machado de As-sis e Mrio de Andrade. Neto de es-cravos por parte de pai e me, LimaBarreto construiu sua obra em meio a

    um enorme preconceito racial e social,to intenso como o que se abateu sobreCruz e Souza. nico autor contempo-rneo includo nessa restrita lista, Pau-lo Lins desfruta notoriedade principal-mente por ter escrito Cidade de Deus o maior sucesso do cinema brasileiro

    contemporneo no exterior do quepor toda sua obra como escritor.Uma questo essencial nesse pa-

    norama o fato de que nenhum filmeadaptado a partir de obras dos escri-tores citados foi dirigido por cineastas

    afrodescendentes. ambm em peque-no nmero na cinematografia brasileira,nenhum desses realizadores conseguiucriar quantidade expressiva de filmes oudeixar marcas impactantes na histriado cinema brasileiro. Evidentemente,essa presena desproporcional da cultu-

    ra negra na literatura e no cinema bra-sileiros reflete o racismo velado ou ex-plcito que permeia nossa histria e levaa acusaes como as de que o meio aca-dmico teria embranquecido Macha-do de Assis e Mrio de Andrade para

    torn-los aceitveis como figuras lumi-nares da cultura nacional.

    Dentro da restrita filmografia de

    longas-metragens realizados a partirde livros escritos por afrodescendentes,um dos filmes que mais se destacou porsuas qualidades artsticas foi Cidade deDeus, de Fernando Meirelles, que arre-batou 65 prmios no exterior e foi indi-cado a quatro Oscars. O filme, no en-tanto, no foi uma unanimidade crticano Brasil. Embora adaptado de um livrosemi-autobiogrfico de Paulo Lins, foi

    criticado por se valer de clichs na abor-dagem do modo de vida da populaoafrodescendente da periferia carioca. Foialvo tambm de intensa polmica quan-do a crtica e pesquisadora carioca IvanaBentes cunhou a partir dele a expressocosmtica da fome, em contraposio esttica da fome, termo celebrizadoem manifesto de Glauber Rocha. Foiquestionado se Meirelles, cineasta bran-co, oriundo da classe mdia e publicit-rio, seria a pessoa mais adequada paratratar cinematograficamente as comple-xas relaes de classe e de tenso racialque prope a obra, e criticada sua espe-tacularizao da violncia e a associaoautomtica entre negritude e margina-lidade a que o filme pode induzir. Maisde dez anos depois de sua estreia a obra

    ainda suscita discusses acaloradas nasrevises histricas da crtica e em traba-lhos de pesquisadores acadmicos.

    Joaquim Pedro de Andrade rea-lizou um dos filmes mais emblemticosdo Cinema Novo a partir deMacunama,

    Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o maior sucesso do cinema brasileiro contemporneo no exterior. O filme uma adaptao do livro homnimo de Paulo Lins.

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    Joaquim Pedro de Andrade realizou um dos filmes mais emblemticos do Cinema Novo a partir de Macunama, obra de Mrio de Andrade.

    Fernando Severo cineasta e professor de cinema.Dirigiu, entre outros filmes, o curta-metragem Visionrios(2002) e o longa Corpos celestes(2009). Atualmente diretor do Museu da Imagem e do Som do Paran.

    de Mrio de Andrade, marco da litera-tura modernista brasileira. Nascido ne-gro em meio selva, o personagem ttulo

    se transforma em branco antes de suasaventuras na cidade, condio que no fil-me de Joaquim Pedro se mescla aos as-pectos surrealistas e alegricos pelo qualenvereda essa adaptao. A questo ra-cial no ocupa lugar de destaque na obrade Mrio de Andrade e inexistente emoutro filme adaptado de um de seus li-vros, Lio de amor, de Eduardo Escorel,cuja trama se passa em meio alta bur-

    guesia paulista e foi bem recebido pelacrtica poca de seu lanamento.

    Triste fim de Policarpo Quares-ma, que no cinema foi rebatizado comoPolicarpo Quaresma, heri do Brasil, anica obra de Lima Barreto adaptadapara longa-metragem, com direo do ci-neasta carioca Paulo Tiago e resultadospouco memorveis. Embora a questoracial seja abordada em outros dos seuslivros, nenhum deles chegou ao cinema.

    natural que a reputao de Ma-chado de Assis como o mais importanteescritor brasileiro tenha originado mui-tas adaptaes cinematogrficas, tan-to de seus principais romances quantode alguns contos. O mais famoso deles,Dom Casmurrochegou aos cinemas noperodo do Cinema Novo em Capitu,

    de Paulo Csar Saraceni, e mais recen-temente, em verso transposta para osdias atuais, em Dom, de Moacir Ges.Ambos foram impiedosamente criti-cados poca de seus lanamentos, al-guns resenhistas destacaram considerar

    o livro no filmvel sem perder suasprincipais qualidades literrias. Cine-astas importantes como Nelson Perei-ra dos Santos, com Azyllo muito lou-co, Srgio Bianchi, em Quanto vale ou

    por quilo?e A causa secreta, Jlio Bres-sane, em A er va do rato, foram melhorsucedidos em suas incurses macha-dianas. J Quincas Borba, de RobertoSantos, e Brs Cubas, de Andr Klot-zel, dividiram opinies.

    Uma das mais importantes adap-taes de um escritor negro brasileiropara o cinema sem dvida Cruz e Sou-za O poeta do desterro, de Sylvio Back.O cineasta adota uma estrutura narra-tiva bastante original que ao mesmo

    tempo d conta de informar biografica-mente a trajetria do maior poeta sim-bolista brasileiro e encontra equivaln-cia potica de sua obra atravs do usocriativo da linguagem cinematogrfica.

    A imprevisibilidade inerente aofuturo no permite apontar se esse pa-norama vai ser alterado a partir dastransformaes sociais em curso noBrasil. Mas um olhar sobre as forasemergentes na literatura e no cinema

    brasileiros aponta para o surgimentode artistas afrodescendentes capacita-dos para dotar essas reas de um pro-tagonismo que a cultura negra j ocu-pa em nosso pas no campo da culturapopular e da religiosidade. g

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    Laura Santos e a artedo incontrolvel desejoPouco conhecida entre osleitores paranaenses, a poetanegra Laura Santos escreveuuma obra enxuta, em que atemtica ertica se sobrepea questes como negritude

    CLAUDECIR DE O. ROCHA

    C

    onhecida por alguns poucos curi-tibanos, Laura Santos (1919-1981) talvez tenha sido a ni-

    ca poetisa negra de Curitiba dosanos 1950. Dona de uma linguagemsensvel, Laura, a prola negra, comoficou conhecida, fez uma poesia comalta carga ertica, elucidando o corpocomo objeto da sua prpria linguagem.

    Influenciada pela esttica parna-so-simbolista, principalmente por Ola-vo Bilac, criou uma potica diferenciadae moderna, com traos biogrficos, por

    meio dos quais elucidava a realizao dosseus anseios, ao mesmo tempo em queexpressava um desejo de transcendncia.

    Laura Santos nasceu em 1919 eestreou com um texto chamado His-tria da evoluo da aviao,em 1937 premiado em concurso literrio local.Diz a lenda que escreveu seu primeirosoneto aos 13 anos. Deixou trs proje-tos de livros, todos finalizados em 1953:Sangue tropical(Prmio Academia Josde Alencar), Poemas da noite e Desejo.

    Obras que seguem a mesma linhatemtica, mesma expresso, deixando aclara impresso de formar um livro s.Ela buscou expressar nesses poemas oprprio corpo, alternando entre versoslivres e sonetos, influenciados por umaconstante romntica que busca no sim-

    bolismo a transmigrao da alma atravsdo amor no correspondido.Laura tambm foi uma das fun-

    dadoras da Academia Jos de Alen-car, em Curitiba, e os seus textos foram

    publicados na Gazeta do Povoe no Di-rio da Tardeat a dcada de 1980. Essematerial nunca foi reunido em livro.

    Independente, idealista e comuma personalidade forte e frente doseu tempo, fez magistrio e deu aulas deportugus e matemtica. ambm cursouenfermagem, porque queria participar da2 Guerra Mundial como enfermeira daCruz Vermelha, sonho que no conse-guiu realizar. Depois acabou trabalhan-do como educadora sanitria, cuja funoera orientar a populao sobre hbitos de

    higiene exerceu este ofcio at a apo-sentadoria. Morreu em 1981, totalmenteignorada pela imprensa local.

    Obra misteriosaFoi a sua mais conhecida amiga, a

    tambm poeta Helena Kolody, quem pri-meiro resgatou sua obra do esquecimen-to, em 1959, numa antologia conhecidacomo Um sculo de poesia,organizada peloCentro Paranaense Feminino de Cultu-ra. Em 1985, Pompilia Lopes dos Santosorganizou uma nova antologia, chamadade Sesquicentenrio da poesia paranaense,que trazia alguns poemas de Laura. Cin-co anos depois, a Secretaria de Estado daCultura do Paran (Seec) publica Poemas,reunio dos 3 livros da autora.

    No prefcio dessa antologia, Ros-

    se Marye Bernardi, ento professora daUniversidade Federal do Paran (UFPR),diz que os poemas de Laura desven-dam, num tnue fio biogrfico, os so-frimentos de um corpo e de uma alma

    exasperadamente feminina. atravs docorpo que lhe chegam as sensaes domundo trazido como sentimento. atra-

    vs do corpo que ela tenta se comunicarcom o exterior, com o outro.Seus poemas esto cheios de ima-

    gens erticas que so uma espcie demetfora da sua relao bsica com omundo, relao que se traduz enquantoimpossibilidade de amar, de viver plena-mente, de ser feliz, que faz ela obceca-da pelo desejo de libertao, como co-mentou Rosse Marye.

    O desejo de libertao cons-trudo por meio de uma poesia que noencontra soluo para seu amor por-que, consciente de que ele no se rea-lizar novamente, s lhe resta pensarna transcendncia que contrasta comsua poesia carnal, de lbios, de coxas, deseios e de pele. E, assim, Laura buscano desejo sexual encontrar a si mesma afinal, sozinha, no entanto, sente-sefria, incompleta, fraca nesse mundo desensaes e de belezas.

    Dilogos, estilo e temasA influncia de Olavo Bilac pa-

    rece ser pertinente, principalmente emrelao carnalidade que ela d ao amore ao desejo. Mas a expresso parnasianase mistura com o desejo simbolista de

    transcendncia da alma, por uma buscapela natureza primordial do amor. En-tretanto, Laura Santos no deu o mes-mo tom vulgar e artificial do erotismobilaquiano com sua pomposa mquina

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    Laura vai se debruar em temas comuns, pois amaioria dos seus poemas falam sobre a saudade, oamor, o desejo e a natureza como parte de si.

    de fazer versos, assim como seus diletos,que pareciam buscar um academicismoepignico com muita frequncia tempe-

    rado de anedtico e pelo emocional f-cil, para agradar lavadeiras e condes-sas, suas Frineias e Messalinas da Ruada Quintanda, conforme comenta Ale-

    xei Bueno no seu livro Uma histria dapoesia brasileira.

    Seus versos so lmpidos, asso-nantes e aliterados, revelando um ero-tismo mais sensual e pantesta, reto-mando certo modernismo simbolista de

    Ceclia Meireles, a religiosidade sensu-al de Vinicius e algo da poesia corporalde Drummond.

    Laura vai se debruar em temascomuns, pois a maioria dos seus poemasfalam sobre a saudade, o amor, o desejoe a natureza como parte de si. O amoratravessa seus versos, resultado de umapaixo desenfreada por algum que a fezconhecer o amor, o sexo e depois a aban-donou, trocando-a por outras mulheres.Esse dilema conjugal vai ser o mote dosseus poemas, que vo se tornar uma es-pcie de confidente das suas ilusesamorosas, buscando atravs do desejoconstante de reviver esse amor perdido,de reencontrar o Don Juan.

    Descomplexada socialmente

    Laura Santos deixou, para seus in-terlocutores, a impresso de ter sido umamulher batalhadora, que nunca recla-mou de discriminao, nem da sua situ-ao econmica porque, de certo modo,

    no se conformou com o determinismosocial e seguiu sua vida sem levantarbandeiras sociais, pois no encontra-

    mos neles [nos seus versos] qualquereco de negritude ou qualquer reivindi-cao feminista, naquela Curitiba ain-da provinciana dos anos 1950, diz RosseMarye Bernardi.

    Helena Kolody tambm comenta,em texto escrito, que na obra de LauraSantos pode-se observar a inexistnciade qualquer atitude complexada quanto sua cor, porque sempre foi recebida em

    p de igualdade por outros companhei-ros de arte e profisso. Outro poeta queconheceu Laura, onicato Miranda, afir-mou que ela era sem complexos, inte-ligente, elemento positivo e querida nosambientes onde convivia. Jamais queixa-ra-se de discriminao ou de sua situa-o econmica difcil. Nunca se queixoudas prprias dificuldades, que se presu-mia fossem muitas, dado que no conse-guiu publicar sua obra em vida.

    Queria, antes, usar a poesia comoinstrumento de libertao e, diferen-temente de poetisas como Gilka Ma-chado, que usou erotismo para levan-tar a militncia feminista, Laura Santostransformou suas perspectivas e dese-

    jos em poemas, nos quais no se res-tringiu em defesas ideolgicas, mas

    que revelam a partir de uma lingua-gem simples e cotidiana o prprio cor-po. Poemas que refletem suas angstias,seus medos, suas inquietaes e a buscapela felicidade.

    Reproduo

    Nos anos 1980, a Secretaria de Estado da Cultura do Paran reuniu a obra potica de LauraSantos no volume Poemas.

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    ENSAIO

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    A influncia de Olavo Bilac parece ser pertinente,principalmente em relao carnalidade que ela d

    ao amor e ao desejo.

    Distante do clich provincianoEla tambm se afasta da qualidade

    esttica de poetisas de cidadezinhas dointerior. Mesmo assim, muitos dos seus

    versos so extremamente piegas, quase deuma ingenuidade adolescente, mas a sualinguagem clara e simples, seu erotismolatente e desejo de sublimao lhe dooutro tom. Um tom lmpido, quase natu-ral, uma espcie de dana potica, na qualas palavras, como gestos, tentam tradu-zir os desejos do corpo e da alma, dizer oinefvel. Nos seus poemas, Laura Santosparece retomar muitas das caractersticas

    do romantismo, nos quais vigora um du-alismo entre o amor e o pecado, o pudore o desejo, a carne e o esprito e, usandoda expresso ertica, objetiva seu desejode transcendncia atravs do amor.

    Contemporaneamente, enquan-to ainda vigora uma crtica sociolgicae anacrnica, se orientando em classi-ficar obras de arte conforme o interessede um determinado grupo social, bus-cando enfatizar aspectos, mesmo que se-cundrios, para reafirmar uma posioideolgica, e assim acentuar polticas ra-ciais e feministas, Laura no parece sepreocupar com isso, deixando de lado oengajamento ideolgico. Da seu afas-tamento de qualquer antologia de lite-ratura negra, porque, segundo algumasclassificaes, para ser um poeta da li-

    teratura negra, no basta ser negro, temque defender sua raa nos poemas, comose toda obra de arte tivesse uma obriga-o social e histrica de servir para um

    determinado fim, como se as pessoas nosofressem os mesmos dilemas.

    Laura, assim como muitos poe-tas, estava mais preocupada com a pr-

    pria expresso potica, com o desejo la-tente de fazer arte, do que apenas serdefensora de ideologias como queremalguns crticos de tendncia marxista.Sua poesia feita de atitudes, na qualtransparece a fora da expresso e nousa do artifcio para revelar essa intenosentimental, mas da sinceridade que oerotismo possibilita.

    Paulo Henriques Britto, no en-

    saio possvel transgredir no momen-to potico atual?, fala sobre os poetas dagerao mimegrafo, dos anos 1970,que contrapunham s posturas constru-tivistas dos poetas concretos, porque es-tes defendia[m] uma arte engajada naluta contra a opresso capitalista e jul-gava necessrio sacrificar o presente in-dividual em nome do futuro da huma-nidade. Essa gerao de poetas que seauto-nomeava marginal, reafirmou va-lores como liberdade e subjetividade,contrapondo-se ao construtivismo e ob-jetivismo dos concretos. Ao mesmo tem-po, afirmando o desbunde, celebrandoos pequenos prazeres do cotidiano, elesrompiam frontalmente com a sisudezideolgica da poesia participante.

    nesse contexto que se encai-

    xa Laura Santos, que no propria-mente uma poetisa marginal, nem seutilizava do poema-piada, nem defen-dia a bandeira banal do anticapitalismo,

    Verso caseira que rene os trs breves livros que a poeta escreveu em 1953: Sangue tropical,Poemas da noite eDesejo.

    Reproduo

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    mas que traz alguns desses valores parasua poesia: a subjetividade, a individu-alidade, a liberdade, os prazeres do co-tidiano, etc. Ela resgata o soneto e opta

    tambm por versos livres numa lin-guagem clara e simples. Ou seja, fez opercurso realmente marginal de mui-tos escritores desconhecidos ou secun-drios ao que conhecemos como c-none literrio, no se preocupandocom o reconhecimento.

    S poesiaLaura Santos est no meio do

    furaco de ideologias da gerao de 45,onde alguns buscavam um engajamentocristo, como Murilo Mendes, asso deSilveira ou Jorge de Lima. E outros, oengajamento poltico, como Drummonde Ferreira Gullar. O interessante queJorge de Lima s vai se libertar da mo-ral crist com o livro Inveno de Orfeu(1952), Vinicius de Moraes com o Livrode sonetos(1957). J Drummond se li-berta do panfletismo socialista com Sen-timento do mundo(1951). Eles mesmosadmitem que essas ltimas obras so asmais maduras da suas carreiras, mas huma crtica marxista que ainda persisteem canonizar as obras pelas defesas ide-olgicas que atravessam os seus discur-sos e no pela liberdade criativa que cadaum acreditava.

    Ento, como julgar Laura San-tos, j que no h categoria acadmicaque pode defini-la como poetisa negrafeminista? Preferimos a defesa de que

    ela principalmente uma poetisa, umamulher que se expressa artisticamen-te, sem se prender aos ecos da negritu-de ou do feminismo, porque construiu

    uma poesia desvinculada de ideologiasmodistas, e que, se tem algum valor, o da prpria arte, o do prprio desejode se expressar atravs da sua viso demundo.No quero dizer com isso quea poesia de Laura Santos no apresen-te traos biogrficos, femininos e sens-veis, nem que sua poesia no tem auto-ria, podendo ter sido escrita por qualqueroutra poetisa, branca ou negra, carioca

    ou curitibana.Prefiro dizer que sua poesia in-

    teressante simplesmente pela prpriacomposio e unidade, pelo aspecto est-tico dos seus versos. Ser negro ou no, nocaso dessa poetisa, elemento secund-rio, como o fato de ser curitibana, comoquerem alguns paranistas, principalmen-te porque, como vimos nas opinies deHelena Kolody e de onicato Miranda,no havia nela nenhuma atitude com-plexada quanto sua origem.

    Toda a sua sensibilidade, todo odesejo de ser amada, transcritos nos seus

    versos, revelam apenas a vontade de sermulher, sem medos ou receios de se ex-pressar, de amar, de perder o controle poresse amor. E se ela merece um estudomais profundo, uma reunio completa

    das suas produes poticas dispersasnos jornais coisa a se pensar a fimde que se possibilite um julgamento maisjusto da sua obra. gA tambm poeta Helena Kolody foi amiga e interlocutora de Laura Santos.

    Reproduo

    Claudecir de O. Rocha editor e professor universitrio.Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paran

    (UFPR), atualmente doutorado em Estudos Literrios pelamesma instituio. Tambm autor dos livros de poemas,Teatro dos mortos e Ensauro. Vive em Curitiba (PR).

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    POEMAS | LAURA SANTOS

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    Quando, envolta em penumbra,a meditar me ponho,na doce exaltao deste exaltado sonhona esplndida mudez desta noite sem lume,principio a sentir em tudo o teu perfume.Levemente ao redor do meu leito flutuas,sinto em meios seios nus as tuas faces nuas,e o teu vulto sutil, subjetivamente,

    em insano prazer,em volpia frementecomo serpe voraz, se enrola no meu ser.

    E quando eu volto, de repente,da fria realidade,compreendo que a saudadeque me fez te sentir,que me fez te gozar;

    e, nesta noite fria,eu encontro somentea triste solido de minha alma vazia.

    Quando desperta o sol, com seus brutais desejos,beija o meu corpo inteiro em seu delrio rubro.Na limpidez do cu, todo desfeito em beijosum poema sensual de rseo amor descubro.

    Sob este sonho ardente e de sutis harpejos,a natureza toda um marmreo delubro.Em espasmos de gozo o deus pago sem pejos,sorridente se impe pelas manhs de outubro.

    Eu, toda fluido sou, e sou toda elastrio,na ondulao febril de profundo mistrioque vem na voz do vento e na luz do horizonte.

    Som que cresce na chama aurfica da aurora,que da volpia a voz veludnea e sonora,e desliza em meu sangue, em coleios de fonte.

    PRIMEIRO POEMA

    VOLPIA

    Laura Santos(1919-198) nasceu em morreu em Curitiba. Fundadora daAcademia Jos de Alencar, autora de uma obra enxuta, constituda deSangue tropical, Poemas da noite eDesejo, todos de 1953.

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    GIL JESSE| POEMAS

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    CU E CHO

    F QUE MATA

    Com seda e plstico,Fez sua raia,Pipa,Pandorga,Rasgando o cu,Cortando rabiolas,Debicando e embolando,A linha nos fios de alta tenso,

    Sabe do risco,Mas menino,Vive por instinto,No por limitao,Se poda algum, a maior correria,Chinelo arrebentando,Sorriso no rosto,E mais uma pipa,

    Tirada de circulao,Que entra para a sua coleo.

    Ditam a paz,O livro tanto faz,Descreditam uns aos outros,Buscando superioridade,Salvao,Anseio,Bondade,Na real,Pedras soltas nas caladas,Viram instrumento de guerra,Mas,V se me erra,Nesse confronto divino,Sangue vir vinho,Onde a alta casta,Embriaga-se,Ironizando,A urea do conflito.

    Gil Jesse poeta, artista plstico e designer grfico. Foi selecionadopara a antologia Novos autores curitibanos: crnicas, poesias, contos(2013), lanada durante a primeira edio do Litercultura FestivalLiterrio realizado na capital do Paran. Vive em Curitiba (PR)

    38 CNDIDO| JORNAL DA BIBLIOT ECA PBLICA DO PARAN

    PERFIL DO LEITOR | CIRO PESSOA

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    Em dia coma rebeldiaCompositor de clssicos do rock nacional comoSonfera Ilha e Homem Primata, o msico ejornalista fala de seu envolvimento com poesia,poltica e budismo

    OMAR GODOY

    Divulgao

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    Aos 58 anos, Ciro Pessoa finalmen-te vai lanar seu primeiro livro.

    Relatos da existncia catica, quesai at o fim deste ms pela edi-

    tora portuguesa Chiado, rene cincodos 11 volumes de poesia escritos enunca publicados pelo msico e jor-nalista ao longo das ltimas trs dca-das. Sempre lembrado na cena roqueiracomo lder da banda ps-punk CabineC, Pessoa tambm fez p