ungass 2016 e os 10 anos da lei 11.343/2006

24
ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 | Editorial Os danos constitucionais causados pela práxis do Direito Penal das drogas Cristiano Avila Maronna ________________ 2 O Direito Penal da guerra às drogas Luís Carlos Valois ______________________ 4 A evolução histórica da política criminal e da legislação brasileira sobre drogas Maurides de Melo Ribeiro _______________ 5 Crítica à estipulação de critérios quantitativos objetivos para diferenciação entre traficantes e usuários de drogas: reflexões a partir da perversidade do sistema penal em uma realidade marginal Bruno Shimizu e Patrick Cacicedo_________8 O aceno do Papa Francisco para as mulheres presas Kenarik Boujikian_____________________ 10 Os demônios da próxima década Rafael Folador Strano __________________ 12 Dez anos da Lei de Drogas: narrativas brancas, mortes negras Nathália Oliveira______________________ 13 Adolescências inscritas na ilegalidade. A Lei 11.343/2006 e os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa Heloisa de Souza Dantas, Camila Magalhães Silveira e Marília Rovaron ______________________ 15 Histórias miúdas da criminalização das drogas e das vidas: sobre alguns beneficiários do De Braços Abertos Taniele Rui, Maurício Fiore e Luís Fernando Tófoli __________________17 O populismo manicomial na política de drogas Haroldo Caetano ______________________19 Não compre, plante? Tipificação penal do cultivo de Cannabis pelo Tribunal de Justiça de São Paulo Felipe Figueiredo Gonçalves da Silva ______20 Entre a criminalidade e a constitucionalidade: o cultivo e produção de cannabis para fins terapêuticos Emílio Nabas Figueiredo e Lorena Otero ___22 | Caderno de Jurisprudência | O DIREITO POR QUEM O FAZ Supremo Tribunal Federal ____ 1957 Tribunal Regional Federal da 1.ª Região _______________ 1958 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo _________ 1959 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ________ 1961 Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro __ 1963 Tribunal de Justiça do Estado do Paraná ___________ 1963 UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006 O ano de 2016 constitui um marco importante para a política de drogas. No plano internacional, realizou-se em abril a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre o Problema Mundial das Drogas (UNGASS), que avaliou avanços e desafios do sistema internacional de controle de drogas. (1) No Brasil, a Lei 11.343/2006 completará 10 anos em vigor em meio a críticas, incertezas e questionamentos no Supremo Tribunal Federal. Não é apenas uma coincidência. A atual Lei de Drogas, a despeito de importantes avanços, sobretudo em seus aspectos extrapenais, refletiu a tendência regional de incremento significativo das sanções atribuídas ao tráfico de drogas. (2) O recrudescimento generalizado das penas, por sua vez, encontrou fundamento e suporte no sistema internacional de controle de drogas, cujos pressupostos estão agora sendo colocados em xeque por parte significativa dos países. Se a realização da UNGASS representou um importante momento de reflexão sobre os rumos da política de drogas mundial, é fundamental aproveitar a ocasião para avaliar a lei brasileira tendo como pano de fundo a crise do sistema internacional de controle de drogas. Voltemos um pouco no tempo. Em 2005, o Governo Federal aprovou a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), contendo disposições bastante avançadas para a época. Nela estão presentes conceitos que ainda hoje não são reconhecidos em boa parte do mundo, como redução de riscos e de danos, não estigmatização das pessoas usuárias de drogas e garantia de tratamento adequado. Ao mesmo tempo, o documento estabelece a meta de “buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas”. (3) Naquele mesmo ano, retomou-se a discussão parlamentar sobre um novo diploma legal para substituir a Lei 6.368/1976, então vigente. A nova legislação teria entre seus principais objetivos o de diferenciar melhor o uso do tráfico ilícito de drogas: aos primeiros, era necessário garantir um sistema de proteção e tratamento; os segundos deveriam ser punidos de maneira severa, atendendo ao clamor da sociedade. (4) De fato, a diferenciação entre usuários e traficantes deu o tom da nova legislação de drogas no país. De um lado, a Lei 11.343/2006 estabeleceu diretrizes para prevenção, tratamento e reinserção social de dependentes químicos, reconheceu expressamente as ações de redução de danos e trouxe uma importante novidade no cenário jurídico brasileiro ao deixar de sancionar com pena de prisão as condutas previstas em seu art. 28. De outro, previu sanções consideravelmente mais altas para os crimes de produção e tráfico, impedindo a substituição da privação de liberdade por penas restritivas de direitos, além da proibição de se conceder fiança, sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória aos acusados de tais delitos. Tais contradições não passaram despercebidas por este Instituto. Vários colaboradores do Boletim expressaram sua preocupação com a manutenção do paradigma da guerra às drogas, (5) com a supressão de direitos processuais que violam princípios e normas das declarações universais de direitos (6) e com o provável fracasso da estratégia simultânea de despenalização do uso e endurecimento do tráfico. (7) Por tudo isso, a Lei 11.343/2006 foi tida como “retrocesso travestido de avanço”. (8) É certo que a lei brasileira refletiu as ambiguidades do sistema internacional. As convenções da ONU sobre o tema, com o propósito de proteger a saúde e o bem-estar da humanidade, (9) determinam que as leis nacionais reflitam a especial gravidade do crime de tráfico de drogas. (10) Foi com base nessa autorização que muitos países aumentaram suas penas ou, de maneira ainda mais drástica, conduziram estratégias repressivas que culminaram em execuções judiciais e extrajudiciais, prisões arbitrárias e desmantelamento de serviços de atenção e cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas. Naturalmente, o rigor da lei e das forças de segurança não é distribuído de maneira equilibrada na sociedade. Aqui, como em todos os países, o aumento das penas aplicáveis e a supressão de garantias processuais atingem, em sua quase totalidade, os escalões subalternos da economia do crime. Já em 2009, relatório produzido pela UFRJ e UnB identificou que “os pequenos e microtraficantes representam os elos mais fracos da estrutura do comércio de drogas ilícitas, e sofrem toda a intensidade da repressão”. (11) Tal constatação é reforçada por pesquisas que demonstram a pequena quantidade de droga apreendida nas prisões em flagrante. (12) Além disso, prende-se cada vez mais. A proporção de pessoas presas por tráfico de drogas em relação ao total de presos aumentou de 14% em 2005 para 26% em 2013. (13) Entre as mulheres, em um cenário de aumento de 567% no número absoluto de mulheres presas nos últimos 15 anos, a proporção de condenadas por crimes de drogas saltou de 49% em 2005 para 61% em 2013. (14) Apesar dos importantes avanços simbólicos da Lei 11.343/2006, a realidade que se impôs foi condizente com os resultados da guerra às drogas na América Latina em geral: superencarceramento, mitigação de garantias processuais e cristalização da figura do traficante como inimigo público, a justificar execuções extrajudiciais, incursões violentas em comunidades vulneráveis e toda sorte de violações de direitos humanos. Não por acaso, países latino-americanos apresentaram a proposta de realizar a UNGASS em 2016, a fim de questionar os rumos do sistema internacional de controle de drogas. O documento final do encontro foi considerado decepcionante por muitos, mas é preciso celebrar a linguagem precisa

Upload: dangkhanh

Post on 19-Dec-2016

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

| EditorialOs danos constitucionais causados pela práxis do Direito Penal das drogasCristiano Avila Maronna ________________ 2

O Direito Penal da guerra às drogasLuís Carlos Valois ______________________4

A evolução histórica da política criminal e da legislação brasileira sobre drogasMaurides de Melo Ribeiro _______________ 5

Crítica à estipulação de critérios quantitativos objetivos para diferenciação entre traficantes e usuários de drogas: reflexões a partir da perversidade do sistema penal em uma realidade marginalBruno Shimizu e Patrick Cacicedo_________8

O aceno do Papa Francisco para as mulheres presasKenarik Boujikian_____________________10

Os demônios da próxima décadaRafael Folador Strano __________________12

Dez anos da Lei de Drogas: narrativas brancas, mortes negrasNathália Oliveira ______________________13

Adolescências inscritas na ilegalidade. A Lei 11.343/2006 e os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativaHeloisa de Souza Dantas, Camila Magalhães Silveira e Marília Rovaron ______________________ 15

Histórias miúdas da criminalização das drogas e das vidas: sobre alguns beneficiários do De Braços AbertosTaniele Rui, Maurício Fiore e Luís Fernando Tófoli __________________17

O populismo manicomial na política de drogasHaroldo Caetano ______________________19

Não compre, plante? Tipificação penal do cultivo de Cannabis pelo Tribunal de Justiça de São PauloFelipe Figueiredo Gonçalves da Silva ______20

Entre a criminalidade e a constitucionalidade: o cultivo e produção de cannabis para fins terapêuticosEmílio Nabas Figueiredo e Lorena Otero ___22

| Caderno de Jurisprudência | O DIREITO POR QUEM O FAZ

Supremo Tribunal Federal ____ 1957Tribunal Regional Federal da 1.ª Região _______________ 1958Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo _________ 1959Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ________ 1961Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro __ 1963Tribunal de Justiça do Estado do Paraná ___________ 1963

UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

O ano de 2016 constitui um marco importante para a política de drogas. No plano internacional, realizou-se em abril a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre o Problema Mundial das Drogas (UNGASS), que avaliou avanços e desafios do sistema internacional de controle de drogas.(1) No Brasil, a Lei 11.343/2006 completará 10 anos em vigor em meio a críticas, incertezas e questionamentos no Supremo Tribunal Federal.

Não é apenas uma coincidência. A atual Lei de Drogas, a despeito de importantes avanços, sobretudo em seus aspectos extrapenais, refletiu a tendência regional de incremento significativo das sanções atribuídas ao tráfico de drogas.(2) O recrudescimento generalizado das penas, por sua vez, encontrou fundamento e suporte no sistema internacional de controle de drogas, cujos pressupostos estão agora sendo colocados em xeque por parte significativa dos países. Se a realização da UNGASS representou um importante momento de reflexão sobre os rumos da política de drogas mundial, é fundamental aproveitar a ocasião para avaliar a lei brasileira tendo como pano de fundo a crise do sistema internacional de controle de drogas.

Voltemos um pouco no tempo. Em 2005, o Governo Federal aprovou a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), contendo disposições bastante avançadas para a época. Nela estão presentes conceitos que ainda hoje não são reconhecidos em boa parte do mundo, como redução de riscos e de danos, não estigmatização das pessoas usuárias de drogas e garantia de tratamento adequado. Ao mesmo tempo, o documento estabelece a meta de “buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas”.(3)

Naquele mesmo ano, retomou-se a discussão parlamentar sobre um novo diploma legal para substituir a Lei 6.368/1976, então vigente. A nova legislação teria entre seus principais objetivos o de diferenciar melhor o uso do tráfico ilícito de drogas: aos primeiros, era necessário garantir um sistema de proteção e tratamento; os segundos deveriam ser punidos de maneira severa, atendendo ao clamor da sociedade.(4)

De fato, a diferenciação entre usuários e traficantes deu o tom da nova legislação de drogas no país. De um lado, a Lei 11.343/2006 estabeleceu diretrizes para prevenção, tratamento e reinserção social de dependentes químicos, reconheceu expressamente as ações de redução de danos e trouxe uma importante novidade no cenário jurídico brasileiro ao deixar de sancionar com pena de prisão as condutas previstas em seu art. 28. De outro, previu sanções consideravelmente mais altas para os crimes de produção e tráfico, impedindo a substituição da privação de liberdade por penas restritivas de direitos, além da proibição de se conceder fiança, sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória aos acusados de tais delitos.

Tais contradições não passaram despercebidas por este Instituto. Vários colaboradores do Boletim expressaram sua preocupação com a manutenção do paradigma da guerra às drogas,(5) com a supressão de direitos processuais que violam princípios e normas das declarações universais de direitos(6) e com o provável fracasso da estratégia simultânea de despenalização do uso e endurecimento do tráfico.(7) Por tudo isso, a Lei 11.343/2006 foi tida como “retrocesso travestido de avanço”.(8)

É certo que a lei brasileira refletiu as ambiguidades do sistema internacional. As convenções da ONU sobre o tema, com o propósito de proteger a saúde e o bem-estar da humanidade,(9) determinam que as leis nacionais reflitam a especial gravidade do crime de tráfico de drogas.(10) Foi com base nessa autorização que muitos países aumentaram suas penas ou, de maneira ainda mais drástica, conduziram estratégias repressivas que culminaram em execuções judiciais e extrajudiciais, prisões arbitrárias e desmantelamento de serviços de atenção e cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas.

Naturalmente, o rigor da lei e das forças de segurança não é distribuído de maneira equilibrada na sociedade. Aqui, como em todos os países, o aumento das penas aplicáveis e a supressão de garantias processuais atingem, em sua quase totalidade, os escalões subalternos da economia do crime. Já em 2009, relatório produzido pela UFRJ e UnB identificou que “os pequenos e microtraficantes representam os elos mais fracos da estrutura do comércio de drogas ilícitas, e sofrem toda a intensidade da repressão”.(11) Tal constatação é reforçada por pesquisas que demonstram a pequena quantidade de droga apreendida nas prisões em flagrante.(12)

Além disso, prende-se cada vez mais. A proporção de pessoas presas por tráfico de drogas em relação ao total de presos aumentou de 14% em 2005 para 26% em 2013.(13) Entre as mulheres, em um cenário de aumento de 567% no número absoluto de mulheres presas nos últimos 15 anos, a proporção de condenadas por crimes de drogas saltou de 49% em 2005 para 61% em 2013.(14)

Apesar dos importantes avanços simbólicos da Lei 11.343/2006, a realidade que se impôs foi condizente com os resultados da guerra às drogas na América Latina em geral: superencarceramento, mitigação de garantias processuais e cristalização da figura do traficante como inimigo público, a justificar execuções extrajudiciais, incursões violentas em comunidades vulneráveis e toda sorte de violações de direitos humanos.

Não por acaso, países latino-americanos apresentaram a proposta de realizar a UNGASS em 2016, a fim de questionar os rumos do sistema internacional de controle de drogas. O documento final do encontro foi considerado decepcionante por muitos, mas é preciso celebrar a linguagem precisa

Page 2: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

2

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

e decisiva com que postulou a necessidade de que processos judiciais para crimes de drogas atendam ao devido processo legal, respeitem as garantias individuais e que as condenações levem em consideração critérios de proporcionalidade, entre outros importantes aspectos referentes ao sistema de justiça. Tais avanços não são triviais: trata-se do reconhecimento de que os direitos humanos e garantias fundamentais não podem ser colocados em risco sob pretexto algum.

Nos últimos 10 anos, a Lei 11.343/2006 viu questionada a constitucionalidade de vários de seus artigos. O STF retirou a vedação abstrata à liberdade provisória e à substituição da pena de prisão por alternativas penais, e, recentemente, afastou a hediondez do tráfico privilegiado. Segue em discussão a constitucionalidade do art. 28. Independentemente do resultado do julgamento, é certo que os avanços dependem da atuação do Supremo, pois há pouco o que esperar do Parlamento mais conservador de nossa história democrática.

Os próximos anos devem ser interessantes no campo internacional. Na esteira da UNGASS, o mundo se prepara para a revisão da Declaração Política em 2019. No Brasil, o desafio será requalificar as noções de fracasso e sucesso das políticas de drogas. Que o balanço dos 10 anos da Lei de Drogas ensine a lição que já deveríamos ter aprendido: prisões e violações de direitos humanos jamais serão capazes de garantir a saúde e o bem-estar da humanidade.

Notas(1) Resolução 67/193 da Assembleia Geral da ONU.(2) Guzmán RodRiGuez, Esther et alli (2012). La adicción punitiva: la desproporción

de las leyes de drogas en América Latina. Colômbia: DeJusticia, p. 26. Disponível em: <http://www.dejusticia.org/#!/actividad/1391>.

(3) Resolução 3/GSIPR/CH/CONAD, de 27.10.2005. Vale notar que o objetivo de alcançar uma “sociedade livre de drogas” foi definido pela ONU em 1998, por meio de Declaração Política adotada pela Assembleia Geral. A despeito da evidente impossibilidade de alcançá-lo, o mesmo objetivo foi reiterado pela Declaração Política de 2009. A UNGASS 2016 amenizou a linguagem, mas, ainda assim, comprometeu-se a buscar uma sociedade livre do abuso de drogas.

(4) Campos, Marcelo da Silveira (2015). Pela metade: as principais implicações da nova Lei de Drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese de doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), p. 53-54.

(5) TaffaRello, Rogério F. (2006). Nova (?) Política Criminal de Drogas: primeiras impressões. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 2-3, out. 2006.

(6) KaRam, Maria Lúcia (2006). A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 6-7, out. 2006.

(7) BoiTeux, Luciana (2006). A nova lei antidrogas e aumento de pena do delito de tráfico de entorpecentes. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 8-9, out. 2006.

(8) maRonna, Cristiano A. (2006). Nova Lei de Drogas: retrocesso travestido de avanço. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 4, out. 2006, p. 4.

(9) uniTed naTions, Preamble of the 1961 Single Convention on Narcotic Drugs.(10) uniTed naTions, 1988 UN Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs

and Psychotropic Substances, art. 3.4(a). (11) BoiTeux, Luciana et al. (2009). Relatório de Pesquisa “Tráfico de Drogas e

Constituição”, Projeto Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça/PNUD, p. 43. Em pesquisa de 2011, o NEV-USP identificou que a grande maioria das prisões por drogas em São Paulo foram efetuadas em flagrante, na via pública e em patrulhamento de rotina, e que os presos estavam sozinhos e desarmados. O perfil educacional das pessoas presas não deixa dúvidas sobre quem arca com o peso da repressão: 80% possuem, no máximo, ensino fundamental (Prisão Provisória e Lei de Drogas, coord. Maria Gorete Marques de Jesus).

(12) CaRlos, Juliana (2015). Política de drogas e encarceramento em São Paulo, Brasil. IDPC, Relatório de Informações, set. 2015, p. 1-15; uille Gomes, Maria Tereza (2014). Estudo técnico para a sistematização de dados sobre informações do requisito objetivo da Lei n. 11.343/2006. Curitiba: Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.

(13) Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Infopen).(14) Idem.

Os danos constitucionais causados pela práxis do Direito Penal das drogasCristiano Avila Maronna

A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, diz o art. 156 do Código de Processo Penal, mas a aplicação prática da Lei 11.343/2006 obriga a pessoa flagrada com drogas a provar a finalidade de uso pessoal, sob pena de ser enquadrada como traficante.(1) Passados 10 anos desde sua entrada em vigor, as evidências indicam que o Judiciário brasileiro insiste em interpretar a Lei de Drogas em desconformidade com a Constituição Federal.

O chamado Direito Penal das drogas é um dos muitos exemplos das permanências autoritárias nas práticas judiciárias, que resistem às tentativas de (re)democratizar o Direito brasileiro.

O processo de redemocratização pelo qual se aprovou a anistia a crimes políticos, promulgou-se uma Constituição elaborada por um Congresso Constituinte livre e soberano e se restabeleceu o sufrágio universal para a escolha do Presidente da República, parece não ter alcançado parcela significativa do Poder Judiciário. Nossas práticas judiciárias e, muito especialmente, nossa cultura jurídica, permaneceram quase infensas aos influxos advindos de uma visão crítica do Direito e do papel exercido por seus operadores.

Pensada a partir do ponto de vista das classes sociais dirigentes, essa política criminal paleorrepressiva – em que a war on drugs é a principal protagonista na atualidade – é a expressão visível de um método de gestão das classes subalternizadas em um contexto de quase nenhuma tolerância e ordem em excesso, típico de estados autoritários. A questão social continua sendo caso de polícia e diante da ausência de políticas públicas capazes de dar concretude aos direitos sociais opta-se pela repressão penal, que aprofunda a exclusão e a desigualdade.

Não surpreende que a Marcha da Maconha tenha sido, durante alguns

anos, sistematicamente proibida por decisões judiciais que alegavam risco de incitação ao crime e instigação ao uso de drogas. Somente em 2011, graças a ações propostas pela Procuradora-geral da República interina Deborah Duprat, a Suprema Corte impôs intepretação conforme a Constituição tanto ao art. 286 do Código Penal, quanto ao art. 33, § 2.º, da Lei 11.343/2006, para deles excluir qualquer significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas (ADPF 187 e ADI 4.274).

Apesar de a Lei 11.343/2006 ter vindo ao mundo como uma positiva novidade, uma vez que a posse para uso pessoal não mais seria punida com prisão, a repressão ao tráfico de drogas foi incrementada, aumentando penas e restringindo direitos.(2) Foi necessário que a jurisprudência do STF se manifestasse no sentido de garantir direitos, para dizer que o tráfico de drogas não é incompatível com a liberdade provisória (HC 104.339, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes), com o regime inicial aberto de cumprimento de penas (HC 111.840, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli), e mesmo com a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos (HC 97.256, rel. Min. Ayres Britto, que redundou na Resolução 5/2012, do Senado Federal). E, mais recentemente, para afastar as regras previstas para crimes hediondos e equiparados quando se trata do chamado “tráfico privilegiado” (HC 118.533, Pleno, rel. Min. Carmen Lúcia).

Na disfuncional mecânica de aplicação da Lei de Drogas, admite-se a presunção de tráfico violadora da regra do ônus da prova, como se depreende da Súmula 528 do STJ: “Compete ao juiz federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional”.

De acordo com o raciocínio sustentado pela Segunda Câmara de

Page 3: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

3

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e cristalizado na Súmula 528 do STJ, quem importa droga ilegal pratica tráfico internacional de drogas (art. 33, caput ou, dependendo do entendimento, § 1.º, inc. I, nos dois casos combinados com o art. 40, inc. I). Isso porque o mero ato de importar drogas aperfeiçoaria o crime referido, sendo desnecessária a prova da destinação mercantil ou ânimo de lucro. Com base nesse entendimento, indivíduos que importaram pequenas quantidades de sementes de maconha para iniciar autocultivo com vistas a subsidiar o consumo pessoal estão sendo denunciados como traficantes internacionais.

Trata-se, a toda evidência, de interpretação desconforme a Constituição, uma vez que ao presumir a traficância, viola-se a presunção de não culpabilidade (art. 5.º, LVII, da CF), por meio da qual não se pode tolerar que finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida.

A única possibilidade de interpretação conforme a Constituição da mencionada Súmula limita-se à acusação de tráfico internacional em casos de importação de drogas respaldada em indícios concretos de traficância. Quando ausentes indícios de tráfico, a importação deve subsumir-se ao art. 28 da Lei 11.343/2006, seja porque o caput menciona a conduta de quem “adquirir” drogas para consumo pessoal (o que incluiria o ato de importar drogas para consumo pessoal), seja porque o seu § 1.º incrimina a conduta de quem “para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade” de drogas. Há que se avaliar, em cada caso, se há tipicidade material ou se na hipótese incide o princípio da insignificância.(3)

Além da presunção de tráfico, destaca-se o protagonismo da quantidade como critério definidor da tipicidade, muito embora exista enorme carência de dados e pesquisas a respeito de padrões de consumo de drogas no Brasil. Em função da inexistência de dados cientificamente embasados, não é possível identificar, na jurisprudência, padrões quantitativos de cada droga capazes de definir um critério diferenciador entre usuários e traficantes. A quantidade é decisiva na classificação jurídica da conduta, mas, paradoxalmente, não há parâmetros objetivos extraíveis do conjunto de julgados envolvendo drogas, o que reforça a conclusão de que o âmbito de discricionariedade (subjetividade) que envolve essa definição é excessivo e favorece o arbítrio.

No que diz com a fixação de critérios objetivos de lege ferenda, na esteira do posicionamento externado pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas a respeito do assunto,(4) receia-se que os limites sejam fixados em patamares muito baixos (em função da ausência de dados científicos a respeito dos padrões de consumo de drogas no Brasil), de modo a acentuar a presunção de tráfico. Além disso, ainda que os limites quantitativos sejam fixados em patamares adequados, mesmo nos casos em que o limite é ultrapassado, deve-se exigir a prova da traficância, porque a responsabilidade penal é – e deve ser –, sempre, subjetiva (nullum crimen, nulla poena sine culpa).

Também merece referência a relevância da percepção dos policiais envolvidos na ocorrência a respeito da destinação da droga – se para consumo pessoal ou para tráfico – na definição da tipicidade por parte do julgador, o que estabelece uma grave limitação ao direito à prova.(5) A avaliação policial sobre a destinação das drogas apreendidas funciona, aos olhos do livre convencimento judicial, como uma espécie de “rainha das provas”, muito embora, também nessa seara, inexistam provas empíricas capazes de confirmar a veracidade daquilo que no jargão jurídico é chamado de “tirocínio policial”.

A interpretação restritiva (e, por vezes, supressiva) de certas garantias, como é o caso da inviolabilidade do domicílio, também caracteriza a aplicação prática do direito penal das drogas. Tendo em vista que o tráfico de drogas é entendido como crime permanente, a invasão de domicílio nesses casos sempre seria lícita, o que, na prática, subverte completamente a garantia.(6) Em decisão recente (RE 603.616), o Pleno do STF, por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”. A seletividade da intervenção penal acentua a distorção que faz a lei de drogas atingir de modo preferencial os mais vulneráveis,(7) de modo que, em relação a eles, a garantia da

inviolabilidade do domicílio se mostra, na prática, inefetiva.Ao fim e ao cabo, todas as esperanças estão depositadas no STF,

que deve retomar o julgamento do RE 635.659, no qual se discute a inconstitucionalidade da incriminação da posse de drogas para uso pessoal, à míngua de alteridade. Malgrado o voto do relator, Min. Gilmar Mendes, propor a “administrativização” do art. 28 da Lei 11.343/2006 em relação a todas as drogas, os Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso restringem a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha. Não parece haver razão jurídica para tal distinção, muito embora seja a tendência política da Suprema Corte no momento atual.

Em tempos de jurisprudência defensiva, por meio da qual os tribunais criam pretextos para restringir o acesso à Justiça Penal (vitimizando os mais pobres e necessitados), merece reflexão o resultado prático dessa mecânica de aplicação do Direito Penal das drogas: corrupção em larga escala em todos os níveis do funcionalismo público (com destaque para a polícia), índices de violência alarmantes (incluindo as altas taxas de letalidade e óbito policiais) e o superencarceramento, que levou o Brasil a se tornar a quarta maior população prisional do planeta (mais de um quarto dos presos respondem por tráfico de drogas, quase 70% no caso das mulheres encarceradas).(8)

Notas(1) “Outra distorção (...) é a inversão do ônus da prova (...), afinal, se o portador não

conseguir demonstrar que é para consumo pessoal (...), termina, muitas vezes, indevidamente punido pelo crime de tráfico” (nuCCi, G. Leis penais e processuais penais comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 331).

(2) “A falta de efetiva punição ao usuário de drogas (...) pode levar, se houver rejeição à ideia lançada pelo legislador, os operadores do Direito, com o beneplácito da sociedade, ao maior enquadramento dos usuários como traficantes (...) prejudicando enormemente o âmbito da punição justa em matéria de crime envolvendo o uso de drogas ilícitas” (nuCCi, op. cit., p. 313).

(3) No sentido de uma interpretação conforme a Constituição: “1. O Plenário do STF (RE 635.659-RG) discute a constitucionalidade da criminalização do porte de pequenas quantidades de entorpecente para uso pessoal. 2. Paciente primário e de bons antecedentes que solicitou pela internet reduzida quantidade de entorpecente para uso próprio. Possível violação aos princípios da intimidade, vida privada, autonomia e proporcionalidade. 3. Liminar deferida. (...) 9. Muito embora tenha ocorrido a suspensão do julgamento (diante do pedido de vista do Ministro Teori Zavascki), penso que o pronunciamento da Corte pode interferir na solução deste habeas corpus. 10. No caso de que se trata, o paciente, primário e de bons antecedentes, está sendo processado por importar da Holanda, pela internet, 05 (cinco) sementes de maconha e 0,52g de substância psicotrópica de uso proscrito no Brasil (“Sálvia ‘x’ – Salvironina ‘A’). Além disso, tendo em conta que o paciente importou em seu próprio nome e endereço tais substâncias pois “não tinha noção de que estava importando produto proibido”, o próprio magistrado da causa considerou que as condutas se subsumem, unicamente, ao art. 28 da Lei de Drogas. 11. Diante do exposto, considerando as particularidades da causa, sobretudo a reduzida quantidade de substância entorpecente para uso próprio, defiro a liminar para suspender a tramitação da ação penal na origem” (STF, HC 131.310, rel. Min. Roberto Barroso).

(4) Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B8wnwVLa_o9oZzE2Smt fZk5PVmc/view>.

(5) “A palavra e a avaliação dos policiais merece crédito, mas a garantia do devido processo legal pressupõe a avaliação feita por um juiz ‘neutro e desinteressado’, sobrepondo a avaliação de um ‘policial envolvido no empreendimento muitas vezes competitivo de revelar o crime’ – Justice Robert H. Jackson, redator da opinion da Suprema Corte dos Estados Unidos, caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948)” (STF, RE 635.659, excerto do voto do relator, Min. Gilmar Mendes).

(6) Cf. ToRnaGhi, Helio. Instituições de processo penal. 2.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 3, p. 268-269, segundo quem a regra do art. 303 do CPP de “duvidosa conveniência (...) interessa ao direito penal substantivo (...) no processo, o fato de o crime estar ocorrendo tem relevância apenas para a fixação da competência (...) uma coisa é a flagrância do crime e outra a prisão em flagrante”. Daí por que não se pode interpretar mencionada regra ampliativamente, de modo que se permita prender, em qualquer lugar e a todo tempo, alguém que seja suspeito de estar praticando um crime permanente.

(7) Sobre o perfil dos presos em flagrantes e condenados por tráfico de drogas no Brasil, vide: Tráfico de drogas e Constituição (UFRJ/UNB, 2009); e Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).

(8) Infopen, jun. 2014. Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça.

Cristiano Avila MaronnaMestre e Doutor em Direito Penal pela USP.

2.º Vice-presidente do IBCCRIM. Secretário-executivo da Plataforma Brasileira

de Política de Drogas (PBPD).

Page 4: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

4

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

O Direito Penal da guerra às drogasLuís Carlos Valois1. Introdução

Vivemos em uma sociedade individualista, de consumo e de exaltação ao prazer. A criminalização do comércio de determinadas drogas, arbitrariamente selecionadas, apesar de toda irracionalidade, tem uma história que passa despercebida para quem, hoje, tem a prisão, a violência e a morte como naturais em um combate policial contra determinadas substâncias.

O Direito Penal foi forjado para legitimar a punição de uma relação comercial antes tida como uma relação qualquer, um fato social comum (Mill, 2001), violando a sua própria natureza garantista. Por isso que, fechado, em seus debates internos sobre determinadas circunstâncias de cada tipo penal, o Direito Penal só servirá como legitimador de interesses morais duvidosos, base da criminalização das drogas.

Assim, há que se quebrar o círculo vicioso de utilização do Direito Penal – posto que a falência da guerra às drogas só tem trazido como solução mais Direito Penal – primeiramente desmistificando a natureza científica de suas disposições, que parecem mais uma estratégia de guerra do que algo criado para o aprimoramento da sociedade.

2. Forjando um tipo penalA Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas

Nocivas, realizada em Genebra, em junho de 1936, marca o surgimento de diversos padrões mantidos constantes desde então, influenciando, engessando e tornando igual o Direito Penal em todo o mundo no que diz respeito às drogas.

Primeiro, marca a morte da soberania dos países com relação à questão das drogas. O arcabouço burocrático internacional de comitês e subcomitês se consolida a ponto de acabarem-se os debates prévios a cada convenção (mCallisTeR, 2000), pois, a partir de então, o comitê respectivo já traria um esboço de tratado devidamente aprovado pelo burocrata de plantão.

A burocracia se autoalimenta, e aquela Convenção já era resultado da iniciativa da Comissão Internacional de Polícia, criada em 1923, e posteriormente transformada na Interpol (Idem). Não por acaso nascia para o mundo a figura do traficante de drogas, que iria ocupar o imaginário policial e social até hoje, demonizado paulatinamente a cada reunião.

O chefe da delegação norte-americana na Convenção, Harry Anslinger, era um policial – psicótico, neurótico e traumatizado (haRi, 2015) – comandante da polícia de drogas dos EUA, buscando “uma perfeita identidade entre os critérios imperantes nos Estados Unidos e os defendidos pela autoridade internacional” (esCohoTado, 2008, p. 75), na época a Liga das Nações.

Era a polícia criando o fato, o agente e as circunstâncias que ela mesma deveria policiar e reprimir. A imagem de um sistema em que as leis são feitas de forma científica, para serem julgadas por um Judiciário imparcial, e executadas por uma polícia isenta, cai por terra. Nada de científico foi considerado na história da proibição das drogas, mas somente interesses econômicos somados a concepções policiais e morais.

O Direito Penal, que deveria ser um limite ao jus puniendi, construído pela própria polícia, transforma-se em instrumento do desejo de punir.

No entanto, o que realmente marcou o nascimento do Direito Penal da guerra às drogas foi o debate travado sobre a necessidade de se especificar o dolo de comércio como elemento do tipo tráfico. Para os americanos, a necessidade de se comprovar o dolo seria um obstáculo à condenação.

Nas palavras de Arnold Taylor, “alegando que a exigência em relação ao dolo tornaria impossível a condenação em muitos

processos de narcóticos, os delegados americanos e canadenses lideraram o combate para a retirada de tal determinação do projeto” (1969, p. 293).

Assim nasceram os atuais 18 verbos da conduta típica do tráfico, para tornar qualquer pessoa que se aproxime de uma substância proibida um potencial traficante, para desobrigar a polícia de buscar outras provas contra o suposto comerciante e, enfim, para deixar nas mãos da polícia o poder de julgar quem efetivamente será o traficante.

Esses verbos, do atual art. 33 da Lei 11.343/2006, generalizam a definição de crime em completa violação do princípio da legalidade, que manda serem os tipos penais claros e objetivos. A norma, ao dizer bastar, para a condenação, a pessoa possuir drogas em desacordo com determinação legal, ou seja, retirando a necessidade de se provar qualquer desígnio do possuidor, evidencia um Direito Penal policial, facilitador de prisões, e não um instrumento de justiça.

O tipo penal de associação para o tráfico também nasce naquela Convenção, pois, como também defendeu a delegação dos EUA, os líderes dificilmente chegam perto das drogas e “seria impossível condená-los sem a possibilidade de acusá-los de associação” (Idem, Ibidem).

3. Sempre mais rigorNa Convenção de 1936, o Brasil sequer tinha uma delegação.

Mandou um representante, escolhido dois dias antes, certo de suas “cordiais relações e certa intimidade” com a delegação dos EUA, país que considerava ter “o melhor modelo para a nossa polícia repressiva” (apud souza, 2002, p. 32).

Assim, sem qualquer estudo, despreparados e submissos, absorvemos a criminalização de uma conduta, que possui ação, elemento subjetivo, nexo causal e resultado, mas que pode ser punida apenas com a imputação de uma posse. No caso, o Direito Penal se moldou para a punição do comércio de drogas de uma forma tão cínica que admitiu 18 condutas sem a mínima necessidade, já que bastava o trazer consigo e o comercializar sem autorização legal para configurar o que se quis abranger com tantos verbos.

É o que Nilo Batista denomina de panpenalismo: “toda alteração no sentido da ‘multiplicação dos verbos’ é sintomática para panpenalismo da proposta, para o delírio de uma ilicitude contínua e inescapável” (1997, p. 137).

Aceito o padrão punitivista para o trato da questão das drogas, coube a nós por aqui, a fim de agradar os irmãos do Norte, agravar cada vez mais esse odioso crime. Daí a inclusão do comércio de drogas como crime assemelhado a crime hediondo foi um pequeno passo.

O amadorismo e o casuísmo de nossas legislações ficam claros quando assistimos a um debate sobre a elaboração de uma lei. Na Assembleia Constituinte não foi diferente: “A Nação está precisando moralizar os seus costumes, punir rigorosamente os criminosos violentos, que praticam atos libidinosos, que praticam o contrabando, o tráfico de tóxicos, que desagregam as famílias brasileiras, tudo isso tem de ser coibido” (BRasil, 1987, p. 15).

O legislador sequer imagina que a violência atribuída ao comércio das drogas tornadas ilícitas só existe porque estas foram tornadas ilícitas, mas que na relação comercial em si não há qualquer violência.

Contudo, foi nesse contexto, de uma moral tão seletiva quanto a prática da polícia na rua, que a compra e venda de determinadas folhas, pós ou líquidos foi equiparada a crimes como o homicídio, o latrocínio e o estupro, misturando em nossas penitenciárias pessoas que praticaram atos violentos com outras que estavam negociando, de forma voluntária, determinada mercadoria, em direta afronta ao texto constitucional (art. 5.º, XLVIII).

O sistema penitenciário, a bem da verdade, nunca entrou na

Page 5: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

5

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

consideração de ninguém, nem da polícia, nem do Legislativo, nem do Judiciário. Funciona como um buraco negro onde são jogados os problemas sociais e uns e outros bodes expiatórios, que tiveram o azar de cair na malha esfarrapada do sistema repressivo. Todos são esquecidos. Os problemas, apenas por instantes. É o efeito narcotizante do Direito Penal e do sistema penitenciário.

4. ConclusõesO encarceramento tem diminuído a legitimidade do Direito Penal

e das instituições, já tão abaladas, facilitando o crescimento de outras – organizações criminosas – financiadas pelas mesmas substâncias escolhidas como proibidas, tornadas mais caras e lucrativas justamente pela proibição, mas o que tem importado é apenas a aparência de moralidade.

Manter a hipocrisia de uma política (polícia) direcionada a um imaginário mundo sem drogas custa caro, não só em valores financeiros, mas em vidas e em desorganização social. Contudo, como os que estão morrendo, encarcerados ou na guerra do dia a dia, não interessam ao Estado, este pode continuar fazendo de conta que se preocupa com o que chama problema das drogas, encarcerando.

O próprio bem jurídico dito tutelado, a saúde pública, expõe ao ridículo o Direito Penal, na medida em que o Estado que encarcera é o primeiro a demonstrar descaso para com a mesma saúde pública. E pior, encarcera quem vende um produto em um local onde esse produto também é vendido, e encarcera em locais que são uma das principais provas do descaso para com a saúde pública.

Um Direito Penal que se pretende ciência deve urgentemente denunciar a farsa da proibição das drogas, capaz de tudo e de

alcançar todos que se aproximam de uma substância, ampliando o poder punitivo até o limite da arbitrariedade, igualando uma relação comercial a uma morte violenta e tornando irracionais a prática e o estudo de algo que deveria servir como instrumento de Justiça. O Direito Penal das drogas é instrumento de guerra.

Referências bibliográficasBaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de

Ciências Criminais, ano 5, n. 20, p. 129-146, out-dez 1997.BRasil. Anais da Assembleia Constituinte (1987). Atas e Comissões. Brasília: Senado

Federal. Centro Gráfico, 1987.esCohoTado, Antonio. Historia general de las drogas. Madri: Espasa, 2008.haRi, Johann. Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs. Nova

York: Bloomsbury, 2015.mCallisTeR, William B. Drug diplomacy in the twentieth century: an international

history. Nova York: Routlege, 2000.mill, John Stuart. Sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.souza, Jorge Emanuel Luz. Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma

história da criminalização da maconha no Brasil republicano. 193f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. 2012.

TayloR, Arnold H. American Diplomacy and the Narcotics Traffic, 1900-1939: a study in International Humanitarian Reform. North Caroline: Duke University Press, 1969.

Luís Carlos ValoisMestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela

Universidade de São Paulo – USP. Membro da Associação de Juízes para Democracia – AJD.

Porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP.

A evolução histórica da política criminal e da legislação brasileira sobre drogasMaurides de Melo Ribeiro

As mais remotas manifestações legislativas pertinentes à questão não representam uma reação que dispõe de um conjunto de dispositivos legais com uma coerência programática e, portanto, não constituem um verdadeiro sistema legislativo. A primeira dessas disposições remonta às Ordenações Filipinas, que no livro V, título 89, dispõe que “nenhuma pessoa tenha em sua casa para vender rosalgar branco, nem vermelho, nem amarelo, nem solimão, nem escamonéa, nem ópio, salvo se for boticário examinado e que tenha licença para ter botica, e usar do ofício”.(1) É sabido que essas Ordenações do Reino, até pela falta de um órgão judiciário local responsável pela sua aplicação, restavam distantes da realidade cotidiana da colônia e, no mais das vezes, seus conflitos eram solucionados por disposições locais como provimentos municipais.

Apesar de já adentrar no próximo período histórico-político, na fase Imperial ainda não se registra um arcabouço legislativo sobre o tema e, mesmo com o advento do Código Criminal do Império, sancionado em dezembro de 1830, a temática continuou sendo objeto de posturas municipais como a expedida pouco antes pela Câmara do Rio de Janeiro, em 4 de outubro de 1830, que proibia a “venda e o uso do pito de pango, bem como a conservação dele em casas públicas”,(2) disposição que é considerada como “o primeiro ato legal de proibição de venda e uso da maconha no mundo ocidental”.(3)

Já o Código Penal da República de 1890 proibia, em seu art. 159, o comércio de “substâncias venenosas”, inserindo-se na tradição que remonta à matriz colonial que denota um matiz de delito profissional dos boticários.(4) De resto, permanecem os controles locais exercidos por intermédio das posturas municipais, como a proibição da venda

da maconha nas feiras de Penedo com o fito de se evitar perturbações da ordem.(5)

O início de uma sistematização legal fundamentada em acordos internacionais, que a partir de então será uma das características distintivas das legislações posteriores sobre drogas, será o Decreto 11.481, de 10.02.1915, que determinava o cumprimento da Convenção firmada na Conferência Internacional do Ópio, realizada em Haia em 1912, e da qual o Brasil foi signatário. Segue-se daí um período de quase meio século em que vigorou o modelo de política criminal denominado de “modelo sanitário”.(6)

Ocorreram, nesse período, inúmeras outras alterações legislativas com nítida preocupação higienista, todas patrocinadas em decorrência de compromissos assumidos em convenções internacionais, o que terminou por implantar um sistema médico-policial. Importa ressaltar que, apesar de, nessa fase, se verificar a ocorrência de inúmeras medidas invasivas e cogentes com relação aos usuários de drogas (obrigatoriedade de tratamento, internação compulsória, interdição de direitos etc.), sua conduta não chegou a ser criminalizada.

A posse ilícita só foi criminalizada em 1932 (Decreto 20.930, de 11.01.32) e o consumo propriamente dito somente passou a integrar a lista de ações criminalizadas em 1938, por meio do Decreto-lei 891, de 25.11.1938.(7)

Todavia, o dispositivo que criminalizava o consumo teria vida breve, pois sobreveio o Código Penal de 1940, que revogou todos os dispositivos penais vigentes relacionados à matéria e conferiu ao tema uma disciplina mais sóbria – não se trata aqui de trocadilho – não

Page 6: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

6

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

só optando por descriminalizar o consumo como promovendo uma redução do número de verbos incriminadores, a ponto de fundir num mesmo dispositivo legal, o art. 281, as condutas relativas ao tráfico e à posse ilícita. Segue-se daí um período no qual se arrefeceram as preocupações oficiais relacionadas à questão das drogas.

O novo divisor de águas na conjugação de fatores que convergiram para o estabelecimento da militarização da questão das substâncias psicotrópicas – isto no plano interno, uma vez que sempre é preciso se ter em conta que o principal vetor que tem presidido essas modificações são as convenções internacionais – seria o golpe militar de 1964, que criaria as condições propícias para o surgimento da política criminal que se denominou de modelo bélico.(8)

A primeira modificação legislativa na questão das drogas introduzida pelo regime militar foi o Decreto-lei 385, de 26.12.1968, que, treze dias após a edição do malfadado Ato Institucional 5, alterou o art. 281 do Código Penal para, além de outros aspectos recrudescedores, equiparar a conduta do usuário à do traficante.

Essa situação não seria substancialmente alterada até o advento da Lei 6.368, de 21.10.1976, que ficou mais conhecida como a Lei de Entorpecentes, que, sob o aspecto penal, permaneceu em vigência até recentemente, mais precisamente até o dia 9 de outubro de 2006. Não se pode negar, contudo, que, ao disciplinar a conduta do usuário (art. 16) de forma distinta da do traficante (art. 12), a Lei 6.368/1976 representou, na época, um avanço, ainda que pontual, uma vez que o sistema repressivo impregnado da ideologia de segurança nacional permaneceu reforçado.

A partir do restabelecimento do Estado Democrático de Direito, notadamente após o advento da Constituição da República de 1988, experimentamos uma breve fase que se apresentava com ares liberalizantes. Isso se deu a reboque das reformas institucionais e legislativas visando implementar mudanças naquilo que, à época, a imprensa se referia como “entulho autoritário”.

O debate acerca de outros modelos alternativos à repressão ganha as ruas também em função de que estavam evidentemente revogados os dispositivos legais que impunham a censura prévia a respeito do tema drogas, sendo certo que, até então, sequer era possível a realização de uma conferência sem prévia autorização.(9) Nesse contexto, inicia-se um movimento pela alteração da Lei 6.368/1976, tendo, momentaneamente, ganhado expressão a tese da descriminalização da posse para uso próprio.

Contudo, apesar desse contexto histórico interno propício a mudanças legislativas liberalizantes, o fato é que, com o fim da Guerra Fria, simbolicamente representada pela queda do muro de Berlim, o embate ideológico é rapidamente substituído pela hegemonia das leis do mercado. Com a queda das barreiras nacionais, o acesso a novos mercados e as perspectivas de expansão comercial atingiram proporções até então inimagináveis.

Paradoxalmente, esses mesmos fenômenos contribuíram para o fomento do comércio das substâncias psicoativas, agora num ambiente globalizado. A criminalidade transnacional fortalece-se nesse contexto, dando margem à implementação oportunista de uma política declaradamente militar, capitaneada pelos Estados centrais, notadamente os Estados Unidos da América. Na arguta análise de Salo de Carvalho,(10) “o ‘inimigo global’ é redescoberto nos agentes do narcotráfico devido ao seu potencial de milícia, sua capacidade econômica e sua estrutura organizacional”.

Assim, as pressões internacionais tornam-se cada vez maiores e, a partir dos anos 1990, a legislação penal sobre drogas experimenta uma escalada repressiva, empolgada, no plano interno, por uma superexposição midiática da violência que terminou por banalizá-la, transformando-a em espetáculo de entretenimento, conjugada com uma resposta oficial meramente simbólica dada aos reclamos do “clamor público” pelos agentes políticos, que veem no tema uma oportunidade sem igual para propagandearem-se com finalidades meramente eleitoreiras.

A conjugação desses fenômenos, nos planos externo e interno, tem provocado um recrudescimento nas respostas do sistema penal e processual penal, notadamente naquilo que diz respeito às concepções

garantísticas desses ramos do Direito. Num fenômeno inversamente proporcional à desregulamentação das relações econômicas, exigidas pela nova “ordem mundial”, temos assistido à superafetação dos mecanismos de controle do Estado sobre seus cidadãos. Esse novo sistema político, regido por um totalitarismo penal, termina por desembocar num Estado Policialesco que tem como instrumentos de “combate” à nova criminalidade transnacional a restrição e/ou a flexibilização de direitos constitucionalmente consagrados, quando não a supressão pura e simples das liberdades públicas e das garantias individuais dos cidadãos.

São os princípios fundantes dessa nova “ordem mundial” que inspiraram a produção legislativa, introduzindo profundas alterações – melhor seria dizer: deturpações – na disciplina relativa às drogas etiquetadas de ilícitas, como a chamada Lei dos Crimes Hediondos – Lei 8.072, de 25.07.1990 – ou a Lei 9.034, de 03.05.1995, enunciando em seu preâmbulo, eufemisticamente, que “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas” quando, na realidade, institucionaliza um sem-número de ações policiais arbitrárias; a Lei 9.613, de 03.03.1998, que, sempre em atenção a imposições alienígenas, veio dispor sobre os chamados crimes de lavagem de dinheiro e, mais recentemente, a Lei 10.409, de 11.01.2002, que tinha como finalidade substituir a antiga Lei de Entorpecentes (Lei 6.368/1976), mas que, já de saída, foi de tal forma retalhada por vetos que entrou em vigor já fulminada em sua eficácia.

Por essa razão, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei integrativo que visava suprir as lacunas decorrentes dos vetos impostos à nova Lei de Tóxicos (Projeto 6.108/2002). Esse novo processo legislativo resultou, inclusive, numa emenda substitutiva global que reescreveu toda a matéria disciplinada pela Lei 10.409/2002, não se limitando aos dispositivos anteriormente vetados.

Embora a nova Lei de Drogas(11) tenha mantido a criminalização da conduta do mero uso de substâncias psicoativas, optando por promover uma descarcerização da sanção penal cominada, não se pode negar avanços, ainda que tímidos, notadamente no que diz respeito ao expresso reconhecimento das estratégias de redução de danos, aproximando a política nacional de drogas ao modelo europeu, que se caracteriza pela adoção de uma política proibicionista moderada.(12)

Dentre as medidas liberalizantes, por reduzirem o controle penal sobre o uso de drogas, especialmente se comparadas com a antiga Lei 6.368/1976, além da descarcerização da posse para uso próprio (art. 28), destaca-se a equiparação dessa conduta à daquele que planta para consumo pessoal (art. 28, § 1.º) e a redução da pena para a hipótese de consumo compartilhado de droga ilícita ou, como era conhecido nos meios forenses, o “cedente eventual” (art. 33, § 3.º), antes equiparada ao tráfico e agora uma modalidade de tráfico privilegiado.

Contudo, constitui uma medida extremamente negativa e reveladora da manutenção da filiação proibicionista-punitiva o aumento da pena mínima do crime de tráfico de entorpecentes para cinco anos (art. 33), visando a, confessadamente, impossibilitar a substituição da pena privativa de liberdade por penas alternativas, fato que provocou o aprofundamento do abismo já existente entre a figura do usuário e a do traficante e que foi determinante no crescimento exponencial dos índices de encarceramento, tendo como consequência direta o superencarceramento dos dias atuais.

Há de ser destacado importante avanço principiológico que permeia toda a formulação da Lei de Drogas, aproximando-a dos fundamentos que norteiam as estratégias de redução de danos. Nesse sentido, importa ressaltar que a legislação prevê expressamente como fundamentos: “o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade” (art. 4.º, I); “o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes” (inciso II); além da necessidade do “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas”, em seu art. 19, III. Essa nova diretriz ético-política haverá de ser observada pelos intérpretes e operadores do direito penal como parâmetro para a solução de conflitos e antinomias que se apresentarem na casuística a partir de sua vigência.(13)

Page 7: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

7

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Mas não é só. Essa nova configuração principiológica nos abre também novas possibilidades. Apenas a título de um exercício possível, como exemplo do que se pretende, realizando uma interpretação sistemático-teleológica, tendo em conta os princípios que norteiam a lei e as finalidades da Política Nacional sobre Drogas, com relação ao delito de porte para uso próprio capitulado no seu art. 28, teremos, inicialmente, que a nova base principiológica adotada determina: “o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”, conforme a dicção do art. 4.º, I; “o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes”, nos termos do inciso II do mesmo dispositivo legal; além da necessidade do “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas”, conforme o disposto no seu art. 19, III.

Pois bem, ao punir o delito de porte para uso pessoal, isolada e unicamente, com pena restritiva de direitos, o legislador inaugura uma nova modalidade de delitos em nosso sistema penal, vale dizer, os delitos de mínimo potencial ofensivo.(14) Seguindo nessa linha de pensamento, verifica-se de plano que o delito de “uso de drogas” é, nos termos da nova lei, absolutamente incompatível com a privação de liberdade do eventual infrator.

Tanto assim que a lei veda, em seu art. 48, § 2.º, a imposição de prisão em flagrante ao autor da conduta prevista no art. 28, devendo este ser encaminhado imediatamente ao juízo competente ou assumir o compromisso de a ele comparecer. Tal compromisso poderá ser tomado pela própria autoridade policial, sempre vedada a detenção do autor do fato, conforme estabelece o § 3.º do art. 48 da nova Lei de Drogas. Dessa forma, ao contrário do que tem sido afirmado pela maioria da doutrina, não será possível, realmente, a prisão em flagrante do autor da conduta tipificada.

Diante da impossibilidade de prisão em flagrante, está absolutamente vedado o ingresso em casa particular para a constatação ou apreensão de drogas ilícitas que estejam sendo utilizadas para consumo próprio sem mandado judicial, uma vez que a norma constitucional excepciona apenas aquela hipótese, conforme prevê o inciso XI do art. 5.º da Constituição Federal.

Numa análise sistemática da lei, essa impossibilidade fica realçada quando se verifica que não foi criminalizada a conduta de quem utiliza local ou bem de sua propriedade ou posse, por qualquer título, para o uso de substâncias psicotrópicas, conduta que era anteriormente equiparada ao tráfico, conforme o inciso II do § 2.º do art. 12 da Lei 6.368/1976.

Com essa nova conformação o legislador, na realidade, reconfigurou o âmbito de interesse e atuação legítima do Estado. Caso a conduta não tenha relevância e permaneça no plano da intimidade do cidadão que faça uso da droga, fora do espaço público, não será permitida a intervenção desmotivada do Estado, que, nesse limite, somente poderá ingressar munido de autorização judicial.

Ao delimitar o interesse estatal, o legislador deu nova solução ao conflito de direitos constitucionalmente assegurados. A conduta está criminalizada. Se praticada no espaço público, terá potencialidade de expansão e sujeitará o infrator à pronta e imediata intervenção estatal; porém, se praticada no recesso de sua privacidade, no interior de sua residência, por exemplo, o infrator, embora cometendo um ilícito penal, somente estará passível da intervenção estatal se a autoridade pública se apresentar munida de mandado que lhe franqueie o acesso na residência da pessoa averiguada.

A mesma orientação se aplica à conduta de plantio para uso pessoal que, nos termos do § 1.º do art. 28, está equiparada à conduta de porte para uso próprio. Remarque-se que essa alternativa de suprimento autônomo por parte da pessoa que dela se utiliza retira uma fonte fundamental de recursos da atividade comercial ilícita e evita o estabelecimento de vínculos da pessoa que usa drogas com as organizações criminosas que se dedicam ao tráfico.

Dessa forma, é possível projetar, com a necessidade de poucas alterações legais, quiçá apenas regulamentação de natureza administrativa, a implementação de clubes de canabismo no Brasil. Caso a autorização para o uso seja restrito a determinados locais e

certos grupos de pessoas, a conduta estará contida naquele âmbito específico e será passível de um melhor controle criminal, social e médico-sanitário.

Estratégias dessa natureza, que visam a prevenção de riscos e a redução de danos, são condutas adotadas comumente como controles informais e, em nossa história, tivemos experiências semelhantes, como os clubes de diambistas do Maranhão, conforme os relatos de estudiosos da época.(15) Por outro lado, condutas que envolvem aspectos morais e criminalizadas com maior rigor – como o ato obsceno, tipificado no art. 233 do Código Penal e sancionado com pena de detenção de três meses a um ano – são também de tipificação restrita ao espaço público e há tolerância com sua prática privada e mesmo permissão e destinação de locais especialmente adequados à atividade do naturismo, geridos por associações ou clubes de pessoas cultoras dessa prática.

Contudo, após dez anos de vigência da Lei 11.343/2006, constatamos que apenas os prognósticos mais perversos se concretizaram. O superencarceramento é uma trágica realidade, temos a quarta maior população carcerária do mundo. A imensa maioria dessa população é constituída por jovens, pretos, pobres e periféricos, a demonstrar a seletividade do Sistema Penal. A população carcerária feminina cresce de forma exponencial. Nosso sistema penitenciário atingiu um tal nível de violações de direitos e garantias constitucionais das pessoas encarceradas, praticadas de forma sistemática e sistêmica, que levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecer, por unanimidade, que se encontra num “estado de coisas inconstitucionais”.(16) Por outro lado, recente relatório das Nações Unidas(17) denunciou a prática de uma política de extermínio da população jovem, negra, pobre e periférica. E a principal causa para tal estado de coisas é a política de “guerra às drogas”. Portanto, os únicos objetivos atingidos pela Lei de Drogas foram aqueles não declarados como tal.

Mundialmente, a política proibicionista-belicista vem experimentando acerbas críticas. Inúmeros países europeus (Portugal, Espanha, Suíça, Holanda etc.) já adotam políticas alternativas descriminalizantes. Nas Américas, os países sul-americanos (destaque para o Uruguai) têm exercido uma forte pressão sobre a Organização das Nações Unidas (ONU) em favor de uma revisão liberalizante na política mundial de Drogas, e mesmo os Estados Unidos da América, que capitaneava o proibicionismo mundial, têm realizado inúmeras modificações legislativas, e alguns de seus estados federados adotaram políticas descriminalizantes, valendo lembrar Colorado e Nova York.

Contudo, nesse momento, o Brasil caminha na contramão da atual tendência mundial. Por tudo que vimos até aqui, é, de fato, necessária uma revisão da Lei 11.343/2006. Todavia, a mudança necessária é a de cunho antiproibicionista, e as modificações realizadas, até o momento, pelo governo interino, nos indicam um recrudescimento na Política Nacional de Drogas. Apenas a título de exemplos simbólicos desses indicativos, foram nomeados um Diretor de estabelecimento psiquiátrico com características asilares (manicômio) para dirigir a Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde e um Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo para a direção da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – Senad.

Em contrapartida, e apesar do contexto político desfavorável, os setores e movimentos antiproibicionistas no Brasil e no exterior nunca estiveram tão articulados e consistentes. E, convenhamos, toda essa história foi forjada na resistência e luta política. É o que melhor sabemos fazer. Não é hora de temer!

Notas(1) luisi, Luiz. A legislação penal brasileira sobre entorpecentes: nota histórica.

Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 152, 1990.(2) dóRia, Rodrigues. Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício. In:

BRasil. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha – coletânia de trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1958. p. 2 e 14. No mesmo sentido: BaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 20, p. 131, 1997.

(3) maCRae, Edward; simões, José Assis. Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador: EDUFBA; CETAD/UFBA, 2000. p. 19.

(4) BaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue cit., p. 131.(5) dóRia, Rodrigues. Os fumadores de maconha cit., p. 12.

Page 8: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

8

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

(6) BaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue cit., p. 131.(7) KaRam, Maria Lúcia. Aspectos jurídicos. In: seiBel, Sergio Dario; TosCano JR.,

Alfredo. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu, 2001. p. 529.(8) BaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue cit., p. 137.(9) Essas autorizações eram conferidas pelos Conselhos Estaduais ou pelo Conselho

Federal de Entorpecentes (Conen e Confen). Os “especialistas” que as requeriam deveriam cumprir uma série de exigências prévias, dentre elas apresentar o texto integral da palestra a ser proferida. Obtida a chancela do Conselho, o conferencista adquiria o status de Conferencista oficial sobre entorpecentes.

(10) CaRvalho, Salo. A atual política brasileira de drogas: os efeitos do processo eleitoral de 1998. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 34, p. 129, 2001.

(11) Não é objetivo do presente trabalho elaborar um exame sistemático das modificações introduzidas pela Lei de Drogas, especialmente sob a perspectiva dogmática. Contudo, é inegável que a Lei 11.343/2006 adotou critérios mais científicos e que lhe conferiram maior precisão, até do ponto de vista terminológico. Merece destaque, por exemplo, o fato de a Lei 11.343/2006 estabelecer, já no seu pórtico, como sua finalidade, a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad e, não mais como dispunham as leis que a precederam, criar medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes. Por outro lado, a própria adoção da palavra droga para designar as substâncias psicotrópicas é, por si mesma, modificação nos critérios adotados pelo legislador ao fazer suas opções político-legislativas.

(12) RodRiGues, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2006. p. 249.

(13) RodRiGues, Luciana Boiteux de Figueiredo; RiBeiRo, Maurides de Melo. Justiça terapêutica: redução de danos ou proibicionismo dissimulado? In: seiBel, Sergio Dario. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu. No prelo.

(14) Também nesse sentido, ver: maGno, Levy Emanuel. In: GuimaRães, Marcello Ovídio Lopes (coord.). Nova Lei Antidrogas comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 120.

(15) iGlésias, Francisco Assis. Sobre o vício da diamba. In: BRasil. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1958. p. 18-19.

(16) ADPF 347/DF, j. 27.08.2015.

Maurides de Melo RibeiroMestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia

pela Faculdade de Direito da USP. Professor de Direito Penal e Criminologia.

Ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes do Estado de São Paulo (Conen/SP).

Crítica à estipulação de critérios quantitativos objetivos para diferenciação entre traficantes e usuários de drogas: reflexões a partir da perversidade do sistema penal em uma realidade marginalBruno Shimizu e Patrick Cacicedo

Com uma década de vigência, é possível afirmar que a Lei 11.343/2006 encerrou a intensificação de um violento processo de controle social por meio da criminalização de condutas relacionadas às drogas tornadas ilícitas. A despeito do objetivo declarado de proteção e prevenção, foi o aspecto repressivo que deixou a marca da Lei de Drogas na realidade concreta na última década.

O aumento de pena para o tráfico de entorpecentes foi acompanhado pelo incremento da política de guerra às drogas, que a pretexto de salvar vidas, exterminou milhares, naquilo que Nilo Batista classificou como política criminal com derramamento de sangue.(1) Por outro lado, a guerra às drogas tem se mostrado como um dos principais combustíveis para o processo de encarceramento em massa levado a efeito no Brasil nos últimos anos. De acordo com dados do Infopen, em 2014, 27% da população prisional total encontrava-se presa por crimes de drogas. Em relação às mulheres, o relatório demonstra que 63% das encarceradas no Brasil estavam presas como traficantes.(2)

Tanto o extermínio quanto o encarceramento massivo tiveram como alvo uma parcela da população específica: os jovens negros das áreas mais pobres das cidades. Referida política de guerra às drogas também referendou igualmente um controle territorial por um poder violento e notadamente militarizado, com constante vigilância sobre a população-alvo.

Especificamente no que se refere ao encarceramento em massa, já é senso comum que se atribua a uma falha legal esse efeito: a adoção de critérios primordialmente subjetivos para diferenciação entre traficantes e usuários. Afirma-se que os critérios legais permitem que

usuários sejam presos frequentemente como se fossem traficantes, pois para definir se a droga se destinava ao consumo pessoal, determina a lei que “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Como muitos dos critérios são nitidamente subjetivos, a atuação das agências policiais e judiciais acaba por utilizar arbitrariamente as condições pessoais, o local e os antecedentes para a classificação da conduta. Dessa forma, o estereótipo do traficante de drogas, produzido pelo próprio sistema punitivo, funciona como o elemento central de enquadramento da conduta típica.

A criminalização secundária do tráfico de drogas tem duas características centrais: os órgãos persecutórios não investigam as condutas e apresentam acusações com parco lastro probatório, em regra apenas o depoimento dos policiais que efetuaram as prisões em flagrante; o Poder Judiciário supre a precariedade das acusações com o arbitrário julgamento com base no estereótipo do acusado.

Diante desse quadro, numa tentativa de alterar o panorama de criminalização supradescrito, especialistas sugerem a adoção de um critério objetivo para a diferenciação entre usuários e traficantes, que seria a quantidade de drogas.(3) A discussão ganha corpo especialmente diante do julgamento no STF do Recurso Extraordinário 635.659, cujo objeto é a constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo pessoal.

Page 9: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

9

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Contudo, a perspectiva de que o estabelecimento de um critério objetivo indicativo da traficância poderia atenuar o encarceramento em massa e a violência intrínseca à guerra às drogas traduz um paradigma alienante, que aposta no discurso diferenciador entre o traficante e o usuário, inexistente na realidade empírica. Nas prisões, o que se verifica é que a pessoa presa por tráfico, quase invariavelmente, é usuária de drogas que, seja para sustentar o próprio uso, seja pela precariedade socioeconômica, acaba se envolvendo pontualmente na mercancia, ocupando os estratos mais baixos do negócio. Do ponto de vista econômico, constituem mão de obra descartável e facilmente substituível, cumprindo a função de arcar com o ônus da criminalização. Por outro lado, o “traficante empresário”, figura social e geograficamente distante das periferias, que lucra e investe no mercado de drogas a partir de operações financeiras e logísticas, encontra-se absolutamente invulnerável ao sistema penal, tendo-se em vista sua seletividade estrutural.(4)

Tomando-se por base o fato de que a diferenciação entre traficante e usuário é meramente circunstancial, sendo que a diferenciação objetiva por meio de critérios quantitativos não dá conta dessa complexidade presente na realidade empírica, resta a conclusão de que, estando o sistema penal baseado sobre alicerces ideológicos discriminatórios e classistas, o estabelecimento de critérios objetivos de reforço do discurso diferenciador entre traficante e usuário poderá significar, mais que uma medida inócua, um verdadeiro retrocesso quando se tem por objetivo o enfrentamento do encarceramento em massa da pobreza.

Por um lado, o estabelecimento de um marco quantitativo, que sempre tende a ser demasiadamente baixo, certamente permitirá aos juízes e aos demais operadores do sistema penal procederem a uma interpretação perversa do critério, criando verdadeira “presunção de traficância” sempre que apreendida quantidade maior de droga que a estabelecida legal ou jurisprudencialmente. Por outro lado, mesmo nos casos de apreensões menores, parece claro que não haverá proibição ao juízo de considerar o réu como traficante, desde que lastreado em outras provas que indiquem o dolo de traficância. Na realidade dos fóruns criminais, verifica-se que os juízes nunca, ou quase nunca, condenam alguém por tráfico com base exclusivamente na quantidade de droga apreendida. Utilizam, sim, outros elementos como provas de traficância, sendo que, em sua maioria, tais elementos são, na verdade, apreciações discriminatórias, como a baixa capacidade econômica do réu (que, portanto, não seria consumidor, mas traficante), o local da apreensão (comunidades periféricas, automaticamente designadas como “pontos de venda de drogas”), entre outras presunções preconceituosas injustamente lidas pelo sistema de justiça como indícios de tráfico. Nesse diapasão, pode-se suscitar a hipótese segundo a qual o critério objetivo será utilizado pelos juízes apenas como prova contrária ao acusado flagrado com quantidade maior de drogas. Nos demais casos, a quantidade pequena de drogas apreendida poderá ser compensada, a fim de capitular-se o caso como tráfico, mediante o apontamento de outras provas, em sua maioria discriminatórias.

Semelhante resultado foi verificado na experiência mexicana, o país com a realidade socioeconômica mais próxima à brasileira que adotou o critério objetivo quantitativo para distinção entre traficante

e usuário.(5) O resultado não foi por acaso, pois a política criminal de drogas cumpre igualmente um papel bem semelhante ao nosso naquele país.

Parece ingênuo acreditar que o encarceramento em massa e a guerra às drogas sejam atribuíveis a falhas da legislação, ignorando-se que isso constitui uma opção política. Nesse sentido, o discurso diferenciador, que carece de respaldo fático, não faz mais que permitir e induzir a demonização da figura do traficante, permitindo novas e mais violentas incursões do poder penal sobre seu corpo e sua vida.

O real enfrentamento dos problemas causados pela política de drogas passa necessariamente pelo debate sobre o proibicionismo, o que pressupõe que a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, ou o reconhecimento da inconstitucionalidade de sua criminalização, apenas será um passo em direção ao fim da guerra às drogas se não vier acompanhada do recrudescimento do tratamento penal da população que vem sendo presa como traficante. Tal recrudescimento, contudo, parece ser consequência natural do falacioso discurso diferenciador que, a fim de proteger o consumidor de drogas, demoniza o traficante, geralmente ainda mais vulnerável, explorado por um mercado ilegal e exterminado pelo braço armado do sistema penal.

Notas(1) BaTisTa, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos

sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 5/6, 1998.(2) minisTéRio da JusTiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:

Infopen, jun. 2014, p. 68-69.(3) Cf. insTiTuTo iGaRapé. Nota técnica: critérios objetivos de distinção entre usuários

e traficantes de drogas. Disponível em: <http://jota.uol.com.br/nota-tecnica-criterios-objetivos-de-distincao-entre-usuarios-e-traficantes-de-drogas>. Acesso em: 10 jul. 2016.

(4) Cf. zaCCone, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 122.

(5) heRnandez, A. P. Drug legislation and the prison situation in Mexico. In: Tijanero, J. H.; Angles, C. Z. Transnational Institute, Washington Office on Latin America. Systems overload – drug laws and prisons in Latin America, 2011. Mexico: the law against small-scale drug dealing. Transnational Institute, 2009.

Bruno Shimizu Doutor e mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.

Defensor Público coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da

Defensoria Pública do Estado de São Paulo.Presidente da Comissão de Sistema Prisional do IBCCRIM.

Patrick CacicedoDoutorando e mestre em Direito Penal e

Criminologia pela USP.Defensor Público coordenador do Núcleo

Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Membro da Comissão de Sistema Prisional do IBCCRIM.

DIRETORIA EXECUTIVAPresidente: Andre Pires de Andrade Kehdi1.º Vice-Presidente: Alberto Silva Franco2.º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna1.º Secretário: Fábio Tofic Simantob2.ª Secretária: Eleonora Rangel Nacif1.ª Tesoureira: Fernanda Regina Vilares2.ª Tesoureira: Cecília de Souza SantosDiretor Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais: Carlos Isa

Fundado em 14.10.92

DIRETORIA DA GESTÃO 2015/2016

CONSELHO CONSULTIVOCarlos Vico MañasIvan Martins MottaMariângela Gama de Magalhães GomesMarta SaadSérgio Mazina Martins

OUVIDORYuri Felix

Page 10: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

10

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

O aceno do Papa Francisco para as mulheres presasKenarik Boujikian

Apenas o Estado é que está autorizado ao uso máximo da força, consubstanciado no Brasil na pena prisional, pela qual se tem a subjugação absoluta do corpo, da vida e do tempo de uma pessoa. Entretanto, a este mesmo Estado é possível alguma medida de reparação, quando o subjugar do ser humano ao sistema penal se mostre em algum ponto desnecessário ou inadequado ou, ainda, desumano aos fins que a própria norma estabelece.

Nesse sentido, o indulto é o instituto posto às mãos do Presidente da República, como exercício do poder máximo do Estado, detentor exclusivo do uso da força, para proceder à reparação, por meio de uma política criminal que, de alguma forma, tenta reverter o quadro de violência que a própria pena passa a representar.

Ele é da tradição do direito brasileiro e há alguns anos diversas entidades, tendo à frente o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, têm mostrado a importância do decreto de indulto contemplar o recorte de gênero, como forma de remediar as consequências nocivas do encarceramento de mulheres, sendo que o primeiro pedido se deu em 2004 e foi acolhido parcialmente.

Neste primeiro semestre de 2016, o movimento pelo indulto para as mulheres cresceu significativamente, pois mais de 200 entidades, de enorme representatividade e legitimidade, apontaram para a imprescindível necessidade de reduzir os danos que a prisão das mulheres vem causando. Para ser mais específica, o pedido das entidades foi de: expedição de decreto que concedesse indulto e comutação de penas, em comemoração ao dia da mulher, que contemplasse as que tiveram condenação por tráfico de entorpecentes, com pena de ao menos cinco anos (referencial da pena mínima do crime previsto no art. 33, caput, da Lei de Drogas), o que nunca foi contemplado nos decretos anteriores.

Indulto nesses moldes se faz justo, tendo em vista as especificidades da prisão da mulher, levando-se em conta as consequências da prisionalização para o âmbito social, familiar, para além do pessoal. O indulto não será um instrumento de política criminal eficaz, se não contemplar os casos de tráfico de entorpecentes, já que a maioria das mulheres está presa por essa espécie de delito.

Vale a pena dar uma breve pincelada sobre o perfil das encarceradas: elas constituem pequena taxa da população carcerária (7%), cerca de 38 mil em 2014. A maioria não está envolvida em crimes violentos. Muitas estão presas por pequenos furtos e estelionatos e cerca de 70% por crime previsto na Lei de Drogas, normalmente com pequena quantidade de entorpecente, enquanto os homens, em maioria, estão detidos por roubo. Temos alto percentual de mães presas (70%), que se encarregam de cuidar dos filhos pequenos e são chefes de família. Há um aumento do aprisionamento feminino, que se dá em razão de entorpecente. Elas são jovens, pois 50% estão na faixa etária de até 29 anos. Muitas são vítimas de violência doméstica. De cada três mulheres presas, duas são negras, ou seja, representam 67%, enquanto que para o IBGE o percentual de mulheres negras fora dos muros é da ordem de 51%. Elas são abandonadas quando estão presas. As prisões que ocupam estão distantes das cidades de origem e a maioria encontra-se em estabelecimento misto. O envolvimento delas na criminalidade se relaciona com a sobrevivência, para manter o mínimo de subsistência para si e sua família.

O crescimento exponencial do aprisionamento feminino no Brasil está na ordem de 570% na última década e meia e é motivado por delito relacionado ao tráfico de entorpecentes, mas não é um fato exclusivo do Brasil, tanto que levou a uma preocupação de ordem internacional.

Diversos documentos da órbita da ONU e OEA recomendam que se preste maior atenção às questões das mulheres que se encontram na prisão, inclusive no tocante aos seus filhos. Nesse sentido, dentre outros, a Convenção Sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; o Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas à detenção ou prisão – adotada pela Assembleia Geral da ONU de 1988; a Recomendação da Assembleia Geral da ONU, Resolução 58/183, que determinou que se prestasse maior atenção às questões de mulheres que se encontram em prisão, inclusive no tocante aos filhos; as Regras de Bangkok – normativa da ONU de 2010, especialmente direcionada para o tratamento das mulheres presas, traduzidos no Brasil só em 2016, em razão de uma parceria da Pastoral Carcerária com o Conselho Nacional de Justiça e outras instituições (demora que não deixa margem de dúvidas sobre o descaso com as políticas de encarceramento de mulheres).

É fato que há o elemento de gênero nos últimos decretos desde 2004, porém sempre com impedimento à concessão para o crime de tráfico de entorpecentes, o que revela que a política criminal referente ao indulto, estabelecida até hoje, não contempla, em termos concretos, as mulheres presas, como se vê pelo número de mulheres indultadas em 2014. A Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informou que em 2014 foram indultados 6.510 homens e apenas 142 mulheres; a Secretaria de Estado de Defesa Social – SEDS, de Minas Gerais, informou que foram concedidos 1.211 indultos para homens e 54 para mulheres. A Susep – do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, disse que foram 622 homens que se beneficiaram com o indulto e 19 mulheres.

São números pífios, que retratam a ineficácia do indulto concedido até então, especialmente porque esses três estados da federação, que prestaram a informação diretamente à Associação Juízes para a Democracia, são os que concentram significativamente a população encarcerada do Brasil.

E qual a razão para que o indulto não seja concedido para as mulheres encarceradas que estão condenadas por tráfico de drogas? No plano da política de drogas, certamente ainda não se apercebeu que o indulto pode ser um importante passo para a alteração de rota para esta política.

O presidente dos EUA, Barack Obama, iniciou em 2015 uma nova página no encarceramento massivo relacionado a drogas, antecipando a soltura de presos, pois se deu conta de que os custos do sistema prisional são altíssimos, que o aprisionamento em massa não levou à superação ou diminuição do tráfico de drogas, que grande maioria da população atingida é de negros e hispânicos, que foi produzida uma superpopulação carcerária.

O Equador adotou em 2008 indulto que incluía pessoas presas pela primeira vez por transporte de drogas, com até 2kg de substância e que já tivessem cumprido pelo menos 10% de sua sentença. A Costa Rica incluiu o critério de gênero para análise de proporcionalidade das penas e de atenuantes causados por vulnerabilidade das mulheres em lei de 2013, passando a aplicar redutores de penas em função da extrema pobreza, chefia de lar, responsabilidade sobre crianças e adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência – uma iniciativa reconhecida pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) como boa prática a ser implementada por outros países.

Operadores do sistema de justiça têm maior reverência em relação às leis ordinárias do que a própria Constituição. Nesta vertente, pode-se conferir inúmeras decisões de indeferimento de concessão de indulto para condenados por tráfico de entorpecentes aduzindo que tal delito,

Page 11: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

11

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ainda que na forma privilegiada, não permite o indulto, em razão da vedação estabelecida na Lei de Crimes Hediondos.

Mas é certo que não existe restrição constitucional, e tampouco é permitida a interpretação restritiva na matéria de competência dos poderes da República e, finalmente, a lei ordinária não pode subtrair poderes da Presidência da República.

Nesse sentido a lição de Alberto Silva Franco, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que, em resposta à consulta pontual formulada pelo GET “Mulheres Encarceradas“, em fevereiro de 2016, acerca da possibilidade de concessão de indulto para as condenadas ao tráfico de entorpecentes, esclareceu que não há inconstitucionalidade em sua concessão:

“Com a acuidade peculiar, o Min. Assis Toledo enfatizou que no art. 84, XII, a Constituição prevê expressamente o indulto e atribui à competência discricionária do Presidente da República. Ora, tal poder discricionário encontra seus limites no próprio Texto Constitucional, não podendo sofrer restrições pelo legislador ordinário. E a Constituição, quando quis fazer restrições, mencionou a anistia e a graça, deixando de lado o indulto, por ela própria previsto expressamente no citado art. 84, XII. Assim é porque parece ilógico tornar, no art. 84, XII, a palavra indulto como abrangente de graça e, logo adiante, no mesmo Texto Constitucional (inc. XLIII do art. 5.º) inverter o raciocínio para entender que a graça abrange o indulto. Por outro lado, se o legislador tivesse empregado, neste último preceito, a palavra graça em sentido amplo, com o significado de ‘direito de graça’ ou ‘poder de graça’, ou indulgentia principis, não teria certamente mencionado a anistia, que é uma das modalidades do mesmo poder de graça ou de clemência. Por último, cabe, aqui, relembrar-se a observação de Aloysio de Carvalho (não há sinonímia entre graça e indulto) para concluir que não seria compreensível sustentar-se que o legislador constitucional tivesse empregado duas expressões graça (art. 5.º, XLIII) e indulto (art. 84, II) com o mesmo ou com sentido invertido, estabelecendo uma enorme confusão, inexistente na legislação e na doutrina brasileira. Destarte, não estaria o Presidente da República impossibilitado, em princípio, de conceder o indulto, nos termos do art. 84, II, da Constituição Federal, em relação a qualquer crime, seja do Código Penal, seja do microssistema aludido no item A, nem o legislador infraconstitucional, poderia, através de lei ordinária, estabelecer limites ao Presidente da República no seu poder de indultar. Caso o fizesse, a lei ordinária teria flagrante inconstitucionalidade. O Presidente da República não ficará assim obstado de conceder indulto, ou até mesmo de comutar pena, no que tange aos crimes que participam do microssistema criminalizador constante da Constituição Federal (art. 84, XII, da CF) (...). E se, no seu poder discricionário, pode ele incluir no indulto todo e qualquer fato típico arrolado na lei infraconstitucional que versa sobre tráfico ilícito de entorpecentes, nada impede que possa nele incluir situações concretas que alberguem condenados por tal delito”.

Toda vez que penso na realidade dos presos por tráfico de entorpecentes, não consigo deixar de lembrar de Cintia, jovem de 24 anos, mãe de uma criança de cerca de 4 anos, primária, sem antecedentes criminais, presa em flagrante em fevereiro de 2012, com menos de 1 grama de crack. Deve ser mesmo uma grande traficante, pois em sua casa, onde a apreensão ocorreu, encontraram verdadeira fortuna: 1 cédula de 50 reais; 8 moedas de 10 centavos; 4 moedas de 5 centavos; 3 moedas de 25 centavos; 1 moeda de 50 centavos; 1 moeda de 1 real; 9 cédulas de 2 reais; 7 cédulas de 5 reais e 1 cédula de 20 reais!!!! Ainda, a polícia registrou no documento de vida pregressa, que instrui o flagrante, que ela não possuía carro e nem depósito em bancos, a casa dela era de moradia popular e ela dava suporte econômico para a única filha.

Cintia foi condenada por crime que não possui a elementar da violência, a uma pena de cinco anos de reclusão, em regime fechado, sem redução e sem substituição de pena. Saiu em livramento condicional, apenas no final de 2015, quando a filha já tinha mais de sete anos e depois que o Estado havia gasto mais de 100 mil reais com a sua prisão, cálculo à vista do tempo que ela permaneceu presa, já

que em média cada preso tem o custo mensal de cerca de três salários mínimos.

Como anotou o Min. Ricardo Lewandowski no julgamento do HC 118.552: “Permito-me insistir: a grande maioria das mulheres em nosso País está presa por delitos relacionados ao tráfico drogas e, o que é mais grave, quase todas sofreram sanções desproporcionais relativamente às ações”.

Lamentavelmente, nem a Lei de Drogas e nem o Código Penal são aplicados, como poderia e deveria sê-lo, no que diz respeito às medidas que o legislador estabeleceu para que a nociva prisionalização não fosse a única alternativa possível, que gera a caótica e bárbara situação das prisões, que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu como de “estado de coisa inconstitucional”, dado o grau de violações de direitos que nelas são encontradas.

Este quadro dantesco está a exigir que o país repense a política de entorpecentes e o indulto para as mulheres é um caminho necessário, emergencial, para romper a trágica situação que se encontram as mulheres encarceradas.

O Conselho Nacional de Política Criminal de Penitenciária analisou o pedido das entidades e apresentou proposta extremamente sensível, de extremo rigor técnico para as mulheres encarceradas e, pela primeira vez, o referido Conselho, por seu presidente, Dr. Alamiro Velludo Salvador, deu publicidade à sua proposta e posição, de modo que questão dessa natureza tivesse a transparência necessária para que a sociedade pudesse saber qual a sua posição.

Papa Francisco tem nos dado lições fantásticas de humanidade, inclusive na área penal. Disse que o Estado e cada um de nós devemos superar “a convicção de que através da pena pública se podem resolver todos os tipos de problemas sociais, como se para as doenças mais diversas nos fosse recomendado o mesmo remédio. Não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social”.(1)

Ele esteve na Bolívia em 2015 (no II Encontro com os Movimentos Populares) e, no trajeto de um de seus compromissos, pediu que parassem o carro, pois ouviu uma cantoria que faziam para ele, no momento que passa por uma prisão de mulheres. O som das vozes femininas vem bonito e forte, embora elas estejam atrás dos muros e grades. Ele fez questão de parar para acenar àquelas mulheres, que se tornaram invisíveis para a sociedade.

Francisco fez o aceno para as mulheres presas. O mundo está se dando conta de que é necessária uma nova abordagem para a questão das drogas e para o tratamento das mulheres presas. O CNPCP se manifestou pelo acolhimento do pedido de indulto para as mulheres presas por tráfico. Todos os órgãos do poder executivo que se envolvem com a questão prisional, com a questão de direitos humanos e com as políticas para as mulheres, também demonstraram a importância de realização de uma política para as mulheres encarceradas, dadas as condições de vulnerabilidade em que elas se encontram. Inúmeras entidades representativas e com significativa legitimidade, de várias áreas, apresentam este pleito.

Que venha o indulto para as mulheres, ainda que não seja no dia das mulheres!

Nota(1) Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/

october/documents/papa-francesco_20141023_associazione-internazionale-diritto-penale.html>.

Kenarik BoujikianJuíza do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Cofundadora da Associação Juízes para a Democracia.Membro do GET “Mulheres Encarceradas”.

Page 12: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

12

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Os demônios da próxima décadaRafael Folador Strano1986

Em setembro de 1989, no interior da Casa Branca, o então Presidente George Bush empunhou uma porção de pedras brancas amareladas e afirmou: “Isto é crack. Ele está transformando as cidades em zonas de batalha e matando as nossas crianças”.(1)

O discurso presidencial remonta ao pânico moral em torno da droga (crack scare), o qual havia se alastrado pelos EUA a partir de 1986. Histórias sobre indivíduos que perdem qualquer traço de humanidade ao fumar a substância, edifícios imundos habitados por “mortos-vivos”, anomalias fetais, promiscuidade, disseminação de doenças, abandono familiar, dentre outras, alarmaram a população estadunidense, que passou a apoiar, inclusive dentre os seguimentos mais atingidos pela repressão penal, um incremento punitivo sem precedentes na política criminal de drogas.

Naquele ano, como consequência de tal clamor, o Congresso dos EUA promulgou o Anti-Drug Abuse Act, diploma legislativo que impôs penas mínimas aos traficantes de drogas, estabelecendo uma escala de acordo com a qual a pena para o portador de 5g de crack equivaleria à de quem portasse 500g de cocaína. Foi instaurada, assim, uma proporção de 1:100 em relação à punição de cada tipo de droga, a despeito de ambas as substâncias terem basicamente a mesma composição química.

Não demorou para que a seletividade criminalizante fosse evidenciada, afinal, em razão de seu baixo custo de produção e da pulverização das vendas, o crack passou a ser vendido e consumido majoritariamente pela população negra e latina estadunidense, que, como consequência, foram os segmentos mais afetados pela política diferenciadora.

A mens legis implícita ao ato de 1986 também influenciou a política criminal executiva e judiciária, dando margem a operações policiais inspiradas na teoria da janela quebrada e exclusivamente focadas nas comunidades pobres, o que resultou em um aumento vertiginoso de detenções: 90% dos presos por tráfico de crack eram negros, enquanto a maioria dos indivíduos processados por uso de drogas era branca.(2) Nesse contexto, também houve a legitimação de inúmeras violações a direitos fundamentais, dentre as quais se inclui a admissão de confissões forçadas e buscas e apreensões realizadas sem qualquer observância aos ditames constitucionais outrora consagrados.

O encarceramento massivo das minorias decorrente de tal movimento levou Alexander a afirmar que a guerra às drogas, camuflada em uma linguagem neutra, ofereceu à população branca que se opunha às reformas raciais uma oportunidade única de expressar a hostilidade sobre os negros, evitando eventuais acusações de racismo.(3)

Apenas em 2010, no intuito de minimizar a iniquidade do sistema penal estadunidense, o presidente Barack Obama sancionou o Fair Sentencing Act. De acordo com a nova legislação, a disparidade da prisão por crack e cocaína foi reduzida para 18:1. Além disso, foram eliminadas as sentenças mínimas de cinco anos para a posse de crack. Embora atenuado, o tratamento desigual em relação ao crack persiste.

2006No Brasil, duas décadas depois da “epidemia” de crack

estadunidense, a Lei 11.343/2006 nasceu com a proposta de punir “grandes” traficantes, diferenciando-os dos “pequenos” traficantes (art. 33, § 4.º) e dos usuários de drogas (art. 28). Apesar de incrementar consideravelmente a punição para o tráfico de drogas, a lei brasileira não impôs tratamento diferenciador entre o crack e as demais

substâncias consideradas ilícitas, juízo este que cabe ao Magistrado (art. 42).

Ocorre que, embora ainda não exista pesquisa empírica sobre o tema, a prática demonstra que indivíduos relacionados a tal droga são tratados de forma mais gravosa.

A conjuntura pode ser ilustrada pela frase do Min. Luís Roberto Barroso durante a prolação do voto no RE 635.659: “o crack muda a equação do problema das drogas, porque ele transforma as pessoas num corpo sem alma”. O usuário de crack foi, portanto, equiparado ao “desalmado”, aquele que é somente um corpo e que, implicitamente, merece tratamento presumidamente mais gravoso em relação aos usuários das outras substâncias. Paralelamente, o raciocínio também autoriza o recrudescimento em relação àquele que vende crack, diferenciando-o dos demais traficantes, já que seria o exclusivo responsável pela miséria dos “sem alma”.

A lógica embutida na fala do Ministro é típica de um crack scare, o qual, no caso brasileiro, tomou proporções nacionais a partir do início da presente década. Desde sua entrada no mercado consumidor de drogas brasileiro, o crack permaneceu vinculado à região central da cidade de São Paulo. A partir de 2010, a disseminação do uso para outras cidades brasileiras, as contundentes operações policiais realizadas na cracolândia paulistana, dentre outros fatores, levaram à construção midiática da “epidemia” brasileira do crack, tema que, inclusive, se tornou objeto da disputa presidencial de 2012.

Não se questiona que o crack é uma droga extremamente danosa, com alto potencial viciante e que aprofunda a relação de marginalização na qual provavelmente já está inserido o usuário antes mesmo de fumar a droga.(4) O problema é que a categorização do uso de crack enquanto epidemia, além de incerta sob o ponto de vista científico,(5) afasta a análise sobre suas causas, conforme bem explica Nery Filho: “falar de epidemia remete ao poder médico, que quase personaliza no crack o equivalente a um vírus... Uma bactéria... Um microrganismo, deixando de concebê-la como uma molécula química que não tem vida biológica. O trânsito do crack se faz entre pessoas, por pessoas. Não há outro ‘vetor’ senão os próprios humanos e suas vicissitudes. Não gosto do termo epidemia, porque parece excluir o social e o psíquico enquanto determinantes fundamentais do uso. O consumo do crack é sintoma da expansão da miséria e exclusão e não o inverso, suas causas”.(6)

Além disso, o pânico moral dá ensejo às every day theories que acabam sendo incorporadas à práxis forense. Dentro desse contexto, fatores científicos, como as composições químicas análogas do crack e da cocaína, a possibilidade de tomada de decisões racionais pelos usuários, o consumo médio diário de “pedras” pelo usuário brasileiro, o peso de cada porção, dentre outros, cedem lugar a chavões e frases de efeito que subsidiam condenações de usuários como se traficantes fossem, com a imposição de severas penas, além de influenciarem no tratamento desigual entre o traficante de crack e o das demais drogas. Condenados por outros crimes, caso relacionados ao crack, também arcam com maior rigor repressor, afinal, “roubou porque é noia”.

Assim, apesar de não existir no país fundamento legal que diferencie o tratamento em razão do tipo de droga, a própria lógica seletiva do sistema, impulsionada pelo sensacionalismo em torno da questão, encarrega-se da tarefa. Não há, porém, qualquer sinal de reversão desse paradigma nos próximos anos.

2016Conforme mencionado, muito embora existam indícios de

tratamento desigual para o crack, a Lei 11.343/2006 foi elaborada

Page 13: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

13

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

antes da repercussão nacional sobre a droga. Basta, porém, consultar os projetos legislativos em trâmite no Congresso Nacional para perceber a forte tendência de escalada punitiva, inclusive no sentido de emendar a Lei de Drogas a fim de criar uma espécie de Anti-Drug Abuse Act brasileiro, com trinta anos de atraso e mesmo diante de todas as mazelas já reconhecidamente provocadas por este.

O Projeto de Lei 5.444/2009, por exemplo, tem como objetivo acrescer o § 5.º ao art. 33 da Lei 11.343/2006, o qual aumentaria a pena de dois terços até o dobro, no caso de o tráfico se referir a “cocaína para fumar, vulgarmente denominada ‘crack’”. No mesmo sentido, o PL 4.052/2012 (apensado ao PL 5.444/2009) e o Projeto de Lei do Senado Federal 137/2014. Por sua vez, o PL 440/2011 visa a acrescentar o § 8.º ao art. 28 da Lei 11.343/2006, de acordo com o qual o Magistrado poderá determinar, a seu critério, a imediata internação do usuário de crack para tratamento especializado de recuperação.

O cenário que se desenha é, de fato, preocupante, apesar de não se tratar de algo inédito na história da war on drugs. Em verdade, a demonização de usuários ou traficantes de determinados tipos de substâncias, quando oriundos de camadas populacionais pobres, não é exclusividade do crack, já tendo sido verificada em relação a outras drogas. Basta lembrar que no Brasil, há alguns anos, propalou-se o início de uma suposta “epidemia” de óxi, o mesmo ocorrendo nos EUA em relação à metanfetamina.

Degeneração social, “mortos-vivos”, violência e irracionalidade sempre permearam a questão das drogas, variando, de tempos em tempos, a substância escolhida como “destruidora da nação”, bem como aqueles que exclusivamente arcam com o peso das respostas penais forjadas sob o argumento do pavor. Retomando Hulsman,(7) enquanto houver inquisição, bruxas e demônios continuarão a

assombrar o imaginário popular. Resta saber até quando acreditaremos nas fogueiras.

Notas(1) levine; Harry G.; ReinaRman, Craig. The crack attack – politics and media in the

crack scare. In: levine; Harry G.; ReinaRman, Craig (orgs.). Crack in America – demon drugs and social justice. Berkley: University of California Press, 1997. p. 22-23, tradução nossa.

(2) musTo, David F. The american disease – origins of narcotic control. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999. p. 274.

(3) alexandeR, Michelle. The new Jim Crow – mass incarceration in the age of colorblindness. Nova Iorque: The New Press, 2012. p. 54.

(4) Vale lembrar que duas características dos usuários de crack no Brasil coincidem com marcadores de desvantagem sociais e históricos já determinados no nascimento, quais sejam, o fato de os usuários não serem brancos e a baixa escolaridade (BasTos, Francisco Inácio; BeRToni, Neilane (orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014. p. 149).

(5) “Não podemos afirmar se há ou não no país uma epidemia do uso de crack e/ou similares, uma vez que uma epidemia só pode ser caracterizada tecnicamente a partir de resultados obtidos de uma série histórica de registros de estimativas/contagens do fenômeno sob análise” (BasTos, Francisco Inácio; BeRToni, Neilane (orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack cit., p. 145).

(6) maCRae, Edward; TavaRes, Luis Alberto; nuñez, Maria Eugênia. Diálogo com Dr. Antonio Nery Filho. In: maCRae, Edward; TavaRes, Luis Alberto; nuñez, Maria Eugênia (orgs.). Crack: contextos, padrões e propósitos de uso. Salvador: EDUFBA, 2013. p. 29.

(7) hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas – o sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1983. p. 64.

Rafael Folador StranoMestre em Criminologia e Direito Penal pela FDUSP.

Defensor Público do Estado de São Paulo.

Dez anos da Lei de Drogas: narrativas brancas, mortes negrasNathália OliveiraDe onde vem a atual Lei de Drogas

Hoje, no Brasil, a Lei de Drogas em vigor, de n.º 11.343/2006,(1) surge a partir de dois Projetos de Lei: o Projeto de Lei do Senado 115/2002(2) e o Projeto de Lei 6.108/2002,(3) tramitando como PL 7.134/2002.(4)

Foi este PL que recebeu uma série de modificações de seu relator, Paulo Pimenta, deputado federal do PT-RS: Pimenta substituiu a proposta de um “Sistema Nacional Antidrogas” pelo “Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas”, assim como retirou a previsão de internação compulsória para pessoas usuárias de drogas. O deputado incluiu, ainda, a extinção da pena de prisão por uso de drogas, marcando uma diferenciação na lei sobre a inclusão na Justiça Criminal de “usuários” e “traficantes”. Essa diferenciação resultou na despenalização do uso de drogas no Brasil.

Mais do que uma mudança de termos, a criação desse novo sistema significou uma nova concepção de política sobre drogas. Com princípios baseados em recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o texto pautava o não encarceramento da pessoa usuária. Dessa forma, a discussão sobre política de drogas foi aproximada do campo da Educação, Saúde, Assistência Social e Segurança Pública, conforme os princípios e objetivos constitutivos do SISNAD. Essa era a perspectiva mais avançada que existia no período, como podemos observar nos arts. 4.º e 5.º, que tratam dos princípios e objetivos do SISNAD.(5)

Avanços e retrocessosDentre os diversos desdobramentos da atual lei, é possível afirmar

que lentamente se constitui um entendimento comum na sociedade brasileira de que o uso individual de drogas é uma questão de cuidado, desestimulando as ações de enfrentamento ao usuário de drogas ilícitas. Além disso, a despenalização do uso individual de drogas localiza a discussão em uma perspectiva mais ampla, provocando a formulação e o desenvolvimento de políticas públicas de saúde. Ainda que existam compreensões distintas sobre qual tipo de cuidado deve ser ofertado, o principal avanço dessa lei é retirar do campo da ilegalidade uma discussão que deve ser tratada como objeto de política pública, pois quando levamos a questão para o campo do cuidado, autorizamos parcialmente a discussão no campo das políticas públicas e aos poucos é possível diminuir o estigma constituído em torno do usuário de drogas.

Se, por um lado, a atual Lei de Drogas confere avanços qualitativos no desenvolvimento de políticas públicas de saúde, é essa mesma lei que concede ao Estado uma ampliação de prerrogativas legais para a perpetuação de mecanismos arbitrários que encontra como seu principal objeto a população negra. O discurso oficial de que existe uma guerra contra o “tráfico” mais uma vez mascara as ações genocidas do Estado brasileiro dirigidas a um determinado grupo de cidadãos.

Após dez anos da aplicação da atual Lei de Drogas, é possível constatar que esta é mais um sofisticado exercício de manutenção

Page 14: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

14

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

invisível do racismo brasileiro, pois, ao mesmo tempo em que não permite uma relação imediata, os resultados de sua aplicação conferem à população negra a manutenção da super-representatividade nos piores índices dos marcadores sociais. O racismo não surge a partir da atual Lei de Drogas, mas a partir da obeservação da mesma é possível perceber a ação simétrica de um conjunto de mecânismos que tem como resultado a abreviação de vidas negras, pois é a população negra quem colore os dados de homicídios e encarceramento no país.

Os dados são negros, mas a narrativa é brancaEm primeiro lugar, a ideia de guerra às drogas é narrada a partir

de uma perspectiva patologizante e criminalizadora da periferia. Midiaticamente, e a partir da construção do senso comum, o uso de drogas ilícitas nunca é representado de maneira positiva, dentro de um uso recreativo. Ao analisarmos a cobertura midiática que antecedeu a aprovação da lei atualmente em vigor, percebemos que a discussão da época foi marcada por extensiva cobertura jornalística de acontecimentos avulsos relacionados ao varejo de drogas, ou mesmo especulações de um suposto “crime organizado”. Exemplo disso foi a midiatização, pautada grandemente em especulações, sobre o Primeiro Comando da Capital nas cadeias e periferias paulistas. A mídia deu grande destaque para a série de rebeliões em presídios entre 1997 e 2002, além de uma diversidade de crimes associados a figuras de traficantes, como, por exemplo, a repercussão da morte do jornalista Tim Lopes,(6) que, segundo investigações policiais, foram ordenadas por Elias Maluco, marcado como chefe do tráfico na favela Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro.(7)

A espetacularização midiática acerca dos “crimes” repercutiu na equiparação do tráfico de drogas a crime hediondo, que, além de equiparar condutas cotidianas de cunho privado a crimes que atentam contra a ordem e saúde pública e restringem liberdades individuais, também aumenta o poder de ação do Estado perante seus cidadãos. A narrativa do medo e animalização de nossas periferias, associada aos desejos políticos do período, fortaleceu o apelo social que autoriza a criminalização de territórios pobres.

Em nome do combate ao tráfico, territórios pobres inteiros estão ocupados de maneira oficial pelo exército brasileiro, como acontece com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Veículos de jornais e televisão focam suas reportagens na versão de quem atirou e ficou vivo: a polícia, representante do mesmo Estado criador e operador dessa mesma lei. Raramente é considerada a versão dos “suspeitos” ou mesmo das testemunhas. Inclusive, o policial que atirou nunca é nomeado como suspeito nas narrativas jornalísticas e os policiais sequer são julgados pela justiça comum.

Todos esses pequenos detalhes do discurso oficial do Estado, fortalecidos à exaustão pela narrativa midiática, tornam quase imperceptível a guerra cotidiana que acontece em nossas periferias. Esse discurso é tão anestesiador de nossa tirania que passa despercebido, assim como não são objeto de indignação os números referentes às mortes nesse massacre. Segundo o relatório da Anistia Internacional, em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 e 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticada com o uso de armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. Uma pessoa morre a cada 7 horas.(8)

Outro dado que podemos contabilizar como resultante desses 10 anos de lei é o aumento do encarceramento por tráfico. Entre 2006 e 2014, nossa população carcerária dobrou e atingiu mais de 600 mil pessoas, sendo que, do total de presos, 41% não tinham sequer sido julgados, o que conferiu ao Brasil o 4.º lugar no ranking mundial de prisões. Entre 2006 e 2014, as prisões por tráfico aumentaram 344%, e, segundo o Infopen de 2014, 27% das pessoas presas haviam cometido delitos relacionados a drogas. Entre as mulheres, a prisão por drogas representa 63%.(9) Em média, 60% desses presos são negros.

Necessidade do empretecimento das narrativasA reversão desses dados só será possível a partir da construção de

novas narrativas sobre os efeitos dessa guerra, as quais devem ser feitas sob a ótica daqueles que sofrem diretamente com a violência. Apesar dos dados acessíveis a todo gestor de política pública ou operador da lei, a indiferença letargizante promovida pelo discurso hegemônico também atingiu esses sujeitos. Esse efeito não é por acaso.

Esses dados conferem aos negros o lugar que sempre lhes foi reservado como natural na sociedade brasileira: o da subalternalidade, do indesejável, do não cidadão pela sua condição de escravo, daquele que não foi aceito em sua diversidade estética e cultural, daquele que só se relacionava com essa sociedade como coisa, e não como sujeito. Esse invólucro de relações históricas do corpo negro na sociedade, ainda hoje, faz com que os crimes cometidos contra a população negra não sejam entendidos como crime, e sim como uma ação legítima do Estado sobre esses corpos.

Os efeitos da abolição incompleta do século XIX nos permitem apontar que o racismo brasileiro é responsável pelo genocídio da população negra. Ainda que o termo “genocídio” esteja diretamente relacionado ao que aconteceu com os judeus na Alemanha nazista, é possível detectar uma série de elementos muito semelhantes, pois existem muitos mecanismos de morte do povo negro anteriores à própria morte que finda os batimentos cardíacos.

Depois de mais de 100 anos da abolição, os negros têm a menor representação nos postos formais do mercado de trabalho, e mesmo na formalidade não estão nas profissões mais bem remuneradas; é quase inexistente a presença de negros em grandes espaços de poder, sejam eles Legislativo, Executivo ou Judiciário; a representação da estética e cultura dos negros raramente está relacionada com um modelo positivo, dentre outros dados. A consequência da ação desse conjunto de mecanismos mantém essa população nos extratos mais pobres da pirâmide social, por isso apontamos que o racismo é estruturante do pensamento estatal, direta e indiretamente. No primeiro, por conta da mão pesada das forças policiais sobre os negros, no segundo, pela omissão em desenvolver políticas públicas efetivas que revertam significativamente esses dados. Ainda que nos últimos doze anos uma ínfima parcela da população negra tenha se beneficiado diretamente de políticas de ações afirmativas, a super-representação de negros é auferida nos piores marcadores sociais.

Foi olhando para esses dados que o pensamento negro contemporâneo começou a apontar que os efeitos do racismo brasileiro são responsáveis pelo genocídio da população negra. Mesmo que os negros produzam contranarrativas ao pensamento hegemônico, de modo que impulsione mudanças significativas na atual Lei de Drogas, é necessário mudar a forma como pensamos o conjunto de nossas leis e políticas públicas. Uma mudança profunda na sociedade brasileira só será possível quando tivermos centralidade na questão racial em todas as políticas, de modo que essa questão se torne transversal a todas as pautas. A promoção de justiça social só acontecerá na prática quando houver uma destinação orçamentária significativa e longa para mudança nesses quadros de desigualdades marcados na cor da pele. Isso não se dará apenas no discurso de políticas, programas de governo ou leis com dotação orçamentária ínfima. Essa transformação acontecerá conforme for mudando a mentalidade predominantemente branca e colonizada, desde a forma como acontecem as relações nos espaços privados e públicos, e até mesmo na representatividade dessa população nos espaços em que se dão essas decisões. Não é natural que todos os espaços de poder sejam ocupados majoritariamente por homens brancos bem nascidos, no entanto, essa aberração não parece óbvia.

Notas* Agradecimentos à Lucia Sestokas, pela revisão ortográfica e parceria na escrita

do artigo citado nas referências bibliográficas: “Guerra às drogas, heranças e novos paradigmas”.

** Agradecimentos a Eduardo Ribeiro, pela parceria na coordenação da Iniciativa

Page 15: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

15

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Negra por Uma Nova Política sobre Drogas e na luta por uma sociedade mais justa.

(1) Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>.

(2) Para maiores informações, acessar: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/66248>.

(3) Para maiores informações, acessar: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=44298>.

(4) Para maiores informações, acessar: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=197758&filename= PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+7134/2002>.

(5) Para maiores informações, acessar: <http://jota.uol.com.br/guerra-drogas-herancas-e-novos-paradigmas>.

(6) Para um exemplo de avaliação da mídia do período, consultar: <http://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/tim-lopes-torturado-assassinado-por-

traficantes-na-vila-cruzeiro-8903694>.(7) Para maiores informações, acessar: <http://jota.uol.com.br/guerra-drogas-

herancas-e-novos-paradigmas>.(8) Disponível em: <https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/>.(9) Disponível em: <http://ittc.org.br/infografico/>.

Nathália OliveiraDesenvolve o Projeto Gênero e Drogas no

Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).Uma das Coordenadoras da Iniciativa Negra

por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD).Cientista social.

Adolescências inscritas na ilegalidade. A Lei 11.343/2006 e os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativaHeloisa de Souza Dantas, Camila Magalhães Silveira e Marília Rovaron

– O que você acha que motiva os meninos a permanecerem no tráfico?

– O dinheiro fácil, o respeito e a fama adquiridos e para alguns a oportunidade de se alimentar, se manter até mesmo com o básico. Vi muitos no tráfico que não tinha nem aonde

dormir antes de entrar no tráfico e depois de envolvido, passou a ter um teto, uma boa condição de se manter.

O trafico é o lugar onde a porta de entrada sempre estará aberta para todos.

P.A., três vezes internado na Fundação CASA

Jovens negros e pardos que vivem nas diversas periferias brasileiras são os principais alvos de uma violência simbólica e material de nossa sociedade. A violência simbólica é invisível e se apoia em “expectativas coletivas” e em crenças “socialmente inculcadas”,(1) já a violência material está claramente expressa nos números divulgados em 2014 pelo Mapa da Violência: sete jovens entre 15 e 29 anos são mortos a cada duas horas, perfazendo 82 mortos por dia e 30 mil por ano. Dos assassinados, 77% são negros.(2) No entanto, a publicação desses números na mídia não causa comoção. É como se tais informações fizessem referência a algo que nos parece abstrato e distante.

O imobilismo diante do horror não é novidade e muito já foi dito sobre a constatação de Hannah Arendt de que a “banalidade do mal”(3) acontece no vazio do pensamento, transformando a violência em algo corriqueiro. A tentativa de enxergar o outro exige que saiamos de nossos lugares e que consigamos nos identificar com aqueles que pensamos ser diferentes de nós. Em vez de nos mobilizarmos para inverter este cenário que elimina parte da população jovem, o ódio e a sensação de impunidade conclamam o cidadão a eleger um culpado maior pelo seu medo cotidiano. Programas de TV sensacionalistas bradam para que a sociedade faça “justiça” com as próprias mãos, alcançando, com seus discursos, espaços em que análises críticas sobre desigualdade social não chegam com a mesma facilidade.

Se, por um lado, a frágil investigação dos crimes e a burocracia do sistema de justiça acabam levando à falta de credibilidade das instituições responsáveis pela aplicação da lei,(4) por outro, somos

a quarta maior população carcerária do mundo e a que tem a maior velocidade de encarceramento.(5) O sistema carcerário expõe claramente a seletividade do sistema penal: a maioria dos detentos é jovem, 67% são negros ou pardos e aproximadamente oito em cada dez pessoas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental.(5) No caso dos adolescentes que cumprem medidas de privação e restrição de liberdade a situação não é diferente: 57% são pardos ou negros, 56% estavam fora da escola antes de serem internados e 86% não haviam finalizado o ensino fundamental.(6)

Bauman analisa a criminalização de determinados grupos sociais ao tratar dos “indesejáveis”, “lixos” ou “refugos humanos” produzidos pela modernidade, efeitos do processo de globalização excludente de nosso tempo.(7) A partir da análise de François de Bernard, de que há uma progressiva “criminalização do globo e globalização do crime”, em que bilhões de dólares e euros são controlados pelas máfias e outros crimes organizados, é mais fácil para os governos “dirigir a animosidade popular” contra os pequenos crimes.

A pergunta é: quem efetivamente está sendo encarcerado em nosso país? Indivíduos pobres, sem educação formal, que são precocemente estigmatizados. Tal fato é previsível diante da dificuldade de eliminar o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas controladas pelo crime organizado, pois implicaria desmembrar um sistema complexo que movimenta mundialmente somas volumosas. Estima-se que em 2009 o faturamento do crime foi de aproximadamente US$ 2,1 trilhão, ou 3,6% do PIB. Desse total, os ganhos do crime organizado transnacional – como tráfico de drogas, falsificação, tráfico de seres humanos e contrabando de armas de pequeno porte podem ter atingido 1,5% do PIB global, dos quais 70% teriam sido lavados por meio do sistema financeiro.(8) Se realmente quiséssemos enfrentar o crime, teríamos que movimentar um universo em que personagens e instituições do mundo lícito se encontram fortemente entrelaçadas com o universo da ilegalidade.

Os adolescentes inseridos no tráfico de drogasOs adolescentes que acabam se envolvendo na prática de ato

infracional análogo ao tráfico de drogas enfrentam as angústias,

Page 16: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

16

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

incertezas e necessidades de modelos identificatórios como qualquer outro indivíduo nesta mesma faixa etária. Em nosso país, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) compreende que aqueles que estão entre 12 e 18 anos se encontram em uma fase peculiar do desenvolvimento humano, porém há diferenças fundamentais na maneira como este período é vivido ao serem considerados fatores como classe, raça, gênero e região.

Concomitante com tais diferenças que marcarão as trajetórias desses meninos e meninas, Birman alerta para o impasse da juventude atual que não encontra “um horizonte delineado para sua inscrição no espaço social”. No mundo, a globalização neoliberal contribui diretamente para a não inclusão de jovens no chamado “mercado de trabalho” criando o excedente que garante, entre outras coisas, a precariedade das garantias trabalhistas e obriga aqueles que conseguem se inserir a constantes adaptações em nome da sobrevivência.(9)

Nas diferentes cidades brasileiras, os adolescentes são atingidos diretamente pela instantaneidade e ausência de perspectivas desse nosso tempo, bem como pela profunda desigualdade social atribuída à má distribuição de renda e ausência de políticas públicas capazes de responder às necessidades de saúde, educação, cultura, entre outros campos de direito de uma população que vive constantemente bombardeada por ideologias de consumo.

A geração de jovens, nascida entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, não reconhece como sua a ideologia de seus pais e avós, que foi fortemente marcada pela moral do trabalho. A partir da reestruturação produtiva – resposta criada pelo capital como forma de atender à crise econômica vigente que teve início na década de 1970 – houve o aumento do desemprego em massa e o fim da sensação de estabilidade que atravessava a geração de trabalhadores no Brasil, sobretudo na década de 1980. Neste contexto, há clivagens entre o universo moral do trabalhador e do jovem inserido no mundo do crime, que precisam ser consideradas para um entendimento sobre as expectativas dessa nova geração e sua possibilidade de ascensão em um mundo marcado pela legitimação do consumo.(10)

No cotidiano das periferias, Feffermann inscreve o tráfico de drogas como uma forma de inserção ilegal dos adolescentes no mundo do trabalho: “O tráfico de drogas funciona como qualquer indústria e os jovens trabalham em todas as etapas de sua produção. Sua realidade mostra a violência incrustada na economia ilegal. Nas periferias da cidade e da economia, os jovens sofrem e são coadjuvantes nessa forma cruel e avassaladora de violência”.(11)

Simultaneamente ao tráfico, o consumo de drogas também participa da vida desses adolescentes. Apesar de não haver estudos epidemiológicos nacionais, um levantamento do Conselho Nacional de Justiça conduzido nos centros socioeducativos de todas as regiões brasileiras revelou que aproximadamente 75% faziam uso de drogas ilícitas antes da internação, sendo o percentual mais expressivo na região centro-oeste (80,3%). Quanto ao tipo de droga, a maconha foi a substância mais usada, seguida da cocaína, com exceção da região Nordeste, em que o crack foi a segunda droga mais utilizada.(12) Uma pesquisa realizada em 2006 pela Fundação CASA identificou que 62% faziam uso frequente de maconha, 46% já tinham experimentado cocaína, sendo que 19% faziam uso frequente desta droga.(13)

A Lei 11.343/2006 e o sistema socioeducativoUm dos desafios postos pela Lei 11.343/2006 é a ausência de uma

diferenciação objetiva (quantitativa) entre uso e tráfico de drogas. Sem dúvida que a simples adoção de critérios objetivos que pudessem diferenciar os arts. 28 e 33 da Lei de Drogas não sanaria todas as dificuldades advindas da própria seletividade do sistema de justiça – um adolescente com 70, 150 ou 500 gramas de maconha costumeiramente receberá diferentes tratamentos a depender de fatores tais como a cor de sua pele e o local de moradia.

Ao mesmo tempo, a lógica proibicionista criou a ideia do traficante de drogas como um ser perigoso que precisa ser combatido. A noção de

combate se aplica diretamente ao pequeno traficante, varejista de drogas; os “acionistas do nada”.(14)

Somada a esta lógica, apesar de haver lacunas na sistematização dos dados sobre os percentuais dos diferentes atos infracionais praticados pelos adolescentes no país, a partir da nova Lei houve um crescimento do número de internações relacionadas ao tráfico. No Brasil, entre 2002 e 2011 as internações de adolescentes relacionadas a este ato infracional passaram de 7,5% para 26,6%.(15) O aumento mais expressivo ocorreu no estado de São Paulo – números da Fundação CASA revelam que no ano da publicação da nova Lei de Drogas, 52,8% dos adolescentes cumpriam medida restritiva ou privativa de liberdade devido ao roubo qualificado e 14,4% devido ao tráfico de drogas.(16) Em 2014, 40,7% estavam cumprindo medida em decorrência do tráfico de drogas e 40,1% por roubo qualificado.(17) Ainda que tenha havido uma redução desses percentuais – em junho de 2016 os dados da Fundação CASA indicavam que 37,4% dos atos infracionais eram análogos ao tráfico de drogas e 44,5% ao roubo qualificado,(18) é fato que as internações continuam elevadas, mesmo com esforços para alterar esse quadro, como a publicação da Súmula 492 do STJ em 2012 que estipulou que: “o ato infracional análogo ao tráfico de drogas não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação ao adolescente”.

Passados 10 anos da Lei 11.343, é possível concluir que seus efeitos acabaram escapando aos objetivos inicialmente propostos de garantir a atenção social de usuários de drogas, permitindo que o abuso e a dependência de substâncias psicoativas pudessem ser reconhecidos como questões do campo da saúde e da assistência social. Não se nega a importância de o Brasil ter retirado o sistema carcerário para os usuários e dependentes, porém a tentativa de punir o tráfico de drogas de forma mais incisiva em combinação com o art. 28 acabou levando a uma punição indevida de usuários, prováveis dependentes e pequenos traficantes. É certo que não é possível atribuir toda responsabilidade da superpopulação do sistema socioeducativo à nova Lei de Drogas, sendo fundamental também direcionarmos nossa crítica à seletividade do sistema penal, a uma cultura punitiva e à política de drogas que ainda se sustenta a partir do paradigma proibicionista.

A questão dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa é muito mais complexa do que se permite alcançar. Somente uma visão sistêmica, humanizada e que deixe de lado as fracassadas estratégias coercitivas poderá garantir outros lugares e oportunidades a estes jovens. Devemos reconhecer que estes adolescentes necessitam de atenção, em alguns casos de tratamento e, no geral, de perspectivas concretas de inclusão social, sob a marca dos direitos humanos.

Notas(1) BouRdieu, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. 2.ª reimp. Campinas:

Papirus, 2011, p. 171(2) Waiselfisz J.J. Mapa da Violência 2014. Os Jovens do Brasil. São Paulo: Instituto

Sangari, 2014. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014.

(3) aRendT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

(4) adoRno, S.; pasinaTo, W. Violência e impunidade penal: da criminalidade detectada à criminalidade investigada. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, p. 51-84, 2010.

(5) infopen. Levantamento de Informações Penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 21 out. 2015.

(6) Conselho naCional de JusTiça (CNJ). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf>. Acesso em: 21 out. 2015.

(7) Bauman, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.(8) uniTed naTions offiCe on dRuGs and CRime (UNODC). Estimating Illicit

Financial Flows Resulting from Drug Trafficking and Other Transnational Organized Crimes: Research Report, Viena, 2011. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Studies/Illicit_financial_flows_2011_web.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.

(9) BiRman, J. Juventude e condição adolescente na contemporaneidade: uma leitura da sociedade brasileira de hoje. In: BoCayuva, H; nunes, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

Page 17: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

17

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

(10) felTRan, G.S. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana. Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – v. 53(2), 2010.

(11) feffeRmann, M. Os jovens inscritos no trafico de drogas: os trabalhadores ilegais e invisíveis/visíveis. In: BoCayuva, H; nunes, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. p. 67.

(12) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf>. Acesso em: 21 out. 2015.

(13) fundação Casa. Pesquisa com Internos 2006. Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.casa.sp.gov.br/files/pdf/PesquisaFebem/PesquisaInternos.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.

(14) d’elia filho, O. Z. . Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

(15) BRasil. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Levantamento nacional 2011. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2012.

(16) fundação Casa. Apresentação Fundação CASA Baixada Santista, 2007. Disponível em: <http://www.casa.sp.gov.br/files/Apresenta%C3%A7%C3%A3o%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Casa%20-%20Baixada%20Santista.pdf>. Acesso em: 3 jul. 2016.

(17) Estado de São Paulo. Secretaria de Segurança Pública. Plano Decenal de Atendimento Socioeducativo, 2014. . Disponível em: <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=consulta-publica-plano-decenal-de-atendimento-socioeducativo&d=3270>. Acesso em: 3 jul. 2016.

(18) fundação Casa. Boletim Estatístico Completo ref 17.06.16. Disponível em: <http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-estat%C3% ADstico&d=79#>. Acesso em: 3 jul. 2016.

Heloisa de Souza DantasProfessora da Fundação Escola de Sociologia e

Política de São Paulo (FESP).Mestre em Psicologia Comunitária pela

Michigan State University.Mestre em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP.

Camila Magalhães SilveiraProfessora Colaboradora do Instituto de

Psiquiatria da FMUSP.Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de

Estudos de Álcool e Drogas (GREA) e do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do IPq-HC-FMUSP.

Doutora em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP.

Marília Rovaron Mestranda em Ciências Sociais pela UNESP.

Socióloga.

Histórias miúdas da criminalização das drogas e das vidas: sobre alguns beneficiários do De Braços Abertos(1)

Taniele Rui, Maurício Fiore e Luís Fernando TófoliAntônio Carlos tem 43 anos. Nascido e criado no interior de São

Paulo, filho de um policial e de uma cozinheira, começou a consumir cocaína aos 15 anos, num engajamento que se desdobrou na prática de furtos e roubos e na construção de uma carreira criminal (conciliada com os trabalhos de frentista e segurança no mercado de trabalho formal) que permitiu a ele ser gerente de biqueira por 10 anos, até ser preso e ficar na cadeia de 2008 a 2010. Após desavenças familiares em Sorocaba-SP, chegou à região estigmatizada como cracolândia, no centro de São Paulo, em 2014, e logo tomou conhecimento do programa De Braços Abertos (DBA),(2) ao qual se vinculou.

Natasha, que nasceu Pedro em Fortaleza, no Ceará, foi expulsa de casa aos 14 anos pelo pai, que não admitiu conviver com um “filho traveco”. Desde então, dificuldades financeiras, preconceitos de gênero, violência sexual e ingestão de hormônios marcam sua trajetória por casas de prostituição em Cruzeiro do Sul, cidade do interior de São Paulo, e por cidades italianas. Da Itália para o Centro de São Paulo, conheceu, aos 22 anos, seu parceiro amoroso mais duradouro, quem lhe apresentou o crack. Prostituindo-se, consumindo e vendendo crack em troca de pequenas porções, Natasha foi presa acusada de tráfico de drogas e transitou por sete Centros de Detenção Provisória (CDPs) diferentes entre 2007 e 2009. Em 2013, habitando uma barraca montada em frente à Sala São Paulo, foi incluída no DBA.

Cristina, de 34 anos, é carioca, filha de mãe poetisa e pai carnavalesco. Usa maconha e cocaína desde a adolescência, num ritmo que ela considera descontrolado – passava vários dias na rua sem comer, sem dormir, sem tomar banho, devendo para traficantes. O primeiro marido morreu de câncer quando o filho tinha apenas cinco anos. Aumentando paulatinamente o consumo de crack, passou

a vender a droga para poder comprá-la. Terminou presa e sentenciada por tráfico de drogas, o que redundou na perda da guarda do filho. O segundo filho, hoje com seis anos, é fruto de uma inseminação artificial do segundo casamento de Cristina, desta vez com Mara. Em 2013, Cristina soube que o filho mais velho estava na cracolândia e foi encontrá-lo. Cadastrada numa das primeiras levas do DBA, ela viveu num dos hotéis do programa com o mais novo e lhe dava tudo o que não conseguiu ofertar para o primeiro: escola, alimentação, presentes e presença. Em maio de 2015, aos 32 anos, ela foi novamente presa, acusada de roubo no entorno da Luz; assim, não conseguiu sustentar a convivência com o caçula, que hoje está com Mara.

Vanessa, filha de uma empregada doméstica e de um pai ausente, tem 40 anos e saúde frágil. Taquicardia frequente, tosse, falta de ar, dores de cabeça, gastrite e memória muito comprometida. Um terço de sua vida viveu cercada por muros, entre as penitenciárias paulistas e os manicômios judiciários, batizados, hoje, como hospitais de custódia. “Perdi minha vida todinha. Não é justo o que fizeram comigo”, ela nos disse. Fumando crack com o primeiro namorado desde os 15 anos, passou a viver pelos arredores da Estação da Luz quando ele foi morto pela Polícia Militar. Presa, acusada de tráfico de drogas, foi diagnosticada genericamente pela classificação internacional de doenças, a CID-10: F70 (retardo mental leve), F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – síndrome de dependência) e F20.8 (outras esquizofrenias). Nos hospitais-presídios, trocou o crack por um coquetel de medicamentos: diazepam, fenergan, tegretol, neuroleptil.(3) Sua última internação terminou em maio de 2014, quando retornou para a cracolândia e soube da existência do DBA. Beneficiária do programa, ela cumpre tratamento em um Centro

Page 18: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

18

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

de Atenção Psicossocial (CAPS), acompanhada pelo Fórum Criminal, e não exerce atividade remunerada em decorrência das restrições de saúde.

Luciene, de batismo, Paola, por escolha, nasceu no Rio de Janeiro, mas foi registrada no Rio Grande do Norte, em 1972. Abusada sexualmente pelo avô, foi expulsa de casa ao contar aos pais o que ocorria. Aos dez anos, passou a viver de favor com conhecidos até completar 18 anos, quando foi para o Rio de Janeiro, onde se iniciou na prostituição na Praça Mauá. Foi engravidando dos clientes e teve oito filhos. Casou-se com um desses clientes e mudou para São Paulo. Na metrópole, além dos programas, começou a roubar lojas com uma amiga e a revender drogas. Presa pela primeira vez na região da Luz em 1999, foi condenada por tráfico. A partir daí, cinco prisões. Criada pela rua, pelos puteiros e pela cadeia, afirma que nunca abandonou os filhos: “foi o destino que separou a gente”, ela disse. Depois da última prisão, Paola retornou à Luz. Ouviu sobre a existência do DBA e foi incluída no programa, mesmo sem ser consumidora frequente de crack.

Wesley nasceu no interior de Minas Gerais, em 1975, de onde saiu aos 14 anos para ir trabalhar no corte de cana em Ribeirão Preto e morar no alojamento da empreiteira. Passada a safra, aprendeu nas ruas a se tornar trecheiro, usando as passagens doadas pelos albergues para pingar de cidade em cidade. Em Valinhos, conheceu a primeira esposa. Em Pouso Alegre, se aprimorou no estelionato por cinco anos, até ser preso. Depois de sair da prisão, aos 30 anos, começou a consumir crack e, como ele diz, nunca mais se reergueu. Chegou a São Paulo e foi “acolhido” pela cracolândia. Ali conheceu gente, passou as festas de Natal, recebeu ajuda. Num dia de cadastro, entrou na fila, deu o nome e em troca recebeu um kit de higiene e o endereço do seu quarto de hotel.

******Esses são seis resumos minúsculos de histórias de vida contadas

por pessoas que encontramos em 2015, durante a fase qualitativa da primeira pesquisa sistemática sobre o Programa De Braços Abertos. Beneficiárias do programa, essas pessoas experimentavam a vida em hotéis alugados pela Prefeitura na região estigmatizada como cracolândia. Embora os fatos sejam reais, suas identidades foram preservadas por nomes fictícios.

Todas essas trajetórias foram atravessadas pelo marco legal da criminalização do comércio e do consumo de drogas, acentuando, de diferentes modos, processos objetivos e subjetivos de ruptura pessoal e familiar, todos eles caracterizados por inserção residual no mercado de trabalho formal. A relação direta com a prisão não foi encontrada peculiarmente nas trajetórias de pessoas escolhidas para entrevistas em profundidade. O levantamento quantitativo, com amostra estatisticamente significante, apontou que 68% dos beneficiários do DBA já passaram pela prisão ao menos uma vez (uma boa parte já foi presa diversas vezes). E cerca de um quarto deles sofreu as primeiras medidas judiciais de restrição de liberdade já na adolescência, tendo sido internado, então, no âmbito do sistema socioeducativo.

São, portanto, seis histórias que repõem muito brevemente os imbricamentos complexos entre consumo e comércio de drogas, atividades lícitas e ilícitas, circulação pela rua, por bairros e prisões, e que constituem um pequeníssimo exemplo da experiência recente de parcela importante dos pobres urbanos que vivem em grandes cidades brasileiras. Narrá-las implica trazer à tona tipos densos desses arranjos, que desafiam o horizonte normativo e classificatório da legislação sobre drogas em vigor, bem como das políticas públicas existentes.

A face minúscula e íntima do que se tornou a política de drogas brasileira na sua ponta mais cruel aí se verifica: trajetórias marcadas pela experiência radical da prostituição, da “errância”, do crime, da distância e até da perda dos filhos, mesmo do diagnóstico do transtorno mental, configurando vidas criminais e criminalizáveis do começo ao fim.

Ao ser articulado ao arbítrio da legislação atual, o exaustivamente observado trânsito fluído entre o uso e o tráfico de drogas praticado na experiência concreta das pessoas (como se vê, com variados desdobramentos particulares) coloca desafios a propostas de atenção como o DBA, que partem dessa divisão para estruturar seu público-alvo. Mais que tudo, deixa explícito um dos maiores paradoxos das políticas sobre drogas, cuja matriz é a Lei 11.343, que esse ano completa uma década: um tratamento drasticamente diverso, com o aumento da oferta de cuidado para aqueles considerados usuários de drogas de forma concomitante à mão pesada do sistema penal para os que são considerados traficantes. Se é verdade que, nos casos dos beneficiários do DBA que investigamos, o tráfico não é o único motivo de encarceramento – roubo e furto também se destacam –, a relação entre as substâncias ilícitas e o chamado mundo do crime parece ser um par socialmente indelével em determinadas experiências e, por isso mesmo, precisa ser seriamente repensada.

Há algo de óbvio nisso, na medida em que a própria ilicitude das substâncias faz criminosos os seus consumidores. O olhar um pouco mais aproximado para o universo de beneficiários do DBA, ou da imensa maioria dos usuários de crack que residem ou trafegam pela região da Luz, será capaz de perceber como são borradas as fronteiras entre usar, dar, compartilhar e vender e como a etiqueta do crime é capaz de criar uma rede de sociabilidade instável, vulnerável e, muitas vezes, violenta – inclusive a esses próprios sujeitos. Completamente distante, portanto, de qualquer coisa que se pareça com promoção da saúde pública e com o respeito aos direitos humanos, que são os bens jurídicos que a atual legislação, a princípio, busca tutelar.

Notas(1) Este breve texto traz alguns dos dados levantados no âmbito da pesquisa de

avaliação do Programa De Braços Abertos, realizada pela Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), sob responsabilidade dos autores, e financiada pela Open Society Foundations. Agradecemos aos pesquisadores Fabio Mallart e Mariana Martinez, fundamentais para a coleta das narrativas aqui apresentadas. O relatório completo está disponível em: <http://pbpd.org.br/wordpress/?p=4003>.

(2) O DBA é um programa intersetorial implementado pela Prefeitura de São Paulo desde janeiro de 2014 e que oferece residência em hotéis, trabalho remunerado, alimentação e cuidados em saúde para moradores da região da Luz, principalmente pessoas que fazem uso problemático de crack.

(3) Embora essas drogas sejam muito diferentes entre si – há antidepressivos, antialérgicos e antipsicóticos –, todas são substâncias psicoativas potentes que fazem parte do arsenal receitado no sistema prisional brasileiro. É curioso notar que Vanessa cita, para algumas drogas, o nome comercial (Tegretol e Fenergan, por exemplo) e, para outras, a denominação genérica da substância, como no caso do diazepam, demonstrando intimidade com esse universo.

Taniele RuiProfessora do Departamento de Antropologia da Unicamp.

Antropóloga.

Maurício FioreCoordenador científico da Plataforma Brasileira de

Política de Drogas. Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Antropólogo.

Luís Fernando TófoliProfessor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI).

Médico psiquiatra.

Page 19: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

19

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

O populismo manicomial na política de drogasHaroldo Caetano

A Europa do século XVII criou grandes casas de internamento, fruto do desejo de ajudar, da vontade de reprimir e da preocupação burguesa em colocar ordem no mundo da miséria. Michel Foucault relata que Paris chegou a internar um em cada cem de seus habitantes apenas seis anos depois da fundação do seu hospital geral. Embora não fizesse muito sentido em se destinar tais espaços a pessoas em situações tão diferentes, como os miseráveis, delinquentes e insanos, será lá, nas celas das “casas de força” e nos hospitais gerais que Pinel e a psiquiatria do século XIX encontrarão os loucos, no seu local natural (fouCaulT, 2014).

Consolidava-se o manicômio, palavra de origem grega – mania (mania, loucura) + koméō (cuidar) – que designa o hospital de alienados, o lugar do louco.

Inauguramos o século XXI e o manicômio ainda existe. É certo que o Movimento Antimanicomial mudou sensivelmente o panorama e nas últimas décadas houve a gradativa desocupação dos hospícios, processo que assume feição de decisão política no Brasil com a edição da Lei 10.216/2001, a Lei Antimanicomial.

A Lei 10.216 instituiu os direitos da pessoa com transtorno mental e, ao vedar expressamente a internação asilar, colocou o manicômio na ilegalidade. Desde então, a internação passou a ser medida de caráter excepcional, de curta duração, a ser utilizada somente quando insuficientes outros recursos extra-hospitalares.

Entretanto, como talvez prenunciasse aquela versatilidade de lugar dos indesejáveis do século XVII, o manicômio resiste na sua feição mais cruel. O manicômio judiciário ainda é o destino do louco infrator na maioria dos estados brasileiros. É como se a Lei 10.216 ali não valesse, pois, segundo o censo de 2011, foram encontradas 3.989 pessoas em 26 manicômios judiciários espalhados pelo país (diniz, 2013). Convém aqui ressaltar, por necessário, que há importantes experiências antimanicomiais nesse território, a exemplo do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), que aboliu definitivamente a internação manicomial em Goiás (CaeTano, 2010).

Ao lado do manicômio judiciário, temos também outras figuras muito fortes na resistência manicomial. São as chamadas comunidades terapêuticas, instituições relativamente recentes no Brasil que se propõem principalmente a oferecer tratamento para dependentes químicos.

As comunidades terapêuticas não são unidades de saúde e sequer caberiam num conceito fechado em face da sua heterogeneidade interna. Afinal, “observam-se clínicas, centros de tratamento, comunidades religiosas e laicas, casas terapêuticas, comunidades terapêuticas acolhedoras – filantrópicas e privadas – e outras nomeações convergindo para uma identidade institucional de comunidade terapêutica” (lima, 2016). De cunho predominantemente religioso e confessional, certamente têm sua importância para quem busca amparo espiritual para lidar com os problemas derivados do consumo nocivo de drogas. Todavia, diante das práticas manicomiais delas inafastáveis e da falta de base científica que lhes dê sustentação, as comunidades terapêuticas são palco de frequentes denúncias de maus-tratos, cárcere privado e tortura.

É o manicômio que se reinventa. Resultado do populismo manicomial que toma conta dos discursos feitos em ambiente de sensacionalismo midiático e diante de uma percepção pública superficial, estereotipada e preconceituosa acerca do consumo de substâncias psicoativas, especialmente no caso de drogas ilícitas. Como propostas autoritárias encontram eco fácil numa sociedade pautada pelos discursos do medo e do ódio, a internação forçada de usuários de drogas ganha relevância nos debates, nas campanhas eleitorais, com reflexos nefastos nas políticas públicas. Caminho aberto para um estranho retorno ao século XVII.

Reflexo desse discurso populista está na proliferação das comunidades terapêuticas que, bem organizadas e com força política, foram implantadas a fórceps na rede de atenção psicossocial (Raps) pela Portaria 3.088/2011 do Ministério da Saúde para, assim, terem acesso ao orçamento público, objetivo viabilizado pela Portaria MS-131/2012. À

época, o psiquiatra Edmar Oliveira denunciou o que ele compreendia como uma “autorização ministerial para a cronificação” (oliveiRa, 2011).

De fato, ao admitir na RAPS entidades cujas práticas manicomiais fazem parte de suas rotinas, notadamente em função das internações de longo prazo, o Ministério da Saúde acabou por afrontar dispositivo expresso da Lei 10.216, que estabelece a excepcionalidade da internação. Para tanto, fez uso de uma engenharia criativa nas portarias, reconhecendo às comunidades terapêuticas a natureza de “serviço de atenção em regime residencial”, num claro eufemismo para a internação.

Mas a criatividade vai além nas estratégias para camuflar a lógica manicomial. É o que se percebe no caso do goiano Credeq, outro significativo exemplo que expõe o populismo manicomial como resposta para a problemática das drogas. Se, por um lado, Goiás conta com uma política avançada no atendimento ao louco infrator, o Paili, por outro lado e paradoxalmente, é também Goiás que acaba de inaugurar a primeira de dez unidades planejadas do Centro de Referência e Excelência em Dependência Química (Credeq), em flagrante rota de colisão com a Reforma Psiquiátrica.

O leitor mais apressado talvez se deixe seduzir pelo nome pomposo, mas com o olhar atento irá perceber que, apesar da denominação que promete muito, o Credeq não passa de uma nova modalidade de comunidade terapêutica. Em sua página oficial (credeq-go.org.br), ele é apresentado como “serviço de referência na atenção de usuários gravemente comprometidos pelo uso de drogas (...) para os quais os recursos disponíveis nas redes municipais não tenham apresentado a devida resolutividade”. Entretanto, está arquitetonicamente projetado para internações de longo prazo (e são 96 leitos), embora a palavra internação dê ali lugar à expressão “leitos de acolhimento em modelo residencial”, o que evidencia o sofisma empregado na definição dessa que se pretende uma política de saúde mental. Convém esclarecer que a primeira unidade Credeq já inaugurada é administrada pela Comunidade Luz da Vida, Organização Social católica com experiência exatamente na gestão de comunidades terapêuticas.

Diante de uma realidade que é nacional e do crescente populismo manicomial, não é difícil antever o comprometimento do orçamento público com as comunidades terapêuticas. Além das previsíveis consequências advindas da lógica manicomial, a destinação de recursos do erário para essas instituições asilares fatalmente dificultará a estruturação e qualificação de uma rede psicossocial orientada em conformidade com a Lei 10.216.

Questões complexas usualmente pedem soluções complexas. Para a atenção em saúde mental deve-se desenvolver a RAPS de forma inseparável da Lei 10.216. Entretanto, o populismo manicomial prefere o atalho fácil da segregação de quem faz uso abusivo de drogas, o que não traz solução e acaba produzindo efeitos colaterais severos, mediante práticas que já não poderiam ser nem mesmo cogitadas em face do princípio constitucional da dignidade humana e, também, da Lei Antimanicomial, que não à toa possui tal denominação.

O populismo manicomial implica práticas autoritárias, sem lastro no conhecimento científico produzido no campo da saúde mental. Soluções como as comunidades terapêuticas no modelo asilar/religioso/confessional, que de terapêuticas nada têm, jamais poderiam ser financiadas pelo Poder Público.

Por outro lado, da mesma forma que não é capaz de entregar o que promete, o populismo manicomial acaba reforçando o proibicionismo e a política de guerra às drogas, opondo sérios obstáculos a uma discussão mais aprofundada acerca do consumo de substâncias psicoativas e da dependência química.

A atenção em saúde mental deve passar pelo crivo da ordem normativa, com destaque para a Lei Antimanicomial, que não abre brechas para a reabertura do manicômio, mesmo que travestido de lugar

Page 20: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

20

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

de acolhimento residencial do usuário de drogas.Convém também lembrar que iniciativas do Poder Público que não

se sustentem na legalidade implicam improbidade administrativa (Lei 8.429/1992, art. 11). Logo, se o investimento ou o repasse de recursos públicos para a atenção em saúde mental não tiverem fundamento nos dispositivos e princípios da Lei 10.216, os responsáveis por empenhos dessa natureza devem ser chamados à responsabilidade administrativa e criminal, tanto no âmbito federal quanto no dos estados e municípios.

O populismo manicomial talvez até funcione como discurso eleitoreiro, mas não é o bastante para legitimar a definição de políticas públicas. Diferentemente dos relatos que vêm do século XVII, em que o manicômio funcionava sem qualquer regulamento que lhe impusesse limites, as coisas já não são mais assim. O século é outro; o Estado é outro, Democrático e de Direito. E qualquer política pública voltada à saúde mental da população deve estar em estrita conformidade com a Lei Antimanicomial.

Referências bibliográficasCaeTano, Haroldo. Reforma psiquiátrica nas medidas de segurança: a experiência

goiana do Paili. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo: FSP/USP, 2010.

diniz, Debora (coord.). A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: UnB, 2013.

fouCaulT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2014.lima, Rita de Cássia Cavalcante. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil:

um encontro possível? In: vieiRa, Luciana L. F. et alii (org.). A problemática das drogas: contextos e dispositivos de enfrentamento. Recife: Editora UFPE, 2016.

oliveiRa, Edmar. Apontamentos sobre uma portaria de Natal. Natal, 2011. Disponível em: <https://saudementalrn.wordpress.com>. Acesso em: 7 jun. 2016.

Haroldo Caetano Mestre em Direito (UFG) e doutorando em Psicologia (UFF).

Promotor de justiça do Estado de Goiás.

Não compre, plante? Tipificação penal do cultivo de Cannabis pelo Tribunal de Justiça de São Paulo(1)

Felipe Figueiredo Gonçalves da SilvaA Lei 11.343, de 23.08.2006 (Lei de Drogas) instituiu o Sistema

Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e criou as diretrizes para a política de drogas brasileira. Entre o conjunto de medidas trazidas pela lei em seu dispositivo criminal está a criação de um tipo penal específico de cultivo de plantas para produção de drogas para consumo pessoal (art. 28, § 1.º). O plantio para consumo recebeu o mesmo tratamento jurídico-penal que o porte para consumo (art. 28), sendo previstas sanções alternativas à privação de liberdade.

O § 2.º do art. 28 da Lei 11.343/2006 estabelece que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Os elementos referidos no dispositivo são os mesmos constantes do art. 37 da Lei 6.368/1976, acrescidos da expressão “circunstâncias pessoais e sociais do agente”. Assim, a dificuldade de aplicação dos critérios gerais e abstratos da Lei 6.368/1976, que há muito tempo já era tematizada na literatura especializada,(2) persistiu na redação da nova Lei.

Da leitura dos §§ 1.º e 2.º do art. 28 da Lei de Drogas decorre uma inquietação irresistível: afinal de contas, diante de uma situação de cultivo de canábis,(3) como o juiz decide se o plantio é para consumo ou para fins de tráfico? Embora a lei apresente os parâmetros gerais e abstratos para tanto, a inquietação diz respeito à forma pela qual estes elementos são articulados e aplicados em casos concretos.

Esta inquietação deu origem a uma pesquisa empírica, que investigou como foi fundamentada a tipificação penal de situações de cultivo de canábis em acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mais especificamente, a pesquisa foi construída a partir de uma pergunta central: quais os elementos e de que forma eles foram utilizados nas decisões analisadas para tipificação do plantio para consumo pessoal (art. 28, § 1.º, da Lei de Drogas) e do plantio destinado a fornecer drogas a terceiros (art. 33, § 1.º, II)?

Para enfrentar esta problemática de pesquisa foi utilizada a ferramenta de busca de acórdãos disponibilizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foram analisados 135 acórdãos deste Tribunal,

proferidos entre 1998 e 2014, que enfrentam diretamente a controvérsia relativa à tipificação penal de situações de cultivo de canábis.

A informação mais difícil de identificar com precisão nos acórdãos foi a quantidade de drogas(4) apreendidas. Poucos acórdãos especificaram o peso ou as dimensões das plantas. O único denominador comum possível de identificar entre as decisões é o número de plantas apreendidas pelas autoridades policias.

Este denominador, contudo, traz consigo inúmeros problemas. Isso porque plantas de canábis podem possuir dimensões completamente diferentes, de modo que um cultivo com dois pés a céu aberto pode ser infinitamente maior e mais produtivo do que um com duas pequenas mudas cultivadas em um armário.(5) Não é possível determinar com precisão o tamanho de um cultivo e a sua efetiva capacidade de produção de maconha pronta para consumo a partir do número de plantas apreendidas.(6) Apesar disso, na maioria dos casos a noção de quantidade de drogas foi apresentada pelo número de plantas apreendidas.

A pesquisa revelou que 63,2% dos acórdãos julgaram casos em que foram apreendidas até cinco plantas de canábis. Além disso, 35,6% dos acórdãos julgaram casos envolvendo apreensão de apenas uma planta e somente 19,6% dos acórdãos julgaram casos envolvendo mais de dez plantas.

Prevaleceram nos acórdãos analisados processos em que o acervo probatório é primordialmente testemunhal. A principal prova testemunhal utilizada na fundamentação da grande maioria das decisões foi o depoimento judicial dos policiais que efetuaram as ocorrências, seguida do depoimento de terceiros.

A leitura das decisões permitiu identificar que quase todas as denúncias nos processos de origem tipificaram as situações de cultivo como “tráfico de drogas” (arts. 12, § 1º, da Lei 6.368/1976 e 33, § 1.º, II, da Lei 11.343/2006). Identificou-se também que as sentenças de primeira instância nos casos anteriores e posteriores à entrada em vigor da Lei de Drogas tipificaram as situações de plantio em proporções consideravelmente distintas: enquanto antes da Lei de Drogas a maior parte das sentenças (70%) tipificou as situações de plantio como “tráfico”, após outubro de 2006 apenas 27,9% sentenças tipificou situações de cultivo para tráfico.

Page 21: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

21

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661 ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

A pesquisa também apontou para algo contra intuitivo na forma de atuação do TJSP. Em primeiro lugar, a entrada em vigor da Lei de Drogas não gerou um aumento no número de casos tipificados pelo Tribunal como plantio para consumo. Isso em alguma medida contraria as expectativas depositadas na Lei 11.343/2006, sobretudo no que diz respeito aos aspectos positivos da tipificação específica do plantio para consumo no art. 28, § 1.º.(7)

Além disso, a alteração no sentido das reformas de decisões operadas pelo TJSP após a promulgação da Lei de Drogas também contraria as expectativas criadas. Com a tipificação específica do plantio para consumo no art. 28, § 1.º era bastante intuitivo esperar que o Tribunal pudesse reformar mais condenações em primeira instância por tráfico para requalificar situações de plantio. No entanto, o que se percebeu após a vigência da Lei de Drogas foi a tendência contrária: predominaram acórdãos que reformaram sentenças de primeiro grau para determinar tipificação penal mais gravosa ao acusado, aumentando o número de condenações por tráfico e diminuindo o de condenações por plantio para consumo.

Mas de que forma essas informações nos ajudam a mitigar as inquietações que mencionamos?

No que diz respeito à interpretação da noção de “pequena quantidade”, referida no § 1.º do art. 28 da Lei de Drogas na descrição do elemento objetivo do tipo penal do cultivo para consumo, a pesquisa indicou duas respostas. A primeira delas é a de que não foi possível identificar nenhum tipo de padrão que possa orientar a forma de aplicação desta expressão. Ou seja, não foi possível identificar nem que tipo de quantidade se está referindo – de plantas ou de drogas – nem qual é considerada “pequena quantidade”.

Por outro lado, a pesquisa indicou que o número de plantas apreendidas é o principal fator que determina a tipificação penal. Embora tenham sido muitas as divergências na determinação do sentido concreto da expressão “pequena quantidade”, a pesquisa indicou que as situações de cultivo com mais de cinco plantas de canábis têm mais chances de serem tipificadas como tráfico de drogas.

Com relação às provas mencionadas na fundamentação dos acórdãos, a pesquisa indicou a prevalência da utilização da prova testemunhal, com destaque ao importante papel desempenhado pelo depoimento dos policiais responsáveis pelas ocorrências. Foi possível identificar que a narrativa construída a partir dos depoimentos dos policiais influenciou a tipificação penal, de modo que a percepção dos agentes sobre a finalidade do cultivo permeou a fundamentação de boa parte dos acórdãos.

Sobre os elementos do § 2.º do art. 28 da Lei de Drogas a pesquisa indicou que o protagonismo da quantidade na determinação da finalidade das situações de cultivo foi complementado principalmente pela referência às “circunstâncias da prisão”. Grande parte das decisões referiu-se às circunstâncias da prisão na fundamentação da tipificação penal, quase sempre reconstruindo estas circunstâncias a partir do testemunho dos policiais.

Por fim, a pesquisa também indicou que o tipo de material apreendido junto com as plantas e drogas foi considerado na determinação da finalidade do cultivo. Vários acórdãos se referiram à existência de “materiais de preparo para venda” como indicadores da finalidade de tráfico, em complemento aos elementos previstos no § 2.º do art. 28 da Lei de Drogas. No entanto, muitas das inferências feitas a partir de alguns desses materiais apreendidos assumem premissas que são inconsistentes com o repertório de conhecimento sobre aspectos concretos do cultivo de canábis.

Estas considerações podem ser agrupadas para amenizar as angústias de nossas inquietações. Entre os elementos utilizados na tipificação das situações de cultivo de canábis, o número de plantas parece ser o fator que mais impacta a configuração da “pequena quantidade” referida no § 1.º do art. 28 da Lei de Drogas. O número de plantas também se apresentou como o primeiro elemento considerado na determinação da finalidade do plantio (§ 2.º do art. 28 da Lei de Drogas), tendo sido complementado principalmente pelas circunstâncias da prisão tal como

descritas nos testemunhos dos policiais que efetuaram as ocorrências e pelos materiais apreendidos com as plantas.

Talvez, no entanto, a maior contribuição desta pesquisa não esteja na identificação dos elementos que foram utilizados nas decisões para tipificação das situações de cultivo, mas sim na identificação dos elementos que não apareceram em muitos acórdãos. Em especial, destaca-se a ausência de referências a padrões de consumo e capacidade produtiva do cultivo, que são dois aspectos básicos sobre a realidade do plantio de maconha.(8)

A pesquisa evidenciou a urgente necessidade de diálogo entre o direito e outros campos do saber, para que possamos produzir decisões juridicamente mais consistentes. O cultivo de canábis tem sido estudado pelos mais diversos campos do conhecimento e há muitas informações que podem ser incorporadas na aplicação da lei. Boa parte das questões mais problemáticas sobre a tipificação do cultivo não encontram respostas na literatura penal, ou em qualquer doutrina jurídica. Elas demandam a utilização de informações que têm sido produzidas em outros foros.

Talvez os efeitos benéficos aos cultivadores de canábis que eram esperados com a Lei de Drogas tenham sido condicionados ao enfrentamento de problemas dogmáticos antigos, que permearam todo o período de vigência da Lei 6.368/1976. Dito de outra forma, a realização plena dos aspectos positivos da tipificação do plantio para consumo depende da construção de estratégias dogmáticas para a interpretação dos critérios que definem os conceitos de pequena quantidade e consumo pessoal. Os velhos dilemas da prova da intencionalidade nos delitos de posse/plantio(9) parecem persistir e ofuscar a realização dos aspectos positivos da Lei de Drogas aos growers.

Notas(1) Este artigo foi produzido a partir da dissertação de mestrado do autor, defendida

na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP). É possível acessar a íntegra da dissertação pelo link: <http://hdl.handle.net/10438/16519>.

(2) Cf., neste sentido: Barbosa, A. R. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói: Ed. da UFF, 1998; Zaluar, Alba. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

(3) Neste artigo referimo-nos por canábis às três principais espécies de vegetais pertencentes à Família biológica das Canabiáceas e do Gênero Cannabis, que incluem a Cannabis Sativa-Sativa, Cannabis Sativa-Indica e Cannabis Ruderalis. Embora a grafia canábis não seja comum na língua portuguesa, ela é aceita pelos padrões formais de linguagem (cf. http://www.dicio.com.br/canabis/). Optamos por utilizá-la para expressamente referirmo-nos ao Gênero Cannabis, suja fonética de pronúncia aproxima-se da forma grafada com acento em canábis.

(4) Isso porque tanto o § 1.º quanto o § 2.º do art. 28 da Lei de Drogas se referem à quantidade de drogas, e não à quantidade de plantas.

(5) Nesse sentido, cf. Green, Greg. The Cannabis Grow Bible. 2nd ed. San Francisco: Green Candy Press, 2011, p. 13.

(6) A esse respeito, cf. Schultes, Richard Evans. Random thoughts and queries on the botany of Cannabis. In: Joyce, C. R. B.; Curry, S. H. The Botany and Chemistry of Cannabis. London, 1970. p. 24-26; Thomas, Mel. Cannabis Cultivation: A Complete Grower’s Guide. San Francisco: Green Candy Press, 2012. p. 4.

(7) Sobre as expectativas positivas depositadas na Lei de Drogas, cf. Karam, Maria Lúcia. Drogas: dos perigos da proibição à necessidade da legalização. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63, p. 10 e ss. – edição especial, 2013. p. 10-11.

(8) Sobre as noções de padrão de consumo e capacidade produtiva, cf. Bone, C.; Waldron, S. J. New trends in illicit cannabis cultivation in the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland. Bulletin on Narcotics, v. 49, n. 1/2, 2007. p. 124-128;

(9) Sobre esta questão, cf. Schultes, Richard Evans. Random thoughts and queries on the botany of Cannabis. In: Joyce, C. R. B.; Curry, S. H. The Botany and Chemistry of Cannabis. London, 1970. p. 107-120; Binder, Guyora. The Rhetoric of Motive and Intent. Buffalo Criminal Law Review, v. 6, No. 1 (April 2002). p. 1-96.

Felipe Figueiredo Gonçalves da SilvaMestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito

de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP). Advogado Criminal.

Page 22: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

22

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

Entre a criminalidade e a constitucionalidade: o cultivo e produção de cannabis para fins terapêuticosEmílio Nabas Figueiredo e Lorena Otero

O potencial terapêutico da cannabis(1) é investigado pela Ciência e utilizado em vários países no tratamento de diversas doenças, como câncer, depressão, ansiedade, esclerose múltipla, fibromialgia, alzheimer, bem como epilepsias e dores neuropáticas, proporcionando aos pacientes a manutenção da saúde e incremento da qualidade de vida.

No Brasil, a planta é proibida pela Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) e seu uso medicinal passou a ser debatido, efetivamente, no ano de 2014, devido à notoriedade do caso de uma encomenda internacional contendo óleo de cannabis rico em canabidiol (CBD), apreendida pela alfândega. A encomenda destinava-se a uma mulher que importava o óleo ilegalmente há algum tempo, pois era o único produto capaz de controlar as crises epiléticas que sua filha sofria, crises decorrentes de uma síndrome rara, conhecida como CDKL5.(2) A menina, contando cinco anos à época, foi a primeira paciente no Brasil a fazer uso legal de cannabis, após obter autorização judicial para importar o óleo, o qual nos Estados Unidos é comercializado como suplemento alimentar, sem qualquer restrição de uso.(3)

Diante da história da criança e da decisão judicial, insurgiu um movimento em prol da legalização da cannabis medicinal no país. Muitos pacientes assumiram o uso terapêutico da planta, constituíram associações(4) e passaram a protestar nas passeatas da “Marcha da Maconha” pela mudança das leis e políticas públicas sobre drogas, pela regulação do cultivo, circulação e consumo do vegetal e seus derivados.

Com a intensificação desse movimento, o Poder Judiciário foi novamente provocado e a Justiça Federal da Paraíba, em sede de uma Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal, determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorizasse a importação de extrato de cannabis rico em CBD para o uso de 16 pacientes de doenças neurológicas.(5) Igualmente, a Justiça Federal de Minas Gerais determinou ao órgão que autorizasse a importação do medicamento Sativex, cuja composição possui como principal princípio ativo o tetrahidrocanabinol (THC).(6)

Essas decisões foram fundamentais para impulsionar a regulamentação do uso medicinal da cannabis, promovida pela Anvisa, com a publicação das Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) 3(7) e 17,(8) ambas de 2015, pelas quais, respectivamente, o CBD passou a ser classificado como substância controlada(9) e definiram-se os critérios e procedimentos para a importação em caráter de excepcionalidade de produto à base de CBD em associação com outros canabinóides por pessoa física, ou associações de pacientes, mediante prescrição médica de produto com algumas restrições, como ser composto mais por CBD do que THC.

Houve ainda, mais uma importante iniciativa do Ministério Público Federal, que ajuizou Ação Civil Pública com escopo de excluir o THC da lista de substâncias proscritas, permitir seu uso, posse, plantio, cultura, colheita, exploração, manipulação, fabricação, distribuição, comercialização, importação, exportação e prescrição, exclusivamente para fins médicos e científicos, bem como permitir a importação de quaisquer produtos ou medicamentos à base de cannabis, inclusive de suas sementes, se destinadas ao cultivo para uso medicinal.(10)

O Juízo Federal de Brasília, ao decidir sobre a antecipação de tutela na ação supramencionada, deferiu em parte os pedidos, primeiro para que fosse permitida a importação, exclusivamente para fins medicinais, de medicamentos e produtos que contenham THC e CBD, e, segundo, que fosse permitida ainda a prescrição médica de produtos que possuam

THC e CBD, bem como a pesquisa científica de qualquer substância da cannabis.(11) Também foi determinado que o THC permanecesse na lista F2 de substâncias proscritas, contudo, com a inclusão de adendo prevendo a permissão exclusivamente ao uso medicinal registrado do THC.(12)

Depois de intimada para cumprir a decisão, a ANVISA publicou a RDC 66/2016,(13) que excetua proibição, com a inclusão dos adendos na Lista E e outro na Lista F2 da Portaria 344/1998, prevendo a “prescrição de medicamentos registrados na Anvisa que contenham em sua composição a planta Cannabis sp., suas partes ou substâncias obtidas a partir dela, incluindo o THC” e para a “prescrição de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), a serem importados em caráter de excepcionalidade por pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica”.

Atualmente, de forma precisa e sucinta, a situação da cannabis medicinal é a seguinte: a) nos termos da RDC 66/2016, a prescrição de qualquer componente da planta é legal, porém antiética, nos termos dos arts. 1.º e 4.º da Resolução 2.114/2014(14) do Conselho Federal de Medicina (CFM), podendo o médico sofrer penalidade ético-disciplinar, motivo pelo qual, ainda que saiba da necessidade do enfermo, não está autorizado a prescrever qualquer medicamento ou produto senão aqueles à base de CBD, exclusivamente para o tratamento de epilepsias na fase de infância e adolescência; b) o uso de medicamentos e produtos registrados na Anvisa é permitido, porém não há qualquer um registrado; c) é permitida a importação de produtos à base de THC e CBD, por pessoa física, para uso próprio, com finalidade terapêutica, mediante prescrição.

A forma como foi exposta a situação atual da regulamentação da cannabis medicinal no país é proposital, a fim de chamar atenção para questões de extrema relevância, como a burocracia, o impedimento e restrição às prescrições médicas, a ausência de produção nacional e, sobretudo, a impossibilidade de acesso democratizado às terapias, obrigando os pacientes a procurarem alternativas para tratamento.

Logo, os pacientes que não dispõe de instrução, prescrição médica e condições financeiras de arcar com o alto custo dos medicamentos e produtos importados,(15) se veem obrigados a recorrer ao cultivo e produção doméstica de medicamento à base de extratos do vegetal, condutas consideradas criminosas, enquanto descritas nos arts. 28 e 33 da Lei de Drogas.

Nesse contexto, a pessoa que cultiva e produz medicamento para si ou para outrem, está exercendo o direito à vida, à dignidade humana, à autodeterminação, à liberdade e à saúde, todos assegurados pela Constituição Federal, não podendo o Poder Público interpretar essa conduta como criminosa.

Assim, quando essa modalidade de terapia deixa de ser contemplada pela regulamentação da Anvisa, pacientes são expostos ao risco de sofrerem consequências penais por autotutelarem direitos fundamentais, cultivando e produzindo, para si ou para outrem, remédios à base de extratos da planta para o cuidado de suas doenças.

Se o cultivo se inicia, essencialmente, pela germinação de uma semente, só no período de 2009 a junho de 2014,(16) a Receita Federal do Brasil apreendeu 2.813 encomendas contendo sementes de cannabis. As sementes podem ser adquiridas com facilidade por meio de sites estrangeiros que comercializam legalmente os frutos aquênios em seus países de origem, contudo, ao ingressarem no Brasil são retidas pelas barreiras fitossanitárias e seus importadores são perseguidos criminalmente, acusados de tráfico internacional, crime hediondo, cuja

Page 23: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

23

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661ANO 24 - Nº 286 - SETEMBRO/2016 - ISSN 1676-3661

pena pode chegar até 15 anos de reclusão.Um notório caso de importação de sementes foi processado pela

Justiça Federal do Pará, que perseguiu um indivíduo que importou 20 sementes com finalidade de semear, cultivar e colher inflorescências da planta para produzir medicamento para sua esposa, paciente de câncer que sofria dos efeitos colaterais da quimioterapia. Por sua vez, o juízo rejeitou a denúncia de tráfico internacional de drogas e, na decisão, o magistrado reconhece a “finalidade altruísta e humanitária que moveu o denunciado ao adquirir as sementes no Reino Unido, qual seja, para o exclusivo fim medicinal, em face à grave moléstia que foi sua esposa acometida”.(17)

Se para adquirir sementes as consequências são desgastantes, as pessoas que conseguem adquiri-las de outro modo, senão importando, e passam a cultivar são consideradas, muitas vezes, como traficantes pela Justiça, que processa centenas de casos pelas varas criminais do Brasil.

Um caso emblemático de cultivo medicinal erroneamente interpretado como crime foi o de um gaúcho que, para enfrentar um tratamento pela cura de um câncer, comprou um sítio no interior do Rio Grande do Sul para plantar cannabis, outras plantas medicinais, verduras e legumes orgânicos. O sítio foi invadido pela polícia de forma truculenta, sua plantação foi devastada e quando processado, ele foi condenado por tráfico.(18)

Mesmo com esse risco de interpretação, mais recentemente, mães e pais de crianças possuidoras de graves doenças têm cultivado cannabis para produzir artesanalmente medicamento para o tratamento de seus filhos.(19) E não é só. Além dos casos de cultivo para uso medicinal próprio ou destinado a familiares e amigos, há também uma Rede de cultivadores e médicos que cultivam, produzem e distribuem, gratuitamente, desde 2014, um óleo de cannabis para pacientes de todo o país. Os cultivadores já plantavam para consumo próprio e decidiram ajudar pacientes necessitados por solidariedade e compaixão.(20)

Assim, a falta de regulamentação do cultivo de cannabis e da produção artesanal de medicamentos e produtos com finalidade terapêutica, restringe o acesso democratizado às terapias com a planta medicinal e expõe pessoas ao risco de sofrerem consequências penais. Entre a criminalidade – em razão de interpretação equivocada do Poder Público – e a constitucionalidade – de condutas protegidas constitucionalmente – estão o cultivo e a produção artesanal, que devem ser contemplados na regulamentação do uso medicinal de cannabis no Brasil.

Notas(1) Nome científico da planta popularmente conhecida como “maconha”, que possui

três espécies: sativa, índica e ruderalis.(2) Essa história foi documentada no filme Ilegal – A vida não espera (2014).(3) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Distrito Federal, 3.ª Vara Federal, ação

ordinária, processo 24632-22.2014.4.01.3400, Juiz Federal Bruno César Bandeira Apolinário, decisão em 03.04.2014.

(4) Apepi e Abracannabis no Rio de Janeiro, Abrace e Liga Cannabica na Paraíba, Amemm na Bahia, Ama-me em Minas Gerais e Ananda em São Paulo.

(5) TRF 5.ª Reg., Seção Judiciária da Paraíba, 1.ª Vara Federal de João Pessoa, processo 0802543-14.2014.4.05.8200, Juiz Federal João Bosco Medeiros de Souza, decisão em 18.08.2014.

(6) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária de Minas Gerais, 13.ª Vara Federal de Belo Horizonte, processo 0065693-21.2014.4.01.3800, Juiz Federal Valmir Nunes Conrado, decisão no dia 22.08.2014.

(7) ANVISA, RDC 3, de 26.01.2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 28.01.2015 às fls. 53/57.

(8) ANVISA, RDC 17 de 06 de maio de 2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 8.5.2015 às fls.50/51.

(9) Lista C1 da Portaria 344/98 da Anvisa.(10) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Distrito Federal, 16.ª Vara Federal, processo

0090670-16.2014.4.01.3400, Juiz Marcelo Rebello Pinheiro, distribuída em 09.12.2014.

(11) Decisão proferida no dia 09.11.2015.(12) Decisão proferida no dia 03.03.2016.(13) ANVISA, RDC 66, de 18.03.2016, publicada no Diário Oficial da União no dia

21.03.2016 às fls. 28/32.(14) “Art. 4.º É vedado ao médico a prescrição da cannabis in natura para uso

medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol.”(15) 03 unid. Revivid CBD Hemp Extract 3000 mg, 60 ml cada (dose para 30 dias)

= R$ 12.960,00; 03 unid. de Sativex Spray 3x10 ml cada (dose para 30 dias) = R$ 23.773,20. Aos valores são adicionadas as taxas de autorização da ANVISA e valores com despachante e frete.

(16) Receita Federal do Brasil, consulta realizada em 15.09.2014, sob o n. 16853001660201411, por meio da Lei de Acesso à Informação.

(17) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Pará, 4.ª Vara Federal de Belém, processo 0015482-69.2014.4.01.3900, Juiz Antônio Carlos Almeida Campelo, decisão no dia 23.04.2015, publicada no Diário Oficial no dia 29.04.2015.

(18) TJRS, Comarca de Canoas, 3.ª Vara Criminal, processo 0024772-61.2011.8.21.0008, distribuído em 07.07.2011 (processo em grau de recurso).

(19) O Globo, “Mãe planta cannabis para produzir extrato medicinal para a filha”. Publicado em: 06.05.2016, disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/mae-planta-cannabis-para-produzir-extrato-medicinal-para-filha-19243279>.

(20) O Globo, “Rede secreta produz maconha medicinal no Rio”. Publicado em: 12.10.2014, disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/rede-secreta-produz-maconha-medicinal-no-rio-14198705>.

Emílio Nabas Figueiredo Membro Fundador da REFORMA.

Consultor jurídico do Growroom.net e de associações de usuários medicinais de Cannabis.

Advogado civilista.

Lorena OteroFundadora da REFORMA.

Pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra.

Advogada criminalista.

BOLETIM IBCCRIM - ISSN 1676-3661COORDENADOR-CHEFE: José Carlos Abissamra FilhoCOORDENADORES ADJUNTOS: Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos.

CONSELHO EDITORIAL: Acacio Miranda da Silva Filho, Alberto Alonso Muñoz, Alexandre Pacheco Martins, Alexandre Soares Ferreira, Amélia Emy Rebouças Imasaki, André Felipe Pellegrino, Anderson Bezerra Lopes, André Azevedo, André Ricardo Godoy de Souza, Andre Pires de Andrade Kehdi, Andrea Cristina D´Angelo, Antonio Baptista Gonçalves, Arthur Sodré Prado, Átila Pimenta Coelho Machado, Beatriz Ferreira Jubilut, Bruna Nascimento Nunes, Bruno Salles Pereira Ribeiro, Bruno Redondo, Carlos Alberto Garcete de Almeida, Carlos Domênico Viveiros, Caroline Braun, Cecilia de Souza Santos, Cecilia Tripodi, Cláudia Barrilari, Christiany Pegorari, Conrado Almeida Corrêa Gontijo, Daniel Allan Burg, Daniel Del Cid, Daniel Kignel, Daniel Leonhardt dos Santos, Danilo Dias Ticami, Danyelle da Silva Galvão, Dayane Fanti, Décio Franco David, Douglas Lima Goulart, Eduardo Augusto Paglione, Edson Roberto Baptista de Oliveira, Eleonora Rangel Nacif, Evandro Camilo Vieira, Fabiana Zanatta Viana, Felipe Mello de Almeida, Fernanda Balera, Fernanda Carolina de Araújo, Fernanda Regina Vilares, Fernando Gardinali, Fernando Lacerda, Felício Nogueira Costa, Flávia Guimarães Leardini, Frederico Manso Brusamolin, Gabriel Huberman Tyles, Giancarlo Silkunas Vay, Guilherme Lobo Marchioni, Guilherme Silveira Braga, Guilherme Suguimori Santos, Hugo Leonardo, Ilana Martins Luz, Jacqueline do Prado Valles, João Jacinto Anhê Andorfato, Jamil Chaim Alves, Jorge Miguel Nader Neto, José Carlos Abissamra Filho, José Roberto Coêlho de Almeida Akutsu, Karlis Mirra Novickis, Larissa Palermo Frade, Leopoldo Stefanno Gonçalves

Leone Louveira, Leonando Biagioni de Lima, Luan Benvenutti Nogués Moyano, Luis Gustavo Veneziani Sousa, Marcel Figueiredo Gonçalves, Marco Aurélio Florêncio Filho, Marina Ludovico Bruno, Maria Carolina de Moraes Ferreira, Maria Jamile José, Mariana Chamelette, Matheus Herren Falivene de Sousa, Matheus Silveira Pupo, Milene Cristina Santos, Matheus Herren Falivene de Sousa, Milene Maurício, Octavio Augusto da Silva Orzari, Paola Martins Forzenigo, Paulo Sergio Guardia Filho, Pedro Augusto de Padua Fleury, Pedro Beretta, Pedro Castro, Rachel Lerner Amato, Rafael Carlsson Gaudio Custódio, Rafael Fecury Nogueira, Rafael de Souza Lira, Rafael Tiago da Silva, Renato Stanziola Vieira, Renata Macedo Souza, Ricardo Caiado Lima, Roberto Portugal de Biazi, Rodrigo Nascimento Dall´Acqua, Rogério Fernando Taffarello, Sâmia Zattar, Sérgio Salomão Shecaira, Taísa Fagundes, Tatiana de Oliveira Stoco, Thaís Paes, Theodoro Balducci de Oliveira, Vinicius Gomes de Vasconcellos, Vinícius Lapetina, Wilson Tavares de Lima e Yuri Felix.

COLABORADORES DE PESQUISA DE JURISPRUDÊNCIA: Arthur Martins Soares, Bruna Torres Caldeira Brant, Bruno Maurício, Daniel Del Cid, Fábio Suardi D’Elia, Felício Nogueira Costa, Gabriela Rodrigues Moreira Soares, Giancarlo Silkunas Vay, Greyce Tisaka, Guilherme Suguimori Santos, Jairton Ferraz Júnior, José Carlos Abissamra Filho, Juliana Sette Sabbato, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Ludmila Bello, Mariana Helena Kapor Drumond, Matheus Silveira Pupo, Michelle Pinto Peixoto de Lima, Milene Mauricio, Milton Alexandre do Nascimento, Paula Mamede, Pedro Luiz Bueno de Andrade, Rafael Carlsson Gaudio Custódio, Renato Silvestre Marinho, Renato Watanabe de Morais, Ricardo Mamoru Ueno, Roberta Werlang Coelho Beck, Sâmia Zattar, Stephan Gomes Mendonça, Suzane Cristina da Silva, Thaís

Marcelino Resende, Vivian Peres da Silva e Wilson Tavares de Lima.

COMISSÃO DE ATUALIZAÇÃO DO VOCABULÁRIO BÁSICO CONTROLADO (VBC): Alberto Silva Franco, Maria Cláudia Girotto do Couto, Renato Watanabe de Morais e Suzane Cristina da Silva.

EDITORES IBCCRIM: Adriano Gallvão, Eduardo Carvalho, Taynara Lira e Willians Meneses.

PROJETO GRÁFICO: Lili Lungarezi - [email protected]

PRODUÇÃO GRÁFICA: Editora Planmark - Tel.: (11) [email protected]

REVISÃO: Microart - Tel.: (11) [email protected]

IMPRESSÃO: Ativaonline - Tel.: (11) 3340-3344O Boletim do IBCCRIM circula exclusivamente entre os associados e membros de entidades conveniadas. O conteúdo dos artigos publicados expressa a opinião dos autores, pela qual respondem, e não representa necessariamente a opinião deste Instituto. Tiragem: 11.000 exemplaresENDEREÇO DO IBCCRIM:Rua Onze de Agosto, 52 - 2º andar, CEP 01018-010 - S. Paulo - SPTel.: (11) 3111-1040 (tronco-chave)www.ibccrim.org.br

Page 24: UNGASS 2016 e os 10 anos da Lei 11.343/2006

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Boletim_Drogas_19,2x25,5cm_V3.pdf 1 02/08/16 09:39