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Rejane Galvão Coutinho (Coord.) Desafios para a Docência em Arte: Teoria e Prática

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  • Rejane Galvo Coutinho (Coord.)

    Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica

  • Desafios Para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica

    COORDENADORA Rejane Galvo Coutinho

    AUTORESAdriana Maria de Oliveira Desiderio

    Alessandra Pereira Matias UginoAna Luiza Bernardo Guimares

    Daniela Braga do Couto Rosa Mzaro Jonas Marcelo Gonzaga

    Lucia Quintiliano

    Mrcia Benavente Tendeiro

    Marcio Rogrio Ferreira de Souza

  • BY UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAPr-Reitoria de Ps-Graduao UNESPRua Quirino de Andrade, 215CEP 01049-010 So Paulo SPTel.: (11) 5627-0561www.unesp.br

    Preparao e Reviso: Frederico VenturaProjeto Grfico e Diagramao: Marco Aurlio Casson

    Todos os direitos reservados. No permitida a reproduo sem autorizao desta obra de acordo com a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

    D441

    Desafios para a docncia em arte [recurso eletrnico]: teoria e prtica / Coordenadora Rejane Galvo Coutinho; Autores Adriana Maria de Oliveira Desiderio... [et. al.] So Paulo: Universidade Estadual Paulista: Ncleo de Educao a Distncia, [2013].

    110 p. : il., figs., grfs., tabs., quadros, fotos., mapase-BookModo de acesso:www.acervodigital.unesp.br

    Resumo: Trata-se dos melhores trabalhos de Concluso de cursos, provenientes da segunda edio do Programa Rede So Paulo de Formao Docente (Redefor).

    ISBN:

    1. Arte Estudo e ensino. 2. Professores Educao continuada. I. Coutinho, Rejane Galvo. II. Desiderio, Adriana Maria de Oliveira. III. Universidade Estadual Paulista. Ncleo de Educao a Distncia. IV. Ttulo.

    CDD 700

    Ficha Catalogrfica elaborada por Ivone Santiago dos Santos CRB 8/6394

  • GovernadorGeraldo Alckmin

    SECRETARIA DA EDUCAO DO ESTADO DE SO PAULO

    SecretrioHerman Jacobus Cornelis Voorwald

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    ReitorJulio Cezar Durigan

    Vice-ReitoraMarilza Vieira Cunha Rudge

    Chefe de GabineteRoberval Daiton Vieira

    Pr-Reitor de GraduaoLaurence Duarte Colvara

    Pr-Reitor de Ps-GraduaoEduardo Kokubun

    Pr-Reitora de PesquisaMaria Jos Soares Mendes Giannini

    Pr-Reitora de Extenso UniversitriaMaringela Spotti Lopes Fujita

    Pr-Reitor de AdministraoCarlos Antonio Gamero

    Secretria GeralMaria Dalva Silva Pagotto

    NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIA DA UNESP - NEaD

    CoordenadorKlaus Schlnzen Junior

    Coordenao Acadmica - RedeforElisa Tomoe Moriya Schlnzen

  • Sumrio

    PREFCIO 6

    O corpo do interator materializado no corpo da obra de arte 10Lucia Quintiliano

    No me proteja do que eu quero! Parangoleando a formao dos professores de Arte 21

    Ana Luiza Bernardo Guimares

    O uso de materiais grficos de exposies nas aulas de Arte 36Marcio Rogrio Ferreira de Souza

    Rede de experincias 47Daniela Braga do Couto Rosa Mzaro

    A atuao do educador ironista na educao 63Jonas Marcelo Gonzaga

    A importncia e as contribuies da arte na interdisciplinaridade 75Adriana Maria de Oliveira Desiderio

    A educao contempornea de Arte: repensando o cotidiano da sala de aula 88

    Alessandra Pereira Matias Ugino

    Atelier Straube: (re)significando a arte em Guarulhos 98Mrcia Benavente Tendeiro

  • PREFCIO

    Os textos que compem este e-book so fruto de experincias de professores de Arte em processo de formao continuada e por esta caracterstica comum, revelam o quo potente e diversa podem

    ser as experincias de educadores comprometidos com suas prticas e seus prprios processos de

    formao. A publicao traz uma seleo dos trabalhos finais do Curso de Especializao em Arte,

    curso realizado por docentes do Instituto de Artes da Unesp dentro do Programa Rede So Paulo de

    Formao Docente, Redefor, da Secretaria de Estado de Educao. Um curso oferecido aos professores

    de Arte da rede estadual paulista e realizado na modalidade a semipresencial.

    Nesta edio do curso tivemos quase trezentos trabalhos de concluso. Para chegar a esta

    seleo aqui publicada, dos dez melhores trabalhos, uma equipe de avaliadores formada pela

    coordenadora desse curso, Rejane G. Coutinho, pela professora autora e especialista Rita Luciana

    Berti Bredariolli, e pela representante dos orientadores educacionais, Silvana Brunelli, procedeu a uma

    primeira triagem a partir das indicaes dos orientadores, levando tambm em conta as avaliaes/

    notas das bancas examinadoras. Com esta primeira seleo, ficamos com trinta bons trabalhos para

    examinar de forma mais apurada, privilegiando aqueles que se desenvolveram alinhavando a prtica

    docente com a teoria estudada ao longo das disciplinas e incluindo tambm algumas boas reflexes

    tericas que dialogaram com os referenciais explorados no curso. Por fim, a diversidade dos temas

    selecionados foi tambm um critrio importante, ainda que no explcito inicialmente, por revelar o

    alcance dos estudos e reflexes possibilitadas pelo curso.

    Importante ressaltar que todo o processo de seleo dos textos foi pautado pelo eixo organizador

    do projeto do curso, que convida o professor a refletir sobre sua prpria formao, buscando valorizar

    suas experincias pessoais e profissionais como ponto de partida para explorar o novo e, ao mesmo

    tempo, como espao de encontro consigo mesmo.

    Observando a linha de um corpus terico com acento na prtica docente, elencamos os artigos de Ana Luiza Bernardo Guimares, Alessandra Pereira Matias Ugino, Marcio Rogrio Ferreira de

    Souza, Lucia Quintiliano e Carla Cristina Bojorque.

    Em No me proteja do que eu quero! Parangoleando a formao dos professores de Arte, Ana Luiza com apuro acadmico e dispondo de um significativo leque terico, examina a formao

    do professor de Arte na contemporaneidade, de modo a propor um entendimento outro e alm das

  • designaes formao inicial/formao continuada o que se coaduna com o eixo central do curso.

    A autora, tambm amparada pelas ideias e conceitos que transitam na obra de Hlio Oiticica, tece

    com irreverncia profcua, paralelos com uma formao desejvel do professor de Arte, aquela que

    deve integrar a produo artstica, a pesquisa e a reflexo.

    Contribuio outra, igualmente prxima do tema das utopias que cercam o ensino da Arte

    presente na disciplina que abre o curso, encontra-se no artigo A educao contempornea de Arte / Repensando o cotidiano da sala de aula. Neste, Alessandra Pereira Matias Ugino, ao lanar mo de autores como Ana Mae Barbosa, Imanol Aguirre, Gilles Deleuze, entre outros, procura revisar a sua

    prxis docente com o objetivo de proporcionar um encontro mais ntimo, crtico e sensvel entre a arte

    e o publico. Sua narrativa central foi construda a partir de uma situao de aprendizagem proposta

    ao 2ano do Ensino Mdio no ano de 2012, que abordou a obra de Luciano Mariussi Entre Gritando, uma instalao montada no Museu de Arte Moderna de So Paulo.

    Por sua vez, o artigo de Mrcio Rogrio discorre sobre o potencial educativo de materiais grficos

    (folders, livretos, folhetos, cartes postais, entre outros) de instituies culturais como o Centro Cultural

    Banco do Brasil e o Museu de Arte Moderna de So Paulo e que so distribudos gratuitamente ao

    pblico frequentador desses espaos. O uso dos materiais grficos de exposies nas aulas de

    arte considerou de perto as questes enfocadas na disciplina do curso, Recepo e Mediao do Patrimnio Artstico e Cultural, a destacar o fato de que esses materiais podem ser provocadores e/

    ou agentes reflexivos da proposta expositiva e educativa da instituio e, como consequncia, das

    relaes ulteriores com a Arte; e, devido a essas mesmas caractersticas, o autor deles se utilizou como

    recurso de aprendizagem junto a seus alunos, em uma estruturada sequncia didtica que envolveu:

    degustao e anlise do material grfico da exposio, visita ao museu ou instituio artstica e roda

    de conversa.

    Em O corpo do interator materializado no corpo da obra de arte, Lucia Quintiliano narra alguns de seus projetos relacionais que se desenvolveram no espao escolar, a destacar a interveno

    com pinturas de rostos dos alunos nas paredes entre os corredores das salas de aula. Para a autora

    esses projetos oportunizam no s a participao de todos os educandos, mas, tambm inserem e os

    aproximam de produes de artistas renomados, a exemplo de Cores no Dique de Maurcio Adinolfi e Paredes Pinturas de Mnica Nador. Os questionamentos: Quais so as experincias estticas que estamos propiciando aos nossos alunos e de que maneira estamos possibilitando este encontro de

    si mesmo frente ao outro? foram os fios condutores que desencadearam as proposies e reflexes

    da autora, bem fundamentadas por tericos significativos.

    Carla Cristina Bojorque em Jogos teatrais: possibilidade de ressignificao ldica, recupera, relata, analisa e avalia vrias aulas bem sucedidas e que diretamente tratam dos jogos teatrais como

    forma de expresso significativa no processo de construo do ensino e aprendizagem. Tendo em

    conta a aplicao dos jogos teatrais, Carla optou por duas diretrizes: os jogos teatrais bsicos e as

    sugestes de reconstruo destes a partir das propostas dos alunos, e, pelas reflexes decorrentes do

    estudo de tericos, a saber: Ingrid Dormien Koudela, Viola Spolin, Ricardo Japiassu, Olga Reverbel,

  • Maria F. de Rezende e Fusari, Maria Helosa C. de T. Ferraz e Henri Wallon. Ao final, a autora pondera

    sobre o lugar que hoje o teatro-educao ocupa na escola.

    Adentrando em uma linha mais terica, sem, contudo perder ligao com a prtica docente,

    Adriana Maria de Oliveira Desiderio em seu artigo A importncia e as contribuies da Arte na

    interdisciplinaridade, analisa e revisita, a partir de seu extenso percurso como professora, as mudanas

    educacionais atreladas s propostas pedaggicas e ao ensino da disciplina Arte. Em um primeiro

    momento, a autora reconhece o escasso conhecimento que seus colegas de trabalho possuem sobre

    a Arte, bem como a sua importncia dentro do currculo escolar e suas possibilidades pedaggicas,

    o que dificulta a compreenso e a implementao de um efetivo trabalho interdisciplinar, isto , um

    trabalho integrado, articulado e orgnico. Dentre seus principais questionamentos se encontram

    aqueles que procuram entender as razes que impedem que os professores de outras disciplinas

    incorporem entre suas parcerias a disciplina de Arte; e, se esta, hoje, desfruta do mesmo valor de outras

    disciplinas do currculo escolar. Na busca de respostas, Adriana se ampara em destacados tericos

    para melhor conformar o conceito de interdisciplinaridade e, por outro lado, examinar a arte e seus

    processos criativos, que necessariamente envolvem o produtor. Ao invs de aportar solues para os

    impasses, a autora opta por apresentar e discutir questes cruciais que transitam e se interseccionam

    no tema da interdisciplinaridade, o que revela um vis analtico generoso, visto que procura alargar a

    viso que possamos ter do assunto.

    Ainda, correspondendo vertente terica, porm em entendimento com a disciplina que trata

    das metodologias contemporneas, encontramos o artigo de Jonas Marcelo Gonzaga A atuao do educador ironista na educao. A partir da concepo de Imanol Aguirre sobre o educador ironista, o autor constroi seu estudo incorporando reflexes pessoais em busca do que melhor corresponderia

    as demandas transitrias contemporneas de um educador, que, necessariamente, devem envolver

    o educando, de modo a criar canais efetivos de comunicao entre ambos. Chama-nos a ateno

    no s a qualidade do texto, mas, igualmente, a reviso bibliogrfica do assunto empreendida pelo

    autor. Por fim, a partir da experincia profissional de ator no Grupo Sensus, Jonas Marcelo nos traz

    a conhecimento a realizao de uma performance sensorial junto aos seus alunos do 8 ano, com o

    intuito de promover a humanizao das relaes do ambiente escolar e tambm a de problematizar

    o significado mesmo da obra performtica.

    Em pleno dilogo com os referenciais tratados no curso, O patrimnio imaterial vai escola: Samba de Bumbo de Santana de Parnaba de Adriana da Silva, no s recupera historiograficamente e com profundidade o tema, como tambm relata a sua experincia de imerso nessa manifestao. A

    autora prope que esse patrimnio imaterial seja includo nas propostas curriculares do pas, enquanto

    manifestao artstica e/ou cultural. Assim sendo, reconhecemos, nesse artigo uma correspondncia

    atual para com o ensino da arte e que bem pode ser um incentivo a outros professores: a valorizao

    cultural de seu prprio local. Cabe-nos ainda mencionar que a insero do conjunto iconogrfico em

    pleno dilogo com o texto, enriqueceu ainda mais o conhecimento dessa expresso cultural e artstica.

    Outro artigo bem cuidado em sua pesquisa historiogrfica, que contou com pesquisa de

    campo e entrevistas, o de Mrcia Benavente Tendeiro, Atelier Straube: (re)significando a arte em

  • Guarulhos. A fim de examinar a formao da artista Edite Straube, bem como o diferencial que o seu ateli imprime cidade em questo e aos artistas locais, a autora recupera momentos da histria do

    ensino da arte no Brasil e nesse particular se apoia na disciplina: Ensino de Arte no Brasil: Aspectos

    Histricos e Metodolgicos. Trata-se de um tema interessante e pouco estudado, que contribui para

    a divulgao e entendimento de espaos artsticos alternativos. Certamente, um estudo que merece

    receber desdobramentos.

    O artigo de Daniele Braga do Couto Rosa Mzaro, Rede de experincias, uma reflexo sobre o prprio trabalho artstico enquanto bailarina e coregrafa alicerada pelo referencial terico do curso.

    Podemos acompanhar a anlise de trs obras solo de dana contempornea concebidas e interpretadas

    pela autora: Em algum lugar de mim, Cad meu swing? e Quintal. Daniele investe na aproximao do pblico com a obra, seja por meio de bate-papos, comentrios emitidos por espectadores ao final

    das apresentaes e o livro de registros, por julgar que esses recursos transformam a sua percepo

    sobre a obra, fomentando ainda mais o seu processo criativo. Consideramos esse estudo mpar, pois

    as anlises so feitas sob o ponto de vista de uma educadora que tambm artista e se prope com

    lucidez a entender seu percurso profissional, bem como a construo de sua potica. Apesar de no

    focar diretamente a educao escolar, no podemos deixar de mencionar o fato de que essas obras

    so constantemente revisitadas e reelaboradas em funo do espao e do pblico: teatros, centros

    culturais, escolas e universidades pblicas e privadas, praas pblicas e centros comunitrios.

    Ao publicar este conjunto de textos estamos compartilhando os resultados de um bem sucedido

    processo de formao e desejando que estas experincias se propaguem e incitem outras experincias..

    Rejane Galvo CoutinhoSilvana Brunelli

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 10

    O corpo do interator materializado no corpo da obra de arte

    Lucia Quintiliano1

    As marcas que deixamos no outro e as que o outro nos deixam uma questo bastante relevante dentro do ambiente escolar e tem conduzido meu trabalho como educadora. Fazer fissura, transbordar em trao, virar ferida, marca, cicatriz. Fazer corpo do que era silncio e imensido (Aragon apud Lima, 2011, p.88).

    Essas reflexes comearam a tomar corpo quando comecei um trabalho em parceria com os alunos. A proposta era pintar os seus rostos nas paredes da escola, entre os corredores das salas de aula. Uma proposta um tanto quanto audaciosa, que precisaria tanto da autorizao da direo, como da autorizao do aluno para o uso de sua imagem. sempre por um corte ou fissura que se produz uma abertura ao acontecimento e se d passagem ao tempo e criao (Deleuze apud Lima, 2011, p.188).

    Ao criarmos produzimos marcas com as matrias do mundo. As marcas que os alunos deixam nas carteiras nos abre espao para reflexes sobre as experincias estticas que eles vivenciam na escola, em sua necessidade de criar imagens para marcar sua presena no espao que convive cotidianamente por vrias horas. As experincias inauguram para algum a possibilidade de existir frente a um outro, atravs da articulao de signos que constituem e apresentam as vivncias deste existir de um modo singular (Lima, 2011, p.188).

    Quais so as experincias estticas que estamos propiciando aos nossos alunos? De que maneira estamos possibilitando esse encontro de si mesmo frente ao outro?

    A arte intermedeia as relaes humanas atravs dos objetos estticos, criando espaos relacionais (Bourriaud, 2009). Na contemporaneidade, a arte nos convida participao sensvel, corporal, nos convida a fazer parte dela.

    Sabe-se que a relao entre a arte e o pblico indissocivel. Isso mais perceptvel nas artes de espetculos do que nas artes visuais. No teatro, na dana e na msica, a plateia alimenta o espetculo, sendo o espectador o grande responsvel pela excelente atuao dos atores. Nesse caso, um alimenta o outro. Sem o pblico no h sentido para obra existir, sem a obra no h sentido para

    1 Graduada em Educao Artstica pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras Nossa Senhora do Patrocnio (1988). Especializao em Teatro/Teatro Dana pela Universidade de So Paulo (1992). Especializao nas Linguagens das Artes pela Universidade de So Paulo (2009). Possui especializao em Artes para professores do Ensino Fundamental e Mdio pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp) e Programa Redefor (2012). Atualmente professora de educao bsica II da rede estadual na E. E. Olga Cury, em Santos/So Paulo. Tem experincia na rea de Artes, com nfase em Desenho.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 11

    a existncia desse mesmo pblico. Sendo assim, a obra s existe com a presena do espectador, e esse carter relacional que d vida a obra.

    Essa caracterstica relacional tambm fator intrnseco da produo visual, pois no basta obra existir, ela precisa relacionar-se com o publico para ter vida. Ao pintar uma tela, se o artista no a faz circular por qualquer meio, para assim ela estabelecer contato com o pblico e este legitimar o seu existir, ela no ser nada; embora ela exista como um produto, no existir como elemento comunicador de uma ideia, um ideal, uma crtica, enfim, no estar dotada de vida. Marcel Duchamp afirmava que o espectador que faz a obra (apud Plaza, 2002, p.9).

    Bourriaud (2009, p.21), escritor e crtico de arte contempornea, afirma que a arte sempre foi relacional em diferentes graus, ou seja, fator de socialidade e fundadora de dilogo.

    Assim, a interao entre a obra e o pblico se apresenta em diferentes graus de abertura (Bourriaud, 2009), e segundo Plaza (2002, p.10), a incluso do espectador na obra de arte segue a seguinte linha de percurso:

    Participao passiva (contemplao, percepo, imaginao, evocao etc.), participao ativa (explorao, manipulao do objeto artstico, interveno, modificao da obra pelo espectador), participao perceptiva (arte cintica) e interatividade, como relao recproca entre usurio e um sistema inteligente.

    Caminhando por essa linha de raciocnio, podemos dizer que participao passiva corresponde abertura de primeiro grau, a participao ativa abertura de segundo grau e a perceptiva de terceiro grau (Plaza, 2002).

    Na abertura de primeiro grau a obra aberta e o espectador atua como observador, contempla, julga, emite valores acerca daquilo que observa.

    Na abertura de segundo grau o espectador convidado a participar da obra. a chamada obra de participao na qual o espectador constitui-se como elemento indispensvel, torna-se matria da prpria obra, podendo interferir, manipular e at mesmo ajudar na constituio da mesma.

    Podemos dizer que uma das caractersticas das obras de participao o seu carter efmero. As obras so concebidas j com um fim pr-determinado, ou seja, elas j nascem com a morte anunciada. E, em seu curto perodo de vida, elas ainda sofrem com a presena do seu bem maior, o espectador, que ao participar da obra acaba interferindo em sua breve longevidade, muitas vezes desmaterializando-a. Segundo Sogabe (2007, p.1.586), medida que o corpo do pblico vai se materializando na obra, esta por sua vez vai se desmaterializando como objeto fsico e tornando-se mais um processo.

    Ao falar da participao do espectador nas obras participativas, Plaza nos brinda, no texto Arte e interatividade, com uma nota cmico-irnica:

    Grande parte das obras expostas na IX Bienal de So Paulo (da qual participamos em 1967), dedicada dominantemente a arte de participao, terminaram no lixo devido aos estragos e excessos de participao do pblico. Desde ento, a arte de participao ficou datada no imaginrio do consumidor brasileiro. (Plaza, 2002, p.16)

    Na abertura de terceiro grau ficam as obras que so geradas por interfaces digitais. So as chamadas obras interativas, e o termo interatividade usado para defini-las. Esta abertura, mediada por interfaces tcnicas, coloca a interveno da mquina como novo e decisivo agente de instaurao esttica (Plaza, 2002, p.9).

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 12

    A obra existe em potencial na memria do computador, e s se configura de acordo com a interao do corpo do pblico, podendo se atualizar de formas diferentes de acordo com o tipo de interao (Sogabe, 2011, p.52). Sabemos que o carter relacional da arte sempre existiu, mas no sculo XX que a preocupao com a recepo se intensifica. Algumas das proposies artsticas do perodo integram o espectador na constituio da prpria obra. Podemos exemplificar com Hlio Oiticica, que ao suspender a cor no espao, com seus Penetrveis (1960), convida o espectador a circular por entre as obras, ou ainda, com seus Parangols (1960), em que o espectador solicitado a habitar a obra, ou seja, o espectador torna-se a obra, pois ele que d movimento e vida a ela. Sendo assim, ao participar da obra o espectador sai de sua postura passiva frente mesma alterando o seu carter existencial.

    Ferrara (apud Plaza, 2003, p.9) nos aponta que no sculo XX:

    A participao do receptor aviltada, desejada, repelida, solicitada, estimulada, exigida a tnica que perpassa os manifestos da arte moderna em todos os seus momentos e caracteriza a necessidade de justificar a sua especificidade.

    Segundo Bourriaud, a arte atual resgata as heranas das vanguardas do sculo XX, contudo, recusando seu dogmatismo e sua teleologia, e sobre isso pondera:

    O modernismo se banhava num imaginrio de oposio, retomando os termos de Gilbert Durand, que procedia por separaes e oposies, amide desqualificando o passado em favor do futuro; baseava-se no conflito, enquanto o imaginrio de nossa poca se preocupa com negociaes, vnculos, coexistncias. Hoje j no procura mais se avanar por meio de posies conflitantes, e sim com a inveno de novas montagens, de relaes possveis de unidades distintas, de construo de alianas entre diferentes parceiros. Os contratos estticos, tal como os contratos sociais, so tomados pelos os que so: ningum mais pretende instaurar a idade do ouro na terra, e ficaremos contentes em criar modi vivendi que permitam relaes sociais mais justas, modos de vida mais densos, combinaes de existncia mltiplas e fecundas. Da mesma forma a arte no tenta mais imaginar utopias, e sim espaos concretos. (Bourriaud, 2009, p.63)

    Para Bourriaud (2009, p.85), na atualidade h uma tendncia por parte dos artistas a explorar novos modelos de sociabilidade e de interatividade que convocam o observador a participar de forma ativa de suas poticas e, muitas vezes, a se inserir na constituio das prprias obras. Sendo assim:

    As relaes entre os artistas e suas produes, assim, rumam para a zona do feedback: h alguns anos vm se multiplicando os projetos artsticos convivais, festivos, coletivos ou participativos, que exploram mltiplas potencialidades da relao com o outro. O pblico v-se cada vez mais levado em conta. Como se agora essa apario nica de um distante, que a aura artstica, fosse abastecida por esse pblico: como se a microcomunidade que se rene na frente da imagem se tornasse a prpria fonte da aura, o distante aparecendo pontualmente para aureolar a obra, a qual lhe delega seus poderes. A aura da arte no se encontra mais no mundo representado pela obra, sequer na forma, mas est diante dela mesma, na forma coletiva temporal que produz ao ser exposta. (Bourriaud, 2009, p.85)

    Em Cores no Dique, um projeto desenvolvido por Maurcio Adinolfi na comunidade do Dique uma das maiores favelas de palafitas da Amrica Latina, situada na divisa de Santos com So Vicente, litoral paulista , Adinolfi explora um novo modelo de socialidade e interao, no qual o objeto esttico o intermediador das relaes inter-humanas.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 13

    O projeto Cores no Dique (2009) foi realizado atravs de uma parceria entre o Ministrio da Cultura, via edital Interaes Estticas, a Funarte, o Ponto de Cultura Arte no Dique e o artista plstico Maurcio Adinolfi.

    A ao esttica de Adinolfi consiste numa ao relacional, compartilhada, com os moradores da comunidade do Dique.

    Imagem 1: Palafitas

    Dona Helena, lder comunitria da comunidade do Dique e uma das integrantes da ONG Arte no Dique, enquanto amiga de Adinolfi o convidou para uma visita comunidade.

    Ao visitar o local, Adinolfi conheceu os moradores, as moradias, as condies do lugar. Ao conversar sobre as condies do lugar, a origem dos moradores, o trabalho, a famlia, ficou instigado a agir a partir da pintura. No entanto, os madeirites que j estavam em ms condies, a posio das palafitas sobre a gua e o lixo pareceram ser inicialmente elementos que dificultariam a ao. Mas dona Helena sugeriu a troca dos madeirites, pois na comunidade havia moradores especialistas no assunto.

    A possibilidade de construir e reformar as casas, segundo Adinolfi, o despertou de alguma forma, e o fez lembrar dos trabalhos que j vinha fazendo com madeira e de um projeto em particular que realizou no Ateli Amarelo (uma residncia artstica em So Paulo) em parceria com marceneiros do centro da cidade. E o que mais o surpreendeu foi pensar que existia uma ao de reconstruo e reforma mesmo naquelas condies:

    O ser humano mesmo impressionante! Conheci alguns desses profissionais e eles demonstraram vigor e interesse fascinante, o que me fez pensar que o trabalho ali s poderia

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 14

    existir com parceria e com a fora que vinha de dentro dos moradores. Pois s assim estaria integrado e coerente com uma vontade de mudana. (Adinolfi, 2012)2

    Assim, em pareceria com os moradores da Comunidade do Dique, o projeto aconteceu, os madeirites podres das palafitas foram trocados por novos e pintados. A pintura foi feita pelos prprios moradores, que aprenderam atravs de oficinas organizadas num barraco cedido pela CDHU. Sobre a pintura, Adinolfi comenta:

    Como artista eu tinha minha ao. Eu definia as misturas, passava ideia de cor, composio. Na verdade, no incio eu montava as composies, mas na prtica, quando juntava eu e os moradores, a gente sempre mudava. Por exemplo, eu pensei em uma casa s com tonalidades verde e azul, mas na hora a moradora queria laranja, cores fortes. Eu deixei. Na verdade eu no deixei, uma questo de bom senso, a casa dela, ela queria [] a definio das cores foi em conjunto e isto foi muito legal porque ficou melhor que os desenhos que eu tinha feito. (Adinolfi, 2010)3

    Imagem 2: Croqui ilustrativo.

    2 Em entrevista concedida a Lucia Quintiliano, em 29/11/2012.3 Em entrevista concedia a Mariana Di Stella Piazzolla, em 21/02/2010. Disponvel em: . Acesso em: 28/12/2012.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 15

    Imagem 3: Palafita aps a reforma.

    As trocas dos madeirites aconteciam em mutires. Alguns formados por pessoas que se davam bem, e outros por familiares. Segundo Adinolfi (2010), alguns eram bem festivos: Teve um dia que foi o melhor deles, foi um mutiro com cerveja e camaro frito na hora, porque tem alguns pescadores que vivem l.4

    Para Adinolfi, a dimenso do projeto s se tornou perceptvel a partir da reforma da primeira casa:

    Depois desta primeira casa, com um mutiro festivo, caiu a ficha do que este projeto. At ento parecia que nada ia acontecer. Ficvamos pintando as madeiras no barraco, e foi acumulando o trabalho mesmo de oficina, de chamar as pessoas, criar este vnculo. Ento a gente ficou pintando durante um tempo e s a partir da primeira casa que a gente percebeu que a coisa podia mesmo acontecer! (Adinolfi, 2010)5

    Podemos observar atravs do projeto Cores no Dique as relaes inter-humanas se constituindo a partir do elemento esttico. Adinolfi afirma que o que mais o marcou nesse trabalho foi o vnculo que ele criou com os moradores da comunidade. Adinolfi com sua potica cria os espaos relacionais que, segundo Bourriaud (2009, p.98-99), as pessoas podem entrar em contato entre si [...] reaprendem o convvio e a partilha [...] em que as relaes profissionais so objetos de comemorao festiva [...] e nas quais as pessoas esto em contato constante com a imagem de seu trabalho.

    O projeto desenvolvido com e para as pessoas da comunidade, os gestos, as marcas das pinceladas do artista se une aos gestos e pinceladas do interator que se transforma em parceiro, e juntos materializam seus corpos na obra que ser habitada.

    Em Ninhos, de Hlio Oiticica (1970), o habitar a obra por um curto perodo de tempo, e em Cores no Dique (2009), de Maurcio Adinolfi, o habitar torna-se permanente.

    Podemos tambm observar as relaes inter-humanas acontecerem nos projetos Paredes Pinturas (2008), de Mnica Nador. O projeto de Nador consiste na pintura de casas em regies de urbanizao precria, em um trabalho conjunto com a populao local. H mais dez anos Nador se

    4 Ibidem.5 Ibidem.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 16

    dedica ao projeto, o qual a fez optar por ir viver na periferia de So Paulo para melhor desenvolver sua ao.

    No h uma forma de apresentar o projeto de Nador, sem que ele perca qualidade, sem apresentar um pouco do percurso da artista. E, para isso, valho-me de um recorte da escrita de Eleilson Leite (2008), coordenador do programa de cultura da ONG Ao Educativa, ao apresentar Nador no catlogo Pintura na margem da cidade (2008).

    O trabalho com muros e fachadas de casas em comunidades de baixa renda comeou com aes dentro da Comunidade Solidria, em 1998, pelo qual viajou por vrios estados do Brasil. Depois, na Favela So Remo, localizada atrs da USP, aprofundou sua concepo. No ano seguinte fez um importante trabalho no Assentamento Carlos Lamarca, em Itapetininga. Da aproximao com o MST surgiu um posicionamento mais ideolgico. A sensibilidade com os pobres virou causa. Mnica no queria ser mais um artista que vai quebrada, faz a ao e desaparece. Quis fazer parte da comunidade. Por isso criou o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac), na periferia da Zona Sul de So Paulo, e l est h cinco anos morando e trabalhando. O envolvimento com as pessoas a chave principal para entender o trabalho de Mnica Nador em favelas. Ela cria sinergia, forma um grupo rapidamente e sai fazendo arte em toda parte [...] contratada pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), passou seis meses em diversas comunidades do Jardim Santo Andr, periferia do ABC. Fez um trabalho exemplar e levou o resultado e as pessoas que deles participaram para expor em uma badalada galeria na regio da Paulista. (Leite, 2008)

    O que une as experincias de Adinolfi e Nador seu carter relacional, com aes coletivas, dirigidas a comunidades com urbanizaes precrias. Ambos saem do circuito destinado s artes visuais e vo ao encontro de seu pblico, numa perspectiva que democratiza a arte. Em ambos a arte baseada na participao e na produo de relaes com o outro, em que as relaes no so reguladas por nenhuma moeda e sim por objetos estticos.

    Os objetos e as instituies, o emprego de tempo e as obras, so ao mesmo tempo, resultado das relaes humanas pois concretizam o trabalho social produtores de relaes pois organizam modos de socialidade e regulam os encontros humanos. (Bourriaud, 2009, p.66)

    Adinolfi e Nador criam espaos concretos relacionais, desenvolvem um projeto poltico e problematizam a esfera das relaes (Bourriaud, 2009, p.23).

    Ambos privilegiam a pintura como elementos estticos em suas aes, concebem o gesto humano na constituio de suas poticas, materializando assim o corpo do interator na obra, tornando-o coautor dessa obra.

    Adinolfi e Nador nos apresentam aes que transformam as vidas das pessoas, aes significativas que interferem no seu viver. E na escola, estamos oferecendo experincias significativas aos alunos, experincias que marcam as vidas dos nossos alunos?

    * * *O projeto de interveno com as pinturas dos rostos dos alunos nas paredes entre os corredores

    das salas de aulas na escola consistiu num trabalho conjunto de pintura entre professor e aluno. O aluno cedia a imagem, e o professor preparava o estncil. Com o estncil pronto, eles pintavam uma copia para si e outra na parede da escola.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 17

    Imagem 4.

    Ao pensar a experincia, no o fiz inicialmente como professor, mas como artista; como o artista que quer experimentar formas, suportes, um novo modelo de participao do observador, pensando em posteriormente expandir essa proposta para alm dos muros da escola, ocupando a cidade, expandindo a experincia para muros e postes, e para uma comunidade isolada do centro urbano.

    A escola foi o espao inicial escolhido para essa experimentao, pois nela as relaes j estavam constitudas, j havia vnculos estabelecidos. Propus a ao aos alunos do segundo ano do ensino mdio. No princpio, a proposta era muito abstrata aos alunos, que achavam-na interessante, mas no acreditavam que poderia acontecer. O projeto s comeou a pegar quando as primeiras pinturas foram para a parede. A partir de ento a ideia foi contagiando, o interesse por aprender a tcnica foi nascendo e a pareceria foi se estabelecendo. O medo, a vergonha e o receio da prpria imagem exposta, o confronto com todos os outros adolescentes da escola eram questes que eram suscitadas a todo o momento. Para alguns, era algo muito tranquilo, para outros, algo muito angustiante. Vencer essas questes era algo que caberia somente a eles, eu no podia forar; alguns entravam na proposta somente para ter a sua prpria imagem, para poder t-la no seu quarto, mas quando via o resultado, se encantava e no resistia, ia para a parede e sentia-se orgulhoso com sua imagem em exibio.

    A materialidade para a execuo do projeto era divida entre mim e a escola, que forneceu algumas transparncias, impresso, tinta e pincel.

    Fomos ocupando o espao, pensando no dilogo entre as imagens, na conversa que elas queriam passar. A obra de arte pode ser definida como um objeto relacional, como o lugar geomtrico de uma negociao com inmeros correspondentes e destinatrios (Bourriaud, 2009, p.37).

    A experincia esttica , nessa perspectiva, um encontro; ela acontece na presena de um outro significativo que recebe e reconhece aquilo que criado o que torna indissociveis, na prpria experincia, produo e recepo. (Lima, 2011, p.188)

    Assim, a interveno no espao escolar proporcionou aos alunos uma relao de pertinncia comunidade escolar, e o revistar a sua produo diariamente inseriu-os na relao dialogal com a recepo, preservao e conservao das prprias produes, expandindo esse dilogo s produes culturais do mundo.

    A pintura dos rostos na parede tornou-se um jogo de prazer, de cumplicidade que ultrapassava os limites da relao entre professor e aluno, em que o fazer mera obrigao recompensada com a atribuio de uma nota.

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    A arte representa uma atividade de troca que no pode ser regulada por nenhuma moeda, nenhuma substncia comum: ela distribuio de sentido em estado selvagem uma troca cuja forma determinada pela forma do prprio objeto, e no pelas determinaes que lhe so exteriores. A prtica do artista, seu comportamento enquanto produtor determina a relao que ser estabelecida com sua obra: o que ele produz, em primeiro lugar, so relaes entre as pessoas e o mundo por intermdio dos objetos estticos. (Bourriaud, 2009, p.59)

    Havia um exerccio conjunto de pensar a forma. As imagens que eles cediam eram significativas a cada um deles, cada uma continha uma histria, era um recorte de uma lembrana. Assim, a parede foi se constituindo de memrias, onde as histrias se cruzavam e uma nova trama era tecida, uma nova histria era constituda. Traando assim uma cartografia sentimental (Rolnik,1989), criando vnculos afetivos com o espao, com o grupo que vivenciou a experincia e com o grupo que tambm se via ali na parede atravs da experincia do outro.

    E, assim, os vnculos foram intensificados, tendo como mote gerador a experincia esttica, criando prticas artsticas correspondentes, isto , uma forma de arte cujo substrato dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o encontro entre observador e quadro. A elaborao coletiva de sentido (Bourriaud, 2009, p.21).

    A experincia com os rostos nas paredes foi interrompida, o consenso se desfez, e no pudemos conclu-la. E num belo dia fomos surpreendidos com o apagamento das imagens pintadas: Nossa, hoje eu quase chorei na hora da sada... Estavam pintando a parede... Nossa, professora, todo nosso trabalho sendo destrudo... To triste!!! (Leticia Barreto, 2012).6

    Ao remover as imagens dos alunos da parede, no se removeu somente a pintura, mas tambm um pouquinho de cada um, a sua relao de pertencimento, as marcas que exibiam orgulhosamente na parede da escola; na escola que os marca muitas vezes com aes irrefletidas, negando a possibilidade de existir frente a um outro, atravs da articulao de signos (Lima, 2011, p.188).

    Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera presena no espao: ela se abre ao dilogo, discusso (Bourriaud, 2009, p.57). Assim, ao refletirmos sobre a ao, refletimos tambm sobre o lugar da arte no consciente das pessoas, a mesma ao que na rua validada, na escola apagada. A arte na rua pode acontecer, na escola ela negada. Na rua a ao arte, e na escola o que ? No deveria ser uma relao inversa? A escola no deveria ser o espao democratizador das experincias estticas, o local do encontro das criaes artsticas, do nascimento da arte?

    Compreendendo o carter efmero dessa produo, e com o intuito de valid-la perante o poder institucionalizado na escola, essa ao transformou-se em projetos; em projetos que foram validados pela Secretria Estadual da Educao, e que foram executados no primeiro semestre de 2013. So eles:

    6 Aluna em depoimento ao ver as pinturas sendo apagadas, via Facebook, em 22/03/2012.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 19

    1) Projeto de interveno nas paredes internas da E. E. Olga Cury (Prodesc cdigo do projeto: 08029/2012).

    Imagem 5: Croqui ilustrativo.

    2) Projeto de ocupao do muro da E. E. Olga Cury (Prodesc cdigo do projeto: 08022/2012).

    Imagem 6: Croqui ilustrativo.

    Para perceber, o espectador ou o observador tem que criar a sua experincia. E a criao deve incluir relaes comparveis s vivenciadas pelo produtor original (Dewey, 2010, p.137). Sendo assim, essas propostas so tentativas de proporcionar aos alunos uma experincia real, tirando-os do formato A4 que a folha do caderno de desenho nos impe, da materialidade que nos concedida para a ao expressiva dentro da escola, pois sem um ato de recriao, o objeto no percebido como uma obra de arte (Dewey, 2010, p.137).

    Ao estudar a estrutura esttica da ao desenvolvida na escola, buscando fundamentao terica para a mesma na produo cientifica e atravs de aes poticas que dialogam com a proposta, podemos dizer que a pintura dos rostos pintados nas paredes entre as salas de aulas apresenta caractersticas autorais originais ao materializar o corpo do interator na obra de arte. Na obra de Adinolfi e de Nador, a materializao do corpo do interator se faz atravs dos gestos deste que se unem aos gestos do artista na construo coletiva do objeto esttico. J na ao da escola, as marcas do interator o seu prprio corpo materializado na obra, sendo o corpo do interator o prprio objeto esttico. A noo da insero do outro no somente um tema. Ela absolutamente essencial para a compreenso formal do trabalho (Bourriaud, 2009, p.73). Sendo assim, sem insero do aluno interator, no h obra, pois a obra s existe porque o aluno se permite ser a obra.

    Porm, a ao na escola ainda no est concluda. O contato com o artista e com as obras relacionais possibilitaram a reflexo e a ampliao da experincia em projetos que possibilitaro um exerccio maior com a experincia esttica, ampliando as relaes do aluno com a arte.

    Sendo assim, os projetos relacionais dentro da escola podem oportunizar a participao de todos, e o eu no sei pode ser driblado por um processo de experimentao que viabiliza ao adolescente

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 20

    inserir-se em produes significativas, prximas s produes de artistas renomados contemporneos, propiciando a ele o encontro com a arte a partir da vivncia e da experimentao de processos no estereotipados. O aluno pode, assim, tornar a arte um produto de um esforo consciente (Lowenfed; Brittam, 1977, p.337) e a intermediadora de relaes humanas.

    Referncias bibliogrficas

    29 BIENAL. Catlogo. So Paulo: 2010.

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  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 21

    No me proteja do que eu quero!1Parangoleando a formao dos professores de Arte

    Ana Luiza Bernardo Guimares2

    IntroduoO artista, o papel dele, declanchar no participador, que o ex-espectador, o estado de

    inveno. O artista declancha no participador o estado de inveno [...] Eu declancho o grande estado de inveno [...] as pessoas normais se transformam em artistas plsticos [...] eu declancho [...] eu no me transformei num artista plstico, eu me transformei num

    declanchador de estados de inveno.Hlio Oiticica (1985)

    Hlio Oiticica (Rio de Janeiro, 1937-1980), artista declanchador3 de estados de inveno, movido pela legenda experimentar o experimental, potencializa na arte seu exerccio maior de liberdade: proposies poticas que se desligam da esttica tradicional e se descolam do que permanente e durvel, como a moldura na pintura e o pedestal na escultura, a utilizao do suporte de representao, a exposio em espaos convencionais, como museus e galerias de arte, a dicotomia obra-pblico (Frange, 2006).

    Percorrendo as trilhas de sua produo potica, percebe-se que as experincias do artista, especialmente na fase final de sua jornada, se desenvolveram em torno da questo da participao do pblico com a obra, sua inter-ao, meio pelo qual questionava e ainda questiona, se pensarmos na reverberao de suas obras em ns os papis sociais do artista e o status da obra de arte. A

    1 O ttulo deste artigo faz aluso obra da artista estadunidense Jenny Holzer, que em 1982 apresentou ao pblico frases provocadoras em um painel de LED, em Nova York, como Protect me from what I want [Proteja-me do que eu quero], intervindo no cenrio contemporneo e conturbado da metrpole. Aqui, entretanto, a frase torna-se uma solicitao intencional que busca no apenas provocar o leitor, mas desvelar a inteno da autora.

    2 Professora do Departamento de Artes Visuais das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO). Doutoranda em Educao pela Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (2012). Mestre em Educao pela mesma instituio (2010). Possui especializao em Artes para professores do Ensino Fundamental e Mdio pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp) e Programa Redefor (2012).

    3 Declanchar, do francs, dclencher, abrir a porta tirando a tranca ou levantando o trinco. No portugus, poderia ser traduzido como destrancar, desencadear, dar incio , provocar (Houaiss, 2009).

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 22

    essncia de sua produo consistia em propor experincias que potencializassem o alargamento do ser/estar no mundo, gerando no outro a redescoberta de si tambm como produtor de arte.

    Para Hlio Oiticica, essa transformao do usual objeto artstico instigaria no outro uma metamorfose, uma vez que se esperava do participante uma disponibilidade para a experincia, uma liberdade, uma improvisao capaz de conduzir-lhe ao encontro consigo mesmo (Tessler, 2013). A procura daquilo que Oiticica chamou de suprassensorial4visava uma dissoluo dos hbitos cristalizados de cada participante, para que este redescobrisse em si a capacidade criadora, como afirma:

    Cheguei ento ao conceito que formulei como suprassensorial [...] a tentativa de criar, por proposies cada vez mais abertas, exerccios criativos, prescindindo mesmo do objeto tal como ficou sendo categorizado no so fuso de pintura-escultura-poema, obras palpveis, se bem que possam possuir este lado. So dirigidas aos sentidos, para atravs deles, da percepo total, levar o indivduo a uma suprassensao, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para a descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano. (Oiticica apud Brett, 1992, p.135; grifos nosso)

    Dentre todas as proposies de Oiticica, precisamos destacar a que se refere ao Parangol,5 um conjunto de capas, bandeiras, barracas e estandartes, fabricados pelo artista e confeccionados com lam, gaze, pedaos de tecido, plstico, juta, sacos entre outros materiais. Com os parangols, o pblico/participador penetra nas obras e envolvido por elas, veste-as, experimenta, dana, cria, sente-se nelas.

    Em Parangol vemos a fuso entre cor, corpo, dana, poesia e msica em uma manifestao coletiva. Qualquer um pode usar um parangol, ser o motor da obra, fazer a obra acontecer e, de certa forma, assumir para si a crtica inserida na mensagem que a reveste. Essa proposio, realizada a partir de 1964, satisfazia a uma aspirao mxima do artista: a total interao entre a obra e o pblico, e por esse acesso, uma estreita ligao entre a vida e a arte.

    Para Fernandes (2009, p.24):

    Parangol a proposio com que Oiticica formula sua arte ambiental. Aqui as cores j no esto mais contidas, mas soltas, envolvendo o corpo que as faz fulgurar no espao por evolues de dana. A cor passa do campo do sensvel para integrar o da tcnica e expresso. E o corpo, por sua vez, antes resumido posio de receptor da obra, de espectador, passa agora a ser o gerador da mesma.

    As obras de Oiticica, longe de serem dadas pura apreciao, so antes convites para vivncias, espaos/movimentos de proposio do artista ao participante, o ex-espectador, que potencializado por essa proposio, pode adentrar os estados de inveno. O artista, ento, no se contenta em deter a autoria da obra, ao contrrio, torna-se um propositor, um detonador da obra no outro, e por isso mesmo, um militante que resiste conformao uma forma de escape do esprito de manada que, obstinadamente, trabalha para nos enquadrar (Luft, 2004).

    Esse conceito de inveno, proposto por Oiticica, abrange o descobrir e o experimentar; demanda correr riscos, escapa da captura do bvio para lanar-se em experimentaes, para estar em constante

    4 O suprassensorial era constitudo de uma srie de exerccios de criao, de experincias abertas em que o objeto no era mais do que um pretexto, e os cinco sentidos deveriam ser despertados.

    5 Gria carioca que pode ser entendida, entre outras coisas, como conversa fiada, o que que ?, o que est rolando ou como vo as coisas?.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 23

    estado de inveno, isto , de desaprendizagem permanente, como argumenta Virgnia Kastrup (1999, p.152):

    O melhor aprendiz no aquele que aborda o mundo por meio de hbitos cristalizados, mas o que consegue permanecer sempre em processo de aprendizagem. O processo de aprendizagem permanente pode, ento, igualmente ser dito de desaprendizagem permanente. Em sentido ltimo aprender experimentar incessantemente, fugir ao controle da representao. tambm, nesse mesmo sentido, impedir que a aprendizagem forme hbitos cristalizados.

    Desaprender, sob essa tica, uma ao intencional que dialoga intrinsecamente com o cenrio do ensino/formao de professores de Arte, uma vez que esse desapegar-se de hbitos cristalizados quando transformados em meras escoras a respaldar aes infundadas e inertes de significado implica uma ao de deslocamento no espao/tempo educativo. Estar em estado de inveno significa compreender que

    [...] nada est garantido. Nada desde sempre nem para sempre. Tambm no h um mtodo nico nem receitas infalveis. O desafio no capturar a ateno do aluno para que ele aprenda, mas promover nosso prprio aprendizado da ateno s foras do presente, que trazem o novo em seu carter disruptivo. Pois ensinar , em grande parte, compartilhar experincias de problematizao. Estas podem ser fugazes, emergindo no campo da percepo e se dissipando em seguida. Mas imprescindvel a manuteno de sua potncia para a inveno de novas subjetividades e de novos mundos. (Kastrup, 2005, p.1287)

    Nesse contexto, estar em desaprendizagem, ser/estar em estado de inveno significa inquietar-se. O inquietar provoca e provocado pela ao investigativa, pela reflexo constante e pelo mergulho no equilbrio entre conservar/transformar, pelo desejo de desaprender. E essa busca acionada pela inquietude e aquilatada pela reflexo age na essncia da pessoa/professor, no mago da sua integridade, gerando deslocamentos, rupturas e continuidades um movimento que s se faz possvel quando arte-vida-educao se fundem.

    As relaes entre a potica de Oiticica e a formao de professores de Arte reflexivos so o mote do presente artigo. A aposta consiste em provocar atravessamentos de arte, vida e formao de professores a partir da partilha de conceitos como o de professor reflexivo (Schn, 2000), formao em Arte a partir de modos de pensar artisticamente (Eisner, 2008), artista/pesquisador/professor (Irwin, 2008) e experincia (Dewey, 2010), entendendo a formao do professor de Arte como a de algum capaz de transgredir a realidade em que vive, assumindo-se como um sujeito contemporneo que produz Arte, ensina Arte e pesquisa sobre e em Arte (Lampert; Nunes, 2012).

    Evitando cair nos modismos ou na discusso sobre os modos de ser professor de Arte, o que se espera traar pontos de luz para uma formao docncia que se faa artstica, em que a arte seja o princpio maior da liberdade, uma docncia-ncleo de transformao de valores e atitudes. Assim como para Oiticica o artista um propositor, tambm no ensino de Arte, mais especificamente, na formao dos professores de arte, espera-se que estes sejam propositores, declanchadores, desaprendizes, reflexivos de sua prxis para poderem fazer suas prprias escolhas, percorrerem seus prprios caminhos de formao e de (des)aprendizagem e, assim, estarem em constante estado de inveno.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 24

    Criando estados de inveno: o Parangol Pamplona voc mesmo faz/ o Parangol Pamplona a gente mesmo faz6

    Inveno no se coaduna com imitao: simples, mas bom lembrar.Hlio Oiticica (1970)

    Pensar a questo da formao dos professores de Arte , no mnimo, tarefa desafiadora, uma vez que a especificidade da rea trabalha tanto com aspectos subjetivos quanto objetivos do conhecimento e da experincia artstica, e muitas vezes est ancorada muito mais em dvidas do que em certezas, desafia, levanta hipteses e antteses em vez de confirmar teses (Frange, 2003, p.36).

    A formao contempornea dos professores de Arte precisa buscar nos fundamentos da educao, da Arte e do seu ensino, elementos para uma epistemologia da formao em Arte, como j proclamava, desde a dcada de 1980, a professora Nomia Varela,7 atravs da pertinente reflexo:

    Mas, que devemos pensar da formao do arte-educador? Quais as relaes da arte com a educao que podero melhor delimitar o lugar e a natureza do processo de formao do arte-educador? O que d mais a pensar sobre esta questo e que ainda no foi pensado? Que necessrio desaprender para encontrar o caminho mais sbio que nos leve elaborao mais rica do processo de formao do arte-educador? (Varela, 1986, p.12; grifo nosso)

    Dentre tantas questes levantadas por Varela, penso que a primeira que demanda a ser analisada se refere a conceber a docncia em Arte como uma docncia para a preparao de artistas (Read, 1982), no tanto no sentido literal da palavra produtores de arte , mas, principalmente, na acepo de professores que dilataram sua capacidade de sentir, idear, perceber, imagizar em sua prtica a fim de melhor-la, aquilat-la, como define Corazza (2012):

    Docncia que, ao modo de seu artfice, poderia ser chamada artstica. Que, ao se exercer, cria e inventa. Docncia que artista. Que, ao educar, reescreve os roteiros rotineiros de outras pocas. Desenvolve a artistagem de prticas pedaggicas ainda inimaginveis e, talvez, nem mesmo possveis de serem ditas. Prticas que desfazem a compreenso, a fala, a viso e a escuta das mesmas coisas, dos mesmos sujeitos, dos mesmos conhecimentos. Desassossegam o sossego dos antigos problemas e das velhas solues. Estimulam outros modos de ver e ser visto, dizer e ser dito, representar e ser representado. Em uma expresso: dispersam a mesmice.

    Esses professores que levam a docncia a um espraiamento de seus prprios horizontes tecem uma trama que se vale da urdidura do processo de criao, uma vez que assumem o seu trabalho como um processo de ir e vir, de rascunhar, de rabiscar, voltar a desenhar-se (Loponte, 2007, p.236). E para isso no h manuais ou receitas prontas!

    Na ao de esquadrinhar-se constantemente, os professores comeam a questionar sobre e como tm ensinado, buscando uma relao maior entre aquilo que pensam e realizam, precisando da vida e do viver para que o ensino/aprendizagem de arte de efetive. Nesse sentido, Rita Irwin (2008,

    6 Parangol Pamplona um trabalho de Hlio Oiticica de 1968, produzido para uma exposio na cidade de Pamplona, Espanha (1972). O subttulo em questo se refere ao trecho da msica Parangol Pamplona de Adriana Calcanhoto, no CD Martmo (1998).

    7 Precursora dos primeiros cursos de formao inicial e continuada para arte/educadores realizados no Brasil.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 25

    p.91) afirma que esses professores so habitantes das fronteiras,8 uma vez que ao re-criarem, re-pesquisarem e re-aprenderem modos de compreenso, apreenso e representao do mundo [...] integram saber, ao e criao, uma existncia que requer uma experincia esttica encontrada na elegncia do fluxo entre intelecto, sentimento e prtica.

    Irwin (2008) afirma que possvel integrar theoria, praxis e poesis, em uma articulao entre teoria/pesquisa/ensino/aprendizagem/arte/produo advindas do trabalho do a/r/t, artist-research-teatcher [artista-pesquisador-professor]. Para ela, ensino, pesquisa e produo so que-fazeres que se coadunam, se entrelaam, se costuram e que precisam ser desgnio e propsito na formao docente, uma vez que essas esferas no so feitas em pequenas caixas, mas vividas e adensadas de significados.

    A esse respeito, Bredariolli (2011, p.72) assevera que

    A/r/tografistas vivem suas prticas, representando sua compreenso, e questionando seus posicionamentos perante essa mesma prtica, numa integrao entre saber, prtica e criao, estabelecendo uma experincia esttica que gera significados ao invs de fatos, realizaes que so providas de sentido para o professor e o aluno e no uma reproduo mecnica de uma ao pr-elaborada, como aquelas definidas em algum material didtico, por exemplo.

    Nesse contexto, a/r/tografistas so todos aqueles que buscam liquefazer9 os limites dos conceitos enraizados que distanciam a teoria, a prtica e a prpria produo artstica da vida, potencializando em si e no outro estados de inveno, e reivindicando a desaprendizagem como meta: um processo contnuo de reflexo sobre aquilo que j se sabe, mas tambm de pesquisa sobre o que se almeja conseguir.

    Assumir-se professor de Arte em constante estado de inveno e esta no combina com a imitao, j dissera Oiticica consiste em investigar sua prxis, compreendendo que ela se refere muito mais a uma atitude que o faz diferir da cotidianidade de si mesmo no negando que existam formas e modos de ser docente, mas sim encontrando brechas para escapar da cristalizao das nossas prticas pedaggicas e estticas para desencadear devires, como afirma Corazza (2007, p.22):

    Os educadores-artistas so tomados em segmentos de devir-simulacro, cujas fibras levam deste devir a outros, transformam estes devires naquele, atravessam limiares de poderes, saberes, subjetividades [...] quando os professores-artistas compem, pintam, estudam, escrevem, pesquisam, ensinam, eles tm apenas um nico objetivo: desencadear devires.

    8 Por fronteira, Irwin entende o espao de sutura de opresses mltiplas e um espao potencialmente libertador por meio do qual se pode migrar a uma nova posio de sujeito [...] [funcionando] como um espao onde culturas entram em conflito, contestam e reconstituem umas s outras (Smith, 1993 apud Irwin, 2008, p.90).

    9 De certa forma, retomo aqui a metfora de Bauman (2007) acerca da liquidez como princpio da ps-modernidade, representando a dissoluo dos valores advindos da filosofia iluminista em prol de um homem que, livre de suas amarras, pode alcanar a mais completa felicidade. Para ele, a liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida lquida, assim como a sociedade lquido-moderna, no pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo (Bauman, 2007, p.7). A ideia que o professor de Arte, livre dos ranos que h muito circunscrevem sua prxis e sua formao, possa finalmente escolher seus prprios caminhos, consciente da epistemologia que embasa suas concepes e aes.

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    Estar em estado de inveno tambm estar em devir, um sentimento de inacabamento que nos fora a (re)aprender, uma necessidade ou parafraseando Foucault (apud Deleuze, 1992, p.131): um pouco de possvel, seno eu sufoco. Entretanto, uma docncia que se faz artista no significa esquecer as mazelas que a envolvem, como as inadequadas condies de trabalho, os salrios incompatveis ou os currculos engessados, mas buscar formas de resistncia (Foucault, 2004), dispositivos respirveis para nossa subjetividade, devassar um permanente estado de inveno, assumindo que a cena docente feita de dificuldades, dissonncias, resistncias, frustraes, erros, acertos, mudanas de rumo, dvidas, incertezas, conquistas, sucessos (Loponte, 2007, p.236).

    Uma docncia que se faz artista e investigativa necessita conhecer seus desdobramentos, apreender a matria de sua ao, reconhecer procedimentos e utiliz-los em toda sua potencialidade. Trocando em midos, implica um saber/fazer que enquanto se faz se aprende e que enquanto se aprende, se faz. E nisso a docncia, a formao de professores de Arte, tem muito a aprender com os artistas e os meandros de sua linguagem.

    A esse respeito, Eisner (2008) considera que a fatura artstica e seus modos especficos de pensar so relevantes para no dizer necessrios ao aprendizado dos estudantes, mas o so sobremaneira para pensarmos um currculo de formao de professores que se paute pela relao entre pesquisa-produo artstica e atuao educativa. O autor aponta que examinar uma concepo de prtica enraizada nas artes pode contribuir para o melhoramento dos meios e dos fins da educao (Eisner, 2008, p.6), uma vez que urge recompor, atravs das formas de pensar que a arte evoca, a concepo daquilo que a educao poder consumar.

    Tomando de emprstimo os estudos de Eisner (2008), o que se prope pensar tambm a formao do professor de Arte a partir da prpria arte, daquilo que ele chamou de formas qualitativas de inteligncia enraizadas no artstico. Para tanto, o pesquisador descreve seis delas: (a) a capacidade de compor relaes qualitativas que satisfaam algum propsito; (b) a formulao de objetivos; (c) a relao forma-contedo; (d) os limites do conhecimento no so definidos pelos limites da linguagem; (e) a relao entre o pensamento e o material com que se trabalha; e (f) os motivos.

    Sobre a primeira lio, a capacidade de compor relaes qualitativas que satisfaam algum propsito, o autor explica que assim como o artista necessita experimentar as relaes de qualidade que surgem em sua produo, emitindo juzos de valor sobre elas, tambm o professor necessita fazer escolhas, julgar e tomar decises a partir de um determinado objetivo, sempre em benefcio de algum propsito maior. A ideia que as artes possam ensinar a agir e a julgar na ausncia de regras, a confiar nos sentimentos, a prestar ateno nas nuances e a apreciar as consequncias das escolhas, a rev-las e depois fazer outras escolhas (Eisner, 2008, p.10) o que pressupe um dilogo intenso com o conceito de professor reflexivo, dissertado mais adiante.

    A segunda lio, formulao de objetivos, nos instiga a pensar que assim como no campo artstico, os fins podem seguir os meios, os acasos podem sugerir fins, produzindo pistas que podem ser seguidas. Consoante a essa lgica, podemos adotar a ideia que a formao e atuao de professores podem perseguir um propsito flexvel,10 podem ir alm do que est previsto nas ementas

    10 O propsito flexvel (Dewey, 2011) oportunista, pois se baliza nas caractersticas emergentes que aparecem em um dado contexto, dentro de um campo de relaes. Ele no est rigidamente agrupado a objetivos predefinidos, mas pode se modificar se melhores oportunidades aparecerem (Eisner, 2008).

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    das disciplinas ou nos planos de aula, podem explorar a surpresa e conservar estados de inveno, abrindo-se incerteza e desaprendizagem.

    O terceiro ensinamento diz respeito relao forma-contedo, que pode ser entendida como a relao entre teoria e prtica, entre aquilo que professo e o que realizo, pois a forma como uma coisa dita parte e parcela do que dito (Eisner, 2008, p.11).

    No campo da visualidade podemos dizer que a forma d-se a ver pelo contedo e o contedo s se expressa pela forma. Ligados, imantados, dialticos, forma-contedo podem muito bem ser metforas para a relao teoria-prtica: teoria que se vincula aos problemas reais que surgem na prtica e a prtica sendo orientada pela teoria (Maia; Scheibel, 2009). Redimensionadas uma na outra, ambas no se separam ao menos no deveriam , uma vez que pensar/conhecer/agir/refletir parecem ser faces complementares de uma mesma moeda.

    Considerando que as relaes de forma-contedo e teoria-prtica so indicotomizveis, o desafio que se coloca na formao dos professores de Arte justamente o alinhamento entre o que se diz e o que se faz de tal forma que a ao seja refletida, pensada, articulada.

    A quarta lio traz tona a concepo de conhecimento tcito (Polanyi, 1967) abordada com mais afinco posteriormente , uma vez que avizinha-se da ideia de que nem tudo o que conhecvel pode ser articulado de forma proposicional. A arte, por expressar significado, no se limita quilo que pode ser afirmado, inventando outros sentidos. A formao de professores, nessa tica, no precisa se limitar a andarilhar pelos caminhos j sabidos, mas pode se aventurar pelas trilhas do sensvel, do inventivo, do singular e do plural, de modo que se possa criar outras vises de educao, outros valores a encaminhar sua concretizao, at mesmo porque

    Um dos pontos-chave da nova proposta pedaggica encontra-se na alterao do processo de ensino e no apenas na alterao do discurso a respeito dele [...] no basta transmitir ao futuro professor um contedo mais crtico; [...] preciso romper com o eixo da transmisso-assimilao em que se distribui um saber sistematizado falando sobre ele. No se trata de falar sobre, mas de vivenciar e refletir com. (Romanowski; Martins, 2009, p.175)

    O quinto exemplo que a arte nos ensina, a relao entre o pensamento e o material com que se trabalha, aborda as imposies de cada material; um violino, por exemplo, produzir algumas nuances que uma flauta doce jamais alcanar; as aguadas de uma aquarela nos permitem aguar qualidades visuais diferentes do trabalho com a tinta leo... Cada material nos d a pensar um procedimento diferente. Assim como o artista precisa experimentar as possibilidades de cada material, tambm o professor de Arte precisa compreender a diversidade que o cerca, alargando seus horizontes em busca de outras possibilidades de atuao. Essa lio, em especial, aponta para como os cursos de formao desenham seus currculos e os tipos de experincia que propiciam aos seus aprendizes, o que requer no s uma mudana de perspectiva, relativa aos nossos objetivos educacionais, mas tambm uma mudana no tipo de tarefas de empreendimento que ns convidamos nossos alunos a fazer (Eisner, 2008, p.11).

    Como sexta lio, chegamos ideia de motivo. Eisner (2008, p.11) afirma que nas artes os motivos tendem a ser assegurados pelas satisfaes estticas que o trabalho em si torna possvel, que tambm pode ser entendido como o desejo, como o motor principal de ser professor de Arte, de abraar a docncia com todos os seus problemas e com todas as suas qualidades.

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    Essas formas de pensar a formao dos professores de Arte tomam de emprstimo outro conceito: o de que a arte e sua fatura podem ensinar a aprender fazendo, como pontua Dewey (1959a, p.203-204):

    O saber que primeiro se adquire e que fica mais profundamente gravado o de como fazer as coisas como andar, falar, ler escrever, patinar [...] indefinidamente. [...] Quando a educao, sob o influxo de uma concepo escolar do saber, que tudo ignora, exceto fatos e verdades cientificamente formulados, no reconhece que a matria educativa primria ou inicial est sempre em uma manifestao de atividade que implique o uso do corpo e a manipulao de material, a matria educativa isolada das necessidades e objetivos do educando e converte-se, destarte, exclusivamente, em coisa a ser decorada e reproduzida quando o exijam. Ao invs disto, o conhecimento do curso natural do desenvolvimento sempre se vale de situaes que implicam aprender por meio de uma atividade, aprender fazendo.

    Para Dewey (1959a), a educao no se descola da vida, assim como a arte no se aparta dela. A formao de professores e a prpria educao deveriam ter como mote o processo de desenvolvimento do ser humano e no somente o produto, possibilitando a reconstruo da experincia como algo que potencializa a operao reflexiva, culminando com uma aprendizagem efetiva.

    Dewey usa o termo experincia no como um mero fazer, mas como uma ao refletida, intencional, planejada,

    que requer a percepo dos fins para que seja possvel julgar os meios e os produtos a serem criados. A experincia de conhecimento s de fato experincia quando aquele que se pe a conhecer tem a oportunidade de perceber integralmente o objeto a ser conhecido, de estabelecer relaes diversas com o que j sabe, com outras experincias, com signos j construdos e com hipteses que poder ento produzir. Requer uma ao ativa do sujeito que aprende e um pensar e agir compreendendo o todo. (Christov, 2011, p.5-6)

    Para Dewey (2010), a experincia no algo estilhaado, irreal ou descontnuo, mas sim uma totalidade, porque abrange a singularidade de cada sujeito que aprende, as interaes que realiza em seu contexto cultural, as relaes que estabelece entre seus saberes, seus signos, seus valores e as relaes que estabelece produzindo sentidos sobre os novos desafios postos pela experincia (Christov, 2011, p.6).

    Dentro desse contexto, a experincia no se mede em aspectos quantitativos, mas sim qualitativos: o que importa a qualidade da experincia que nos passa, uma vez que a experincia s se efetiva quando assenta caractersticas ativas entendida como a tentativa de e passivas o sofrimento ou o xtase, de certa forma , pois a ideia que fazemos alguma coisa ao objeto da experincia, e em seguida ele nos faz em troca alguma coisa: essa a combinao especfica [entre eles] (Dewey, 1959a, p.152).

    Segundo Jorge Larrosa (2004, p.161), a palavra experincia vem do latim experiri, provar. A experincia , em primeiro lugar, um encontro ou uma relao com algo que se experimenta, que se prova e continua explicitando que experienciar traz na sua raiz semntica as ideias de travessia e de colocar-se em perigo, em constante estado de inveno, uma vez que

    A palavra experincia tem o ex do exterior, do estrangeiro, do exlio, do estranho e tambm o ex da existncia. A experincia a passagem da existncia, a passagem de um ser que no tem essncia ou razo ou fundamento, mas que simplesmente ex-iste de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemo, experincia Erfahrung, que contm o fahren de viajar. E do antigo alemo far tambm deriva Gefahr, perigo, e gefhrden, pr

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    em perigo. Tanto as lnguas germnicas como nas latinas, a palavra experincia contm inseparavelmente a dimenso de travessia e perigo. (Larrosa, 2004, p.162)

    Essa experincia tambm pode ser entendida como um divisor de guas na formao do professor, como algo que nos envolve em forte concentrao, como se absorvidos pelo momento ou pelo objeto de arte, inundados por uma sensao de revelao, de falta de articulao e pelo despertar de um apetite investigativo; a experincia como algo esclarecedor que nos leva a outro patamar de relao, de compromisso com a prpria formao (Iavelberg, 2012).

    Luciana Bredariolli (2011) afirma que a experincia acontece na interao do sujeito com os acontecimentos e passagens de seu contexto, resultando em um processo de aquilatamento de valores e significados

    passados para uma reconsiderao dos acontecimentos presentes, movido pela interao entre o fazer e o receber, pelo dilogo consciente entre ao, consequncia e sua percepo. A verdadeira experincia, assim concluda, dotada de qualidade esttica, concretizando-se, de acordo com Dewey (2010), sob o mesmo padro de uma obra de arte. Tal experincia se ope monotonia, reproduo, ao mecanicismo, repetio, arbitrariedade, ausncia de objetivo, e integrada pela atuao conjunta da prtica, da emoo e do intelecto. (Bredariolli, 2011, p.70)

    Assim, uma experincia s se torna experincia quando h uma relao ntima e necessria entre os processos de nossa experincia real e a educao (Dewey, 2011, p.27). Ter uma experincia e proporcionar uma experincia perpassam pela escolha e, ao mesmo tempo, pela capacidade de interrupo da massificao da prtica e da negao da sndrome de Gabriela, uma vez que

    requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinio, suspender o juzo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ao, cultivar a ateno e delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentido, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter pacincia e dar-se tempo e espao. (Larrosa, 2004, p.160)

    Essa capacidade de fazer escolhas, de emitir juzos, de estabelecer relaes de qualidade, configuram o cerne do professor reflexivo e inquietador de pensares e agires sobre sua prtica, um professor que no se deixa conformar pela prxis imitativa, pois sabe que esta se configura

    pelo estreitamento do terreno da imprevisibilidade, tornando imutveis tanto as finalidades quanto os modos de agir, vez que independentemente das necessidades, limitaes e possibilidades apresentadas pelos sujeitos e contextos, j se define, de antemo, o que fazer e como fazer, perdendo-se, assim, a incerteza e a aventura do processo criador, reduzindo o fazer repetio, mera imitao de aes criadas por outrem. (Mattar, 2011 p.171)

    Ao contrrio, o professor que investiga sua prpria prtica, concebe-a como artstica e sabe que ela no est no manual, presa a uma frmula. Antes, passa por estados de inveno e de experimentao produzidos por cada situao e por cada professor. E lidar com essa capacidade de improvisar e de fazer escolhas necessita de um perfil docente reflexivo, isto , um professor questionador que, baseando-se na vontade, na intuio e na pesquisa (experimentao) busca solues para os problemas, uma vez que pensar o esforo intencional para descobrir as relaes especficas entre uma coisa que fazemos e a consequncia que resulta, de modo a haver continuidade entre ambas (Dewey, 1959a, p.159).

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    Para Dewey, aguar a maneira de se pensar o que ele denomina de pensamento reflexivo, ou seja, a espcie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e dar-lhe considerao sria e consecutiva (1959b, p.13), diferentemente do pensamento rotineiro guiado pelo impulso, hbito ou submisso autoridade. Essa ao detalhada e intencional torna o professor o intelectual responsvel por desenvolver sua prpria capacidade reflexiva, mediante anlise de sua prxis.

    Esse pensamento reflexivo, esse estado permanente de dvida e de anlise, possibilita a ao de uma finalidade consciente, libertando o homem de um pensamento rotineiro e, por isso mesmo, previsvel. O pensamento reflexivo d ao professor a capacidade de planejar, de projetar tendo em vista uma realidade futura.

    Projetar assume o sentido de escolha e de busca consciente, de uma postura de quem quer aprender mais e por isso se prope a desaprender as verdades tidas como absolutas e as mentiras tidas como incertas , de quem procura investigar a curiosidade do mundo, de quem parangoleia a prpria existncia, constituindo-se em permanente estado de inveno.

    Pensar reflexivamente alavanca a inveno e o planejamento. Atravs da reflexo constante, o professor aperfeioa e antecipa as consequncias resultantes de suas aes seja para evita-las ou para respald-las. Esse professor, ao se defrontar com situaes de incerteza, contextualizadas e nicas, recorre investigao como uma forma de decidir e de intervir praticamente em tais situaes, fazendo emergir novas concepes para a prtica (Schn, 2000).

    Ser questionador e reflexivo, ter capacidade para julgar e tomar decises se configura, desta forma, como uma possibilidade de conquista de autonomia frente racionalidade tcnica e a massificao da prtica. Compartilho com Larrosa (2002, p.21) a ideia que pensar no somente raciocinar ou calcular ou argumentar, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.

    Pensar reflexivamente d significao s coisas. Enriquecer as coisas com um sentido significa, tambm, uma vivncia efetiva da palavra que se professa no exerccio cotidiano do ambiente escolar (Machado, 2000). Sem esse afinado compasso, corre-se o risco de tornar incuo o cultivo dos valores fundamentais construo e consolidao do arqutipo humano. Nada pode ser mais insalubre na formao do jovem do que conviver com o discurso elaborado por valores e a prtica opressiva nos procedimentos escolares. Faa o que eu digo, mas no faa o que eu fao no pode ser uma mxima a se efetivar nos bancos escolares e nas aes docentes. Nada parece menos ntegro que perceber-se marionete de um discurso que ora beneficia uns, ora outros, porque no se solidifica nas aes cotidianas.

    Schn (2000) partilha das ideias de Dewey (2010) acerca do pensamento reflexivo, valorizando a experincia e a reflexo na experincia, mas tambm trazendo tona a concepo de conhecimento tcito (Polanyi, 1967), que pode ser compreendido como um saber mais do que se pode dizer, um conhecimento na prtica. Para ele, o ensino deve ser balizado pela epistemologia da prtica, isto , na valorizao da prtica profissional como momento de construo de conhecimento, atravs da reflexo, anlise e problematizao desta (Pimenta; Ghedin, 2008, p.19).

    O conhecimento tcito manifesta-se na espontaneidade (Alarco, 1996), expressando-se na execuo de uma dada tarefa, sem ter a necessidade de uma reflexo prvia. Mirian Celeste o define como

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    algo que pode ser ainda imprevisvel, como uma mancha de luz. Algo que pode estar na ponta da lngua, mas no sabemos o que at encontrar uma referncia que nos traga a certeza. Algo que faz manejar situaes de incerteza, singularidade e conflito (Martins, 2006).

    Muito embora esse conhecimento na ao mobilize os conhecimentos tcitos, sabe-se que estes no so suficientes para respaldar as situaes que extrapolam o usual. Esse movimento de ir alm do que j se sabe traz em seu cerne trs momentos imprescindveis ao pensamento do professor reflexivo: reflexo na ao, reflexo sobre a ao e reflexo sobre a reflexo na ao.

    Por reflexo na ao podemos entender a ao de surpreender-se e de refletir sobre essa surpresa, procurando reformular o seu modo de ver o problema. Caracterizada pelo processo de pensar sobre o que se faz ao mesmo tempo em que se atua, a reflexo na ao provoca o questionamento estrutural dos pressupostos que balizam nossas aes educativas, redimensionando nosso potencial de desaprendizagem. Para Schn (2000, p.32),

    podemos refletir no meio da ao, sem interromp-la. Em um presente-da-ao, um perodo de tempo varivel com o contexto durante o qual ainda se pode interferir na situao em desenvolvimento, nosso pensar serve para dar nova forma ao que estamos fazendo, enquanto ainda o fazemos.

    Qualquer que seja a esfera de trabalho, as descries do ato de reflexo na ao so sempre construes, tentativas de colocar de forma explcita, e muitas vezes simblica, o conhecimento tcito, em um processo dinmico uma vez que o professor, ao buscar interpretar aquilo que vivenciado, questionando sua prtica, reorientar suas aes no mesmo momento que as vivencia.

    Tanto a reflexo sobre a ao entendida como a anlise que o indivduo realiza a posteriori sobre as caractersticas e procedimentos de sua prpria ao quanto a reflexo sobre a reflexo na ao que busca uma apropriao de teorias sobre o problema a ser investigado so fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento profissional do professor. Para Mattar (2010), nessas instncias que o indivduo toma conscincia dos saberes mobilizados e construdos durante a ao, de modo que o conhecimento tcito se torne consciente e seja acionado quando necessrio.

    Para Perez Gmez (1992, p.103), a reflexo implica na imerso consciente do homem no mundo da sua experincia, um mundo carregado de conotao, valores, intercmbios simblicos, correspondncias afetivas, interesses sociais e cenrios polticos. Nesse sentido, no h neutralidade reflexiva, uma vez que a todo momento nossas concepes e crenas se confrontam com a anlise que realizamos do ato educativo e, por que no dizer, da nossa prpria formao, como tambm afirma Paulo Freire (1998, p.105): desvelando o que fazemos desta ou daquela forma, luz de conhecimento que a cincia e a filosofia oferecem hoje, que nos corrigimos e nos aperfeioamos. a isso que chamo pensar a prtica e pensando a prtica que aprendo a pensar e a praticar melhor.

    No encalo desse pensar reflexivo, Dewey (1959b) estabelece algumas caractersticas essenciais ao professor, quais sejam: (a) abertura de esprito para entender possveis alternativas e admitir a existncia de erros, alocando-se numa atitude de disponibilidade para o novo, o estado de inveno; (b) responsabilidade propriedade de ponderar cuidadosamente as consequncias de uma determinada ao, examinando os efeitos de cada deciso tomada; e (c) empenho de todo o corao que envolve a relao emocional em conjunto com a cognio para mobilizar as atitudes anteriores, envolvendo-se diante dos desafios que surgem nos caminhos.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 32

    Schn (2000) tambm pontua propriedades indispensveis ao profissional reflexivo, tambm denominado por professor pesquisador, como (a) a importncia que confere reflexo e pesquisa, associada sua capacidade de estruturar situaes e problemas relacionados com a sua prtica, tambm entendida como a capacidade de desenvolver o esprito investigativo; (b) a anlise das suas prticas, colocando questes a si mesmo como: O que aconteceu? Porque aconteceu? De que modo eu influenciei o que se passou? Poderia ter sido de outro modo?; (c) a identificao dos aspectos em que precisa aprender, incluindo predisposio para falar e escrever sobre as suas prprias experincias; e (d) a anlise constante de sua atuao nas suas relaes interpessoais, incluindo com os educandos.

    Ser um profissional reflexivo, portanto, traz tona o elemento de um pensar intencional e compromissado na prtica e sobre a prtica. A reflexo consiste em um exame ativo, persistente e cuidadoso de todas as crenas do professor luz dos fundamentos que as sustentam, buscando confrontar teoria e prtica com vistas a uma tomada de deciso. No h um mtodo especfico com seus manuais ou conjunto de tcnicas que podem ser empacotados e comprados pelo professor no jornaleiro da esquina. No h regras ou softwares para ensinar a refletir. H, apenas, a possibilidade de se construir seu prprio parangol, de entrar em constante estado de inveno de sua prpria prtica.

    Consideraes momentneasO artigo ora apresentado se props a pensar a formao dos professores de Arte a partir da

    anlise dos conceitos de educao baseada nas artes (Eisner, 2008), a/r/tografia (Irwin, 2008), experincia (Dewey, 2010) e professor reflexivo (Schn, 2000), tendo como enredo a necessidade de criar estados de inveno (Oiticica, 1985). A aposta era que a formao dos professores de arte e sua atuao precisam ser pensadas a partir do trip produo/investigao/ao.

    A formao dos professores de Arte, quando pensada em um sentido amplo que no se enraza nos subttulos de formao inicial ou formao continuada , pensada como uma formao por toda a vida necessita da prpria vida e do viver para agir em sua forma mais completa. Nesse sentido, a pesquisa e a produo artsticas no podem ser consideradas momentos pontuais, mas precisam dialogar em insistentes atravessamentos reflexivos.

    Destarte, espera-se que o presente artigo possa ter lanado pontos de luz a aclarar uma possibilidade de pensar a epistemologia da formao de professores de arte indissocivel da pesquisa e da produo de formas artsticas, tendo como balizas a aquilatar seus procedimentos a reflexo sobre a prtica e a prpria fatura artstica. E a cada leitor dessas palavras, talvez toque o apelo de Gide (1966, p.21),

    Et quand tu mauras lu, jette ce livre et sors. Je voudrais quil tet donn le dsir de sortir sortir de nimporte o, de la ville, de ta famille, de ta chambre, de ta pense. Nemporte pas mon livre avec toi. [...] Que mon livre tenseigne tintresser plus toi qu lui-mme, puis tout le reste plus qu toi.11

    11 Traduo: E depois que me tiveres lido, joga fora esse livro e sai. Gostaria que ele te desse desejo de sair sair de onde quer que seja, da cidade, da tua famlia, do teu quarto, do teu pensamento. No leves contigo o meu livro. [...] Que meu livro te ensine a te interessar mais por ti do que por ele e ento por todo o resto mais do que por ti.

  • Desafios para a Docncia em Arte: Teoria e Prtica 33

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