fluzz book + e-book

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AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio (Book + e-Book de Augusto de Franco: 2011)

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AUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio

Augusto de Franco, 2011.

Edição preliminar ilustrada sem revisão.

Todas as imagens - colhidas na Internet - foram modificadas e editadas.

A presente versão desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.

Domínio Público significa que não há, em relação a esta versão da obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, esta versão da obra pode ser – na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio / Augusto de Franco. – São Paulo: 2011.

382 p. A4 – (Escola de Redes; 4)

1. Redes sociais. 2. Sociedade. 3. Escola de Redes. I. Título.

Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving.

http://escoladeredes.ning.com

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Fluzz nasceu a partir de reflexões intermitentes do autor durante a última década. Talvez tenha surgido do espanto com a palavra ‘Entidade’, tal como foi usada – com maiúscula – por Jane Jacobs (1961), em Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas: “As inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas...” Difícil saber agora, quase cinco anos após sua morte, tudo que ela queria realmente dizer com ‘Entidade’ (com maiúscula) e ‘relacionamentos vivos’ (que é diferente de relacionamento entre vivos). De qualquer modo, isso foi interpretado aqui como ‘viver a convivência’. Quando vivemos nossa convivência (social) produzimos um novo tipo de vida (humana). Essa é a idéia básica. Tal como as reflexões que o originaram, este é um livro que se repete. Vários capítulos repisam o que já foi dito em capítulos anteriores. Quem não está preparado para a redundância pode ficar incomodado com o estilo recursivo do texto. Uma explicação para isso, baseada no tipo de interação chamado cloning, está no Capítulo 0 – Tudo é fluzz. Mas essa explicação, provavelmente, não será suficiente diante da cultura, ainda predominante, da escassez.

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Muitos tópicos inseridos aqui foram escritos com outros propósitos, em épocas e circunstâncias diversas. Alguns, inclusive, já foram publicados como artigos autônomos ou fizeram parte de outros livros do autor. Isso também é redundância. Quando uma parte do material aqui contido foi escrita pela primeira vez, não havia surgido a idéia de fluzz. Depois que tal idéia surgiu, surgiu também a impressão de que tudo o que já estava escrito, havia sido escrito como prefiguração. Fluzz apenas consumou. A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação, argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based e não p-based). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida e recebeu outros significados, que não têm muito a ver com o programa mal-sucedido do Google, como se pode ver neste livro. No início de cada capítulo estão grafadas em itálico as doze partes de Coda – uma espécie de “código-fonte” de fluzz. Pode-se começar lendo essas partes, fazendo um tour pelo livro antes de começar a leitura. Por último, uma advertência. Fluzz contém material altamente prejudicial às instituições da sociedade hierárquica: às escolas (e ao ensino), às igrejas (e às religiões), às corporações (e aos partidos), aos Estados (e às comunidades imaginárias por eles engendradas, as nações-Estado e suas ideologias produtoras de inimizade no mundo, como o nacionalismo e o patriotismo) e às empresas-hierárquicas. Cabe ao leitor decidir se, mesmo assim, deseja continuar lendo este livro.

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Sumário

Apresentação

Tudo é fluzz | 0

No “lado de dentro” do abismo | 1

No multiverso das interações | A fonte que só existe enquanto fluzz só pode ser conhecida enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela Mundos que se descobrem em rede | O social não é o conjunto das pessoas, mas o que está entre elas É o social, estúpido! | As redes sociais não surgiram com as novas tecnologias de informação e comunicação O nome está dizendo: redes sociais | Redes sociais são pessoas interagindo, não ferramentas É comunicação, não informação | Redes sociais não são redes de informação É interação, não participação | Redes sociais são ambientes de interação, não de participação Padrões, não conjuntos | Os fenômenos que ocorrem em uma rede não dependem das características intrínsecas dos seus nodos Conhecimento é relação social | O conhecimento presente em uma rede não é um objeto, um conteúdo que possa ser arquivado e gerenciado top down A chefia é contra a liderança | Hierarquia não é o mesmo que liderança Nenhuma hierarquia é natural | A escassez que gera hierarquia é aquela introduzida artificialmente pelo modo de regulação

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Poder é uma medida de não-rede | Centralização (hierarquização) não é o mesmo que clusterização Autoregulação significa sem-administração | Em redes distribuídas não se pode diferenciar papéis ex ante à interação Pessoas, não indivíduos | Não podem existir pessoas (seres humanos) sem redes sociais As redes sociais já são a mudança | As redes sociais distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança Aranhas não podem gerar estrelas-do-mar | É inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma organização hierárquica para uma organização em rede No “lado de fora” do abismo | Ficamos do “lado de fora” do abismo quando nos protegemos da interação Inumeráveis interworlds| 2

Highly Connected Worlds | Seu mundo-fluzz é sua timeline Interworlds | A nova internet – interconnected networks – são os incontáveis interconnected worlds Pessoa já é rede | 3

Gholas sociais | Um ghola não é um borg Pessoas são portas | “Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos” Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4

Deformando a rede-mãe | Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas

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Perturbações no campo social | A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo social Destruidores de mundos | Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe Hifas por toda parte | 5

A perfuração dos muros | Quando a porosidade aumentar, os muros vão começar a ruir A construção de “membranas sociais” | Deixar a interação pervadir um sistema não significa propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, não-selecionar caminhos... O terceiro milênio já começou? | 6

Miríades de aldeias globais | Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É que mundos são redes Pensar e agir glocalmente | Não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos quantos os locais onde foram pensados Aprender a fluir com o curso | A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos) para prorrogar a sua durabilidade, é uma idéia contra-fluzz Alterando a estrutura das sociosferas | 7

Aprendizagem, não ensino | As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem Autodidatismo, não heterodidatismo | Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito Alterdidatismo, não heterodidatismo | “Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”

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Não-escolas: a escola é a rede | Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede) Matar a escola = matar o Buda | Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece Espiritualidade, não religião | Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das burocracias sacerdotais Quem disse que os deuses não existem? | Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os construíram Ecclésias, não ordens sacerdotais | Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação Não há uma ordem pré-existente | A ordem está sempre sendo criada no presente da interação Não-igrejas: porque não existe mais caminho | O objetivo é ser pessoa, nada além disso Máquinas para privatizar a política | Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública Autocratizando a democracia | É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra entre organizações privadas Não-partidos | Redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos Estado | Um delírio de raiz belicista A nação como comunidade imaginária | A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos A falência da forma Estado-nação | A maior parte dos Estados-nações não deu certo O reflorescimento das cidades | Cidades transnacionais, cidades-pólo tecnológicas, redes de cidades e cidades-redes

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As cidades na glocalização | Estados são artifícios para proteger as pessoas da experiência do localismo cosmopolita Comunitarização | As novas Atenas serão milhões de comunidades Cidades inovadoras, não-Estados-nações | Cidades inovadoras – como redes de comunidades – em rota de autonomia crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios Negócios em rede | Administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para se apropriar de um sobrevalor, é uma função social própria de uma época de baixa conectividade social Apaches, não aztecas | A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência de empreender Não-empresas-hierárquicas | Redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas – são as novas comunidades de negócios dos mundos que já se anunciam O fim do trabalho | Boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento, jogos, creative games Reprogramando sociosferas | Basta que você se dedique a “fazer” redes para inocular um virus nos programas verticalizadores Os mantenedores do velho mundo | 8

Ensinadores | Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento Mestres e gurus | Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam mutuamente Codificadores de doutrinas | Eles produzem narrativas para que você veja o mundo a partir da sua ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos existentes Aprisionadores de corpos | O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus trabalhadores fora do caos criativo

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Construtores de pirâmides | O indivíduo não é o átomo social; para ser social, é preciso ser molécula Fabricantes de guerras | O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos Condutores de rebanhos | O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia Eles já estão entre nós | 9

Mentiras pregadas em nome da ciência | Os sobreviventes não são selecionados por seu sucesso evolutivo Os indicadores de sucesso | Destacar-se dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde cabem apenas alguns poucos Hubs | Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe Inovadores | Em mundos altamente conectados um inovador também tende a cumprir um papel social mais relevante do que o dos colecionadores de diplomas Netweavers | Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não poderiam ser seres políticos Netweaver howto | Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto. Entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um N3tw34v3r Howto Eles já estão entre nós | Nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas Mundos-bebês em gestação | 10

Não global, glocal swarming | Um mundo mais-fluzz quer dizer muitos mundos-fluzz Desobedeça | Uma inspiração para o netweaving

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Inove permanentemente | Colocar-se em processo de inovação permanente é viver em processo de Ítaca (ou em processo de fluzz) Saia já do seu quadrado | “Cada um no seu quadrado, cada um no seu quadrado (4x) / Eu disse: Ado a-ado cada um no seu quadrado/ Ado a-ado cada um no seu quadrado” Inicie agora a transição | Nos já descobrimos a “fórmula”: é a rede distribuída Afinal, redes são apenas (múltiplos) caminhos | “Ah, sim, isso é evidentemente óbvio” Bem-vindos aos novos mundos-fluzz | 11

Quebrando as cadeias | Mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se desenvolvem = fluzz Clustering | Deixando as forças do aglomeramento atuarem Swarming | Deixando o enxameamento agir Cloning | Deixando a imitação exercer seu papel Crunching | Deixando os mundos se contrairem Conversando com a rede-mãe | Você só precisa construir interfaces Pulando no abismo | Não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por fluzz Notas e referências Bibliografia

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Tudo flui como um rio. Crátilo (c. 500 a. E. C., em um insight heraclítico, talvez)

Twiver. 200 milhões de timelines (em 2010) fluindo no twitter-river.

(A partir de 21/03/2006)

Fluzz é o Buzz que o Google não fez; e nem poderia fazer. De uma conversa do autor com Marcelo Estraviz (2010) (1)

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Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui.

Tudo que flui é fluzz. Pronto. Qualquer outra definição seria diminutiva. Qualquer outra explicação aprisionaria a imaginação criadora. Para ler este livro é necessário soltar a imaginação que cria múltiplos sentidos. Para escrever também (sim, esta é uma escritura de imaginação, não de análise). Foi necessário até inventar palavra que não existe. Como disse o poeta Manoel de Barros (pela boca do Bugre Felisdônio), “as coisas que não existem são mais bonitas” (2). Sim, fluzz é uma nova palavra substantiva. A substância mesmo, entretanto, muda a cada momento. Como? Não sabemos. Então este é uma espécie de “Livro das Ignorãças”, que vai avançando em círculos, ou em espiral, como nós, os humanos, quando caminhamos às cegas (3). Por isso, cada capítulo imita os anteriores e clona (no sentido grego, original, do termo) o que já veio: do galho nasce um broto, e outro, e outro – como filosofemas, não argumentos formais. Entrementes, porém, a imaginação salta vôo: Manoel de Barros (novamente ele, mas agora pela sua própria boca) diria que “todas as coisas... [aqui] já estão comprometidas com aves” (4). O impagável Ben Jonson havia advertido que “não se cunha uma nova palavra sem correr um grande risco, porque, se for bem aceita, os louvores serão moderados; se for rejeitada, o desprezo é certo”. Isso foi lembrado por Arthur Koestler (1967), quando, no seu (extraordinário) O fantasma da máquina, criou a palavra hólon (5). Fluzz tem algo de hólon, se deixarmos de olhar a máquina, a estrutura fixa, e começarmos a acompanhar o fantasma que desliza pelos seus desvãos (the ghost-in). Por isso, como ele, vamos correr o risco. Vamos seguir o risco. Vamos voar com a ave. Vamos fluir com o curso.

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Mas fluzz também é um novo adjetivo e assim será aplicado. Não se pode dizer que uma coisa seja não-fluzz. Tudo é fluzz, em alguma medida. Mais-fluzz, todavia, é o que está sujeito à mais-interatividade. Mais interatividade, porém, não significa necessariamente interagir mais – com mais freqüência, com mais pessoas – e sim estar mais aberto à interação. O que tem mais interatividade? O que está mais vulnerável ao outro-imprevisível. Mais interatividade é, por isso, o que causa menos anisotropias no espaço-tempo dos fluxos e, em conseqüência, menos deformações no campo social. Ou seja, redes. Redes mais distribuídas do que centralizadas. Atenção. Vai começar. Tudo que fluzz flui. Fluzz agora é verbo.

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O Tao flui sem cessar... abismo! Sun-Tzu em Tao-Te King (IV)

A fonte só pode ser pensada enquanto flui. (Die Quelle kann nur gedacht werden, insofern sie fließt) Johann Wolfgang von Goethe em Poesia e Verdade (1811)

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Fluzz é o fluxo, que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos.

O erudito Gershom Scholem (que ficou mais conhecido nos meios acadêmicos – tão laicos quanto pouco ilustrados – em virtude de sua bela amizade com Walter Benjamin), no seu monumental estudo sobre o misticismo judaico, Major Trends in Jewish Mysticism (1941) (1), comentando a formidável abstração que os cabalistas do século 13 denominaram Ein-Sof (o nada primordial do qual emana a “seiva” que percorre a “árvore” numérica que constitui a estrutura do universo, criando, formando e produzindo a existência), lança mão de uma metáfora luminosa: ele “é – diz – o abismo que se torna visível nas fendas da existência”. E relata em seguida que “alguns cabalistas que desenvolveram esta idéia, por exemplo, Rabi Iossef ben-Shalom de Barcelona (1300), sustentam que em toda transformação da realidade, em toda mudança da forma, ou toda vez que o status de uma coisa é alterado, o abismo do nada é cruzado e por um fugaz momento místico torna-se visível. Nada pode mudar sem entrar em contato com esta região do Ser absoluto puro que os místicos chamam de Nada”. Realmente impressionante. Sem pretender elaborar alguma teosofia das redes, podemos fazer agora um paralelo meramente literário e apenas evocativo de uma imagem para efeitos heurísticos. Esse mundo oculto dos cabalistas provençais, catalães e castelhanos e, depois, safeditas (o mundo – ou árvore – das Sefirot) é como se fosse o mundo das fluições (o espaço-

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tempo dos fluxos) onde as redes sociais existem, o multiverso das conexões também ocultas que produzem o que chamamos de ‘social’. Há fendas. Há um abismo que não se deixa ver a menos no instante fugaz em que uma fenda se abre. E nada pode mudar na estrutura e na dinâmica do mundo (manifesto, vamos dizer assim – ou produzido) sem que haja uma mudança correspondente nas configurações daquele mundo oculto, ou seja, nos fluxos que o caracterizam ou no ritmo da fluição. Seria algo mais ou menos assim, para lançar mão de uma metáfora menos esotérica – mas não tanto – usada pelos físicos contemporâneos, como a vibração de uma corda ou de uma membrana. Mas, não! Ainda não é bem isso. Há fendas, sim, mas por trás das fendas não há uma ordem implícita, pré-existente em alguma esfera oculta: a ordem está sempre sendo criada no presente da interação! Que fendas seriam essas? Onde estaria esse abismo? Abismo. Fenda. Quando a fenda se abre, “vemos” fluzz. Mas o que vemos quando “vemos” fluzz? Espiar de fora para dentro do abismo nada-revela (e esse, por incrível que não-pareça, é um dos sentidos daquele nada primordial: porque no princípio era a rede). Nada se pode ver a não ser que se mergulhe na fluição, como fez o sufi Mojud, “O homem cuja história era inexplicável” (2); quando perguntado de que maneira havia alcançado tanta sabedoria, ele não-explicou dizendo assim: “Eu me atirei num rio... [e] simplesmente deixei”. Goethe (1821) terminou com o seguinte verso o poema Eins und Alles, “tudo deve cair no nada, se quiser persistir em ser” (3). Tem que pular dentro – se abismar – para ver.

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No princípio era a rede. Mas o mundo das redes não é um mundo: é um multiverso de interações. Multiverso das interações significa, como disse Heráclito, que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”; ou, talvez corrigindo antecipatoriamente seu “discípulo” Crátilo, que “descemos e não descemos nos mesmos rios”. Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move, dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interações que se constelam e se desfazem, intermitentemente. Na verdade, quem se move é essa rede que nos envolve, como aquele “rio que deflui silencioso dentro da noite” no verso de Manuel Bandeira (1948) (4). Como aquele rio que corre no “lado de dentro” do abismo. O ritmo da fluição está implicado no modo de interagir. Diferentemente do que se pensava, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir e suas características.

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Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais-fluzz ela será. Quer dizer, mais interatividade haverá. E mais evidentes serão essas características (invisíveis do “lado de fora” do abismo) do seu modo-de-interagir. Conhecer as redes é interpretar modos-de-interagir (reconhecendo padrões). O que só se pode conseguir interagindo (estabelecendo conexões). Eis o principal fundamento de uma teoria do conhecimento fluzz – que é também uma teoria conectivista da aprendizagem e uma teoria da ação comunicativa por acoplamento estrutural e coordenação de coordenações (Maturana e Varela). Com efeito, Francisco Varela (1984) escreveu que “não há informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em um domínio de acoplamento estrutural... cada pessoa diz o que diz e ouve o que ouve segundo sua própria determinação estrutural... O fenômeno da comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o receptor” (5). Na verdade, depende do que acontece com os interagentes. A comunicação vareliana é uma interação: se A se comunica com B, significa que B muda com A, que muda com B, que muda novamente com A, que muda outra vez com B... e assim por diante, recorrentemente, como em uma coreografia. Mas tudo isso “multiplicado” pelo número de nodos em interação, pois que se trata sempre de um multi-acoplamento, não ocorre aos pares, mas entre todos os que compõem cada um dos muitos mundos que se configuram. Goethe – em um insight heraclítico – escreveu que “a fonte só pode ser pensada enquanto flui” (6). Alguém é nodo de uma rede nisi quatenus interage. A fonte que só existe enquanto flui (fluzz) só pode ser conhecida enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela. Bem, isso muda tudo.

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A grande novidade do tempo em que vivemos não é o surgimento de uma sociedade em rede (que, de resto, sempre existiu desde que existem seres humanos em interação), mas a generalização do entendimento de que sociedade = rede social. Na verdade, não existe nada como ‘a’ sociedade: as sociedades são sempre configurações concretas e particulares que, olhadas de certo ponto de vista, revelam seres humanos em interação; quer dizer, a compreensão do social surge quando se constela a percepção de que não existem unidades humanas separadas. De que o social não é o conjunto das pessoas, mas o que está entre elas. E de que cada mundo social é também (um modo de ser) humano. A medida que esses mundos sociais vão se descobrindo em rede, como se diz, “as fichas vão caindo”. Vários aspectos surpreendentes dessa descoberta já podem ser registrados. O primeiro deles é que redes mais distribuídas do que centralizas são possíveis, sim, no “mundo real”. As redes sociais viraram moda nos últimos anos. Sites de relacionamento e serviços de emissão e troca de mensagens na Internet como, dentre centenas de outros, MySpace, Facebook, Orkut e Twitter, que se autodenominaram (ou foram denominados) – impropriamente – ‘redes

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sociais’, proliferaram na primeira década do século 21, registrando milhões de pessoas. É fácil. Em geral não demora nem cinco minutos. Então muitos desses milhões de usuários de tais serviços acreditaram na conversa e acharam que, pelo fato de terem feito login e senha em um ou em vários desses sites, estavam “participando de redes sociais”. Fosse lá alguém dizer-lhes que redes sociais não são redes digitais ou virtuais, mas, como o nome está dizendo, são sociais mesmo: um novo padrão de organização, mais distribuído do que centralizado. As pessoas não entendiam as redes, antes de qualquer coisa porque não sabiam a diferença entre descentralizado e distribuído. Não percebiam que descentralizado não é sem centro e sim com muitos centros. Sem centro é distribuído.

Fig. 1 | Diagramas de Paul Baran A figura acima mostra os famosos diagramas de Paul Baran (1964) (7). Note-se que os nodos estão no mesmo lugar, o que muda nos três desenhos é a topologia, a configuração dos fluxos. A maioria das pessoas que se registraram nas tais “redes sociais”, entretanto, nunca tinha ouvido falar disso. De milhões de pessoas

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registradas em sites de relacionamento e plataformas interativas, quantas, na hora de elaborar um texto, vídeo ou programa, organizar um evento, implementar ou executar um projeto, produzir algum bem, vender algum produto ou prestar um serviço, atuavam em rede? E quantas abriram mão de dirigir, participar ou trabalhar em alguma organização hierárquica (quer dizer, mais centralizada do que distribuída)? Mesmo os que já tinham ouvido falar das redes sociais como novo padrão de organização distribuído – mesmo estes – tentavam escapar dessa evidência aproveitando a profusão dos sites de relacionamento e plataformas interativas na Internet. A maioria fazia um blog ou se registrava em alguma "rede social" e pronto: de vez em quando ia lá, postava um texto, um vídeo ou um comentário e dizia que "pertencia" a uma (ou várias) rede(s). No restante do tempo, porém, essas pessoas continuavam estudando, trabalhando, produzindo ou prestando serviços em organizações hierárquicas (fosse uma burocracia escolar ou acadêmica, uma empresa, uma organização não-governamental ou uma instituição estatal). Havia exceções, é claro. Mas, na maior parte dos casos, era assim. Inclusive acadêmicos, militantes sociais e consultores que falavam tanto em redes sociais, por algum motivo tinham imensa dificuldade de articulá-las. Provavelmente porque não conseguiam experimentá-las. Bastava ver como essas pessoas se relacionavam com as outras pessoas que lhe eram próximas: será que elas participavam de redes nos seus locais de moradia, estudo, trabalho, lazer ou em torno de seus temas de interesse? Em suma, as pessoas tendiam (e, em grande parte ainda tendem) a se organizar – reproduzindo o que é de praxe - segundo um padrão de organização centralizado ou multicentralizado. Para manter centralizações e filtros que caracterizam uma organização hierárquica, os mais inteligentes em geral argumentavam que “tem que haver uma transição”, ou que “uma organização em rede distribuída (em um mundo como o nosso) é uma utopia”. E argumentava assim inclusive boa parte dos que investigavam as redes sociais e publicavam sobre o assunto. Com o surgimento de novos mundos-fluzz, as coisas, entretanto, começam a se passar de outro jeito. A idéia de que redes sociais (mais distribuídas do que centralizadas) não são possíveis no “mundo real” (seja lá o que se entende por isso) como forma de (auto) organização da ação coletiva, foi sendo abandonada. Essa idéia, como se sabe, está baseada no velho preconceito de que nada que agregue uma pluralidade de seres humanos poderia funcionar sem administração (baseada em comando-e-controle),

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sem organização (a partir de modelos de ordem aplicados top down), sem liderança (ou melhor, monoliderança). Foi ficando cada vez mais claro que, em qualquer lugar, pode-se “fazer redes”. Sim, em qualquer lugar: na vizinhança, na empresa, na ONG, entidade ou organização da sociedade civil, em um órgão governamental et coetera. Pouco importa se a estrutura dessas localidades ou organizações é vertical, hierárquica, centralizada: as pessoas que estão lá não são e não há como impedir que elas se conectem horizontalmente, de modo distribuído, umas com as outras. E não importa se todas as pessoas não estiverem dispostas a fazer isso. E não importa se a maioria das pessoas em cada uma dessas territorialidades ou organizações for contra isso. A partir de três pessoas já é possível começar uma rede distribuída. Fazendo isso, articulando uma rede distribuída, cria-se uma “zona autônoma” (em relação ao poder centralizado). Se for uma rede distribuída (a rigor, mais distribuída do que centralizada), coisas surpreendentes começarão a acontecer (na medida do grau de distribuição e de conectividade alcançados). Uma nova fenomenologia certamente acompanhará a nova topologia. Pode-se apostar que isso fará diferença. E que a diferença será notável. Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio começa a brotar a consciência de que fazer rede é fazer amigos. Amigos políticos, no sentido original, grego, do termo ‘político’, que se refere à interação e à inserção na comunidade política; i. e., à polis – que não era a cidade-Estado e sim a koinonia política (como assinalou Hannah Arendt em “A condição humana” (1958): “a polis não era Atenas, e sim os atenienses”) (8). Isso é uma subversão completa das identidades organizacionais abstratas, construídas top down para alocar uma pessoa em um degrau da escada. Para que ela pise na cabeça de quem está no degrau de baixo e tente ultrapassar quem está no degrau de cima, agarrando-se a ele e puxando-o para baixo, como fazem os caranguejos em uma lata... Essa é a grande descoberta da democracia como movimento de desconstituição de autocracia, instaurada na experiência local dos gregos para evitar a volta da tirania dos Psistrátidas (que, como qualquer poder vertical, se baseava na inimizade política). Tratava-se de preservar a liberdade. Mas como escreveu a mesma Arendt, em “A questão da guerra” (1959): [para os gregos] “a liberdade... é um atributo do modo como os seres humanos se organizam e nada mais” (9). Dizendo de outra maneira (e pulando algumas passagens da argumentação): a falta de liberdade é uma função direta dos superávits de ordem top down.

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Antes era mais difícil reconhecer isso: todas as organizações verticais se baseiam na inimizade política: quanto mais centralizadas, mais “se alimentam” de inimizade e de seus bad feelings acompanhantes, como a desconfiança. Ora, é isso que torna imperativa a necessidade de controle e, por decorrência, a exigência de obediência. Fazer amigos é uma subversão de todos os mecanismos de comando-e-controle. Fazer amigos que se conectam em rede distribuída dentro de uma organização hierárquica vai desabilitando ou corrompendo os scripts dos programas verticalizadores que rodam nessa organização. Redes distribuídas, mesmo com pequeno número de nodos, funcionam, assim, dentro de uma organização hierárquica, como espécies de vírus; ou melhor, de anti-virus (pois em relação à rede-mãe – aquela rede que existe independentemente de nossos esforços conectivos voluntários, à rede que existe desde que existam seres humanos que se relacionam entre si – são os programas verticalizadores que devem ser encarados como vírus). Trata-se de uma infecção antiga, resistente, resiliente, que permanece na medida em que nós nos transformamos em vetores de contaminação por meio de nossas formas de relacionamento. Cada piramidezinha que construímos, nos espaços privados e públicos que habitamos, na nossa família, escola, igreja, entidade, corporação, empresa, partido ou governo, vai viabilizando a prorrogação da infestação do poder vertical. Pelo contrário, cada rede que articulamos vai dificultando a propagação desse vírus ou a replicação desse meme, por meio da criação de zonas autônomas, mesmo que sejam temporárias (e são, como percebeu Hakim Bey) (10), criando condições para que a confiança possa transitar (ou para que o capital social possa fluir, se preferirmos usar essa metáfora), para que a competição possa ser convertida em cooperação; enfim – em um sentido ampliado do termo – para a manifestação da amizade (ou para fazer “downloads” daquela emoção que Maturana (11) chamou... vejam só!, de amor, mas a palavra parece ser forte demais – um verdadeiro escândalo – e acaba chocando as pessoas que se imaginam preocupadas com coisas “mais sérias”. Mas não se trata de converter as almas por meio do proselitismo, do discurso ético normativo, exalçando as vantagens da cooperação sobre a competição, como imaginavam os adeptos das concepções 2.0. Trata-se de adotar padrões de organização que viabilizem a conversão de competição em cooperação. Parodiando Arendt, “a cooperação... é um atributo do modo como os seres humanos se organizam e nada mais”. Se nos organizamos segundo um padrão de rede distribuída, isso começa a ocorrer “naturalmente”; quer dizer, é uma fenomenologia que se manifesta em

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função da topologia (e não das boas intenções dos sujeitos). Uma organização hierárquica de seres animados pelas melhores intenções, cheios de amor-prá-dar, não se constitui como um ambiente favorável à cooperação. Em outras palavras, o capital social de uma organização rigidamente centralizada será sempre próximo de zero, mesmo que tal organização seja composta por clones de Francisco de Assis ou por réplicas perfeitas de Mohandas Ghandi. Essas descobertas foram conseqüências da formidável irrupção-fluzz que começou a alterar radicalmente nossos flowscapes conceituais e organizacionais. Mas tem mais.

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Quando Marshall McLuhan afirmou, em uma palestra proferida em 1974, que “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia” ainda não haviam surgido constructs – como o de capital social como rede social – capazes de justificar adequadamente tal afirmação (12). Como se sabe, a idéia de que capital social nada mais é do que rede social, ainda que tenha sido formulada em 1961, por Jane Jacobs, ficou praticamente desconhecida por mais de duas décadas (13). Os esforços pioneiros de Coleman (1988) (14) não resgataram essa descoberta surpreendente, segundo a qual a influência do ambiente depende de padrões conformados pela interação (e a própria natureza do que chamamos de ambiente nada mais é do que a de um “campo”, em um sentido deslizado daquele em que a palavra é empregada em física: como campo de forças). Mas a hipótese de McLuhan revelou-se correta e pode ser justificada desse ponto de vista (e talvez só assim possa ser justificada). O ambiente muda as pessoas porque o comportamento individual é sempre função, em alguma medida, das relações entre as pessoas. E, além disso, porque as próprias pessoas se constituem, como tais, na interação (um indivíduo isolado da espécie humana, se pudesse subsistir, não poderia ser uma pessoa).

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Conquanto ainda esteja bastante difundida a idéia de que redes são um novo tipo de organização surgida com as novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), tal idéia vem se revelando inconsistente, sobretudo porque deixa de ver o fundamental: redes são um padrão de organização que pode ser ensaiado com diferentes mídias e tecnologias (até com sinais de fumaça, tambores, conversações presenciais, cartas escritas à mão em papel e transportadas à cavalo et coetera). Ou seja, é o social que determina comportamentos, não o tecnológico. Pode-se usar tecnologias interativas de um modo que não altere em nada ou quase nada os padrões de interação. Por exemplo, computadores conectados à internet na maioria das escolas não viabilizam, por si só, mudanças no padrão de interação entre os alunos, que continuam organizados como rebanho, cada qual com sua supermáquina conectada, mas todos virados para um professor que centraliza a rede. Na formulação, a várias mãos, da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a tecnologia utilizada (midia) foi a carta escrita em papel, o cavaleiro (carteiro) e o cavalo, mas o padrão de interação foi, ao que tudo indica, o de rede distribuída. Hoje, mais de dois séculos depois, o processo de elaboração de uma diretiva estratégica no Pentágono, a despeito de usar sofisticados meios de comunicação interativos, revela um padrão de interação centralizado. Ao contrário do que parece, as redes sociais não surgiram com as novas tecnologias de informação e comunicação. Ainda que tecnologias mais interativas em tempo real (ou sem-distância) possam facilitar a adoção de padrões mais distribuídos do que centralizados de organização – e possam, além disso, acelerar a interação – é o modo como as pessoas interagem (social) e não o recurso (tecnológico) que determina o comportamento coletivo. A fenomenologia é sempre função da topologia, seja qual for a tecnologia empregada. Acelerando a interação, entretanto, alguns fenômenos que só seriam perceptíveis em linhas temporais muito longas, podem ser captados mais rapidamente. É o caso do swarming de pessoas: enxameamentos cívicos levando a grandes manifestações de massa podem ser observados, caso haja possibilidade de conexão em tempo real (por telefone móvel ou e-mail, por exemplo), em horas ou até minutos (15). Sem tais recursos tecnológicos, esses fenômenos (ou seus similares ou correspondentes) poderiam levar dias ou até anos para se engendrar. Mas isso não significa que eles ocorrem por causa da tecnologia. Se as pessoas não puderem interagir uma-a-uma (P2P), se não estiverem conectadas segundo um

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padrão distribuído, de pouco adiantarão as mais avançadas tecnologias interativas. O mesmo vale para outros fenômenos típicos das redes: eles dependem do padrão de interação (dos graus de distribuição e conectividade) e não das tecnologias (dos recursos, dos dispositivos, das mídias).

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Embora tenha se alastrado como uma praga a idéia de que as redes sociais são a mesma coisa que as mídias sociais, redes digitais, ambientes virtuais, sites de relacionamento (como Facebook ou Orkut) ou plataformas interativas (como Ning ou Elgg), tal idéia se revelou equivocada, sobretudo porque elide o fato de que redes sociais são pessoas interagindo, não ferramentas. Essa discussão ganhou força nos últimos tempos com a busca por ferramentas digitais – plataformas interativas na Internet – mais adequadas ao netweaving, quer dizer, para servir de instrumentos de articulação e animação de redes sociais (16). Três hipóteses surgiram para explicar por que as plataformas interativas disponíveis, que foram desenvolvidas para a gestão de redes sociais (ou até mesmo para serem, elas próprias, “redes sociais”) não eram boas ferramentas de netweaving: Em primeiro lugar porque seus desenvolvedores confundiam midias sociais com redes sociais, tomavam a ferramenta (digital) pela rede (social),

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quando, como vimos, redes sociais são pessoas (conectadas, interagindo), não ferramentas! Em segundo lugar porque, sob o influxo da chamada Web 2.0, as plataformas disponíveis eram (e ainda são, em grande parte) baseadas na participação (p-based) e não na interação (i-based). Assim, não se regiam pela lógica das redes mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer, pela lógica da abundância (17), mas sim pelo regime da escassez (e ao aceitarem tal condicionamento, de ter que funcionar em condições de escassez quando já há abundância, reproduziam desnecessariamente escassez, rendendo-se a um tipo de "economia política" onde a política é um modo de regulação não-pluriárquico). Não é outro o motivo pelo qual ativavam mecanismos de contagem de cliques, instituíam votações e atribuições de preferências baseadas na soma aritmética, que significam regulações majoritárias da inimizade política. Ora, isso ensejava a formação de oligarquias participativas que tentavam organizar a auto-organização (como ocorreu, por exemplo, na Wikipedia). Em terceiro lugar - e como conseqüência do seu fundamento p-based - as plataformas de articulação e animação de redes sociais (que já se encaravam, algumas delas pelo menos, como se fossem as próprias redes sociais), ainda estavam voltadas para organizar conteúdos (encarando, inevitavelmente, o conhecimento como um objeto e não como uma relação social). Esse é um problema porquanto a gestão do conteúdo, do conhecimento-objeto, ao tentar traçar um caminho para os outros acessarem tal conteúdo, cava sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão (na e da interação), com isso repetindo passado e trancando o futuro (como fazem, secularmente, as burocracias sacerdotais do conhecimento, mais conhecidas pelo nome de escolas e não é por acaso que boa parte dessas plataformas tenha sido pensada por professores ou construída para atender a objetivos educacionais, entendidos como objetivos de ensinagem e não de aprendizagem). Mas para uma plataforma i-based - adequada ao propósito de servir de ferramenta para o netweaving - não se trataria de pavimentar uma estrada para os outros percorrerem e sim de possibilitar que cada um pudesse abrir seu próprio caminho (posto que redes são múltiplos caminhos). Ademais, ao contrário do que acreditavam os supostos especialistas em redes sociais na Internet, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir.

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Mas para compreender essas observações é necessário entender quais são, afinal, as diferenças entre comunicação e informação e entre interação e participação. São questões fundamentais porque, de certo modo, entende-las é entender as redes.

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Quando Norbert Wiener (1950) escreveu, em Cibernética e Sociedade, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum, campo, tecido ou espaço (18). A hipótese é fértil, inclusive pelo seu poder heurístico. Mais do que isso, entretanto: é uma hipótese-fluzz. Mas por essa porta aberta à imaginação criadora, também passou um pensamento rastejante: como transmissão de mensagem evoca sempre informação, uma visão de que tudo poderia ser reduzido, em última instância, à informação, acabou se estabelecendo. Redes, pensadas mais como redes de máquinas que trocam conteúdos entre si, foram assim concebidas como redes de informação. Uma das descobertas tão recentes quanto surpreendentes nesta ante-sala da época-fluzz em que vivemos é que, ao contrário do que pensavam os teóricos da informação, redes sociais não podem ser reduzidas à redes de informação. Ainda que toda influência seja um padrão, ela não pode ser reduzida a um código. É o padrão de interação que é relevante e não a

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transmissão-recepção da mensagem entendida como um conteúdo de arquivo. Redes sociais são redes de comunicação, é óbvio. Mas ainda que o conceito de informação seja bastante elástico, isso não é a mesma coisa que dizer que elas são redes de informação. Redes são sistemas interativos e a interação não é apenas uma transmissão-recepção de dados: se fosse assim não haveria como distinguir uma rede social (pessoas interagindo) de uma rede de máquinas (computadores conectados, por exemplo). Ao tomar as redes sociais como redes de informação, imaginando que tudo não passa de bytes transmitidos e recebidos, freqüentemente deixávamos de ver que a comunicação modifica os sujeitos interagentes (e só acontece quando tal modificação acontece). Humberto Maturana e Francisco Varela explicaram isso muito bem em um box (ao que tudo indica atribuído ao segundo) do livro A Árvore do Conhecimento (1984) intitulado “A metáfora do tubo para a comunicação” (19):

“Nossa discussão nos levou a concluir que, biologicamente, não há informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em um domínio de acoplamento estrutural. Tal conclusão só é chocante se continuarmos adotando a metáfora mais corrente para a comunicação, popularizada pelos meios de comunicação. É a metáfora do tubo, segundo a qual a comunicação é algo gerado em um ponto, levado por um condutor (ou tubo) e entregue ao outro extremo receptor. Portanto, há algo que é comunicado e transmitido integralmente pelo veículo. Daí estarmos acostumados a falar da informação contida em uma imagem, objeto ou na palavra impressa. Segundo nossa análise, essa metáfora é fundamentalmente falsa, porque supõe uma unidade não determinada estruturalmente, em que as interações são instrutivas, como se o que ocorre com um organismo em uma interação fosse determinado pelo agente perturbador e não por sua dinâmica estrutural. No entanto, é evidente no próprio dia-a-dia que a comunicação não ocorre assim: cada pessoa diz o que diz e ouve o que ouve segundo sua própria determinação estrutural. Da perspectiva de um observador, sempre há ambigüidade em uma interação comunicativa. O fenômeno da comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o receptor. E isso é muito diferente de ‘transmitir informação’.”

Além disso, há características da interação que não se resumem àquela transmissão-recepção de conteúdos evocada pelo uso corrente do conceito

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de informação. Em uma rede social é como se as pessoas estivessem emaranhadas e a modificação do estado de uma pessoa em-interação com outra acaba alterando o estado dessa outra sem que, necessariamente, tenha havido a transmissão voluntária (e, talvez nem mesmo involuntária) de uma mensagem da primeira para a segunda. Por exemplo, uma pessoa tende a se adaptar ao comportamento das outras, tende a imitar padrões de comportamento reconhecidos nas outras e tende, inclusive, a cooperar com elas (voluntária e gratuitamente). Uma pessoa pode ficar alegre ou triste, saudável ou doente, esperançosa ou descrente, em função da estrutura e da dinâmica desse emaranhado em que está imersa. Ao contrário do que se acredita, nada disso depende diretamente de um conteúdo transferido e recebido, intencionado na transmissão e interpretado na recepção, mas é função de outras características do modo-de-interagir como a freqüência e a recursividade, as reverberações e os loopings, os laços de retroalimentação etc. É mais ou menos como o que revelou a investigação de Deborah Gordon (1999), professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durantes dezessete anos colônias de formigas no Arizona. Ela descobriu que “a decisão de uma formiga quanto a uma tarefa é baseada em sua taxa de interação”. Mas “o que produz o efeito é o padrão de interação, não um sinal na própria interação. As formigas não dizem umas às outras o que fazer por meio da transferência de mensagens. O sinal não está no contato, ou na informação química trocada no contato. O sinal está no padrão de contato” (20). Ou seja, não se trata de uma comunicação de conteúdo, de um código, mas da freqüência e das circunstâncias em que se dão os contatos. Em uma rede estamos sofrendo a influência de um campo, mas tal influência é sistêmica e o comportamento adotado por um agente dificilmente pode ser atribuído à ação e muito menos à intenção única e exclusiva de outro agente. Quer dizer, quando ficamos alegres em virtude desse efeito sistêmico do campo em que estamos imersos (a rede) é como se tal fato fosse inexplicável, o que significa apenas que não conseguimos explicá-lo com base nos nossos esquemas explicativos habituais, focados nos indivíduos e não na rede, apontando um sujeito particular que nos sugestionou positivamente ou exerceu essa influência sobre nós de outra forma conhecida. Mas não é assim que a coisa funciona. Quando foi observado que os habitantes da famosa Roseto, na Pensilvânia, se mostravam mais saudáveis, do ponto de vista cardiovascular, do que as pessoas das comunidades vizinhas, muito semelhantes à Roseto, em vários aspectos, isso não pôde ser atribuído a nenhum fator particular (genética,

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alimentação, exercícios físicos, atenção à saúde preventiva ou cuidados médicos), mas foi associado corretamente à comunidade. O mistério só foi resolvido quando dois pesquisadores (Stewart Wolf e John Bruhn) resolveram observar como as pessoas interagiam (“parando para conversar na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais”). “Elas eram saudáveis – conta Malcolm Gladwell (2008) – por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas…” (21). Sim, interação e lugar. Em outras palavras, conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede social! É claro que, a despeito do que foi dito aqui, ainda se pode afirmar que tudo se reduz, em última instância, à informação: em qualquer interação, em termos físicos, partículas mensageiras de um dos quatro campos de forças se “deslocaram”, se espalharam ou se aglomeraram (o simples fato de ver alguém, por exemplo, implica “deslocamentos” de bósons – no caso, de fótons, partículas mensageiras do campo eletromagnético) e isso pode, corretamente, ser interpretado como informação. Mas o significado da palavra informação – tal como é tomado no dia-a-dia ou mesmo como às vezes é usado pelos chamados “cientistas da informação” – não ajuda muito a entender os fenômenos que acontecem nas redes sociais e que lhes são próprios.

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A afirmação só é válida, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais ela poderá ser i-based (interaction-based) e menos p-based (participation-based). Tudo que fluzz é i-based, não p-based. A palavra participação designa uma noção construída por fora da interação. Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi reinventado no instante mesmo em que uma configuração coletiva de interações se estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante. Como se a gente sempre participasse de algo “dos outros”. Não é por acaso que a expressão 'democracia participativa' foi aplicada para designar diversas formas de arrebanhamento, inclusive uma variedade de experiências assembleísticas adversariais, onde a tônica era a luta, a disputa por maioria ou hegemonia e se praticava a política como “arte da guerra” lançando-se mão de modos de regulação de conflitos que geram artificialmente escassez (como a votação, o rodízio, a construção administrada de consenso e, inclusive, sob alguns aspectos, o sorteio).

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Mas isso não significa exatamente, como pode parecer à primeira vista, que interagir, então, diga respeito somente à atuação em algo "nosso" enquanto participar diga respeito à atuação em algo "dos outros". Não, não é bem assim, a menos que esse "nosso", aqui, não seja tomado em um sentido proprietário (como eufemismo, para dizer "meu") em contraposição ao "dos outros" (“deles”). O "nosso" conformado na interação não se pré-estabelece, não conforma uma identidade identificável com um grupo determinado de agentes antes da interação, ao contrário do "nosso" (na lógica coletiva de um "eu" organizacional já construído) quando esse "nosso" foi instituído por um grupo que, ao fazê-lo, estabeleceu uma fronteira (dentro ≠ fora) independentemente da interação fortuita que já está acontecendo e que ainda virá. Neste caso, a organização será um congelamento de fluxos, uma cristalização de uma situação pretérita, um pedaço do passado cortado que se enxerta continuamente no presente para manter as configurações que, em algum momento, atribuíram a determinadas pessoas certos papéis que se quer reproduzir (essa é a triste história da liderança, ou melhor, da monoliderança, dos líderes que, tendo liderado algum dia, querem se prorrogar, eternizando uma constelação passada para continuar liderando). Assim, quando fazíamos uma organização ou lançávamos um movimento e chamávamos uma pessoa para nela entrar ou a ele aderir, estávamos chamando-a à participação. Estávamos abrindo a (nossa) fronteira para que o outro pudesse entrar. Em uma rede (mais distribuída do que centralizada), as fronteiras são sempre mais membranas do que paredes opacas, não precisam ser abertas, não se estabelecem antes da interação e todos os que estão em-interação estão sempre "dentro" (aliás, estar "dentro", neste caso, é sinônimo de estar interagindo, mesmo que alguém só tenha começado ontem e os demais há anos). Estarão “dentro” também os que ainda virão, quando passarem a interagir, sem a necessidade de serem recrutados, provados, aprovados, admitidos e iniciados pelos que já estão. A diferença parece sutil, mas é brutal no que diz respeito ao funcionamento orgânico. O participacionismo (que contaminou a chamada Web 2.0) instituiu modos de regulação que produzem artificialmente escassez (e, portanto, centralizam a rede, gerando oligarquias participativas compostas pelos que mais participam, pelos que são mais votados ou preferidos de alguma forma – mais ouvidos, mais lidos, mais comentados, mais adicionados, mais seguidos –, os quais acabam adquirindo mais privilégios ou autorizações regulatórias do que os outros). Formam-se neste caso inner circles, instâncias mais estratégicas do que as demais (os outros clusters e

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as pessoas comuns, não-destacadas da “massa”), que passam, estas últimas, para efeitos práticos, a serem consideradas táticas (para os propósitos dos estrategistas, dos que possuem mais atribuições): e não é a toa que os membros do “círculo externo” freqüentemente são chamados de “público”, “usuários”, (meros) “participantes”, com permissões mais restritas e poderes regulatórios diminutivos (22). Em um sistema-fluzz, baseado na interação, a regulação é pluriárquica, quer dizer, é sempre feita com base na lógica da abundância: ou seja, as definições dependem das iniciativas das pessoas que queiram tomá-las ou a elas queiram aderir, jamais impondo-se, o que pensam alguns, aos demais (por critérios de maioria ou preferência verificada). Assim, em um sistema baseado na interação, nunca se decide nada em nome do sistema (a organização em rede), ninguém fala por ele, ninguém pode representá-lo ou receber alguma delegação do coletivo (porque, na ausência de representação, esse “eu = ele” coletivo não pode expressar-se (por hipóstase) como um ser de vontade ou que seja capaz de acatar qualquer vontade, ainda que fosse a vontade de todos). E não há deliberação porque não há necessidade de deliberar nada por alguém ou contra alguém ou a favor de alguém (que tivesse que delegar ou alienar seu poder a outrem). Em uma organização i-based, nunca se fala em nome da organização, nunca se promove nada por ela e nem mesmo seus fundadores podem empenhar, emprestar, parceirizar a sua marca para coisa alguma, ainda que seja para propor uma atividade totalmente dentro do escopo da organização. Em outras palavras, não há um ativo organizacional que possa ser apropriado (nem mesmo como patrimônio simbólico) por alguém em particular, porque as dinâmicas pluriárquicas não permitem. Dessarte, não há um "nós" organizacional que estabeleça uma fronteira entre os "de dentro" e os "de fora". Todos que estão fora podem entrar. Todos os que estão dentro podem sair (e podem voltar a qualquer momento; e sair de novo, quantas vezes quiserem). Entrar não significa pertencimento a algum corpo separado do meio por fronteiras impermeáveis, nem adesão (ou profissão de fé) a algum codex e sair não significa discordância, “racha”, deserção, traição, divórcio ou qualquer tipo de ruptura. E quem compõe tal organização afinal? Ora, quem nela quiser se conectar e interagir, aqui-e-agora. Quem saiu não é mais, mas não porque tenha se desligado e sim porque não está interagindo. Quem não entrou não é ainda, mas não porque não tenha sido aprovado e aceito e sim porque, igualmente, não está interagindo.

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Porque rede é fluição. Nodo de uma rede é tudo o que nela interage. Essa foi a grande descoberta-fluzz do tempo vindouro que está vindo. É certo que, mesmo nas redes mais distribuídas do que centralizadas, a freqüência e outras características da interação, vão ensejando a formação de laços internos de confiança, de sorte que nem todos são iguais no que tange ao que correntemente se chama de liderança. Algumas pessoas podem ter oportunidades de serem mais avaliadas pelas outras e até de obterem uma adesão maior às suas iniciativas do que as outras, em virtude da sua interação, quer dizer, do seu modo-de-interagir e do seu, vá lá, histórico de interação (mas não de qualquer atribuição diferencial que tenham recebido de fora ou de cima ou mesmo em virtude da adoção de modos de regulação geradores de escassez que recompensem algum esforço de participação voltado a "ganhar" as demais pessoas, conquistando hegemonia ou maioria). Nas redes (mais distribuídas do que centralizadas) não se quer regular a inimizade política e sim deixar que a amizade política auto-regule o funcionamento do sistema. Não há um corpo docente, uma burocracia coordenadora e, nem mesmo, um time ou equipe de facilitadores (cuja formação seja baseada em critérios de mérito ou conhecimento, antiguidade, popularidade ou outra característica qualquer que não possa ser verificada e checada intermitentemente na interação). Esse é o motivo pelo qual nas redes sociais (mais distribuídas do que centralizadas) não se deve (e enquanto elas forem mais distribuídas que centralizadas, não se pode) montar uma patota dirigente, coordenadora, facilitadora ou erigir uma igrejinha de mediadores. A construção de um “nós” organizacional infenso à interação ou protegido contra a imprevisibilidade da interação para manter sua identidade ou integridade (e, supostamente, para assegurar – como guardiães – que a organização não se desvie de seus propósitos, não viole seus princípios e não fuja do seu escopo), ao gerar uma identidade compartilhada por alguns “mais iguais” que outros, centraliza a rede, deixando-a à mercê do participacionismo; quando não de coisa pior. Sim, é difícil não tentar organizar a auto-organização. E é dificílimo não tentar reunir alguns para, como se diz, “colocar um pouco de ordem na casa”. Mas aqui vale aquela frase brilhante de Frank Herbert, uma pérola garimpada em “O Messias de Duna” (1969): “Não reunir é a derradeira ordenação” (23). Para quê re-unir o que já está unido = conectado (interagindo)? E se é assim, por que reunir apenas alguns para organizar mais, quando se pode ensejar a ordenação emergente de muitos mais?

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A tentação de estabelecer uma fronteira opaca, o medo de se deixar abrigar (ou de se proteger do “mundo externo”, do outro, em geral das outras organizações) apenas por uma membrana (permeável aos fluxos e, portanto, vulnerável à interação) assolou constantemente as (pessoas das) organizações, mesmo aquelas que queriam transitar para um padrão de rede distribuída. Talvez isso tenha ocorrido, em parte, em virtude de uma confusão entre interação e troca de conteúdo. Boa parte das pessoas que tratavam do assunto, inclusive das que se dedicam a investigar ou experimentar redes sociais, confundia interação com troca de informação e gestão de conteúdo (sobretudo tomando por conteúdo conhecimento). Como imaginavam, essas pessoas, – com certa razão – que o conhecimento é cumulativo, queriam bolar uma, como se diz?, “arquitetura da informação”, urdir schemas classificatórios, desenhar árvores para mapear relações (que ainda não se efetivaram) e organizar os escaninhos para depositar o conhecimento que ia sendo construído coletivamente. Na falta de mecanismos de busca semântica, queriam “colocar as coisas nos lugares certos” para facilitar a navegação dos demais. Mas ao fazerem isso, animados pela boa intenção de organizar o (acesso ao) conhecimento para os demais, acabavam erigindo uma escola (como ocorre, de certo modo, com uma parte dos que adotam plataformas wikis e plataformas ditas educacionais), quer dizer, uma burocracia do ensinamento, inevitavelmente centralizada. Tudo isso era assim até que começou a procura por mecanismos que dessem conta do formigueiro e não das formigas: como se sabe, é o formigueiro que se reproduz (como padrão), não as formigas. Por isso a comparação com o formigueiro, que causa repugnância a alguns (que alegam que as formigas não têm consciência e não podem fazer escolhas racionais) não é despropositada. A pesquisadora Deborah Gordon (1999) descobriu que o formigueiro é i-based, ou seja, que além de nele não haver nada que se possa chamar de administração, a auto-organização é feita a partir da freqüência e de outras características da interação das formigas entre si e com o seu ecossistema e não de algum conteúdo que elas tenham trocado entre si (nem mesmo se tal conteúdo fosse uma substância química, como se supunha) (24).

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Padrões, não conjuntos. Quem quer entender redes deveria começar refletindo sobre a frase do físico Marc Buchanan (2007), em O átomo social (25):

“Diamantes não brilham por que os átomos que os constituem brilham, mas devido ao modo como estes átomos se agrupam em um determinado padrão. O mais importante é freqüentemente o padrão e não as partes, e isto também acontece com as pessoas”.

A idéia de que a fenomenologia de uma rede é função das características de seus nodos (das suas idéias, conhecimentos, habilidades, valores ou preferências) ainda faz parte de uma herança cultural não-fluzz difícil de ser questionada. Dizer que a fenomenologia de uma rede é função da sua topologia é um verdadeiro choque para essa cultura que encara as sociedades humanas como coleções de indivíduos e não como sistema de relações entre pessoas, como configurações de fluxos ou interações. Sim, rede = interação. O comportamento coletivo não depende dos propósitos dos indivíduos conectados (ou de suas outras características,

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individualizáveis). Ele é função dos graus de distribuição e conectividade (ou interatividade) da rede. Mas por que demoramos tanto para perceber isso? Talvez porque, enquanto olhávamos os nodos (as árvores), deixávamos de ver a rede (a floresta, ou melhor, não propriamente o conjunto das árvores, mas as relações que constituem o ecossistema sem o qual as árvores – nem algumas poucas, nem muitas milhares – podem existir). Talvez porque fomos induzidos a fazer a busca errada: enquanto procurávamos um conteúdo não podíamos mesmo encontrar um padrão de interação. Talvez porque, influenciados pela máquina econômica construída pelo pensamento hobbesiano-darwiniano, enquanto tentávamos prever o comportamento coletivo a partir das preferências individuais, escapava-nos aquilo que exatamente faz do sistema algo mais do que a soma de suas partes: o social. Fixávamo-nos em objetos capturáveis, não em relações, não em fluxos. Fluzz, para nós, permanecia escondido. Conjuntos de nodos são apenas conjuntos de nodos. Não são redes. A representação estática chamada grafo, disseminada pela SNA (Análise de Redes Sociais) não ajuda muito a compreensão da rede: pontos (vértices) ligados por traços (arestas) passam uma imagem abaixo de sofrível daquele emaranhado dinâmico de interações que constitui a essência do que chamamos de rede, sempre fluindo e alterando sua configuração. Ademais, os nodos não são propriamente pontos de partida nem de chegada de mensagens, como se fossem estações ligadas por estradas por onde algum objeto ou conteúdo vai transitar. Eles também são caminhos. Aliás, nas redes sociais, os nodos não existem como tais (como pessoas) sem os outros nodos a ele ligados, constituindo-se, portanto, cada um em relação aos demais, como caminhos de constituição disso que chamamos de ‘eu’ e de ‘outro’. Assim, não é o conteúdo do que flui pelas suas conexões que pode determinar o comportamento de uma rede. É o fluxo geral que perpassa esse tecido ou campo, cujas singularidades chamamos de nodos, que consubstancia o que chamamos de rede. Esse fluxo geral não tem nada a ver com mensagens contidas em sinais emitidos ou recebidos: são padrões, modos-de-interagir. Se há uma mensagem (um conceito mais informacional do que comunicacional), esses padrões é que são a mensagem.

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A idéia de capturar objetos para colocá-los na máquina, a idéia de salvar (arquivar) configurações do passado, constituiu o caminho para a construção de conhecimento nas sociedades pré-fluzz. As teorias do conhecimento pressupostas por essa idéia podiam ser, na melhor das hipóteses, construtivistas, mas não podiam ser conectivistas. Não é por acaso que construtivismo gerava escolas (burocracias do ensinamento) enquanto que conectivismo vai gerando inevitavelmente não-escolas (redes de aprendizagem). A idéia de construção do conhecimento – de depositar “tijolo por tijolo num desenho lógico”, como diz a canção (26) – decorre de uma epistemologia não-fluzz. Essa idéia, ao se aplicar, requer uma espécie de congelamento de fluxo (ou de materialização do passado) para ir combinando objetos, como em uma espécie de lego. Ela permitiu a ereção de aberrações como os knowledge management systems, originalmente pensados para abastecer de informações estratégicas o topo de pirâmides. Era compatível, portanto, com estruturas centralizadas e não com redes distribuídas. Mas o conhecimento presente em uma rede mais distribuída do que centralizada não pode ser gerido top down, simplesmente porque não há

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um nodo ou cluster capaz de capturá-lo com antecedência, domesticá-lo ou codificá-lo (transformando-o em ensino) para facilitar o acesso a ele dos demais. É um conhecimento-fluzz, quer dizer, é uma relação social, móvel e sempre em mutação. Como no sistema imunológico dos mamíferos e de outros animais, é um conhecimento que está distribuído por toda a rede. Um nodo interagente conhece porquanto (e enquanto) está interagindo e não porque foi alocado em uma posição para receber uma instrução de outrem (escola). É um conhecimento novo a cada vez. Como naquele rio heraclítico, ninguém pode aprendê-lo mais de uma vez. É por isso que as plataformas hierárquicas de transmissão do conhecimento foram estruturadas para avaliar e validar o conhecimento ensinado e não o conhecimento aprendido. E é por isso que todas elas exigem tribunais epistemológicos, corpos (docentes) de guardiães do passado (que são sempre coaguladores: sacerdotes, professores, doutores, mestres e outros titulados) encarregados de dizer quais conhecimentos podem ou não transitar. A chamada “arquitetura de informação” das plataformas digitais p-based segue o mesmo caminho. Tudo se resume a abrir caixinhas para depositar e salvar conteúdos, escaninhos para coagular, guardar e ordenar o passado com o intuito declarado de facilitar a busca futura, quando, na verdade, seu objetivo é outro: selecionar e pavimentar caminhos para o futuro que sejam produzidos pela dependência da trajetória (ou pela repetição de passado).

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Toda hierarquia se erige pela materialização e repetição de passado. Na tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimava-se pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extra-humana (divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as linhas sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros carregavam o múnus originário, que podia ser delegado, em graus subordinados, a quem a eles se submetesse). Era um objeto (como se os superiores possuíssem um estoque de “células-tronco” para construir o “corpo” hierárquico) (27). A própria palavra hierarquia (hieros + arché) designava esse poder sagrado. Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito que lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua vocação administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança. Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo de centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter sido escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas

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não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de conexões em que o chefe ou líder se inseria. A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a “liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para sempre, em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o contrário da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre multiliderança (possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em determinadas circunstâncias fortuitas). A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem, aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para a chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso. Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constitui-se, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi introduzida a escassez de caminhos.

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A hipótese de que foi a escassez (natural, de recursos) que gerou a hierarquia e que, assim, a hierarquia tenha brotado espontaneamente do caos, foi tão sedutora para alguns quanto enganosa para todos. Até hoje ainda há os que se põem a promover um deslizamento (para o natural) do conceito (social) de hierarquia, com base na suposta evidência de que ela é encontrada em toda parte – do mundo físico (e. g., sistemas termodinâmicos) ao mundo biológico (e. g., sistemas vivos aninhados) – e que isso seria uma prova de que a hierarquia é natural e, dessarte, também naturalmente se manifestaria no mundo social. Mas a escassez que gera hierarquia é introduzida artificialmente, sempre pela supressão de caminhos. Não há uma escassez em si. O conceito é relacional: escassez, quando há, é sempre em relação a algo ou alguém que carece de determinados recursos em determinado ambiente. Ao fluir com o curso, ao se deixar levar pela “vida nômade das coisas” (uma boa definição de fluzz), tal escassez não se configura. A escassez só surge com o represamento do rio. Nos sistemas naturais não pode haver o conceito de escassez porque não há um indivíduo que reclame uma necessidade contra o ecossistema na

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medida em que cada parte do ecossistema se insere na lógica da abundância que regula o sistema. Nos sistemas sociais (ou anti-sociais, seria melhor dizer), a escassez é introduzida pelo modo de regulação de conflitos. Toda vez que se regula conflitos de modo autocrático, gera-se escassez que permite a ereção de estruturas hierárquicas. E toda vez que se erige um sistema hierárquico pela eliminação de caminhos, geram-se modos de regulação não-pluriárquicos que se mantêm pela reprodução da escassez.

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Também era muito comum a confusão entre hierarquização (que é uma centralização) e clusterização (ou aglomeramento provocado pela dinâmica de uma rede). Isso dificultava a compreensão do fenômeno do poder nas redes sociais. Desse ponto de vista, aliás, seria o exato contrário: o poder não surge da clusterização e sim – juntamente com a exclusão de nodos e a obstrução de fluxos – do desatalhamento (supressão dos atalhos) entre clusters (aglomerados). O poder (como poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua vontade, como, ao fim e ao cabo, se manifesta qualquer poder) é uma medida de não-rede (em termos de rede distribuída); quer dizer, é uma medida direta do grau de centralização (ou uma medida inversa do grau de distribuição) de uma rede. Ele ocorre (ou sobrevém) não quando os nodos se aglomeram em função da sua interação e sim, ao contrário, quando impedimos que tal aglomeramento se dê livremente (em virtude da dinâmica da interação), mas colocamos obstáculos, construímos cancelas ou selecionamos caminhos por onde ela (a interação) deve passar: sejam muros, cercas, paredes, escadas, portas e fechaduras, ou firewalls. Todo poder nasce de um impedimento imposto à livre fluição. Todo poder é uma introdução artificial (uma fabricação) de escassez de caminhos. Todo poder

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é uma tentativa de evitar a abundância de caminhos. Todo poder – necessariamente hierárquico – é uma reação à distribuição (29). A tendência nas redes sociais mais distribuídas do que centralizadas é que os clusters não fiquem isolados, mas interligados, interagindo entre si. Simplesmente porque eles acabarão, mais cedo ou mais tarde, fazendo isso – desde que não se o impeça. Fundamentalmente, porque eles podem fazer isso! A clusterização em redes sociais tende a aumentar à medida que essas redes vão aumentando seu grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de interatividade). Esse é um indicador da transição para a sociedade em rede, na qual vão se alterando as configurações congeladas pelas fortíssimas centralizações impostas pelo sistema de equilíbrio competitivo entre menos de duas centenas de Estados-nações em um mundo de quase 7 bilhões de habitantes. Em termos políticos (ou geopolíticos), a clusterização sócio-territorial que conforma e dá identidade a miríades de novas comunidades (de aprendizagem, de projeto e de prática – clusters de convivência enfim) é uma expressão do localismo cosmopolita que floresce à medida em que a globalização do local encontra a localização do global. Isso está na origem dos Highly Connected Words que emergem em uma época-fluzz.

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A idéia de que qualquer organização exige diferenciação de papéis pré-definíveis foi aceita como um axioma universal na administração. Em alguns casos citavam-se exemplos retirados da biosfera para mostrar que se trata de uma verdade evidente por si mesma (por exemplo, freqüentemente ainda se dá o exemplo das formigas, que já nasceriam com funções especializadas: forrageiras, operárias, soldados – conquanto essa crença já tenha sido desmascarada pela ciência). Não é por acaso que as teorias da administração sejam teorias de comando-e-controle. A administração, qualquer administração, é sempre uma administração da escassez. É uma espécie de economia política aplicada. Só há necessidade de administrar um sistema se esse sistema foi construído a partir da seleção de caminhos para normatizar o fluxo: por aqui pode passar, por ali não pode; para chegar aqui tem que vir por ali, para sair lá tem que passar por aqui. Ora, é mesmo impossível fazer isso sem comando e controle. O fluxo quer fluir. Fluirá por onde houver caminho. Para proibir a livre fluição é preciso obstruir caminhos, derrubar pontes, fechar atalhos entre clusters (nas organizações hierárquicas isso acontece inclusive pela

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segregação espacial dos seus membros, alocados em andares diferentes de um prédio fechado pela introdução de muros, cercas, cancelas, roletas, elevadores programados, cartões magnéticos com permissões exclusivas, que abrem algumas portas e outras não, ou pelas permissões diferenciadas conferidas aos usuários para acessar sites, baixar programas, enviar ou receber mensagens, interagir em plataformas etc.). Tudo comando-e-controle. Redes distribuídas são estruturas sem-administração, que se regulam por emergência (quanto mais distribuídas o forem). Nas novas organizações-fluzz, mais distribuídas do que centralizadas, os papéis ou funções se definem e redefinem continuamente a partir da interação. Uma pessoa que se dedicava às relações institucionais de uma empresa passará a fazer parte da concepção de seus produtos; outra, encarregada do relacionamento com os clientes, será chamada a compor um think tank de inovação. Mais do que isso, com a perfuração dos muros que separavam a organização de grande parte dos seus stakeholders, consumidores também contribuirão para o processo produtivo, acionistas se oferecerão para compartilhar a gestão e as comunidades afetadas de alguma forma pela atuação de uma empresa assumirão solidariamente riscos e oportunidades associados ao empreendimento. E isso é apenas o começo. Nessas circunstâncias não pode haver um departamento capaz de impor, de antemão e de cima para baixo, os caminhos que devem ser seguidos pelos fluxos que atravessam todos os demais departamentos de uma organização. Aliás, antigos departamentos serão substituídos, crescentemente, por instâncias surgidas da clusterização. Múltiplas lideranças se revezarão no netweaving de todos os processos. O velho indivíduo, substituível peça da máquina (por outro indivíduo substituível), vai sendo substituído pela pessoa, insubstituível porquanto única naquilo que faz, do jeito que faz, enquanto nodo da rede em que interage.

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Foi (e ainda está) muito difundida a idéia de que redes sociais são formadas a partir de escolhas racionais feitas pelos indivíduos. Segundo essa idéia as redes seriam voluntariamente construídas com propósitos definidos e baseados nos interesses dos indivíduos. Quem pensava assim, evidentemente, avaliava que podem existir seres humanos sem redes, quer dizer, que primeiro existem os indivíduos (já plenamente humanos) para, depois, se esses indivíduos resolverem se conectar, só então surgirem as redes sociais. Nos novos mundos-fluzz, entretanto, o conceito de indivíduo – uma caracterização biológica ou uma abstração econômica e estatística – tende a perder sentido para dar lugar à pessoa, que é, afinal, quem existe de fato como ser humano concreto. Mas pessoa já é rede. Ninguém nasce com tal condição, não basta ser um indivíduo da espécie, em termos biológicos, para ser humano. Dizer que, para os seres humanos, no princípio era a rede, significa dizer que é necessário “nascer” (com-viver) em uma rede (social) para se tornar humano. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir do relacionamento com seres (que já foram) humanizados.

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Redes sociais não são redes de indivíduos de uma espécie biológica, nem redes de outras entidades abstratas que possam ser identificadas indistintamente, numeradas e somadas para qualquer efeito (como, por exemplo, os habitantes, os consumidores, os contribuintes, os eleitores), mas redes de pessoas. Não existem as redes dos pensionistas do sistema previdenciário, dos mutuários do sistema habitacional ou dos torcedores de determinado clube esportivo (a não ser quando interagem em torcidas organizadas), assim como não existe a sociedade composta pelos que estão na fila para comprar ingressos para um torneio. As redes (sociais) não somam suas partes (individuais) porque elas não são propriamente constituídas por essas partes, mas pelas relações que se efetivam, pela configuração móvel das interações que se processam ou pelo emaranhado que se trama a cada instante.

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Também era muito comum a idéia de que as redes são uma espécie de instrumento para se fazer alguma coisa. Quando o assunto entrou na moda, as pessoas acharam que estavam diante de uma nova forma de organização recentemente descoberta e queriam logo usar as redes com algum objetivo instrumental, ainda quando desejassem colocá-las a serviço de uma causa que, a seu ver, não poderia ser mais nobre: a grande transformação social. Mas a emergência da concepção-fluzz de que, na sociedade, não há o que transformar, é realmente surpreendente. Trata-se, para cada sociedade, de ser o que é – ou seria, se não houvesse obstrução de fluxos, exclusão de nodos ou desatalhamento de clusters. Dizendo de outro modo: trata-se, para as redes sociais, de serem o que podem ser. Uma rede social não pode ser nada mais do que uma rede distribuída. Os caminhos que seguirá dependerão da sua dinâmica, dos fenômenos particulares que nela ocorrerão a partir da livre interação. Toda tentativa de predeterminar esses caminhos é, na verdade, uma tentativa de impedir que a rede escolha seus caminhos. O que vai acontecer depois vai acontecer depois e não pode ser determinado por quem está antes.

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Por isso se diz que as redes sociais distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança. Isso vai contra o modelo transformacional da mudança próprio das estruturas de comando-e-controle que queriam levar as sociedades humanas para algum futuro pré-concebido. Quando se pensava assim, tudo virava instrumento para pré-determinar caminhos e isso, por si só, já introduzia escassez de caminhos e centralização (hierarquia) bloqueando a única mudança que poderia fazer a diferença (ao instalar a dinâmica da inovação permanente): a mudança de hierarquia para rede.

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No velho mundo fracamente conectado dos milênios passados erigia-se sempre uma hierarquia para realizar qualquer mudança social, assim no que era chamado de ‘a sociedade’ como em qualquer organização particular. Diante dos sinais de que a estrutura e a dinâmica das sociedades estavam adquirindo, cada vez mais, as características de uma rede, os chefes de organizações hierárquicas começaram a tentar fazer reengenharias para se adequar à mudança. O primeiro impulso foi o de controlar as redes sociais (em geral confundidas com as mídias sociais) para usá-las de acordo com seus velhos propósitos: para ter mais influência, para ter mais votos, para vender mais, para extrair mais sobrevalor dos funcionários, para derrotar mais facilmente a concorrência ou os inimigos. Isso, entretanto, não aumentou a capacidade de adaptação das organizações hierárquicas porque o problema não estava em descobrir uma nova combinação dos seus recursos materiais e organizacionais, humanos e sociais e sim na sua própria natureza de organização hierárquica. Novos departamentos hierárquicos encarregados de adequar a organização às novas possibilidades que iam se tornando disponíveis em uma sociedade em rede (nuvens de computação, plataformas interativas, trabalho remoto, marketing viral, sistemas de co-working e co-creation voltados à inovação,

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peer production, crowdsourcing, crowdfunding, crowdbuying, etc) não foram capazes de atingir o coração do problema, que é o seguinte: em uma sociedade em rede as organizações também devem ser redes. Fica faltando sempre um... crowdweaving. Porque o problema é: como fazer a transição de pirâmide (mainframe) para rede (network)? Mas é inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma organização piramidal para uma organização em rede. Aranhas não podem gerar estrelas-do-mar, para usar as boas metáforas de Brafman e Beckstrom (2006) (30). Deveria ser óbvio, tautológico ou quase. Se queremos redes devemos articular redes, não erigir hierarquias. Semente de rede é rede. Desistam os que pretendem fazer isso: uma hierarquia não pode gerar uma rede. A manutenção das hierarquias não ocorre em função de qualquer discordância consciente das redes por parte dos agentes de um sistema hierárquico. Uma vez erigidas, as hierarquias tendem a se manter e reproduzir por força de circularidades inerentes às suas interações recorrentes. É uma espécie de mecanismo de segurança do sistema contra sua dissolução. É uma maneira de se proteger do caos representado pela ausência de ordem top down. É uma forma de ficar do “lado de fora” do abismo, posto que cair no abismo é o maior temor de toda estrutura mais centralizada do que distribuída.

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Cair no abismo é entrar naquela região desconhecida onde novos padrões são continuamente gerados. É ser colhido pela corrente alucinante na qual fluzz vai quebrando as circularidades inerentes aos padrões conversacionais ou interativos que se prorrogam (e que só se prorrogam enquanto tais circularidades se mantêm). Quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível despencamos no abismo. Quando erigimos fronteiras opacas, que nos separam dos outros, evitamos a queda e ficamos do “lado de fora” do abismo. Nos “salvamos” protegendo-nos da interação. Aí, é claro, reproduzimos o velho mundo. Sim, o velho mundo é um conjunto de arquivos salvados: os mesmos programas são postos a rodar, continuamente. Enquanto protegidos da livre interação, esses programas não se modificam. Todas as tentativas políticas e espirituais de mudar o mundo e reformar o ser humano basearam-se na instauração de uma nova ordem, seja a ordem “descoberta” pela observação de supostas leis da história, seja a ordem revelada por alguma instância extra-humana. Todas, de certo modo,

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demonizavam o caos e tinham horror à queda no abismo. Todas queriam nos salvar mantendo-nos seguros no “lado de fora” do abismo. Ofereciam-nos, como compensação pela aventura perdida, a segurança de regras que disciplinam a interação. Líderes, condutores, reformadores, sempre apelaram para nossa consciência, acreditando que a mudança se daria quando alcançássemos determinada visão, vivêssemos uma experiência extraordinária ou nos convencêssemos individual e coletivamente de certas realidades. Esses salvadores, via de regra ligados a estruturas hierárquicas (fossem partidos, corporações, igrejas, escolas de pensamento, ordens, congregações, seitas, sociedades ou fraternidades) queriam nos inserir nessas estruturas centralizadas, sob a justificativa de que era necessário reunir condições favoráveis, recursos de monta, grandes contingentes de filiados, eleitores, seguidores ou adeptos, para poder implementar a mudança que anunciavam. Entretanto, os agentes de um sistema hierárquico, pensem ou acreditem no que quiserem, são sempre agentes da manutenção e reprodução do sistema. Não é mudando (ou “fazendo”) suas cabeças, incutindo novos valores, disseminando novas crenças, que vamos conseguir realizar a transição do padrão centralizado para o padrão de organização em rede (mais distribuído do que centralizado). Todo proselitismo é inútil nessa matéria. Não se trata de convencimento, nem mesmo de consciência. Eles não podem mudar seu comportamento enquanto não mudarem o modo como se relacionam com os demais agentes. E esse modo de se relacionar não pode mudar enquanto permanecerem como válidas apenas certas configurações de caminhos pelos quais a organização hierárquica se constitui disciplinando a interação. Para libertar a interação desses constrangimentos é necessário quebrar as rotinas, violar as fronteiras e pular as cancelas internas e externas, tomar iniciativas que não foram planejadas pelos chefes ou inspiradas pelos líderes, esquivar-se do seu comando, livrar-se de sua influência, colocando-se fora da possibilidade de controle; enfim... é necessário desobedecer! (30). Obediência é sempre manutenção de uma ordem. Desobediência é sempre introdução de des-ordem. Em uma organização hierárquica desobediência é, simplesmente, fazer redes (mais distribuídas do que centralizadas). Sim, o único caminho para a rede é a rede.

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É paradoxal porque, como redes são múltiplos caminhos, esse único caminho já são múltiplos caminhos; ou seja, qualquer rede distribuída é caminho. Enquanto esperamos uma grande mudança no mundo a partir da mudança de consciência de seus agentes, o mundo único persiste. Persistia, enquanto se conseguia impedir o surgimento de outros mundos em rede. Agora, porém, isso já não é mais possível.

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E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade, cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados.

Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores.

Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades.

Como um gigantesco desdobramento dentro dele, ele via nessa revelação o que ela devia ser:

uma janela para as partes invisíveis da sociedade. Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela.

Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo. Começou a perscrutar as janelas, como um voyeur cósmico.

Frank Herbert em Os filhos de Duna (1976)

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Muitos mundos, isso mesmo. Não existe um mundo que se possa dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização. Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os mundos são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting. Broadcasting – um para muitos – é, obviamente, centralização, quer dizer, hierarquia. Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as agências de notícias, talvez o cinema e não sobrará mais um só mundo. Sem o broadcasting já teremos múltiplos mundos: cada qual configurado pelas nossas conexões. Com a internet esses mundos se multiplicam velozmente, mas não por difusão e sim por interconexão. Desse ponto de vista, interconnected networks (internet) é, na verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento que varre esses inumeráveis interworlds. No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz for do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos serão os novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio.

Pense em um mundo sem TV e rádio, sem jornais e revistas, sem agências de notícias, sem editoras e distribuidoras de livros de domínio privado e sem cinema. Não, não estamos propondo uma volta à Idade Média. Teremos telefone, Internet, redes P2P, redes Mesh e qualquer mídia (sobretudo interativa) não baseada no padrão um-para-muitos (incluído spaming). Neste caso não haverá mais um (mesmo) mundo para todos. Sem o broadcasting esvai-se a ilusão de um mesmo mundo para todos em termos sociais. Ficará claro que cada um tem o seu (próprio) mundo (em termos sociais). Mas ninguém estará aprisionado no seu mundo, pois poderá se conectar com outros mundos (os mundos das outras pessoas). Teremos uma rede de mundos: muitos mundos interconectados. Quanto maior a interatividade de uma rede de mundos, mais-fluzz ele – o mundo social configurado por essa rede – será.

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Mas... atenção! Quanto mais-fluzz for um mundo, menor (não em termos geográficos ou populacionais e sim em termos sociais) ele será. Mundos grandes, nesse sentido, quer dizer, com altos graus de separação, são mundos menos-fluzz. A interatividade reduz o tamanho do mundo e isso não é uma função do número de seus elementos (pessoas e aglomerados de pessoas) e sim dos seus graus de distribuição e conectividade. Onde fluzz está mais “ativo”, os mundos se contraem. Há um amassamento. Small-world networks são efeitos de crunching (um neologismo cunhado a partir da palavra crunch). Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de cada um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds. Os interworlds serão inumeráveis; portanto, a rigor, o mundo de cada um é, potencialmente, uma série de inumeráveis mundos em interação. Sim, tudo depende da interatividade. O que significa dizer que não depende da capacidade ou do esforço de cada um de se fazer ver por muitos. Assim, nos novos Highly Connected Worlds, gente famosa (poderosa, rica, super certificada ou titulada, admirada por qualquer outra qualidade intrínseca massivamente reconhecida ou atribuída externamente à interação), tende a não ser mais tão relevante. Com isso vai também por água abaixo essa desastrosa idéia de sucesso, que predominou nos séculos passados, baseada na capacidade de alguém de se destacar dos demais. Impelido por fluzz, ninguém se deixará desvalorizar facilmente no circo global montado para selecionar (e apresentar apenas) algumas atrações e para polarizar sobre elas a atenção dos demais. Cada qual pode ser a atração no seu próprio mundo e nos mundos conectados a esse mundo. Uma aldeia global montada para subordinar os vários mundos a apenas alguns, dando a impressão de que só estes últimos existem, está com os dias contados. Teremos inumeráveis aldeias globais.

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O estilhaçamento do mundo único é uma mudança de época jamais presenciada pelas chamadas civilizações (patriarcais, guerreiras, quer dizer, hierárquicas). Os padrões de vida e convivência social estão mudando. Isso significa que você também está mudando. Porque estão mudando seus relacionamentos recorrentes: sim, seu mundo-fluzz é sua timeline. Não, por certo, a timeline do Twitter, mas aquela que rola no espaço-tempo dos fluxos e que não pode ser captada por quaisquer das ferramentas digitais p-based disponíveis. Essa mudança é a rede. À medida que aumenta a interatividade da rede na qual você está imerso, fenômenos surpreendentes começam a acontecer. Com a queda brusca dos graus de separação, chegará rapidamente o dia em que você chamará um taxi em uma cidade de dez milhões de habitantes e o motorista dirá: “O senhor não é o Steven Strogatz, que investiga redes sociais e que descobriu que o mundo está ficando pequeno mais rapidamente do que imaginávamos?”. Isso, é claro, se você for de fato o Steven Strogatz. Mas, de certo modo, se você é o motorista que se relaciona (ou que se relaciona com quem se relaciona, ou que se relaciona com quem se relaciona com quem se

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relaciona) com Steven Strogatz, sobretudo se ele (ou quem se relaciona com ele) está na sua timeline e você (ou quem se relaciona com você) na dele, você será um pouco Steven Strogatz (na medida inversa do seu grau de separação dele): eis o ponto! Tal mudança vai muito além do que imaginávamos porque você está fazendo parte de um organismo capaz de inteligência e, quem sabe, de outros atributos ou qualidades que sequer conseguimos imaginar. Os Highly Connected Worlds tendem a ser organismos humanos coletivos. Atenção: superorganismos humanos, não organismos super-humanos! Eles são os campos para o nascimento do ‘indivíduo social’. Steven Strogatz fará parte de você e você fará parte dele porque ambos farão parte de um mesmo organismo, não em termos metafóricos, como quando usávamos a palavra ‘organismo’ para designar o que imaginávamos que fosse ‘a sociedade’. Não. Trata-se de um organismo mesmo. E humano. O indivíduo social está nascendo agora. Mas ele já estava presente, como prefiguração, desde o início, quando se constituíram os primeiros seres humanos. Para lembrar a bela Canción Tonta de García Lorca (1924), nós, os humanos, só o éramos enquanto estávamos “bordados en la almohada” da rede-mãe (1). O indivíduo-social não pôde se consumar como humanidade enquanto algo estava impedindo: a escassez de conexões, uma escassez artificialmente introduzida por modos de regulação não-pluriárquicos. Fluzz não podia passar. Mas fluzz é empowerfulness. Se fluzz não pode soprar o corpo não se vivifica. Essa mudança, todavia, é diferente – e única – em cada mundo. Não, não é sempre a mesma coisa. Depende de “onde” (ou como) o fluxo (o)corre. Manoel de Barros (1993) inventou “que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos” (2). Pois é. No limite, você fará seu mundo. Quer dizer, você (ou você e sua timeline – o que tende a ser a mesma coisa) será o mundo e os mundos serão tantos quanto as identidades coletivas que forem usinadas por fluzz. Isso significa que os Highly Connected Worlds tendem a ser inumeráveis, assim como serão inumeráveis os interworlds, miríades de interfaces conectando miríades de mundos e “explodindo como uma ramada de neurônios”, para lembrar um artigo seminal de Pierre Lèvy (1998) (3). Em termos tecnológico-sociais, o grande desafio hoje, ao contrário do que reza a metafísica que esse Mark Zuckerberg – o chefe do Facebook – quer

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nos empulhar – para torná-la, a sua plataforma proprietária única, a própria rede e não mais uma ferramenta –, é construir os inumeráveis interworlds que serão as novas internets. O Facebook tem mais de 500 milhões de usuários? É ruim. Seria melhor ter 500 mil plataformas com mil usuários cada uma, conversando entre si... Tudo que não precisamos agora é reeditar a ilusão hierárquica de um mundo único. Uma sociedade em rede é uma configuração de miríades de Highly Connected Worlds interagentes. Essa é a única mudança verdadeiramente sustentável: tudo que é sustentável tem o padrão de rede porque rede é redundância de processos e abundância (diversidade) de caminhos. A mudança-que-é-a-rede é fractal, não unitária. A mudança não é a emergência de muitos mundos locais (que, de resto, sempre existiram), mas os múltiplos caminhos (que não puderam existir nas civilizações hierárquicas) entre o local e o global. E ela não se consumará sem essas “zonas de transição” que são interworlds.

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Começa assim: não uma Internet: miríades de internets. Bem, agora já está melhorando. Mas, como? Não estamos correndo o risco de perder todas as referências – e, com isso, o sentido – com esse estilhaçamento? A preocupação com a fragmentação é uma herança típica de um mundo pouco-fluzz. A totalidade não está dada, tem que ser consumada. E serão sempre totalidades, no plural. Eins und Alles. Que se dane se você não terá mais uma grande narrativa, um esquema explicativo geral. Não havendo um mundo (único), para que precisamos disso? Por certo, você fica incomodado com a fragmentação desses inumeráveis mundos que se fazem e liquefazem. Mas esse seu mal-estar baumaniano (de Zygmunt Bauman) é pura falta de Pó de Flu (aquele “Floo Powder” inventado por Ignatia Wildsmith, da série Harry Potter de J. K. Rowling, usado para conexão à Rede do Flu); ou seja, é falta de interworlds. Trata-se de referenciar o bem-estar na (fluição da) relação, não na (solidez da) coisa.

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Ainda existem vários obstáculos à uma comunicação, por assim dizer, “isotropicamente distribuída” (capaz de manter as mesmas propriedades em todas as direções): a centralização da rede em servidores, provedores, roteadores, cabos, satélites, torres, mainframes transceptores de ondas eletromagnéticas, geradores de energia, resfriadores, protocolos de reconhecimento, trânsito e integração de mensagens; a variedade de línguas e a falta de tradutores-transdutores universais móveis que operem em tempo real; a falta de programas de busca inteligente e de criação de ambientes favoráveis à emergência de conteúdo novo por combinação não-humana (polinização mútua) de mensagens; a separação entre os dispositivos tecnológicos e o corpo humano; e a insuficiente interação entre pessoas e não-pessoas (desde a comunicação com outros seres sencientes ou coletivamente inteligentes, animados e inanimados, até a parceria simbiótica com uma variedade de seres vivos). Para começar: fluzz é obstruído pela centralização das comunicações (pela difusão centralizada um-para-muitos chamada broadcasting), mas também pela Internet descentralizada. O grande desafio hoje é construir os interworlds que são as novas internets. Trata-se de um desafio ao mesmo tempo social e tecnológico. Rolou por décadas uma discussão fora de lugar sobre as ameaças da tecnologia. Muitas pessoas tinham medo de que a tecnologia fosse nos dominar, nos afastar das outras pessoas, prejudicar nossa saúde física ou mental ou, até mesmo, inviabilizar a vida humana no planeta. Mas, em termos sociais, não há nenhum problema com a tecnologia. O problema é com a tecnologia que introduz artificialmente escassez centralizando a rede social e ensejando o controle. Por certo, os sistemas de dominação não teriam podido se manter sem o controle dos insumos básicos: a terra, a água, os alimentos e as fontes de energia. Mas a escassez foi introduzida por um tipo determinado de tecnologia urbana, hidráulica e agrícola: sem essa escassez (programada, em certa medida) de recursos sobrevivenciais, esses sistemas de dominação não teriam podido se reproduzir. Assim, durante milênios fomos submetidos a tecnologias que viabilizavam o controle. Por exemplo, o modelo hidráulico redistribuidor de água em canais de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica, criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, em uma proporção que ia muito além daquela exercida pela natural atração das terras mais férteis. O objetivo era o controle. Se o povo não vivesse sob a ameaça (do perigo),

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como poderia ser recompensado pela sua aquiescência, sendo salvo do perigo? E como poderia ser castigado por sua desobediência à ordem, sendo abandonado ao perigo? (4) Agora precisamos de tecnologia para viabilizar e acelerar a distribuição da rede social. Quanto menor a possibilidade de comando-e-controle, mais-fluzz será essa tecnologia. Isso vale para tudo: energia e matéria, átomos e bits. E vale também para a comunicação. Assim como fluzz é obstruído pela centralização das comunicações e pela Internet descentralizada, ele também é obstruído por todas as separações: desde aquelas impostas pela barreira da língua (que separa pessoas que falam idiomas diferentes), passando pela busca burra (que separa quem procura de quem gera conhecimento), pelos dispositivos tecnológicos interativos separados do corpo humano e, inclusive, no limite, pela separação entre pessoas e não-pessoas. A barreira da língua é uma das principais remanescências do mundo único hierárquico. É curioso que, mesmo tendo sido imposto um mundo único, persistam várias línguas (cerca de 7 mil idiomas). Isso porque o mundo único não é monocentralizado e sim multicentralizado (ou descentralizado) em algumas identidades imaginárias (que chamamos de nações, povos ou culturas sócio-territoriais, dominados hoje por menos de duas centenas de Estados). A metáfora bíblica sobre isso é esclarecedora. Na mesma Babel – não em várias – as pessoas não podiam se comunicar umas com as outras. Não era um problema de saber interpretar um código, de falar a mesma língua. O que houve em Babel foi a impossibilidade de um conversar, não porque as pessoas falassem vários idiomas e sim porque não conseguiam coordenar mutuamente suas atitudes (o linguagear, na expressão de Maturana, que pressupõe e exige cooperação) e, desse modo, não se entendiam (sem um acoplamento estrutural não pode haver comunicação). É a pirâmide (a topologia centralizada da rede social babeliana) que impede esse (assim como qualquer outro) conversar. Tal problema só tem solução social, não tecnológica. A solução para Babel é a rede social distribuída. No entanto, o problema da remanescência de várias línguas, entendidas como idiomas, como códigos que podem ser traduzidos, tem solução tecnológica. Dispositivos móveis com programas de tradução simultânea, capazes de receber e emitir dados e voz, são partes (por aproximação, assimilação ou simbiose) dessas interfaces complexas que chamamos de interworlds.

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A falta de programas i-based de navegação inteligente, da busca (semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos significados), também é um obstáculo à interação entre os mundos. Mas tal desafio pode ser superado caso não se insista em recriar monstruosos sistemas de gerenciamento do conhecimento (top down) e em arquivar significados únicos de modo centralizado (como faz, por exemplo, a Wikipedia). Repetindo: toda tecnologia é bem-vinda, inclusive aquela que modifica os corpos humanos, desde que possibilite mais distribuição. Há muito tempo estamos modificando nossos corpos: tomamos inibidores seletivos da recaptação da serotonina (e. g., fluoxetina) e da fosfodiesterase-5 (e. g., sildenafila), injetamos insulina transgênica, fazemos implantes (dentários, auditivos e inclusive de chips capazes de devolver a visão), inserimos nanopartículas para corrigir rugas na pele, usamos próteses de todo tipo e instalamos órgãos ou partes de órgãos internos artificiais. Por que não poderíamos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar e acelerar a comunicação? Pode-se argumentar que não temos como saber se, no longo prazo, tudo isso prejudicará a saúde. Mas também não temos como atestar isso em relação à maioria dos medicamentos que tomamos ou das intervenções médicas que realizamos. Todas essas substâncias e procedimentos, em certa medida, provocam doenças ou desencadeiam novos padrões de saúde ou ensejam novos reequilíbrios saúde-doença. Sim, saúde não é ausência de doenças, mas a estabilidade relativa de um sistema que, se estiver vivo, estará necessariamente afastado do equilíbrio, convivendo, portanto, com alterações que convencionamos chamar de doenças (e que só são chamadas assim do ponto de vista de um padrão de saúde, baseado em indicadores cujos parâmetros de normalidade são variáveis com época, lugar, cultura, conhecimento). Só seres inanimados estão livres de doenças (ainda que as infestações de vírus em seres cibernéticos também possam vir, coerentemente, a ser encaradas como doenças). Por outro lado, do ponto de vista biológico, já existe a parceria simbiótica do corpo humano com outros seres vivos. Somos, na verdade, colônias de bactérias, comunidades de microorganismos. Somos os planetas onde vive boa parte dos seres vivos. Tal parceria está presente no interior de nossa unidade vital: a célula nucleada é o resultado da associação com um procarionte que passou a compor o novo organismo por endossimbiose. Mas todas as tecnologias que podem apoiar, vamos dizer assim, o surgimento das múltiplas internets distribuídas, não são, elas próprias, os interworlds que conectam os mundos em rede aqui chamados de Highly

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Connected Worlds. Esses interworlds são sociais – fundamentalmente, são redes sociais – não dispositivos tecnológicos. Ou seja, no limite, os interworlds são pessoas.

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Toda pessoa é uma pequena sociedade. Novalis em Pólen (1798)

Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas. (“Umuntu ngumuntu ngabantu”: Máxima Zulu)

Todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas. http://twitter.com/augustodefranco (08/07/10)

Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos. John Guare em "Six degrees of separation"

Peça de teatro na Broadway (1990)

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Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio, vida humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos. Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas sociais”. Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters, “regiões” da rede social a que estamos mais imediatamente conectados. Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um “clone” de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia Novalis (1798), é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é rede! Pessoa é um ente cultural que replica uma configuração. É um ghola social.

Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a tenha criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”). Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente são nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e conscientemente tais

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escolhas. Adotamos princípios, escolhemos carreiras, compramos produtos e priorizamos atividades em função do que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos). Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única, desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos). O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura dos novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse superorganismo humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas, computadores ou alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que experimentamos em todos os milênios pretéritos. E tudo isso pode ocorrer sem a necessidade de termos consciência (individual) do que está se passando. Ao viver a vida da rede, apenas vivemos a convivência: não precisamos mais tentar capturá-la e introjetá-la, circunscrevê-la ou mandalizá-la para conferir-lhe a condição de totalidade, erigindo um grande poder interior de confirmação para nos completar da falta dos outros e nos orientar nos relacionamentos com eles. Tal necessidade havia enquanto podia haver a ilusão da existência do indivíduo separado de outros indivíduos; ou quando um (ainda) não era muitos. Toda consciência é consciência da separação, inclusive a consciência da unidade, da totalidade, ou da unidade na totalidade, é uma resposta à separação. No abismo em que estamos despencando ao entrar em fluzz, não há propriamente isso que chamávamos de consciência.

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Como epígrafe de um dos capítulos de "Os filhos de Duna", o escritor de ficção Frank Herbert (1976) colocou na boca de Harq al-Ada, cronista do Jihad Butleriano (a guerra ludista contra as máquinas inteligentes) (1):

"O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela uma perigosa ignorância. Essa tem sido freqüentemente a abordagem ignorante daqueles que chamam a si mesmos de cientistas e tecnólogos".

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No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965-1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente. No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas habilidades. A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa (que seria, então, uma espécie de “ghola social”).

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Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é tão importante dizer isso? No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades mentais e físicas. Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações, aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a seguinte litania:

“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou. Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa. Resistir é inútil”.

Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é “aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.

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Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg. Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a seguinte:

Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões sociais. É só preciso deixar-ir.

A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.

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Pessoas são portas. Abrem caminhos. Na verdade, são caminhos. Atalhos entre clusters. Pontes. É sempre por meio de uma pessoa que podemos interagir com quem está em outros mundos. Isso significa que os interworlds são realmente as pessoas, não um novo ambiente tecnológico, mas um novo ambiente social com novos recursos tecnológicos. Esta é uma típica compreensão-fluzz: pessoa não é o individual e sim o social. Surpreendentemente, em mundos altamente conectados as novas internets são... as pessoas! Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A partir de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer, superorganismos humanos. Quando a tecnologia fornecer os meios para manter as pessoas continuamente conectadas e para acelerar a interação, ela o fará a partir dessa possibilidade social. Aliás, foi assim que nasceu a velha Internet: como percebeu Castells, sua estrutura interativa só foi projetada assim porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (2). E as pessoas

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que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos dispositivos móveis interativos, seja com implantes bio-eletrônicos ou cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais. Há sempre um risco. O risco de ser borg. A fronteira entre um borg e um ghola-social é móvel, nebulosa e quase sempre invisível. A hierarquia produz borgs. As redes humanas distribuídas geram gholas-sociais. Mas a maioria dos padrões de interação se configura no intervalo entre centralização máxima e distribuição máxima. Evitar o risco é refugiar-se na vida individual, escolhendo racionalmente as interações, sendo seletivo nos relacionamentos, fechando-se ao outro. Esse é o fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso”. Fecham-se à interação com o outro-imprevisível e, ao fazer isso, a despeito de serem muito conhecidas, obstruem conexões com a nuvem que as envolvem, desatalham clusters (ao se recusarem a servir como pontes), excluem outras pessoas do seu espaço de vida e simultaneamente se excluem de outros mundos, isolando-se do superorganismo humano e deixando de contar com uma parte (justamente aquela parte inusitada, que os marqueteiros, os políticos profissionais e os psicólogos sociais tanto procuram e não conseguem encontrar) das imensas potencialidades do social. São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo. Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda de si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem alcançou tal condição). Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal, como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como conseqüência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por defict de interatividade.

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Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões de followers nas mídias sociais mais freqüentadas ou se seu blog tem milhares ou milhões de pageviews). E o risco? Bem, nos Highly Connected Worlds a pessoa é compelida a correr o risco, a fluir com o curso. Não pode se proteger, se sedentarizar em seu mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a ser mais-do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds, navegar, ser nômade, fluzz. “Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (3). Nos novos mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma porta para outros mundos).

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Os deuses eram ventos. Arturjotaef em Numância (2010)

Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria... Traduzida literalmente significa “retorno à mãe”

- na medida em que os ex-escravos eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”.

Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade. Wikipedia (2010)

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Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece. (Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de dizer, pois fluzz já é o sopro). Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para que Estado? Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões, escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será, afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável” (1). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou desconstitui todos os caminhos). Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas” (2). Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver em processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.

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Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que chamamos de instituições (hierárquicas): escolas, ensino, religiões, igrejas, corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força, ou seja, para impor caminhos. A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a força. Fluzz é o curso. Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma rede que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo social é composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre um desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com outros; ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se isso acontece é porque interworlds foram aniquilados. Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro – mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles). Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis – de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do Egito... para aprender” (3).

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A investigação das redes sociais leva-nos a uma nova hipótese antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso for), que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”) (4). Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede. Logo, sem essa rede não podemos ser humanos. Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser humano’ – então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa que somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa “mãe”. Ou seja, que existe uma rede-mãe. A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão) redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos

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transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (5). Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a concepção do homo economicus simplesmente partiram desse fundamento hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada indivíduo. Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase uma tara – baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na ausência de “um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o que é pior do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta” (6). Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação com o bem-estar dos outros não existe” (7) existiria, entretanto, paradoxalmente, o indivíduo enquanto unidade isolada dos outros indivíduos. Evidentemente, diante de tantos atos gratuitos de colaboração que praticamos e presenciamos no dia-a-dia, essa construção intelectual só pode se revelar uma perversão. Daí a tara individualista, tão freqüente e inadequadamente denominada de liberalismo (econômico). Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...) poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede. Como disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação de redes” (8). A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva deve ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para guerrear e a convivência fica ameaçada. Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores, em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de interatividade ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem fluxos, separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é, exatamente, o que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de uma hipótese religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente competitivo (ou em parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o que isso for). Tal hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe que possam existir seres humanos (entes biológico-culturais) como entes (biológicos) isolados.

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Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural (comportamental) que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo dictyous – se é que se pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ – é relacional. Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos (verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (9). Na ausência do poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos dizer que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware da rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo simples motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o que precisa ser explicado é o processo de centralização, não o estado de distribuição. São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam ser justificados, não a convivência. Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na presença de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais comuns do que se pensa – em que o software modifica o hardware (como quando aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões neuronais). Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam programas meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes atribuímos atributos super-humanos), sejam programas organizacionais (que rodam comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – como escolas, igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições assemelhadas com todos os seus aparatos). No interior e no entorno dessas organizações hierárquicas o campo social é profundamente perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado obrigando as fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é disciplinada sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas monstruosas funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é aterrorizante. Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez não por acaso: organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o diagrama (B) de Paul Baran (1964) já exposto aqui na Fig. 1.

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Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando outros caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso que a primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra suméria Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”. Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para que Estado? Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam-se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante tempo já fazemos com as religiões que professamos quando nos convertemos depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por simpatia ou por outras razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por razões análogas,

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preferirá se identificar com uma região ou cidade: será californiano ou cidadão-cultural de Lyon. Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O movimento do homeschooling já começou e avançará para o communityschooling (na linha do unschooling). Comunidades de aprendizagem em rede tendem a florescer e se multiplicar nos Highly Connected Worlds substituindo as atuais burocracias do ensinamento (chamadas de escolas). Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado-nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para milhares de centros com autonomia crescente), dará margem à configuração de novos modelos glocais de governança baseados no localismo cosmopolita de miríades de cidades como redes de comunidades interdependentes. É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade que atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do terceiro milênio.

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Walter Robinson (2008), também conhecido por Ritoku – um zen-budista que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo “Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana” (10), observa que “Vulcanos têm “sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos e um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a presença de distúrbio em campos magnéticos” (11). A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por exemplo, basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa para constatar com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos chefes modifica a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos fluxos). Os fluxos se abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros, engolidouros, alçapões de fluxos. Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do campo social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders externos da

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organização, transbordando para seu entorno. É por isso que uma grande empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual não existam outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se acreditava – impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina o capital social local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem exemplos à farta. Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a capacidade de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg diminui a sua dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social). Vestem sempre uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que não usam uniformes elas se uniformizam interiormente. E até exteriormente: não raro preferem roupas que escondem o corpo e os tons de cinza para o vestuário. No exercício continuado da servidão voluntária, autolimitam suas potencialidades escondendo-se na penumbra das rotinas e optando por não se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem tudo – sobretudo o que delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! – para se submeter ao sistema e aos seus chefes. E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que, após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a. E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem). Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do campo social sob o domínio da sombra de Dario (12). O regime monstruoso não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes vantagens militares. Os persas foram rechaçados pelos irreverentes, insolentes e mais livres atenienses e seus aliados na planície de Maratona (em 490). Sim, mas o que é realmente monstruoso é que tal programa (que poderia ser chamado, em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de Dario) – instalado quase três milênios antes de Dario – continue a rodar... quase três milênios depois! Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto, mesmo que seus membros não tenham consciência disso, quaisquer tentativas de comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do conhecimento ou ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores de corpos,

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construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores de rebanhos não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem mesmo, nas mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são utilizadas como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são, todos, netavoids. Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas quais o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não se faz necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau de distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele detecta distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois acaba metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que chamamos de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar os motivos dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa está errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou mesmo um troll, nas mídias sociais). É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso.

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Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –, na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador. Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes. Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará – em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces (interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar pessoas.

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Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo transformador da vida. Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição da ordem). Nas organizações hierárquicas, um processo intermitente de despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos, separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas. Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes. Organizações hierárquicas não podem conversar com redes. Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas. A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos

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– ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse acontecido. É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes... Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar – com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o reconhecimento social pela sua atuação. Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico, seja com base no interesse político de um grupo particular que quer manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando satisfeitos. Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”. Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo

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interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela. Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade, as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”

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Toda rede miceliana é um clone fúngico, o filho distante de uma única linhagem genética.

Acima do solo, os fungos produzem esporos que flutuam no ar... Quando pousam, os esporos crescem onde quer que seja possível.

Fazendo brotar redes tubulares, as hifas... os fungos produzem quantidades copiosas de esporos, os quais se disseminam,

espalhando sua estranha carne... Lynn Margulis e Dorion Sagan em O que é vida? (1998)

Jericó estava fechada por causa dos israelitas. Ninguém saía ninguém entrava... O Senhor disse então a Josué:

“No sétimo dia... os sacerdotes tocarão as trombetas... Quando ouvirdes o som da trombeta, o povo lançará um grande grito;

o muro da cidade virá abaixo, o povo subirá, cada um à sua frente. Josué 6: 1-5

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Enquanto isso, porém, crescem subterraneamente as hifas, por toda parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo corroídos e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro, vão agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas vão tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em miríades de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes. E outras identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio.

Não se decepcione: provavelmente você não vai ver nada mesmo! As hifas crescem, em geral, abaixo do solo. Os esporos espalham-se pelo ar, mas são tão pequenos que a gente nem percebe. Quando você notar as conseqüências, aí não adiantará mais se desesperar. Pois se o processo, por enquanto, ainda é lento e invisível (em parte “aéreo”, em parte “subterrâneo”), seus desfechos poderão ser bem concretos e fulminantes nos mundos em que ocorrerem. Nos Highly Connected Worlds não há como fechar nada. Trancar, chavear, cerrar as fronteiras, isolar por meio de paredes opacas não é a solução para manter a identidade ou preservar a integridade de nenhum aglomerado. Quando os fluxos aumentam de intensidade, os muros não conseguem mais contê-los. Parece que a vida “sabia” disso: tanto é assim que não encerrou seu “átomo” (a célula) em nenhuma estrutura fechada, separando-o do meio com paredes opacas: antes, construiu membranas – uma interface de sustentabilidade, um convite à conexão. Um convite ao sexo, já que estamos agora explorando um paralelo biológico: nos fungos – que são “organismos realmente fractais”, como percebeu a bióloga Lynn Margulis (1998) – o ato sexual (chamado de conjugação) é uma conexão (1).

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Muros caindo por toda parte anunciarão “membranas sociais” surgindo por toda parte. Ou não: o que não virar “membrana social” será escombro. O que as hifas – esses filamentos ou tubos finos que formam a estrutura em rede dos fungos – têm a ver com isso? Ora, tudo. Pois são elas (ou o processo espelhado, em termos biológicos, pela clonagem fúngica) que estão operando tal mudança.

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Eis como paredes opacas vão se tornando inadequadas para conter o fluxo: elas vão sendo perfuradas por hifas. Essa possibilidade existe concretamente desde que os subordinados em uma organização hierárquica não podem mais ser proibidos de se conectar com quem está do lado de fora do muro pelas polícias corporativas (os departamentos de segurança, os departamentos de pessoal e, inclusive – e hoje principalmente –, os departamentos de tecnologia da informação). O aprisionamento de corpos e sua contenção física em prédios fechados, com salas e andares isolados um dos outros, controlados por portarias ou por barreiras eletrônicas que não deixam passar quem não tem o código válido no seu cartão magnético funcional, já não resistem adequadamente a aglomeração física não-prevista pelos protocolos de segurança; por exemplo, dos amigos que se encontram após o expediente em bares, restaurantes, shoppings e em suas próprias casas, ou até mesmo dos fumantes que são obrigado a se encontrar na rua, do lado de fora das sedes, por imposição legal. E muito menos é capaz de resistir à comunicação à distância, por celular, e-mail, pelos programas de mensagens e comunicação instantânea ou pelos sites de relacionamento na Internet.

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É inútil proibir e não há como manter uma vigilância eficaz. Os departamentos de tecnologia da informação (TI) podem tentar barrar (como ainda insistem em fazer) o acesso às chamadas mídias sociais e aos vários serviços de comunicação web na sua própria rede de computadores, mas qualquer um que tenha um celular (3G, equivalente ou sucedâneo), ou melhor, um dispositivo móvel de interação conectado à Internet ou conectável a outros dispositivos por rádio (incluindo bluetooth quando seu alcance for ampliado) já pode – ao mesmo tempo em que trabalha (ou finge que trabalha) em uma empresa fechada – desenvolver outros projetos conjuntos com pessoas de outras empresas fechadas, inclusive concorrentes (2). Tudo isso aumenta a porosidade dos muros. À medida que a porosidade aumentar, os muros vão começar a ruir. Só então as organizações fechadas se darão conta de que estão irremediavelmente vulneráveis à interação e correrão desesperadas atrás das membranas. Aí já poderá ser tarde: uma membrana é um dispositivo ultracomplexo, que só pode ser construído pela dinâmica de um organismo vivo em interação com o meio, com outros organismos e partes de organismos. Uma empresa que não aprendeu a se desenvolver conversando com as outras empresas por medo de perder mercado ou de ter roubadas as suas inovações ou seus funcionários, não conseguirá, da noite para o dia, fazer uma reengenharia de suas, por assim dizer, boundary conditions. Uma corporação que insistiu em manter intranets mesmo depois de ter sido inventada a Internet, dificilmente estará preparada para operar, em tempo hábil, tal mudança.

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A derruição dos muros não esperará que os sacerdotes toquem as trombetas em Jericó (se bem que na saga bíblica de Josué foi o grito em uníssono do povo que derrubou as muralhas que trancavam a cidade). De qualquer modo, não há mais tempo para aprender a construir verdadeiras membranas. Na verdade, membranas não podem ser construídas, stricto sensu, como um ato voluntário de alguém que segue uma planta, um projeto, um esquema. As membranas são “construídas” pela interação biológica, elas surgem em função da autopoese: da produção contínua da vida por ela mesma. No caso das membranas celulares (plasmalemas), sua estrutura e funcionamento complexos dependem da dinâmica de rede, de redes dentro de redes, com canais protéicos (proteínas de transporte – espécies de atalhos entre clusters) que atravessam suas camadas, passando por numerosos arranjos moleculares (3) até chegar, na interface com o citoplasma, a um emaranhado de “hifas” composto por filamentos e microtúbulos de citoesqueleto... tudo isso fluindo (imerso em fluido extracelular). E tudo isso com a função de ser uma porta seletiva que a célula usa para captar os elementos do meio exterior que são necessários ao seu metabolismo e para liberar as substâncias que a célula produz e que

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devem ser enviadas para o exterior (excreções que devem ser libertadas e secreções que ativam várias funções de seus, por assim dizer, “stakeholders externos”). Esse produto de bilhões de anos de evolução biológica funciona, é claro, como um sistema não-hierárquico, sem-administração, auto-organizado para permitir o que chamamos de vida e não pode ser substituído por cancelas corporativas que sigam protocolos alfandegários burros, destinados a disciplinar a interação. Seria inútil simular, nas organizações que voluntariamente construímos, mecanismos semelhantes às membranas celulares. E nem seria o caso de tentar fazê-lo, abusando do paralelo biológico. O que se deve captar aqui é o padrão, não reproduzir o mecanismo ou simular o organismo. E o padrão é o padrão de interação em rede. “Membranas sociais”, seja o que forem (e como forem), serão sempre redes (mais distribuídas do que centralizadas), interfaces. A única solução-fluzz parece ser articular comunidades móveis (no ecossistema composto pelos stakeholders da organização) e deixar a interação configurar tais interfaces, esperando que elas cumpram funções equivalentes, no mundo social, às que são desempenhadas pelas membranas celulares no mundo biológico. Na verdade, ao estabelecer contornos, estabelece-se a estrutura e a dinâmica do que está dentro dos contornos. Membranas são o que são (e como são) porque os meios que elas conectam são o que são (e como são). Mas tais meios são, eles próprios, constituídos pela interação, quer dizer, não se constituem como tais antes da interação. A membrana é um sistema complexo porque é, simultaneamente, uma interseção de conjuntos, uma zona de transição entre um ser e os outros seres nos quais se insere (ou, mais genericamente, com os quais interage), uma forma de ligação ou uma espécie de conjunção. Ainda não sabemos muito sobre membranas e, sobretudo, sobre “membranas sociais”. Algumas coisas, porém, já sabemos. Sabemos, por exemplo, que deixar a interação pervadir um sistema não significa propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, não-selecionar caminhos (estabelecendo apenas alguns caminhos, proclamando-os como válidos e exterminando todos os demais caminhos, decretando-os inválidos); fundamentalmente, não gerar artificialmente escassez (4). Sabemos também que as interfaces devem ser sociais stricto sensu e não organizacionais (em termos das teorias da administração baseadas em

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comando-e-controle). Ou seja, devem ser baseadas na livre conversação entre pessoas e na sua espontânea clusterização e não na designação, ex ante à interação, de caixinhas departamentais para alocar essas pessoas. Simples assim? É, mas a conversação é algo bem mais complexo do que parece. E os novos procedimentos e mecanismos, os novos processos de netweaving e as novas tecnologias interativas que inventamos para viabilizar e potencializar a conversação, alteram completamente o multiverso das interações que chamamos de social. “Membranas sociais” são interworlds. Ao constituí-las multiplicamos os mundos, dando origem – se quisermos fazer uma comparação quantitativa para efeitos ilustrativos – a bilhões de organizações (em vez de milhões que existem atualmente). Uma mesma pessoa participará de muitas organizações, comporá numerosas empresas, entidades, movimentos, enfim, redes – pois tudo isso é válido, claro, na medida em que tudo for rede. Para tanto, não será necessário fazer quase nada adicionalmente ao que já se faz hoje. Bastará não proibir a conexão, não querer disciplinar a interação. Um bom exemplo, hoje, são as plataformas interativas digitais, chamadas de “redes sociais”. A quantas “redes sociais’” alguém pertence (ou seja, em quantas mídias sociais está registrado)? O número é grande e só tende a crescer. Os emaranhados se adensarão a tal ponto, as timelines ficarão tão caudalosas, que as identidades organizacionais não se manterão por muito tempo. Despencaremos da escala de décadas e anos (que é a vida média da imensa maioria das organizações que ainda temos) para a escala de meses e dias (ou, quem sabe, de horas e minutos). Não é bem como disse Andi Warhol (1968) – “no futuro todo mundo será famoso por quinze minutos” – mas é parecido (5). Não é bem como ele disse porque ninguém será muito famoso, no sentido de visto por todo mundo, porque não haverá mais o mundo único forjado pelo broadcasting. Mas é parecido porque no futuro (um conceito que também será aposentado, de vez que não haverá mais um futuro único, um mesmo futuro para todos), as organizações serão sempre transitórias, estarão sempre fluindo para configurarem outras organizações e uma mesma configuração não poderá perdurar por muito tempo. É assim porque redes são móveis. Novamente as mídias sociais oferecem uma boa imagem do que ocorre. Sites de relacionamento e plataformas interativas nunca são as mesmas ao longo do tempo e a velocidade com

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que mudam (em anos, dias ou horas) é função da sua interatividade. O exemplo mais flagrante é o twiver (as centenas de milhões – que logo serão bilhões, se considerarmos os sucedâneos do Twitter – de timelines fluindo no twitter-river). Onde e quando tudo isso vai acontecer? Vai acontecer nos Highly Connected Worlds do terceiro milênio. Para aqueles mundos que já estão no terceiro milênio.

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À velocidade da luz não existe futuro previsível... Não há, literalmente, futuro possível.

Você já está ali, no momento que chama de situação. É por isso que em nossa época não existem objetivos...

Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir. Marshall McLuhan em palestra na Universidade York, em Toronto (1979)

O futuro como teleologia universal, como esperança igual para todos, morreu. E a decomposição não pode ressuscitá-lo.

Em seu lugar, temos uma multiplicidade de futuros sintéticos, construídos por cada comunidade real para si e à sua medida.

David de Ugarte em Los futuros que vienen (2010)

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Para o mundo único broadcast que remanesce o terceiro milênio ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu envelhecimento. Três exemplos eloqüentes:

� O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades de aldeias globais.

� Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir

glocalmente!

� Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras gerações? Não. É aprender a fluir com o curso...

Mundo. Tempo. A ilusão do mundo único é a ilusão do tempo único. Se os mundos são vários, o tempo de cada mundo é diferente. Por certo, o broadcasting sintoniza, ou melhor, uniformiza. Mas não iguala, em cada mundo, o ritmo da fluição que transforma futuro em passado. Se freqüentemente temos a impressão de que o terceiro milênio ainda não começou – já que as promessas de uma Nova Era que foram a ele associadas não se realizaram – surge a pergunta: quando então ele vai começar? Ora, levando-se em conta a existência de vários mundos, a pergunta não tem sentido. Quando? – em um multiverso – sempre quer dizer: para quem? Um ano antes da sua morte, em palestra na Universidade York, em Toronto, McLuhan (1979) disse que “à velocidade da luz não existe futuro previsível”. E foi além: “Não há, literalmente, futuro possível. Você já está ali, no momento que chama de situação. É por isso que em nossa época não existem objetivos... Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir” (1). Talvez McLuhan tenha antevisto ou pressentido a interação

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em tempo real ou sem distância nos novos mundos-fluzz quando apontou a “velocidade da luz” como fator que impossibilita o futuro. Mas a questão não é que não exista futuro possível e sim que não é mais possível, nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, um mesmo futuro. Não há um futuro universal porque não há um universo em termos sociais, como acreditaram as narrativas iluministas. Como observou David de Ugarte (2010), com a desconstituição “dos sujeitos com os quais se compunha a narração histórica: as classes, as nações, os grupos de interesse, o marco do mercado... morre esse futuro que se pretendia ‘o’ futuro” (2). Mas a questão é que todas essas narrativas pressupunham um mesmo mundo e tentavam explicar a constituição dos sujeitos em função de expectativas imaginadas a partir dessa abstração totalizante em que acreditavam. Dependendo do mundo em que se convive, “o que aconteceu [em alguns mundos] ainda está por vir” em outros e para quem já vive no multiverso dos Highly Connected Worlds “o futuro não é mais como era antigamente”, como cantou Renato Russo (1986) (3). Com o estilhaçamento do mundo único, o futuro também se esporaliza. Não há mais uma saída (aliás, quando houve, não foi propriamente uma saída senão uma permanência, um confinamento em um mundo, para manter esse mundo contra os outros mundos possíveis). As tentativas de transformar o mundo herdeiras do iluminismo universalista eram tentativas contra-multiversalistas de mudá-lo para mantê-lo (como mundo único) ou então para substituí-lo por outro mundo (também único). Um outro mundo é possível – bradam os militantes anti-globalização que continuam habitando o século passado. Mas um outro mundo não é mais possível. E, se fosse, não seria desejável. Outros mundos – isto sim, no plural – são possíveis. A saída é a entrada em outros mundos. É a libertação deste mundo único no qual você foi aprisionado. É a sua desistência de procurar um líder para lhe arrebanhar e guiar nessa caminhada: você (esse complexo ser social que é a sua pessoa) é a saída, ou melhor, a porta de entrada para outros mundos. Para quem já entrou no terceiro milênio soam anacrônicas boa parte das verdades consideradas progressistas e politicamente corretas do século passado, voltadas à mudar o mundo (quer dizer, a preservar o mundo único), como – para citar apenas algumas como exemplo – a de que o mundo ia virar uma aldeia global, a de que era preciso pensar globalmente

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para agir localmente, a de que sustentabilidade era resguardar ou poupar recursos para as futuras gerações. A despeito dos generalizados consensos que se formaram em torno dessas idéias, elas são, todas, regressivas – isto é: contra-fluzz – posto que nascidas do pavor da imprevisibilidade da interação.

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Tom Wolfe (2003), na introdução da coletânea de palestras e entrevistas de Marshall McLuhan, publicadas postumamente no volume intitulado Undestanding me, escreveu sobre a euforia, que “beirava o espiritual”, dos visionários do ciberespaço no Vale do Silício dos anos 90: “eles diziam a todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes todas as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando literalmente a natureza da besta humana”. Esses visionários foram inspirados, segundo Wolfe, “por um literato canadense que morreu quinze anos antes que a Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do Canadá até a publicação do livro Para entender os meios de comunicação, em 1964, era Marshall McLuhan” (4). McLuhan ficou famoso pela previsão de que “o mundo estava se tornando rapidamente uma ‘aldeia global’ como resultado da difusão da rede inconsútil da televisão por toda a Terra” (5). No entanto, Wolfe teve argúcia suficiente para perceber que havia uma visão espiritual de futuro por trás das suas predições. A nova era anunciada – na qual todos estariam,

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segundo o próprio McLuhan, “irrevogavelmente envolvidos uns com os outros e seriam responsáveis uns pelos outros” – era algo mais sublime do que uma simples utopia secular. Segundo McLuhan, “o conceito cristão de corpo místico, de todos os homens como membros do corpo de Cristo – isto se torna tecnologicamente um fato sob as condições eletrônicas” (6). Wolfe identifica aí a influência decisiva de Teilhard de Chardin sobre McLuhan. Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e mega-empresas, Chardin (1955) percebeu que a tecnologia estava criando um “sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada, inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante” (7). Teilhard de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização unificada está começando” (8) Essa membrana inteiriça (que Chardin chamava de noosfera) – conclui Tom Wolfe – era, naturalmente, a ‘rede inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia global’. Interessantíssima a sacada da membrana envolvendo a Terra (mais pelo paralelo com uma membrana). Recentemente Don Tapscott (2006) encarou a Internet como uma pele que cobre o planeta (9). Mas há um problema com a idéia de que essa membrana seria “inteiriça”. Sim, todo problema foi a idéia de alguma coisa “unificada” – termo que Chardin não só afirmou como quis enfatizar. A unificação – se é que a palavra seria adequada – não é unitária, porém fractal. Pois o mundo não virou, não está virando, nem vai virar uma aldeia global, mas miríades de aldeias globais. A emergência da sociedade-rede vem acompanhada de um processo de globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O futuro mundo das redes distribuídas – se vier – não será, como previa McLuhan, uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia global midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo virando um local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy, Guéhenno, Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo, fractalmente. Não o local separado, por certo, mas o local conectado que tende a virar o mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser uma possibilidade (10). Em outras palavras: o mundo das redes distribuídas não vem como um mundo único. Não é que haja uma rede (ou várias redes) cobrindo o mundo. É que mundos são redes.

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A idéia de um mundo único – ao contrário do que vaticinaram à farta os prosélitos da Nova Era e continuam propagando militantes ambientalistas e espiritualistas – é regressiva. Para que haja um mundo único em termos sociais é necessário centralizar a rede (mantendo instâncias centralizadas de difusão um-para-muitos). Para que haja um mundo único em termos políticos também é necessário centralizar a rede (construindo monstruosidades como um Estado planetário ou um governo mundial). Para que haja um mundo único em termos de consciência unificada (noosféricos como queria Chardin), seria preciso admitir a existência de algum ente sobrehumano, seja um deus ou uma consciência coletiva (que fosse capaz de ser consciente de si mesma e, neste caso, não seria humana). Um superorganismo coletivo está nascendo, sim, mas trata-se de um superorganismo humano – um simbionte social –, não de um organismo superhumano. Sua inteligência se compõe por emergência, a partir da interação e não pode ser instalada em qualquer mainframe. É uma inteligência tipicamente humana e não extra-humana, de um deus, de um alienígena, de uma máquina ou da Matrix. Se esse superorganismo for capaz de algo como uma consciência, também se tratará de uma consciência humana composta por emergência e não de uma superconsciência, de um olho que tudo vê e se vê ou sabe que está vendo. Nem o velho deus hebraico (segundo a interpretação mais arguta do esoterismo judaico) possuía tal consciência, de vez que foi levado a criar o mundo para poder se ver no espelho da sua criação. O modelo é autoregulacional. Assim como não há uma instância centralizada de regulação da biosfera, assim também não pode haver uma instância centralizada de regulação de uma sociosfera, até porque não pode existir apenas uma sociosfera. As conexões P2P (quando o “P” significa “pessoa”) que compõem as sociosferas não centralizam; pelo contrário, distribuem. Os visionários do ciberespaço, herdeiros do sonho mcluhiano da aldeia global (segundo Tom Wolfe), acreditando que a Força estava com eles, usaram-na para construir seus mainframes: seus programas e produtos proprietários, suas caixas-pretas para trancar – esconder dos outros em vez de compartilhar – os algoritmos que inventavam, seus bunkers organizativos e suas fortunas pessoais. Todavia, há uma diferença entre o que fizeram Vinton Cerf e Robert Kahn (1975) com o Protocolo TCP/IP, Tim Berners-Lee e Robert Cailliau (1990) com a World Wide Web, Linus Torvalds (1991) e a multidão com o Linux e Rob McColl (1995) e a multidão com o Apache, e o que fizeram Bill Gates e

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Paul Allen com a Microsoft (1975) e o Windows (1985), Steve Jobs e Steve Wozniak com a Apple (1976) e o Mac OS (1984), Larry Page e Sergey Brin (e Eric Shmidt) (1998) com o Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz (2004) com o Facebook e Evan Willians e Biz Stone (e Jack Dorsey) (2006) com o Twitter. Estamos verificando agora em que medida eles estavam no contra-fluzz ou com-fluzz, o curso que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe.

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Think Global, Act Global. A frase “pensar globalmente, agir localmente” já foi atribuída ou reivindicada – de 1915 a 1989 – por mais de dez pessoas, desde a urbanista Patrick Geddes, passando pelo microbiologista René Dubos, pelo teólogo Jacques Ellul e pelo futurologista Buckminster Fuller, até chegar a Harlan Cleveland. Tanta disputa pela fórmula ou tanta vontade de atribuir ou reivindicar a sua paternidade, revela, é óbvio, uma concordância generalizada com a síntese que ela pretende representar. Mas revela também uma compreensão pouco-fluzz do mundo. Não há uma esfera global que, uma vez percebida por inteiro ou entendida em sua totalidade, forneça elementos para orientar a ação local. Ninguém percebe ou entende alguma coisa fora de um local e se este local puder se conectar a outros locais, ele então já é global (um local que foi globalizado). Na verdade, global é uma abstração para indicar a possibilidade de conexão com outros locais, não uma instância autônoma concreta. Se estivermos usando a expressão global para falar da Terra, então estamos falando de um local (o planeta: um global que só existirá concretamente se for localizado).

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Do ponto de vista da rede social, local é um cluster, não uma porção do planeta físico. Desse ponto de vista, o local não está dado de antemão, mas é constituído pela interação dos que o reconhecem como um local. Um local em interação com outros locais é uma realidade glocal, que se constitui quando a globalização do local encontra a localização do global. Essa é apenas outra maneira de falar da conexão local-global, ou seja, da interação entre diversos locais. Os muitos mundos interagentes são realidades glocais. Se estão brotando, como vimos, inumeráveis interworlds, então se trata de pensar e agir glocalmente, não de pensar globalmente e agir localmente (ou vice-versa). Em suma, não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos quantos os locais onde foram pensados. Se for, entretanto, resultado da interação com os outros locais, todo pensar será glocal e toda ação também será glocal. Não, não é a mesma coisa. Não é um jogo de palavras. Não pode haver um pensar global – nem no sentido da percepção de uma esfera inteiriça ou unificada (como queria Teilhard de Chardin) ou da percepção da aldeia global (como queria Marshall McLuhan), nem mesmo no sentido de uma percepção totalizante ou holística – porque isso pressupõe uma apreensão por cima ou por fora da interação. A aldeia global de McLuhan será local, está claro, mas nunca um único e mesmo local (pois local já pressupõe muitos locais, cada qual – aí sim – único; do contrário desconstitui-se o próprio conceito de local). Quem a perceber estará expressando a percepção do emaranhado de conexões no qual está envolvido. Como os emaranhados são diversos, cada percepção será também diversa. Teremos tantas aldeias globais quanto os mundos a partir dos quais elas são vistas como resultado de configurações particulares de interação. Ou seja, teremos miríades de aldeias globais. Não é a toa que a visão de McLuhan beire o espiritual (como percebeu indiretamente Tom Wolfe) ou esteja na fronteira entre ciência e religião, como a visão de Chardin. A rigor ela pressupõe um ser capaz de exercer a supervisão de todas as interações, alguém, portanto, não-humano; ou algo como uma consciência coletiva que conseguisse apreender a totalidade, uma superconsciência ou uma consciência do que há de comum a todas as consciências. Mas se existisse um deus ex-machina quem teria acesso a ele: os sacerdotes? E se existisse uma consciência coletiva com características de uma Unimatrix One, quem conseguiria vê-la e receber seus “comunicados”: os borgs?

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Há aqui uma confusão de conceitos, um deslizamento epistemológico para o qual contribuiu o ambientalismo – essa espécie de religião laica de nossos dias – ao apelar para ações locais que teriam o condão de salvar o planeta (supostamente ‘o’ global). Como se existissem diretivas globais a ser materializadas por diversas implementações locais. Mas quem emitiria tais diretivas, já que ninguém vive no global? Os representantes dos locais? Ora, mas neste caso sua percepção ou seu entendimento só poderiam ter surgido nos diversos locais em que eles vivem e convivem e, portanto, seriam locais (não globais). Além disso, como e por quem seriam escolhidos tais representantes? Nunca surgiram respostas aceitáveis para essas perguntas. Por outro lado, o que seria o planeta? A geosfera e a biosfera? E as socioesferas? A pergunta sobre as socioesferas (no plural) é relevante, pois a combinação de expressões locais de vida e convivência social – por mais numerosas que fossem – não poderia gerar nem ‘o’, nem ‘um’, global. No limite teríamos, no início da segunda década deste século, sete bilhões de expressões locais, que poderiam se combinar de trilhões de maneiras diferentes; na verdade tais combinações seriam, por assim dizer, praticamente inumeráveis. Sim, mundos são redes. Senão o que seriam? A população do planeta? Mas população é um dado estatístico, um número. A soma dos indivíduos da espécie biológica homo não significa nada em termos humanos. E não se pode somar pessoas.

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O ambientalismo – ainda preso às subculturas do platonismo que pontificaram no século 20 – difundiu uma idéia de sustentabilidade segundo a qual o uso dos recursos naturais deve suprir as necessidades da geração presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir as suas. O crédito por tal definição – que apareceu no Relatório Brundtland (1987) – ainda é muito disputado, se bem que sua autoria seja geralmente atribuída ao ecologista Lester Brown. O significativo é que ela foi aceita como um consenso universal e foi tomada, axiomaticamente, como uma verdade evidente por si mesma, passando a idéia – pouco-fluzz - de que a sustentabilidade é uma espécie de poupança: tratar-se-ia, para efeitos práticos, de resguardar recursos para as futuras gerações. O ambientalismo reduziu assim a sustentabilidade à sua dimensão ambiental, o que – até certo ponto – é explicável: foi observando os sistemas vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) que percebemos um padrão de autoregulação e adaptação às mudanças, uma capacidade desses sistemas de mudar de acordo com a mudança das circunstâncias conservando, porém, a sua organização interna.

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Mas em vez de se concentrar no padrão e tentar descobrir como reinventá-lo em nossas atividades humanas e organizações sociais, o ambientalismo imaginou que tudo se arranjaria a partir da compreensão do funcionamento dos ecossistemas. Não seria então o aprendizado coletivo, resultante da experimentação de novas formas de organização e convivência com as diferenças humanas, como resposta aos desafios de conservar a adaptação a um ambiente que muda continuamente – ou seja: o aprender a fluir com o curso –, que tornaria nossas sociedades mais sustentáveis e sim uma consciência que surgiria pelo conhecimento da natureza e se imporia como novo padrão ético universal. Eis um novo platonismo que, como qualquer platonismo, despreza a política, ou seja, a interação entre os humanos ou as redes sociais. No entanto, a mais forte evidência que temos sobre a sustentabilidade – proveniente, aliás, da observação sistemática dos sistemas vivos – é a de que tudo que é sustentável tem o padrão de rede (11). Ou seja, a de que só sistemas dinâmicos complexos que adquiriram características adaptativas – apresentando a estrutura de rede distribuída – podem ser sustentáveis. Se foi observando os ecossistemas que logramos captar as características de um sistema sustentável, isso não deveria ter levado a uma visão reducionista da questão, que disseminou uma crença segundo a qual o que está em risco é apenas a vida como realidade biológica e tentando dirigir todas as nossas iniciativas de sustentabilidade para, supostamente, “salvar o planeta”. Sobre isso, a pergunta fundamental foi feita recentemente por Humberto Maturana (2010) e seus colaboradores: o que queremos mesmo sustentar (do latim sustentare: defender, favorecer, apoiar, conservar, cuidar) (12)? A vida (em termos biológicos) é de suprema importância, é a única realidade realmente sustentável que conhecemos, mas ela já vem se arranjando há uns quatro bilhões de anos sem a nossa, digamos, inestimável ajuda. Seria preciso ver então o que mais queremos sustentar, de preferência aquilo que de fato depende de nós. Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo mundos humanos, que têm como base o mundo natural, mas que não são conseqüências do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o mundo ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a “alma do mundo” por meio do social, é uma espécie de “segunda criação”. Para quem pensa assim, a vida (o simbionte natural) é um valor principal, mas não o único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica) ―

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como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as redes voluntárias de interação em prol da invenção de futuros comuns ou compartilhados e a democracia na base da sociedade e no cotidiano das pessoas ― também constituem valores inegociáveis, quer dizer, valores que não podem ser trocados pelo primeiro. De nada adiantaria, desse ponto de vista, trocar a livre convivência pela sobrevivência sob um império milenar de “seres superiores” (como o IV Reich, por exemplo). Surpreendentemente, aquilo que devemos preservar é, justamente, o que pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação, voluntariado, redes e democracia (em suma, tudo o que produz, relaciona-se ou constitui o que foi chamado de capital social) são os elementos da nova criação humana ― e humanizante ― do mundo (o simbionte social), que lograram se configurar como padrões de convivência social e que vale realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que as compõem (13). Eis a razão pela qual a sustentabilidade das sociedades humanas não pode ser alcançada apenas com a adoção de princípios ecológicos (como querem os defensores ambientalistas ou ecologistas da sustentabilidade, ainda afeitos a uma visão pré-fluzz de que existe algo como uma consciência capaz de mudar comportamentos), porque, no caso das sociedades, trata-se de outros mundos (humano-sociais) que têm como base o mundo natural, mas que não são conseqüências dele. A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos) para prorrogar sua durabilidade (outra confusão ao definir sustentabilidade, que foi muito comum no velho mundo fracamente conectado) é uma idéia contra-fluzz. Sustentabilidade não é durar para sempre. Nada dura para sempre. E a espécie humana também não durará. Ao que tudo indica desaparecerá bem antes da biosfera (pelo menos a biosfera deste planeta, a única que conhecemos por enquanto). Mas a própria biosfera (da Terra e, se houver, de outros lugares do universo) também desaparecerá. O sol deixará de ser uma estrela amarela em 5 bilhões de anos (com 4 bilhões de anos a nossa biosfera já esgotou quase a metade do seu tempo de vida). A Via Láctea está em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda, a 125 quilômetros por segundo e o desastre ocorrerá nos próximos 10 bilhões de anos. Este universo, surgido no Big Bang, será extinto no Big Crunch ou virará um cemitério gelado se sua expansão não for revertida. Enquanto isso, nem mesmo a vida, nem a convivência social, permanecerão como são – ou desaparecerão prematuramente! Mas poderão ser

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sustentáveis na medida em que aprenderem a fluir com o curso, quer dizer, a mudar em congruência dinâmica e recíproca com a mudança das circunstâncias. Sim, sustentável não é o que permanece como é (ou está), mas o que muda continuamente para continuar sendo (o que pode vir-a-ser). Se um ente ou processo durar (como é), certamente não será sustentável. Se não aceitar a morte, se buscar uma maneira de se esquivar do fluxo transformador da vida, nada poderá ser sustentável. Se não aceitar o fluxo transformador da convivência social nenhum dos mundos que co-criamos poderá ser sustentável. Tais mundos sociais que constituímos quando vivemos a nossa convivência não serão sustentáveis na medida em que quisermos permanecer no “lado de fora” do abismo. Esse horror ao caos que caracteriza todas as organizações hierárquicas nada mais é do que o medo de perder uma ordem pregressa ao se abandonar à livre-interação.

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Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado,

da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos.

Hakim Bey em Caos (1984)

O melhor da religião é que ela produz hereges. Ernst Bloch em O ateísmo no cristianismo (1968)

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Os que continuam aprisionados no mundo único dos séculos passados ainda não lograram perceber o que está em gestação neste período. A revelia dos cegos “líderes mundiais” e além da compreensão dos analistas de governos e corporações, grandes movimentos subterrâneos estão em curso neste momento. De modo molecular, distribuído e conectado de sorte a formar um feixe intenso de fluxos – fluzz –, estão se articulando e se expressando glocalmente experiências inovadoras que tendem a alterar na raiz a estrutura e a dinâmica das sociosferas. Eis alguns exemplos fulcrais do que está emergindo:

� Não-Escolas: comunidades de aprendizagem (homescooling e, sobretudo, communityschooling, cada vez mais na linha de unschooling) em rede, sem currículo e sem professor e aluno.

� Não-Igrejas: formas pós-religiosas de espiritualidade, livres

das ordenações das burocracias sacerdotais.

� Não-Partidos: redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos.

� Não-Estados-nações: cidades inovadoras – como redes de

comunidades – que assumem a governança do seu próprio desenvolvimento em rota de autonomia crescente em relação aos governos centrais que tinham-nas por seus domínios.

� Não-Empresas-hierárquicas: redes de stakeholders – demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não pode paredes opacas – como novas comunidades de negócios do mundo que já se anuncia.

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Fascinante! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas: construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do caos... As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano. Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da experiência de empreender. Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos... Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as pessoas da experiência de fluzz! (Não é a toa que todas essas instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com estranhos”). Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que, na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa. Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como escreveu Hakim Bey (1984) – engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranóicos”.

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- Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz. Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia-ensinante) x discente (massa-ensinada). A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de

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cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. - Ufa! Livre afinal. Por que construímos tal aberração? Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder. Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de) estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição! Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento). Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes. O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1).

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O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores (verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a rede-mãe. As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido. Mas como twittou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.

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Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito. Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente (2). Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata. Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que

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alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a freqüência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário. Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios. Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens provêem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra. Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo). Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por

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exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional. Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing). Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”. É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades. Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez mais semântica (3). A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer. Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de outros processos em rede.

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O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem. Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo seguida pelo candidato. Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial para interpretar tais dados. Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final.

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De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem. Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões; reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções) (4). A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de auto-aprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e

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escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes). Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo. No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos). O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem. Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).

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É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação. Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada. Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive. Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente. Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, conseqüentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade. De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não

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comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede. Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos... No entanto, neste momento estão sendo elaboraradas e testadas metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra-escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem (5).

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Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação. O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade de sociosferas. O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos. Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A

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escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes. Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede. Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistados na sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas (glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio. Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal. Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas idéias e inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think tank).

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É difícil entender a natureza de uma não-escola. No mundo único as pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas (religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento (mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam que alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola! É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a partir do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais. Não há significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive porque, a rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias atribuídas por sujeitos em interação e válidas para os momentos de interação em que

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tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que mudam continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é mapear as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que utilizamos são p-based (baseadas em participação) e não i-based (baseadas em interação). Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca. Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação. Na configuração de novos ambientes interativos de produção de conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido (até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que diferencia as novas escolas-não-escolas dos mundos altamente conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7). Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de um conjunto de idéias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja. Se você junta os que compartilham qualquer corpo de idéias (mesmo que sejam idéias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo ensinamento! Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você exige que uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu como condição para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir com ela), então você não está realmente aberto à interação (com o outro-imprevisível):

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você quer participação dos outros no seu espaço, o que é uma forma de exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal) que os outros vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a definição de seita, de escola. Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela) Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado. Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem. Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referêncial único: ou seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para dar lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas. O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha. Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem nele, você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar", aqui, é empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa" (software). Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de atribuições de significados e, mais do que isso, de construção dos processos particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir com quem está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o programa (em você). Ao carregar o programa, você carrega também sua linguagem (script) e, além disso, seu linguageado e, às vezes, até mesmo seu gestual. Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com qualquer construção conceitual que apresente os critérios epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-versa (ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do critério da verificabilidade, que deve ter o mesmo status epistemológico dos critérios da coerência interna e da completude (as quais, sozinhas, não bastam). Assim, os resultados de uma explicação devem sempre poder ser verificados por sujeitos que adotam outros esquemas explicativos. Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a explicação

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freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer seres humanos independentemente da explicação freudiana (e da existência de Freud), então estou preso a um sistema incapaz de interagir com outras explicações (externas às circularidades freudianas). E corro o risco de recair no dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve poder contestar a existência de um complexo sem ser acusada de estar fazendo isso justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma medida, isso ocorre com todos os sistemas auto-referentes, sobretudo na sua "primeira-infância". Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos... Sim, continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda. Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de uma autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia sentido para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte dessa ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é não constituir um grupo proprietário em torno de suas idéias, de abrir mão de erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico para propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente ministrado por "representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o que será pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de contorno opaca quando precisamos de membranas. Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador que roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de 'matar a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento transformado em ensinamento). Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como prefiguração

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do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai despertar quando o Buda que está fora desaparecer como referência (externa porém introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas, particularmente, no contexto desta discussão, significa matar a escola como ordenação do ensinamento abrindo possibilidades de formação de múltiplas comunidades de aprendizagem para além do círculo restrito dos que se matriculam em um curso ou seguem um programa privando da convivência de um grupo determinado. Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas tradições espirituais (todas estas são artifícios para administrar espiritualidades conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são baseadas nas escolhas do indivíduo, são ministradas por escolas - burocracias sacerdotais do ensinamento - e mantêm a relação mestre-discípulo). Agora será preciso mostrar que quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece e, portanto, chegar à condição de mestre é chegar à condição do aprendente: aquele que matou o mestre não apenas quando matou a imagem idealizada do mestre dentro de si (introjetada), mas quando matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para que o Buda morto não renasça nas mãos dos que o mataram. Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação com o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética para a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como uma pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes globais está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um modelo e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão fertilizando os diversos modelos que emergem de uma diversidade de comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que estão brotando e submetendo seus programas à esse tipo de polinização complexa. Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum lugar do passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de uma vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada vez mais – múltiplos. Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que, se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou nos levar

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para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro. Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A época em que vivemos é a época da desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a hora de abrir mão dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações, mobilizar pessoas em torno de um objetivo comum para transformar a sociedade (e ‘a’ sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva). Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por quê? Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes que continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer mudanças (que eles não podem, honestamente, saber quais são) em nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e as sociedades humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte, espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos lidando com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é bom para a liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não possamos fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em redes de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas. Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um legado baseado nas idéias de algum fundador. Para ser uma rede, o legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado, modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do escopo estabelecido (posto que se será uma rede voluntariamente construída haverá um escopo delimitado e algumas regras ou acordos de convivência, mas isso nada tem a ver com a adesão a um conteúdo substantivo). Sempre sem exigências, é claro. Mas sabendo que sem interagir com o outro imprevisível, com aquele que não planejamos interagir, não pode haver rede (social distribuída). Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão, desde que esse conservar seja referente a um compartilhar um determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o desejo (dos sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem mesmo o desejo de conservar um modo de convivência explicitável e explicável (pelos sujeitos)

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que constitui a comunidade humana (ou a rede). A rede acontece quando você interage. Tudo que podemos fazer para ensejar a interação é evitar a produção artificial de escassez (é mais um não-fazer). Não adianta sistematizar conteúdos e esperar que, sintonizando-se com tais conteúdos, as pessoas passarão a conviver em rede. Isso ainda está no terreno do proselitismo (uma dimensão de ensino, de propagação de ensinamento, não de aprendizagem). As regras ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e, portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento, inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda).

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Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo, formas pós-religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão mais-fluzz, quer dizer, mais expressões do curso que flui nas relações entre os humanos e dos humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia com um todo cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades consumáveis na interatividade ("terrestres" no sentido de serem realizáveis sem produzir anisotropias no espaço-tempo dos fluxos). Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja? Humberto Maturana (1993) reinterpretou a origem das crenças místicas que estão na base das experiências que dão significado à vida humana a partir da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente haver) uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que apresentavam supostamente as sociedades agricultoras-coletoras incidentes na Europa pré-patriarcal) (11). O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos

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programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa "espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões. A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes como o único correto e plenamente verdadeiro" (12). Com efeito, para ele,

"No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indo-europeus criaram uma fronteira de negação de todas as conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato, uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das "crenças" verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de crentes] o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer que seja sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião. Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças... A apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta como verdade universal constitui o ponto de partida ou de nascimento de uma religião" (13).

Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado, também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos mundos que quisermos co-criar. A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa, e na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (14). Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e sim de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade.

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Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda, codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em escrituras). Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas. Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical). As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" - com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social que mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas, pelo contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo que achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas, depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio. Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para se perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado pela direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição ocidental, herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o caminho que nos conduz para deus, representado em geral por um triângulo, passa entre as duas colunas que se elevam do piso plano. E então encontramos o triângulo com o vértice para cima, sobre o quadrado, o pentagrama verticalmente orientado e muitas outras "orientações" que "norteiam" o desenvolvimento dos rituais e das práticas mágicas. O conteúdo ideológico que esses símbolos encarnam está inegavelmente associado à idéia de um poder vertical, do qual a pirâmide é o mais expressivo exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas, introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os zigurates: pirâmides feitas de escadas, com degraus representando graus de subida; ou de descida. Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal, é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Toma-se aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical: as

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fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções). Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (15). Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam a mesma fé).

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Os problemas com as igrejas (e religiões) erigidas no contra-fluzz não têm nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das igrejas (e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade humana, muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E igrejas e religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas (para a rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses. “Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta teria sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém, podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses não existem? Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a

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natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como modelos mentais, quer dizer, sociais (16). Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e, até, do que se codificará como norma, do que se congelará como instituição e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus Agoraios estava de fato presente naquela praça do mercado da velha Atenas chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso? Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses: por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina) de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho. Quando os gregos invocam Peitho, a persuação deificada, eles confrontam a idéia autocrática de que a política era uma continuação da guerra por outros meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (17):

“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo.

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Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego”.

Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer, deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político e não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino). Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é. Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião (institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da burocracia sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem com a divindade, isto é: para separar o ser humano da divindade; ou, como disse Jung, para proteger o homem da experiência de deus, abrindo sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o que é a mesma coisa – pavimentando com a crença um caminho para o futuro (e conseqüentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo nosso estoque de futuros possíveis, exterminando mundos). Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva a si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade hierárquica ou a emersão de uma sociedade-em-rede. Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados. (Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas de espiritualidade). Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses. Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa

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tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou dedicadas ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e Ur eram de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses, para ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar (ter uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção, adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral). Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim, porém belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram – ou se manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos social. Não eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do que os humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua “presença” não era humanizante. Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus que hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso – Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e então mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada (coisa que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só os humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste! Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente (estrutura centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho acertou em cheio o coração do problema quando disse: “não tenho nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você no qual você possa ser transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma quando identificou os deuses das religiões com um programa, um programa verticalizador. Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –, para

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tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de outros mundos possíveis. Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e semelhança dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos, por certo, mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria nenhum problema com deuses humanizados que não exigissem culto, obediência ou subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele judeu marginal que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado instrumentalizar suas experiências de vida e convivência social para codificar doutrinas, constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como? Atribuir a uma pessoa, com exclusividade, um caráter divino, como fizeram, por alguma razão, seus primeiros discípulos, não seria um contra-senso nos mundos altamente conectados em que cada pessoa é uma singularidade em um mesmo tecido (social), possuidora, portanto, do mesmo status (humano) de todas as outras? Ora, William Blake, um poeta – porque os poetas são pessoas-fluzz – já resolveu essa questão para nós quando escreveu: “Jesus é o único Deus. Assim como eu, assim como você”. Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no meio de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada algures por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam que sejam muitos para ser Deus”. Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia faraônica. Deuses pós-religiosos serão fractalizados, acorde às contingências de distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses se modificam quando modificamos o hardware. E consequentemente muda também o que chamamos de espiritualidade. Em um mundo distribuído não pode haver culto organizado centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas, cada qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir, em sintonia com as redes sociais em que está imersa; ou seja, convivendo-a. No mundo único as pessoas viveram oprimidas por idéias totalizantes e uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto – provenientes

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da crença tola de que deus não existe, ditada por uma ciência promovida a pansofia. Isso gerou um sem número de problemas, sobretudo psicológicos, quando as pessoas passaram a reprimir sua espiritualidade por medo do vexame e da reprovação dos bem-pensantes. Tal “verdade” supostamente libertadora, revelada por uma ciência deslizada do seu escopo, baseada em uma espécie de religião laica iluminista, era, na verdade, opressiva. Libertadas desse bom-senso ateista as pessoas podem ter sua própria experiência de deus (ou de qualquer ente ou processo que queiram escolher para representar ou simbolizar um domínio mais amplo de relações de existência no qual se sintam inseridas e possam viver tal inserção), interagindo. Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística. Como disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em Diálogos com cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje à percepção de estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos descobrindo um vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo, estranho” (18). O que diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as chances de vivermos esse vínculo permanecendo do “lado de fora” do abismo, precavidos contra o caos ou protegidos da interação. Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da tradição hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão Ehie Asher Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita) posto que estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do não-lugar (porque o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o qual o marxista heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O ateísmo no cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá” (19) – não pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deus-fluzz; ou, o que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência mística ou espiritual fluzz. Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente i-based e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que não nos jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que tudo arrasta para o futuro, alienando-nos do presente). Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais) remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados pelos novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch, “o melhor da religião é que ela produz hereges” (20).

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Mas o que colocaremos no lugar das igrejas (e das religiões)? Ora, nada. O velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as vezes de igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o Estado-nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam mais ou menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas vão continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas com as que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds. Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode – se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos que querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio mais amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e amorosidades mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a aumentar. Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem – também não haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua existência.

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Ecclesias como assembléias de amantes, como redes (abertas) de buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o tempo todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contra-exemplo de fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas perderão relevância. Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o clustering, o swarming, o clonning, o crunching e tantos outros que estão implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no que ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper, haverá um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar do investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os protocolos científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode simplesmente viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’ sociais – a palavra, assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em 1961 (21) – que se formam em uma dimensão mística. Se você buscava um domínio mais amplo de relações de existência para dar sentido à sua vida e vivê-la em sintonia com essa realidade (avaliada por você, não importa, como transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social! O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo foi apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas as pessoas que estão em todos os mundos. Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como herege. Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são hereges os que abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus diplomas e títulos e se transformaram em catalisadores de processos de aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos partidos, não desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges os que renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias),

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refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades... Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”). São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o porvir radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de uma ordem ancestral hierárquica.

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O reflorescimento das idéias espiritualistas que ocorreu na New Age provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando nas praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos depois (se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As pessoas que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para suas vidas, tanto em experiências meditativas de recolhimento individual, quanto em ensaios coletivos de novos padrões de convivência social, queriam, no fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda pré-fluzz, mas que já anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E saíam então para todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres. Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das idéias – assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão – de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas doutrinas, seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que ofereciam naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto, uma mesma visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de vanguarda interessados no diálogo entre ciência e religião quanto roqueiros, quase todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos: a idéia de que

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havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em alguma esfera da realidade, oculta ou não acessível imediatamente. Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer uma sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One e, para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos, técnicas meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de iniciação. Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque o que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é muito, muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do que tudo que anunciaram os gurus da nova era. Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os pioneiros da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram impelidos por esse vento libertário, em parte sob a influência de obras disruptivas como TAZ – Zona Autônoma Temporária (22) e CAOS – Os panfletos do Anarquismo Ontológico (23), dois escritos seminais de Hakim Bey (1985) e dos romances de ficção científica Neuromancer (24) de William Gibson (1984) e Ilhas na Rede (25) de Bruce Sterling (1988) que, entre outros, deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite disso, mas essa influência foi decisiva para a criação das ferramentas interativas que existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide Web), conquanto não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais pioneiros e visionários, em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao fecharem suas descobertas (construindo programas proprietários e escondendo seus algoritmos) para acumular suas fabulosas fortunas ou ao se deixarem contaminar pelas idéias contraliberais que impulsionaram os movimentos antiglobalização no dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de que “um outro mundo é possível”. Se um herege inventa a sua própria ordem e quer que as pessoas passem a seguí-la – quer transformando-as em usuários cativos de seus produtos, quer arrebanhando-as em seus movimentos supostamente transformadores – aí já deixa de ser herege e passa a ser um sacerdote, um burocrata a serviço da reprodução do sistema que criou. No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas, o vento continuou a soprar.

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Começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de mestre ou guru, recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram estes os precursores dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do outro lado”, não se vê ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz. Fluzz significa que não há uma ordem pre-existente em algum mundo invisível (da emanação, da criação ou da formação). A ordem está sempre sendo criada no presente da interação. É mais ou menos assim como imaginou Ilya Prigogine (1984), destoando inclusive de outros cientistas envolvidos com tais especulações (de David Bohn a Paul Davies, passando por Fritjof Capra): o universo é criativo e “se cria à medida que avança” (26). Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo. Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os cyberpunks talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de onde (e para onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa jornada introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo liberador (27) (uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu explorações em antigas tradições espirituais (como o budismo e a cabala) para tentar captar-lhe o sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra onde quer; você o escuta, mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai” (Jo 3: 8). Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf (TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl (Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações, contribuiram objetivamente para que hoje pudessemos reconfigurar a busca (e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que aqueles provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos Gates, dos Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos outros trancadores de códigos que vieram ou ainda virão). Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um diretório de registros akashikos) onde você possar buscar respostas para suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas do passado que foi arquivado. Revelarão ordens pregressas. Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas necessariamente diferentes. E deixa o rastro da

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pergunta. De sorte que as respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar ordens inéditas. O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscador-polinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-no-caminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a descoberta-zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode ser vista assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua configuração, o que significa que os caminhos também mudam continuamente com a interação: o que era caminho em um momento já não é mais no momento seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430 a. E. C.) – ou a ele se atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. Assim seja (ou não-seja). Let it be (ou not to be – o que é a mesma coisa). Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e colar os cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a vigência do mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não existem guias. Não existe caminho”.

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Fluzz também é: tudo está conectado. E se tudo está conectado por que os seres humanos não estariam? É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro. Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser humano é uma pequena sociedade” (28) pode significar, por um lado, que os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados. Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas. Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há espelhamento, é claro, porque há separação. Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos, o tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente dos Borgs, como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente, unique. Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos ser pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da “mesma”

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rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens, redes dentro de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são vários. Chegar a um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso, não condição de partida. Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho da iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode mais ser percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológico-espiritual individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você compartilhamos o mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um mesmo substrato: singularidades em um tecido. Mas significa também, paradoxalmente, que ‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas como complexo psicológico (como representação interiorizada), mas na rede, como realidade social. Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida social (do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e exigia consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o que senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o que vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto prevalece a separação entre eu e o outro. Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam, novos caminhos se abrem, continuamente. Aquele pelo qual procurávamos no meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a estar entre nós. Uma nova topologia distribuída dos caminhos espirituais elimina os caminhos únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os caminhos são múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa dizer que não existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os caminhos, nenhum caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum caminho, a maldição dos poetas" (29). E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992), dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’. No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (30)

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Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um percurso, mas deixar-se-ir ao encontro dos demais, abrindo as próprias fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé (a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.

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No velho mundo fracamente conectado as pessoas erigiam corporações – grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus interesses. Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um mundo regido pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os partidos como um tipo especial de corporação: eles foram constituídos para fazer prevalecer os interesses de um grupo sobre os interesses de outros grupos e pessoas com base em (ou tomando como pretexto) um programa, um conjunto de idéias a partir das quais fosse possível conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício (ilegítimo do ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes sociais distribuídas) de comandar e controlar os outros. Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o padrão de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se pensa, os partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também organizações proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as castas sacerdotais que erigiram o Estado. Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe como

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tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados continuaram sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três séculos eles se constituiram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como instâncias públicas, mais ou menos democratizadas; embora continuassem infestados por enclaves autocráticos privatizantes). Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz. Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio (nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer política pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas comunidades): alguém fará tal política por elas! Mesmo nas democracias dos modernos entende-se que as pessoas não devem fazer política pública, a menos que entrem em um partido: uma espécie de agência de empregos estatais, uma organização privada autorizada a disputar com outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições estatais reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia, o que sobra é mais ou menos isso aí. Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos privatiza a política. Ao se conferir aos partidos o condão de transformar politics em policy, as pessoas viram automaticamente clientela do sistema. As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas as teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas políticas representativas de regulação de conflitos. Para os defensores dessas teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é, via de regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos Protágoras). Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam mais ou menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos em uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um papel civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a religião:

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pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo seria possível em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse Estado seja legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e períodicas e que os governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas também, é claro, pelas tais “elites civilizadoras”). Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos altamente conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as quais a principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não pode ser o resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos indivíduos que se ilustraram e que se comprometeram a manter uma ordem capaz de garantir aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles continuem a conformar sua liberdade aos limites impostos pelos sistemas de poder que formalmente permanecerem legitimados por eleições e respeitarem as leis. Isso, é claro, deve ser garantido, mas não para ser reproduzido indefinidamente como é e sim para possibilitar que os cidadãos continuem - com liberdade - inventando novas formas de regular seus conflitos. Em mundos altamente conectados essa forma representativo-político-formal da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como sistema de governo ou modo político de administração do Estado) deverá dar lugar a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no sentido "forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver em suas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de projeto). A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia +democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles – do qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por Althusius (1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da democracia dos modernos, por Rosseau (1754-1762), por Jefferson (1776) e por aquele “network da Filadélfia” que conectava os redatores americanos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos Federalistas (1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791), por Tocqueville (1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (1859-1861), até chegar às formas radicais antecipadas pela primeira vez por Dewey (1927-1939): a democracia na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, a democracia como expressão da vida comunitária (31). Esta última será uma espécie de metabolismo das redes mais distribuídas do que centralizadas, algo assim como uma pluriarquia.

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É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política. Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela primeira vez, pelos atenienses).

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A democracia foi a mais formidável antecipação de uma época-fluzz que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no abismo. Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo. Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente, abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava, há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Como já foi mencionado aqui, não é por acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um senhor. Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como foi o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que

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alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer planeta: mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa biosférica que envolve a Terra – conseguiu respirar. Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público. Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de “partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como grupo privado) e sim para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinonia) política. Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal, comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (32). E é mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus interesses (outra definição de partido). A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso, representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia já surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas – casuísticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público (33). Sim, público não é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar

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politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância de governança vigente. Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o que é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como esse – baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (34) – é contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de público. Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da democracia (uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são instituições contra-fluzz, regressivas na medida em que concorrem para autocratizar a democracia. Não é necessário argumentar muito para mostrar como tudo isso está no contra-fluzz. Esse tipo de organização partidária e de regime partidocrático a ela associado não tem muito a ver com a construção de uma governança democrática e sim com a manutenção de uma governabilidade autocrática, quer dizer, com a capacidade de manter as regras de uma luta, de um combate permanente entre grupos privados, assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre uma disputa pelo butim, na base do spoil system). Tal como o Estado-nação, partidos são instituições guerreiras: ainda quando não se dediquem ao conflito violento, operam a política como arte da guerra, como uma continuação da guerra por outros meios. Nesta exata medida, são organizações antidemocráticas. Só pessoas tontas – e pelo visto destas há muitas – podem acreditar que o resultado desse embate constante, dessa interação adversarial permanente, conseguirá constituir um sentido público (35).

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Nada deve impedir que pessoas se associem livremente para fazer política pública. Se houver algo impedindo isso, então estamos em uma autocracia ou em uma democracia formal de baixa intensidade, fortemente perturbada pela presença de instituições hierárquicas que deformam o campo social. Partidos são, obviamente, uma dessas instituições, conquanto não consigam – na vigência de regimes democráticos formais – impedir totalmente que as pessoas exerçam a política; não, pelo menos, nos âmbitos de suas redes de relacionamento, nos círculos com graus de separação mais baixos. Dentro de certos limites – impostos pelo grau de autocratização das democracias realmente existentes na atualidade – é possível democratizar a política na base da sociedade, inventando e experimentando novas formas de interação política realmente inovadoras. Nas autocracias isso não é possível, razão pela qual as democracias formais – com suas conhecidas mazelas e limitações – são infinitamente preferíveis a todas as formas de regimes autoritários, por mais que se lhes tentem louvar as supostas virtudes sociais. Essa nova política possível, entretanto, será necessariamente uma política pública, não de grupos privados de interesses – ou não será de fato nova. Se tentarmos reeditar a disputa adversarial de

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interesses de grupos privados, decairemos fatalmente na velha política (36). O simples fato de algumas pessoas já terem desistido dos partidos e arregaçado as mangas para fazer o que acham que deve ser feito em suas localidades – articulando redes de interação política (pública) e exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos – já é um sinal de que a dinâmica da sociosfera (em que convivem) está sendo alterada. Nos Highly Connected Worlds as pessoas (que quiserem) poderão constituir não-partidos, comunidades políticas para tratar dos seus assuntos comuns, regulando seus conflitos de modo cada vez mais democrático ou pluriarquico. Isso significa que evitarão modos de regulação de conflitos que produzam artificialmente escassez (como a votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e, até mesmo, o sorteio), guiando-se – cada vez mais – pela “lógica da abundância”. É claro que isso só se aplica em redes mais distribuídas do que centralizadas e na medida do grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de interatividade) dessas redes. Dizendo a mesma coisa de outra maneira: se você não produz artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização). Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são – em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. E somente em estruturas hierárquicas tais problemas costumam se agigantar a ponto de gerar conflitos realmente graves, capazes de ameaçar a convivência. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes. Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriarquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo. Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não concordarem? Ora, os que não concordarem não devem aderir. E sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa aderirão a ela. E assim por diante. Em redes distribuídas nunca se admite a votação como método de regular majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando houver discordâncias de opiniões, como faremos? Ora, não faremos nada! Por que

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deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade! Se você estabelece a prevalência de qualquer coisa a partir da votação (ou de outros mecanismos semelhantes de regulação de conflitos), cai em uma armadilha centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez onde não havia. Vamos imaginar que exista alguém que não esteja muito contente com a maneira como as coisas estão acontecendo em uma comunidade. O que essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em debate? Ora, no limite, essa pessoa descontente pode configurar uma nova rede, se inserir em outra comunidade, ir conviver em outro mundo. Como os mundos são múltiplos, ela não está mais aprisionada e não precisa ficar constrangida a permanecer no mesmo emaranhado onde não se sente confortável. Evidentemente a pluriarquia não pode ser adotada em organizações centralizadas, erigidas no contra-fluzz, como as escolas, as igrejas, os partidos e as corporações. Com mais razão ainda não pode vigir nos Estados e seus aparatos, que – mais do que organizações hierárquicas – são troncos geradores de programas centralizadores. A despeito disso, porém, não-partidos tendem a florescer nos mundos altamente conectados que estão emergindo. Ignorando solenemente as restritivas disposições estatais e as crenças religiosas (sim, religiosas, mesmo quando travestidas de científicas) em uma suposta competitividade inerente ao ser humano difundidas pelas escolas e academias, pessoas vão se conectando voluntariamente com pessoas para tratar cooperativamente de seus assuntos comuns em todos os lugares, sobretudo nas vizinhanças – conjuntos habitacionais, ruas, bairros – e nas comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que se formam nas cidades inovadoras que não querem mais permanecer eternamente na condição de instâncias subordinadas ao Estado-nação.

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As preferências que levam alguém a querer morar ou trabalhar em Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral, relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem gosta de viver em São Francisco, freqüentemente tem motivos muito claros para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos. Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social (ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social. O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e nos divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela

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publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando o mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam seus dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação desse fruto da guerra chamado Estado-nação moderno) ou – para lembrar a já batida sentença de Samuel Johnson (1709-1784) – é um refúgio de canalhas (37) que se escondem por trás do nacionalismo para proteger seus interesses ou levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no campo econômico, por certo, mas também no político. Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades do ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se bem – das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não propriamente das instâncias locais do Estado (central ou regional), das prefeituras e das outras instituições privatizadoras da política que querem “representá-las” ou comandá-las. O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas, agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias, vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais, algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados). Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a ser localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas passaram a ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são encaradas, pelos aparatos estatais que comandam os países, como instâncias subordinadas (ordenadas a partir de cima). E conquanto tenham alguma autonomia formal, figurando como sujeitos de pactos federativos em muitas Constituições modernas, as cidades são realmente subordinadas do ponto de vista político, jurídico, fiscal, energético, econômico etc. Seu funcionamento depende, em grande parte, de decisões tomadas sem a sua participação. Normas, repasses de recursos e investimentos, são determinados por outras instâncias, de cima e de fora. E na medida em que tudo isso gera dependência, não interdependência, são construções contra-fluzz.

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As nações são apresentadas como grandes comunidades, no sentido alemão seiscentista do termo, ou naquele sentido, que lhe atribuía Althusius (1603), da grande comunidade territorial de herança (38) e não no sentido que lhe atribuímos hoje, da pequena comunidade como cluster, de escolha de uma (“porção” da) rede social para conformar um campo de convivência, em uma atividade compartilhada, de prática, de aprendizagem ou de projeto. Dewey (1927) em “O público e seus problemas”, faz uma correta distinção entre a grande comunidade e a pequena comunidade do ponto de vista da democracia (substantiva) como modo de vida comunitário. Não é na grande comunidade (nação) que essa democracia pode se materializar plenamente e sim na pequena comunidade local; para usar suas próprias palavras: “a democracia há de começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal” (39). Essas grandes comunidades-nacionais são, é claro, instituições imaginárias. Como tal são abstratas. Ninguém convive ou interage concretamente com a população de um país. Ser brasileiro, italiano ou argentino não é, stricto sensu, pertencer a uma comunidade concreta, porquanto, para os nossos ‘compatriotas’ (e essa palavra já é horrível), não estamos incluídos, como pessoas, no seu modo-de-vida, quer dizer, não fomos voluntariamente

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aceitos e acolhidos por eles no seu campo de convivência. Who cares? Somente comunidades humanas podem incluir seres humanos, mas quem é incluído é sempre a pessoa com suas peculiaridades e não o indivíduo como um número em uma estatística ou uma variável censitária. No entanto, para fazer parte da grande “comunidade” nacional basta nascer naquele território delimitado como seu (a partir da conquista ou da guerra) e, em geral, manter “laços de sangue” ou hereditários com os nacionais (ou seja, trata-se do reconhecimento de uma herança genética, condição a partir da qual – acredita-se, e não sem razão – a transmissão não-genética de comportamentos que chamamos de cultura pode ser viabilizada, inoculando-se tal cultura (como quem “carrega” um programa) nos novos membros (descendentes dos nacionais), a partir da família e, em seguida, da vizinhança, da escola, da igreja, das organizações sociais, das empresas e das instituições nacionais estatais e não-estatais). Note-se que essa identidade abstrata nacional é construída a partir de uma visão de passado: origem comum (em geral forjada), raça (uma identificação inconsistente do ponto de vista científico), língua, costumes, credos, cultura enfim e história (escrita sempre da frente para trás) (40). Percebe-se que não há aqui qualquer escolha humana. Não há acolhimento (quer dizer, inclusão). Funciona mais ou menos assim como na propriedade de um rebanho animal: as crias do gado pertencem automaticamente ao dono da boiada, aumentam o número de cabeças do seu patrimônio. Pois bem. No caso do pertencimento à grande “comunidade” nacional quem faz às vezes do dono é o Estado-nação. É o Estado que interpreta o que é a nação. É o Estado que delimita quem pode ou não pode ser incluído na nação e estabelece condições de pertencimento ou inclusão. Mas o Estado não é uma comunidade e sim um sistema de organizações que gera programas verticalizadores (ou, talvez melhor, do ponto de vista da rede social, o inverso: uma matriz de programas verticalizadores que gera um sistema de instituições), cuja função precípua é obstruir, separar e excluir. A partir do monopólio legalizado da violência, é o Estado que diz: isso você não pode fazer; por tal ou qual caminho você não pode trafegar sem autorização; aqui você não pode entrar ou daqui você deve sair. Ponha-se na rua, quer dizer, fora do meu território! Não importa se, por exemplo, uma comunidade concreta de espanhóis queira acolher um africano, incluindo-o no seu campo de convivência para a realização de um projeto comum. Se o africano em questão não atender a certas condições e não preencher certos requisitos ditados pelo Estado,

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nada feito. E mesmo que cumpra todas as exigências, ele sempre será, aos olhos do Estado-nação espanhol, um estrangeiro, ou seja, um estranho, alguém que deve ser impedido de circular livremente, separado dos “verdadeiros” espanhóis e excluído de certos direitos – o principal dos quais o de pertencer plenamente à comunidade política que define os destinos coletivos dos espanhóis. Sim, será um excluído político porque será – aos olhos da autocrática realpolitik estatal – sempre alguém cujo modo-de-ser ameaça, independentemente do que faz ou venha a fazer, simplesmente por ser diferente, por ser um outro, o modo-de-ser estabelecido como desejável pelo imaginário nacional historicamente construído pelo mega-programa Estado e que é reinterpretado de tempos em tempos pelos condomínios privados de agentes políticos – estes sim, bem concretos – que assumem as funções de governo. De certo ponto de vista, o que chamamos de Estado como fonte ou geratriz de programas verticalizadores que “rodam” na rede social, faz parte da ideologia dos governos. No que tange a função de legitimação dessa ideologia, foi necessário promover uma fusão entre o Estado e a nação. Sem isso o aparato hierárquico estatal não conseguiria infundir na grande “comunidade” nacional as noções abstratas de identidade que alimentam o aparato, para as quais o drive principal foi, invariavelmente, a guerra (que permite a formação de identidade a partir do inimigo). Sim, os Estados – qualquer Estado, inclusive a forma atual Estado-nação – são frutos da guerra e se alimentam (internamente) do “estado de guerra” ou (na fórmule inversa de Clausewitz-Lenin) da prática da política como uma continuação da guerra por outros meios. São produtos, portanto, não da cooperação (ou da amizade política) que supostamente aglutinaria a nação – e de todo aquele blá-blá-blá da “vontade de viver juntos” – e sim da competição (ou da inimizade política). Por isso que todo Estado é hobbesiano. Todo Estado é fruto do realismo político. Todo Estado é autocrático (inclusive naqueles que denominamos de “Estados democráticos e de direito” os enclaves autocráticos são tão onipresentes que a estrutura e a dinâmica da entidade como um todo não podem acompanhar o comportamento democrático das sociedades que dominam). Ao criarmos a identidade imaginária “Atenas” para colocá-la no lugar da identidade concreta “os atenienses”, já não estamos mais no campo da democracia e sim no da autocracia. E os próprios gregos do século de Péricles fizeram isso, quando se comportaram de modo a-político no enfrentamento violento com outras cidades-Estado da região. Não é a toa que os governantes vivem apelando para um sentimento nacional. Falam da França, da América ou do Brasil como se essas

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“entidades” existissem e tivessem vontade própria, a fim de extrair o combustível do “fervor patriótico” para se manter no poder, para reproduzir o sistema de instituições estatais que quer impor sua legitimidade à sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo feudal mesmo) e para continuar produzindo inimizade no mundo. Ora, você pode dizer: eu não quero “viver junto” com quem eu não quero, apenas pelo fato de ser brasileiro, na medida em que isso signifique “não-querer viver junto” com um inglês pelo fato de ele ser inglês (e não brasileiro). Por que deveria? Quem disse que somos inimigos? A quem interessa manter esse tipo de rivalidade subjetiva? Do ponto de vista genético – a ciência biológica já mostrou – somos mesmo, todos nós, uma única grande família. Do ponto de vista cultural parece claro, a não ser que nos deixemos intoxicar pela estiolante ideologia multiculturalista, que culturas que não se polinizam mutuamente – por meio de saudável miscigenação – tendem a apodrecer. Não existe um Brasil, mas milhares, talvez milhões. Stricto sensu a “nação brasileira” não é, nem nunca será, uma comunidade e sim uma interação de miríades de comunidades que falam a mesma língua (com vários sotaques e regionalismos), têm alguns costumes parecidos (e muitos costumes locais bem diferentes), várias histórias reais (e não apenas uma única narrativa, como aquela que é ensinada nas escolas). A nação só é una do ponto de vista das instituições estatais (por meio das quais se materializam os poderes da República, as forças armadas, a moeda) e daquilo que antigamente se chamava, de um jeito meio sem-jeito, de “aparelhos ideológicos de Estado”. Além, é claro, do governo central, que precisa espichar essa unidade para além da herança cultural. Mas há uma idéia e, mais do que isso, uma prática de bando na raiz dessa unidade. Como no surgimento da noção de cidadania (que nada tinha de universal, pelo contrário), trata-se de proteger “os de dentro” contra “os de fora”, impedir que eles – os outros – venham vender na nossa feira, que concorram conosco em igualdade de condições, que adquiram nossas terras, que roubem nossas riquezas naturais (que certamente o próprio Deus nos concedeu, lavrando a escritura no cartório do céu: em nome do Estado, é claro), que tomem nossos empregos, que exerçam plenamente a cidadania política (disputando conosco o poder associado à representação). Sim, é um sentimento de bando que se manifesta aqui, justificado pelo pressuposto antropológico de que o ser humano, por inerentemente competitivo, é hostil por natureza e que, portanto, os seres humanos, deixados a si mesmos, como escreveu Hobbes (1651), engalfinhariam-se em uma guerra de todos contra todos. Ah... A menos que haja um Estado

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para impedir, entenda-se bem, não o conflito em si e a guerra, mas o conflito no interior do próprio bando e a guerra entre “os de dentro”. Tudo isso, é claro, para poder promover o conflito e a guerra com “os de fora”. Foi assim que nasceu o Estado, e inclusive, como já foi assinalado, a forma atual Estado-nação e a ordem internacional do equilíbrio competitivo. Então, quando alguém fala do Brasil, ou em nome do Brasil, podemos procurar que certamente vamos achar os interesses particularistas, bem concretos, que se escondem sob essa “nacionalização” abstrata do discurso. É alguém tentando se proteger do mercado. É alguém tentando proteger a sua indústria ou o seu negócio. É alguém tentando se proteger da concorrência comercial ou política. É alguém tentando proteger o seu emprego. É alguém tentando proteger suas condições de vida. É alguém tentando desqualificar os oponentes para ficar no poder. É alguém tentando manter nas mãos do seu bando as instituições estatais que aparelhou. É sempre alguém no contra-fluzz, tentando se proteger do outro. “O Brasil” é um construct. Se somos brasileiros, na maior parte do tempo, nos nossos trabalhos, nos nossos estudos e pesquisas, nos nossos relacionamentos, “o Brasil” não gera preferências significativas (41). Na aceitação da legitimidade do outro e na sua incorporação em nosso espaço de vida, não deveríamos dar a mínima se uma pessoa é brasileira, italiana, argentina, francesa ou norte-americana. Qualquer preferência, baseada nesses critérios, para acolher ou rejeitar uma pessoa em uma comunidade, é uma canalhice. Sim, nunca é demais repetir o dito de Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Uma pessoa decente não deveria se deixar drogar com esse tipo de ideologia que obstrui, separa a exclui para atender a exigências hierárquicas que, ao fim e ao cabo, são desumanizantes. Nos últimos séculos o fervor patriótico que alimentava as “comunidades” nacionais foi sendo obrigado a dividir espaço com o consumismo, apátrida por natureza, internacionalizante, sim, mas não glocalizante. E não necessariamente mais humanizante. Ocorre que o processo de globalização (ou de planetarização) começou a quebrar as fronteiras nacionais (aquelas que são vigiadas pelo Estado nacional) em todos os campos, ensejando que culturas não-nacionais pudessem emergir das múltiplas interações cruzadas de pessoas de diferentes nacionalidades. Praticamente nenhum Estado-nação, nem mesmo o mais autocrático deles, consegue mais fechar suas fronteiras, em termos culturais, isolando seu “rebanho” do resto do mundo. A telefonia móvel e a Internet (a despeito daquele vergonhoso acordo do Google com os ditadores chineses, que não deve ser esquecido, conquanto

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o próprio Google tenha sido levado a revê-lo, muitos anos depois) aceleraram esse processo. De sorte que existe hoje um contingente crescente de pessoas que não estão nem aí para identidades nacionais e que estão se inserindo em múltiplas comunidades transnacionais, compostas por pessoas de várias nacionalidades, a partir de suas próprias escolhas. No segundo capítulo do seu excelente Transforming History intitulado “Cultural History and Complex Dynamical Systems”, William Irwin Thompson (2001), escreveu que “toda nossa matriz de identidade baseada em uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico está mudando para uma nova cultura planetária...”. Mas em seguida adverte que “explosões reacionárias [atuando “como a Inquisição e a Contra-Reforma, que procuraram travar e reverter as forças modernizadoras da Renascença e da Reforma”] podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural por séculos a fio” (42). Pois é precisamente neste ponto de bifurcação que nos encontramos hoje. Todavia, para além, talvez, do que avalia Thompson, não são apenas “o fundamentalismo religioso e as reações terroristas nacionalistas da direita à planetização” (43) que estão tentando enfrear a emergência de uma nova identidade transcultural. Hoje o próprio conceito de nação, interpretado e materializado por uma forma já decadente de Estado – o Estado-nação e as ideologias nacionalistas nele inspiradas ou por ele infundidas na sociedade – constitui um obstáculo à transição histórica atualmente em curso (cujo sentido é a glocalização).

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Do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’ – para usar a feliz expressão de Amartya Sen (2000) –, é forçoso reconhecer que a imensa maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo (44). O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que têm ambientes mais favoráveis à inovação. Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30! Em ordem alfabética (em dados do final da década passada): Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha,

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Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único candidato de sempre: o Chile). Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também, não figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico (como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e, nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América Latina). Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’, os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria, não são instâncias benéficas. Os números são assustadores. Mais da metade (50,5%) dos 193 países do mundo ainda vive sob regimes ditatoriais ou protoditatoriais. Apenas 80 países (reunindo 49,5% da população mundial) apresentem democracias formais (um cálculo com boa vontade, incluindo aquelas que são parasitadas por regimes populistas ou neopopulistas manipuladores). Isso significa que cerca de 3 bilhões e meio de pessoas não têm experiência de democracia representativa – sim, a referência aqui é à democracia formal mesmo – ou têm dessa democracia uma experiência muito limitada. Quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119 (45). Mas nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, a legitimidade).

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O mais recente levantamento sobre o estado da democracia no mundo – The Economist Intelligence Unit’s Index of Democracy 2010 – abarcando 167 países (Estados-nações), revelou que existem atualmente apenas 26 países com democracia plena (em termos formais), agregando 12,3% da população mundial. E revelou também que esse número não está aumentando; pelo contrário, a situação foi descrita como “democracy in retreat” e “democracy in decline” (46). Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano, social e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados” (por assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos Estados-nações – que as estrangulam. O fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa fórmula política – do ponto de vista do desenvolvimento. As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não há nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a concentração de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de retaliação dos governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz, andam de “pires na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais, em parte porque dependem de recursos que foram centralizados pelas instâncias nacionais e, em parte, porque têm medo de serem discriminados e perseguidos – o que, convenha-se, é um motivo odioso e antidemocrático. Mas isso acontece porquanto suas cidades não estão preparadas para enfrentar os desafios de caminhar com as próprias pernas.

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Não é por acaso que as cidades sempre estiveram na ponta da inovação, seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de Péricles (ou, mais amplamente, no período considerado democrático: 509-322 antes da Era Comum), seja no aspecto econômico e científico-tecnológico, como Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem comercial moderna, logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro centro globalizado da Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou Antuérpia (na primeira metade do século 16) e depois Gênova (na segunda metade), que se tornaram centros financeiros, seguidas por Amsterdã (na passagem do século 17 para o 18), ou por Londres, que se transformou na primeira democracia de mercado e onde o valor agregado industrial, impulsionado pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na história, o da agricultura, ou por Boston (no início do século 20), com a fabricação de máquinas, passando a Nova Iorque que predominou durante quase todo o século passado, com o uso generalizado da eletricidade e chegando, afinal, à Califórnia atual, com Los Angeles e às cidades do Vale do Silício. Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte. Freqüentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades

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transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma lógica própria e diferente daquela do Estado-nação. Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (47). Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então (2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o centralizado sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes permite uma dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico. Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura), em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao que tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão preservadas, a não ser em alguns casos. Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou da ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado por Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de cidades). Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidades-sedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que falam

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da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória hipótese dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores, professores, consultores e policymarkers intoxicados de ideologia econômica e siderados pelo crescimento (ou expansão, mudança quantitativa) e não pelo desenvolvimento (mudança qualitativa). Com freqüência são também pessoas que não se dão muito bem com a idéia de democracia.

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O reflorescimento das cidades – na verdade, das localidades em geral – é uma das conseqüências do processo de glocalização atualmente em curso. O mundo não está apenas se globalizando, mas também se localizando cada vez mais. Isso quer dizer, em outras palavras, que o mundo único está desparecendo para dar surgimento a muitos mundos. E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas do desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente na dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada, insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estado-nação tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos. Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). Entretanto, o Estado-

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nação tornou-se uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Ou seja, a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação, que, sentindo-se ameaçada, está resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança. A primeira década do terceiro milênio pode ser caracterizada como uma década de crise do Estado-nação e de conseqüente recrudescimento do estatismo. Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas não conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos fatores que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999), “as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional” (48). Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local. Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes níveis de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se aprofundar e generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que se fala aqui das cidades como redes de múltiplas comunidades interdependentes e não da réplica Estatal montada nas cidades, da instância municipal do Estado ou do governo local. Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico. É o caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social e não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e do capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas as conseqüências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal. O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que a configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se esforça para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou sobrevirá), mas se

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esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade que emergirá. Isso talvez seja uma evidência da resiliência da crença economicista de que existe alguma coisa como uma “estrutura” econômica que determina, em alguma medida ou instância, uma suposta “superestrutura” da sociedade. Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja, tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade (i. e., de sociosferas), vale dizer, da rede social. Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na Mesopotâmia a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se replicaram no período considerado civilizado); as cidades – burgos – organizadas em torno do comércio nos períodos feudais; uma grande variedade de cidades correspondentes aos Estados principescos e reais; até chegar às cidades como instâncias subnacionais (ou domínios do Estado-nação). E tivemos também algumas exceções, como Atenas – a polis do período democrático – e outras poleis na Ática. São exceções porque a polis grega democrática não era propriamente uma cidade-Estado semelhante às suas contemporâneas e sim uma comunidade (koinonia) política. Por último, ao que parece, teremos agora, no ocaso do Estado-nação, novos tipos de cidades: as cidades-redes (e as redes de cidades configurando novas regiões). Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-rede. Assim como a globalização da época das navegações não diz muita coisa sobre a globalização atual, também não teremos um novo venezianismo (por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de Bruges – a não ser o próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15). Não teremos novas “ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um neogenovismo; assim como nenhum país ou região poderá cumprir no mundo atual o papel que foi desempenhado, em suas épocas, por Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque ou Los Angeles e adjacências.

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Por quê? As explicações são várias: porque a ordem comercial contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza), de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não precisam estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra dos séculos 18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da nova indústria do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura tão pesada que só possa ser reunida em uma localidade com alta capacidade hard instalada (como Boston, nos Estados Unidos no início do século 20); porque o acesso à eletricidade é praticamente universal (e a conexão banda larga segue o mesmo caminho) e a energia e a inteligência não precisam estar mais espacialmente tão concentradas (como estiveram em Nova Iorque ou em Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício durante o século 20). Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com o grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral colocando obstruções) as fluições que configuram a forma e o funcionamento das sociedades. Mas nenhum desses tipos de agenciamento pode determinar o que acontece. O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos irmãos Wachowski, não precisava se assentar em um território determinado para executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o centro de vida alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era territorialmente (e mais do que isso, subterraneamente) situada, enquanto que a Matrix era virtual, ou melhor, virtualizante... O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização), nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo físico ou no chamado mundo digital (49). Mas o agarramento ao território, esse agrilhoamento tamásico contra-fluzz – posto que estabelecido para tentar impedir a vida nômade das coisas – tem sido fonte, em grande parte,

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do poder de separar os seres humanos: uma tentativa de matar no embrião o simbionte social. Os Estados foram erigidos para nos proteger da experiência do localismo cosmopolita, uma experiência glocal. Sob seu domínio, uma pessoa não pode ser cidadã do seu próprio mundo e não pode interagir livremente com outros mundos. Não, ela deve ser aprisionada no mundo único que foi territorialmente repartido por organizações erigidas em função da guerra e separadas por fronteiras, fechadas e burras. Em geral não pode atravessar essas fronteiras sem a permissão do poder estatal. Em uma parte dos casos, o poder estatal não concede tal licença a seus súditos, trancafiando-os no próprio território-penitenciária, como se tivessem sido condenados por algum crime gravíssimo. Em outra parte dos casos, não deixa entrar (ou cria toda sorte de empecilhos para a entrada) em seus territórios de certas categorias de estrangeiros.

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Ecoando o Operating Manual for Spaceship Earth de Buckminster Fuller (1968), McLuhan (1974) afirmou que “a espaçonave Terra não tem passageiros, só tripulação” (50). Como poderíamos considerar alguém “estrangeiro” se pertencemos todos à mesma família (em termos genéticos, praticamente toda a população da Terra é prima em um grau inferior ao 50º), habitando um planeta tão minúsculo, no qual somos todos tripulantes (quer dizer, todos nós somos o pessoal necessário para o bom funcionamento da nave)? Na modernidade, em um padrão descentralizado, 193 Estados-nações impõem modelos autocráticos de governança baseados no equilíbrio competitivo. A ilusão (e a impostura) de que sete bilhões de pessoas possam ser administradas por menos de duzentas unidades centralizadas – e, em grande parte (a maior parte) autocratizadas – é aceita como se fosse normal. Como se fosse possível disciplinar toda a diversidade da interação ensejada por bilhões de interworlds em duas centenas de organizações, em sua ampla maioria, capengas, autoritárias e corruptas, controladas por grupos privados que satisfazem seus interesses à custa do público, quando não por sociopatas, ladrões e facínoras de todo tipo.

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Tudo indica que não poderemos mais ser arrebanhados e aprisionados ou dominados por 193 organizações hierárquicas, eivadas de enclaves autocráticos resilientes – constituídos como barreiras, para tentar obstruir fluzz –, como são os Estados nações da atualidade. Nem por algumas dezenas ou centenas de milhares de Estados-locais (ou instâncias locais de um Estado central) chamados de cidades (indevidamente, posto que a cidade são sempre redes de comunidades). As novas Atenas serão milhões de comunidades. Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova ordem emergente, bottom up. O reflorescimento das cidades é um sintoma do fortalecimento das comunidades que as constituem. São essas comunidades que comporão outras unidades celulares da nova arquitetura de governança do mundo glocalizado. É por isso que as cidades (e as coligações de cidades em novas regiões econômicas e geopolíticas) – e não mais, em geral, os Estados-nações – são hoje instâncias intermediárias nessa transição para outra etapa do sistema global, no rumo da efetivação de uma verdadeira ecumene planetária. Mas – repetindo o mantra – o modelo é fractal e não unitário. Isso significa duas coisas. No plano global, uma ecumene planetária não poderá ser uma réplica global do Estado-nação; nada assim tão monstruoso como um governo mundial ou um parlamento mundial, que apenas transferiria, para o seu interior, o modelo perverso de equilíbrio competitivo ainda reinante no cenário internacional. Tal ecumene, não será uma administração, um sistema executivo de comando-e-controle, nem mesmo uma grande instância de representação baseada na alienação da autonomia das localidades ou comunidades que a constituem. Ela se formará por emergência, tal como ocorre na regulação da capa biosférica que envolve o planeta (o simbionte natural). E, no plano local, a identidade da cidade-rede também se forma por emergência, na sinergia de múltiplas identidades que, ao se identificarem entre si, também se identificam com ela (ou parte dela) por herança ou projeto compartilhado a posteriori, e não por uma decisão consciente (e a priori) de algum centro diretor ou coordenador. Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a diversidade das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a rigor, uma comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau máximo de distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno relacionamento entre todos os seus membros (e, conseqüentemente, usinar uma identidade inequívoca) é uma rede muito pequena, não chegando, talvez, a duas

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centenas de pessoas. Só não estamos diante de um problema insolúvel porquanto há também muita superposição. Uma pessoa participa ao mesmo tempo de várias comunidades desse tipo (familiar, funcional, de prática, de aprendizagem, de projeto etc.) e não está condenada a conviver em um único círculo restrito de relacionamentos. Assim, o padrão de interação é complexo, dando margem à formação de circularidades inerentes que – se compartilhadas por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-rede. Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais, geograficamente localizados, como “regiões” do espaço-tempo dos fluxos. Não se trata de fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta, uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são péssimos: criam-se arquiteturas verticalizadoras e dinâmicas autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília), para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras cidades só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer), várias décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e de planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que retornam de tempos em tempos. Padrões de comportamento social peculiares já se reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às vezes milenar e isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes de um número limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão imbuídos das melhores intenções. Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada “sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um plano de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte potencial transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia do sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos velhos padrões de ordem. Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo como proposta política para estabelecer um caminho de mudança, forjando estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por meio do proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários. Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas que

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podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um bem público. Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social) nas cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública atual, contraída pela invasão dos programas proprietários do Estado-nação (que, ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase sempre desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).

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Nas grandes transformações moleculares – aquelas que têm conseqüências duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque foi destruído, mas porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca são eliminados de uma vez ou para sempre, mas continuam existindo, como remanescências, vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estados-nações continuarão existindo por muito tempo, assim como ainda existem hoje algumas comunidades de herança (do tempo medieval) e velhas tribos indígenas primitivas (da era paleolítica). Ao contrário do que previram os críticos da globalização, apavorados ante a perspectiva de uma uniformização ou homogeneização que seria imposta ao mundo inteiro, o cenário da glocalização é o de um conjunto de mundos variados, que estarão não apenas em locais diversos, mas também em tempos diferentes. Mas nessa nova configuração os Estados-nações não terão mais o protagonismo, hoje quase único e exclusivo, da governança do desenvolvimento, baseado nos monopólios da regulação e da violência que ainda se esforçam por deter em suas mãos. Sim, os Estados-nações continuarão existindo, mas já terão perdido o monopólio da governança do desenvolvimento, pelo simples fato de que não conseguirão mais impedir a emergência da inovação.

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Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir monopólios de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de produção e de regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente, o que se chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais (sempre associados nessa coligação que formou o capitalismo que conhecemos) continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulá-lo top dow a partir das leis de patentes, do domínio privado sobre produtos do conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta de transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as burocracias escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as academias). Mas não poderão mais evitar que novos conhecimentos se formem à margem das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é mais importante, não poderão mais competir com a produção em larga escala de conhecimentos e, inclusive (uma conseqüência), de produtos comerciais – como os chamados peer production e crowdsourcing – e com as outras formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas na emergência das novas cidades. Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação, interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do uso da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o Estado-nação não queira mais barrar tais avanços e sim porque não terá os meios para fazê-lo. O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já está sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São Paulo do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. Seria mais importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo do Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento, os governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo ou do Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China (ou no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores).

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De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão condenadas a inovar permanentemente. Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis à inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a bandeira da inovação com objetivos de marketing político). São esses ambientes que caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta, conectada para dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo, mas não apenas, no que tange aos empreendimentos empresariais e sociais) e educadora. Para tanto, é necessário que as cidades que queiram ser inovadoras construam sistemas locais de governança que favoreçam ao invés de dificultar a regulação emergente, a partir da comunitarização. O mercado nos forneceu um modelo relativamente eficaz de regulação emergente, tão sedutor que muitas pessoas deixaram-se intoxicar por uma visão mercadocêntrica do mundo, que poderia ser resumida na pergunta: ora, se deu certo para as unidades econômicas, por que não daria também para as unidades políticas e sociais? Foi assim que os modernos avacalharam o conceito de público. E a rigor também desaproveitaram o que havia de tão revelador na autoregulação mercantil: o próprio mecanismo da autoregulação ou o processo da emergência. Por medo do risco, da incerteza no tocante aos seus investimentos, em vez de constituirem empresas-fluzz e de articularem seus negócios em rede, erigiram empresas monárquicas, às quais logo associaram ao Estado hobbesiano gerando o capitalismo que conhecemos.

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O que chamamos de ‘negócios’ são uma interpretação possível de um tipo de interação social. O tipo de interação que denominamos assim permanece ainda relativamente desconhecido do ponto de vista do que se passa no espaço-tempo dos fluxos. Uma coisa que a nós parece ser um negócio, em uma sociedade não-mercantil talvez pareça ser uma simples troca e em uma sociedade fortemente verticalizada de predadores ecossociais (como, por exemplo, entre cavaleiros medievais), pareceria ser uma justa, uma disputa de vida ou morte. As interações entre pessoas que estão na raiz do fenômeno têm uma precedência ontológica (se for possível falar assim) às interpretações de suas manifestações em sociedades determinadas: para o persa vendedor de seda no mercado, comércio era uma coisa diferente do que era para o mercador veneziano e do que é para o vendedor da Avon. O status do conceito (a epistemologia) varia com a ontologia; ou seja, negócios em uma rede não são anteriores ao tipo particular de interação que, em uma dada circunstância, interpretamos como negócio. Isso coloca algumas perguntas fundamentais: os negócios, como acreditam alguns, fazem parte (“naturalmente”) da vida em sociedade? Quais tipos de

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intercâmbios de energia (incluindo matéria) e informação característicos do “metabolismo” de um corpo comunitário podem se chamar de negócios? Ou, imaginando uma comunidade como um ecossistema, o que seria um negócio? Vamos tomar como exemplo de um tipo de interação que, segundo a opinião geral, ocorre em uma rede: a aprendizagem. Mas aprendizagem também é um tipo de interação, que, dependendo das circunstâncias, pode ser interpretado como negócio (e vice-versa). E aprendizagem também pode ser interpretada como desenvolvimento (a organização que aprende é aquela que se desenvolve). E desenvolvimento pode ser interpretado, em um sentido ampliado, como vida (do ponto de vista da sustentabilidade). E vida pode ser interpretada como conhecimento (como nos mostraram Maturana e Varela na chamada de teoria do conhecimento de Santiago). Estamos aqui como aqueles caras que olham a mesma montanha de diferentes perspectivas e juram, um, que a montanha é assim, com uma ponta para o lado esquerdo, outro, que a montanha é assado, com uma inclinação para a direta, outro, ainda, que ela tem a forma de cone... Mas como ela é realmente? Enquanto não desvendarmos o que se passa no espaço-tempo dos fluxos, enquanto não decifrarmos os padrões que transitam como mensagens, ou melhor, que se configuram como emaranhamentos na rede social, não poderemos saber o que é (e de que forma é) – ou o que não é – próprio da “fisiologia” da rede. Sabemos mais ou menos como devem funcionar os negócios em uma estrutura hierárquica (ou mais centralizada do que distribuída). Não sabemos, entretanto, como devem funcionar em uma rede (mais distribuída do que centralizada). E não sabemos porque as estruturas de negócios até hoje (ou, pelo menos, desde que se chamaram ‘negócios’) foram estruturas mais centralizadas do que distribuídas. Se tomarmos ‘redes’ por estruturas mais distribuídas do que centralizadas, negócios em uma rede podem ser julgados como positivos ou negativos do ponto de vista do que contribui para manter a rede como tal (quer dizer, com graus de distribuição maiores do que de centralização). Ou, dizendo de outro modo, isso depende do que incrementa ou dilapida capital social. Ou, ainda, depende do que aumenta ou diminui a cooperação. Por exemplo, qualquer repartição de excedente, em uma rede distribuída, que reserve uma parcela maior ao administrador, não pelo fato de ele ter se

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esforçado mais ou inovado mais e sim pelo fato de ele ter um acesso diferencial a fatores que poderiam ser compartilhados, mas não foram (conhecimento mantido em sigilo, às vezes, sob pretextos de "segurança da informação", apoio político privilegiado e outros) gera centralização, diminui o capital social, diminui a cooperação. Os negócios que são feitos no mundo ainda são, em grande parte, negócios de intermediação. Mas nos mundos hiperconectados que estão emergindo, a figura do intermediário tente a desaparecer. Há uma espécie de esgotamento histórico de um papel social que foi adequado a uma época que está se desfazendo. Unidades econômicas hierárquicas precisam, por certo, de intermediários; e quanto mais centralizadas forem, mais precisam. Ou, dizendo de outro modo, pelo inverso, a intermediação é uma centralização: o fluxo não escorre livremente sem passar por aquela "estação"... Porém unidades mais distribuídas do que centralizadas podem dispensar tais intermediários na medida do seu grau de distribuição (que, como se sabe, acompanha o seu grau de conectividade). Em rede, ao que tudo indica, os negócios não poderão ser baseados na manipulação alheia (arregimentação, constrangimento e condução de pessoas) para embolsar trabalho não-pago. Administradores do excedente que submetem pessoas à esquemas de comando-e-controle (e acabam administrando pessoas ao invés de coisas), tendem a fenecer. Se alguém se propõe a administrar pessoas como forma de conduzí-las a gerar valor para se apropriar de um sobrevalor, então está cumprindo uma função social própria de uma época de baixa conectividade social.

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Mas então, como serão as relações de negócios entre as pessoas em uma sociedade em rede? Será que, como prevêem alguns, tudo vai ser resolvido pela livre negociação? Parece que sim. Mas o problema é a partir de que lugar se negocia (ou do poder de negociação, que é diretamente proporcional às relações que alguém construiu ao longo da vida e, muitas vezes, como conseqüência, ao conhecimento e a outros capitais econômicos e extra-econômicos que reuniu ou acumulou e aprisionou). Assim como não existe o tal mercado perfeito da máquina econômica inventada pelos economistas (um delírio aceito por todos, conquanto isso seja espantoso), também não existe a negociação simétrica. Isso ainda é assim nos empreendimentos empresariais, não há dúvida. Se não fosse, alguém não precisaria abandonar seu sonho para trabalhar em prol do sonho alheio (para usar uma linguagem cara aos arautos do empreendedorismo). A empresa hierárquica foi criada para proteger as pessoas da experiência de empreender. Você não precisa empreender. É só deixar que eu empreendo por você. Desde, é claro, que você abandone seu sonho e adote o meu (como na conhecida anedota, desde que você esteja disposto a trocar uma idéia comigo: você chega com a sua e sai com a minha, hehe). Desde, é claro, que você trabalhe para mim.

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Mas isso talvez só seja assim em um mundo de baixa conectividade e distribuição. Nos Highly Connecteds Worlds que estão emergindo em uma sociedade do conhecimento, isso tende a deixar de ser assim. Ou seja, a negociação tende a ser cada vez mais equilibrada (e a eqüidade tende a aumentar). Porque o conhecimento – desaprisionado, inclusive, das escolas e academias – tende a estar igualmente disponível para todos os players. Porque o capital (stricto sensu, econômico mesmo: a renda e a riqueza) tende a não ter tanta importância diferencial para alguém iniciar um empreendimento. E porque as relações que garantiam a um empreendedor condições especiais para fazer um negócio, alugando força de trabalho alheia e capturando cérebros de terceiros – em geral, relações de natureza política, é inegável – também não conferirão apenas a alguns (poucos) tal diferencial. Em outras palavras e para exemplificar: o empreendedor capitalista nascente não teria conseguido prosperar sem o Estado. Ele tinha relações políticas privilegiadas. Isso valeu para os donos das primeiras grandes manufaturas inglesas, para Ig Farben, na Alemanha hitlerista, passando por Gerdau, no Brasil do regime militar e chegando aos atuais capitalistas chineses. Ocorre que nos mundos que se avizinham (os mundos altamente conectados da sociedade do conhecimento), o novo empresário não precisará mais de uma infra-estrutura hard instalada para produzir e nem, muito menos, de apoio político privilegiado para manter em suas mãos uma estrutura de negócios funcionando. Serão mundos - ao que tudo indica - muito mais abertos aos empreendedores (inovadores). No velho mundo único proliferam grandes empresas, tão agigantadas que foram obrigadas a embutir em sua estrutura várias funções que caberiam a Estados, escolas e, inclusive, a igrejas: algumas delas mantêm polícias e agências próprias de segurança e até de espionagem, universidades corporativas e, a pretexto de levantar uma causa para captar a adesão voluntária de seus stakeholders, elaboram e difundem, interna e externamente, visões de mundo que extravasam o campo dos seus negócios. Essas megacorporações dividem com os Estados-nações o controle sobre os grandes fluxos financeiros internacionais. Algumas empresas transnacionais já começam a dividir com os países várias outras funções antes privativas dos Estados: agências de inteligência, forças armadas para intervir em conflitos (e talvez provocá-los) em qualquer parte do mundo e para recuperar países devastados pelas guerras (que, em alguns casos, elas mesmas ajudaram a promover) etc. Amanhã, quem sabe, elas ainda vão cuidar de fronteiras, administrar prisões internacionais e campos de

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refugiados, emitir identidades inequívocas e não-falsificáveis (códigos digitais baseados no genoma), fornecer históricos aceitos por planos de saúde multinacionais, patrulhar e vigiar caminhos e rotas comerciais e turísticas e até cunhar moedas virtuais amplamente aceitas. A rigor, as grandes empresas não têm mais um (único) negócio. Tanto faz o negócio, pois vivem praticamente de propaganda. São, no fundo, empresas de propaganda. Quem pode comprar dez ou vinte minutos por dia em todos os canais de TV aberta e a cabo, pode também vender qualquer produto: de dentifrícios a telefones celulares. Quem pode se localizar adequadamente vende em qualquer lugar do mundo. E quem pode fazer essas coisas acumulou tamanho poder (inclusive comprando altos funcionários governamentais, parlamentares, juízes, promotores, policiais, fiscais e meios de comunicação em tantos países) que pode fazer quase qualquer coisa. A mega-estrutura montada e a difusão massiva da marca garantem, depois de algum tempo, que os produtos de uma grande empresa sejam quase sempre aceitos pelos consumidores, de um modo que não corresponde diretamente à qualidade desses produtos (ou à sua reputação, como se acredita). Apesar dessa conversa contemporânea de branding como pacto feito entre a empresa e os sujeitos que estão no seu “ecossistema”, em empresas hierárquicas competindo com outras empresas hierárquicas em um mundo hierárquico, todo branding acaba, mais cedo ou mais tarde, sucumbindo à realpolitik do marketing. Mas a medida que o mundo se torna menor em termos sociais (ou seja, mais conectado) a tendência, ao contrário do que supõem os adeptos dos movimentos antiglobalização, é a pulverização e a diversificação das empresas, não a sua concentração em algumas poucas unidades dominando o mundo inteiro. Saltaremos, talvez, das dezenas para centenas de milhões de unidades empreendedoras quando a população mundial chegar perto de 10 bilhões de pessoas (por volta de 2050). E isso não tem a ver apenas com crescimento absoluto, pois a razão empresa-habitante tende a aumentar bastante. Ao que tudo indica nos Highly Connected Worlds não vingarão mais empresas tão grandes, pouco ágeis para os tempos-fluzz. O capitalismo-que-vem (com esse ou outro nome) tende a ser um capitalismo de muitos capitalistas e não apenas de poucos. Se considerarmos que o capitalismo foi o resultado de uma associação entre empresa monárquica e Estado hobbesiano, talvez não seja nem muito correto chamá-lo de capitalismo. Será alguma coisa assim como um "capitalismo" do capital social.

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Pois bem. Aconteça o que acontecer, em uma rede negócios entre seus nodos não podem ser feitos segundo padrões do mundo hierárquico. Individualmente cada um pode continuar fazendo o que quiser em suas empresas. Pode continuar alugando gente, aprisionando corpos, capturando e colonizando cérebros, subremunerando “colaboradores” e administrando pessoas com base em suas vantagens competitivas-comparativas. Em rede, porém, as pessoas serão compelidas, cada vez mais, a simular, elas próprias, com seu comportamento, a mudança-para-rede que está acontecendo “lá fora”. Não propriamente para dar um exemplo ético e sim por coerência adaptativa: os Highly Connecteds Worlds constituem um florescimento da sociedade em rede que sempre fomos no princípio (e somos, nisi quatenus não “rodamos” programas verticalizadores). Eles são – para usar a bela expressão de William Irwin Thompson (2001), em Transforming History – aquela “unnamed origin that is now upon us...” (51) A questão aqui, portanto, não parece ser ética, nem estritamente econômica, mas social mesmo (a economia, como dissemos, não vem de Marte, mas é um dos pontos de vista explicativos para fenômenos que ocorrem na sociedade, quer dizer, na rede social). O homo economicus é uma abstração reducionista. O que existe mesmo é a pessoa, que só pode se constituir como tal na relação e, inclusive, na troca e na dádiva. Sim, as interações econômicas não são apenas de troca. Há uma economia, ou melhor, uma ecologia da dádiva. Quanto você troca uma coisa por outra não ganha nada: substitui uma coisa por outra. A máxima cínica “tudo que não é dado está perdido” significa “é dando que se recebe”, sim, mas não porque você dá instrumentalmente esperando receber algo em troca (como no chamado altruísmo recíproco interpretado por economistas) e sim porque, na ecologia do seu ecossistema comunitário, dar é a maneira de, para usar uma linguagem poética, deixar passar o fluxo da vida. O fluxo voltará para você na forma de maior capacidade de se transformar em congruência com as mudanças do meio. Ou seja, a dádiva é fluzz, faz parte da capacidade biológico-cultural – extremamente relevante em nossa história evolutiva – de conservar a adaptação. Não há nenhum problema, ético ou econômico, em ganhar dinheiro em troca de atividade desenvolvida ou esforço realizado. Não há problema, nem mesmo, ao contrário do que supõem os igualitaristas, em ganhar muito dinheiro assim. Também não há problema em gerar excedente, sobrevalor ou o que valha. Ter resultado positivo em qualquer atividade econômica é uma condição de sobrevivência e uma obrigação social (haja vista que o prejuízo terá que ser arcado por alguém e afeta a todos os stakeholders). O

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problema só aparece quando queremos administrar o excedente de uma maneira que impeça a possibilidade de outros também administrá-lo. O problema só aparece quando você quer ser azteca em vez de apache. Aquilo que derrotou os Apaches não foram as vacas que eles ganharam e sim a atribuição aos Nant'ans – os netweavers da rede social apache – de administrar centralizadamente o excedente, redistribuindo as vacas pelos membros das comunidades a partir de sua posição diferenciada (52). Se você administra o excedente dessa maneira, então introduz perturbações nos fluxos gerando anisotropias na rede toda (e mudando a topologia da sociedade). Ora, em uma rede que quer continuar sendo rede (mais distribuída do que centralizada), isso, por certo, é um problema!

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A empresa tradicional se baseava na capacidade de aprisionar o conhecimento, deter o segredo, guardar a fórmula a sete chaves. Só que nós – os hackers e os netweavers - estamos encontrando "O Chaveiro" (aquele programa do filme dos irmãos Wachowski (2003), The Matrix Reloaded, interpretado por Randall Duk Kim). E nenhuma empresa conseguirá, sozinha, se manter na ponta da inovação (sem o que verá suas chances de futuro se reduzirem ou não será sustentável) sem lançar suas "hifas" para importar capital humano (conhecimento) e social (relações) do ambiente onde existe. Duzentos cérebros aprisionados trabalhando para um dono não podem competir com vinte mil cooperando livremente para encontrar uma solução (de gestão, processo ou produto). Observe-se que estamos falando disso que chamam de 'Economics', mas sem manter uma posição genuflexória em relação aos princípios ideológicos proclamados por esses novos sacerdotes da modernidade conhecidos como ‘economistas’. Um desses princípios, muito conveniente para os privatizadores de conhecimento (como Bill Gates) é aquele que reza que o principal incentivo para a inovação é o interesse material egotista (toda economia ortodoxa, como se sabe, se baseia na idéia de que o comportamento da sociedade pode ser explicado a partir do comportamento

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dos indivíduos, que os indivíduos se comportam fazendo escolhas racionais a fim de maximizar a obtenção dos seus interesses e que esses interesses são sempre, ao fim e ao cabo, egotistas. Isso é alguma coisa parecida com religião, et pour cause). Bem, mas então o Sr. Gates diz isso. E a realidade mostra que o mundo não funciona (mais) assim (se é que alguma vez funcionou). Os grandes inovadores da humanidade – em sua maioria – nunca agiram assim. Descobriram coisas porque deram curso àquela surpreendente capacidade humana de se maravilhar com o desconhecido e de caminhar na escuridão em direção à luz (ainda que isso possa soar, para alguns, anacronicamente iluminista, a figura de linguagem parece perfeita). E polinizaram com suas descobertas outras descobertas. Toda inovação surge, dessarte, por polinização mútua, por fertilização cruzada. Ora, isso não acontece nos marcos do jogo comercial de interesses e nem poderá acontecer, no volume exigido pelo ritmo alucinante das inovações contemporâneas, apenas dentro de uma unidade fechada de aprisionamento de corpos e de cérebros (como a empresa como unidade administrativo-produtiva isolada). Isso ocorrerá, cada vez mais, dentro de redes de stakeholders que serão as novas comunidades de negócios do mundo que já se anuncia, demarcadas do meio por membranas (permeáveis ao fluxo) e não por paredes opacas. A aplicação e o esforço devem ser remunerados, mas não o conhecimento. Ninguém, a rigor, é dono do conhecimento, que é sempre resultante de um processo coletivo. Alguma coisa “rodou” naquela nuvem que chamamos de mente (e que não está restrita ao nosso cérebro, é uma cloud computing social). Sua avó lhe cobrou pela receita daquela magnífica geléia? Não? Então por que você não pode fazer o mesmo? Ah! Ela então deu a receita para o próprio neto, mas não a daria para o neto de outra avó? Por quê? Porque a estrutura familiar, no caso, privatizou o capital social. Não é preciso grande esforço para perceber que, do ponto de vista social, isso gerou improdutividade, diminuiu a intensidade do fluxo econômico. E que, como conseqüência, muitos perderam enquanto todos poderiam ganhar. Sim, isso é pura sócio-economia. Economia do capital social. Nossa produtividade aumentaria muito se o capital social – que é uma espécie de recurso sistêmico que enseja a geração dos outros capitais (para continuar com a metáfora, além dos capitais propriamente ditos, como o físico e o financeiro, aquel’outros que são considerados externalidades pelos economistas: como o capital natural, o capital humano e o social) – não

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fosse privatizado. Isso quer dizer que aumentaria a geração de valor... para todos! Não parece ser verdade, como pensam alguns, que a peer production seja coisa para um futuro longínquo. Temos hoje milhares de produtos (bens intangíveis e inclusive tangíveis) sendo produzidos assim. Nem é necessário insistir nos exemplos sempre citados do Linux ou do Apache (et pour cause, novamente). Basta ver como surgiu quase toda a produção científica: retrocederíamos à idade da pedra sem a peer production. Por certo, muitos mundos ainda não são assim. Mas as tendências apontam nessa direção. Na medida em que a privatização do conhecimento vai se tornando, cada vez mais, impraticável, vão perdendo sentido os esquemas que visam o seu aprisionamento. E assim como está ficando cada vez mais difícil aprisionar o conhecimento, ainda há outra evidência que corrobora essa hipótese: o conhecimento aprisionado estraga. É um bem que cresce quando compartilhado e decresce e perde valor quando não se modifica continuamente pela polinização.

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A pessoa é o empreendedor, não a empresa. A empresa é um meio para que você possa empreender, não uma feitoria (você é um escravo?), um feudo (você é um servo?), uma penitenciária onde você tenha que pagar uma pena oito horas por dia (você foi condenado por algum crime?), quase todos os dias da semana (sempre aborrecido e ansioso, como os escolares, não vendo a hora em que vai tocar a sineta); muito menos um ídolo a que você deva adorar. A empresa-hierárquica substituiu a liberdade da invenção pela prisão do trabalho (rotineiro). Conquanto tenha sido tão cantado e glorificado, trabalho é um conceito regressivo, que evoca um ethos desumano ancestral. Sim, da perspectiva de uma sociedade em rede, trabalho será um conceito cada vez mais problemático. Não é a toa que tenha surgido, na antiga Mesopotâmia, com a conotação de sofrimento. Aliás, na mitogonia suméria, segundo a “Epopéia da Criação” (53) – que contém alguns dos relatos mais antigos que conhecemos de uma cultura sacerdotal, hierárquica e autocrática – o homem teria sido criado pelos deuses para “trabalhar para sempre e liberar os deuses...” ou suportar o jugo, sofrer a fadiga. Já foi

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criado como trabalhador – um ser inferior, escravo dos deuses – para propiciar a liberdade dos deuses, que passaram então a exigir dos homens adoração. Adoração significava, originalmente, segundo os relatos bíblicos, trabalhar para os seres superiores: trabalhar para uma deidade e essa deidade era simultaneamente “senhor”, “soberano”, “rei”, “governante” e “dono” – enfim, superior. O homem antigo dos sistemas hierárquico-autocráticos não propriamente adorava seus deuses, mas temia-os e trabalhava para eles. E, é claro, para seus intermediários humanos: os sacerdotes. Assim como temor não é amor, trabalho não é algo que possa humanizar os seres humanos enquanto sujeitos interagentes em relações horizontais com outros seres humanos. Quando se trabalha para um superior que aprisionou seu corpo e escravizou ou alugou sua força e sua inteligência, é-se subordinado, sub-ordenado segundo um padrão de ordem vertical, alocado em um degrau inferior da escada do poder. Também não é por acaso que no organograma das empresas figuram no topo aqueles que têm muitas conexões e abaixo os que têm poucas. O CEO tem acesso a todas as informações, a todos os conhecimentos, a todos os funcionários e a todos os demais stakeholders, enquanto que o auxiliar do almoxarifado e a moça do café vivem na pobreza de caminhos (ver Fig. 2). É assim que a estrutura hierárquica organiza internamente a pobreza (e toda pobreza é pobreza de conexões) para administrá-la e mantê-la. Diz-se então que tais pessoas não são empreendedoras. Ora, é claro que não são: a empresa cassou seu empreendedorismo ao aprisioná-las nesse tipo de estrutura centralizada. A empresa-hierárquica só se constitui porque aquele mesmo programa ancestral, resumido no mito sumério da criação do ser humano como um trabalhador amestrado (o “lulu-amelu”), continua rodando na rede social. Não importa para nada se os nomes das coisas, dos processos e das “peças da máquina”, mudaram: você continua adorando ídolos, quer dizer, trabalhando para um deus. A reação desses súditos – os trabalhadores – na modernidade, nos dois séculos passados, não poderia ter sido mais conforme ao modelo. Em vez de se transformarem em empreendedores e montarem suas próprias empresas em outro padrão, eles se organizaram em movimentos, corporações e partidos de trabalhadores repetindo e legitimando o velho padrão, apenas querendo arrancar dos patrões mais “benefícios” e condições melhores para continuarem sendo... trabalhadores! E adotaram, em seus movimentos – de início insurgentes e, depois, acomodatórios: simples bandos para negociar interesses (pois o sindicalismo é uma forma de banditismo social e, às vezes, também criminal) – a mesma estrutura

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hierárquica que os aprisionava. Na vertente insurgente desses movimentos, ditos socialistas, alguns imaginaram que deveriam se organizar, sempre de modo hierárquico, para o combate aos patrões e ao seu Estado a fim de dar nascimento a uma nova sociedade sem exploração. Para legitimar tudo isso forjaram estranhas teorias sobre classes sociais e sobre supostos interesses de classe, reservando para si – a “classe operária” – o condão de ser portadora do único conjunto de interesses particulares que, quando se realizassem, tornando-se dominantes, se universalizariam (atendendo aos interesses históricos de todas as outras classes, a despeito destas últimas não poderem ter, por si mesmas, consciência disso). Para alcançar essa suposta sociedade sem classes, a classe trabalhadora deveria erigir seu próprio Estado, fortalecendo-o a ponto de... extinguí-lo (por incrível que pareça eles pensavam assim mesmo: seria cômico se não tivesse sido trágico). É claro que tudo isso virou lixo, inclusive porque, com a bancarrota dos modelos econômicos e políticos estadocêntricos – nas quais os trabalhadores continuaram sendo súditos (do seu novo Estado-patrão) –, também faliram as utopias igualitaristas que os inspiraram. O problema não foi e nem será resolvido enquanto se mantiver a empresa-mainframe que repete o padrão hierárquico das demais instituições adequadas a um mundo de baixa conectividade social (e que, aliás, mantinham o mundo único como um mundo de baixa conectividade social). Empresas serão redes de empreendedores. Não hierarquias, onde um empreendedor arrebanha e subjuga “colaboradores” para transferir para eles o serviço pesado, repetitivo, pouco gratificante, mas considerado necessário ao sucesso do seu empreendimento. Ou para se livrar do “serviço sujo”. Ora, o nome desse “serviço sujo” é... trabalho! Bob Black (1985), no seu provocante manifesto intitulado A abolição do trabalho, escreveu que “existe tanta liberdade em uma moderada ditadura desestalinizada como em um ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou em um convento”. E o mesmo ocorre, segundo Black, com as escolas, esses “campos de concentração” onde as crianças são levadas “para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador”. Para ele, porém “precisamos das crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a contribuir para a revolução lúdica [que abolirá o trabalho] porque sabem brincar melhor que os adultos” (54). Nos Highly Connected Worlds assistiremos ao fim do trabalho (do trabalho indiferenciado ou não-qualificado em grande escala que surgiu com a

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industrialização). Talvez boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento, jogos, creative games, por que não? O fim do trabalho, entretanto, não significará o fim das empresas e nem dos empreendedores; pelo contrário. Isso implica a reprogramação das empresas, que se tornarão meios onde empreendedores vão se coligar para realizar o que desejam ou sonham, sem se subordinarem uns aos sonhos de outros para executar as tarefas que chamamos de trabalho – posto que isso não é realmente necessário em mundos em que há, cada vez mais, abundância de meios para realizar um empreendimento. No entanto, reprogramar a empresa é, de certo modo, reprogramar a sociedade.

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Escolas (e ensino), igrejas (e religiões), partidos (e corporações), Estados-nações (e seus aparatos), empresas-hierárquicas: basta mexer no código de uma dessas instituições para alterar a programação da sociedade. Há várias entradas. Você pode escolher por onde quer começar a hackear o mundo único, reprogramando sociosferas. Entretanto, para reprogramar sociosferas glocais – ao sabor de fluzz – não basta hackear, é necessário também fazer netweaving. Netweaving – articulação e animação de redes sociais – será cada vez mais necessário para a experimentação inovadora em todas aquelas áreas que questionam o velho mundo único, ensejando a emergência de novos mundos altamente conectados: comunidades de aprendizagem em rede, ecclesias para compartilhar formas pós-religiosas de espiritualidade, redes de interação política pública em vizinhanças e setores de atividade, comunidades glocais em cidades inovadoras, empresas-redes – tudo isso é semente! Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações e não-empresas-hierárquicas são sementes: o que daí nascerá (depois) não se pode saber (antes). Mas basta que você se dedique a uma dessas atividades para inocular um virus nos programas verticalizadores. Não, não

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é necessário uma grande revolução transformadora da sociedade como um todo (mesmo porque não existe tal ‘sociedade como um todo’ e, portanto, também não existe essa grande revolução redentora ou salvadora: como dizia Paulo Brabo (2007), “o mundo não pode ser salvo de uma só vez... [só pode ser salvo] redimindo-se um momento de cada vez”) (55). É claro que tudo isso se resume em uma palavra: rede. Redes devem ser encaradas, nesse sentido, como movimentos de desconstituição de hierarquias. “Fazer” redes é desconstituir hierarquias. Ao fazer isso, você se tornará um netweaver. Não importa onde atue, desde que você desista das instituições hierárquicas: seja desistindo das escolas, para atuar como catalisador de processos de aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores, estruturadas em rede; seja desistindo das igrejas, mas (só se você quiser) não de compartilhar sua mística ou sua espiritualidade com outras pessoas; seja desistindo dos partidos, mas não desistindo de fazer política (pública), exercitando a democracia cooperativa na base da sociedade e no cotidiano das pessoas que convivem com você, na sua localidade ou setor de atividade; seja desistindo das noções regressivas de patriotismo e nacionalismo e virando cidadão transnacional de sua glocalidade; seja desistindo das empresas-hierárquicas, mas não de empreender e de se associar a outros empreendedores para estruturar novas empresas em rede. No mundo único, entretanto, a desistência passa pela desobediência. Você não conseguirá realizar nada disso se não tiver a firme disposição de desobedecer aos mantenedores do velho mundo, que continuam mais ativos do que nunca, talvez pressentindo fluzz – esse vento nuclear que vem varrendo tudo por aí.

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A Força era um conceito complexo e difícil. A Força estava enraizada no equilíbrio de todas as coisas,

E todo movimento dentro de seu fluxo arriscava um desequilíbrio nessa harmonia.

Terry Brooks em Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999)

A força (Te) não é (um querer) induzir alguém (ou alguma coisa) a seguir um caminho prefigurado

e sim (um deixar) fluir com o curso (Tao). O autor em Desobedeça (2010)

Mas fluzz não é a força. Fluzz é o curso. O autor, aqui (2010)

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Nada disso está sendo percebido pelos mantenedores do velho mundo que são, invariavelmente, “net-avoids”, ou seja, aqueles que desconfiam das redes quando não deveriam fazê-lo, posto que justamente em uma época de transição para uma sociedade em rede. E estes são, quase sempre, hierarcas. Não conseguem ver o que está ocorrendo porque, do lugar onde operam, objetivamente, contra os novos mundos que estão emergindo, a mudança não pode mesmo aparecer. Alguns exemplos dessas categorias – que freqüentemente se misturam e incidem em alguma combinação particular sobre um mesmo indivíduo “vitorioso” (segundo os critérios do milênio pretérito) – merecem ser destacados: os ensinadores ou burocratas sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.

Conhecimento atestado por títulos, fama, riqueza e poder são indicadores de sucesso adequados às sociedades hierárquicas. São coisas que só alguns podem ter, não todos. São coisas que alguns podem ter em detrimento dos outros. Assim o sábio se destaca dos ignorantes (ou o titulado do não titulado, até na cadeia), o famoso não se mistura com o zé-ninguém, o rico vive entre os ricos para ficar mais rico e não se relaciona com o pobre (que – como sabemos – só continua pobre porque seus amigos são pobres) e o poderoso só consegue exercer seu poder porque os que (acham que) não têm poder lhe prestam obediência. Os critérios de sucesso competitivo são, na verdade, mais do que indicadores: são ordenações da sociedade hierárquica. O fato é que, os que tiveram sucesso ou venceram no mundo do comando-e-controle, em grande parte, venceram aplicando esquemas de comando-e-controle. Venceram – e foram reconhecidos como vencedores – porque aplicaram esquemas de comando-e-controle; ou seja, porque replicaram

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um determinado padrão de ordem (e, para tanto, é como se tivessem recebido uma ordenação). Dentre os que fazem sucesso na sociedade hierárquica e de massa encontram-se, é claro, pessoas esforçadas, criativas ou inovadoras, talentos extraordinários e gênios incontestes. Mas estão lá também – em número tão grande para derrubar o mito de que o sucesso é um prêmio pelo talento – os agentes reprodutores desse tipo de sociedade, como, por exemplo, os colecionadores de diplomas, os vendedores de ilusões, os marqueteiros de si mesmos, os aprisionadores de corpos, os ensinadores ou burocratas sacerdotais do conhecimento, os codificadores de doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos. Não se trata de inculpar esses tipos por todo mal que assola a humanidade. Eles são apenas agentes inconscientes da reprodução do sistema. Eles não existem propriamente como indivíduos. Não adianta para nada tentar nomeá-los: eles são legião (Mc 5: 9), entidades inumeráveis configuradas nas redes sociais, quando campos perturbados pela presença da hierarquia aglomeram e enxameiam no contra-fluzz.

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Ensinadores são os que compõem a burocracia privatizadora do conhecimento: aquela casta sacerdotal que constitui as escolas e academias. Os ensinadores surgiram naquela noite dos tempos que o matemático Ralph Abraham (1992) chamou de “precedente sumeriano” (1). É surpreendente constatar, como fizeram Joseph Campbell, Samuel Noah Kramer e outros renomados sumeriologistas, que os elementos centrais da nossa cultura, dita civilizada, compareciam em uma espécie de modelo ou protótipo ensaiado em complexos do tipo cidade-templo-Estado como Eridu, Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash, Ur, Larsa e Babilônia. Esse modelo já estava em pleno funcionamento, segundo interpretações de relatos que não puderam ser contestadas, a partir do quarto milênio. Em particular a obra de Kramer (1956): “A história começa na Suméria”, revela as raízes sumerianas do atual padrão civilizatório (2). Joseph Campbell (1959), em “As Máscaras de Deus”, redigiu uma espécie de termo de referência para esta investigação (3):

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“Um importante desenvolvimento, repleto de significado e promessas para a história da humanidade nas civilizações por vir, ocorreu... [por volta] (de 4.000 a. C.), quando algumas aldeias camponesas começaram a assumir o tamanho e a função de cidades mercantis e houve uma expansão da área cultural... pelas planícies lodosas da Mesopotâmia ribeirinha. Esse é o período em que a misteriosa raça dos sumérios apareceu pela primeira vez em cena, para estabelecer-se nos terrenos das planícies tórridas do delta do Tigre e do Eufrates, que se tornariam em breve as cidades reais de Ur, Kish, Lagash, Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E então, de súbito... surge naquela pequena região lodosa suméria – como se as flores de suas minúsculas cidades subitamente vicejassem – toda a síndrome cultural que a partir de então constituiu a unidade germinal de todas as civilizações avançadas do mundo. E não podemos atribuir esse evento a qualquer conquista da mentalidade de simples camponeses. Tampouco foi a conseqüência mecânica de um mero acúmulo de artefatos materiais, economicamente determinados. Foi a criação factual e claramente consciente (isto pode ser afirmado com total certeza) da mente e ciência de uma nova ordem de humanidade que jamais havia surgido na história da espécie humana: o profissional de tempo integral, iniciado e estritamente arregimentado, sacerdote de templo”.

Respeitados estudiosos confessam até hoje sua perplexidade diante da constelação desse ‘precedente sumeriano’ (para insistir na feliz expressão do matemático Ralph Abraham). É o caso, por exemplo, da antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick, que leciona em Richmond (Londres). No seu “Mesopotâmia: a invenção da cidade” (2001), ela declara que “muito se tem escrito sobre o “súbito” aparecimento dos sumérios na Mesopotâmia e suas possíveis origens... [mas] a questão da origem dos sumérios continua aguardando solução, e tudo o que podemos dizer é que, no início do Primeiro Dinástico, sua língua foi escolhida para ser vertida em escrita. Talvez os sumérios se tivessem tornado politicamente dominantes e exercido o controle dos centros de formação de escribas nas primeiras cidades” (5). Essa casta ou estamento – composta pela burocracia sacerdotal que administrava as nascentes cidades-templo-Estado sumerianas – configurou o primeiro padrão de transmissão de ensinamento. Ensinavam como um imperativo para reproduzir seu próprio ensinamento; quer dizer, ensinavam para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento.

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Por quê? Ora, porque o livre aprendizado na rede social de então não seria capaz de cumprir tal função, que nada tinha a ver com sua sobrevivência ou com sua convivência. Não se tem notícia de escola, ensino ou professores em sociedades de parceria. Quando a rede social foi subitamente centralizada pela configuração particular que se constelou com o surgimento do complexo cidade-templo-Estado, os programas verticalizadores que começaram a rodar nessa rede eram replicados em outras regiões do espaço e do tempo pela transmissão-recepção de seus códigos – e já havia programas elaborados, como os que os sumérios denominavam ‘me’ (6) – aos membros do mesmo grupo social. Ou seja: já havia um ensinamento (secreto, por certo, acessível somente aos membros do estamento). Já havia ensinantes (os primeiros professores, membros da casta sacerdotal) e ensinados (os futuros administradores em formação). Essa hipótese é fortalecida pela investigação das origens da Kabbalah. O símbolo central desse sistema de sabedoria – a chamada “Árvore da Vida” – foi, sem dúvida, herdado do simbolismo templário do complexo Templo-Estado sumeriano, o qual deve ter passado ao judaísmo posterior por intermédio da Golah – a organização dos cativos (seqüestrados nas elites de Jerusalém) na Babilônia sob o reinado de Nabucodonozor e seu sucessor. Não se sabe a origem da 'árvore da vida', mas ela aparece nas imagens da tamareira gravadas nas mais antigas tabuinhas sumerianas encontradas pelos escavadores. E aparece também – com o mesmo esquema, que depois foi transmitido pela tradição (cabalística) – na forma de uma nave, ladeada por dois seres alados (com cabeças de águia). Uma nave – talvez como as naves dos templos, até hoje – que não sai do lugar, mas por meio da qual se pode “viajar” para os céus caso se tenha acesso ao “combustível” adequado: ao “fruto da vida” e à “água da vida”... O mesmo schema básico da árvore da vida, representada em vários mundos que se interceptam (os da emanação, da criação, da formação e do produzir) compõe o que foi chamado de “Escada de Jacó”, uma escada pela qual os mensageiros – ou as mensagens – podem subir e descer estabelecendo os fluxos entre o céu e a terra. Isto é anisotropia: o céu, é claro, fica em cima; a transmissão, é claro, é top down. E o esquema é mais centralizado que distribuído (7). Essa ideologia de raiz babilônica (suméria) que, quase dois milênios depois, foi se chamar de Kabbalah (cabala), na Idade Média européia, fez uma operação tremenda de “engenharia memética” no símbolo original,

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ressignificando a árvore da vida como uma “árvore do conhecimento”, quer dizer, tomando a vida pelo conhecimento da vida e do que com ela foi feito... Isso significa obstruir o acesso à vida, facultando-o somente aos que possuem o conhecimento (aquilo que a cabala chamou de “ensinamento” e que é transmitido então em uma cadeia, tida por ininterrupta, que começa com o arquimensageiro Raziel, passa para Enoc – o escriba, não por acaso – e daí para os patriarcas e para os sacerdotes). Kabbalah vai designar, então, essa tradição sacerdotal: condução (transmissão-recepção) do ensinamento original por parte daqueles que são capazes de reproduzir esse mesmo padrão de ordem sagrada, isto é, separada do vulgo, do profano, daquele que não foi ordenado. Isso tudo não somente fez, mas faz ainda, parte de uma experiência fundante de verticalização do mundo, que prossegue enquanto a tradição permanece ou se refunda toda vez que o meme é replicado. Do ponto de vista da memegonia, aqui pode estar a origem da relação mestre-discípulo ou professor-aluno. Não foi a toa que uma mente arguta como a de Harold Bloom (1975) – ecoando, aliás, o que dizia o erudito Gershom Scholem – percebeu que Kabbalah era uma ideologia de professores. Na origem de tudo está... uma Instrução: “o Ein-Sof instrui a Si mesmo através da concentração... Deus ensina a Si mesmo o Seu próprio Nome, e, dessa forma, começa a criação” (8). Nessa memegonia, Deus é o primeiro professor e o ato de ensinar está na raiz do ato de criar o mundo. O conhecimento (via ensinamento) – e não a existência e a vida – é o objetivo: a origem e o alvo. Deus cria o mundo para se conhecer. Mas para se conhecer ele ensina, não aprende. Logo, seus “delegados”, ou intermediários (os sacerdotes), também ensinam. Todo corpus sacerdotal é docente. É por isso que há uma enorme dificuldade de conciliar visões próprias de sistemas tradicionais de sabedoria com a visão-fluzz das redes de aprendizagem. A tradição - dita espiritual - com raras exceções (como o Tao, mas não o taoismo; como o Zen - esse formidável sistema de desconstituição de certezas -, mas não o budismo) em geral replicou atitudes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas. Maturana levantou a hipótese da "brecha" (na civilização patriarcal e guerreira) para mostrar como pôde ter surgido a democracia (9). Mas, na verdade, não foi só a democracia que penetrou pela "brecha": vertentes utópicas, proféticas, autônomas e democráticas floresceram ao longo da história e continuam florescendo - intermitentemente - toda vez que comunidades conseguem

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estabelecer uma interface para conversar com a rede-mãe (10). Essas duas vertentes permaneceram e ainda permanecem em permanente tensão. O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que foram instalados para verticalizar a rede-mãe. De certo modo, os deuses do panteão patriarcal e guerreiro foram os primeiros programas meméticos centralizadores (11). O tardio IHVH bíblico – ensinador – encarna uma rotina desses programas (e é representado por uma das sefirot – um evento – na 'árvore da vida' ressignificada, no mundo da emanação). Como os deuses do panteão patriarcal e guerreiro da Mesopotâmia do período Uruk (c. 4000-3200) – período sucedido, logo em seguida, não por acaso, pela escrita (no Primeiro Dinástico I: c. 3000-2750) – foram criados à imagem e semelhança dos homens que começaram a se organizar segundo padrões hierárquicos, tudo isso é muito relevante para entendermos que a transmissão do ensinamento já foi fundada, de certo modo, em contraposição ao livre aprendizado humano na rede social muito menos centralizada (ou até, quem sabe, distribuída) dos períodos pré-históricos anteriores (desde, pelo menos, o Neolítico). Para essas sociedades de dominação, nada de aprender (inventar). Era preciso ensinar (para replicar). E por isso ensinadores são mantenedores do velho mundo.

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Há também os que – por fora dos sistemas formais de ensino – ainda se intitulam (ou são por alguém intitulados de) mestres ou gurus. Alguns são ordenados para tanto, quer dizer, têm reconhecida, sempre por uma organização hierárquica, sua capacidade de reproduzir uma determinada ordem top down. E querem então imprimi-lo, emprenhá-lo, ou seja, enxertar suas idéias-implante em você, para que você se torne também um transmissor desse “vírus”. É claro que existem outras interpretações do papel do mestre. Osho, por exemplo, tentando explicar a correta intolerância de Krishnamurti com os que se anunciam ou eram anunciados como mestres ou gurus, coloca uma outra perspectiva ao dizer que “um mestre não o ensina, ele simplesmente torna o seu ser disponível para você e espera que você também faça o mesmo”. E aí vem a justificativa: “A menos que algum raio do além entre em seu ser, a menos que você prove algo do transcendental, até mesmo o desejo de ser liberado não aparecerá em você. Um mestre não lhe dá a liberação, ele cria um desejo apaixonado pela liberação”. A justificativa é que “será muito difícil, quase impossível, fazer isso por conta própria” (12).

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Mas quem disse que isso teria que ser feito “por contra própria”? Ao tentar justificar sua crítica a Krishnamurti, Osho enveredou por um viés psicológico individual. Ele não teria se curado do trauma de ter sido “educado por pessoas muito autoritárias... professores, talvez, mas não mestres”. Então Osho afirma que tudo isso “foi demais [para Krishnamurti] e ele não pode esquecê-los e não pôde perdoá-los” (13). No fundo, tudo isso soa mais como uma tentativa de salvar uma função pretérita, resgatar um papel arcaico que, em alguma época, funcionou de fato assim como ele, Osho, diz, porém em mundos de baixa conectividade social. Já foi dito aqui que na medida em que vida humana e convivência social se aproximam (nos mundos altamente conectados) somos obrigados a mudar nossas interpretações. E que isso entra em choque com as tradições espirituais que diziam que quando o discípulo está preparado o mestre aparece. De certo modo é justo o contrário: o discípulo desaparece quando desaparece a escola (quer dizer o ensinamento) e com ele vai-se também o mestre. Isso – para alguns – é um escândalo. Nos Highly Connected Worlds quem lhe reconhece é o simbionte social, se você se sintonizar suficientemente com a rede-mãe. Não é um representante da tradição, não é um membro de uma casta sacerdotal ou de alguma hierarquia docente, nem mesmo um indivíduo que despertou antes de você – a não ser que essa pessoa (uma pessoa) seja a porta para que você possa entrar em outros mundos. Mas neste caso essa pessoa – eis o ponto! – pode ser qualquer pessoa que esteja conectada a esses mundos onde você quer entrar. Se alguém pudesse recuar antes (e o que seria antes?) daquela noite dos tempos em que a rede-mãe começou a rodar programas verticalizadores e pudesse dizer como uma comunidade conseguia entrar em sintonia com o simbionte natural (que talvez se confundisse – em sociedades de parceria, pré-patriarcais, quem sabe em algum momento do Neolítico – com a rede-mãe: síntese simbolizada na figura da grande mãe ou da deusa), talvez pudesse nos sugerir algum processo para reinventarmos tal sintonia com o simbionte social (o superorganismo humano). Mas, fosse qual fosse, sua resposta seria enxame (múltiplos caminhos em efervescência) e não indivíduo no caminho em busca da unidade perdida ou da sua origem celeste. Não vale fazer recuar a noite dos tempos em que surgiram os sistemas míticos-sacerdotais-hierárquicos-autocráticos para colocá-los na origem de tudo com o fito de transformar a origem terrestre do humano em uma origem celeste. Essa operação ideológica, urdida por esses mesmos

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sistemas, legitima o mestre como um veículo, um emissário, um representante da suposta origem celeste (ainda quando existam mestres que reneguem tudo isso). No enxame você já é um mestre, todos são mestres uns dos outros enquanto não apenas buscam, mas se polinizam mutuamente e isso quer dizer que não existe um, não existe aquele mestre. Mestres – como ensinadores – são mantenedores do velho mundo. Mesmo quando recusam tal papel, eles abrem caminho para os codificadores de doutrinas, aqueles cavadores de sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão.

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Codificadores de doutrinas são todos aqueles que querem pavimentar, com as suas crenças religiosas (e sempre o são, mesmo quando se declaram laicas), uma estrada para o futuro. Eles produzem narrativas ideológicas totalizantes para que você veja o mundo a partir da sua ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos existentes, mas apenas um mundo (o mundo arquitetado e administrado por eles: uma prisão para a sua imaginação). Quando são (explicitamente) religiosos, os codificadores de doutrinas fornecem a justificativa para a ereção de igrejas e seitas. Quando são políticos, urdem a base conceitual para a formação de correntes e grupos de opinião onde a (livre) opinião propriamente dita não conta para quase nada: o que conta é a ortodoxia de uma opinião oficial ou canônica, a qual tentam autenticar apelando para a revelação ou para a ciência. Em todos os casos são engenheiros meméticos, manipuladores de idéias que inventam passado para legitimar certos caminhos (e deslegitimar outros) para o futuro. Fazem isso para controlar o seu futuro, para levá-lo (a sua alma ou o seu corpo) para algum lugar supostamente melhor, para um paraíso no céu ou na terra, quando, eles mesmos, não podem conhecer tal caminho (simplesmente porque não existe um caminho).

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Codificadores de doutrinas abrem espaço para a ereção de igrejas, muitas vezes em contraposição à experiência fundante ou à suposta revelação que tomam como referência. É assim que os fransciscanos, hoje “puxando dinheiro com rodo” (como dizia Frei Mateus Rocha, nos idos de 1970) (14), executam exatamente o contrário do que pregava il poverello d’Assisi (1182-1226). Tanto faz se tais igrejas são religiosas ou laicas: Paulo de Tarso (com o cristianismo) e Inácio de Antioquia (com a igreja católica) cumprem funções análogas às de Lenin (com o materialismo dialético e o materialismo histórico) e Stalin (com o PCUS) ou Trotski (com a Quarta Internacional). Os codificadores de doutrinas também são ensinadores e, de certo modo, gurus (no sentido em que a palavra é empregada atualmente). São os abastecedores dos ensinadores que, em geral, transmitem ensinamentos que já foram codificados por eles. São, portanto, os verdadeiros fundadores de escolas, conquanto frequentemente dizendo-se a serviço de um fundador já desaparecido (ou nunca aparecido).

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Aprisionadores de corpos são aqueles que, não contentes em usar, comprar ou alugar, sua inteligência humana (que não tem preço), querem também mantê-lo cativo, fisicamente, nos seus prédios ou cercados. São feitores: antes usavam o chicote; hoje usam o relógio ou o livro de ponto, o crachá magnético ou o banco de horas. Nas empresas ou organizações hierárquicas, sejam privadas ou públicas, seqüestram seu corpo para manter você por perto, para poder vigiá-lo, para terem certeza de que você está de fato trabalhando para eles (que coisa, heim?). Não precisavam fazer isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho coletivo compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade, compartilhar nada com outros seres humanos e sim controlá-los-e-comandá-los, em certo sentido desumanizá-los, embotando sua inteligência, castrando sua criatividade, alquebrando sua vontade, para poder usá-los como objetos, para terem-nos disponíveis, sempre à mão, tantas horas por dia: querem um rebanho de servos de prontidão para lhes fazer as vontades. Se quisessem que as pessoas trabalhassem com-eles e não para-eles não seria necessário – na imensa maioria dos casos – aprisionar os seus corpos: bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com tarefas e prazos.

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Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum... Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda, seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam agendas estranhas (que você não teve oportunidade de co-construir), não lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos de entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus colaboradores (a todos) as melhores condições para inovar (alugariam, quem sabe, uma casa em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível ou mesmo em um bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em suma, não organizariam e docorariam seus locais – de trabalho – de modo tão horrendo, sem cores, sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma prisão mesmo, ou um convento) e, sobretudo, não reduziriam sua mobilidade: uma dimensão essencial da sua liberdade para criar. O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito empreendedor. Então, para estereliza-lo, colocam você na pirâmide. Sim, aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides.

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Os construtores de pirâmides também surgiram naquela noite dos tempos em que a rede-mãe passou a rodar programas verticalizadores. Talvez os primeiros construtores de pirâmides tenham sido mesmo os... construtores de pirâmides, não apenas as do Egito, mas também os zigurates mesopotâmicos. Mas todas as pirâmides que vêm sendo construídas ao longo do chamado período civilizado evocam o mesmo padrão vertical surgido pela perturbação do campo social introduzida pela hierarquia. Não são, entretanto, apenas arquitetos, engenheiros e mestres de obra que projetam, comandam e controlam o trabalho de erigir construções físicas. Construtores de pirâmides são os que erigem organizações hierárquicas de todo tipo para mandar nos outros e obrigá-los a fazer (ou deixar de fazer) coisas contra a sua vontade ou sem o seu assentimento ou consentimento ativo. São os chefes de instituições hierárquicas. São organizadores de pessoas como se pessoas fossem coisas. Toda organização hierárquica é uma arquitetura com pessoas, uma construção forçada, coisificante, onde as pessoas são tratadas como tijolos ou outro material qualquer: – Então colocamos uma aqui, outra em cima dessa, outra abaixo, bem ali; ôpa!

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Cuidado, não está encaixando bem; então quebra um pedaço aqui, desbasta ali, martela com força que entra... Replicadores e trancadores são construtores de pirâmides. Replicadores são todos os que se dedicam a repetir uma ordem pretérita. São, portanto, ensinadores (“estações repetidoras” do que foi forjado, em geral, pelos codificadores de doutrinas). Para exercer tal papel, entretanto, eles constroem, invariavelmente, estruturas centralizadas ou verticalizadas – sejam escolas, sociedades, maçonarias e assemelhadas, partidos ou corporações ou qualquer outra burocracia que viva da repetição e da inculcação de um conjunto de idéias ou visões de mundo urdidas para prorrogar passado – e, nesse sentido, são construtores de pirâmides. Trancadores são os que privatizam bens que poderiam ser comuns (ou que não poderiam ser trancados, como o conhecimento). Trancadores de conhecimento são, por exemplo, os que defendem o domínio privado sobre o conhecimento, como as leis de patentes e o famigerado copyright. Um dos tipos contemporâneos de trancadores – relevante pelo efeito devastador que sua atividade provoca na antesala de uma época-fluzz – são os trancadores de códigos, que estão entre os mais bem-sucedidos inventores de softwares proprietários da atualidade Ao construírem caixas-pretas para esconder seus algorítimos (como fazem os donos do Google ou do Twitter) ou para montar seus alçapões de dados (como faz o dono do Facebook), eles acabam tendo que construir pirâmides para proteger suas operações centralizadoras da rede social. Não é por acaso que as plataformas que desenham a partir de uma instância proprietária tentem disciplinar a interação. Essa é a razão pela qual as plataformas ditas interativas de que dispomos não são suficientemente interativas (i-based), posto que baseadas na participação (envolvendo sempre algum tipo de escolha de preferências geradora de escassez) e no arquivamento de passado (para aumentar o repositório ao qual, a rigor, só os proprietários dessas plataformas têm pleno acesso na medida em que só eles podem programá-las sem restrições). E essa é também a razão pela qual tais plataformas deseducam (se se pode falar assim) seus usuários (a palavra – ‘usuário’ – já é horrível do ponto de vista da interação) para as redes distribuídas. Então uma pessoa entra em alguma dessas plataformas e tende a achar que a sua página é o seu espaço proprietário a partir do qual ela vai interagir. Em vez de entrar em um fluxo, ela se aboleta no seu bunker (às vezes chamado de ‘Minha Página’) e é induzida a achar que ali pode colocar todos os seus vídeos, suas fotos, seus eventos e seus posts, independentemente do que está

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rolando na rede que usa tal plataforma como ferramenta de netweaving e, não raro, sente-se até ofendida quando alguém lhe lembra que o concurso de Miss Universo não tem muito a ver com astrofísica. A solução para tal problema não é “fugir para trás”, voltando aos blogs, como sonham alguns. Ainda que a blogosfera seja de fato, no seu conjunto, uma rede distribuída, os blogs, em si, não se estruturam de modo distribuído. Em geral são organizações fechadas, que não admitem interação a não ser com aprovação prévia dos seus donos (por meio da chamada “mediação de comentários”). Mesmo quando são abertos a qualquer comentário, os blogs são piramidezinhas, espécies de reinados do eu-sozinho. Não são bons instrumentos de netweaving de redes sociais distribuídas na medida em que não são, eles próprios, redes distribuídas. Não existem tecnologias de netweaving capazes de colocar um conjunto de blogs em um meio eficaz de interação. Ademais, a mentalidade dos bloggers não acompanhou a inovação que, objetivamente, sua atividade representa. E muitos daqueles que fazem o proselitismo das redes distribuídas nos seus blogs, organizam, lá no seu quadrado, suas igrejinhas hiper-centralizadas, algumas vezes quase-monárquicas (15). Ou seja, são também construtores de pirâmides. O que está por trás disso tudo é a idéia de q ue o indivíduo é o átomo social, quando, na verdade, para ser social, é preciso ser molécula. Pessoas são produtos de interação e não unidades anteriores à interação.

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Fabricantes de guerras são, stricto sensu, os chefes militares e, lato sensu, os que pervertem a política como arte da guerra e os que se entregam à competição adversarial tendo como objetivo destruir seus concorrentes. São, todos, predadores. O predador (humano) é uma máquina de converter o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar que não existem inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é circunstancial e pode ser desconstituída pela aceitação do outro no próprio espaço de vida, pelo acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação. Assim, o (único) inimigo que existe mesmo é o fazedor de inimigos. Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente. O predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte (que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda porque quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual antropofágico em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo, para usar a expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à guerra do bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é que “o recurso da guerra é em si o mal” (16).

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Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate, derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas, hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito, como uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra. Estrategistas de qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços – chamem-se Winston Churchill ou Michel Porter – são fabricantes de guerras. Boa parte dos incensados consultores de empresas da atualidade são fabricantes de guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra para as estratégias empresariais que transformam o concorrente em inimigo. É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro como inimigo.

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Condutores de rebanhos são, em geral, os líderes que alcançaram popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em comícios, reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase sempre são pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício próprio ou de um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior tempo que for possível, transformando os outros em seus satélites. E odeiam os princípios de rotatividade ou alternância democrática. Considere-se que, do ponto de vista social (ou coletivo, da rede), o modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia. O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a multi-liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana.

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Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas – com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa e sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão). Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não cumprem, no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem). Mas reserva-se a categoria de condutores de rebanhos para os que pretendem liderar massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam. Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os Tubarões Fossem Homens” (17):

“Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos... Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência... Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói... Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim

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por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens”.

Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste capítulo. Brecht, provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto da luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo, golfinhos? Como já foi dito, frequentemente as características das funções agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por sua vez, constróem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito em nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma identidade imaginária que foi artificialmente construida, não raro exigindo que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal inimigo, ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia que foi erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz. Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas, invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir.

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Os herméticos irão perdendo terreno, ou se linkarão a outros herméticos e então tudo bem.

Os velhos irão perdendo o terreno. Ou se linkarão com outros velhos, só por prazer.

Tudo isso está fluindo e para que mude o paradigma falta pouco.

É uma revolução silenciosa e divertida. E é sub-corporativa, deliciosamente caótica, enredada,

sináptica, não linear, não metódica. Marcelo Estraviz em A linkania e o religare (2001)

Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo deve evitar,

mas santidade também é algo que os seres humanos devem evitar. George Orwell em Reflexões sobre Gandhi (1948)

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A resiliência das velhas funções, agenciadoras de um tipo de mundo (erigido para exterminar outros mundos) que teima em não desaparecer, não está conseguindo impedir o surgimento de novos papéis sociais que antecipam uma nova época. Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia novos atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não são conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas segundo o que até então era considerado indicador de sucesso: pelo seu poder, pela sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por títulos. Quem são? Ora são os múltiplos anônimos conectados, habitantes de uma diversidade incrível de Highly Connected Worlds, que não foram produzidos por broadcasting. São como aquele personagem do romance “Distraction” de Bruce Sterling (1998) que, para se identificar, afirmou: “Não temos raízes. Somos pessoas da rede. Temos antenas”. Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede são também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns. Três exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os netweavers.

Os principais indicadores de sucesso do mundo hierárquico, no dealbar do século 21, ainda são a fama, o conhecimento atestado por títulos, a riqueza e o poder. A fama parece ser o principal indicador. Quem colecionou muitos diplomas, acumulou riqueza ou conseguiu deter em suas mãos algum poder de mandar nos outros, não se sentirá plenamente bem-sucedido se não for conhecido por muita gente ou, pelo menos, por uma parcela ponderável de seus pares.

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Como critério de sucesso, a fama é inquestionável, indiscutível mesmo. Se você virou uma celebridade, é sinal de que progrediu na vida. Deixou de ser qualquer um. Destacou-se e continuará sendo destacado. Merecerá tratamento especial aonde for. Não entrará na fila. Não receberá senhas. O maitre logo lhe arranjará uma mesa, mesmo que o restaurante esteja lotado. Não ficará aguardando atendimento nos bancos das repartições públicas ou nos sofás das antesalas das organizações. E todos o observarão com admiração, alguns deixarão escapar suspiros à sua passagem, muitos o cumprimentarão como se o conhecessem de longa data; outros, mais afoitos, lhe pedirão autógrafos ou implorarão sua licença para tirar uma foto ao seu lado. Mas a fama não é necessariamente um prêmio pelo talento e sim o resultado direto da exposição em algum meio de comunicação centralizado, do tipo broadcasting (de mão única, um-para-muitos). Qualquer pessoa que aparece regularmente na televisão (não importa se apresentando um noticiário ou um programa de auditório ou atuando em uma novela) fica famosa. Qualquer pessoa que atua com certo protagonismo em um filme fica famosa. Qualquer pessoa que escreve durante algum tempo em um grande jornal ou revista fica famosa. Artistas, desportistas e até cientistas só ficam famosos porque são transmitidos por broadcasting (do contrário ninguém os reconheceria na rua). Mesmo os grandes teatros, estádios e auditórios de conferências, nos quais um é visto por muitos, já são uma forma de “broadcasting” (conquanto não permitam uma visualização tão massiva). O mesmo ocorre com quem acumulou riqueza ou detém algum cargo de poder. Mesmo estes fazem certo esforço financeiro para sair na revista Caras ou nas chamadas colunas sociais. Por quê? Ora, porque estão fazendo sucesso, estão seguindo os conselhos da mamãe para se destacar dos demais. Encaram isso como um investimento, pois aprenderam desde pequenos que só é possível fazer negócios – comerciais ou políticos – a partir de relacionamentos (é isso que a ridícula literatura empresarial mais recente chama de networking). Aprenderam que é preciso ser conhecido como alguém que se destacou dos demais para ser incluído nos círculos de relacionamentos daqueles que se destacaram dos demais (porque têm fama, riqueza ou poder). Estão apenas pagando a jóia, o preço para entrar no clube. E a partir daí podem até ostentar alguns distintivos dos bem-sucedidos, como fumar charutos e jogar golfe. Quando questionadas, as pessoas que acreditam nesse tipo de coisa – e são muitas – costumam dizer que a vida é assim mesmo. É uma luta. E que é

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preciso vencer na vida: bah! A expressão, convenhamos, é muito escrota: vencer quem? Por acaso estamos em uma guerra? O problema é que estamos. E aí, como se diz, tudo é sacrificado em nome da vitória, a começar pela verdade.

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Para difundir a idéia de que a vida é uma guerra permanente recorre-se à mentira. Para legitimar essa mentira alguns dizem que não somente a vida humana é assim, mas a vida em geral. E aí dão os exemplos mais furados, supostamente embasados na biologia da evolução, de que sempre vence o mais forte ou o mais esperto e que a natureza seleciona os sobreviventes por seu sucesso. Essa crença, entretanto, nada tem de científica. Como escreveu a notável bióloga Lynn Margulis (1998), não é que “os sobreviventes sejam selecionados por seu sucesso, mas sim que os seres que não conseguem reproduzir-se antes de morrer são excluídos por seleção” (1). Simples assim. Quase (tauto)lógico. Ou seja, a natureza não premia apenas alguns, os mais destacados. E não há nada como uma “luta pela vida” nos cinco reinos de organismos vivos – nem no reino das bactérias, nem no dos protoctistas (como as amebas e conchas), nem no dos fungos (como os cogumelos), nem no das plantas, nem no dos animais – com uma única exceção: os humanos. O problema com essas leituras ideológicas do darwinismo (e com o próprio darwinismo) é que, em algum momento do passado, projetamos sobre a natureza a competição que observamos nos mercados (e na política autocrática a eles associada) na antesala do nascente capitalismo

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concorrencial europeu (sobretudo o inglês). Já se disse sobre isso que selvagem não era bem a selva, mas a concorrência nesse capitalismo inaugural (que, aliás, foi chamado, não por acaso, de “capitalismo selvagem”) e que a “lei da selva” não saiu propriamente da selva para a sociedade sob o influxo desse mercado nada-livre, mas, ao contrário, da segunda para a primeira. Capitalismo, ao contrário do que se pensa, não é livre mercado. Na sua origem e em grande parte do seu desenvolvimento, ele foi – como já dissemos e repetimos aqui – uma espécie de conúbio entre empresas monárquicas e Estado autocrático hobbesiano (de lá para cá, o Estado se democratizou um pouco, porém as empresas – em sua maioria – continuaram monárquicas, mas isso não vem ao caso agora). O fato é que, independentemente das atuais leituras do darwinismo urdidas para legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente, o darwinismo foi capturado por uma corrente de pensamento hobbesiana e transformado, desde o princípio, em “darwinismo social”. Como percebeu com argúcia Matt Ridley (1996), “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta” (2). Segundo Hobbes (que tantos citam e poucos lêem) na falta de um poder que domestique ou apazigue os homens, “não há sociedade; e o que é pior do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (3). E isso ocorre, segundo ele, não por razões culturais, que emanassem da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas: uma espécie de inclinação “genética” – e Hobbes (1651) só não disse isso porquanto Mendel (1864) ainda não havia nascido. Sim, foi exatamente o que ele escreveu, sem meias-palavras, no famoso capítulo XIII do “Leviatã”: “Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (4). Para ele o egoísmo e seus bad feelings acompanhantes (como a desconfiança) não eram culturais, mas tinham sua origem na própria natureza humana (seja lá o que isso for). Muito tempo depois surgiu toda uma linhagem de tarados individualistas mais intelectualizados (como Ayn Rand e Ludwig von Mises) construindo suas ortodoxias com base nesse pressuposto metafísico, segundo o qual o homem é inerentemente competitivo, que o egoísmo é a força motriz da criatividade e que a cooperação e o altruísmo são um atraso de vida. Trata-se, é claro, de uma impostura antropológica que não pode ser justificada pela ciência. Mas muitos – com estruturas mentais um pouco mais simples do que Rand e von Mises – ainda tentam embasá-la com hipóteses

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científicas para aumentar-lhe a verossimilhança. Dizem então que basta olhar o comportamento dos outros seres vivos para perceber que essa é “a ordem natural das coisas”. E citam exemplos. As abelhas têm sua rainha. Os formigueiros têm seus chefes. Os pássaros que voam em bando seguem sempre o seu líder. Ou seja, por toda parte que se olhe, sempre há os que dirigem e os que são dirigidos. E os que dirigem foram os que conseguiram se destacar dos demais, por serem mais bem-dotados (!), mais capazes de desenvolver suas próprias potencialidades como indivíduos e, sobretudo, mais aptos a enfrentar a luta pela vida saindo-se vitoriosos. Um leão protege o seu território (e suas fêmeas) afugentando os outros leões na base de rugidos, patadas e mordidas. Em várias espécies animais o macho-alfa impõe seu domínio pela força, pela destreza ou pela esperteza, batendo a concorrência. E o mais forte vence, fere, mata ou devora o mais fraco. Sim, é “a natureza, vermelha em dentes e em garras” (5) como cantou o poeta Tennyson (1849) no poema In Memorian A. H. H. De sorte que se disseminou a crença segundo a qual no mundo humano, semelhantemente ao que ocorre no mundo animal (e nos outros reinos de organismos vivos), ter sucesso é sempre se destacar dos demais, vencê-los, sobretudo em contextos em que há escassez – tudo isso baseado no egoísmo. Ora, se ter sucesso em condições de escassez (e dependendo do modo de olhar sempre encontraremos escassez de algum recurso em toda parte) é se destacar dos demais, isso significa que há uma economia política do sucesso, ou seja, a escassez precisa ser administrada. Se todos tivessem sucesso, cada qual naquilo que realiza de uma maneira peculiar (e que só ele pode realizar daquela maneira), o sucesso não seria um prêmio pela vitória. Vitória é o triunfo em uma luta, aquele triunfo que recebiam os generais romanos, atributo da sua glória, conquanto a glória (escoimada da ideologia que a acompanhava) não passasse de uma metáfora para a fama possível naquela época: não havia TV e os caras precisavam desfilar em carro aberto com a coroa de louros nas praças e estádios para serem vistos (e isso não deixava de ser uma difusão por broadcasting, pois que um era visto por muitos). Mas essa escassez – segundo a qual no pódio só cabem alguns – é gerada artificialmente pela construção de um pódio em que só cabem alguns. Eis o ponto! Não precisava ser assim. Da mesma forma, não há nenhuma lei natural segundo a qual os jogos precisem ser, quase todos, baseados no padrão perde-ganha; ou, como observou George Orwell (1945), como uma

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espécie de “guerra sem mortes” (6). A invenção da escassez replica um padrão piramidal de organização: poucos em cima e muitos na base. Com aqueles degrauzinhos dispostos em diferentes níveis, os pódios são pirâmides. Se as mentes simples que gostam de sacar exemplos do mundo natural se esforçassem um pouco mais para acompanhar as descobertas científicas, veriam que não há pódios nos reinos de organismos vivos (com exceção do humano). E não há porque não é necessário. Há quatro bilhões de anos a vida vem trabalhando com redundância (e, portanto, com abundância): mesmo quando os recursos sobrevivenciais se esgotam para uma população, a evolução compensa essa (aparente) escassez desenvolvendo novas habilidades na espécie atingida, novas sinergias entre várias espécies e simbioses entre espécies diferentes gerando novas espécies adaptadas às condições mutantes. O padrão jamais é o da luta, tal como nós, os humanos, a concebemos. O padrão jamais é de competição, como a praticamos. Não há nenhum triunfo e os indivíduos de qualquer espécie não-humana, por mais que tenham conseguido superar grandes dificuldades para sobreviver ou se reproduzir, não desfilam em carro aberto como os generais romanos. Maturana já nos mostrou que animais não-humanos não competem por alimentos, simplesmente seguem seu impulso de se alimentar, não importando para nada se outro exemplar da espécie ficou sem alimento; ou seja, não é constitutiva da sua ação (nem da sua emoção, no caso dos mamíferos), a diretiva de vencer o outro (não sendo essencial para quem come o fato de que o outro deixe de comer) (7). Da mesma forma, não há liderança nos reinos de organismos (com exceção dos humanos, no reino animal). A abelha rainha não lidera as outras abelhas. As colônias de formigas não têm chefe (nem coordenador, nem facilitador). Como escreveu a cientista Deborah Gordon (1999) – professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durante 17 anos colônias de formigas no Arizona –, “o mistério básico que cerca as colônias é que nelas não há administração... Não há nenhum controle central. Nenhum inseto dá ordens a outro ou o instrui a fazer coisas de determinada maneira... De fato, não há entre elas líderes de qualquer espécie”. E não há, ademais, qualquer programação genética capaz de determinar um tipo de comportamento especializado em relação aos demais indivíduos da espécie: “as formigas não nascem para executar certa tarefa; a função de cada uma delas muda juntamente com as condições que encontra, incluindo as atividades de outras formigas” (8).

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Outra hipótese perversa, supostamente científica – que também tem sido instrumentalizada para legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente – é a de que existe uma escala evolutiva segundo a qual alguns seres vivos seriam mais “evoluídos” do que outros. E assim como o homem seria mais evoluído do que o macaco ou do que uma fischerella (uma cyanobactéria), assim também, entre os próprios seres humanos, alguns seriam mais “evoluídos” do que outros: ou seja, a evolução natural se espelharia ou teria uma espécie de continuidade em uma evolução cultural (frequentemente chamada de “espiritual”) baseada em fatores naturais diferenciados (daí as perversões que levaram alguns a justificar a superioridade do “macho branco no comando”: os caucasianos seriam superiores aos negros, amarelos e pardos, os machos seriam superiores às fêmeas, os arianos seriam superiores às demais “raças” humanas e outras barbaridades). Nada disso! Novamente aqui é Lynn Margulis (1998) que vem puxar a orelha dos impostores:

“Todas as espécies existentes são igualmente evoluídas. Todos os seres vivos, desde a minúscula bactéria até o membro de um comitê do Congresso, evoluíram do antigo ancestral comum que desenvolveu a autopoese e que, com isso, tornou-se a primeira célula viva. A própria realidade da sobrevivência prova a “superioridade”, já que todos descendemos de uma mesma forma originária metabolizadora. A delicada explosão da vida, em uma sinuosa trajetória de quatro bilhões de anos até o presente, produziu-nos a todos” (9).

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Malcolm Gladwell (2008) escreveu um livro de quase trezentas páginas, intitulado Outliers, para chegar à conclusão que “o outlier, no fim das contas, não está tão a margem assim”. Ou seja, os bem-sucedidos são frutos de uma constelação particularíssima e imprevisível de fatores, alguns conhecidos, outros desconhecidos. Como ele próprio escreve, “advogados celebridades, prodígios da matemática e empresários de software parecem, à primeira vista, estar fora da experiência comum. Mas não estão. Eles são produtos da história, da comunidade, das oportunidades e dos legados. Seu sucesso não é excepcional nem misterioso. Baseia-se em uma rede de vantagens e heranças, algumas merecidas; outras, não; algumas conquistadas, outras obtidas por pura sorte – todas, porém, cruciais para torná-los o que são” (10). Sim, ele tem razão: nem excepcional, nem misterioso. No entanto, a combinação ideal, a “fórmula” do sucesso é desconhecida e varia de acordo com as condições de trajetória, tempo e lugar para cada indivíduo.

“Os mitos dos melhores e mais brilhantes e do self-made man afirmam que, para obtermos o máximo em potencial humano, basta identificarmos as pessoas mais promissoras. Olhamos para Bill Gates

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e dizemos, em um espírito de autocongratulação: “Nosso mundo permitiu que aquele adolescente de 13 anos se tornasse um empresário tremendamente bem-sucedido”. Mas essa é a lição errada. O mundo só deixou que uma pessoa de 13 anos tivesse acesso a um terminal de tempo compartilhado em 1968. Se um milhão de adolescentes tivesse recebido uma oportunidade idêntica, quantas outras Microsofts existiriam hoje? Quando compreendemos mal ou ignoramos as verdadeiras lições do sucesso, desperdiçamos talentos... Agora multiplique esse potencial perdido por cada campo e profissão. O mundo poderia ser bem mais rico do que este em que nos acomodamos” (11).

No segundo capítulo do livro, Gladwell conta a história de Bill Gates, sublinhando o fato de que ele foi matriculado em uma escola particular que criou um clube de informática. Essa escola especial investiu, em 1968, 3 mil dólares na compra de um terminal de tempo compartilhado ligado a um mainframe no centro de Seattle. Assim, Gates, quando ainda estava na oitava série, passou a viver em uma sala de computador (20 a 30 horas por semana). De sorte que, “quando deixou Harvard após o segundo para criar sua própria empresa de software, Gates vinha programando sem parar por sete anos consecutivos... Quantos adolescentes tiveram esse mesmo tipo de experiência?” É o próprio Bill Gates que responde: “Se existiram 50 em todo mundo, eu me espantaria. Houve a C-Cubed e o trabalho para a ISI com a folha de pagamento. Depois a TRW. Tudo isso veio junto. Acredito que meu envolvimento com a criação de softwares durante a juventude foi maior do que o de qualquer outra pessoa naquele período, e tudo graças a uma série incrivelmente favorável de eventos” (12). Todos os outliers que Gladwell analisou no livro “foram favorecidos por alguma oportunidade incomum [como, no caso de Gates, estar na escola Lakeside em 1968]. Golpes de sorte não costumam ser exceção entre bilionários de software, celebridades de rock e astros dos esportes. Pelo contrário, parecem constituir a regra” (13). Responsabilizar a sorte não acrescenta muito conhecimento sobre o fenômeno. Se continuarmos focalizando o indivíduo, a equação não terá solução. Ou melhor, não conseguiremos nem equacionar o problema (já que solução mesmo dificilmente haverá), o que poderia acrescentar, aí sim, algum conhecimento novo. Mas Gladwell erra um pouco o alvo. Não é que tudo se baseia – como ele diz, falando metaforicamente – “em uma rede de vantagens e heranças” e sim que tudo depende (muito mais do que pensamos) de uma rede mesmo, de uma rede social propriamente dita. Quando ele afirma que o sucesso dos bem-sucedidos não foi criado só por

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eles, mas “foi o produto do mundo onde cresceram”, deixa de ver que esse mundo não é o mundo físico, nem ‘o mundo’ como noção abstrata usada para designar a totalidade da existência e sim o mundo social, quer dizer, a rede social a que estão conectados seus outliers. Eis o erro: ver o indivíduo e não ver a rede; ver a árvore, mas não ver a floresta (e sobretudo não ver a incrível rede miceliana, o clone fúngico que está por baixo da floresta e sem a qual ela não poderia existir); ver o organismo vivo, mas não ver o ecossistema em que ele está inserido. É a estrutura e o metabolismo da rede social que podem revelar as condições para o papel mais ou menos relevante assumido, em cada tempo e lugar (ou seja, em cada cluster), pelos seus nodos. Em uma sociedade cuja topologia e dinâmica se aproximam, cada vez mais, das de uma rede distribuída – a chamada sociedade em rede, emergente nas últimas décadas – isso ficará cada vez mais evidente. Os critérios de sucesso nesse tipo de sociedade tendem a deixar de ser baseados em características puramente individuais e em noções competitivo-excludentes (se destacar dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde cabem apenas alguns poucos) para passar a ser função de um corpo e de um metabolismo coletivos: a própria rede. Não se trata de coletivos indiferenciados, segundo uma velha perspectiva coletivista, própria dos condutores de rebanhos (sejam ditadores ou manipuladores de massas, de direita ou de esquerda, contra os quais os individualistas têm razão nas críticas que fazem) e sim de arranjos de pessoas. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. É por isso que o tipo de educação que recebemos, para nos destacar dos semelhantes, é terrivelmente prejudicial em uma sociedade em rede, na qual estão abertas infinitas possibilidades de polinização mútua e de fertilização cruzada que impulsionam a inovação e o desenvolvimento pessoal e coletivo. Essa idéia é desastrosa, porquanto, sob sua influência, desperdiçamos as potencialidades criativas e inovadoras das múltiplas parcerias e sinergias que o relacionamento horizontal entre as pessoas proporciona. Guiados por ela, perdemos talentos, bloqueamos a dinamização de inusitadas capacidades coletivas, matamos no embrião futuros gênios e exterminamos o mais precioso recurso para o desenvolvimento de pessoas e comunidades: o capital social (que é uma

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metáfora, construída do ponto de vista dos recursos necessários ao desenvolvimento, para designar nada mais do que a própria rede social). Assim, antes de qualquer coisa, tanto a idéia quanto a própria palavra ‘sucesso’ deverão ser abolidas. Trata-se agora, outrossim, de reconhecer papeis relevantes.

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Dentre os novos papéis relevantes em uma sociedade em rede o mais evidente é o hub. Todas as pessoas são hubs ou têm uma porção-hub. Sem tal característica não poderíamos ser humanos, quer dizer, não seríamos pessoas porque não poderíamos interagir com outras pessoas. No entanto, se olharmos o aglomerado da rede social em que estão conectadas, algumas pessoas – nem sempre as mesmas em todas as situações – desempenham o papel social de hubs stricto sensu. Os hubs – como a palavra está dizendo – são os conectores, os nodos da rede social muito conectados, são os entroncamentos de fluxos. Um hub não é necessariamente alguém com grande popularidade ou notoriedade e sim alguém com muitas relações, que pode acessar — e ser acessado por — outros nodos com baixo grau de separação. Quando uma pessoa perde sua porção-hub, provavelmente alguma patologia psíquica nela vai se manifestar, como – veremos mais adiante – soe acontecer com os muito famosos. Não é a fama que faz um hub. Pessoas famosas, celebridades, costumam ser, em geral, inacessíveis. Não são, portanto, conectores. Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs encontrará

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mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe (que é uma metáfora para designar o acesso ao mundo social, sempre oculto, já que não aparece como objeto porquanto fractalizado e em fluição, quer dizer, sendo criado a cada instante). Também não é o conhecimento que faz um hub, a não ser que se queira relacioná-lo ao conhecimento das pessoas, quer dizer, aos contatos de confiança. Às vezes um hub é o chaveiro do bairro, em quem as pessoas confiam que sua segurança residencial não será colocada em risco — e aqui novamente é evocada uma imagem do filme The Matrix: aquele “O Chaveiro”, interpretado pelo ator Randall Duk Kim, era um programa confiável; um hub, de certo modo, também é um programa que “roda” na rede. Tocou-se agora em um ponto importante da dinâmica das redes: confiança. Para que um hub possa cumprir sua função é necessário que as pessoas confiem nele. Em vez de conhecimento individual, um hub precisa do reconhecimento social. Trata-se de um reconhecimento diferente daquele que se manifesta em relação a uma celebridade: não é um reconhecimento das massas, do grande público, das multidões e sim o reconhecimento realizado um a um, molecular. Assim, pode-se dizer que o hub é “produzido” socialmente pela rede. Em mundos altamente conectados um hub tende a cumprir um papel socialmente mais relevante do que os que colecionaram muitos titulos acadêmicos, acumularam muita riqueza ou conquistaram muito poder.

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A rigor – e em um sentido geral – todas as pessoas são inovadoras. Se não fossem, se não tivessem a capacidade de modificar passado, de introduzir uma nova rotina ou uma nova dinâmica que rompe com a repetição de passado, não poderiam ter (novas) idéias: estariam psicologicamente mortas. Chama-se, porém, de inovadores, stricto sensu, àqueles que cumprem o papel social de introduzir inovações que modificam a maneira como uma rede se configura, provocando desequilíbrios que alteram os ritmos e os caminhos das fluições. Inovadores são muito diferentes dos hubs. Em geral não são conhecidos — e não conhecem — muita gente, nem são, na maior parte dos casos, muito conectados. Às vezes, são até bastante isolados. Podem vir a ser amplamente reconhecidos, mas isso depende de fatores, via de regra, fortuitos. A característica principal do inovador é emitir mensagens na rede que acabam produzindo mudanças de comportamento dos agentes (considerando a rede social como um sistema de agentes). Quando esse processo ocorre, o inovador não sabe bem nem por quê nem o quê aconteceu. Formaram-se laços de realimentação de reforço (feedback

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positivo) e a mensagem emitida pelo inovador acabou sendo reforçada e amplificada, adquirindo condições de se disseminar pela rede. Tais mensagens podem ser idéias, modos de fazer ou estilos (como a moda, por exemplo), atitudes que contenham novos padrões. Sim, não custa repetir: um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal, como já dizia, há tanto tempo, Norbert Wiener (1950) (14). O inovador — tal como o hub — também é “produzido” socialmente pela rede. Ninguém vira inovador apresentando sua inovação na TV, nos jornais ou anunciando-a em um evento massivo. A inovação é uma perturbação no tecido social que vai se espalhando molecularmente, ponto a ponto. Pequenas perturbações, mesmo que partam da periferia do sistema (quer dizer, de regiões pouco clusterizadas da rede social), são capazes de se disseminar se conseguirem atingir uma espécie de tipping point (a coisa parece funcionar da mesma forma que a propagação epidemiológica), mas para cada configuração de rede e, a rigor, para cada tipo de mensagem, pode-se ter um “ponto de desequilíbrio” diferente, a partir do qual a mensagem passa a se disseminar exponencialmente. Nem sempre, porém, os inovadores vêem os resultados de sua inovação. Muitas vezes, eles desencadeiam mudanças de comportamento que só vão aparecer muito tempo depois, quando não se pode mais atribuir a um inovador particular a paternidade da inovação, pois é próprio da dinâmica da rede social que muitas mensagens se misturem, combinem-se e se transformem em outras mensagens. Uma longa jornada ainda será percorrida antes de se assumir mais amplamente esses novos paradigmas, o que não significa que eles já não estejam vigendo. Quem já está nos novos Highly Connected Worlds se comporta mais ou menos assim. Basta ver o que começa a ocorrer nos meios científicos: no passado, um pesquisador, para ser reconhecido, precisava se submeter ao conselho editorial de uma publicação autorizada pelas instituições acadêmicas e esperar alguns meses (às vezes muitos) para ter seu trabalho publicado (ou rejeitado). Hoje, boa parte desse pessoal publica, em seus próprios blogs, as descobertas que vai fazendo, imediatamente e sem pedir licença a ninguém. Há que se convir que essa é uma mudança é tanto! Acontecerá com os inovadores o que já acontece com algumas atividades intelectuais ou exercidas livremente na área do conhecimento; por exemplo, com os escritores. Escritor é quem escreve. O escritor é reconhecido pelos que lêem o que ele publica e não em virtude de ter obtido um título acadêmico ou uma licença de uma corporação de escribas para escrever ou,

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ainda, um atestado concedido por uma burocracia qualquer. Assim, em mundos altamente conectados um inovador também tende a cumprir um papel social mais relevante do que o dos que colecionaram muitos títulos acadêmicos. A rede é uma ótima oportunidade para se quebrar o poder das burocracias do conhecimento. Na verdade, para quebrar o poder de qualquer burocracia. “Quebrar” (to crack) é a primeira medida para desobstruir o que foi entupido. Quanto mais ocorrem eventos de desobstrução, mais a sociedade vai se comportando como uma entidade que aprende, pois o que é chamado de aprendizagem é sempre a abertura de novos caminhos. E mais, a sociedade vai se desenvolvendo, pois o que chamamos de desenvolvimento é a mesmíssima coisa: a abertura de novas oportunidades de conexão (15). Este, porém, é o papel dos netweavers.

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Netweavers são os “tecelões” (para aproveitar o que poderia ter sido uma feliz expressão de Platão, no diálogo O político, se ele não estivesse se referindo a um sujeito autocrático), e os animadores de redes voluntariamente construídas. Na verdade, eles constroem interfaces para conversar com a rede-mãe. Os netweavers não são necessariamente os estudiosos das redes, os especialistas em Social Network Analysis ou os que pesquisam ou constroem conhecimento organizado sobre a morfologia e a dinâmica da sociedade-rede. Os netweavers, em geral, são políticos, não sociólogos. E políticos no sentido prático do termo, quer dizer, articuladores políticos, empreendedores políticos e não cientistas ou analistas políticos. Os políticos tradicionais, entretanto, não são netweavers e sim, exatamente, o contrário disso: eles hierarquizam o tecido social, verticalizam as relações, introduzem centralizações, obstruem os caminhos, destroem conexões, derrubam pontes ou fecham os atalhos que ligam um cluster a outros clusters, separando uma “região” da rede de outras “regiões”, excluem nodos; enfim, introduzem toda sorte de anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. Fazem tudo isso porque o tipo de poder com o qual lidam — o poder, em suma, de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua vontade — é sempre o poder de obstruir, separar e excluir. E é o

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poder de introduzir intermediações ampliando o comprimento da corrente, dilatando a extensão característica de caminho da rede social ou aumentando seus graus de separação, ou seja, diminuindo a conectividade (e a interatividade). Não é por outro motivo que os políticos tradicionais funcionam, via de regra, como despachantes de recursos públicos, privatizando continuamente o capital social. Pode-se dizer que, nesse sentido, os políticos tradicionais são os anti-netweavers, visto que contribuem para tornar a rede social menos distribuída e mais centralizada ou descentralizada, isto é, multicentralizada. Também não é à toa que todas as organizações políticas — mesmo no interior de regimes formalmente democráticos — têm topologia mais centralizada do que distribuída. Essa também é uma maneira de descrever, pelo avesso, o papel dos netweavers. Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não poderiam ser seres políticos (e a democracia jamais poderia ter sido inventada e reinventada). Mas em sentido estrito, chamamos de netweavers aqueles que se dedicam a tecer redes. Esse talvez seja o papel social mais relevante em mundos altamente conectados. O que significa que, em um mundo hierárquico, o netweaver é necessariamente um hacker (embora não seja apenas isso).

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Em “Como se tornar um hacker” (texto que ficou conhecido em alguns meios como Hacker Howto), Eric Raymond (1996-2001) escreveu uma espécie de manual autodidático de aprendizagem sobre hacking. Para ele, o “hacking é uma atitude e uma habilidade na qual você tem que basicamente ser autodidata. Você verá que, embora hackers de verdade queiram lhe ajudar, eles não o respeitarão se você pedir "mastigado" tudo que eles sabem. Aprenda algumas coisas primeiro. Mostre que você está tentando, que você é capaz de aprender sozinho. Depois faça perguntas aos hackers que encontrar” (16). Raymond afirma que o termo “hacker” tem a ver “com aptidão técnica e um prazer em resolver problemas e superar limites”. Para ele, se você quer saber como se tornar um hacker, o relevante é o seguinte:

“Existe uma comunidade, uma cultura compartilhada, de programadores experts e gurus de rede cuja história remonta a decadas atrás, desde os primeiros minicomputadores de tempo compartilhado e os primeiros experimentos na ARPAnet. Os membros dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers construíram a Internet. Hackers fizeram do sistema operacional Unix o que ele é

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hoje. Hackers mantém a Usenet. Hackers fazem a World Wide Web funcionar. Se você é parte desta cultura, se você contribuiu a ela e outras pessoas o chamam de hacker, você é um hacker. A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-de-software. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras coisas, como eletrônica ou música – na verdade, você pode encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte. Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de outros lugares e podem chamá-los de "hackers" também – e alguns alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia particular em que o hacker trabalha. Mas no restante deste documento, nos concentraremos nas habilidades e dos hackers de software, e nas tradições da cultura compartilhada que deu origem ao termo ‘hacker'” (17).

É claro que a maioria dessas habilidades e atividades que caracterizam o “hacker-de-software” hoje não se colocariam mais assim. A comunidade restrita dos programadores que cultivavam a cultura hacker explodiu para além dos limites de uma igrejinha. Essas habilidades e atividades estão agora distribuídas praticamente por todas as redes que usam a Internet. No entanto, o mais relevante é que Raymond considerava que hacker é todo aquele que pratica uma “arte criativa” e, assim, não se reduz ao que faz o hacker-de-software, mas está baseada em quatro coisas: uma atitude geral, um conjunto de habilidades, uma cultura e uma mentalidade hacker. Segundo Raymond, a atitude hacker poderia ser assim resumida:

“Hackers resolvem problemas e constróem coisas, e acreditam na liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que realmente acreditar nessa atitude... Assim como em todas as artes criativas, o modo mais efetivo para se tornar um mestre é imitar a mentalidade dos mestres – não só intelectualmente como emocionalmente também” (18).

É significativo que Raymond tenha insistido nesse ponto, aduzindo à explicação acima o moderno poema zen: “To follow the path: look to the master, follow the master, walk with the master, see through the master, become the master” (Para seguir o caminho: olhe para o mestre, siga o

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mestre, ande com o mestre, veja através do mestre, torne-se o mestre) (19). “Então - recomenda Raymond – se você quer ser um hacker, repita as seguinte coisas até que você acredite nelas”. E aí elenca cinco crenças básicas que, segundo seu ponto de vista, são acordes à atitude hacker: o mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem resolvidos (20); não se deve resolver o mesmo problema duas vezes (21); tédio e trabalho repetitivo são nocivos (22); liberdade é uma coisa boa (23); e atitude não substitui competência (24). No seu conjunto essas crenças configuram um bom libelo contra o trabalho (que ele chama de trabalho repetitivo: “tédio e trabalho repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos também”) e a favor da diversão (sem negar a necessidade do esforço e da concentração: “o trabalho duro e a dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao invés de trabalho repetitivo”); um estímulo à criatividade; uma aposta no auto-aprendizado; um certo desprezo em relação ao desejo de obter aprovação social ou buscar a fama; um elogio à capacidade de viver com o necessário e de compartilhar gratuitamente (segundo Raymond, “é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções”); e – o mais importante – uma valorização da liberdade. Sobre isso ele escreveu:

“Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-autoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado – e, dado o modo em que a mente autoritária funciona, geralmente arranjará alguma desculpa espantosamente idiota para fazer isso. Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você a encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers... Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar. Então, para se comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença” (25).

Raymond lista em seguida as três habilidades básicas do hacker-de-software: aprender a programar, aprender a mexer com Unix e aprender a usar a World Wide Web e escrever em HTML. Sobre a cultura hacker, Eric Raymond observa:

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“Como a maioria das culturas sem economia monetária, a do hacker se baseia em reputação. Você está tentando resolver problemas interessantes, mas quão interessantes eles são, e se suas soluções são realmente boas, é algo que somente seus iguais ou superiores tecnicamente são normalmente capazes de julgar. Conseqüentemente, quando você joga o jogo do hacker, você aprende a marcar pontos principalmente pelo que outros hackers pensam da sua habilidade (por isso você não é hacker até que outros hackers lhe chamem assim). Esse fato é obscurecido pela imagem solitária que se faz do trabalho do hacker; e também por um tabu hacker-cultural que é contra admitir que o ego ou a aprovação externa estão envolvidas na motivação de alguém. Especificamente, a cultura hacker é o que os antropólogos chamam de cultura de doação. Você ganha status e reputação não por dominar outras pessoas, nem por ser bonito, nem por ter coisas que as pessoas querem, mas sim por doar coisas. Especificamente, por doar seu tempo, sua criatividade, e os resultados de sua habilidade” (26).

Para Raymond existem basicamente “cinco coisas que você pode fazer para ser respeitado por hackers”: escrever open-source software, ajudar a testar e depurar open-source software, publicar informação útil, ajudar a manter a infra-estrutura funcionando e servir à cultura hacker em si. Sobre esse último ponto, vale a pena ler o que ele escreveu:

“Você pode servir e propagar a cultura em si (por exemplo, escrevendo um apurado manual sobre como se tornar um hacker). Você só terá condição de fazer isso depois de ter estado por aí por um certo tempo, e ter se tornado conhecido por uma das primeiras quatro coisas. A cultura hacker não têm líderes, mas têm seus heróis culturais, "chefes tribais", historiadores e porta-vozes. Depois de ter passado tempo suficiente nas trincheiras, você pode ser tornar um desses. Cuidado: hackers desconfiam de egos espalhafatosos em seus "chefes tribais", então procurar visivelmente por esse tipo de fama é perigoso. Ao invés de se esforçar pela fama, você tem que de certo modo se posicionar de modo que ela "caia" em você, e então ser modesto e cortês sobre seu status” (27).

Por último, sobre a mentalidade hacker, Raymond diz que, para entrar nessa mentalidade “há algumas coisas que você pode fazer quando não estiver na frente de um computador e que podem ajudar... [coisas que] estão ligadas de uma maneira básica com a essência do hacking”: ler ficção científica, estudar o Zen ou fazer artes marciais, desenvolver um ouvido

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analítico para música, desenvolver sua apreciação por trocadilhos e jogo de palavras e aprender a escrever bem em sua língua nativa (28). Raymond nos deu algumas preciosas dicas – embora tenha, aqui e ali, corretamente, extrapolado isso – para que pudéssemos programar em ambientes digitais ou virtuais. A ele certamente ocorreu, mas disso aparentemente não tirou muitas consequências, que hackers não são programadores; são, mais, desprogramadores. Você pode hackear uma escola, uma igreja, um partido, uma organização estatal, uma empresa, sem nunca ter encostado em um computador ou em um dispositivo móvel de navegação. A rigor, você pode (e deveria, se quisesse mesmo viver em outro mundo) hackear sua família. Não se trata, portanto, apenas de elaborar e modificar softwares e hardwares de computadores, desenvolvendo funcionalidades novas ou adaptando as antigas à revelia (ou não) dos seus proprietários. Nem se trata de invadir para bagunçar, violar, roubar senhas, tirar do ar, como se diz que fazem os hackers sem ética, ou sem a ética-hacker, os dark-side hackers como os crackers. Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto. Mas agora, entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um N3tw34v3r Howto. Se você quiser se dedicar ao netweaving, comece esquecendo toda essa bullshit sobre ética como conjunto de normas sobre o que fazer ou não-fazer válidas para qualquer interação e estabelecidas antes da interação. O que caracteriza o netweaver é o que ele faz e não um conjunto de crenças ou valores, por mais excelços, solidários ou do-bem que possam ser estimados. Todo netweaver é um hacker no sentido ampliado do termo (para além do “hacker-de-software”). Mas nem todo hacker é netweaver. O netweaver é um hacker-fluzz. Para se tornar um netweaver, não é necessário seguir o caminho (mesmo porque não existe o caminho), mas jogar-se no não-caminho: naquele sentido poético do “perder-se também é caminho” de Clarice Lispector (1969) (29); nem, muito menos, é o caso de olhar o mestre, seguir o mestre, andar com o mestre, ver através do mestre e tornar-se o mestre, como sugere o poema Zen reproduzido por Raymond; senão de fazer exatamente o contrário: matar o mestre! O netweaver não é um indivíduo excepcional, destacando-se dos demais no velho mundo único por seu espírito criativo e por sua dedicação concentrada

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em inovar: ele é uma função social dos mundos altamente conectados. Nos Highly Connected Worlds não se trata mais de constituir uma tribo dos diferentes (diferentes dos outros, dos que não-são) ou uma comunidade dos iguais (que se reconheçam mutuamente: como disse Raymond, “você não é hacker até que outros hackers lhe chamem assim”). Não há uma atitude geral fundante, um conjunto de habilidades certas, uma cultura adequada comum e uma mentalidade distinta baseada em um sistema de crenças. São muitas comunidades, muitas tribos, com as mais variadas atitudes e habilidades, miscigenando suas culturas enquanto seus agentes nômades viajam pelos interworlds. E pouco importa as crenças de cada uma das pessoas ou aglomerados de pessoas que se dedicam ao netweaving. Para orientar e multiplicar os hackers, de certo modo, Eric Raymond quis fazer uma escola (ainda que baseada na auto-aprendizagem e no reconhecimento mútuo). Para ensejar o florescimento do novo papel social do netweaver, trata-se, pelo contrário, de apostar que sua livre interação enxameie não-escolas. Não pode haver, portanto, um receituário procedimental elencando habilidades técnicas para alguém se tornar netweaver. Você não precisa saber programar. Você não precisa só usar o Linux (nem entrar na igreja do software livre, que – convenhamos – em alguns países da América Latina está mais para partido). Você não precisa saber escrever em HTML5. Para fazer hacking (no sentido ampliado do termo) – como uma das dimensões do netweaving – você precisa estar disposto a desprogramar hierarquias (hackeando aquelas instituições erigidas no contra-fluzz, como, por exemplo, escolas, igrejas, partidos, Estados e empresas-hierárquicas). E para fazer netweaving não há nenhum conteúdo substantivo (filosófico, científico ou técnico) que você tenha que adquirir: basta desobedecer, inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter que aprender: a tecer redes – da única maneira possível de se aprender isso: interagindo com outras pessoas sem erigir hierarquias (sem mandar nos outros e sem obedecer a alguém). Isto é netweaving! Não é algum conteúdo que determina seu comportamento. Para se tornar netweaver não se trata de saber, mas de ser. Se você é um hacker – tão convicto e habilidoso como o próprio Raymond, ou Torvalds, ou Stallman, ou Cox, ou Tanenbaum – mas constroi suas patotas e igrejinhas, ou monta empresas-hierárquicas, ou, ainda, erige quaisquer outras organizações centralizadas e nelas convive com as outras pessoas o tempo todo, então você não poderá ser um netweaver, mas não por motivos éticos ou morais, por estar sendo incoerente com suas crenças e sim porque, nestas condições, você dificilmente conseguirá aprender a articular e animar redes (distribuídas).

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Enfatizando, não é porque você violou princípios ou não observou valores. Não é porque você não compartilhou o que sabe, nem porque transgrediu a “cultura da doação” para ganhar mais dinheiro. Aliás, como disse o próprio Raymond “não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para... ficar rico, contanto que você não esqueça que é um hacker”. Um netweaver também pode ser – ou ficar – rico. Esse não é o ponto. O que um netweaver não pode é não ser um netweaver; ou seja, o que faz o netweaver não é um conjunto de conhecimentos adquiridos (ou de opiniões proferidas, habilidades técnicas exercitadas, capacidades cognitivas desenvolvidas) ou valores abraçados e sim o que o netweaver faz. Se não faz rede, não é netweaver (ainda que, pelo visto, possa ser hacker). A parte hacking do netweaving é aquela que desprograma, que corta (to hack) ou quebra (to crack) as cadeias de scripts dos programas verticalizadores que perturbam o campo social centralizando a rede-mãe e gerando aglomeramentos no contra-fluz (que aparecem então como instituições hierárquicas). Hackeando tais instituições pode-se introduzir funcionalidades diferentes das originais como, por exemplo: a experimentação da livre aprendizagem em vez da transmissão do ensinamento (essa é uma espécie de “virus” não-escola, poderíamos chamar assim tais experiências, em termos metafóricos); o compartilhamento da espiritualidade espontânea em vez do seu enquadramento e cerceamento por meio das práticas religiosas e dos rituais das igrejas (“virus” não-igreja); o exercício voluntário e cooperativo da política pública e da democracia comunitária em vez da disciplina e da fidelidade partidárias (“virus” não-partido); a vivência do localismo cosmopolíta em vez do refúgio no nacionalismo e no patriotismo insuflados pelo Estado (“virus” não-Estado-nação); a associação de empreendedores para polinizarem mutuamente seus sonhos em vez da montagem de estruturas para arrebanhar trabalhadores e subjugá-los em prol da realização do sonho único de alguém (“virus” não-empresa-hierárquica). Todo resto pode ser abandonado. Nada de religião: para o netweaving você pode fazer todas essas coisas usando o Linux, mas também o Microsoft Windows ou o Mac OS ou o Chrome OS; ou, mesmo, não usar nada disso. Você pode empregar uma das dezenas de plataformas p-based disponíveis, como o Noosfero ou o Elgg e também o Ning, o Grouply, o Grou.ps (ou, melhor ainda, pode ajudar a desenvolver uma plataforma i-based) ou pode tentar se virar com sites de relacionamento como Orkut, MySpace ou Facebook. Você pode usar o identi.ca ou ir se arranjando com o Twitter. Ou então você pode sair do mundo virtual ou digital e promover atividades presenciais de netweaving, como rodas de conversação, desconferências ou Open Spaces, World Cafés etc. Para os “netweavers-de-software” (por

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assim dizer) o principal desafio é desenvolver tecnologias interativas (i-based) de netweaving: ferramentas digitais adequadas à articulação e animação de redes sociais. E há muitos outros desafios tecnológico-sociais que estão colocados para todos os netweavers (e não apenas os que mexem com softwares) para intensificar a interatividade. Mas nenhuma ferramenta, nenhuma técnica ou metodologia e nenhuma dinâmica é realmente essencial. O essencial é articular e animar redes distribuídas de pessoas. Ou seja, o grande desafio é social mesmo. Enfatizando, mais uma vez: de nada adianta você só usar free software e as mais avançadas técnicas dialógicas de conversação se você continua se organizando hierarquicamente, se sua organização é centralizada ou fechada (e, portanto não-free) e se você privatiza o conhecimento que poderia ser comum, vedando o acesso público (e, dessarte, seu conteúdo também será não-free). Desprogramar sociosferas – a parte hacker do netweaver – não basta: é necessário reprogramá-las, construindo seus próprios mundos. Eis porque, por meio do netweaving, mundos-bebês estão agora em gestação.

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Netweaving é criação de novos mundos. Não é uma tribo especial – a décima-terceira tribo (dos hackers) de Israel ou dos sionistas digitais – que pode fazer netweaving, não é um cluster de gênios, uma fraternidade de seres notáveis, dotados de faculdades e qualidades excepcionais, super-humanas. É você! Se você não fizer, nada se modificará em seu mundo (ou melhor, você não poderá sair do mundo que lhe impuseram e no qual você está aprisionado). Para tanto, você não precisa ser mais do que você é. Você só precisa ser o que você pode ser como revelação ou descoberta do que você é. Quando foi a Oslo, receber o Prêmio Nobel da Paz, Albert Schweitzer (1952) disse em seu discurso que “nos tornamos tanto mais desumanos quanto mais nos convertemos em super-homens”. É isso. Trata-se de ser mais humano, não mais-do-que-humano. Durante milênios fomos contaminados com a idéia perversa de que não devemos ser o que somos. Tudo que nos diziam é que devíamos nos superar, nos destacar dos semelhantes, separarmo-nos da plebe que habita a planície ou chafurda no pântano e subir aos píncaros da glória para ter sucesso na vida. Quem ficasse para trás era um looser. Ou alguém que não

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desenvolveu suas potencialidades, que bloqueou sua “evolução” mental ou espiritual ou que não foi capaz de se transformar ou de se aperfeiçoar. Mas você não tem que se transformar no que você não é. Não há nada errado com você. Você não veio com defeito de fábrica, que precise ser consertado por alguma instituição hierárquica. Você não precisa ser reformado pelo Estado e seus aparatos, como querem os autocratas de todos os matizes. Você não precisa ser educado – quer dizer, ensinado, adestrado, domado – para aplacar uma suposta besta-fera que existe no seu interior. Não há nada no seu interior humano além da composição fractal de todos os outros humanos que fazem com que você seja uma pessoa. O humano é um maravilhoso encontro fortuíto do simbionte natural (em evolução) com o simbionte social (em prefiguração). Ser humano é algo muito, mas muito mais importante do que qualquer coisa, mais importante do que um deus (e conta-se que teve até um deus que, percebendo isso, quis se tornar humano), um santo ou um herói; mais importante do que qualquer título, propriedade, cargo ou índice de popularidade: nada disso importa se você não conseguir formar sua alma humana, quer dizer, se não conseguir tornar-se pessoa. Tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não santo. Pois há também o caminho excepcional dos santos (que são pessoas incomuns). George Orwell (1948) nas suas inquietantes Reflexões sobre Gandhi elaborou, talvez, a mais profunda (e corajosa) crítica à disciplina religiosa tomando como exemplo a “disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que – embora ele possa não insistir com seus seguidores que observem cada detalhe – acreditava ser indispensável se quiséssemos servir a Deus ou à humanidade. Em primeiro lugar, não comer carne e, se possível, nenhum alimento animal sob qualquer forma... Nada de bebida alcoólica ou tabaco, nenhum tempero ou condimento, mesmo do tipo vegetal... Em segundo lugar, se possível, nada de relação sexual... E, por fim – este o ponto principal –, para quem busca a bondade não deve haver quaisquer amizades íntimas e amores exclusivos” (30). Então vem a crítica cortante de Orwell:

“O essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a perfeição, é que às vezes estamos propensos a cometer pecados em nome da lealdade, é que não assumimos o ascetismo a ponto de tornar impossível uma amizade, é que no fim estamos preparados para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos. Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo deve evitar, mas santidade também é algo que os seres humanos

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devem evitar. Para isso há uma réplica óbvia, porém temos de ser cautelosos em fazê-la. Nesta época dominada por iogues, supõe-se com demasiada pressa não só que o “desapego” é melhor do que a aceitação total da vida terrena como também que o homem comum só a rejeita porque ela é muito difícil: em outras palavras, que o ser humano mediano é um santo fracassado. É duvidoso que isso seja verdade. Muitas pessoas não desejam sinceramente ser santas, e é provável que as que alcancem a santidade, ou que a ela aspirem, jamais tenham sentido muita tentação de ser seres humanos” (31).

Ter percebido que esse “homem comum”, esse “ser humano mediano” não é “um santo fracassado” foi a grande sacada de Orwell, desmascarando o que nos impuseram as igrejas ao colocarem como ideal a superação do humano, o seu aperfeiçoamento, a sua “espiritualização”, como se houvesse alguma coisa errada com os que vivem sua vida e sua convivência sem se submeterem a alguma disciplina religiosa, ascética, mesmo quando voltada ao bem da humanidade (como os santos, os bodisatvas e os mahatmas – que, talvez, não tenham conseguido chegar a ser pessoas comuns). Sim, tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não herói. Herói também é uma pessoa incomum. É outra escapada da humanidade. É alguém que supostamente “superou” sua condição humana. Toda cultura hierárquica é construída a partir do mito do herói, um Hércules que vence desafios insuperáveis (pelas pessoas comuns) e realiza missões impossíveis (para as pessoas comuns). Não é por acaso que, frequentemente, o herói é um guerreiro que demonstrou bravura em batalha e foi agraciado pelos seus superiores (fabricantes de guerras) com medalhas (um reconhecimento da organização montada pelos construtores de pirâmides). Depois tal cultura apenas se deslocou para as outras pirâmides e apareceram os heróis empresariais (como muitos capitães de indústria, badalados nas revistas de negócios), os heróis políticos (como os condutores de rebanhos, glorificados pelos seus índices de popularidade), até chegar aos heróis da filantropia (que também são premiados pelo volume da caridade que praticam). E há ainda os heróis revolucionários, aqueles “guias geniais dos povos” (muitos deles genocidas como Stalin ou Mao – este último, aliás, o campeão em número de mortes infligidas a outros seres humanos em toda história e pré-história humana). Até Julian Assange do Wikileaks é heroificado: positivamente (pela sua luta contra a opacidade dos Estados-nações) ou negativamente (pelo seu irresponsável anarquismo, capaz de colocar em risco a moral de quadrilha e o pacto de silêncio entre os Estados-nações chamado de “ordem internacional”).

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Sob esse influxo verticalizante as pessoas tendem a achar que não podem fazer nada de muito significativo, pois são apenas... pessoas comuns, não heróis. Elas são induzidas a achar que são heróis fracassados, que não são boas o suficiente para realizar grandes feitos, promover magníficas transformações. Nesse modelo épico são levadas a acreditar que somente formidáveis revoluções e mega-reformas conduzidas por extraordinários líderes heróicos são capazes de fazer a diferença, desprezando aquelas seminais experiências líricas vividas por pessoas comuns. Como já sabiam as pessoas-zen, não é fácil ser uma pessoa comum, ao contrário do que parece. No mundo único fomos induzidos a conquistar algum diferencial para nos destacarmos das pessoas comuns. Quando interagimos com alguém em qualquer ambiente hierárquico somos avaliados por esses diferenciais e começamos então a cultivá-los. Como reflexo dos fluxos verticais que passamos a valorizar, nossa vida também se verticaliza. É como se importássemos a anisotropia gerada na rede-mãe pela hierarquia. Nessa ansia de subir, começamos a imitar os de cima e a desprezar os de baixo. O caso limite é a chamada celebridade (e os psicólogos, psicanalistas e psiquiatras que tratam das patologias incidentes em quem se mantém nessa condição têm muito a contar sobre a perturbação da personalidade que pode levar, em determinadas circunstâncias, quando combinada com outros fatores, ao surgimento de pulsões autodestrutivas, às drogas e à violência). Mesmo que tais consequências extremas não aconteçam, há sempre um isolamento (aquele cruel isolamento de que reclamam todos os grandes líderes hierárquicos e os condutores de rebanhos), causado pelo represamento de fluzz. Em certa medida, em sociedades e organizações hierárquicas viramos (todos nós, não apenas as celebridades) seres da aparência, deformados pelo broadcasting, usando nossas antenas quase que somente para difundir as características de nossa persona (como queremos que os outros nos vejam) e não para captar outros padrões de convivência. É assim que não desenvolvemos nossas características-hub e, em consequência, perdemos interatividade, sobretudo porque não queremos nos manter abertos à interação com o outro imprevisível por medo de nos confundirmos com qualquer um, com seres de menor importância do que nós (porque têm menos títulos, menos riqueza, menos poder ou menos popularidade do que nós). Para nos protegermos da livre interação passamos a conviver apenas com aqueles que se parecem conosco e ficamos cada vez mais parecidos com eles, por um mecanismo que já foi explicado pelo físico Mark Buchanan (2007) em O átomo social (32). Como resultado, ficamos cada vez mais

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aprisionados em nosso submundo do mundo único: ainda que morando em uma megalópole de dez milhões de habitantes, frequentamos os mesmos clubes, moramos nos mesmos bairros, gozamos nossas férias nas mesmas localidades e fazemos os mesmos roteiros de viagem, jogamos os mesmos jogos, usamos as mesmas roupas e conversamos as mesmas conversas. É claro que, nessas circunstâncias, temos muitas dificuldades de ser pessoas-fluzz. Ficamos cada vez mais opacos, duros e quebradiços, porque não queremos ser membrana, não queremos que o fluxo nos atravesse. Como consequência, perdemos caminhos para outros mundos. E isso significa que não fazemos novas conexões (reduzindo nosso número de amigos), mas significa também que não conseguimos nem “ver” as conexões (perdemos nossas antenas porque ficamos concentrados em cavucar nossas raízes, até sermos enterrados junto com elas). Quando se coloca em processo de fluzz uma pessoa deixa de lutar para subir, para ter sucesso, para se igualar ou imitar os ricos, os poderosos, os muito titulados e os famosos. Libertando-se da exigência de ser uma VIP (very important person), ela começa a revalorizar seus relacionamentos horizontais. Nessa jornada terapêutica, vai se curando das sociopatias associadas às perturbações no campo social introduzidas pela hierarquia e vai caminhando, no seu próprio passo e do seu próprio jeito, em direção ao supremo objetivo de virar uma pessoa comum. O vento continua soprando... e a cada dia surgem miríades de pessoas desconhecidas que, simplesmente, já não ligam para nada disso, para nenhum desses indicadores de sucesso da sociedade hierárquica, sejam materiais ou espirituais. Elas não têm medo de entrar na orgia fúngica, lançando suas hifas para todo lado (e não apenas para cima). Essas pessoas desobedecem. Não dão a mínima para os que querem avaliá-las pelas suas raízes, pela sua descendência (seu patrimônio genético ou seu “sangue”) e pelo ambiente em que nasceram e foram criadas na primeira infância (o seu “berço”), pelos seus certificados, diplomas e títulos (conferidos por alguma burocracia sacerdotal trancadora de conhecimento) ou pelos seus graus (conferidos por algum mestre ou confraria), pela sua riqueza acumulada, pelo seu poder conquistado ou pela sua popularidade. Elas sabem que nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas. Essas pessoas comuns antenadas, esses múltiplos anônimos conectados, criadores de uma diversidade incrível de mundos, estão aí do seu lado. Sim, eles já estão entre nós.

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– E o que vocês esperam que eu faça? – Você já sabe.

– Não, não sei. Por favor, ensine-me! – Você fez muitas coisas sem precisar que o ensinassem a fazê-las.

Será que lhe ensinamos a desobediência? Diálogo entre um ghola Duncan Idaho e o bashar Miles Teg

por Frank Herbert em Os hereges de Duna (1984)

Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer, ao ritmo de um ínfimo passo de cada vez...

redimindo-se um momento de cada vez. Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez.

Uma caminhada de cada vez. Paulo Brabo em Microsalvamentos:

como salvar o mundo um instante de cada vez (2007)

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A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de organização distribuído não logrou se materializar no interior e no entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais, que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma mudança de época. Esses mundos-bebês estão agora em gestação. Os fenômenos acompanhantes do glocal swarming serão surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma tendência acentuada à desobediência dentro das organizações hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição do seu padrão piramidal para um padrão de rede.

Fluzz é a queda dos muros. Em 1989 houve uma queda: a do Muro de Berlim. O episódio, pleno de significado simbólico, assinalou o início de uma época de mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade. Um processo até então oculto de mudança social tornou-se visível de repente. Embora fugaz, o momento abriu uma brecha pela qual se pode ver

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um novo tecido societário em gestação, uma nova topologia – mais distribuída – da rede social sendo tramada. Com efeito, nos anos seguintes, como se diz, "o mundo mudou": a Internet (com a World Wide Web) nos anos 90 expressou aspectos importantes dessa mudança profunda. Os anos 2000, contrariando uma série de profecias futuristas, não raro inspiradas por algum tipo de milenarismo, e frustrando as mais animadoras expectativas da New Age, não consumaram o que foi prefigurado. A primeira década do século 21 - marcada indelevelmente pela queda das torres gêmeas do World Trade Center - conquanto tal evento também seja riquíssimo de significado simbólico (místico, como revela a famosa Carta 16 do Tarot; e ideológico: o que ruiu foi um centro mundial de comércio, dando a alguns a impressão, não raro regressiva, de que a dinâmica reguladora do mercado estava com os dias contados e seria substituída pela normatização estatal), não foi o vestíbulo de entrada para aquele terceiro milênio imaginário desejado. No entanto, subterraneamente, prosseguiu a gestação de novos padrões societários. O mundo descobriu as redes. Entrou em franco desenvolvimento uma nova ciência das redes. E surgiram por toda parte novas plataformas tecnológicas interativas de articulação e animação de redes sociais. As ferramentas começaram a ficar disponíveis. Faltaram ao encontro apenas as pessoas, ainda arrebanhadas e cercadas, em grande parte, nos tradicionais currais organizativos. E tudo permanecerá assim nos mundos em que as pessoas não desobedecerem, não saírem do seu quadrado (as fortalezas organizativas que criaram para se proteger do “mundo exterior”), não inovarem e não iniciarem a transição para uma padrão de rede. Por isso não haverá mesmo uma (única) New Age. Enquanto as pessoas não desistirem da Old Age permanecerão em mundos murados contra fluzz; ou melhor: vice-versa. É claro que o vento continuará soprando, mas – dependendo da opacidade de seus muros – você pode nem notar. Assim como não notou a formidável orgia fúngica sob seus pés (uma espécie de sexo grupal que está acontecendo agora em Zion, i. e., nos subterrâneos, com hifas surgindo por toda parte). Assim como não notou o espalhamento dos esporos no ar que você respira. Assim como não está vendo as miríades de interfaces conectando miríades de mundos à sua volta e “explodindo como uma ramada de neurônios”... (1) Esse é o glocal swarming – que você só percebe se estiver nele. Para invocá-lo em seu mundo você precisa, antes de qualquer coisa, conceber e

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dar à luz ao seu mundo. Sim, agora chegou a hora de você mesmo fazer o seu mundo!

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Não haverá aquela grande transformação capaz de lhe dar um novo mundo de presente. Se você está aguardando essa mudança global apocalíptica, escatológica, é melhor esperar sentado. Simplesmente não vai acontecer. É inútil apostar no parto de um novo mundo como um evento épico de magníficas proporções. No plano global não vem nada por aí – no curto prazo, vamos dizer assim, no próximo milhão de anos – capaz de gerar um novo mundo (2). É claro que podem acontecer catástrofes de dimensões planetárias, pode até irromper uma terceira guerra mundial (conquanto isso não seja muito provável). Mas apostar que uma tragédia de proporções planetárias possa criar condições para uma revolução internacional ou para uma batalha cósmica entre as forças do bem e as forças do mal capaz de produzir um mundo radicalmente novo em termos sociais é não entender o que se chama de sociedade humana ou ser humano. Como escreveu Paulo Brabo (2007), em Microsalvamentos: “o mundo não pode ser salvo de uma só vez. Não há como se varrer a miséria da existência em grandes e eficientes vassouradas... Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer, ao ritmo de um ínfimo passo de cada

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vez... redimindo-se um momento de cada vez. Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez. Uma caminhada de cada vez” (3). Catástrofes não trarão nada de novo. Combates, batalhas, guerras e revoluções, só produzirão repetição de mundo velho. Só um sociopata pode acreditar que a violência é a parteira da história (e só alguém muito intoxicado das crenças do mundo único pode acreditar que exista uma história). O plano global é uma construção, uma abstração. Nenhuma mudança concreta pode acontecer nesse terreno abstrato. As mudanças nos padrões de relação societários ocorrem sempre em sociosferas. Por isso a queda dos muros não poderá ser uma (única) queda, de um (único) muro. Serão muitas quedas, provavelmente em cascata ou swarming, de muitos muros. Do ponto de vista dos movimentos invisíveis que se processam no espaço-tempo dos fluxos, 'muro' significa centralização, obstrução de fluxo. Onde quer que existam "muros" impedindo o livre curso de fluições, “muros” estes que caracterizam organizações mais centralizadas do que distribuídas, poderá haver uma "queda". Não será um global swarming, mas um glocal swarming. Cada mundo altamente conectado que emergirá será o mundo todo, como se fosse uma imagem holográfica de uma nova matriz de mundo mais distribuído. Não um mundo interligado – pois que isso já se materializou desde que a conexão global-local tornou-se uma possibilidade – e sim um mundo-gerador intermitente de novos, inéditos, mundos altamente tramados, para fora e para dentro, que emergirão a cada instante. Um mundo mais-fluzz, quer dizer, muitos mundos-fluzz. Esta será, propriamente falando, a primavera das redes. A livre interação de múltiplos mundos altamente conectados, estruturados com outras topologias e regidos por outras dinâmicas, vai substituir processualmente as remanescências deste mundo aprisionado, sob o influxo de velhas narrativas ideológicas totalizantes, em grandes ou pequenas estruturas hierárquicas unificadoras top down. Mundos-bebês começam a ser gerados na medida em que tais estruturas vão sendo desmontadas. E elas estão sendo desmontadas cada vez que você desobedece, inova, sai do seu quadrado e inicia a transição da organização hierárquica em que você vive e convive para uma organização em rede.

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Tudo começa com a desobediência. Cada pequeno ato ou gesto de desobediência contribui para desestabilizar a dominação. É assim que a desobediência vai deixando fluzz passar. Desobedecer é sempre abrir um caminho. Mas cada ato ou gesto de desobediência abre um novo caminho. Manter-se no mesmo caminho, à revelia da direção do vento, acreditando que ele é o seu caminho para a vida toda ou o único caminho e tentar impingí-lo a outras pessoas... aí já é obedecer. Quando o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin afirmou, no final dos anos 80, que relações hierárquicas, relações de subordinação, que exigem obediência, baseiam-se na negação do outro e que essas relações não podem ser consideradas relações propriamente sociais, alguns acadêmicos e bem-pensantes e, sobretudo, aqueles que se tinham por indivíduos muito “sérios” e “responsáveis”, ficaram meio escandalizados. Como assim? – perguntavam, indignados. Pois pensavam que, caso tais idéias heterodoxas (e perigosas) vicejassem, seria o caos!

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E a coisa piorou um pouco quando ele, Maturana (2009), duas décadas depois, ousou declarar que o liderazgo (a liderança), o xodó das teorias empresariais que floresceram nos anos 90, não era uma idéia nada boa, posto que “el liderazgo requiere que los liderados abandonen su propia autonomía reflexiva y se dejen guiar por otro confiando o sometiéndose a sus directrices o deseos...” (4). Mas o fato que até agora ainda não tivemos coragem de derivar todas as conseqüências dessas impactantes constatações de Maturana e desenvolvê-las no contexto da transição de uma sociedade hierárquica, que tende a fenecer, para uma florescente sociedade em rede, diante da emergência de múltiplos mundos altamente conectados de forma cada vez mais distribuída. Embora anunciador de uma visão pioneira sobre redes (que qualificou como “redes de conversações”), Maturana não reestruturou seu pensamento sob o influxo das visões contemporâneas inspiradas pela nova ciência das redes. Cabe a nós, que investigamos o assunto, dar continuidade aos seus insights geniais à luz da teoria e da prática de redes, quer dizer, do netweaving. Sim, netweaving. Se você quer mesmo aprender a “fazer” redes, então sua primeira “prova” é: desobedeça! Aprenda a desobedecer! Um netweaver é, por definição, um desobediente. Porque é alguém que, criativamente, caminha fora dos trilhos já estabelecidos por alguém. Mas a quem você deve desobedecer? Ora, a todos que querem obrigá-lo a obedecer. Em especial aos agentes do velho mundo hierárquico e autocrático cujos alicerces já estão apodrecendo, mas que continua, resilientemente, a nos assombrar. Dentre tais agentes, que são muitos, merecem ser destacados os que já foram tratados aqui: os ensinadores, os codificadores de doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos. Desobedeça aos ensinadores. Aprenda o que você quiser, quando quiser e do jeito que você quiser. Aprenda com seus amigos. E compartilhe o que aprendeu com quem você quiser, gerando mais conhecimento. Guarde seus conhecimentos nos seus amigos, não na cabeça dos professores; nem nas instituições que sobrevivem trancando o conhecimento e estabelecendo caminhos obrigatórios, cheios de barreiras e permissões, para dificultar-lhe o acesso; ou, ainda, nos livros submetidos à normas odiosas de copyright. Conhecimento trancado apodrece.

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E não siga mestres de qualquer tipo: todos somos aprendentes. ‘Quando o “mestre” está preparado o discípulo desaparece’, quer dizer, ele não precisa mais da muleta chamada “discípulo”: pode se tornar, por si mesmo e em interação com outras pessoas, um aprendente, livre... e tão ignorante como todos nós. Mas enquanto eles estiverem pensando em conquistar discípulos, fuja dos “mestres”! Desobedeça aos codificadores de doutrinas. Não entre em suas armações, não replique seus discursos: pense com sua própria cabeça. Ria dos seus vaticínios e ameaças e ponha-se fora do alcance de suas patrulhas. Saia dos trilhos que eles assentaram, escape das valetas (os pré-cursos) que eles cavaram para fazer escorrer por elas as coisas que ainda virão. Recuse tudo isso: faça o seu próprio caminho. Desobedeça aos aprisionadores de corpos. Monte seu próprio empreendimento individual ou coletivo compartilhado, empresarial ou social. Corra atrás do seu próprio sonho ao invés de servir de instrumento para realizar o sonho alheio. Sim, você é capaz. A evolução investiu quatro bilhões de anos desenvolvendo seu hardware, que é igualzinho ao daquele cara esperto que quer capturá-lo e aprisioná-lo e que ainda por cima tem a desfaçatez de alegar que está fazendo um bem para a humanidade por lhe oferecer um emprego. Desobedeça aos construtores de pirâmides, em primeiro lugar, cortando o barato daquele “construtorzinho de pirâmide” que mora aí dentro de você: não faça patotas, não erija igrejinhas. Sim, é muito difícil resistir à tentação de juntar “os seus” e separá-los dos “dos outros”, mas – para quem quer fazer redes – é absolutamente necessário. E, sobretudo, abra mão de querer mandar nos outros. Em vez de arquitetar organizações tradicionais, a partir de organogramas centralizados, para realizar qualquer projeto ou trabalho, teça redes: quase tudo que se organizou até agora de forma hierárquica (com estrutura centralizada) pode ser organizado em forma de rede (com estrutura distribuída); menos, é claro, os sistemas de comando-e-controle. Em segundo lugar, nunca se enquadre docemente em sistemas de comando-e-controle. Se for obrigado a tanto para sobreviver, por um período (que não pode ser muito longo, do contrário você estará bloqueando seu desenvolvimento humano), faça-o resignadamente, mas sempre resistindo. Isso significa: não se curve a seu chefe, não lhe faça as vontades, vamos dizer assim, tão solicitamente. Não seja tão prestativo, subserviente, serviçal. Não caminhe um quilômetro a mais para agradá-lo.

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Não fique na penumbra, recuado, servindo de escada para ele subir ou se destacar. Não faça o jogo. Desobedeça aos fabricantes de guerras, esses hierarcas. Recuse-se a entrar em organizações militares ou para-militares de qualquer tipo. Recuse-se a entrar em qualquer organização política de combate, que pregue que o bem só será alcançado com a destruição do mal. Recuse-se a olhar o diferente como adversário em princípio: em princípio todo ser humano é um potencial parceiro de outro ser humano, não um inimigo. Recuse-se a construir inimigos. Recuse-se a entrar em organizações que elegem inimigos para ser eliminados: física, econômica, psicológica ou politicamente. A ética do netweaver é uma ética do simbionte, não do predador. Adote um comportamento pazeante para não cair na armadilha de travar uma guerra contra o mal, pois, assim procedendo, você mesmo estará gerando o mal ao construir inimigos em vez de fazer amigos, quer dizer, de fazer redes. Desobedeça aos condutores de rebanhos, esses líderes. Não os siga para parte alguma. Não se deixe conduzir, ser puxado pelo nariz ou guiado pelo cabresto como se fosse uma cavalgadura. Não existem guias geniais dos povos. Nos sistemas representativos, as pessoas que você elegeu são seus empregados (mandatados pelos eleitores), não seus patrões. Arrebanhamentos e assembleísmos são o contrário da interação humanizante entre as pessoas: transformam gente em gado, em contingente moldável e manipulável. Pule para fora desse curral. Aparte-se desse rebanho. “Inclua-se fora” dessas listas de excluídos que ficam olhando para cima de boca aberta, esperando pelas benesses de um salvador (pois o simples fato de pertencer a elas já é um indicador de exclusão, quer dizer, de incapacidade de pensar por si mesmo e de andar com as próprias pernas). Toda pessoa, se estiver disposta a desobedecer, será um alguém (com nome reconhecido) fora da massa, não apenas um número em uma estatística. Toda pessoa que desobedece, em um mundo ainda infestado por organizações hierárquicas, é um ponto fora da curva: alguém único, singular, insubstituível como você. Isto posto, é tudo. Mas ainda resta tratar das objeções dos bem-pensantes e dos indivíduos que se levam muito a sério e que se acham responsáveis.

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Você deve desobedecer às leis? De uma maneira geral, você nunca deve obedecer a pessoas, sejam elas quais forem. Dizendo de uma forma ainda mais ampla: você nunca deve obedecer a nenhuma individualidade portadora de vontade, real ou imaginária, humana ou extra-humana, seja ela qual for. Freqüentemente surge uma objeção: mas se as pessoas não obedecerem às normas da vida civilizada será o caos. Por isso, todos devem respeitar as leis. Será mesmo? Depende. Você não deve, por certo, romper com os pactos livremente celebrados por uma sociedade e que foram transformados em leis em um processo democrático. Dizer que a democracia é o império da lei significa dizer que não ela não é o império de pessoas. Obedecer às leis significa, então, não-obedecer a pessoas. Mas isso depende do processo que fabricou as leis. Você não tem obrigação moral de obedecer às leis das ditaduras. Assim, leis de exceção podem ser desobedecidas. Por princípio, elas não têm qualquer legitimidade. A legitimidade é o resultado da confluência de vários critérios democráticos: a liberdade, a publicidade, a eletividade, a rotatividade (ou alternância), a legalidade e a institucionalidade. Sim, não basta alguém ter sido eleito para ter legitimidade. Tais critérios – ou alguns deles – são violados não somente pelas ditaduras clássicas, mas também por protoditaduras e, ainda, se bem que em menor escala, por democracias parasitadas por regimes populistas manipuladores. Você mesmo avaliará até onde vão as normas estabelecidas por processos que violam os critérios acima. Se achar que violam, desobedeça-as. E esteja preparado para arcar com as conseqüências, é claro. Um princípio geral da ética do simbionte poderia ser: o único objetivo realmente humano (e humanizante) das leis é assegurar a convivência pacífica das pessoas. Você deve desobedecer aos dirigentes das organizações políticas a que pertence? Eis aqui outra questão recorrente. Liminarmente, você não deve pertencer a organizações que não tomam a democracia como um valor.

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Ora, com exceção das leis democraticamente aprovadas, a democracia não pode aceitar que alguém faça alguma coisa que não quer ou deixe de fazer alguma coisa que quer em virtude de sanção ou ameaça de sanção proveniente de instância hierárquica. Portanto, respeitado o pacto de convivência, é legítima a desobediência política e ninguém é obrigado a acatar uma decisão com a qual não concorde ou mesmo concordando não queira acatar, por medo de sanção, ainda que tal decisão tenha sido tomada por maioria. Obediência nada tem a ver com colaboração, que pressupõe adesão voluntária, seja por concordância, seja por resultado de convencimento ou por livre assentimento. Assim, em coletivos políticos de adesão voluntária, nenhum tipo de disciplina deve ser imposto e nenhum tipo de obediência deve ser exigida dos participantes, além daquelas às regras a que voluntariamente aderiram. Nenhum tipo de sanção pode ser imposta aos participantes, nem mesmo em virtude do descumprimento das regras a que voluntariamente aderiram. Todos têm o direito de não acatar decisões. Ordem, hierarquia, disciplina e obediência, vigilância (ou patrulha) e punição; e fidelidade imposta top down, são virtudes de sistemas autocráticos. Nada disso tem a ver com a democracia. Quanto mais autocrática for uma organização, mais ela insistirá na exaltação de tais “virtudes”. As razões para isso são tão claras que dispensariam comentários. Todas as organizações não-estatais e não baseadas em contratos (de trabalho ou de prestação de serviços) são (ou deveriam ser) constituídas por adesão voluntária. Em organizações voluntárias, “obedece” (ou melhor, acata) quem concorda. Querer exigir disciplina e obediência em relações sociais (stricto sensu) é um absurdo. Impor sanções para quem não obedece é uma violência e, como tal, um comportamento antidemocrático. Organizações que visem chegar à (ou praticar a) democracia (no sentido “forte” do conceito), não podem se organizar autocraticamente para atingir seus fins. Não existe caminho para a democracia a não ser a democratização contínua das relações; ou, parafraseando Mohandas Ghandi, não existe caminho para a democracia: a democracia é o caminho... Você deve desobedecer aos seus patrões? Outra objeção freqüente diz respeito à obediência àquele que paga o seu salário: como você pode não-obedecer aos seus patrões se tem que sobreviver?

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Uma boa regra geral seria: nunca trabalhe para alguém e sim com alguém (em vez de dizer trabalhe com alguém seria melhor dizer: empreenda com alguém). Todas as coisas podem ser feitas em parceria. A obediência não é necessária. Mas é você quem decide. Quanto mais você trabalha para alguém, menos alguém você é. O espírito de liberdade é a fonte de toda criatividade! Para sentir esse sopro criador só há uma via: desobedeça! Você não concorda e querem que você faça assim mesmo? Desobedeça! Uma pessoa (qualquer pessoa, em especial, a sua pessoa) vale muito mais do que a bosta de um emprego. É preciso considerar que a organização piramidal trabalha para o cume. Ou, dizendo de outro modo, a organização centralizada trabalha para o centro, para o chefe, para o líder. E as pessoas que trabalham em geral não aparecem, pois seu papel precípuo é o de fazer o chefe aparecer (ou ficar com o crédito por todas as realizações, inclusive por aquelas alcançadas pelo seu esforço e pela sua inteligência). Aí o chefe fica contente e mantém tais pessoas nas suas funções (empregadas ou contratadas). Se o chefe ficar muito contente com o resultado, pode até retribuir com uma promoção do "colaborador" que lhe fez tão bem as vontades. Ocorre que quando um conjunto de pessoas aplica seus talentos para promover uma atividade, todas as pessoas devem aparecer. Para quê? Ora, para poder ser reconhecidas, para poder compartilhar, aumentar e desenvolver esses talentos. Essa é uma característica central daquele tipo de inteligência tipicamente humana de que falava Humberto Maturana: uma inteligência que cresce e se realiza com a troca, com o jogo ganha-ganha, com a colaboração. Uma inteligência colaborativa. Se as pessoas abrem mão de fazer isso em prol da projeção de outras pessoas que estão acima delas na estrutura hierárquica, elas estão renunciando, em alguma medida, a exercer suas qualidades propriamente humanas. O diabo é que os funcionários burocráticos e outros empregados ou prestadores de serviços em organizações hierárquicas já introjetaram tão fundo as idéias que sustentam tais práticas, que o hábito, já não se diria de servir, mas de ser serviçal, se instalou no andar de baixo da sua consciência (?) e emerge como uma pulsão. Freqüentemente eles se escondem para promover seus superiores, tendo medo, inclusive, de proferir uma opinião própria em uma reunião, escrever um artigo em um blog, dar uma entrevista ou gravar um vídeo para um meio de comunicação. Essas pessoas até se orgulham de habitar a penumbra e se

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vestir de cinza, adotando a servidão voluntária e, com isso, violando sua própria humanidade ou, no mínimo, deixando de explorá-la e desenvolvê-la como poderiam. Alguns fazem isso taticamente (e imaginam que estão agindo conscientemente), em troca do emprego ou da contratação. Argumentam que se não obedecerem e fizerem a vontade dos chefes, perderão a remuneração sem a qual não terão como viver. Mas dá no mesmo. Se, para sobreviver, uma pessoa precisa castrar suas potencialidades, então tal sobrevivência não poderá ser digna. Um trabalho que deixe de promover o desenvolvimento humano de quem trabalha não pode ser digno. Os chefes, por sua vez – como aquele senhor de escravo, escravo do escravo, a que se referia Hegel, em outros termos – também estão aprisionados neste círculo desumanizante. Estão intoxicados pelas ideologias do comando-e-controle e do liderancismo, segundo as quais se não for assim, as coisas não funcionam. De que alguém tem sempre que liderar – quer dizer: mandar nos outros – para que uma ação possa ser realizada a contento. Por isso não se adaptam à cultura e à prática de rede, onde não é possível mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade. É também por isso que organizar as coisas em rede distribuída é um desafio tremendo em um mundo ainda infestado, em grande parte, por organizações hierárquicas. Quando organizações hierárquicas se interessam por redes, quase sempre esse interesse é instrumental. Querem usar as redes para obter alguma coisa que fortaleça os seus objetivos e a manutenção das suas estruturas... hierárquicas! Seus chefes – e isso quando mais ilustrados – acham que usando as "tecnologias de rede" vão conseguir aumentar sua influência, seu poder ou, quem sabe, suas vendas (daí todo esse súbito interesse cretino pelo tal "marketing viral", de resto uma vigarice). As organizações hierárquicas – em termos do ser coletivo que se forma, diga-se: não, é claro, das pessoas que as integram – não vêem as redes como fim, como uma nova forma de interação propriamente humana ou humanizada pelo social, e sim como meio para alguma coisa não-humana. Sim, organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. A afirmação é forte, mas não há como dizer de outro modo se quisermos ir ao coração do problema. Entenda-se bem: as pessoas continuarão sendo humanas, mas o ser coletivo que se forma não será,

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posto que não será 'social' (naquele especialíssimo sentido que Maturana empresta ao termo). O principal é quebrar o círculo vicioso do poder. Em que medida você tem coragem de desobedecer e arcar com as conseqüências? Sua resposta a essa pergunta define o seu campo de liberdade e de possibilidade. Dependendo das circunstâncias, desobedecer pode acarretar demissão, reprovação, agressão, perseguição, condenação, prisão, tortura, mutilação e morte. Você não deve se suicidar. Quando não há condições objetivas para desobedecer (ou seja, quando isso colocar em risco a sua vida ou a vida de terceiros, a sua liberdade ou a liberdade de seus semelhantes) você deve avaliar cuidadosamente os riscos e as possibilidades. Mas nunca deve deixar de desobedecer interiormente. O que importa aqui é sua atitude, vamos dizer assim, espiritual, de desobediência. Não se curve, não se abaixe, não se deixe instrumentalizar, não se conforme em ser mandado, não colabore (voluntariamente) com o poder vertical. Desobedecer é, antes de qualquer coisa, resistir. Quando você resiste ao poder vertical, você estabelece uma sintonia com as grandes correntes de humanização do mundo, quer dizer, dos mundos-bebês que estão gestando o simbionte social. Quando você cede, sujeitando-se a alguém ou sujeitando outras pessoas a você (no fundo, dá no mesmo), contribui para desumanizar os mundos e a você mesmo. O mais importante é: não faça um pacto com a morte. Sim, toda vez que você vende sua alma, sujeitando-se a alguém ou toda vez que você sente um ímpeto de controlar alguém, é sinal de que uma pulsão de morte está irrompendo na sua vida. Se organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos, ao obedecer voluntariamente aos chefes, enquadrando-se nas dinâmicas dessas organizações, você está, na verdade, subordinando-se a seres não-humanos. Ordem => hierarquia => disciplina => obediência Eis é a seqüencia maligna, o círculo vicioso que deve ser quebrado pela saudável desobediência-fluzz (5).

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Nos Highly Connected Worlds estamos todos condenados a inovar permanentemente. Não se trata mais de buscar uma grande inovação para viver dela até o fim da vida: coroar uma bela carreira, inaugurar um grande empreendimento ou amealhar uma fabulosa fortuna. A inovação passa a ser o modo cotidiano de viver e conviver. A maior parte dos sistemas de inovação urdidos por organizações hierárquicas são, de fato, contra a inovação. Não querem a inovação, querem a inovação que eles querem. Ora, mas se eles já sabem qual é a inovação que deve acontecer, então não é inovação. Se fosse, não poderiam conhecê-la de antemão. Via de regra acabam constituindo escolas de inovação (que são túmulos para as novas idéias). Querem usar as novas idéias para justificar as velhas (porque suas escolas, lato sensu, nada mais são do que coagulações de velhas idéias). Em termos de idéias, a inovação acontece quando os muros epistemológicos são perfurados por hifas, viabilizando a polinização, a fertilização cruzada entre campos do conhecimento que foram separados (pelas escolas).

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Grande parte dos que falam em inovação não são inovadores. Inovador é quem inova, não quem fala como a inovação deve ser. Para inovar você deve fazer o contrário do que lhe dizem, do que querem ouvir de você, do que esperam que você faça. Simplesmente, faça diferente. Para tanto, você tem que ter liberdade. Como já foi dito, o espírito de liberdade é a fonte de toda criatividade. Você não pode inovar sob encomenda e vigilância de um sistema que quer que você inove, sim, ma non troppo. É como se lhe dissessem: inove, mas não exagere: não saia fora de nossa visão, não bagunce nossos processos, não desarrume nosso modelo de gestão. A mesma pulsão de morte que exige obediência para disciplinar a interação, quer também disciplinar a inovação. De modo geral, toda inovação é fluzz. Mas inovação-fluzz propriamente dita é aquela que aumenta a interatividade. Grandes inovações-fluzz serão, por exemplo, aquelas que favorecem a articulação de interworlds (por isso os inovadores-fluzz têm muito com que se ocupar na construção das novas internets distribuídas). Ou, dizendo de outro modo, na construção de “membranas sociais”. Ou, ainda, na remoção das separações: entre pessoas (inclusive entre pessoas que falam idiomas diferentes), entre quem busca e quem gera conhecimento, entre dispositivos tecnológicos e o corpo humano e entre pessoas e não-pessoas. Você quer inovar seguindo o curso (ou surfando na onda-fluzz)? Não seja por falta de pauta. Tudo que você inventar para remover a centralização das comunicações e para superar a descentralização da Internet (em direção a mais distribuição) será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para oferecer alternativas às caixas-pretas onde alguém trancou um algorítmo, um programa, um conhecimento (para poder viver à custa de sua inovação aprisionada), será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para derrubar a barreira da língua será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para ensejar que cada busca crie novos significados, evitando que significados únicos sejam arquivados de modo centralizado, será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para aproximar do corpo humano dipositivos tecnológicos nômades que intensifiquem a interação, será inovação-fluzz. Se você quer inovar no mundo digital, nada de copiar os Gates, os Jobs, os Pages, os Stones e os Zuckerbergs. Hoje o signo da mudança não está mais com essa gente e sim, por um lado, com os que estão retomando o espírito libertário dos primórdios e introduzindo inovações em prol do surgimento de government-less internets (em projetos como Openet, Netsukuku, Openmesh, Daihimia, Digitata, Freifunk e wlanljubljana) e, por outro lado, com os que estão tentando construir plataformas i-based adequadas ao netweaving de redes distribuídas.

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Esses são apenas alguns exemplos, apresentados a título ilustrativo, para tentar tornar compreensível um sentido. A rigor, não há como fazer uma pauta concreta das inovações-fluzz porque uma verdadeira inovação-fluzz (como qualquer inovação) é aquela que sequer conseguimos imaginar antes que apareça. Isso não significa, entretanto, que não possamos afirmar que o sentido do curso é +interatividade. Além da desobediência aos que querem aprisioná-lo no mundo de baixa interatividade, para poder se colocar em processo de inovação permanente (ou em processo de Ítaca = em processo de fluzz) você precisa sair da prisão que você mesmo construiu para você ao se aquartelar no seu quadrado para enfrentar o “mundo exterior”.

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Em geral, quando ouvem falar dos temas tratados neste livro, as pessoas dizem: “ - Legal esse papo de rede! Aqui na minha organização, acho que é meio cedo. Ainda estamos aprendendo. Gostaria de ver como funciona na prática. Você tem algum exemplo concreto?” Mas isso não é bom o suficiente. Se você não sair já do seu quadrado, nada pode ser feito. Entretanto, compreender e aceitar a possibilidade da organização em rede distribuída é um processo de aprendizagem mais árduo do que pensam aqueles que agora estão aderindo à moda meio ligeiramente. É um processo que exige uma varrição no subsolo onde estão fundeados os nossos pré-conceitos. Isso quer dizer que as principais resistências às redes não estão propriamente no terreno das idéias que comparecem nos debates, senão naquelas que em geral não se explicitam e a partir das quais formamos nossas concepções. A resistência está nos pressupostos não-declarados. Em qualquer lista tentativa desses pressupostos, comparecerão, pelo menos os quatro seguintes:

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� O ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo (totalmente ou parcialmente).

� As pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação

de seus próprios interesses materiais (egotistas).

� Nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia.

� Sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva.

Nossa “wikipedia memética” está lotada de significadores-replicadores como esses, que privilegiam e propagam determinadas interpretações baseadas na inevitabilidade da centralização. E o problema é que essa “wikipedia” não está arquivada somente nos nossos cérebros e sim na rede social que foi vítima de seguidas centralizações, em razão, justamente, da replicação de memes verticalizadores. O resultado prático dessa impregnação ideológica é que desconfiamos da colaboração. Intoxicados por esses pressupostos antropológicos – falsamente legitimados como científicos – até conseguimos aceitar a colaboração, mas em função da competição com quem está em outro quadrado. Ou – pelo inverso e de maneira aparentemente paradoxal – aceitamos a cooperação com alguns outros quadrados dentro de um campo (não raro para competir com quadrados que estão em outro campo), mas não nos organizamos de forma cooperativa dentro do nosso próprio quadrado. A contradição é apenas aparente: tudo, no fundo, é a mesma coisa. A observação cuidadosa revela que quando não aceitamos a cooperação com os “de fora”, também não conseguimos nos organizar de uma forma que facilite a cooperação entre os “de dentro”. E vice-versa. Nossa capacidade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos organizamos. Um ambiente organizacional favorável à cooperação é aquele cuja topologia é mais distribuída do que centralizada. Quanto mais distribuída for uma rede social, mais fácil é ensejar o fenômeno da cooperação. Ou, dizendo de maneira inversa, quanto mais centralizada for uma estrutura organizacional, mais ela gerará e emulará a competição e seus bad feelings acompanhantes, como a desconfiança. Ao contrário do que sugere o senso comum, a cooperação não é uma característica intrínseca do indivíduo, inata ou adquirida pela sua formação.

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Não decorre de nenhum gene nem da sua boa índole ou da sua alma generosa. Tal fenômeno se manifesta em função dos graus de distribuição e de conectividade da rede social em que uma pessoa está inserida. Quanto mais distribuídas e densas forem as redes sociais, mais elas terão capacidade de converter competição em cooperação, como resultado de sua dinâmica. Elas não convertem pessoas competitivas, beligerantes e possuidoras de forte ânimo adversarial em pessoas cooperativas, pacíficas e amigáveis. Ao favorecer a interação e permitir a polinização mútua de muitos padrões de comportamento, o resultado do “funcionamento” de uma rede social (distribuída) é produzir mais cooperação, como já descobriram (ou estão descobrindo) os que trabalham com o conceito de capital social. As pessoas podem continuar querendo competir umas com as outras, porém, quando conectadas em uma rede (distribuída), esse esforço não prevalece como resultado geral visto que, na rede, elas não podem impedir que outras pessoas façam o que desejam fazer, nem podem obrigá-las a fazer o que não querem. Sim, essa é a essência dos processos de comando-e-controle: mandar nos outros. Essa constatação pode até parecer meio óbvia, mas está longe disso. A prova é a nossa imensa dificuldade de aceitar o padrão de rede dentro de nossas próprias organizações. Nossa dificuldade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos organizamos e não da nossa falta de capacidade de entendimento do assunto. Hoje, como o tema virou moda, as pessoas gostam de falar em redes, no mínimo, para não parecerem ultrapassadas. Mas quando falam em redes, em geral, elas falam da conexão em rede de estruturas centralizadas. Os nodos não são redes. No seu próprio nodo não querem saber dessa conversa. E, para falar a verdade, nem se importam muito com a maneira como os outros nodos se organizam internamente, desde que... fique lá cada um no seu quadrado. É isso então: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Meu “quadrado” é o meu bunkerzinho. É dali que eu enfrento o mundo em vez de me relacionar com ele com abertura. Pode-se argumentar que essa visão é característica do mercado (que tem uma dinâmica competitiva), mas o fato é que ela também comparece em outras formas de agenciamento, como a sociedade civil (cuja racionalidade é cooperativa). Nas empresas e em outras organizações de mercado,

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entretanto, é mais do que uma visão: é uma disposição emocional. Para além de uma racionalidade, é uma emocionalidade que induz a replicação de comportamentos. Por isso é tão difícil para a cultura empresarial aceitar de fato as redes sociais. A cultura empresarial foi contaminada por uma ideologia construída sobre o mercado. É claro que, mesmo do ponto de vista puramente racional, há um problema com a visão que foi construída sobre o mercado, quer dizer, com a visão que parte dos pressupostos assumidos pelos que propagam o liberalismo de mercado. É uma visão que valoriza e emula o chamado “instinto animal” do empreendedor, imaginando que o resultado variacional da confluência das ações de miríades de agentes animados desse espírito belicoso do conquistador, será, ao fim e ao cabo, o do incremento produto. Essa visão, por sua vez, é legitimada pela crença de que o ser humano é por natureza assim mesmo e que cada indivíduo gera suas preferências a partir de uma perspectiva egocêntrica. A interação desses múltiplos inputs seria então capaz de estabelecer uma autoregulação no plano em que se estabelece (quer dizer, no do próprio mercado). Mas como tal esquema não garante coesão social, é preciso escorá-lo com uma concepção política segundo a qual caberia a uma estrutura de poder, supostamente acima das partes, resolver os dilemas da ação coletiva estabelecendo top down a regulação, emitindo normas a partir do Estado ou de outra instância centralizada capaz de cumprir esse papel. Nesse esquema, como se pode ver, não há lugar para a autoregulação societária. E é por isso que, para o liberalismo econômico e sua ‘ciência do crescimento’ – a chamada Economics – a sociedade civil não é uma forma de agenciamento capaz de subsistir por si mesma. Sim, aqui ainda estamos em Hobbes. Padrão variacional de mudança no mercado combinado com lógica normativa do Estado e... nada mais (como provocava Margaret Thatcher no final dos anos 80: “And, you know, there is no such thing as society”) (7). Eis a concepção de mundo que foi produzida. No limite, o mercadocentrismo (não o mercado, mas a ideologia que foi construída sobre o mercado), como qualquer ideologia de raiz hobbesiana, é sempre hierarquizante e autocratizante e, assim, está longe de ser um liberalismo em termos sócio-políticos. Tudo isso contaminou a cultura empresarial, sobretudo das grandes empresas (invariavelmente mancomunadas com o Estado para gerar isso que chamamos de capitalismo), na medida em que essa ideologia foi disseminada pelos novos sacerdotes da modernidade – os economistas –

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que, ademais, adquiriram status científico e trabalham sempre no complexo Estado-Empresa, legitimados pela Universidade. Das grandes empresas, essas crenças extravasaram para as médias e pequenas, cujo sonho não é serem-bem o que são, mas se tornarem grandes. De sorte que uma cultura mais cooperativa só consegue penetrar em certas brechas abertas pela assimetria da competição mercantil: por exemplo, pequenas empresas de um setor aceitam estabelecer laços cooperativos entre si – formando sistemas sócio-produtivos (como os arranjos produtivos locais) – não para compartilhar e inovar a partir da polinização mútua ou da fertilização cruzada de diferentes visões de gestão, processo e produto, mas para concorrer com as grandes e médias empresas ou com outros clusters de pequenas empresas. A cooperação é então compreendida, aceita e justificada pela necessidade de adquirir condições mais competitivas. Não se pode aprender muito sobre redes em organizações hierárquicas. Só muito recentemente, algumas empresas começaram a se dar conta de que um padrão de organização mais favorável à cooperação – tanto internamente, quanto no âmbito dos seus stakeholders – pode ter alguma coisa a ver com sua capacidade de se adaptar tempestivamente às mudanças do meio em que estão inseridas. Colocou-se então, para além da questão da competitividade (e da qualidade e da produtividade como atributos conexos), a questão da sustentabilidade. Mas tal não foi suficiente para alterar os, digamos, drives dos agentes empresariais. Mesmo os mais avançados, que já foram capazes de perceber que tudo que é sustentável tem o padrão de rede e, assim, conseguiram entender a necessidade da transição de sua forma de organização hierárquico-vertical ou centralizada para formas mais horizontais ou distribuídas, mesmo estes, não conseguem mudar seu “código-fonte”. E não conseguem fazê-lo simplesmente porque continuam se organizando de forma hierárquica. Eis o ponto! Até as empresas de consultoria estratégica que atuam na perspectiva dessa transição (e mesmo as que declaram trabalhar com redes sociais) permanecem se organizando de forma mais centralizada do que distribuída. E as teorias e metodologias que aplicam em seus clientes empresariais continuam reforçando visões e práticas hierarquizantes. Um bom exemplo disso são as crenças liderancistas que proliferaram nas últimas décadas, segundo as quais haveria pessoas, por alguma razão, predestinadas a captar pioneiramente as mudanças, que deveriam se destacar das demais, caminhando à sua frente a fim de conduzi-las para o futuro que anteviram.

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A ideologia do liderancismo fornece um bom exemplo da dificuldade de entender as redes sociais. Pois quando falam em líderes os adeptos do liderancismo empresarial estão, na verdade, falando de monoliderança. Não querem muitos líderes e sim apenas alguns (aqueles que se destacam): se muitos puderem liderar, desconstitui-se o papel do líder, pelo menos dentro de cada fortaleza organizativa. Ou melhor, eles até querem líderes, no plural, sim, mas... cada um no seu quadrado. Mais uma vez é isso: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Ora, as redes (distribuídas) constituem ambientes favoráveis à emersão da multiliderança. Mas a observação acrítica de que sempre tem alguém que lidera, que puxa, do contrário a coisa não anda, reforça as tão ingênuas quanto interesseiras crenças liderancistas. Bastaria experimentar uma organização em rede distribuída para ver surgir o “misterioso” fenômeno (o da multiliderança). Ah! Mas esse passo eles não querem dar, porque têm medo de... perder a liderança! Trata-se aqui, como parece óbvio, do monopólio da liderança, que, na sua raiz, está inegavelmente associado não propriamente à propriedade, mas ao uso que dela se possa fazer (diretamente, no caso dos donos; ou por delegação, no caso dos CEOs ou altos dirigentes) para ocupar uma posição de comando-e-controle; quer dizer: para mandar nos outros. A interpretação do líder que se destaca e que seria capaz de ver o que os outros não são capazes e que seria, portanto, capaz de comandar e controlar seus “colaboradores” em prol do bem-comum agrada a todos, vendedores e compradores. Os dirigentes hierárquicos têm seu ego fortalecido e obtêm mais um argumento de peso para justificar seus processos discricionários de tomada de decisões. E ficam motivados para comprar serviços e metodologias baseados nessa metafísica. Mas caminha em direção contrária aos ventos da mudança da sociedade hierárquica para a sociedade em rede. E constitui um obstáculo à necessária transição do padrão de organização das empresas e de outras instituições. É claro – e ninguém pode negar – que existem pessoas visionárias, mais antenadas para captar as tendências e capazes de ver à frente dos seus contemporâneos. O problema é que não se pode atribuir essa “capacidade” a uma condição intrínseca do sujeito, independentemente das funções exercidas por ele nas redes sociais em que está inserido. E, fundamentalmente, não se pode associar essa capacidade às posições ocupadas por ele em organizações hierárquicas, fazendo um raciocínio primário do tipo: se o cara está ali naquela posição é porque demonstrou que é um líder destacado, logo... ele tem (ou tem mais chances de ter) as

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condições (genéticas ou culturais) de captar as mudanças e tem também não apenas o dever mas o direito de conduzir as outras pessoas. Mas posições em estruturas verticais de comando-e-controle são diferentes de funções exercidas em estruturas horizontais de relacionamento. O que confere capacidades extraordinárias a alguns indivíduos, além, é claro, do seu esforço, são as funções assumidas por eles na dinâmica coletiva das fluições que os atravessam e não as posições ocupadas nos degraus da escadinha do poder de mandar nas outras pessoas. Em outras palavras, líderes são expressões do capital social (são produzidos, por assim dizer, em grande parte, pela fenomenologia da rede) e não o resultado de uma competição entre diferentes unidades de capital humano para ver quem chega primeiro. O recente estudo de Malcolm Gladwell (2008) – Outliers – é bastante ilustrativo a esse respeito (8). Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, disse o reizinho. O problema com as organizações hierárquicas é que elas são capazes de aceitar qualquer nova moda, qualquer linguagem vanguardista e qualquer metodologia revolucionária justificada pela metafísica mais influente da hora, suposta ou realmente sintonizada com o Zeitgeist, mas – dos pontos de vista dos padrões de organização e dos modos de regulação – querem continuar sendo como são! Ou como acham que são. Ou como querem ser (9). Isso é mais freqüente nas empresas. Dirigentes empresariais mostram-se predispostos a comprar qualquer coisa inusitada, mesmo aquelas que vêm justificadas por esquemas míticos de interpretação do mundo, da natureza e do ser humano (basta ver o incalculável número de consultorias que proliferou na esteira da New Age) ou aderem, pressurosos, às novas “religiões laicas” que surgem (sobretudo após a falência das grandes narrativas ideológicas utópicas do século 20, como as que hoje pretendem “salvar o planeta” do aquecimento global) desde que: a) não questionem e propriedade; e b) não questionem as formas de organização baseadas no acesso diferencial à propriedade para estabelecer mecanismos de comando-e-controle (mas é aí que está o problema). Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, que delimita o perímetro do meu reino. Sim, pode-se dizer o que se quiser, mas não se pode, honestamente, deixar de encarar o fato de que as empresas – assim como a maior parte das organizações – ainda são monárquicas em um mundo que, pelo menos no que tange às sociedades consideradas mais desenvolvidas, já superou as monarquias (absolutistas) há bem mais de um século.

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O reizinho não se preocupava muito com a maneira como os outros povos (estrangeiros) se organizavam. Mas lá no seu reino, êpa! Aqui mando eu. Era isso: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Se você não está disposto a sair do seu quadrado, abandonando o seu reino, não vai conseguir entrar em outros mundos. Para você, essa conversa de mundos-bebês em gestação não passará de uma divagação abstrata, de uma metáfora sem sentido, de uma especulação ociosa e sem aplicação prática. É justo. Um rei deve ter mesmo a responsabilidade de manter o mundo em que reina (o que significa que ele é o primeiro-escravo do seu reino). Sair do seu quadrado não é bombardear, incinerar, demolir a sua organização, seja ela qual for, tenha ou não fins lucrativos. É iniciar a transição do padrão hierárquico dessa organização para um padrão de rede (10).

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Para iniciar a transição do padrão hierárquico de organização para um padrão de rede, você precisa ser um netweaver. A transição da organização hierárquica para a organização em rede (mais distribuída do que centralizada) é o grande desafio glocal, não de nosso tempo (posto que tal não existe mais como um mesmo tempo para todos) e sim de todos os tempos. Como fazer isso? Pode parecer incrível, mas nós já temos a resposta. Embora, a rigor, não haja nenhuma fórmula, nós já descobrimos a "fórmula" da transição do padrão hierárquico para o padrão rede. Essa "fórmula" é a rede (distribuída). Dito assim, causa surpresa. Mas é, exatamente, isso mesmo. Estamos, já faz tempo, dando voltas na questão para não ir ao centro da questão: articular e animar redes distribuídas. Quase sempre é difícil ver o óbvio. E o óbvio, aqui, é o seguinte: se queremos efetuar a transição de uma sociedade ou organização hierárquica

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(centralizada ou multicentralizada) para uma sociedade ou organização em rede (distribuída), nada mais nos cabe fazer senão netweaving. O nosso problema não está no desconhecimento da "receita" e sim na nossa incapacidade de mostrar que ela é eficaz. Na verdade, o que nos falta são os argumentos suficientes para convencer os hierarcas e seus prepostos das organizações (governamentais e não-governamentais) de que é possível, sim, re-organizar as coisas em um padrão distribuído. Não é o caminho (a direção e o sentido do movimento a ser feito) que nos falta e sim o discurso convincente, os exemplos e as tecnologias (e metodologias) para promover e conduzir tal transição. Como não conseguimos "vender" a idéia, achamos que não temos a "fórmula". Mas nós já temos a "fórmula". Achamos que não temos porque, na maior parte dos casos, não queremos nos organizar – nós mesmos – segundo um padrão de rede distribuída. Então montamos uma empresa de consultoria ou uma ONG hierárquica e queremos sair por aí "vendendo o nosso peixe" para outros hierarcas. É claro que o sujeito (potencial cliente de nossos serviços ou tecnologia) desconfia da nossa conversa. Logo de cara pergunta onde tal coisa foi aplicada com sucesso. Quer conhecer as best practices, porque não quer entrar em uma aventura, seguir um maluco qualquer que anda pregando algo que pode colocar em risco seu negócio ou seu projeto. Uma organização hierárquica copia a outra. É por isso que todas as organizações do mesmo setor ou ramo de negócio ou atividade são tão parecidas. Não somente seus projetos, produtos e serviços são similares, mas também seus processos de produção, seus modelos de gestão e seus sistemas de governança. Se você chega lá falando uma coisa diferente, sua proposta é de pronto considerada out of topic. E há uma associação, tácita e involuntária na maior parte dos casos (e em alguns casos voluntária: quando existe corrupção), entre compradores e vendedores de tecnologias e metodologias. Por quê? Ora, porque organizações hierárquicas competem entre si (e quando colaboram é para competir com outras organizações hierárquicas). A competição nivela e, mais do que isso, torna os competidores semelhantes. Em qualquer disputa você, mais cedo ou mais tarde, adquire as características do seu adversário. É aquela história: para lutar com o urso você adquire garras de urso. Então o comprador quer comprar o que seus concorrentes compram para não ficar para trás. Mas, ao fazer isso, perde completamente a originalidade e reduz sua capacidade de inovar. E, ainda que não desconfie disso, perde também capacidade de “viver” (ou reduz suas chances de alcançar sustentabilidade).

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Bem, mas aí você chega lá falando da transição do padrão de organização e o seu interlocutor quer ver suas credenciais, seu portfólio, seus cases. E você não tem nada disso para apresentar. Tem apenas as suas idéias... Idéias de que uma organização em rede é mais produtiva, mais inovadora e mais sustentável do que uma organização hierárquica. Mas suas idéias não valem muito. E os que olham para você com desconfiança, têm certa razão. Porque não é o seu conhecimento que vai conseguir transformar aquela organização hierárquica em uma organização em rede e sim a maneira como as pessoas vão passar a se relacionar dentro da organização. Seu papel – ao contrário do que muitos acreditam – não é fazer a cabeça dos decisores da organização. Em geral eles são pessoas inteligentes o suficiente para entender suas idéias. Mas isso não adianta porque a organização hierárquica, a despeito do que acreditam seus dirigentes, continuará funcionando na dinâmica do comando-e-controle. Seu papel – se você é, por exemplo, um consultor estratégico voltado à inovação e à sustentabilidade – é desencadear uma mudança nos padrões de convivência entre as pessoas da organização. Mas não são as idéias que mudam os comportamentos. São novos comportamentos que podem gerar novos comportamentos. Ninguém muda se não muda o seu viver. Nenhuma organização muda se não muda o seu conviver. Os chamados modelos mentais são sociais. As mentes não são cérebros individualmente parasitados por idéias e sim nuvens de computação da rede social onde rodam determinados programas meméticos. Esses velhos programas não param de rodar enquanto os graus de distribuição e de conectividade dessa rede social não mudam. E enquanto você, que quer ser um agente da mudança, não muda o seu viver e o seu conviver, também não pode desencadear qualquer mudança. Se, por exemplo, você vier com esse papo de rede, mas trabalhar a partir de uma organização hierárquica, não terá condições de introduzir mudanças. Seu padrão de relacionamento (da sua organização) com a organização que você quer transformar será conservador e não inovador. Não se trata de coerência. É bom não misturar os canais. Não estamos aqui no terreno do discurso ético. Trata-se da capacidade de introduzir estímulos que podem se replicar em um sistema alterando o comportamento dos agentes do sistema. Isso exige outro padrão de consultoria que não aquele do técnico que vai lá vender o seu conhecimento para quem quiser pagar o preço. Só é possível realizar essa consultoria se você for parte do processo, como um dos nodos

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da rede dos stakeholders da organização. Não é uma aplicação tecnológica ou metodológica que possa ser feita por um agente desinteressado, neutro, imparcial. Você também é transformado na interação. Se não for, não haverá mudança alguma. Os caras vão fazer de conta que acreditam no seu discurso, vão experimentar suas tecnologias e metodologias e, no final, você vai sair mais ou menos como entrou e a organização vai ficar mais ou menos como você a pegou. Vai passar a ter um novo discurso – materializado formalmente em novas declarações sobre visão, missão, valores – mas o conviver que expressa os seus fluxos cotidianos permanecerá (quase) inalterado. Hierarquia (ordem top down, disciplina, obediência, monoliderança), desconfiança e inimizade, competição, comando-e-controle são características de programas verticalizadores que rodam na rede social da organização. Não são os indivíduos – ou as idéias que estão dentro das cabeças deles – os responsáveis pela reprodução dessas disposições e sim a configuração e a dinâmica dos arranjos em que as pessoas foram colocadas para viver e conviver. Esses programas verticalizadores (ou softwares centralizadores) já estão rodando há tanto tempo que modificaram o hardware. Não é possível desinstalá-los a partir do discurso ou fazendo a cabeça das pessoas. É necessário mudar o hardware. Como? Ah! Basta aplicar a "fórmula" que – não é demais repetir – nós já descobrimos. Basta alterar a topologia e a conectividade da rede social composta pelos stakeholders da organização. Se fizermos isso, vão emergir conexões em rede (ordem bottom up, liberdade, autonomia, multiliderança), confiança e amizade, colaboração e auto-regulação como características de programas horizontalizadores (ou softwares distribuidores) que poderão (então) rodar nos novos arranjos em que as pessoas vão passar a viver e conviver. Não é necessário mudar os indivíduos. É necessário mudar o padrão de relacionamento entre eles (quer dizer, mudar as pessoas). Mas por onde começar para obter tal resultado? Articulando uma rede distribuída dentro da organização (uma espécie de embrião da rede na qual a organização vai se tornar). Essas pessoas conectadas em rede terão a liberdade de propor mudanças e construir "espelhos" (em rede) dos mecanismos e processos de governança, gestão e produção que estão organizados hierarquicamente. Por exemplo, vão reconfigurar os departamentos, seções ou áreas administrativas da

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organização, superpondo, às caixinhas do velho organograma, novos clusters onde as pessoas vão se aglomerar por afinidade (segundo a máxima: "a melhor pessoa para realizar um trabalho é aquela que deseja fazê-lo"). Vão criar redundâncias mesmo, em todos os lugares em que isso for possível. Na verdade, vão criar uma outra (nova) organização dentro da velha. Mas isso não vai dar uma confusão danada? É claro que vai. Criar uma espécie de Zona Autônoma Temporária (11) dentro da organização, não é uma coisa trivial. Há o risco de bagunçar os atuais processos que, bem ou mal, estão permitindo que a organização sobreviva e muitas vezes se destaque na competição com suas congêneres. Por outro lado, o que se pode ganhar com isso, caso a transição consiga se realizar, é muito mais do que se pode ganhar com qualquer suposta inovação – em geral cosmética – lançada pelas consultorias estratégicas organizacionais da moda, cujo principal resultado é fazer você ficar igualzinho a seus concorrentes. Os indicadores de produtividade, inovação e, sobretudo, de sustentabilidade que uma organização em rede pode alcançar não são comparáveis aqueles que podem ser atingidos por uma organização hierárquica. Não há comparação porque o que muda aqui é a própria natureza da organização. A organização em rede deixará de ser uma unidade administrativo-produtiva isolada e passará a ser uma coligação móvel de stakeholders. Isso significa que ela não contará apenas com os capitais econômicos e extra-econômicos, sempre limitados, que seus investidores ou constituidores são capazes de aportar. Para dar um exemplo, em termos de capital humano, ela não terá à sua disposição apenas algumas dezenas ou centenas (ou, em alguns casos, poucos milhares) de cérebros que contratou e é capaz de pagar e sim dezenas e centenas de milhares. Assim, não terá as dificuldades inerentes – e os custos correspondentes – do aprisionamento de corpos (que sustentam os cérebros alugados) que foi capaz de realizar e funcionará, em grande parte, lançando mão do peer production, do crowdsourcing e do crowdfunding. A organização em rede importará a custo zero (ou por baixo preço) capital social (que é um recurso caríssimo) do meio onde está situada. Se as populações locais começarem a fazer parte da rede de stakeholders da organização, elas também farão parte da comunidade de negócios ou de projeto em que ela se transformará. Isso reduzirá drasticamente os famosos custos de transação, além de trazer outras vantagens inimagináveis atualmente.

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De que transição se trata? Da transição da organização hierárquica para a organização em rede (entendendo-se por isso, a rigor, o aumento dos graus de distribuição-conectividade). Transição evoca caminho. Mas não existe um caminho, em primeiro lugar, porque os caminhos são múltiplos (aliás, rede é, por definição, múltiplos caminhos). Mas também não existe caminho para se chegar a um padrão de rede, em segundo lugar, porque a maneira de ter +rede é tendo +distribuição. Em outras palavras: a rede é o caminho! Não é possível chegar às redes a não ser pelas redes. Mohandas Ghandi disse certa vez que "não existe caminho para a paz: a paz é o caminho". John Dewey, antes de Ghandi – e Amartya Sen, muito depois – já haviam sugerido que não existe caminho para a democracia a não ser a própria democracia. Com as redes é a mesma coisa: 'não existe caminho para as redes: as redes são o caminho'. A paráfrase não é apenas literária. Há uma relação intrínseca entre essas realidades processuais – paz, democracia e redes: na verdade não há paz, senão +pazeamento; e

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não há democracia, senão +democratização; e não há redes, senão +enredamento ou +reticulação ou, ainda, +distribuição. Entendida assim, processualmente, a problemática da transição deixa-se ver sob nova luz. Trata-se de aumentar os graus de distribuição-conectividade na rede social conformada pelas pessoas afetadas, de algum modo, pela vida orgânica: não só os empregados e os gestores, mas também os donos ou acionistas, os fornecedores, os clientes, usuários ou consumidores e todas as outras pessoas concernidas na atividade da organização (os chamados stakeholders, lato sensu). Qual é a novidade aqui? A novidade é a seguinte: isso tem que ser feito agora, não depois. Não pode haver uma transição para uma organização em rede mantendo-se intocado o padrão centralizado atual (+centralizado do que distribuído, entenda-se) em nome de um futuro padrão de rede (+distribuído do que centralizado). Essa é a desculpa para não mexer nos graus de centralização e é por isso que uma transição assim não costuma dar certo. Na transição não existe o futuro a não ser na medida em que o antecipamos. Se não anteciparmos padrões de rede, nunca teremos um futuro de rede. Se queremos chegar às redes, temos que começar, aqui-e-agora, a fazer redes; quer dizer: netweaving. A rede é o caminho! Mas como fazer redes? Não há um guia, um verdadeiro how-to. Por isso, fuja dos receituários. Todos esses receituários contemporâneos que pretendem ensinar a fazer redes, em geral não servem porque confundem redes sociais com midias sociais. Então elencam 5 passos, recomendam 10 medidas, sugerem 15 procedimentos, dão 20 dicas para você usar melhor (?) o seu blog ou alguma plataforma interativa da moda como o Twitter e o Facebook. Mas não falam nada sobre seus encontros com seus amigos na sua casa, nos restaurantes, nas festas, nos seus locais de estudo e trabalho. Ou seja, não falam das redes sociais propriamente ditas. Para aprender, você tem que começar a fazer. Começar conversando, no mínimo, com outras duas pessoas (que não podem estar acima nem abaixo de você em qualquer sentido). Depois você vai ver o que acontece. O essencial é que você não mande em ninguém, nem obedeça a alguém. Só redes podem gerar redes. Os que querem assumir o papel de agentes, indutores, facilitadores, promotores da mudança, não poderão fazer nada se eles mesmos não se organizarem em rede (ou seja, de modo +distribuído do que centralizado). Esta é uma daquelas argumentações evidentes por si

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mesmas, das quais falava Wittgenstein (1931) em conversa com Friedrich Waismann – e narrada por este último em Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle (1979) – que seriam capazes de provocar no interlocutor uma reação do tipo: "Ah, sim, isso é evidentemente óbvio" (12).

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O Pó de Flu (Floo Powder) é um modo de viajar e se comunicar no mundo mágico, que pode ser usado por crianças...

Inventado por Ignatia Wildsmith, é utilizado por muitos bruxos e bruxas

para se transportar para (e através de) todos os lugares que estiverem ligados à Rede do Flu (Floo Network). Da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007)

Perder-se também é caminho. Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)

Livre, livre é quem não tem rumo. Manoel de Barros em Menino do Mato (2010)

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Bem-vindos aos novos mundos-fluzz. Esqueçam suas velhas idéias e práticas de comando e controle. Abram mão de suas noções-século-20 de participação. E se livrem da compulsão de gerir o conhecimento ou organizar conteúdos para os outros (ou juntamente com eles). Preparem-se para entrar no multiverso das interações. Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da rede a variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o modo-de-interagir e suas características, como a freqüência, as reverberações, os loopings, as configurações de fluxos que se constelam a cada instante, os espalhamentos e aglomeramentos (clustering), os enxameamentos (swarming) que irrompem, as curvas de distribuição das variações aleatórias introduzidas pela imitação (cloning) que produzem ordem emergente (a partir da interação), as contrações na extensão característica de caminho (crunch) dentro de cada cluster... Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam interfaces para conversar com a rede-mãe, aquela que existe independentemente de nossos esforços conectivos voluntários e que, para usar uma imagem do Tao, é como o espírito do vale, suave e multífluo, [como] a mulher misteriosa que age sem esforço ao se deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo que não pode ser aprisionado por qualquer mainframe: fluzz. Oh!, sim, redes são fluições. Este livro foi sobre redes.

Os novos mundos altamente conectados do terceiro milênio são aqueles mundos glocais em que fluzz vai sendo desobstruído. Fluzz é obstruído pela centralização das comunicações (e inclusive pela Internet

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descentralizada), mas também por todas as separações que reduzem a interação, desde aquelas impostas pela barreira da língua, passando por aquelas que separam quem busca de quem gera conhecimento e pelas que separam os dispositivos tecnológicos interativos do corpo humano até chegar às que separam pessoas de não-pessoas. Bem-vindos então aos novos mundos-fluzz. Seu dispositivo móvel de interação já se comunica diretamente com outros dispositivos móveis. Seu computador – agora um transceptor, alimentado por baterias recarregáveis por luz ou força mecânica – gera sua própria onda eletromagnética e “fala” diretamente com os outros computadores do seu mundo. Nada de provedores, roteadores, protocolos únicos. No lugar da internet multicentralizada, redes distribuídas. Redes P2P (peer-to-peer). Redes Mesh, ampliadas por replicação em cascata, interconectadas. Seu Foursquare não está mais montado sobre a planta urbana, mas sobre mapas de caminhos no espaço-tempo dos fluxos. Ele passou a ser i-based. Com a ajuda de telas (e tudo pode ser tela), óculos especiais, projeções holográficas ou implantes bio-eletrônicos e cibernéticos, você “vê” o fluxo. Como um precog você antevê o desfecho de configurações em formação, que ainda não se materializaram... E como um novo John Anderton (o protagonista de Minority Report, interpretado por Tom Cruise, mas agora livre e não-perseguido) interage com as coisas: os artefatos, os equipamentos, os prédios, as ruas. Mas com você não ocorre nada parecido com o que se passa na sociedade de controle de Minority Report, o filme de Spielberg (2002) baseado no conto homônimo de Philip K. Dick (1956). Você será mais como aquele Leto, o filho de Paul Atreides, em Os Filhos de Duna, de Frank Herbert (1976) (1). Não há um mainframe. Não há um Arquiteto (o personagem de Matrix Reloaded magistralmente interpretado por Helmut Bakaitis). Acorda! Você não está mais na Matrix. Agora você dispõe de programas i-based de navegação inteligente, da busca (semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos significados). Cada um tem sua própria wikipedia, cada busca P2P é feita em miríades de wikipedias e não em apenas uma (única) instalada em um mainframe. Cada busca revela um resultado diferente porque, na verdade, não existe a busca unilateral: toda busca é uma interação, quer dizer, uma geração de conhecimento-vivo (ou não revela nada além de conhecimento-morto). Cada busca, portanto, deixa um rastro, o rastro daquela particular fluição que se agrega ao resultado da busca análoga seguinte para os que estão trafegando pelo mesmo interworld.

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Nos Highly Connected Worlds todo buscador é um polinizador. Esse interagente é um viajante, um peregrino de mundos e um semeador de mundos, um nômade que não depende mais de workstations instaladas em equipamentos que obstruem fluxos. Dispositivos móveis de navegação e comunicação, objetos interativos nômades ficaram vez mais portáteis e mais decisivos na geração de small-worlds e de interworlds. Os dispositivos tecnológicos deixaram de estar separados do corpo. Eles estão cada vez mais próximos, como certos games que, no passado, começaram a substituir o joystick pelo próprio corpo humano (2); e assim também ocorre com processadores, navegadores e comunicadores que são instalados em relógios de pulso, óculos, pulseiras, anéis, colares, bonés e outros acessórios. Alguns desses artefatos são tradutores-transdutores que funcionam em tempo real permitindo a conversação entre pessoas que falam línguas diferentes. E muito além disso: agora temos dispositivos inseridos – integrados, assimilados ou combinados por simbiose – ao corpo humano. Tornou-se irrelevante a velha discussão sobre aquelas faculdades polêmicas, parapsicológicas, como a telepatia, porque já é irrelevante tê-las na medida em que podemos realizar a interação sem distância ou em tempo real com outros seres humanos e não-humanos, animados ou inanimados, sempre que quisermos. Podemos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar e acelerar a comunicação. Estamos descobrindo em seres não-humanos parceiros simbióticos – semelhantes à psilocibina, na visão de Terence McKenna (1992) (3) ou como as imaginárias “midi-chlorians” da série Star Wars (4) – capazes de nos dotar de mais “percepção” de fluzz ou de ensejar melhores condições de interação. Mas esses avanços tecnológicos, em si, não são nada diante das inovações sociais que surgiram com o auxílio de tecnologias i-based (aliás, tais tecnologias só foram desenvolvidas porque já havia a possibilidade social para o seu surgimento). Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, não-Estados-nações, não-empresas-hierárquicas germinaram e floresceram, dando nascimento a novas variedades de instituições-fluzz baseadas na vida comum e na convivência das pessoas comuns ressignificadas como expressões diretas do multiverso criativo (aquele que cria a si mesmo à medida que se desenvolve). Não é um novo céu e uma nova terra (como expectou Isaias 65: 17): é que o novo céu passou a ser a nova terra; enfim a terre des hommes! Todas as novas possibilidades sociais que permitem a emergência de Highly Connected Worlds estão ligadas à fenomenologia das redes sociais

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distribuídas. Não foi propriamente a descoberta desses novos fenômenos que quebrou as cadeias que nos aprisionavam ao velho mundo e sim a nossa disposição social de deixarmos eles acontecerem.

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É incrível como ficávamos – no mundo único – presos aos conteúdos. Achávamos que eram os conteúdos que podiam fazer a diferença. Foi uma consequência trágica de seis milênios de ensino (quer dizer, da programação das mentes efetuada por alguma organização hierárquica – e todas elas, como vimos, são escolas): o conteúdo é um ensinamento. Do conteúdo para a consciência foi um pulo, ou melhor, um deslizamento (epistemológico). A consciência que queríamos que os outros tivessem deveria surgir quando eles entrassem em contato com determinados conteúdos (que às vezes chamávamos de “conhecimento”). E aí nos esforçávamos para construir, organizar e transferir conhecimentos para os outros. Assim nos tornamos programadores (replicadores) do velho mundo. Fomos programados para ser replicadores: enfiadores de conteúdos na cabeça dos outros. Da consciência para a ética ocorreu outro deslizamento. A ética que queríamos que os outros tivessem era, no fundo, conquanto muitos se esforçassem por negar tal evidência, um conjunto de valores (conteúdos) que viravam normas para direcionar comportamentos. Mas valor – do jeito que foi tomado, de modo genérico – virou uma palavra tola. Valor é o que é

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valorizado por alguém e compartilhado pelos que estão em interação com esse alguém. Não pode existir um valor acima, ou antes, da interação de alguns, que deva valer para todos. E essas idéias que chamávamos de valores não podiam mudar comportamentos: como se, inoculados por elas, passássemos a agir de modo correto ou mais “consciente”. Consciência (entendida nesse sentido deslizado, como conhecimento de um conteúdo ou mesmo, em termos mais sofisticados, como localização da reflexividade no sujeito que sabe que sabe) não pode mudar comportamentos. Pela milésima vez: somente comportamentos mudam comportamentos. Quase tudo no velho mundo hierárquico girava em torno de conteúdos. Mas a grande descoberta que acompanhou a geração dos Highly Connected Worlds foi que o comportamento das redes sociais não depende de conteúdos. Sua fenomenologia é interativa. E todas as formas de interação que foram descobertas pela nova ciência das redes revelaram a mesma coisa: nada a ver com conteúdos. Clustering, swarming, cloning, crunching – nenhuma dessas coisas tem a ver com conteúdo. Não têm a ver com ensinamento (replicação) e sim com aprendizagem (criação). Aprendizagem coletiva que reflete o metabolismo pelo qual os mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se desenvolvem = fluzz. Quando, a partir dessas descobertas, começamos a quebrar as cadeias, deixando as forças do aglomeramento atuarem, o enxamento agir, a imitação exercer o seu papel e os mundos se contrairem, os novos mundos altamente conectados começaram a vir à luz.

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A primeira grande descoberta: tudo que interage clusteriza, independentemente do conteúdo, em função dos graus de distribuição e conectividade (ou interatividade) da rede social. Há muito já se pode mostrar teoricamente que quanto maior o grau de distribuição de uma rede social, mais provável será que duas pessoas que você conheça também se conheçam (essa é a raiz do fenômeno chamado clustering). Em geral não se conhece todas as variáveis que estão presentes em cada processo particular, mas é observável que se formam clusters (aglomerados) em quaisquer redes, não apenas nas redes sociais. Insetos se aglomeram, doenças se aglomeram (e não apenas as contagiosas), empreendedores de um mesmo ramo de negócios tendem a se aglomerar (não é por acaso que encontramos lojas de tecidos, roupas, luminárias ou oficinas mecânicas concentradas em uma mesma rua ou quadra). E isso não depende, como ocorre em certas cidades planejadas (como Brasília) da localização forçada ou top down de setores (setor hospitalar, setor hoteleiro, setor automotivo etc.). É assim que, como mostrou Steven Johnson (2001), os vendedores de seda se clusterizam, há séculos, em determinada localidade de Florença. E voltam sempre para o mesmo lugar

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após as tão seguidas quanto inúteis tentativas de deslocá-los para outras regiões da cidade (5). Os planejadores normativos – como construtores de pirâmides que são – não têm paciência para esperar a clusterização. Na verdade, como seu objetivo é construir organizações hierárquicas, eles não podem esperar a clusterização. A hierarquia exige desatalhamento, quer dizer, a supressão de atalhos entre clusters: só alguns caminhos podem ser válidos (e, por isso, só alguns são validados). Isso dificilmente ocorreria se a clusterização brotasse da dinâmica da rede. Essa é a razão pela qual os planejadores urbanos nunca construiriam uma Florença, tendo que se contentar em erigir suas capitais para algum deus hierárquico (como fez Amenófis IV para o deus Aton) ou arquitetar suas cidades-sede para o Estado, não para a sociedade (como aquela Brasília que foi inaugurada antes da convivência social dos brasilenses; depois estes últimos começaram a conformar a verdadeira Brasília modificando os estranhos caminhos traçados pelos planejadores). A diferença entre o zigurate de Uruk e o assentamento temporário do festival Burning Man revela quase tudo: poucos caminhos x múltiplos caminhos. Ao articular uma organização em rede distribuída não é necessário pré-determinar quais serão os departamentos, aquelas caixinhas desenhadas nos organogramas. Estando claro, para os interagentes, qual é o propósito da iniciativa, basta deixar as forças do aglomeramento atuarem. Em pouco tempo (a depender da interatividade da rede), surgirão clusters agregando pessoas que se dedicarão às funções necessárias à realização daquele propósito: alguns se juntarão para cuidar da criação, outros para cuidar dos relacionamentos com os stakeholders, outros, ainda, da produção ou do delivery etc. Até certos eventos planejados autonomamente por pessoas diferentes (que não se conhecem entre si) se aglomeram e isso é revelador de um metabolismo da rede, de uma dinâmica invisível que ocorre no espaço-tempo dos fluxos. Nada a ver com conteúdo. A partir do clustering outros fenômenos supreendentes ocorrem em uma rede, como o swarming.

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A segunda grande descoberta: tudo que interage pode enxamear. Swaming (ou swarm behavior) e suas variantes como herding e shoaling, não acontecem somente com insetos, formigas, abelhas, pássaros, quadrúpedes e peixes. Em termos genéricos esses movimentos coletivos (também chamados de flocking) ocorrem quando um grande número de entidades self-propelled interagem. Algum tipo de inteligência coletiva (swarm intelligence) está sempre envolvida nestes movimentos. Já se sabe que isso também ocorre com humanos, quando multidões se aglomeram (clustering) e “evoluem” sincronizadamente sem qualquer condução exercida por algum líder; ou quando muitas pessoas enxameiam e provocam grandes mobilizações sem convocação ou coordenação centralizada, a partir de estímulos que se propagam P2P, por contágio viral. E não ocorre apenas como uma forma de conflito, como ficamos acostumados a pensar depois que Arquilla e Ronsfeld (2000) produziram para a Rand Corporation seu famoso paper “Swarming and the future of conflict” (6). Um exemplo conhecido dos efeitos surpreendentes do swaming – no caso, civil – foi a reação da sociedade espanhola aos atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004 (7).

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Escrevendo sobre isso, ainda preso as visões do swarming como netwar, David de Ugarte (2007), em O poder das redes, acerta porém quando diz:

“Como organizar, pois, ações em um mundo de redes distribuídas? Como se chega a um swarming civil? Em primeiro lugar, renunciando a organizar. Os movimentos surgem por auto-agregação espontânea, de tal forma que planificar o que se vai fazer, quem e quando o fará, não tem nenhum sentido, porque não saberemos o quê, até que o quem tenha atuado” (8).

O swarming (enxameamento) é uma forma de interação. Deixar o enxameamento agir significa ‘renunciar a organizar’, quer dizer, a disciplinar a interação. O fenômeno acontece com mais rapidez em função direta dos graus de conectividade e de distribuição da rede. Em mundos altamente conectados tais movimentos tendem a irromper com mais frequência. E é por isso que eles surgem por emergência, não supervêm a partir de qualquer instância centralizada. Assim, do que se trata é de deixar mesmo. As tentativas de provocar artificialmente swarmings, instrumentalizando o processo para derrotar um adversário, destruir um inimigo, disputar uma posição, vencer uma eleição ou vender mais produtos batendo a concorrência, em geral não têm dado certo. Todas elas acabam, contraditoriamente, fazendo aquilo que negam: tentando organizar a auto-organização. E ainda bem que tais tentativas fracassam: do contrário viveríamos em mundos altamente centralizados por aqueles que possuíssem o segredo de como desencadear swarmings. De posse desse conhecimento (que logo seria trancado), um partido poderia eleger seus candidatos (e mantê-los no poder indefinidamente) ou uma empresa poderia reinar sozinha no seu ramo de negócio. Nada a ver com conteúdo. Na sua intimidade, o processo de swarming pressupõe clustering e se propaga por meio de cloning.

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A terceira grande descoberta: a imitação também é uma das formas da interação e, desse ponto de vista, a imitação é uma clonagem. Poucos perceberam isso. Como pessoas – gholas sociais – todos somos clones, na medida em que somos culturalmente formados como réplicas variantes (embora únicas) de configurações das redes sociais onde estamos emaranhados. O termo clone deriva da palavra grega klónos, usada para designar "tronco” ou “ramo", referindo-se ao processo pelo qual uma nova planta pode ser criada a partir de um galho. Mas é isso mesmo. A nova planta imita a velha. A vida imita a vida. A convivência imita a convivência. A pessoa imita o social. Sem imitação não poderia haver ordem emergente nas sociedades humanas ou em qualquer coletivo de seres capazes de interagir. Sem imitação os cupins não conseguiriam construir seus cupinzeiros. Sem imitação, os pássaros não voariam em bando, configurando formas geométricas tão surpreeendentes e fazendo aquelas evoluções fantásticas.

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A imitação não é algo ruim, como começamos a pensar depois que surgiram os sistemas de trancamento do conhecimento (como, por exemplo, as leis de patentes e o direito autoral). A preocupação deslocou-se então da criação para a fraude, passando a ser um caso de polícia. Mas não há aprendizagem sem imitação. Learn from your neighbours é a diretiva geral de auto-organização dos sistemas complexos e, portanto, de qualquer sistema capaz de aprender. Quando imitamos, introduzimos variações. Nunca reproduzimos nada fielmente (isso seria impossível em qualquer mundo em que as condições são mutáveis e os imitadores são diferentes dos imitados). A propagação dessas variações se distribui de uma maneira estranha. Você não imita uma-a-um ou um de cada vez. O que você imitou (e variou) vai ser imitado por outro (e ser também variado). Além disso, você imita vários ao mesmo tempo, combina e recombina modelos a ser imitados e essas recombinações também se propagam gerando novos padrões de adaptação emergentes. Isso é o que chamamos aqui de cloning. Foi assim que nasceu a vida (o simbionte natural). É assim que está nascendo a convivência social “orgânica” (ou o simbionte social) nos Highly Connected Worlds. Ao contrário do que se acreditou por tanto tempo, não há inovação sem imitação. E quanto mais imitação, mais inovação. Imitação não é propriamente repetição, reprodução assistida. Imitação é uma função dos emaranhados em que as coisas – inclusive os humanos – sempre estão. Na verdade, nossos esforços educativos, ao querermos preparar as pessoas e orientá-las para que cumpram adequadamente uma função (em geral uma função que queremos que elas cumpram), são, em grande parte, tentativas de condicioná-las (ao que queremos que elas façam) e administrá-las (para que elas façam o que queremos do jeito que queremos). Se não estamos preocupados com comando-e-controle, tal esforço é quase sempre inútil. Bastaria deixar que elas aprendessem. Deixar-aprender é a solução-fluzz para a educação (que, como tal – como ‘a’ educação – é então abolida). E é também, sob certo ponto de vista, uma definição de democracia (no sentido “forte” do conceito). Como naquelas experiências promovidas por Sugatra Mitra com crianças de localidades pobres da Índia, que nunca haviam visto um computador e que aprenderam, elas mesmas, em grupo, não somente a usar a máquina e a rede, mas aprenderam a aprender em rede por meio da máquina, é preciso

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deixar as pessoas aprenderem na interação. Mitra não ensinava nada, simplesmente entregava computadores conectados às crianças e dizia: “ – Vejam aí o que vocês podem fazer, voltarei daqui a um mês”. Ao voltar verificava que elas haviam feito prodígios. Nessas experiências a aprendizagem fundamental era sempre a da interação (no grupo dos aprendentes) (9). Mas isso vale para qualquer aprendizagem. A imitação não deve ser apenas tolerada senão estimulada (e se os chamados educadores soubessem disso incentivariam a cola nas suas provas ao invés de montar sistemas para vigiar e punir os transgressores: argh!). Quando tentamos orientar as pessoas sobre o quê – e como, e quando, e onde – elas devem aprender, nós é que estamos, na verdade, tentando replicar, reproduzir borgs: queremos seres que repetem. Quando deixamos as pessoas imitarem umas as outras, não replicamos; pelo contrário, ensejamos a formação de gholas sociais. Como seres humanos – frutos de cloning – somos seres imitadores. Nada a ver com conteúdo. Nos mundos altamente conectados o cloning tende a auto-organizar boa parte das coisas que nos esforçamos por organizar inventando complicados processos e métodos de gestão. Mesmo porque tudo isso vira lixo na medida em que os mundos começam a se contrair sob efeito de crunching.

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A quarta grande descoberta: small is powerful. Essa talvez seja a mais surpreendente descoberta-fluzz de todos os tempos. Em outras palavras, isso quer dizer que o social reinventa o poder. No lugar do poder de mandar nos outros, surge o poder de encorajá-los (e encorajar-se): empowerment! Sim, como já foi dito aqui, fluzz é empowerfulness. Quando aumenta a interatividade é porque os graus de conectividade e distribuição da rede social aumentaram; ou, dizendo de outro modo, é porque os graus de separação diminuiram: o mundo social se contraiu (crunch). Steven Strogatz observou em 2008 que os graus de separação não estavam apenas diminuindo: eles estavam despencando (10). De uma perspectiva-fluzz, podemos afirmar que – sob o efeito desse amassamento (Small-World Phenomenon) – somos nós que estamos despencando... no abismo! Nada a ver com conteúdo. Tudo que interage tende a se emaranhar mais e a se aproximar, diminuindo o tamanho social do mundo. Quanto menores os graus de separação do emaranhado em você vive como pessoa, mais empoderado por ele (por esse emaranhado) você será. Mais alternativas de futuro terá à sua disposição. Mais parcerias e simbioses poderá fazer para

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realizar qualquer coisa. Mais rico (de conexões) e mais poderoso (de empoderamento) você será, porque terá mais recursos (meios) e mais capacidade (potencialidade) de alterar disposições no espaço-tempo dos fluxos. Novamente é o caso de dizer (pela terceira vez neste livro): bem, isso muda tudo. Nos Highly Connected Worlds a contração (crunching) é acelerada. Em pouco tempo sua timeline fica tão caudalosa que você é arrastado pela correnteza. Não adianta mais erigir muros para tentar se proteger da interação: como se sabe, a enxurrada, quando vem, leva tudo. Então você vai ter que aprender a viver em fluxo. Isso muda tudo porque muda a natureza do que chamávamos de normas e instituições, processos e rotinas, planos e agendas e, inclusive, propriedades (incluindo propriedades imobiliárias, como nossas casas – nossos refúgios contra as intempéries e nosso espaço privado, separado dos outros e protegido da interação com o outro-imprevisível). Uma vida em fluxo é uma vida nômade. No passado temia-se que isso nos colocasse na dependência de dispositivos interativos móveis – e-readers e tablets – mochilas e naves. Quá! Tudo isso já é passado. Os dispositivos separados do corpo vão sendo substituídos por implantes conectores, as máquinas de ler livros e os computadores-comprimidos vão virando objetos tão jurássicos como aqueles velhos computadores-armários que rodavam fitas magnéticas e liam cartões perfurados. As mochilas vão ficando cada vez menores na medida em que não há muito para carregar (e carregar para onde?). As naves, entretanto, permanecem, mas são outra coisa. Em um mundo contraído você precisa mesmo é da nuvem. Não de se conectar à alguma nuvem (criada por algum mainframe) para armazenar e acessar seus arquivos (quer dizer, o passado). Agora você é a nuvem. Agora você é a nave: como nas velhas catedrais góticas (pelo menos nas intenções dos pedreiros-livres que as construíram), você viaja sem sair do lugar (porque o lugar também passa a ser outra coisa). A nuvem é o emaranhado que viaja pelos interworlds junto com você. E esse emaranhado é o seu lugar. O seu lugar não é você (arrumando um jeito de ficar prevenido) contra o outro: o seu lugar é o outro. Deixe os mundos se contrairem para ver só o que acontece.

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A quinta grande descoberta: é possível conversar com a rede-mãe e é possível programá-la. Se você é um netweaver, seu papel não é construir conteúdos, mas interfaces para conversar com a rede-mãe. É ser um nômade, um viajante dos interworlds. As interfaces são os interworlds. Interworlds são os meios pelos quais o que foi separado pode se reconectar. Todas as coisas sociais (esses emaranhados que chamamos de pessoas) se reconectam quando são devolvidas à rede-mãe. Quando são livres para fazer isso: amagi. Para tanto, porém, é necessário remover o que está impedindo essa volta, não fazer discursos. Você não precisa convencer os outros dessas coisas (o que é sempre sinal de que você não está realmente convencido). Não precisa fazer proselitismo de uma nova visão de mundo, de uma nova ideologia, de uma nova filosofia, de uma nova religião. As pessoas já querem se comunicar com a rede-mãe, não é necessário induzi-las, compeli-las, conduzi-las. Dançar, brincar e jogar foram as formas de tentar conversar com a rede-mãe que conseguiram sobreviver sob a civilização hierárquica.

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Quando, por exemplo, você vê uma jovem querendo ser dançarina, cantora, é fluzz que está ali naqueles desejos muitas vezes inexplicáveis. Ela não quer fazer sucesso, se destacar dos semelhantes. Isso pode vir depois, quando for capturada por uma organização hierárquica. No início ela quer apenas vibrar no mesmo ritmo da intermitente criação, acompanhar a vida nômade das coisas, respirar com elas, reconhecer e ser reconhecida por outras pessoas capazes de se deixar empatizar... A dança, a música... são movimentos-fluzz de sintonização. Depois vem alguma fraternidade disciplinando tudo, ensinando você a ser dervixe. Em algum lugar perdido da Ásia Central, entre o Cazaquistão, o Uzbequistão, o Turcomenistão, o Arzebaijão, sabe-se lá, eles vão treiná-lo até que você repita exatamente os mesmos movimentos sincronizados, execute as mesmas evoluções com perfeição. Não é que não haja conhecimento ali (deve haver, e muito). No entanto, não é mais de conhecimento que se trata. Os pássaros e os peixes fazem isso, apenas aglomerando, enxameando, imitando (clonando), enfim, interagindo com os semelhantes em seus mundos pequenos (amassados). E a forma como eles expressam suas interações – por flocking ou shoaling – revela o metabolismo do simbionte natural: apenas deixando acontecer. Trata-se agora de fazer alguma coisa correspondente em relação à segunda criação do mundo: o simbionte social. Como? Não se sabe. Você vai ter que perguntar à rede-mãe. Para conversar com ela, você só precisa construir interfaces. Ou melhor: você – a núvem – só precisa ser interface. A brincadeira e o jogo vão adquirindo outro status nos mundos altamente conectados. Tudo vai virando jogo. Com a abolição do trabalho (repetitivo) a atividade produtiva (inovadora) vai se exercendo como creative game e vai materializando aquele sonho de Bob Black (1985) quando disse: “O que eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em jogo”. Social games vão substituindo os programas ditos sociais ou de desenvolvimento. Ao contrário do que se pensou, social games não são games virtuais coletivos – que pressupõem colaboração entre pessoas – para serem jogados no mundo virtual, por meio de computadores ou outros dispositivos interativos digitais. Social games são jogos instalados na rede social, que "rodam" na própria rede social e que permitem programá-la (ainda que possam ter um espelhamento no mundo virtual e ser operados, em parte, por meio de computadores ou outros dispositivos interativos digitais). Sim, se você está disposto a ser um netweaver, você pode agora programar na rede-mãe através da interface que construiu.

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Este foi um livro para netweavers. Ele contém uma espécie de “linguagem de máquina”. Se você aprender essa linguagem poderá programar na própria rede-mãe. Mas... atenção: nessa plataforma você só pode programar com sua vida. Para tanto, é justo o contrário do que lhe disseram na sociedade hierárquica. Do que se trata é de perder sua vida, não de preservá-la, de administrá-la, de programá-la, pré-traçando um caminho e monitorando seu progresso nesse caminho rumo ao sucesso. É claro que você, se quiser, pode fazer isso. Mas depois não reclame que não conseguiu perder-se: e perder-se é o único modo de encontrar-se, aquele poético “perder-se também é caminho” de Clarice Lispector é o caminho-fluzz, quer dizer, o caminho-não-caminho (11). Ou na síntese tão perfeita de Manoel de Barros (2010): “Livre, livre é quem não tem rumo” (12). E depois não reclame que não acontece nada de interessante em sua vida: o interessante é sempre o inesperado, não o programado (e, como dizia Heráclito, “espere o inesperado ou você não o encontrará”) (13). Ter essa atitude-fluzz é algo assim como usar aquele “Pó de Flu” – da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007) – para se transportar para todos

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os lugares que estiverem ligados à Floo Network; ou seja: ligar a imaginação que voa. Para se comprometer com aves, como escreveu um daqueles poetas que sabem tudo de redes (sim, fluzz se revela aos poetas): “Os adejos mais raros se escondem nos emaranhos” (14). Nos emaranhos, como diz um bom lema (recentemente capturado pelos publicitários), você é o que você compartilha, ao se deixar varrer pelo sopro, ao ser permeável ao fluxo. Se você está esperando algum momento especial para que isso aconteça na sua vida, fique sabendo que tal momento não existe. Você não precisa aguardar a abertura de uma janela de oportunidade. Você não precisa se preparar. Você não precisa galgar os degraus de um processo iniciático, percorrer uma trilha oculta, aguardando pacientemente que alguma burocracia espiritual lhe reconheça ou lhe escolha. Se lhe oferecerem esta via, agradeça penhorado, mas diga que você está ocupado no momento com uma coisa mais importante: ser uma pessoa comum. Ao contrário do que Morpheus diz para Neo (15) em The Matrix (1999) não há uma última chance. Enquanto você respirar, a chance estará presente. E não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por fluzz. Independe do que você acredita ou queira acreditar. Tanto faz. Não acredite em Morpheus, não acredite em nada – nem mesmo no que você leu neste livro –, mas cante como Lennon & McCartney Let it be e… pule no abismo. Seja um Meher Baba, assobie com Bobby McFerrin Don’t worry, be happy e... salte na correnteza. Fale como Yoda: Não tente, faça e... entregue-se ao nada (sim, ouça agora Morihei Ueshiba, fundador do Aikido: “Aqueles que são possuídos pelo nada possuem tudo”). Ou, como disse algures o Bhagwan Shree Rajneesh (mais conhecido como Osho), “deixe de lado todas as ideologias, todas as filosofias, todas as religiões, todos os sistemas de pensamento e penetre no vazio”. E agora? Você vai tomar a pílula azul ou a vermelha? Ora, talvez você não precise escolher nenhuma das duas. Já não se trata bem de fazer escolhas. Você pode se atirar no rio e... simplesmente deixar. Mas como? – Depois de ler isso tudo ainda não sei bem o que é fluzz. Pois é... Você ainda não entendeu que tem que pular no abismo?

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Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente...

Fernando Pessoa (como Ricardo Reis, em 12/06/1914)

Ser como o rio que deflui silencioso dentro da noite.

Manoel Bandeira no poema Rio, em Belo Belo (1948)

Não passamos de remoinhos num rio de água sempre a correr.

Norbert Wiener em Cibernética e sociedade (1950)

Deixe-me ser o que sou, o que sempre fui,

um rio que vai fluindo.

Mario Quintana em Água: os últimos textos (2001)

Eu me atirei num rio... [e] simplesmente deixei.

Mojud, personagem da história sufi (s/d) “O homem cuja história era inexplicável”

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Notas e referências

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Tudo é fluzz | 0 (1) Sobre a palavra fluzz, ver Apresentação. (2) BARROS, Manoel (1993). “Uma didática da invenção” in O Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2004. (3) Cf. DIAZ, Jesus (2010). Humans can only walk in circles and we don’t know why. Gizmodo: <http://www.npr.org/blogs/krulwich/2010/11/03/131050832/a-mystery-why-can-t-we-walk-straight> (4) BARROS, Manoel (1993). “Mundo pequeno” in O Livro das Ignorãças: Ed. cit. (5) KOESTLER, Arthur (1967). O fantasma da máquina. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

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No “lado de dentro” do abismo | 1 (1) SCHOLEM, Gershom (1941). As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972. (2) Cf. Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993.

O HOMEM CUJA HISTÓRIA ERA INEXPLICÁVEL

Era uma vez um homem chamado Mojud. Ele vivia numa cidade onde havia conseguido um emprego como pequeno funcionário público, e tudo levava a crer que terminaria seus dias como Inspetor de Pesos e Medidas. Um dia, quando estava caminhando pelos jardins de uma antiga construção próxima à sua casa, Khidr, o misterioso guia dos sufis, apareceu para ele, vestido em um verde luminoso. Então Khidr disse: - Homem de brilhantes perspectivas! Deixe seu trabalho e se encontre comigo na margem do rio dentro de três dias. E assim dizendo, desapareceu. Excitado, Mojud procurou seu chefe e lhe disse que ia partir. Todos na cidade logo souberam desse fato e comentaram: - Pobre Mojud. Deve ter ficado louco. Mas como havia muitos candidatos a seu posto logo se esqueceram dele. No dia marcado Mojud encontrou-se com Khidr, que disse: - Rasgue suas roupas e se jogue no rio. Talvez alguém o salve. Mojud obedeceu, embora se perguntasse se não estaria louco. Como ele sabia nadar, não se afogou, mas ficou boiando à deriva por um longo trecho antes que um pescador o recolhesse em seu bote, dizendo: - Homem insensato! A corrente aqui é forte. Que está tentando fazer? - Na realidade eu não sei - respondeu Mojud. - Você está louco - disse o pescador. - Mas o levarei à minha cabana de junco próximo ao rio e veremos o que se pode fazer por você.

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Quando o pescador descobriu que Mojud era bem instruído, passou a aprender com ele a ler e a escrever. Em troca Mojud recebeu comida e ajudou o pescador em seu trabalho. Alguns meses depois Khidr reapareceu, desta vez junto à cama de Mojud, e disse: - Levante-se e deixe o pescador. Será provido do necessário. Vestido como pescador, Mojud imediatamente deixou a cabana e perambulou sem rumo até encontrar uma estrada. Ao romper da aurora viu um granjeiro montado num burro. - Procura trabalho? - perguntou o granjeiro. - Estou precisando de um homem que me ajude a trazer algumas compras. Mojud o acompanhou. Trabalhou para o granjeiro durante quase dois anos, quando aprendeu muito sobre agricultura, mas pouco sobre outras coisas. Uma tarde, quando estava ensacando lã, Khidr fez nova aparição e disse: - Deixe esse trabalho, dirija-se à cidade de Mosul e empregue as suas economias para tornar-se mercador de peles. Mojud obedeceu. Em Mosul tornou-se conhecido como mercador de peles, sem voltar a ver Khidr durante os três anos em que exerceu seu novo ofício. Tinha reunido uma considerável quantia e estava pensando em comprar uma casa quando Khidr lhe apareceu e disse: - Dê-me seu dinheiro, afaste-se desta cidade rumo à distante Samarkanda e lá passe a trabalhar para um merceeiro. Foi o que Mojud fez. Logo começou a demonstrar sinais incontestáveis de iluminação. Curava os enfermos e servia a seu próximo tanto no armazém como nas horas de lazer. Seu conhecimento dos mistérios da vida se tornou cada vez mais profundo. Sacerdotes, filósofos e outros o visitavam e indagavam: - Com quem você estudou? - É difícil dizer - respondia Mojud. Seus discípulos perguntavam:

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- Como iniciou sua carreira? - Como um pequeno funcionário público - respondia. - E você deixou seu emprego para dedicar-se à automortificação? - Não. Simplesmente o deixei. Eles não podiam compreendê-lo. Pessoas o procuravam para escrever a história de sua vida. - O que você foi, em sua vida? - perguntavam. - Eu me atirei num rio, me tornei pescador e, no meio de uma noite, abandonei uma cabana de junco. Depois disso me converti em ajudante de um granjeiro. Enquanto estava ensacando lã, mudei de idéia e fui para Mosul, onde me tornei vendedor de peles. Lá economizei algum dinheiro, mas o dei. Caminhei para Samarkanda, onde trabalhei para um merceeiro. E aqui estou agora. - Mas esse comportamento inexplicável não esclarece de modo algum seus estranhos dons e maravilhosos exemplos - diziam seus biógrafos. - Assim é - dizia Mojud. Então os biógrafos teceram uma história maravilhosa e excitante em torno da figura de Mojud, porque todos os santos devem ter suas histórias, e a história deve estar de acordo com a curiosidade do ouvinte, não com as realidades da vida. E a ninguém é permitido falar de Khidr diretamente. É por isso que esta história não é verídica. É a representação de uma vida. A vida real de um dos maiores santos sufis.

(3) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811). Memórias: Poesia e Verdade. Brasília: Hucitec, 1986. (4) BANDEIRA, Manoel (1948). O rio (Belo Belo) in Bandeira: Antologia Poética. São Paulo: José Olympio, 1954. (5) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984). A Árvore do Conhecimento. Campinas: Psy II, 1995. (6) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811): Op. cit. (7) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August 1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.

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(8) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001. (9) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. (10) BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ. São Paulo: Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura, s/d. (11) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es uma obra de arte. Bogotá: Cooperativa Editorial Magistério, 1993. (12) McLuhan em uma palestra pública – intitulada “Viver à velocidade da luz” – em 25 de fevereiro de 1974, na Universidade do Sul da Flórida, em Tampa, explicando o que entendia por seu famoso aforismo “o meio é a mensagem”: “Significa um ambiente de serviços criado por uma inovação, e o ambiente de serviços é o que muda as pessoas. É o ambiente que muda as pessoas, e não a tecnologia. (Mc Luhan por McLuhan, de David Staines e Stephanie McLuhan (2003). São Paulo: Ediouro, 2005. Título original: Understanding me: lectures and interviews. <http://trick.ly/4ra> (13) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (14) COLEMAN, James (1988). “Social Capital in the creation of Human Capital”, American Journal of Sociology, Supplement 94, 1998. (15) Vf. Swarming civil espanhol in UGARTE, David (2004). 11M: Redes para ganar una guerra. Barcelona: Icaria, 2006. (16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Redes são ambientes de interação, não de participação. Slideshare [4.425 views em 22/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/redes-so-ambientes-de-interao-no-de-participao> (17) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.171 views em 22/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia> (18) Cf. WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993. (19) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984): Op. cit. (19) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

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(21) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro: Sextante, 2008. (22) Cf. UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008. (23) HERBERT, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (24) GORDON, Deborah (1999): Op. cit. (25) BUCHANAN, Marc (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010. (26) BUARQUE, Chico (1971). “Construção” in Construção (Álbum LP). Phonogram-Philips, 1971. (27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra). (28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit. (29) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1.890 views em 22/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-versao> (30) BRAFMAN, Ori e BECKSTROM, Rod (2006): Quem está no comando? A estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes. Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2007. (30) FRANCO, Augusto (2010): Desobedeça. Slideshare [5.157 views em 22/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea>

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Inumeráveis interworlds| 2 (1) Cf. LORCA, Frederico Garcia (1924). “Canción Tonta” in Canciones (Obras Completas I). Madrid: Aguilar, 1978. (2) BARROS, Manoel (1993). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (3) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo: 15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p. 5-3). O texto está disponível em: <http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-de-neuronios> (4) Cf. FRANCO, Augusto (1998). O Complexo Darth Vader. Slideshare [469 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-complexo-darth-vader>

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Pessoa já é rede | 3 (1) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (2) CASTELLS, Manoel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (3) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam inveniam” cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

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Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4 (1) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote: <http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca> Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia de SENECA: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/> (2) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum livro em vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e Haroldo de Campos em: <http://www.org2.com.br/kavafis.htm> (3) KAVÁFIS: Op. cit. (4) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder das conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. (5) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (6) HOBBES: Op. cit. (7) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit. (8) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years of microbial evolution. Los Angeles: University of California Press, 1997. (9) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1893 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-versao> (10) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente vulcana” in EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a ira de Kant. São Paulo: Madras, 2010. (11) O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus. Vulcanos não vêem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou filosófica. Eles tratam isso como um simples fato que insistem não ser mais incomum ou difícil de entender do que a habilidade de ouvir ou ver” [como escreveu o criador da série Star Trek, Gene Roddenberry (1979)]. Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo

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dizer “uma combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a existência valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf. RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket Books, 1979. (12) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já morto na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra para advertir aos persas que jamais movam novamente uma guerra aos gregos. Depois de dar adeus aos anciãos e de recomendar que, mesmo “em meio a desgraças, alegrem-se na fruição do mundo... a Sombra de Dario esfuma-se no túmulo”. (13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.

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Hifas por toda parte | 5 (1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorion (1998). O que é vida? Rio de Janeiro: Zahar, 2002. (2) A quase totalidade dos procedimentos e mecanismos de obstrução de fluxos, estabelecidos nas organizações a pretexto de segurança, não se justifica (em mais de 90% dos casos, não há nada de realmente decisivo, estratégico ou sigiloso que deva ser protegido ou não-compartilhado, fechado e trancado em vez de permanecer aberto e disponível). Isso vale para os protocolos de segurança impostos pelas áreas chamadas de “tecnologia da informação”. Não há qualquer ganho em proibir o acesso dos funcionários de uma organização ao Youtube ou ao Messenger, ao Slideshare ou ao 4shared, ao Facebook ou ao Twitter. Não há nenhuma razão para impor programas de e-mail proprietários, lentos, pesados e com limitações enervantes de poucos megabytes no lugar de adotar correios eletrônicos web mais eficazes, rápidos, com alta capacidade e, além de tudo, gratuitos (como o gmail ou o ymail). Não há nenhum motivo para editar hierarquias de permissões diferenciais e preferências de acesso a conteúdos que, se fossem realmente secretos (como listas de espiões ou processos de fabricação de artefatos de destruição em massa), não poderiam mesmo estar em rede. E não há explicação plausível para a manutenção de intranets, sobretudo em uma época em que já existe a Internet. (3) Por exemplo, cabeças hidrofílicas com caudas hidrofóbicas em conjugação com fosfolípidos, aglomerados de proteínas globulares, glicoproteínas, glicolipídios, colesterol, proteínas extrínsecas etc. (4) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.172 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia> (5) WARHOL, Andi (1968). Cf. “15 minutes of fame” em <http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame>

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O terceiro milênio já começou? | 6 (1) MCLUHAN, Marshall (1979). “O homem e os meios de comunicação” in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003). McLuhan por McLuhan (Understandig me). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. (2) Cf. UGARTE, David (2010). Los futuros que vienen. Madrid: Grupo Cooperativo de las Índias, 2010. “Descomposición es descomposición también, y sobre todo, de los sujetos con los que se componía la narración histórica: las clases, las naciones, los grupos de interés, el marco de mercado… con ellos muere ese futuro que se pretendía el futuro y que es precisamente aquel por el que los universalistas se afanan. Ese futuro universal es hoy un enfermo crónico en fase terminal. Nacido en el siglo XVIII, tuvo su crisis adolescente con el Romanticismo, su madurez con el progresismo decimonónico y su primera crisis grave con los genocidios cometidos por el estado alemán durante la Segunda Guerra Mundial”. (3) RUSSO, Renato (1986). “Índios” in Dois: Emi, 1986. (4) WOLFE, Tom (2003). “Introdução” in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit. (5) MCLUHAN, Marshall apud WOLFE: Ed. cit. (6) Idem. (7) CHARDIN, Teilhard (1955). O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1989. (8) CHARDIN: Op. cit. (9) TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony (2006). Wikinomics: como a colaboração pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. (10) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização, localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003. (11) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede: sustentabilidade empresarial e responsabilidade corporativa no século 21. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008. (12) Comunicação pessoal ao autor feita por alunos do curso Biologia-Cultural ministrado pela Escola Matriztica de Santiago em 2010. (13) FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de rede: ed. cit.

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Alterando a estrutura das sociosferas | 7 (1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de categorias mais problemáticas como docente/discente, educando/educador, mestre/aprendiz, que introduzem relações dicotômicas e não expressam adequadamente relações sociais envolvidas em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre pessoas aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa, à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-verso> (3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores: ed. cit. (4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002. (5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes: <http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo> (6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985. (Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser “Desescolarizando a sociedade”) (7) Este parágrafo e varios dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola = matar o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica conversação, ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escola-de-Redes, com Ignácio Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes sociais entendidas como redes fechadas de conversações no espaço social”. Para conhecer a íntegra da discussão acesse: <http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/redes-sociais-entendidas-como> (8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em: <http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html> (9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

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(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A desistência como ativismo”: <http://escoladeredes.ning.com/group/desista> (11) MATURANA, Humberto (1993). Amar e brincar: fundamentos esquecido do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004. (12) Idem. (13) Idem-idem. (14) Idem-ibidem. (15) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001. (16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Modelos mentais são sociais. Slideshare [1.022 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/modelos-mentais-so-sociais> (17) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. (18) Cf. WEBER, Renée (1986). Diálogos com cientistas e sábios. São Paulo: Cultrix, 1991 [cf. a entrevista com Ilya Prigogine no capítulo intitulado “O reencantamento da natureza”]. (19) BLOCH, Ernst (1968). El ateísmo en el cristianismo: la religión del éxodo y del Reino. Madrid: Taurus, 1983. (20) Idem. (21) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2009. (22) BEY, Hakim (1985-1991). BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura, s/d. (23) BEY, Hakim (1985). CAOS: Terrorismo poético e outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. (24) GIBSON, William (1984). Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.

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(25) STERLING, Bruce (1988). Piratas de dados [Péssima tradução do título Islands in the Net]. São Paulo: Aleph, 1990. (26) Cf. a entrevista concedida em 1984 por Ilya Prigogine à Renée Weber em WEBER: Op.cit. (27) LÉVY, Pierre (2000). O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2001. (28) NOVALIS (George Friedrich Philipp, Freyherr (Barão) von Hardenberg) (1798). Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. São Paulo: Iluminuras, 2011. (29) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (30) BOHM, David (1996). Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Athena, 2005. (31) Para uma explicação abrangente dessa imaginária linhagem-fluzz da “tradição” democrática confira FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Slideshare [1022 views em 29/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programa-autodidatico-de-aprendizagem> (32) Cf. DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos) FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: CMDC / EdiPUCRS, 2008. (33) Cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Op. cit. Cf. também MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte: Ed. cit. (34) Chama-se de formule inversa de Clausewitz-Lenin (com base nas anotações marginais de leitura do segundo ao tratado Da Guerra, do primeiro) à inversão do postulado clausewitziano “a guerra é uma continuação da política por outros meios”. Como, para Lenin, a luta de classes era uma espécie de guerra permanentemente presente, então ele avaliou que se poderia afirmar que, inclusive em tempos de paz, “a política é uma continuação da guerra por outros meios”. (35) De um ponto de vista político, não há problema com a competição entre grupos privados quando seus objetivos são privados. O problema surge quando se quer gerar um sentido público por meio da competição entre grupos privados (como os partidos). Foi assim que, decalcando a racionalidade do mercado, os modernos cometeram uma confusão brutal entre tipos diferentes de agenciamento que levou à irresponsável identificação entre democracia e capitalismo (e tão perdidos ficaram em sua confusão que agora não sabem nem explicar direito a onda de capitalismo autoritário que nos atinge nos últimos anos, sobretudo a partir da China). Para acompanhar uma discussão inovadora sobre a questão do público cf. o tópico “Sobre a questão do publico”:

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<http://escoladeredes.ning.com/group/redesnapoltica/forum/topics/sobre-a-questao-do-publico> (36) É por isso que têm se revelado vãs todas as tentativas de fundar um novo partido para reformar a política, a partir de novas idéias e, supostamente, da inauguração de novas práticas. Em pouquíssimo tempo esse novo partido será capturado pelo oligopólio dos velhos partidos e se comportará como eles. Quando não há má intenção (e tudo então não passa de pretexto para construir uma nova caciquia ou para legalizar uma nova quadrilha para assaltar o público), parece evidente que há falta de inteligência mesmo nos que vivem insistindo em percorrer essa via. (37) "Patriotism is the last refuge of a scoundrel" ("O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”). Cf. BOSWELL, James & CROKER, John (1791). The life of Samuel Johnson, LL. D. New York: George Dearborn Publisher, 1833. Disponível em Google Books: <http://books.google.com/books?id=TmShu9cK3IUC&pg=PP1#v=onepage&q&f=false> (38) Cf. ALTHUSIUS, Johannes (1603). Política. Liberty Fund (2003). Rio de Janeiro: Topbooks, s/d. (39) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas: Ed. cit. (40) Dentre todos, talvez a língua continue sendo a obstrução mais efetiva à interação entre diferentes povos, mas tudo indica que esse “muro” também está com seus dias contados. Os avanços, verificados nos últimos anos, no desenvolvimento de programas de tradução e a construção de sistemas simultâneos de tradução de idiomas, compostos por softwares aplicativos, suportados por hardwares e conectados a dispositivos de reconhecimento de voz em computadores e aparelhos telefônicos, logo anulará essa desculpa da Babel para o viver separado do diferente. Como observou Humberto Maturana, lembrado por Carlos Boyle em um recente post no site da Escola-de-Redes, Babel não fracassou em virtude das diferentes línguas que falavam seus construtores e sim porque eles não se entendiam entre si (ou seja, o que faltou foi cooperação, de vez que o linguagear pode se exercer mesmo entre duas pessoas que falam línguas diferentes, que acabarão, de um modo ou de outro, se entendendo). (41) A não ser quando a seleção brasileira de futebol joga com a da Argentina. Aí, em uma caricatura degenerada de primitivos seres tribais, nos pintamos de verde-amarelo, nos enrolamos na bandeira e gritamos irracionalmente a plenos pulmões que o legítimo gol feito pelo genro de Maradona não valeu, pois que ele estava impedido e acusamos de ladrão o juiz. E os argentinos fazem a mesma coisa. Sim, é do jogo, pode-se dizer. Mas em geral esquece-se de perguntar: de que jogo (o esporte competitivo como “uma guerra sem mortes” como bem o definiu George Orwell)? De que vale esse tipo de polarização que passa por cima de qualquer senso de urbanidade e justiça? E o que de bom poderá advir dessa patriotice?

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(42) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001. (43) Idem. (44) SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (45) Cf. FREEDOM HOUSE (2011). Freedom in the World 2011: The authoritarian challenge to democracy. Disponível em <http://www.freedomhouse.org/images/File/fiw/FIW_2011_Booklet.pdf> (46) Democracias plenas (full democracies) são apenas 26 países, correspondendo a 12,3% da população mundial: Norway, Iceland, Denmark, Sweden, New Zealand, Australia, Finland, Switzerland, Canada, Netherlands, Luxembourg, Ireland, Austria, Germany, Malta, Czech Republic, US, Spain, UK, South Korea, Uruguay, Japan, Belgium, Mauritius, Costa Rica, Portugal. Cf. The Economist Intelligence Unit (2010). Democracy in retreat. New York: The Economist Group, 2010. Disponível em <http://www.eiu.com> (47) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman, 2006. (48) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in BRESSER PEREIRA, L. C., WILHEIM, J. e SOLA, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999. (49) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008. (50) Cf. FULLER, Buckminster (1968). Manual de Operação da Espaçonave Terra. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983 e MCLUHAN, Marshall (1974) in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit. (51) THOMPSON: Op. cit. (52) Um bom relato das causas da derrota dos Apaches pode ser encontrado no livro de Ori Brafman e Rod Beckstrom (2006): The starfish and the spider (Quem está no comando? A estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes. Rio de Janeiro: Elsevier Campus, 2007), na passagem intitulada A estratégia da centralização:

“A última vez que vimos os Apaches, eles estavam dominando o Sudoeste. Os espanhóis tentaram em vão controlá-los, e os mexicanos, que vieram em seguida, também não tiveram sorte. Quando os americanos conseguiram o controle da região, também fracassaram. Na verdade, os Apaches

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permaneceram como uma grande ameaça até o século XX. Mas depois a maré mudou. Aí os americanos venceram. Quando Tom Nevins explicou isso, ficamos de queixo caído ao descobrir como algo tão simples poderia ter um efeito tão poderoso. Nevins nos contou a história. "A verdade é que os Apaches representaram uma ameaça até 1914. O exército ainda marcou presença na reserva White Mountain até o início do século XX". Por que era tão difícil derrotar os Apaches? Os Nant'ans [espécie de catalisadores da rede social apache] apareceram, disse Nevins, e "as pessoas desejavam apoiar quem elas acreditavam ser o líder mais eficaz, com base em suas próprias ações ou em seu comportamento. E não tardaria a acontecer". Como surgiam cada vez mais Nant'ans, os americanos finalmente "perceberam que precisavam atacar os Apaches no nível mais básico para poder controlá-los. Essa foi a política adotada pela primeira vez com o grupo Navajo - que também era Apache, e aperfeiçoada com o grupo Western Apache". Eis o que acabou com a sociedade Apache: os americanos deram gado aos Nant'ans. Foi simples assim. Como os Nant'ans tinham recursos escassos - as vacas -, seu poder passou de simbólico a material. Antes, os Nant'ans lideraram pelo exemplo, mas agora eles poderiam recompensar e punir membros da tribo oferecendo ou retirando esse recurso. As vacas foram as responsáveis pela grande mudança. Como os Nant'ans ganharam poder autoritário, eles começaram a brigar entre si por assentos nos recém-criados conselhos tribais e começaram a ter um comportamento cada vez mais parecido... [com os de presidentes de empresas] Membros da tribo começaram a fazer lobby junto aos Nant'ans para obter mais recursos e ficavam aborrecidos quando as alocações não funcionavam a seu favor. A estrutura de poder, que antes era horizontal, se tornou hierárquica, com o poder concentrado no topo. Isso arruinou a sociedade Apache. Nevins reflete: "O grupo Apache agora tinha um governo central, mas, a meu ver, isso foi desastroso para eles, pois gerou uma baralha sem lucros em troca de recursos entre linhagens". Com uma estrutura de poder mais rídiga, os Apaches ficaram semelhantes aos Astecas e, assim, ficou mais fácil para os americanos os controlarem... Na essência, o que movia os Apaches [quando passaram a disputar entre si por recursos centralizados pelos Nant’ans] era a concentração de poder. Após adquirirem o direito à propriedade, seja ela em forma de vacas ou royaltes..., as pessoas rapidamente buscam um sistema centralizado para proteger seus interesses. É por isso que queremos bancos centralizados. Desejamos ter controle, estrutura e prestação de contas, pois o que está em jogo é nosso dinheiro. No momento em que direitos de propriedade entram na equação, tudo muda: a organização estrela-do-mar se transforma em aranha. Se você realmente quiser centralizar uma organização, passe o direito de

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propriedade ao catalisador [os catalisadores funcionam como netweavers em uma rede social] e peça-o para distribuir recursos conforme adequado. Ao deter o poder sobre os direitos de propriedade, o catalisador se transforma em CEO e os círculos passam a ser competitivos”.

(53) Epopéia da Criação – Enuma Elish (ou Enûma Eliš) é o mito de criação babilônico. Ele foi descoberto por Austen Henry Layard em 1849 (em forma fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Mossul, Iraque), e publicado por George Smith em 1876. Cf. SMITH, George (1876). The Chaldean Account of Genesis. London: s/ed., 1876. Eis a passagem citada do Enuma Elish: “Ele criou o homem (e a mulher), seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar os deuses de outras cargas...”. Uma versão duvidosa em português está disponível no link: <http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html> Tablets 1 e 2 estão disponíveis: <http://wikisource.org/wiki/Enuma_Elish> (54) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend: Loompanics Unlimited, 1986. Uma tradução em português do manifesto “A abolição do trabalho” está disponível para download em <http://www.4shared.com/file/219719893/b8942012/A_ABOLIO_DO_TRABALHO_Black.html> (55) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>

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Os mantenedores do velho mundo | 8 (1) ABRAHAM, Ralph (1992) in ABRAHAM, Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente, São Paulo: Cultrix, 1994. (2) KRAMER, Samuel (1956). A história começa na Suméria. Lisboa: Europa-América, 1977. (4) CAMPBELL, Joseph (1959): As máscaras de Deus (Volume I). São Paulo: Palas Athena, 1998. (3) ABRAHAM. Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do Ocidente. São Paulo: Cultrix, 1994. (5) LEICK, Gwendolyn (2001): Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de Janeiro: Imago, 2003. (6) Os ‘me’ continuam sendo um enigma para os historiadores. A antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick (2001), no seu livro “Mesopotâmia: a invenção da cidade” (ed. cit.), escreve: “Eridu, como a manifestação primária do Apsu, também era considerada o lugar do conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de Enki. Numerosas narrativas foram elaboradas em torno desse conceito. Eridu, como respositório de decretos divinos é descrita em uma narrativa suméria chamada “Enki e Inanna”. Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos os ‘me’, termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de comportamento social, emoções e símbolos de carga que, em sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular do mundo. Esses ‘me’ pertenciam a Eridu e a Enki. Entretanto, Inanna, deusa da cidade de Uruque, deseja obter os ‘me’ para si própria e levá-los para Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar a Eridu de barco, sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da Mesopotâmia a outra. Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e preocupa-se com as intenções dela. Instrui o seu vizir para a receber com todas as honras e preparar um banquete, no qual ambas as deidades bebem muita cerveja. Enki não tarda em adormecer, deixando o caminho livre para Inanna carregar os preciosos ‘me’ em seu barco, um por um, e zarpar. Quando Enki desperta da ébria sonolência e dá-se conta do que aconteceu, procura usar sua magia em uma tentativa de recuperar os ‘me’. Inanna consegue rechaçar os demônios perseguidores e chegar sã e salva a Uruque. O desfecho da história não é claro, pois nenhuma das versões existentes do texto está suficientemente preservada, mas parece que uma terceira deidade logra a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é, obviamente, uma típica história de Uruque, concentrando-se nas deusas locais e em seu poder superior. Ao libertar os ‘me’ das profundezas do Apsu, Inanna podia não só ampliar seus próprios poderes, mas também fazer valer os seus decretos entre os humanos. A lista dos

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‘me’ inclui a realiza, as funções sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as relações sexuais, a prostituição, a velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a calúnia, o perjúrio, as artes dos escribas e a inteligência, entre muitos outros”. Muitos anos antes, o famoso sumeriologista Samuel Noah Kramer (1956), em From the Tablets of Sumer (ed. cit.) já havia observado: “Finalmente chegamos aos ‘me’, as leis divinas, normas e regras que, segundo os filósofos sumérios, governam o universo desde os dias da sua criação e o mantêm em funcionamento. Neste domínio possuímos considerável documentação direta, particularmente em relação ao ‘me’ que governam o homem e a sua cultura. Um dos antigos poetas sumérios, ao compor ou redigir um dos seus mitos, julgou que vinha a propósito dar uma lista dos ‘me’ relacionados com a cultura. Divide a civilização, segundo o conhecimento que dela tinha, em uma centena de elementos. No estado atual do texto são apenas inteligíveis cerca de sessenta e alguns são palavras mutiladas que, sem contexto explicativo, apenas nos dão uma vaga idéia do seu real sentido. Mas ainda subsistem os suficientes para nos mostrar o caráter e a importância da primeira tentativa registrada de análise da cultura, que resultou em uma lista considerável de o que é hoje geralmente designado por “elementos e complexos culturais”. Estes compõem-se de várias instituições, certas funções de hierarquia sacerdotal, instrumentos de culto, comportamentos intelectuais e afetivos e diferentes crenças e dogmas. Eis a lista das partes mais inteligíveis e seguindo a própria ordem escolhida pelo antigo escritor sumério: 1 – Soberania; 2 – Divindade; 3 - A sublime e permanente coroa; 4 - O trono real; 5 - O sublime cetro; 6 - As insígnias reais; 7 - O sublime santuário; 8 - O pastoreio; 9 - A realeza; 10 - A durável senhoria; 11 - A “divina senhora” (dignidade sacerdotal); 12 – O ishib (dignidade sacerdotal); 13 – O lumah (dignidade sacerdotal); 14 – O gutug (dignidade sacerdotal)…” [A lista segue até o número 67]. Essas “fórmulas divinas” (os ‘me’) reforçam a idéia da existência de uma espécie de protótipo. Os ‘me’ parecem ser códigos replicativos para criar e reproduzir um determinado tipo de civilização (ou padrão societário). A existência material ou ideal dos ‘me’ como conhecimentos armazenáveis em objetos que podiam ser transportados, evidencia que os sumérios não apenas desenvolveram historicamente o que chamamos de civilização. Eles também sistematizaram teoricamente um modelo dessa civilização para ser replicado em outros locais. Mas o mais relevante é a ordem em que aparecem tais “elementos culturais”. Os seres humanos e suas características próprias e qualidades distintivas só vão surgir lá pelo quadragésimo lugar. O schema é mítico, sacerdotal, hierárquico e autocrático. Aliás, pode-se dizer que essas “fórmulas divinas” são fórmulas da autocracia em “estado puro”. E havia um ensinamento organizado sobre tudo isso. Pois bem. Tal ensinamento a ser replicado foi o motivo de haver um ensino. Para mais informações pode-se ler os textos indicados por LEICK (2001) e por KRAMER (1956). Ou pode-se tentar decifrar o material disponível:

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Inana and Enki: cuneiform source translation at ETCSL (The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature, University of Oxford, England) in ETCSL translation: <http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1#> Cf. ainda: “What are ‘me’ anyway?” in Sumerian Mythology FAQ: <http://home.comcast.net/~chris.s/sumer-faq.html#A1.5> (7) Existem outras maneiras não verticais de representar essa árvore das Sefirot. Cf. o blogpost “Sobre Kabbalah e redes: um abstruso paralelo heurístico”: <http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/sobre-kabbalah-e-redes-um> (8) BLOOM, Harold (1975). Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991. (9) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. (Existe tradução brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004). (10) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008. (11) FRANCO, Augusto (2008): O Olho de Hórus. Disponível em <http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/o-olho-de-horus> (12) OSHO (Bhagwan Shree Rajneesh) (1978). A revolução: conversas sobre Kabir. São Paulo: Academia de Inteligência, 2008. (13) Idem. (14) Comunicação pessoal ao autor de José Rocha: Frei Mateus Rocha (1923-1985). Para saber quem foi José Rocha cf. POLETTO, Ivo (org.) (2003). Frei Mateus Rocha: um homem apaixonado pelo absoluto. São Paulo: Loyola, 2003. (15) Agregadores de blogs que foram inventados com base em RSS não resolvem o problema. O fato de se ter vários blogs em uma mesma página, atualizando automaticamente as primeiras palavras das postagens mais recentes de cada blog, não garante, nem favorece muito, qualquer tipo de interação mais efetiva. Esses softwares produzem apenas índices ilustrados dos blogs que foram agregados por iniciativa única e exclusiva do administrador da página. Caso haja reciprocidade, ou seja, se todos os agregados por um blog também agregarem os demais nos seus blogs, essas ferramentas são boas para formar um grupo seleto (e necessariamente pequeno, por motivos óbvios) de pessoas que se lêem. Também podem ser

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bastante úteis no caso de uma corporação (onde, porém, o acesso à página agregada é, via de regra, fechado, pois, afinal, uma corporação precisa se proteger da concorrência...) ou de uma comunidade já existente. Mas, em geral, não são ferramentas eficazes de netweaving, pois ninguém fica sabendo – a não ser que abra seguidamente, várias vezes por dia, todos os blogs – o que cada um está dizendo, no seu próprio blog, sobre o que outros postaram, nos deles. Ademais, não são viáveis para organizar o compartilhamento de agendas (a única coisa que pode realmente “produzir” comunidade). As velhas listas de e-mails com seus fóruns derivados são mais eficazes para esse propósito. (16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão interior” in ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994. (17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo: Editora 34, 2006.

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Eles já estão entre nós | 9 (1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorian (1998). O que é vida? Rio de Janeiro: Zahar, 2022. (2) O caso de Hobbes é notável, pois além de esse pensador ter lançado os fundamentos para uma justificação filosoficamente elaborada da autocracia, também derruiu os pressupostos cooperativos de qualquer idéia democrática, tendo influência marcante sobre grande parte dos pensadores de outras disciplinas científicas que surgiram ulteriormente – como a biologia da evolução e a economia – até, praticamente, o final do século 19. A esse respeito vale a pena ler a brilhante passagem de Matt Ridley (1996) no livro As origens da virtude: “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria que “A Origem das Espécies” é “simples economia ricardiana expressa em linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural “era essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza”. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: “É notável”, escreveu ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, “como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a ‘bellum omnium contra omnes de Hobbes’”. Cf. RIDLEY, Matt (1996). As origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Record, 2000. (3) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (4) Idem. (5) TENNYSON, Alfred (Lord) (1849). In Memorian A. H. H. Canto 56: “Who trusted God was love indeed / And love Creation's final law / Tho' Nature, red in tooth and claw / With ravine, shriek'd against his creed”. Cf. o link abaixo: <http://en.wikipedia.org/wiki/In_Memoriam_A.H.H.> (6) Literalmente: “It is war minus the shooting”. Cf. ORWELL, George (1945). The Sporting Spirit. London: Tribune, December 1945. Disponível em:

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<http://orwell.ru/library/articles/spirit/english/e_spirit> (7) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte (alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o Desenvolvimento da Democracia Luis Carlos Galan, Colômbia). Bogotá: Editorial Magistério, 1993. (8) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. (9) MARGULIS, L. & SAGAN, D.: Op. cit. (10) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro: Sextante, 2008. (11) Idem. (12) Idem-idem. (13) Idem-ibidem. (14) WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993. (15) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Nova visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008. (16) RAYMOND, Eric (1996-2001). Como se tornar um hacker. Disponível em: <http://www.linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html> (17) Idem. (18) Idem-idem. (19) RAYMOND, Eric (2001). How to become a hacker. Disponível em: <http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html> (20) “O mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem resolvidos. Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão que necessita de muito esforço. Para haver esforço é necessário motivação. Atletas de sucesso retiram sua motivação de uma espécie de prazer físico em trabalhar seus corpos, em tentar ultrapassar seus próprios limites físicos. Analogamente, para ser um hacker você precisa ter uma emoção básica em resolver problemas, afiar suas habilidades e exercitar sua inteligência. Se você não é o tipo de pessoa que se sente assim naturalmente, você precisará se tornar uma para ser um hacker. Senão, você verá sua energia para "hackear" sendo esvaída por distrações como

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sexo, dinheiro e aprovação social. (Você também tem que desenvolver uma espécie de fé na sua própria capacidade de aprendizado – crer que, mesmo que você não saiba tudo o que precisa para resolver um problema, se souber uma parte e aprender a partir disso, conseguirá aprender o suficiente para resolver a próxima parte – e assim por diante, até que você termine)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (21) “Não se deve resolver o mesmo problema duas vezes. Mentes criativas são um recurso valioso e limitado. Não devem ser desperdiçadas reinventando a roda quando há tantos problemas novos e fascinantes por aí. Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar que o tempo de pensamento dos outros hackers é precioso – tanto que é quase um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar as soluções, para que outros hackers possam resolver novos problemas ao invés de ter que se preocupar com os antigos indefinidamente. (Você não tem que acreditar que é obrigado a dar toda a sua produção criativa, ainda que hackers que o fazem sejam os mais respeitados pelos outros hackers. Não é inconsistente com os valores do hacker vender o suficiente da sua produção para mantê-lo alimentado e pagar o aluguel e computadores. Não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para sustentar a família ou mesmo ficar rico, contanto que você não esqueça que é um hacker)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (22) “Tédio e trabalho repetitivo são nocivos. Hackers (e pessoas criativas em geral) não podem ficar entediadas ou ter que fazer trabalho repetitivo, porque quando isso acontece significa que eles não estão fazendo o que apenas eles podem fazer – resolver novos problemas. Esse desperdício prejudica a todos. Portanto, tédio e trabalho repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos também. Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar nisso de modo a automatizar as partes chatas tanto quanto possível, não apenas para você como para as outras pessoas (principalmente outros hackers). (Há uma exceção aparente a isso. Às vezes, hackers fazem coisas que podem parecer repetitivas ou tediosas para um observador, como um exercício de "limpeza mental", ou para adquirir uma habilidade ou ter uma espécie particular de experiência que não seria possível de outro modo. Mas isso é por opção -- ninguém que consiga pensar deve ser forçado ao tédio”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (23) “Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente anti-autoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado – e, dado o modo em que a mente autoritária funciona, geralmente arranjará alguma desculpa espantosamente idiota isso. Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você a encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers. (Isso não é a mesma coisa que combater toda e qualquer autoridade. Crianças precisam ser orientadas, e criminosos, detidos. Um hacker pode aceitar alguns tipos de autoridade a fim de obter algo que ele quer mais que o tempo que ele gasta seguindo ordens. Mas isso é uma barganha restrita e consciente; não é o tipo de sujeição pessoal que os autoritários querem). Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar. Então, para se comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao

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segredo, e ao uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (24) “Atitude não substitui competência. Para ser um hacker, você tem que desenvolver algumas dessas atitudes. Mas apenas ter uma atitude não fará de você um hacker, assim como não o fará um atleta campeão ou uma estrela de rock. Para se tornar um hacker é necessário inteligência, prática, dedicação, e trabalho duro. Portanto, você tem que aprender a desconfiar de atitude e respeitar todo tipo de competência. Hackers não deixam posers gastar seu tempo, mas eles idolatram competência – especialmente competência em "hackear", mas competência em qualquer coisa é boa. A competência em habilidades que poucos conseguem dominar é especialmente boa, e competência em habilidades que envolvem agudeza mental, perícia e concentração é a melhor. Se você reverenciar competência, gostará de desenvolvê-la em si mesmo – o trabalho duro e dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao invés de trabalho repetitivo. E isso é vital para se tornar um hacker”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (25) Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit. (26) Idem. (27) Idem-idem. (28) Idem-ibidem. (29) LISPECTOR, Clarice (1969). Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. (30) ORWELL, George (1948). Reflexões sobre Gandhi in ORWELL, George (1984). Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. (31) Idem. (32) BUCHANAN, Mark (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.

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Mundos-bebês em gestação | 10 (1) Referência a um artigo de Pierre Lèvy: Op. cit. (2) No final de 2010 as pessoas fingiam que não viam, mas a situação do mundo único – baseado no equilíbrio competitivo internacional, uma estrutura descentralizada de menos de duas centenas de Estados – já estava ficando muito complicada: expansão do capitalismo autoritário na China e em outros continentes, inclusive com uma espécie de neocolonização econômica da África, domínio crescente do fundamentalismo islâmico em todos os países árabes, no Oriente Médio e alhures, perpetuação de governos de assassinos da KGB (FSB) na Rússia com pretensões expansionistas, avanço do parasitismo democrático via neopopulismo na América Latina, democracia nos Estados-nações claramente em recuo, restando apenas 26 países (menos de 13% da população mundial) em que o regime democrático representativo vigorava em plenitude. (3) BRABO, Paulo (2007): Op. cit. (4) MATURANA, Humberto et all. (2009): “Ethical matrix of human habitat” (texto enviado pelos autores para uma lista restrita de discussão). (5) Esta seção intitulada “Desobedeça” é a terceira versão do texto de FRANCO, Augusto (2010). Desobedeça: uma inspiração para o netweaving (2ª Versão). Slideshare [5.168 views em 30/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea> (6) Refrão da “Dança do Quadrado”, música de origem desconhecida utilizada por Sharon Aciole com o objetivo de animar o pessoal nas praias de Porto Seguro no verão de 2007 e que acabou virando um hit no Brasil em 2008. Ouça aqui antes de ler: <http://migre.me/knQS> (7) "I think we've been through a period where too many people have been given to understand that if they have a problem, it's the government's job to cope with it. 'I have a problem, I'll get a grant.' 'I'm homeless, the government must house me.' They're casting their problem on society. And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families. And no government can do anything except through people, and people must look to themselves first. It's our duty to look after ourselves and then, also to look after our neighbour. People have got the entitlements too much in mind, without the obligations. There's no such thing as entitlement, unless someone has first met an obligation”. Prime minister Margaret Thatcher, talking to Women's Own magazine, October 31 1987. (8) GLADWELL, Malcolm (2008): Op. cit.

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(9) Como disse certa vez um mestre sufi da Turquia a um grupo de visitantes (citado recentemente por uma pesquisadora conectada à Escola-de-Redes), “as pessoas no ocidente são engraçadas; elas dizem: ‘eu sinto muito, mas eu sou assim’, quando, na verdade, elas nem sentem muito e nem são assim”. Cf. Bia Machado em <http://escoladeredes.ning.com> (10) Esta seção intitulada “Cada um no seu quadrado” é a segunda versão do texto de FRANCO, Augusto (2009). Cada um no seu quadrado: algumas notas sobre o difícil aprendizado das redes sociais nas organizações hierárquicas. Slideshare [1.088 views em 30/11/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/cada-um-no-seu-quadrado-3215261> (11) Referência ao texto seminal BEY, Hakim (1984). TAZ – Zona Autônoma Temporária: Op. cit. Disponível para download em: <http://www.4shared.com/get/88283715/b2c341c8/TAZ_-_Hakim_Bey.html> (12) WAISMANN, Friedrich (1979). Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle. New York: Routledge, 2003.

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Bem-vindos aos novos mundos-fluzz | 11 (1) HERBERT, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (2) Como o Kinect, um dos maiores lançamentos da Microsoft em 2010. (3) A psilocibina é um alcalóide encontrado em alguns cogumelos, de estrutura molecular análoga à serotonina, e merece continuar sendo estudada (assim como várias outras substâncias que alteram de alguma forma a percepção ou aquilo que se chama de consciência, como as que são misturadas para o preparo do chá ayahuasca). Cf. McKENNA, Terence (1992). O alimento dos deuses. São Paulo: Nova Era, 1996. (4) Os “midi-chlorians”, organismos microscópicos existentes nas células dos seres vivos que facilitam a interação com a Força, introduzidos tardiamente na série de George Lucas, no Episódio 1 (1999): “A Ameaça Fantasma” (cf. BROOKS, Terry (1999). Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma. São Paulo: Meia Sete Editora, 1999) talvez sejam uma evocação conceitualmente menos adequada. Pois fluzz não é a força (Te). Fluzz é o curso (Tao). (5) JOHNSON, Steven (2001). Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (6) ARQUILLA, John e RONSFELD, David (2000). Swarming and the Future of Conflict. USA: Rand Corporation, Office of the Secretary of Defense, 2000. (7) O paper de John Arquilla e David Ronsfeld sobre swarming entre humanos, infelizmente, estava mais voltado para a análise das suas implicações na guerra. Quatro anos depois, em 11M: Redes para ganar uma guerra, analisando a reação da sociedade espanhola aos atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004, David de Ugarte (2004) aventou a possibilidade de um swarming civil, mas ainda nos marcos de um conflito (a netwar). Cf. UGARTE, David (2004). 11M. Redes para ganar uma guerra. Barcelona: Icaria, 2006. Três anos depois, em O Poder das Redes (2007), ele iria definir o sarming como “um novo tipo de conflito multi-agente e multicanal, onde as relações entre os atores parecem descrever a topologia de uma rede distribuída. O swarming é a forma específica do conflito na sociedade-rede: distintos grupos e tendências, não coordenados explicitamente entre si e apenas centralizados um pouco além de uma mínima doutrina comum dentro das fileiras de cada um deles, vão aumentando o alcance e a virulência de suas ações, até isolar e encurralar as posições contrárias sem deixar-lhes possibilidade real de resposta”. (8) UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008.

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(9) Cf. Sugatra Mitra: “The child-driven education” no TED Global 2010 no link abaixo: <http://www.ted.com/talks/lang/eng/sugata_mitra_the_child_driven_education.html> (10) Cf. depoimento de Steven Strogatz no filme Connected: the Power of Six Degrees, dirigido por Annamaria Talas. BBC – TV ABC / Discovery Science Channel, 2008. Disponível – com legendas em português – no link: <http://escoladeredes.ning.com/video/o-poder-dos-seis-graus-1> (11) LISPECTOR, Clarice (1969): Op. cit. (12) BARROS, Manoel (2010). “Caderno de Aprendiz” in Menino do Mato: Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010. (13) Cf. von OECH, Roger (2001). Espere o inesperado ou você não o encontrará. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. (14) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa: Ed. cit. (15) Morpheus in The Matrix (1999): “This is your last chance [Neo]. After this, there is no turning back. You take the blue pill - the story ends, you wake up in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill - you stay in Wonderland and I show you how deep the rabbit-hole goes”.

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