uma leitura filosÓfica da fragmentaÇÃo do …

12
Vol. 11 | N. 02 | 2012 ISSN 2237-6291 Revista Litterarius Faculdade Palotina www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected] UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO CONHECIMENTO José Francisco dos Santos Resumo: o presente artigo tem como escopo fazer uma análise filosófica dos desafios educacionais neste princípio de século XXI. Por questões didáticas, o trabalho foi dividido em três partes: 1) no primeiro momento, uma abordagem da crise que atinge a sociedade hodierna; 2) em seguida, descrevemos os limites da concepção da educação fragmentada que é hegemônica no mundo educacional; 3) por último, apresentaremos uma proposição que demonstra a necessidade de uma proposta educativa que atenda as necessidades humanas de um modo integrador. Palavras-chave: Educação fragmentada. Educação integral. Formação. Complexidade. A PHILOSOPHICAL READING OF THE FRAGMENTATION OF KNOWLEDGE Abstract: This article aims to analyze philosophically the educational challenges from the beginning of this XXI century. For didactical reasons, the study was divided into three parts: 1) in the first moment, an approach of the crisis that affects today’s society; 2) then, we will describe the boundaries of the concept of education, which is fragmented and hegemonic in the educational world; 3) At last, we will present a proposition that shows the need of an educational proposal that suits human needs in an integrator way. Keywords: Fragmented education. Integral education. Formation. Complexity. 1 Considerações Iniciais Não é mistério algum que as sociedades capitalistas hodiernas estejam envolvidas por um estado de crise. O momento é de profunda instabilidade no contexto financeiro, e as incertezas enfrentadas pelo mercado internacional têm alcançado diversos setores de nossa sociedade capitalista, de modo especial o setor educacional. Professor da Faculdade Salesiana Bom Bosco e Centro Universitário do Norte. Mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS São Leopoldo/RS. E-mail: [email protected]

Upload: others

Post on 22-May-2022

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Vol. 11 | N. 02 | 2012 ISSN 2237-6291

Revista Litterarius – Faculdade Palotina

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius

[email protected]

UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO

DO CONHECIMENTO

José Francisco dos Santos

Resumo: o presente artigo tem como escopo fazer uma análise filosófica dos desafios educacionais

neste princípio de século XXI. Por questões didáticas, o trabalho foi dividido em três partes: 1) no

primeiro momento, uma abordagem da crise que atinge a sociedade hodierna; 2) em seguida,

descrevemos os limites da concepção da educação fragmentada que é hegemônica no mundo

educacional; 3) por último, apresentaremos uma proposição que demonstra a necessidade de uma

proposta educativa que atenda as necessidades humanas de um modo integrador.

Palavras-chave: Educação fragmentada. Educação integral. Formação. Complexidade.

A PHILOSOPHICAL READING OF THE FRAGMENTATION

OF KNOWLEDGE

Abstract: This article aims to analyze philosophically the educational challenges from the beginning

of this XXI century. For didactical reasons, the study was divided into three parts: 1) in the first

moment, an approach of the crisis that affects today’s society; 2) then, we will describe the boundaries

of the concept of education, which is fragmented and hegemonic in the educational world; 3) At last,

we will present a proposition that shows the need of an educational proposal that suits human needs in

an integrator way.

Keywords: Fragmented education. Integral education. Formation. Complexity.

1 Considerações Iniciais

Não é mistério algum que as sociedades capitalistas hodiernas estejam envolvidas

por um estado de crise. O momento é de profunda instabilidade no contexto financeiro, e as

incertezas enfrentadas pelo mercado internacional têm alcançado diversos setores de nossa

sociedade capitalista, de modo especial o setor educacional.

Professor da Faculdade Salesiana Bom Bosco e Centro Universitário do Norte. Mestre em Filosofia pela

Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – São Leopoldo/RS. E-mail: [email protected]

Page 2: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

A cada dia, aumenta o número de países atingidos pela crise econômica mundial,

iniciada em 2008, que, paulatinamente, se alastrou para os países dos cinco continentes. Ao

mesmo tempo, os principais periódicos informaram que esses países estão solicitando ajuda

externa para poder superar rapidamente esse período de turbulência.

A gênese dessa crise que atingiu as sociedades capitalistas do século XXI surgiu nos

EUA e ficou globalmente conhecida como a “bolha imobiliária americana”. Para muitos

especialistas, esse problema surgiu da extrema facilidade de crédito concedido aos

compradores de imóveis. O fato de esses compradores terem deixado de honrar suas dívidas

levou muitos bancos a decretarem falência. Como vivemos em uma sociedade globalizada,

esse problema foi se estendendo a outros países, onde essas empresas mantêm capital. As

especulações presentes no mercado internacional facilitaram a universalização da crise

americana. A globalização da economia é uma das principais características do capitalismo

moderno. Quando a economia mundial é tomada por uma crise da proporção da que iniciou

em 2008, a insegurança, paulatinamente, vai tomando conta do cenário internacional.

Queremos chamar a atenção dos caros leitores recordando que estamos vivendo em

um mundo globalizado, movido por especulações que giram entorno do mercado econômico.

Ao mesmo tempo, percebemos que essas buscas arriscadas pelo lucro representam os

interesses de todos os envolvido nessa crise. Diante desse cenário, percebemos que foi esse

comportamento que tirou do foco da economia globalizada os problemas que perpassam o

contexto educacional.

A opção pela educação não representa uma lucratividade expressiva a curto e a

médio prazo, consequentemente, a iniciativa privada, juntamente com o poder público,

priorizou os grandes bancos, deixando o sistema educacional às margens das grandes

decisões. Para aqueles que encontram na educação o caminho seguro para enfrentar e superar

essa e outras crises econômicas ficou apenas a indiferença das autoridades. Por isso, ousamos

perguntar: como esse mercado internacional reage diante da falta de políticas para o sistema

educacional? Existe um método que ajude a transformar esse contexto? De repente alguém

esteja querendo saber qual é a relação da presente crise econômica com o sistema

educacional. Em um primeiro momento, pode-se concluir que nenhuma, mas, depois de

examinar cuidadosamente, perceberás que ambas estão interligados, pois tudo que está

relacionado ao ensino, de certa forma, está referido ao sistema econômico financeiro.

Page 3: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

2 A Revolução Industrial e sua concepção fragmentada de educação

A partir da revolução industrial, a educação teve sua finalidade alterada. Desde

então, sua finalidade deixou de ser a formação de cidadãos. E, a partir do século vinte, a

educação, em muitos países, dentre eles o Brasil, além de continuar priorizando a capacitação

de mão de obra para as fábricas, buscou redimensionar seu projeto pedagógico. Com isso,

muitos estudantes permaneceram sendo treinados para atuarem nas fábricas, enquanto uma

minoria que, por questões ideológicas ou “direitos adquiridos”, foi sendo preparada para ser

aprovada nos processos seletivos das universidades públicas, ingressando, principalmente, nas

carreiras destinadas à elite: direito, medicina e engenharias.

Os historiadores da educação mostraram que, a partir da revolução industrial,

predominou, no contexto educacional, uma fragmentação do conhecimento. Juntamente com

essa fragmentação, nasceu uma série de críticas, que apresenta os limites e os equívocos desse

modelo educativo que já perduram por mais de dois séculos. Sendo assim, urge a necessidade

de pensarmos novos paradigmas educacionais. A sociedade hodierna não é chão de fábrica,

mas um espaço de transformação social, marcado pela complexidade que está presente nas

novas facetas do sistema educacional. Não é momento de “formar” mão de obra, porém, de

“formar” pessoas autônomas e conscientes.

Passado a primeira década do século XXI, constatamos que a educação formal clama

pela necessidade de pensarmos as questões globais, mostrando que não podemos mais nos

contentar com os acontecimentos locais, pelo fato de vivermos em uma sociedade

globalizada. Acreditamos que seja o momento de acolher os desafios que abordam os

elementos globais e multidimensionais que estão presentes em todos os processos educativos.

3 Século XXI e a (des)fragmentação do conhecimento

Nesse início de século, percebemos que os desafios das escolas contemporâneas são

grandiosos porque essas sociedades estão marcadas por uma cultura fragmentada. O modelo

de ensino que herdamos da modernidade defende a tese de que o ser humano aprende e ensina

de forma fragmentada. Essa afirmação mostra que existem momentos e locais definidos para

Page 4: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

se aprender. Os defensores da presente tese acreditavam que os resultados da aprendizagem

seriam muito superiores do que os de um modelo de ensino e aprendizagem não fragmentado.

A escola não está organizada para desenvolver um modelo de ensino que foca suas

energias no desenvolvimento de habilidades e capacidades nesse sujeito aprendente. O

homem é um ser histórico, um ser de relações. Essas características que lhe são próprias

exigem que os conteúdos programáticos desenvolvidos nas instituições formais estejam

relacionados com suas histórias de vida e que sejam significativos, porque isso é essencial

quando o que está em pauta é a educação. A educação, quando vivenciada na cotidianidade,

proporciona, no estudante, “o despertar permanente da curiosidade; penso que a ciência

começa por aqui. E a curiosidade deve cultivar-se nos nossos jovens” (BLANCHET, 1999, p.

129). O cultivo dessa curiosidade desenvolve mecanismos que contribuem na capacitação dos

estudantes. Ao mesmo tempo, auxilia na busca de alternativas que ajudarão a solucionar os

problemas, independente do grau de complexidade. A escola (instituição formal) que se

organiza a partir desses princípios, certamente, estará contribuindo fortemente para o

desenvolvimento integral desse sujeito histórico, bem como no desenvolvimento da sociedade

global, que receberá esses cidadãos formados.

A fragmentação do conhecimento contribui para que o estudante perca a noção do

todo, independente de ser em relação a sua vida pessoal ou profissional. Essa fragmentação

empobrece o senso de responsabilidade e solidariedade que são os fundamentos em qualquer

processo educativo. Esses dois conceitos, ao longo da história da educação, foram vistos

como as colunas de sustentação do modelo de educação integral que busca ter, em sua práxis

e interação ética com o outro, o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas. É

preciso conscientizar-se que, num primeiro momento, a educação é socialização, e, num

segundo momento, é responsabilidade.

Quando analisamos cada uma das características desse modelo de educação

fragmentado, percebemos que essa subdivisão do conhecimento existe desde o início da

modernidade. Essa proposta educativa marcou os estudantes de um jeito muito negativo, pois,

em sua grande maioria, os jovens concluem os ciclos de ensino e aprendizagem sem

experiências positivas. Logo, esse período ficou na lembrança como momento tedioso. Dentre

outras coisas, é importante ressaltar que a escola é, por natureza, um ambiente que se

caracteriza por desenvolver inúmeros desejos no estudante, dentre eles, o desejo de estudar; a

proposta fragmentada de educação não conseguiu garantir, na maioria dos estudantes, esse

Page 5: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

desejo primário, que é responsável em despertar, nos acadêmicos, o espírito que move esses

estudantes diante dos desafios contemporâneos.

Muitos pensadores da educação têm buscado constantemente encontrar uma

alternativa para transformar as práticas e o cotidiano das escolas que, em pleno século XXI,

permanecem marcadas por um modelo tradicional de ensino que se contenta em continuar

repetindo conteúdos e técnicas ultrapassadas, cujo resultado final será apenas a “formação” de

mais uma peça que ajude a manter em funcionamento esse modelo de educativo que foi

favorecido Revolução Industrial. Há outros pesquisadores em educação que, sob as luzes de

alguns projetos educativos apresentados por culturas passadas, buscavam encontrar um novo

modelo de formação. O pensador Eby, em seu livro, História da educação moderna, faz uma

análise dos modelos vivenciados pelas escolas desde o século XVI até o século XX. Dentre os

diversos modelos analisados, o autor chama a atenção para uma proposta que visa à formação

integral da pessoa, modelo fortemente influenciado pelo conceito de Paideia recebido dos

gregos e da Bildung1 (formação) alemã. Para Eby (1976, p. 336):

[...] o ideal grego era a expressão livre e natural do que é mais ideal na natureza

humana. Atividade própria, multilateral, harmoniosa, e espontânea, autodescoberta e

expressão eram as características deste novo ideal. Visava o verdadeiro, o belo e o

bom na humanidade. Tudo o que o homem empreende deve ter sua origem na união

de todos os seus poderes; qualquer coisa isolada é feia. Viver sua vida como um

todo orgânico, rítmico, é o fim mais alto. A formação de uma personalidade

completa, ajustada a todos os aspectos da vida humana, pelo desenvolvimento

harmonioso de todos os poderes do indivíduo, é o ideal.

Nessa proposta, encontramos um ideal de educação que se pauta no conceito de

Bildung (formação), que aponta em direção a um novo ideal de educação. Essa proposta

ressalta que os sistemas educativos apontam para uma espécie de utopia pedagógica, que

incentiva a formação integral e harmônica da pessoa, e, simultaneamente, reconhece, nela, a

paridade razão-emoção.

O ato de educar, em si, é integral, pois o mesmo objetiva contemplar todas as

dimensões da pessoa, portanto, não é interessante que uma proposta de educação seja

meramente pautada em técnicas fragmentadas, que é o reflexo do que temos vivenciado ao

longo desses três séculos. A práxis docente evidencia que é impossível separar os diversos

1 “A Bildung é tensão espiritual do eu, contato profundo com as várias esferas da cultura e consciência de um

crescimento interior para formas de personalidades cada vez mais complexas e harmônicas” (CAMBI, 1999, p.

420).

Page 6: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

conteúdos da cotidianidade do estudante, pois o processo educativo vai muito além de uma

capacitação em que crianças, jovens ou adultos são instruídos a desempenhar o domínio de

uma única técnica.

Quando analisamos detalhadamente a realidade do ensino brasileiro constatamos

que, ao longo desses três séculos, as coisas não mudaram muito. Nosso ensino permanece

meramente técnico e fragmentado, no passado eram treinados para “apertar parafusos”, e, na

atualidade, são capacitados para serem aprovados em processos seletivos, que visam,

exclusivamente, o ingresso no ensino superior. Como podem perceber, nesse processo de

ensino não há uma preocupação com a complexidade do mundo, onde o “apertar parafuso”

seria visto como uma mera atividade. Entretanto, à educação convém que esteja pautada na

integralidade da pessoa, no desenvolvimento de todas as suas potencialidades, porque é o todo

que precisa ser trabalhado, aprofundado, por meio do qual, o ser humano descobre a sua

capacidade de pensar e buscar soluções para os problemas complexos do mundo

contemporâneo.

O filósofo Gadamer, pensador alemão, em sua obra Verdade e Método I, dedicou

algumas páginas para explicar os conceitos básicos do humanismo, apresentando os

pressupostos da formação integral da pessoa. Ao abordar essa concepção de formação

demonstrou que o processo educativo precisa priorizar os conteúdos e processos que exaltam

a humanidade das pessoas. Ao mesmo tempo, mostra que:

a transferência é bastante evidente, pois o resultado da formação não se produz na

forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interior de formulação e

formação, permanecendo assim em constante evolução e aperfeiçoamento. Não é

por acaso que, nesse particular, a palavra formação se pareça com a palavra grega

physis. Assim como a natureza, a formação não conhece nada exterior às suas metas

estabelecidas (GADAMER, 1997, p. 46).

Assim, mostramos que educação não pode estar voltada apenas às coisas exteriores à

pessoa, mas precisa estar fundamentada em um processo formativo que mostra ser “possível

apropriar-se totalmente daquilo em que e através do que alguém é instruído. Nesse sentido,

tudo que ele assimila integra-se nele” (GADAMER, 1997, p. 47). Tudo que for adquirido no

processo de formação, em momento algum deixará de existir porque faz parte da essência da

formação, que cria, na pessoa, um crescimento contínuo, mostrando que o ser humano é um

ser histórico.

Page 7: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

4 Educação integral como um processo de humanização

Há muito, venho me perguntando sobre as diversas facetas que perpassam o mundo

educacional e o papel que foi delegado à educação. Cada vez que dedico um pouco do meu

tempo para pensar sobre essa temática, constato quão angustiante tem sido esse exercício.

Talvez essa angústia seja o que me desafia e me motiva à busca por uma educação que dê

conta de todas as necessidades humanas.

As opções por outro modelo de educação sempre têm suas razões. Não podemos

negar que, em um determinado momento histórico, a fragmentação do conhecimento deu sua

contribuição para o desenvolvimento da sociedade de seu tempo, entretanto, os dias são

outros, logo, as necessidades também. Sendo assim, já não é possível fundamentar as

atividades docentes sob um paradigma de uma educação fragmentada. Nesse modelo de

educação, a construção do conhecimento se justifica por intermédio das particularidades, e

não de pressupostos universais. São essas questões que influenciaram a busca de uma

proposta “mais completa”, que contemple as necessidades educacionais de hoje.

A história do pensamento ocidental apresenta algumas propostas educativas que já

haviam expressado essa preocupação. Dentre esses projetos, nos salta aos olhos a Paideia

grega. A cultura grega buscou um modelo de educação que contemplasse todas as

necessidades humanas. Foi aí que nasceu a primeira proposição de educação integral de que

temos conhecimento, na qual o ser humano foi pensado como um todo. Com o surgimento das

universidades, na Idade Média, renasceu a preocupação com integralidade do ensino e da

aprendizagem. A partir daí, essa missão foi atribuída às artes liberais. As artes liberais foram

pensadas para que pudessem contemplar todas as dimensões da aprendizagem humana.

De repente já estejam se perguntando o que é uma educação integral? Ao

respondermos essa questão estamos apontando uma concepção de educação que permite à

pessoa (criança, adolescente, jovem ou adulto) tornar-se um ser integral. Ao mesmo tempo,

esse ser necessita realizar-se diante da complexidade do mundo da vida. A educação integral

só ocorrerá, de fato, a partir do instante que considerarmos o desenvolvimento humano como

processo existencial.

Este conceito de desenvolvimento amplia a ideia de que existem apenas faixas pré-

fixadas e certamente estáveis, pelas quais a pessoa precisa, necessariamente passar.

Como o desenvolvimento existe desde o nascimento até a morte, a maneira mais

Page 8: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

aberta de entendê-lo pressupõe não apenas a pessoa em si, mas todo um contexto no

qual se situam outras pessoas e padrões culturais (MOSQUERA, 1987, p. 85).

Desse modo, a concepção de educação integral parte do princípio de unidade e de

totalidade do ser humano. Diferentemente do modelo de educação escolhida pela revolução

industrial, em que a pessoa como unidade é negada, ignorada, demonstrando que não há uma

obrigatoriedade de pensar no desenvolvimento de todas as potencialidades do ser humano.

Nesse sentido, podemos encontrar uma nova postura do ser, pois esse ser não estará

fadado a adquirir somente habilidades técnicas, mas ele será desafiado a buscar os

conhecimentos que lhe permitem relacionar as habilidades adquiridas com o seu sentido de

vida. Trata-se do desafio de desenvolver uma “identidade do eu pós-convencional, resultado

de um progressivo processo de autoentendimento, de individuação, de autonomia, de

autodeterminação e de autorrealização dos diversos sujeitos sociais” (CASAGRANDE;

FOSSATTI, 2011, p. 76). O desenvolvimento de uma identidade não ocorre a curto, mas a

longo prazo. O sujeito precisa ter-se nas mãos. É por isso que o processo educativo precisa

propiciar ao ser o autoconhecimento e a autorrealização que se potencializará por intermédio

de uma educação integral.

É nesse sentido que não se pode mais dar continuidade a um sistema educacional que

está voltado essencialmente para a aprovação em vestibular e, depois, no máximo, que facilite

para que o estudante ingresse numa especialização precoce. Tudo isso ocorrerá “em

detrimento e esquecimento de uma compreensão e visão de totalidade do mundo se constitui

no maior desafio filosófico-pedagógico dos nossos dias, que engloba os demais” (ROHDEN,

2009, p. 104). Ou seja, o modelo atual é incentivado não àqueles que estudam para aprender,

que buscam a autonomia, habilidades e competências que lhe ajudam a pensar nas questões

técnicas e existenciais que surgem, mas na valorização do estudante que frequenta a escola

para ser aprovado em processos seletivos.

Quando retornamos aos clássicos para compreender o modelo e o processo de ensino

e aprendizagem dessas tradições nos depararemos com realidades– de modo particular, na

sociedade ateniense –, onde a “filosofia e a pedagogia eram tidas como um ideal intelectual,

portanto, de formação humana – imbricado com a práxis humana da qual o conhecimento não

poderia ser desvinculado totalmente” (ROHDEN, 2009, p. 106). Esse ideal intelectual

garantia a integralidade do ser, pois a proposta educativa grega objetiva a formação de um

Page 9: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

cidadão virtuoso que fosse capaz de desempenhar qualquer atividade, preferencialmente a

atividade política. No processo de formação do homem grego, compreendemos que:

Filosofia ou educação ou formação, para os gregos, não era apenas uma questão de

inteligência ou de habilidade com as palavras ou de capacidade de abstração, mas

um exercício intelectual e prático do bem, do belo, do justo, enfim, da aquisição de

sabedoria (ROHDEN, 2009, p. 107).

A educação, nesse sentido, é compreendida como cuidado de si. Ela não é a única

dimensão que precisa ser supervalorizada, porque todas as dimensões humanas carecem ser

priorizadas no processo educativo. O sábio não pode ser somente quem possui habilidades

com as palavras ou capacidade de abstração, mas todo aquele que assume sua própria vida de

modo autônomo e responsável.

Somente quem se encarrega da própria vida pode ver nela a realização de si mesmo.

Tomar conta da própria vida, responsabilizando-se dela, significa ter claro quem se

quer ser, e desde este horizonte, considerar os sinais das próprias interações como se

fossem sedimentos das ações de um dono de seus atos, de um sujeito, portanto, que

tem atuado sobre a base de uma relação reflexiva consigo mesmo (HABERMAS,

2003, p. 142).

Desse modo, a educação é a ferramenta primeira que proporciona ao ser se

autorrevelar, isto é, dar-se a conhecer, mediante a elaboração de sua história, que, por sua vez,

se fundamenta na educação integral, na qual arte e sabedoria, verdade e solidariedade,

persuasão e altruísmo, técnica e ética caminham de mãos dadas, e não em margens

contrapostas. Essa proposição de educação integral que hora dissertamos se faz presente no

projeto filosófico de Platão. Segundo Rohden, a proposta platônica representa a tradição

pedagógica que concebe a formação do homem em seu todo, não apenas como aquisição de

uma habilidade, de um conhecimento especializado desconectado do todo.

5 Considerações Finais

Pensar os processos educativos é sempre uma atividade árdua devido à diversidade e

à complexidade existente em cada sociedade e cultura, pois são sempre únicas. Cada uma

delas possui suas características próprias. Nasce aí a necessidade de olhar para o pretérito,

para que possamos compreender, refletir e apresentar proposições que propiciem o

Page 10: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

desenvolvimento de uma proposta educativa que responda aos desafios típicos de cada

instante.

A opção feita no passado, por um modelo de educação fragmentada, colaborou para

o desenvolvimento da técnica e de todas as suas derivações. Esse modelo, paulatinamente, foi

conduzindo o homem moderno a sua autodestruição, pois foi esse modelo de educação que

evidenciou que estamos vivendo em um mundo dividido, fragmentado, onde as decisões

ocorrem por intermédio de observações e decisões totalmente isoladas.

Há pouco mais de uma década, testemunhamos a passagem de um século marcado

por decisões bárbaras que por pouco não dizimou a vida no planeta. Em menos de trinta anos,

o século XX foi tomado por duas grandes guerras mundiais, que externalizaram as

consequências de uma opção por um modelo de educação fragmentado.

No nascer do século XXI, muitas esperanças ressurgiram. A confiança de que um

novo mundo fosse possível, por alguns meses, demonstrava ser real. Entretanto, com o

término da primeira década desse novo século, as sociedades e seus membros constataram que

pouca coisa mudou. Que esse novo período começou tão fragmentado e violento quanto o seu

antecessor. Isso é o que desperta em todos os educadores movidos por uma utopia, que

acreditam que as coisas podem ser diferentes.

De repente, esteja se perguntando: o que posso ou precisamos fazer? Talvez a

resposta que gera mudanças esteja em apostar na solidariedade entre os seres humanos, cuja

dependência com os demais, inclusive à escola mundial, torna-se cada vez mais evidente.

Apostar em outra forma de subjetividade, em outro tipo de relações sociais; sonhar com uma

espécie humana que se aventura em busca da consciência de si mesma, ao mesmo tempo em

que as pessoas se tornam solidárias e envoltas em um mesmo tempo e espaço. Mas, para isso,

precisaremos de outro modelo de educação. E esse outro tem nome: educação integral.

É preciso pensar e desenvolver todas as habilidades do ser humano. Todas as suas

potencialidades. Afinal, o ser humano é um ser de relação como bem ressaltaram Ludwig

Feuerbach e Martin Buber, mostrando que o homem é um ser de relação com ele, com o outro

e com o cosmo.

Quem sabe esteja aí a ideia defendida por Marx, em sua sexta tese sobre Feuerbach,

“a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade,

o conjunto das relações sociais”. Com isso, Marx faz referência a uma dimensão da educação

integral, que é a socialização. A partir das ideias defendidas pela esquerda hegeliana, aqui

Page 11: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

expressadas por Feuerbach e Marx, onde compreendemos que a educação é

indissociavelmente construção de si mesma e apropriação do mundo humano. Ela é um

movimento de dentro, alimentado pelo que o educando encontra fora de si mesmo, pelo que

ele encontra em seu mundo da vida. Quanto mais sociais formos, mais singulares seremos,

pois somos seres de desejos. Temos desejos. Será que desejamos mudar?

REFERÊNCIAS

BLANCHET, René. Conhecimento da terra e educação. In: MORIN, Edgar. O desafio do

século XXI: religar os conhecimentos. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 127-132.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

EBY, Frederick. História da educação moderna: séc. XVI / séc. XX, teoria, organização e

práticas educacionais. Trad. Maria Ângela Vinagre de Almeida. 2. ed. Porto Alegre: Editora

Globo, 1976.

FOSSATTI, P.; CASAGRANDE, C. A. Formação Integral e Integradora. In: Fossatti, P.;

Henguemüle, E.; Casagrande, C. A. (Orgs.). Ensinar a bem viver. Canoas: Unilasalle, 2011,

p. 67-84.

GADAMER, Hans-Gerorg. Verdade e método I. Petrópolis: Vozes, 1997.

HABERMAS, Jurgen. Teoría de la acción comunicativa II: critica de la razón

fundacionalista. 4. ed. Madrid: Taurus, 2003.

MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Disponível em:

<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/feuerbach.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2012.

MOSQUERA, Juan José Mouriño. O professor como pessoa. Porto Alegre: Sulina, 1978.

ROHDEN, Luiz. Sobre a atualidade da paideia grega. In.: CENCI, Ângelo Vitório. et all

(Orgs.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo

Fundo: UPF, 2009, p. 103 – 118.

Page 12: UMA LEITURA FILOSÓFICA DA FRAGMENTAÇÃO DO …

Uma leitura filosófica da fragmentação do conhecimento

José Francisco dos Santos

Revista Litterarius – Faculdade Palotina Vol.11 | N. 02 | 2012 – ISSN 2237-6291

www.fapas.edu.br/revistas/litterarius [email protected]

Recebido: 04/09/2012

Received: 09/04/2012

Aprovado: 27/09/2012

Approved: 09/27/2012