uma história contada diferente o racismo como arma ideológica … · 2019. 3. 19. · “o...
TRANSCRIPT
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
1
2016
Uma história contada diferente
Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se
opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as
diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que
demonstra como a polêmica que se monta em torno de
seu significado transcende em muito as questões
acadêmicas, para atingir um significado mais
abrangente, da ideologia de dominação. Somente
admitindo o papel social, ideológico e político do
racismo poderemos compreender sua força
permanente e seu significado polimórfico e
ambivalente.
Apenas desta forma poderemos compreender por que
se trata de um conceito tão polêmico e, também, por
que em determinados contextos políticos e momentos
históricos o racismo adquire tanta vitalidade e se
desenvolve com tanta agressividade: ele não é uma
conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com
pesquisas de laboratório que comprovem a
superioridade de um grupo étnico sobre outro, mas
uma ideologia deliberadamente montada para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre
aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa, portanto, uma ideologia de dominação, e somente assim
pode-se explicar a sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma questão científica cuja última
palavra seria dada pela ciência é plena ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e nem por
isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no contexto das relações locais, nacionais e internacionais.
O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também
ideológico e político. É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas através do seu viés acadêmico
e estritamente científico, uma vez que ele transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de
sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário superpõe-se a essas conclusões com todo um arsenal
ideológico justificatório de dominação.
Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido de que no próximo século milhões de homens se matarão por
um ou dois graus do índice cefálico”. Isso foi escrito em 1880. O que esse teórico do racismo queria expressar
eufemisticamente é que a humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferenças raciais seriam
O racismo como arma ideológica de dominação
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
2
2016
um dos pretextos ideológicos de que os agressores lançariam mão para justificar a conquista de territórios
colonizáveis.
É uma constante o traço antropológico estar embutido na crista da ofensiva racista de dominação. Com isso não
queremos dizer que toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que a divulgação que se faz
dessa ciência, especialmente para a opinião pública leiga, é nesse sentido. A expressão de Lapouge teve
contestadores, mas o que se viu foi a florescência progressiva dessa posição no final do século XIX e início do
século XX, a ponto de fazer com que milhões de pessoas dela compartilhassem. O racismo é um multiplicador
ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas das nações dominadoras e serve-lhe como arma de
combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome
do direito biológico, psicológico e cultural de “raças eleitas”.
Há também o racismo interno em várias nações, especialmente
nas que fizeram parte do sistema colonial, através do qual suas
classes dominantes mantêm o sistema de exploração das
camadas trabalhadoras negras e mestiças.
Com a montagem do antigo sistema colonial e a expansão das
metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como
arma justificadora da invasão e do domínio das áreas
consideradas “bárbaras”, “inferiores”, “selvagens” que, por
isso mesmo, seriam beneficiadas com a ocupação de seus
territórios e a destruição de suas populações pelas nações
“civilizadas”.
O racismo larval que encontramos em todos os povos antes da aventura colonialista passa a revestir-se de uma
roupagem científica a ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos dizer que o racismo moderno
nasceu com o capitalismo. Referimo-nos ao racismo como o entendemos modernamente, o qual procura justificar a
dominação de um povo, nação ou classe sobre outra invocando argumentos “científicos”. Antes do aparecimento do
capitalismo,
“(…) as tentativas feitas para justificar a dominação europeia sobre os indígenas eram fundadas em crenças
sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos, ao contrário dos povos submetidos, nada mais lógico e natural de
que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos negros podiam
inclusive justificar a escravidão em uma passagem do Velho Testamento, no qual se lê que os filhos de Cam
foram condenados a ser lenhadores e aguadeiros. Obviamente, essas razões sobrenaturais logo começaram a
perder seu valor e em seguida os brancos imaginaram outras justificativas mais de acordo com a natureza. A
doutrina da seleção natural e da sobrevivência do mais apto foi um argumento que veio a calhar. A rapidez com
que esse conceito puramente biológico chegou a dominar em todos os campos e atividades do pensamento
europeu nos dá a ideia da necessidade urgente que se precisava para justificar a dominação. Nessa teoria
universalmente aceita, a dominação europeia encontrou a forma de justificar-se que estava procurando. Já que
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
3
2016
os brancos haviam conseguido mais êxito que as outras raças, tinham de ser, per si, superiores a ela. O fato de
que essa dominação tinha data muito recente foi justificado alegando-se que o europeu médio não tinha 3
perspectiva mundial, assim como os outros argumentos que procuravam demonstrar que as raças restantes
ocupavam na realidade uma posição inferior na escala da evolução física”
É exatamente nesta confluência do capitalismo com as doutrinas biológicas da luta pela vida e a sobrevivência do
mais apto que o racismo se apresenta como corrente “científica”. Surge, então, a ideia de raça como chave da
história. Ela aparece exatamente na Inglaterra com Robert Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur
de Gobineau (Essai sur l’inégalité des races humaines).
Para Alan Davies,
“(…) do primeiro surgiu o mito do gênio racial saxão –
mais tarde anglo-saxão – e do último surgiu o mito do
gênio racial ariano; mas ambos os mitos eram variantes
do tema geral da superioridade branca europeia sobre
os não-brancos. Sua gênese foi política. Knox
procurava provar que o homem saxão era democrata
por natureza e por isso o futuro dominador da terra.
Gobineau, por outro lado, não gostava da democracia e
procurou provar que seu surgimento era um sinal certo
de decadência e da morte iminente da civilização. Em
ambos os casos as raças não-brancas eram relegadas a
uma posição inferior como símbolos dos elementos
primitivos e não-criativos na natureza humana”
Deduz-se, portanto, sem muito esforço, que o racismo pode ser considerado – da forma como o entendemos
atualmente – um dos galhos ideológicos do capitalismo. Não por acaso ele nasceu na Inglaterra e na França e depois
desenvolveu-se tão dinamicamente na Alemanha. O racismo é atualmente uma ideologia de dominação do
imperialismo em escala planetária e de dominação de classes em cada país particular.
Desta forma explica-se o sistema colonial e o pilar de seu êxito: de um lado, exterminar as populações autóctones
das áreas ocupadas e, de outro, justificar o tráfico negreiro com a África, um dos fatores mais importantes da
acumulação capitalista nos países europeus. As populações autóctones não tinham direito aos territórios onde
viviam por serem primitivas; e às africanas, que já sofriam a maldição bíblica de Cam, juntava-se agora seu atraso
biológico, sua semelhança e proximidade com os mais primitivos espécimes da raça humana, quer dizer, eram
antropóides que se desviaram de sua árvore genealógica. Com isso, o chamado processo civilizatório tinha o
respaldo da ciência. A afro-América, que compreendia, no século XVIII, o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
4
2016
parte da América espanhola continental (costa do Peru, partes do que são hoje a Venezuela e a Colômbia) já
estavam inteiramente dominadas, e a justificativa para a sua dominação era a mesma: a incapacidade inata
(biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.
Toda essa população nativa ou compulsoriamente trazida da África fazia parte de uma massa sem história, sem
máscara, sem cultura, sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX os teóricos racistas
substituíram as explicações um pouco vagas por explicações “científicas”, como já foi dito, enquanto as demais
áreas da Ásia, África e Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.
Foi a época áurea da antropometria, quando Gobineau, Ammon, Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas
no sentido de saber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões biológicas) aos camponeses pela
sua capacidade craniana; se os nórdicos eram superiores aos alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos
eram superiores a outras “raças” europeias.
Tais conclusões eram baseadas em pesquisas históricas; na mensuração de crânios e esqueletos; na medição de
índices cefálicos, e na capacidade craniana de cada grupo pesquisado. Tudo isso, no entanto, representava, em
última instância, as contradições e os conflitos das nações europeias em 4
luta pela dominação continental. Convém notar que alguns deles, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas
conclusões antes de terem lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859 e deu novo alento a essas
hipóteses com a sua teoria da “sobrevivência do mais apto”, criando a escola do darwinismo social. Como diz uma
antropóloga, “havia-se descoberto uma razão” 'científica' que santificava o velho axioma 'o poder
faz o direito'”. Por outro lado, entrava-se na época aguda do colonialismo e as disputas pelos territórios
conquistados ou a serem conquistados. Afirmou Ruth Benedict:
“O racismo converteu-se em grito de guerra durante este período nacionalista. A pátria, que necessitava de uma
palavra-de-ordem aglutinadora, se outorgou um pedigree e um vínculo que levava a que qualquer homem podia
compreender e sentir-se orgulhoso dele. O racismo foi, a partir daí, uma babel de vozes diferentes. Os franceses,
os alemães, os eslavos, os anglo-saxões, todos produziram literatos e políticos consagrados a demonstrar que,
desde o princípio da história europeia, os triunfos da civilização devem-se exclusivamente à sua ‘raça’”
Como se vê, essa antropo-sociologia era reflexo e rescaldo de uma competição sociopolítica entre as nações da
Europa. Era, por isso mesmo, uma ciência eurocêntrica. Com a instalação e o dinamismo do sistema colonial e seu
desdobramento imperialista, ela se estende ao resto do mundo e aí procura ter uma visão mais abrangente e
sistemática, unindo todas as diferenças étnicas europeias em um bloco compacto – o branco –, que passa a se
contrapor ao restante das populações não civilizadas, dependentes, e racialmente diversas das matrizes daquele
continente. Não se cogita mais nas diferenças entre o nórdico, o alpino, o mediterrâneo, que passam a ser, de modo
genérico, componentes da raça branca. E essa raça tinha por questões de superioridade biológica o direito de
tutelar os demais povos.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
5
2016
A partilha da África, feita por Bismarck na Alemanha, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885
criou uma trégua entre as nações conquistadoras, e com isso o mundo ficou dividido entre os brancos civilizados
europeus e os povos não-brancos “bárbaros” e “selvagens”.
Civilizados que mandam e bárbaros que obedecem
Ordenado o colonialismo através do racismo, as nações dominantes sentiram-se à vontade para o saque às colônias
e para as razias mais odiosas nas regiões da Ásia, América Latina, África e Oceania e para agir contra todos os
que compunham as multidões de desamparados e anônimos da história. Não só roubaram-lhes as riquezas, mas suas
culturas, crenças, costumes, língua, religião, sistemas de parentesco e tudo o que durante milênios esses povos
constituíram, estruturaram e dinamizaram.
As explicações eram fáceis e já vinham pré-fabricadas pela sociologia antropológica desenvolvida na Europa para
dar aparência de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou pretensamente humanista
europeia achava essa espoliação natural e defendia o direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos
colonizados. Renan, neste sentido, escreveu:
“A regeneração das raças inferiores pelas raças superiores está dentro da ordem providencial da humanidade. O
homem do povo é quase sempre, entre nós, um nobre renegado, sua mão pesada é mais acostumada ao manejo da
espada do que ao utensílio servil. Prefere bater-se a trabalhar, isto é, regressa ao seu primeiro estado. Regere
imperio populos, eis a sua vocação. Derramai esta devorante atividade sobre os países que, como a China,
concitam a conquista estrangeira. Dos aventureiros que desinquietam a sociedade europeia, fazei um ver sacrum,
um exame como dos francos, dos lombardos, dos normandos, e cada qual estará no seu papel. A natureza gerou
uma raça de operários – é a raça chinesa – duma maravilhosa destreza de mão e quase nenhum 5
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
6
2016
sentimento de honra; governai-a com justiça, cobrando-lhe pelo benefício de tal governo um amplo erário em
proveito da raça conquistadora, e ela ficará satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra é o negro, sede para
ele bom e humano e tudo estará em ordem; uma raça de senhores e soldados é a raça europeia. Que se reduza
esta nobre raça a trabalhar no ergástulo como os negros e os chineses e ela revolta-se. Entre nós todo revoltado
é, mais ou menos, um soldado que errou de vocação, um ser feito para a vida heróica e que constrangeram a uma
tarefa contrária à sua raça, mau operário, soldado bom demais. Ora, a vida que revolta os nossos trabalhadores
faria a felicidade de um chinês, dum fellah, seres de maneira alguma militares. ‘Que cada um faça aquilo para que
nasceu e tudo correrá bem'”
Os europeus – arianos, mediterrâneos, alpinos etc. –
neste contexto eram os brancos. A grande massa de
povos colonizados era a população indistinta, e o
denominador que as igualava era a vocação de servir,
trabalhar para os brancos, que tinham o dom divino e
biológico de governá-la.
Com a passagem do colonialismo para o imperialismo
(neocolonialismo), o racismo é remanejado em sua
função instrumental. As metrópoles passam a ver as
áreas coloniais como habitadas por povos indolentes,
incuravelmente incapazes de criar uma poupança
interna que os elevasse ao nível dos países brancos, que
tinham estes predicados e se desenvolveram, ao
contrário do mundo não-branco que, por esta razão,
permanece subdesenvolvido.
A teoria do pensamento pré-lógico desses povos,
criada por L. Lévy Bruhl, condenava-os a uma posição
de dependência circular, porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura psicológica, sendo
refratários e impermeáveis à experiência e à razão e essencialmente religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão
estanque entre os povos dominados e os dominadores, pois esse pré-logismo impedia-os de passar da economia
natural para a economia monetária (lógica) levada pelos dominadores (5). Neste sentido, K. Marx e F. Engels
escreveram, em 1848:
“(…) devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção e dos meios de comunicação, a burguesia
arrasta na corrente da civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia
pesada que destrói todas as muralhas da China e faz capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos
estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção. Numa
palavra, modela o mundo à sua imagem”
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
7
2016
O imperialismo multiplica as formas do racismo, “moderniza-o” na medida em que há necessidade de uma arma de
dominação mais sofisticada. Segundo a teoria de L. Lévy Bruhl, como éramos pré-lógicos, os movimentos de
libertação que se dinamizavam nas regiões colonizadas ou dependentes não eram políticos, mas etnocêntricos,
chauvinistas, xenófobos, nacionalistas ou messiânicos, ou seja, eram movimentos pré-políticos. Embora o conceito
de movimentos pré-políticos tenha sido cunhado por um historiador grandemente ligado ao pensamento marxista
– E. J. Hobsbawn – acreditamos que ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoliberal de analisar e interpretar
a dinâmica social. Se o aceitarmos, seriam excluídos como políticos todos os movimentos do chamado Terceiro
Mundo; a luta de Zapata e Pancho Villa, no México; a de Sandino, na Nicarágua; o movimento camponês de Pugachov,
na Rússia; todos os movimentos de libertação da África, como o kinganbista, incluindo os Mau Mau e o de Lumumba.
Tudo seria englobado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianismo, e seria descartada sua essência
política. Os povos “inferiores” não tinham condições de entrar no sentido universal da história, eram a-históricos.
Com isto justificava-se a repressão contra eles e os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos
europeus, civilizados e “normais”, não existiam movimentos que pudessem ser
enquadrados como aceitos pelas nações dominadoras, como continuadores do “sentido” da civilização. As próprias
lutas de libertação nacional eram (como acontece até hoje) consideradas revoltas intertribais, movimentos
atípicos e perturbadores do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civilização e à igualdade de
direitos. A nossa inferioridade congênita e inapelável – biológica e psicológica – nos reduzia a satélites do processo
civilizatório.
“A questão racial é essencialmente política e não apenas científica”.
Tudo isto era respaldado por uma intelectualidade que se apresentava como tutora do conhecimento, do saber e,
ao mesmo tempo, assessora dos mentores metropolitanos.
Como vemos, a chamada “questão racial” não pode ser compreendida se a interpretarmos como uma questão
meramente científica, cuja solução será encontrada pelos antropólogos entre as quatro paredes de um laboratório
ou nas salas de congressos de especialistas. Pelo contrário. Devemos partir de uma posição crítica radical, através
da reformulação política, da modificação dos pólos de poder, especialmente das áreas do chamado Terceiro Mundo.
É uma situação que ficará sempre inconclusa se não a analisarmos como um dos componentes de um aparelho de
dominação econômica, política e cultural.
No caso da América Latina, o racismo, como ideologia do colonialismo, penetrou fundo no pensamento da elite
intelectual colonizada. Todo o arsenal “científico” que vinha da Europa sobre a questão racial era aqui repetido
sem ser filtrado, não porque fosse a “última palavra da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das
metrópoles. No lado oposto expressava-se uma visão democrática e não racista do problema; esta corrente
progressista era desacreditada pela intelligentsia colonizada. O cientista russo Tchernichevsky, por exemplo,
escreveu que “os escravistas eram pessoas da raça branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão
nos tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical entre as diferentes raças humanas”. E Jean
Finot, em seu livro O preconceito racial, declarou: “as raças como categorias irredutíveis existem somente como
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
8
2016
ficções nos nossos cérebros”. E mais: “as diferenças culturais existem e foram assinaladas neste livro, porém
somente são produtos transitórios, como resultado de circunstâncias externas, e desaparecerão do mesmo modo”
No entanto, essas conclusões anti-racistas eram consideradas heresias científicas. Sílvio Romero, depois de citar
o antropólogo alemão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em relação ao francês, escreve
sobre o pensamento de Finot: “Fugir das tolices do russo que se assina Finot, e cujo nome antigo é João Finkelhaus,
literato de segunda ordem, ignorantíssimo em antropologia e ciência em geral”
Mas não era somente Sílvio Romero quem endossava o racismo no Brasil da época. E convém esclarecer que
estávamos em pleno processo abolicionista e os escravistas e senhores de escravo tinham, como um dos suportes
que legitimava a escravidão, a inferioridade biológica e cultural do africano. Euclides da Cunha, outro importante
representante de nossa cultura dominante, repetia o mesmo pensamento racista. Sua posição em relação ao
mestiço e ao negro não deixa dúvidas. Estuda o negro afirmando que “a raça dominada (negra) teve aqui dirimidas,
pela situação social, as facilidades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade extrema, sem
as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros, toda a pressão da vida colonial”
Para ele, o negro é a “besta de carga”, o “filho das paisagens adustas e bárbaras”; Palmares é “grosseira
odisseia” e por isto a ação dos bandeirantes destruindo-o
foi um benefício à nossa civilização; são “vencidos e
infelizes”; o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo
quilomba, 7
“temeroso”, “aguilhoado à terra”; são “foragidos”, a raça é
“humilhada e sucumbida”. Para ele a desigualdade racial
era um fato provado “ante as conclusões do evolucionismo”.
O negro, como vemos, era o componente de uma raça
inferior. O índio, por seu lado, não tinha capacidade de “se
afeiçoar às mais simples concepções do mundo”. E, quanto
ao mestiço desses cruzamentos, no seu “parênteses
irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de
um desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para
este embate de tendências antagonistas” (10).
A ideologia do colonialismo era, e ainda é, alimentada por toda uma literatura racista que nos vinha, ou nos vem,
das metrópoles colonizadoras, para nos inferiorizar através da nossa própria auto-análise.
O racismo brasileiro quer um país “eugênico”
Passada a fase da abolição, com sua conclusão negativa para a população negra, e concluído o golpe militar
republicano, com a persistência das oligarquias agrárias, o racismo brasileiro procura novas roupagens
“científicas”. Na Europa o racismo entra em ascensão e transforma-se em força agressiva, agressividade que terá
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
9
2016
a sua conclusão na vitória do nazismo na Alemanha. No Brasil há uma recomposição ideológica do mesmo sentido.
Essa tendência racista-elitista de nossa intelectualidade tradicional se revigora.
Na época da ascensão do nazismo e do fascismo, houve aqui no Brasil um trabalho ideológico racista feito pela
nossa intelectualidade. Essa divulgação e essa prática concentraram-se na Liga da Higiene Mental, que congregou
grandes nomes da ciência. Jurandir Freire Costa, autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o
programa dessa entidade tinha como objetivo a intolerância e o obscurantismo. Fundada em 1923 e dedicada à
prevenção de doenças mentais, longe de estabelecer uma abordagem científica de doença mental, adotava e
enfatizava posições nitidamente ideológicas, elaborando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do
arianismo, da superioridade racial, justamente as que prevaleceram na Alemanha nazista. Seus membros mais
conspícuos passaram a defender na área profissional, e publicamente, a esterilização e a segregação perpétua de
todos os indivíduos considerados loucos ou desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação; daí passaram a
pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda segundo os padrões que adotavam e que definiam
como tais os não-brancos puros
“Já se quis uma reforma “eugênica” dos salários: maiores para os brancos, menores para os negros”. A pregação
da Liga concentrou seus fogos particularmente na imigração: o Brasil deveria, nesse campo, adotar rigorosos
critérios seletivos, em que se inseria a condenação à entrada de negros e asiáticos em nosso país – “rebotalho de
raças inferiores” –, alegando que “já nos bastavam os nordestinos, os híbridos e os planaltinos miscigenados com
negros”. Xavier de Oliveira, um dos membros da Liga, partidário do que entendia por eugenia, manifestava sua
satisfação pela decadência incontestável e pela “extinção não muito remota” dos índios da Amazônia. A condenação
ao fim próximo alcançava, também, os mestiços, cuja proibição de entrada no Brasil era encomendada pela Liga em
1928. Outra de suas reivindicações: a reforma eugênica dos salários, privilegiando os brancos.
Reivindicava também concessão de benefícios econômicos e financeiros às famílias que procriassem indivíduos
“superiores”. A mais audaciosa foi a criação de Tribunais de Eugenia, que decidiriam sobre a esterilização e o
confinamento de membros das raças inferiores. Em 1934 a revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental,
editada pela Liga, publicava a lei alemã de 8
esterilização dos “doentes transmissores de taras”, com entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”,
dizia a publicação, “tomava conhecimento da nova e grande lei alemã de esterilização dos degenerados”. A citada
lei, de 14 de julho de 1933, era assinada por Hitler, além de Frick e Gurther, ministros do Interior e da Justiça,
respectivamente.
Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi aquele no qual o seu autor procurava demonstrar que a Inquisição
operara a partir de uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e seus sacrifícios “tiveram uma consequência
benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Jurandir Freire Costa, a Liga associava-se à polícia em ações “sempre
caracterizadas pela truculência”; a polícia fornecia, confidencialmente, nomes e endereços de alcoólatras, que
eram, então, procurados pelos psiquiatras da Liga e internados em hospitais e centros ditos de saúde mental; ali
eram submetidos a tratamentos de acordo com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante três
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
10
2016
décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmente psiquiatras: representavam a ciência oficial, isto
é, a ciência das classes dominantes, numa época em que o nazismo já se manifestava e apresentava a raça alemã
como “raça eleita”.
Entre esses nomes famosos, figuravam Renato Kehl, presidente da Sociedade de Eugenia em 1929; Alberto Farani,
presidente da Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene Mental e chefe do serviço dos
ambulatórios de Profilaxia Mental do Hospital Rivadávia Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica Psiquiátrica
da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro e médico do Hospital Nacional de Psicopatas.
À época da Liga de Higiene Mental, a década de 1920 e a primeira metade da década de 1930, surgiram e se
ampliaram consideravelmente em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as teses de Oliveira
Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista, elitista e neocolonialista.
Assim como aconteceu na época de Sílvio Romero, a produção cultural dominante espelhava a alienação social e,
consequentemente, cultural a qual estava submetida. A obra de Oliveira Vianna, em particular, é um marco
significativo de como a intelectualidade brasileira deixa-se vergar ideologicamente e refletia em sua produção
uma rejeição à sua própria condição de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda
representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e político, expressa através de uma produção
estimulada pelo neocolonialismo; em outras palavras, o imperialismo tecnocrático.
Da derrota do nazismo ao aparecimento da Guerra Fria
Derrotado o nazismo, o pensamento de direita e especialmente o racismo entraram em recesso, e no âmbito das
ciências biológicas e sociais houve toda uma rearticulação contra tais ideias. Foi o momento dos grandes
pronunciamentos dos antropólogos e dos sociólogos, que repuseram a questão racial em termos científicos. Em
1950 divulgou-se uma declaração redigida na casa da Unesco por oito dos maiores nomes da antropologia e da
sociologia mundiais, entre eles: Juan Comas, do México; Levi Strauss, da França; Morris Ginberg, da Inglaterra;
A. Montagu (relator), dos Estados Unidos, e L. A. Costa Pinto, do Brasil. Nas suas conclusões diziam:
a) Os antropólogos só podem estabelecer classificação racial sobre características puramente físicas e
fisiológicas.
b) No estado atual dos nossos conhecimentos, não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos
humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos, quer se trate da inteligência ou do
temperamento. As pesquisas científicas revelam que o nível de aptidões mentais é quase o mesmo em todos os
grupos étnicos.
c) Os estudos históricos e sociológicos corroboram a opinião segundo a qual as diferenças genéticas não têm
importância na determinação das diferenças sociais e culturais existentes entre diferentes grupos da espécie
Homo sapiens, e as mudanças sociais e culturais no seio de diferentes grupos foram, no conjunto, independentes
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
11
2016
das modificações na sua constituição hereditária. Vimos produzirem-se transformações sociais consideráveis que
não coincidem de maneira alguma com as alterações de tipo racial.
d) Nada prova que a mestiçagem, por si própria, produza maus resultados no plano biológico. No plano social, os
resultados, bons ou maus, que alcançou são devido a fatores de ordem social.
e) Todo indivíduo normal é capaz de participar da vida em comum, compreender a natureza dos deveres recíprocos
e respeitar as obrigações e os compromissos mútuos. As diferenças biológicas que existem entre os membros de
diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a organização política ou social, a vida moral ou as relações
sociais.
Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a ética da fraternidade universal; pois o homem é, por tendência inata,
levado à cooperação e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos e nações padecem igualmente
por isso. O homem é por natureza um ser social, que só chega ao pleno desenvolvimento de sua personalidade por
trocas com os seus semelhantes. Toda recusa de reconhecer este laço social entre os homens é causa de
desintegração. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão. Cada ser humano é apenas uma parcela
da humanidade, a qual está indissoluvelmente ligado.
Depois desse documento saiu a Declaração de 1951, assinada por um grupo de antropólogos e geneticistas, que
ampliava mais analiticamente o texto do primeiro, com as mesmas conclusões. Outro documento da Unesco, e nos
parece que o último, redigido em Moscou, ainda é mais enfático na condenação ao racismo.
No Brasil a reação não é diferente. Em 1935 surge o Manifesto dos intelectuais contra o preconceito racial, em
que se enfatiza o racismo como anticientífico:
“O movimento contra o preconceito racial visa apenas a combater as influências estranhas que nos querem arrastar
para o turbilhão dos racismos truculentos, como também contribuir para todos os meios para o estudo dos
problemas surgidos na própria formação étnica, tendo sempre em mira promover maior harmonia e mais fraternal
cordialidade entre os elementos que vão caldeando na etnia brasileira”.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
12
2016
Assinam o documento, entre outros, Roquete Pinto, Maurício de Medeiros, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Hermes
Lima, Leônidas de Rezende e Joaquim Pimenta. Em seguida podemos citar o Manifesto contra o racismo, da
Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, que foi aprovado por aclamação no dia 3 de setembro de 1942.
O documento terminava nos seguintes termos:
“(…) queremos oferecer a todo o mundo civilizado a nossa magnífica filosofia no tratamento das raças como o
maior protesto científico e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias da concepção nazista da
vida, este estado patológico de espírito que pretende envolver a humanidade numa espessa e irrespirável
atmosfera de luto”.
Era a volta, também no Brasil, de uma ciência social que repudiava os postulados nazistas no julgamento das raças
e a sua função e papel no processo civilizatório.
Já haviam se realizado, nessa ocasião, dois congressos afro-brasileiros: o primeiro em Recife, em 1934, por
iniciativa de Gilberto Freyre; e o segundo em Salvador, por iniciativa de Edson Carneiro, 10
em 1937. Nos anais de ambos podemos ver a preocupação de muitos congressistas em relação ao problema racial
e o seu dilema no Brasil. Dos anais do primeiro podemos destacar as comunicações de Mário de Andrade, Alfredo
Brandão, Gilberto Freyre, Adhemar Vidal, Jovelino M. de Camargo Jr, Mário Melo, Rui Coutinho, Rodrigues de
Carvalho e outros. Nesses autores nota-se a preocupação de descartar a inferiorização do negro, via fatores
biológicos (inatos), e ressaltar a escravidão como causa de nosso atraso. No segundo congresso vemos a
preocupação de Edson Carneiro, Artur Ramos, Donald Pierson, Aydano do Couto Ferraz, Alfredo Brandão e Jorge
Amado, cada um a seu modo procurando encaminhar o tema no mesmo sentido.
No terceiro congresso, realizado em 1982, as intervenções de Décio Freitas, Raimundo de Souza Dantas, Clóvis
Moura, Gilberto Freyre e outros vão na direção de reabilitar o processo miscigenatório e destacar a participação
social do negro em nossa história, posição contrária à dos eugenistas da década de 1930, que consideravam este
fenômeno um fator de degenerescência da sociedade brasileira. A postura democrática em relação ao problema
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
13
2016
racial, que teve nos antropólogos e sociólogos da Unesco a expressão mais lúcida, começa em determinado
momento, a ser contestada.
No plano político internacional, por outro lado, saía-se da política de colaboração dos quatro grandes vencedores
da Segunda Guerra Mundial – Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos – para o confronto da Guerra
Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo, os movimentos de libertação da África, dentro do processo de descolonização
que se dinamizava. Nesse contexto político iniciam-se os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.
O mais relevante sintoma desse protesto e o que mais repercussão alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de
psicologia educacional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da declaração da Unesco de 1951
e a de 1964. Afirma textualmente:
“O fato de que diferentes grupos raciais neste país tenham origem geográficas largamente diferenciadas e tenham
tido histórias largamente diferentes, o que os submeteu a diferentes pressões seletivas econômicas e sociais, faz
com que seja altamente provável que seus acervos genéticos difiram em algumas características comportamentais
geneticamente condicionadas, inclusive inteligência ou capacidade de raciocínio abstrato. Quase todo o sistema
anatômico, fisiológico e bioquímico investigado apresenta diferenças raciais. Por que seria o cérebro uma
exceção?”
Já o professor de psicologia da Universidade de Londres e entusiasta de Jensen, H. J. Eysenck, baseando-se em
testes de QI de jovens negros americanos, conclui pela existência de diferenças que, dentro da estrutura social
atual (julgamentos de valor), significam inferioridade. Este cruzamento de resultados de testes com resultados
de pesquisas de geneticistas é uma forma deliberada de confundir os fatos e chegar-se a uma conclusão
preestabelecida. Por outro lado, todos sabem que as técnicas de medir a inteligência pelo nível do QI são cada vez
mais contestadas.
A antropóloga Ruth Benedict, antes dos professores citados, já punha em dúvida essas técnicas, especialmente
quando aplicadas sem os diferenciais culturais e sociais. Cita o exemplo de uma comparação feita entre brancos
do Mississipi, Kentucky e Arcansas com negros de Nova Iorque, Illinois e Ohio. O QI dos brancos do Sul é inferior
ao QI dos negros do Norte. Os resultados foram os seguintes:
Brancos Negros Mississipi 41,25
Nova Iorque 45,02
Kentucky 41,50
Illinois 47,35
Arkansas 41,55 Ohio 49,50 Fonte: BENEDICT, Ruth. Raza: ciencia y política. México, Fondo de Cultura Econômica,
p. 97.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
14
2016
Contra esses dados, H. J. Eysenck conclui um de seus livros dizendo:
“(…) O reconhecimento da natureza biológica do homem e o reconhecimento da desigualdade geneticamente
determinada, associados inevitavelmente ao seu desenvolvimento, são um começo absolutamente necessário a
qualquer tentativa de utilizar os métodos da ciência e a razão, num esforço destinado a nos salvar dos perigos
(sic) efetivamente reais com que nos defrontamos”.
Racismo e determinismo genético
É exatamente em continuação a essa biologização da história e da sociedade que, na década de 1970, surge uma
nova ciência: a sociobiologia, sistematizada por Edward Wilson, da Universidade de Harvard, e assim definida:
“(…) uma ideologia biológica que, empenhada em provar que todo comportamento humano é determinado
geneticamente, como nos animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social. A partir daí a bibliografia
só faz aumentar a lista iniciada com o Macaco nu e a História natural da monogamia, do adultério e do divórcio, da
antropóloga norte-americana Helen Fischer, para quem há uma lei natural, inscrita em nossos genes, que molda o
relacionamento efetivo e o acasalamento entre os seres da espécie humana. Outro livro deste gênero é Personas
sexuais, de Camile Paglia, que considera os papéis sexuais, o machismo e a feminilidade decorrentes apenas de
nossa natureza biológica e não, também, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens e mulheres;
relações condicionadas pela peculiaridades das épocas e dos lugares onde ocorreram”
“Como o velho racismo, a sociobiologia procura explicações biológicas para fenômenos sociais”.
Poderíamos citar mais de uma centena de obras da nova sociobiologia, mas o que se viu dá para perceber o
renascimento do racismo via genética. O preocupante é que essas ideias não se exprimem apenas através de livros,
mas de uma prática universitária na direção da dominação ideológica do conhecimento. Neste sentido estava
prevista, na Universidade de Maryland, a realização da conferência intitulada “Fatores Genéticos no Crime:
Descobertas, Usos e Implicações”, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso do enfoque social para o
crime” e sugeria a realização de pesquisas genéticas para o desenvolvimento de métodos capazes de identificar –
e tratar quimicamente – criminosos em potencial. A Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos, por sua vez,
publicou em novembro de 1992 o relatório Compreender e prevenir a violência, sugerindo a realização de mais
pesquisas desse tipo e na mesma direção, com investigações sobre marcadores bioquímicos e tratamento com
drogas para comportamentos violentos e anti-sociais, embora admitindo a escassez de evidências substantivas
para uma propensão ao crime de per si. Como se pode ver é a volta disfarçada aos métodos eugênicos dos cientistas
do III Reich. Analisando tal situação, escreveu Patrick Bateson:
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
15
2016
“(…) as diferenças existentes entre as pessoas são muitas
vezes pensadas como adaptações, como produtos da evolução
darwiniana e, portanto, como atribuíveis a diferenças
genéticas. Para o não biólogo, ‘diferença genética’ é sinonimo de
inevitabilidade – o problema começa aí. Às pessoas claramente
exploradas ou oprimidas é dito que devem aceitar essa situação
porque nada podem fazer para alterar os seus genes. Esse tipo
de ideias, que penso não serem geralmente partilhadas pelos
cientistas que parecem dar-lhes credibilidade, é agora parte de
nossa vida política. Por essa razão, e talvez injustamente, o
determinismo genético tornou-se o 12
grande tema de muitas discussões públicas sobre sociobiologia
(…) A ênfase no egoísmo e na luta pela existência na evolução
biológica teve um efeito de confirmação insidiosa na opinião
pública (Bateson, 1989). A competição foi encarada como motor
da atividade humana. A experiência nas universidades e nas
artes é avaliada pelos mesmo parâmetros que supostamente
resultam tão bem no campo do esporte ou na feira. Os indivíduos
prosperam competindo e vencendo. Esta visão da natureza
humana, popular entre os políticos de direita, foi justificada pelo recurso à biologia, e os próprios biólogos foram,
por sua vez, algo influenciados pelo movimento de opinião pública. (…) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa tendência
para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção por outros cuja experiência tenha sido diferente (…)
Tal como as coisas estão, o apelo à biologia feito pela Nova Direita não se dirige tanto ao corpo coerente de ideias
científicas como a um mito confuso. Pensa-se na biologia como tratando da competição – e isso significa luta. O
conceito darwiniano da sobrevivência diferencial nutre-se da crença na importância do individualismo (15).
Discutindo o lado ético da aplicação da sociobiologia, ou da biologia em particular, escreveu Hilton Japiassu:
“(…) aliás, nos dias de hoje, parece inegável o impacto social na biologia sobre a vida de cada um de nós. Ela não
constitui apenas uma pesquisa sem freios da verdade, isenta de toda e qualquer crítica política ou moral. Já foi o
tempo em que se podia declarar, como H. R. Oppenheimer, um dos responsáveis pela construção das primeiras
bombas atômicas, que: ‘(…) nosso trabalho mudou as condições da vida humana; mas a utilização feita dessas
mudanças é uma questão dos governos, não dos cientistas’. Ora, a palavra-de-ordem ‘a verdade pelo amor à
verdade' torna-se hoje insustentável. Porque a ciência não é mais, e tampouco pode ser, considerada um
domínio da exclusiva competência dos cientistas. Os trabalhos dos microbiologistas, por exemplo, que
decodificaram as moléculas de ADN. Dão-nos a esperança de um controle genético de numerosos males surgidos
no nascimento. Mas essas pesquisas já foram utilizadas, como testemunham os cientistas americanos Zimmerman,
Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados Unidos, para cultivar micróbios violentos destinados à
guerra bacteriológica: ‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar subpopulações variadas, que
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
16
2016
poderão ser utilizadas pelos que detêm o controle tecnológico. Essas subpopulações poderão compreender soldados
combativos, robôs resistentes para executar as tarefas físicas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam
transmitidos poderes hereditários”” (Autocritique de la science, Seuil, 1975)
Estamos nas fronteiras do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, quando um dos seus personagens define
felicidade: “E esse, acrescentou sentenciosamente o Diretor, é o segredo da felicidade e da virtude – gostar
daquilo que se tem de fazer. Este é o propósito de tudo: fazer as pessoas amarem o destino social do qual não
podem escapar”. Estaríamos plenamente na era do determinismo genético.
O mundo apresentado por Huxley pode ser o objetivo desses cientistas. Mas a biologia genética, via engenharia
genética, tem objetivos ainda mais seletivos e ideologicamente racistas. Sobre a visão de radicalismo
epistemológico dessa postura científica, escreveu Hilton Japiassu:
“(…) os gigantescos progressos da biologia e da engenharia genética já tornaram possível uma outra forma de
neo-eugenismo, desta feita bastante mais sofisticado. Diria que um neo-eugenismo fundado nas ciências
biogenéticas já se anuncia, sem que possamos predizer de modo seguro quais serão as grandes opções para o
futuro. O fato é que, nesse domínio, já existem sofisticados métodos permitindo a detecção dos ‘maus genes’,
vale dizer, dos genes que, direta ou indiretamente, são responsáveis por certas doenças. Como nos lembra P.
Tuiller, ‘(…) quaisquer que sejam os limites atuais da ciência médica em matéria de diagnóstico e de terapêutica,
criou-se uma situação nova; doravante é possível concebermos em longo prazo um 13
gigantesco empreendimento de purificação do capital genético da humanidade (ou de certas populações). O que
levanta numerosas questões ao mesmo tempo técnicas e éticas’”. (Les passions du savoir, Fayard, 1988, p. 154)
Em outras palavras, os detentores dessa sofisticada tecnologia podem programar, por exemplo, a cor da
humanidade ou de alguns grupos ou populações (de acordo com os seus critérios de valor étnicos) considerados de
“maus genes”. Se considerarmos a ideologia de quem monopoliza essa tecnologia, os negros e os não-brancos serão
o objetivo desse projeto e tentarão projetar um mundo branco e de robôs.
A Europa ergue um muro contra não-brancos e pobres
Além deste racismo, há aquele que está se disseminando de forma crescente e cada vez mais agressiva. Em todo
o chamado Primeiro Mundo (capitalismo imperialista central) ele vem se afirmando, quer por legislações que tornam
indesejáveis no seu território membros de determinadas etnias, quer pela incorporação por parte de partidos
políticos que endossam essa ideologia e, finalmente, pelo comportamento irracional de grande parte da população
desses países. Na Inglaterra, na França, na Áustria, e especialmente na Alemanha, o racismo vem aumentando
assustadoramente, especialmente neste último país, onde se manifesta através do neonazismo, cuja violência tem
feito desaparecer centenas de vidas e cujos métodos de ação são idênticos aos de Hitler.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
17
2016
“Auschwitz Total, Hitler Superditador, Antiturcos à Prova: alguns títulos de jogos neonazistas”.
Esses países começam a proteger-se dos “genes maus”, representados pelas populações não brancas em geral, que
procuram “invadir” o recinto intocável das nações brancas. Esta ideologia racista cresce juntamente com a ideia
da unificação da Europa. Há movimentos de extrema-
direita por toda parte, como a Frente Nacional da França
e os republicanos e neonazistas da Alemanha. Nos países
nórdicos, como a Noruega, há parlamentares de extrema-
direita ostensivamente racistas. Segundo Harlen Désir,
para alguém eleger-se basta dizer: “Chega de árabes,
jamaicanos e turcos!” Na França, segundo ele, parte da
população não aceita a fusão e a formação de uma nação
plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida
principalmente nas regiões fronteiriças, onde o discurso
de Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, tem
forte penetração.
Na Alemanha e na Suécia estão virando moda videogames distribuídos pela extrema-direita britânica, com os
sugestivos nomes Jogar em Reblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você Terá Ganho (18). O jogador
consegue pontos matando judeus, turcos, homossexuais e ecologistas ao som de Deutshland über Alles (Alemanha
acima de tudo), estrofe glorificada por Hitler e depois da guerra suprimida do hino nacional alemão.
Os ataques racistas se multiplicam e a ultradireita ganha terreno. Os governos da Comunidade Europeia mantêm
leis discriminatórias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se encontrarem há mais de 15
anos. Não é de estranhar que os jovens transformem o videogame em propaganda racista, pois não é apenas na
Alemanha e na Suécia que a juventude assim se diverte. Na Áustria o fato se repete: Auschwitz Total… Hitler
Superditador… Antiturcos à Prova… Segundo Sandra Lacut, da France Press, de Viena: “(…) as escolas da Áustria
e de outros países europeus foram invadidas por uma série de jogos de computador racistas e neonazistas, nos
quais as crianças ‘dirigem’ campos de extermínio de judeus ou ‘compram’ gás para matar os imigrantes turcos. (…)
Um estudo realizado pelo Ministério de Educação revela que na cidade austríaca de Lintz, onde Hitler passou
parte de sua juventude, 39% dos jovens sabem que existem esses jogos 14
neonazistas e 22% já os jogaram. Em Salzburgo, um em cada cinco jovens que tem um computador já viu publicidade
neonazista em sua tela. Os videogames trivializam o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos,
homossexuais, comunistas e dissidentes durante o nazismo) e incitam o ódio contra os judeus e turcos. O jogo
Administrador de Campo de Concentração consiste em dirigir o campo de Treblinka (Polônia) e conseguir bastante
dinheiro – por exemplo, arrancando os dentes de ouro dos judeus mortos – para adquirir o gás necessário para
aniquilar os turcos. Outro, chamado Prova Ariana, coloca perguntas que revelam ao jogador seu grau de pureza
racial. Aquele que for apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De acordo com o grau de
‘impureza do sangue’, o jogador pode ser varredor ou limpador de privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente atirado
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
18
2016
na câmara de gás”. O que à primeira vista parece ser apenas um detalhe vem demonstrar até que nível a propaganda
neonazista está se aproveitando da nova tecnologia e da comunicação avançada nos mesmos moldes de Hitler.
Segundo El País, os alemães e os belgas, de acordo com pesquisas feitas pela Comunidade Europeia, são os cidadãos
europeus que mais admitem os seus sentimentos racistas. Mas é na França e na Grã-Bretanha que a xenofobia e a
violência racial se mostram mais intensas. Nos últimos quatro anos (a pesquisa vai até 1990) houve 20 assassinatos
motivados por racismo na França. As vítimas eram norte-africanos de nacionalidade ou de origem.
Seis jovens cabeças raspadas (skin-heads) mataram a ponta-pés um tunisiano pai de quatro filhos. O policial que
os deteve contou que aquilo que mais o chocou foi o fato de eles terem a sensação de nada terem praticado de
condenável. Outros três jovens mataram a tiros um jovem harki (francês de origem argelina) “para se divertir”.
Cerca de 76% das pessoas entrevistadas depois do assassinato dos três norte-africanos declararam: “O
comportamento deles pode justificar as reações racistas”.
Em 1989 ocorreram, em Londres, em média seis incidentes racistas por dia. O Instituto de Estudos da Polícia
estimou em sete mil os casos conhecidos de racismo no país, mas sugeriu que a cifra poderia ser dez vezes superior.
Isto porque as vítimas temiam denunciar as agressões “por falta de confiança na polícia”. Uma mãe asiática
suportou que seus filhos fossem esfaqueados e apedrejados – “Pensei que fosse um comportamento normal em
relação aos estrangeiros” – e não procurou ajuda.
Na Itália, os ataques a estrangeiros estão adquirindo uma sequência e um furor inesperados, acalentados por uma
crescente onda de imigrantes clandestinos. Na Espanha, a fúria contra marroquinos, portugueses e africanos é
uma reação social em alta, mas a discriminação elege como presa também uma minoria espanhola: os ciganos. Estes
últimos são hoje na Espanha cerca de meio milhão de pessoas e, como no caso dos negros nos Estados Unidos, sua
dança e sua música são muito apreciadas.
Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala o volumoso estudo de oito capítulos elaborado e aprovado pela
Comissão de Investigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu, presidido pelo eurodeputado
Glyn Ford. Nem a Comunidade Europeia, nem os governos dos seus Estados-membros tomaram medidas para
corrigir a situação alarmante, já denunciada em 1986. O mito da Europa como terra de asilo caiu por terra.
A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas são mais claramente expressos. Em 1989 (e daí para cá este
sentimento aumentou), cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros demais no país e 93%
eram favoráveis a reduzir o número de trabalhadores imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha
Ocidental admitem ter sentimentos anti-semitas. As pesquisas revelam, também, que um quinto dos alemães tem
ódio racial contra africanos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.
O racismo como ideologia neocolonial
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
19
2016
Falta agora nos referirmos ao racismo político dos países do chamado Primeiro Mundo (capitalismo central) contra
os países dependentes que fizeram parte do antigo sistema colonial, que não foi desmontado até hoje. Uma das
particularidades é que são, em sua totalidade, países que têm populações não-brancas.
À medida que se aguçava a luta entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, os norte-americanos concentraram
suas atividades de dominação nas áreas incluídas em seu leque de influências. Com o pretexto de combater a
subversão, estabeleceram governos subalternos externamente e ditatoriais internamente. Como norma, as
ditaduras militares. Com isso consolidaram sua dominação neocolonial. Mas, por uma série de circunstâncias, na
América Latina, Ásia, Oriente Médio e África houve movimentos que conseguiram se afastar de sua órbita. Por
coincidência, movimentos de países que haviam participado da aventura colonial como dominados. Em outras
palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o tráfico negreiro, a escravidão ou outras formas de
trabalho compulsório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações, ou melhor, de sua composição
demográfica, é esmagadoramente não-branca.
Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase de imperialismo tecnocrático, houve a necessidade de uma
reciclagem no processo e nas táticas de dominação. De um lado, para consolidar o seu domínio econômico e, de
outro, como manifestação de racismo.
A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi a operação que os Estados Unidos organizaram
contra a Líbia em 1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de Estado para assassinar seu líder. Depois de
várias operações de agressão militar, nas quais foram abatidos dois
aviões líbios (em território líbio), constatou-se que um dos filhos de
Kadafi havia sido assassinado. Isto porém não sensibilizou a opinião
pública mundial. A mídia criou para consumo internacional a imagem de
que Kadafi era o líder do terrorismo internacional, o que os fatos
desmentiam.
Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obedecer os
apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos ocuparam a
ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus habitantes. A
opinião internacional não se mobilizou nem denunciou o crime,
possivelmente por se tratar de uma país de negros.
Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de
combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aerotransportadora dos Estados Unidos invadiu seu território,
prendeu o presidente Noriega, sequestrou-o e levou-o para ser condenado pelos tribunais norte-americanos. A
intervenção norte-americana destruiu a economia do país, tentou extinguir o Exército e colocou um de seus
representantes como chefe do Estado. Mas a opinião pública não se emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa
mundial teceu elogios ao ato. O Panamá é também um país de negros, mestiços e índios.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
20
2016
Por fim, os casos mais recentes: a Guerra do Golfo contra o Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste)
de ocupar o Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimentos sem relevância. As razões apresentadas
são de “ação humanitária”, “restauração da democracia”, “combate ao narcotráfico”, pois não cola mais o “perigo
comunista”.
É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo tecnocrático,
racista. Para justificá-lo utilizam não só a sócio-biologia, da engenharia genética e das hipóteses que procuram
demonstrar a existência de raças inferiores, mas também canhões, aviões e tanques de guerra.
Estamos às vésperas do terceiro milênio. Vamos entrar numa época em que as ordenações sociais serão
radicalmente reformuladas. Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas, vindas do
antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resgatando o passado de dominação. E o realinhamento social
também será étnico, pois as raças não-brancas habitam por herança desse sistema as regiões espoliadas. Esse é
o desafio do milênio que se avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em dimensão planetária.
O recente debate sobre cotas no Brasil, no meu entender equivocado, tem permitido trazer para a superfície da
discussão sociopolítica do país os problemas dos grupos historicamente discriminados. O equívoco consiste em
enfatizar a modalidade mais polêmica das políticas de ação afirmativa. Tais políticas têm servido, em vários países,
para minimizar os pesados custos sociais para populações que foram colonizadas, externa e internamente, em
países hoje considerados multirraciais e ou multiétnicos, que procuram pautar-se pela construção e
aprofundamento dos ideais democráticos.
Em linhas gerais debater em torno da aceitação ou não-aceitação das cotas, além de empobrecer a discussão de
conteúdo, significa perder a oportunidade de levantar e tentar responder à seguinte questão: Como podemos
incluir minorias historicamente discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso
almejado, e, ao mesmo tempo, debater em que bases é possível rever aspectos fundamentais do pacto social?
Nas páginas seguintes tento responder a esta questão discutindo, não de forma exaustiva, alguns aspectos que
considero fundamentais no debate sobre as políticas públicas de ação afirmativa. Um primeiro aspecto importante
é com relação ao princípio de igualdade1, como aquele que tem servido de base a todas as sociedades democráticas
ou em vias de democratização, mas que na atualidade tem-se colocado mais como obstáculo às mudanças do que
operado no sentido de propiciar tratamento diferenciado a quem a sociedade tem tratado desigualmente. Um
segundo aspecto presente no debate contemporâneo, com profundas implicações para as políticas públicas de ação
afirmativa, é a discussão sobre o estatuto da raça como uma categoria válida para a explicação e compreensão das
desigualdades sociais. Finalmente, a discussão em torno das políticas de ação afirmativa como uma via alternativa
de resolução dos conflitos resultantes das desigualdades raciais e
de gênero tem implicado uma profunda revisão dos pressupostos do liberalismo ou, mais precisamente, dos limites
e possibilidades daqueles pressupostos para a solução de problemas contemporâneos.
Ação Afirmativa e o combate ao Racismo institucional no Brasil
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
21
2016
Em interessante artigo intitulado .O princípio da igualdade e a escola., Comparato (1998), para tecer considerações
sobre tal princípio, parte da distinção entre diferenças sociais e desigualdades sociais. Assim, as diferenças
sociais têm uma base natural ou são produto de uma construção cultural. No primeiro caso, um exemplo comum é
a diferença entre os sexos. No segundo caso, a diferença funda-se num complexo agregado de costumes,
mentalidades etc., que confere uma mesma visão de mundo e ou uma mesma tradição tribal ou grupal, possibilitando
distinção em relação aos demais. Aqui estamos falando da identidade como atribuída e ou construída.
Seguindo em sua argumentação, o autor afirma que as desigualdades sociais, de maneira distinta das diferenças
sociais, têm por base um juízo de superioridade e inferioridade entre grupos, camadas ou classes sociais. Assim,
o problema pode ser esboçado da seguinte forma: desde o surgimento do liberalismo existe uma tendência, ou ao
menos uma preocupação de eliminar, paulatinamente, as desigualdades sociais. A questão é como fazer a distinção
entre aquilo que é o reconhecimento de uma diferença natural ou cultural e, portanto, preservar
essa diferença e, por outro lado, eliminar as desigualdades sociais (Comparato, 1998, p.47-48).
Após afirmar que a desigualdade social é marca registrada da sociedade brasileira, desde os seus primórdios, e
associá-la à nossa origem ibérica2, autor identifica dois focos principais de geração de desigualdades sociais no
Brasil. O primeiro, que considera o mais importante, é a desigualdade entre ricos e pobres. O segundo, que afirma
ser também forte mas de menor importância quando comparado ao primeiro, é a desigualdade entre brancos e
negros
A desigualdade entre ricos e pobres seria a principal fonte de preconceitos e atritos e o grande fator de atraso
da sociedade brasileira. E é inconsciente. A desigualdade entre brancos e negros, decorrente da escravidão3,
seria a principal fonte de geração e manutenção de hierarquias sociais vinculadas ao pertencimento racial. Em
síntese, a junção entre o desprezo pelo trabalho físico, posse de empregados e o preconceito contra pobre
contrastaria com o prestígio intelectual embutido em nossa .doutorice.. Negando-se a ficar no plano do diagnóstico,
Comparato parte para o remédio prioritário para reverter o quadro de desigualdade social no Brasil: a educação.
Uma discordância em relação ao diagnóstico acima é possível. É, precisamente, o fato de atribuir-se à desigualdade
entre ricos e pobres a proeminência da explicação sobre os profundos problemas sociais do país. Creio que as
desigualdades são um produto de uma trama complexa entre o plano econômico, político e cultural. Além disso, a
multiplicidade de fatores na explicação das desigualdades tem a vantagem de mostrar tanto a multicausalidade
dos elementos explicativos da vida social quanto o aspecto dinâmico e relacional das relações sociais.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
22
2016
Mesmo se se considerar a proeminência da desigualdade
entre ricos e pobres na explicação dos fenômenos sociais, o
modo como ela se expressa na contemporaneidade brasileira
é problemático, uma vez que os indicadores sociais mostram
uma confluência entre desigualdade econômica e
desigualdade racial4. Estes estudos demonstram que a
dimensão econômica explica apenas parte das desigualdades
entre negros e brancos, a outra parte é explicada pelo
racismo, e a discrimina ção racial teve uma configuração
institucional, tendo o Estado legitimado historicamente o
racismo institucional.
Uma outra ordem de problemas que aparece no texto de
Comparato é a visão de um individualismo não anárquico,
característico do verdadeiro liberalismo, versus um
individualismo anárquico, que seria a origem de todas as
nossas mazelas.
De certa forma, o modo como Comparato coloca o problema já contém uma resposta que se estrutura baseada em
nossa origem ibérica e pelo nosso .liberalismo. deformado. Assim, minha proposta é recolocar o problema da
desigualdade social entre brancos e negros como uma dimensão fundamental da explicação da desigualdade entre
ricos e pobres. Acredito que as discriminações e os racismos são componentes essenciais na conformação da
sociedade brasileira e operam menos no plano individual e mais no plano institucional e estrutural.
Retomando o pressuposto que toda desigualdade se estrutura a partir de um juízo de superioridade,
aparentemente os negros, desde que foram trazidos para as terras brasileiras, estiveram submetidos a todo tipo
de juízos, normalmente negativos e pejorativos, sobre sua condição de diferente no plano sociocultural. Assim, o
modo como as diferenças naturais e culturais são construídas socialmente, na forma de desigualdades sociais,
torna-se um problema científico e político nas sociedades contemporâneas multirraciais.
RAÇA E DESIGUALDADE SOCIAL
Concordo com Omi e Winant (1994) que raça não é apenas algo a mais, isto é, algo que é adicionado, mas é, sim,
parte integrante e constitutiva de nossas experiências cotidianas mais comuns. No Brasil, no entanto, existiu e
existe uma tentativa de negar a importância da raça como fator gerador de desigualdades sociais por uma parcela
significativa dos setores dominantes. Só muito recentemente vozes dissonantes têm chamado a atenção sobre a
singularidade de nossas relações raciais.
Andrews, por exemplo, tenta mostrar como o sistema de categorização racial brasileiro tem sido dinâmico no
tratamento da mistura de raças. O centro do debate tornou-se a existência de uma categoria racial intermediária,
que aparece normalmente nomeada como mulato, pardo e ou moreno, que seria o fator de distinção do sistema
classificatório brasileiro.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
23
2016
.Ao contrário do .pardo. ou do .preto., o .moreno. não indica automaticamente ancestralidade africana. (Andrews,
1998, p.385). As discordâncias sobre o modo de categorizar os morenos no sistema brasileiro podem desvendar a
dimensão política da nossa classificação racial. No fundamental, o moreno seria uma categoria dissolvente da
polaridade negro e branco, isto é, nele estaria contida a síntese brasileira. O próprio Andrews vai mostrar, por
meio de suas pesquisas empíricas, que tal suposição ou imposição não se sustenta.
A característica básica do modelo brasileiro de classificação racial, quando contrastado com o modelo norte-
americano, por exemplo, é a multipolaridade. De acordo com Fry, .o modo múltiplo permite que os indivíduos possam
ser classificados de distintas maneiras. [...]. Permite o que podemos chamar de .desracializa ção. da identidade
individual. (Fry, 1995/1996, p.132-133). Para este autor, um indicador da desracialização estaria na possibilidade
de aplicação do termo .moreno. e .moreninho. à uma grande gama de .aparências. que podem incluir descendentes
de europeus e descendentes de africanos, entre outros.
A característica básica do modelo americano, de acordo com os antropólogos, é a bipolaridade com base na
hipodescendência, conhecida na cultura popular dos EUA como a .regra de uma gota só. (one drop rule). De acordo
com Gilliam, a hipodescendência implica uma situação na qual a pessoa herdaria ad infinitum a identidade social do
progenitor menos prestigiado geração após geração. A autora chama a atenção para o fato de que a
hipodescendência só se refere a pessoas de descendência africana; nenhum outro grupo teve que se debater com
este modelo de identidade social (Gilliam, 2000, p.94).
Fry reconhece que ambos os modos de classificação são baseados em noções neolamarckianas de descendência,
portanto, são racistas. Mas, de acordo com o autor, o modo bipolar produziria um mundo de raças essencializadas
(apud Gilliam,2000, p.93). Para o autor, .o movimento negro quis romper com o modo múltiplo de classificação,
mudando as regras do jogo. E o fez com tanta energia que começou a negar qualquer especificidade brasileira,
descrevendo o país como .pior que o apartheid , por exemplo. (Fry, 1995/1996, p.132-133).
Segundo Gilliam, Fry .está correto ao associar a crítica ao modelo bipolar dos Estados Unidos com a intenção
original de proteger os brancos contra a poluição biológica. (2000, p.94). Mas, o apelo para que os brasileiros se
orientem pela expressão multipolar resulta em não admitir a existência da expressão bipolar à brasileira para um
amplo setor da população afrodescendente, que não tem conseguido desracializar sua identidade individual, mesmo
quando quer. Isso se deve às marcas corpóreas e aos permanentes atributos .carinhosos. do cotidiano popular
brasileiro, que nem sempre estão presentes nas universidades e centros de pesquisa, tais como .aquele negão.,
.aquela neguinha assanhada. ou o famoso .só podia ser preto.. Assim, se a ambigüidade tem sido um traço
característico de nossa classificação racial, ela não tem impedido que uma parcela significativa da população negra
seja permanentemente racializada no cotidiano e que, por isso mesmo, tenha assumido sua identidade negra de
forma não ambígua e contrastante em relação ao seu outro, o branco. Essa assunção não ambígua, aparentemente,
desvenda a intrincada trama do nosso universo de classificações que tem permitido, por meio do uso e abuso da
multipolaridade, a subordinação funcional dos não-brancos.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
24
2016
Dentre várias evidências citadas por Andrews em relação ao peso relativo da .morenidade., para plasmar a
identidade sociorracial vale relembrar a referência aos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo, um dos principais
do país.
O Estado mantém arquivos classificados por tópicos sobre uma variedade de temas, incluindo .Negros no Brasil..
O arquivo sobre os negros, que remonta à década de 1880, contém três grossas pastas e centenas de artigos. Para
meados de 1988, o arquivo sobre mulatos continha oito artigos. Isto reflete dois fatos: que os jornalistas de São
Paulo que escreveram sobre os afro-brasileiros durante o último século tenderam a agrupá-los sob o título de
negros; e mesmo quando esses jornalistas distinguiram entre pretos e pardos, os arquivistas de O Estado
continuaram a agrupá-los em uma única categoria de .negros.. A categoria racial do mulato, supostamente tão
importante no Brasil, mal parece ter surgido na consciência destas pessoas. (Andrews, 1998, p.384)
Outro aspecto fundamental observado por Andrews é o vínculo entre o racismo institucional e a política estatal.
O autor encontra evidências da relação entre o governo estadual (em São Paulo) e os proprietários rurais de terras
para fomentar o desenvolvimento econômico, subsidiar a imigração européia e impedir a diversifica- ção
profissional entre os afro-brasileiros recém libertos (Andrews, 1998, p.50).
Para Andrews e Hanchard, a escravidão é somente uma das diversas variáveis explicativas a serem consideradas
para determinar por que, em 1889, ou seja, apenas um ano depois da Abolição . os trabalhadores afro-brasileiros
foram afastados da competição .objetiva. de mercado em São Paulo. Na avaliação desses autores, na imigração de
europeus meridionais e no tratamento diferencial concedido aos novos imigrantes, em detrimento dos afro-
brasileiros, encontram-se um grau de dirigismo e intervenção estatal incomuns (Andrews, 1998, p.93-147;
Hanchard,2001, p.29-59).
Assim, as classificações, embora importantes, não dão conta dessa dimensão objetiva que representou a presença
do Estado na configuração sociorracial da força de trabalho no momento da transição do trabalho escravo para o
trabalho livre, nem da ausência de qualquer política pública voltada à população ex-escrava para integrá-la ao novo
sistema produtivo. Daí poder afirmar que a presença do Estado foi decisiva na configuração de uma sociedade
livre que se funda com profunda exclusão de alguns de seus segmentos, em especial da população negra.
Concordo com Emília Viotti da Costa que .para explicar as percepções que as pessoas têm dos padrões raciais,
seria preciso investigar fora do âmbito estreito das relações raciais. (1985, p.238). Somente dessa maneira é que
poderíamos, no caso brasileiro e latino-americano, incorporar os avanços recentes na conceituação da política
racial e étnica.
Ao contrário de uma geração de estudiosos, que tentou fundir raça com etnia, a compreensão teórica mais recente
da formação das identidades raciais estabelece uma distinção entre as duas, nos contextos em que o fenótipo
(aquilo que definimos como raça) torna-se uma questão de maior destaque do que a língua, a cultura ou a
religião. (Hanchard, 2001, p.29)
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
25
2016
Entre outras implicações dessa nova forma de compreensão vale destacar duas: a primeira tem relação com o modo
pelo qual os estudiosos vêem a raça e a etnia; a
segunda vincula-se à .transnacionalização. dos
movimentos sociais latinoamericanos. No primeiro
caso, os estudos destacam que alguns grupos
.étnicos. são assimilados, independentemente do
momento histórico, por sua adequação .racial. ao
grupo dominante, enquanto para outros grupos
.étnicos. a diferença fenotípica transforma-se em
uma marca. No segundo caso, especialmente, entre
os .índios. e os .negros.
...fatores externos e internos levaram a uma
crescente identificação racial com outros
grupos fenotipicamente semelhantes, que passaram pela escravidão racial e por
outras formas de opressão nas relações com as elites criollas, descendentes de europeus.
Essa identificação de uma comunidade fora das fronteiras dos Estados nacionais
enfatiza os entrelaçamentos da identidade racial, nacional e cultural. (Hanchard,
2001, p.30)
Em linhas gerais, o que o autor quer destacar é que o termo raça, contemporaneamente,
...refere-se ao emprego das diferenças fenotípicas como símbolos de distinções sociais.
Os significados e as categorias raciais são construídos em termos sociais, e não
biológicos. Esses símbolos, significados e práticas materiais distinguem sujeitos dominantes
e subordinados, de acordo com suas categorizações raciais. (Hanchard, 2001,
p.30)
Assim, a raça, para além de um marcador da diferença fenotípica, tem sido
utilizada como status de classe (ou grupo) e de poder político (Gilroy, 1987; Hall,
1986, 1992).
Nesse caso, do meu ponto de vista, reside o divisor de águas entre novas e velhas abordagens sobre a raça e,
obviamente, a possibilidade de uma compreensão contemporânea da potencialidade que as políticas públicas
compensatórias tem de solucionar, mesmo que de modo parcial e temporário, os problemas gerados pelas
desigualdades sociais com base no pertencimento a um grupo racial.
Gilroy, por exemplo:
...sugere que raça funciona como um conduto entre a cultura e a estrutura social,
entre os sentidos e valores que os grupos atribuem às diferenças raciais e a escolha,
a imposição e o reforço desses sentidos e valores nos mercados de trabalho, no
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
26
2016
aparelho de Estado e nas instituições políticas, sociais e culturais. (apud Hanchard,
2001, p.31)
Essa sugestão de Gilroy faz relembrar a existência, até muito recentemente, de inúmeros anúncios em .cadernos
de empregos., dos principais jornais brasileiros, que exigiam boa aparência, o que, aparentemente, excluía os
negros e .morenos . de várias possibilidades de emprego, independentemente do grau de escolarização e da
competência profissional. No aparelho de Estado, a meu ver, a ausência de políticas públicas substantivas em
relação à habitação popular de qualidade, ao atendimento à saúde e à educação, reflete o descaso para com aqueles
milhões de brasileiros que são considerados inferiores, segundo o juízo de superioridade das elites e dos setores
intermediários, os quais supostamente tiveram mobilidade por mérito técnico e profissional.
OS ANOS DE 1990
Resultado de uma árdua luta realizada pelos movimentos negros nas duas décadas anteriores, nos anos 90 do século
XX presenciamos uma mudança de postura significativa, em todos os segmentos da sociedade brasileira, em relação
ao tratamento das questões da população negra no país. Dentre os fatores que mais contribuíram para a maior
visibilidade das desigualdades sociais entre negros e brancos podem-se destacar o aumento e a divulgação de
pesquisas empíricas; o surgimento de vários conselhos de
desenvolvimento e participação da comunidade negra, no plano
estadual e municipal; e o reconhecimento oficial, em
20/11/1995, no plano federal, da existência da discriminação
racial e do racismo, com a implantação por meio de decreto do
Grupo de Trabalho Interministerial . GTI ., com a função de
estimular e formular políticas de valorização da população
negra.
É, portanto, sintomático que, na década de 90 do século XX,
alguns intelectuais tenham observado a necessidade de
ampliar os estudos pós-abolição, tentando mensurar de modo
mais sistemático e preciso as desigualdades a que os negros estavam submetidos em nosso país, e também passado
a assumir uma posição, sugerindo medidas necessárias para diminuir as distâncias sociais entre negros e brancos.
Hasenbalg, por exemplo, observava, em 1992, que com os estudos existentes sobre as desigualdades raciais já
seria possível intervir de três maneiras na correção de distorções. Em primeiro lugar, por meio do caminho jurídico
utilizando a legislação que pune o racismo como crime. Em segundo lugar, pela aplicação de ações afirmativas que,
de acordo com o autor, visariam à igualdade entre grupos no plano dos direitos e consistiriam no tratamento
preferencial baseado no pertencimento a grupos (de raça ou gênero) para compensar a discriminação no passado.
Para Hasenbalg, dois obstáculos interpor-se-iam para tal implantação: a ausência de apoio político e o sistema de
classificação racial brasileiro (dificuldade de identificar quem é não branco). Finalmente, as políticas não
racialmente específicas que, segundo o autor, possuem caráter redistributivo e se constituem em programas
variados para combater a pobreza nas suas raízes. Estas últimas irão sempre depender, em grande medida, .do
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
27
2016
tipo de governo eleito, da correlação de forças políticas e da obtenção de um padrão de desenvolvimento
sustentado que facilite a redistribuição. (Hasenbalg, Silva, 1992, p.15).
Apesar dos obstáculos apontados por Hasenbalg, no Brasil, a segunda metade dos anos de 1990 é marcada, dentre
outros temas, pela introdução do debate sobre a ação afirmativa. O debate gira, aparentemente, em torno das
mudanças ocorridas no pensamento social a partir do final da Segunda Grande Guerra e suas implicações para a
ação coletiva e para a ação estatal nos Estados Unidos. Desse modo podemos aprender com a discussão sobre a
ação afirmativa (affirmative action) e a identificação de distorções sociais, ao considerar o credo americano e a
realidade sobre a qual foram e são aplicadas aquelas políticas públicas e, também, suas repercussões no contexto
brasileiro.
AÇÃO AFIRMATIVA E ESTRUTURA SOCIAL
Uma das polêmicas centrais no debate sobre ação afirmativa na dimensão
normativa trata da complexidade e da variabilidade do princípio da igualdade jurídica,
ou seja, a Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 229
...dificuldade de alcançar uma formulação precisa e, especialmente, o incessante
esforço na tentativa de assegurar a sua aplicação . o que repercute na busca pela
própria justiça . confundem-se, sob um determinado prisma com a evolução do
direito constitucional moderno. (Menezes, 2001, p.15)
Existe um certo consenso entre os estudiosos da área do direito de que, a partir do advento da Declaração de
Direitos da Virgínia (em 12/06/1776), reconhecido como o documento precursor das modernas declarações de
direitos fundamentais, o tema da igualdade passa a ter um grande desenvolvimento no planojurídico. As mudanças
estimuladas pelo desenvolvimento do capitalismo no mercado teriam provocado a transição do princípio jurídico da
igualdade de todos perante a lei, isto é, de um princípio isonômico ou formal . que, aparentemente, permitiria um
mesmo tratamento normativo para todos os indivíduos . para um princípio de igualdade material ou substantiva.
Assim, o princípio jurídico da igualdade teria deixado de ser apenas um sustentáculo do Estado de direito para
ser um dos pilares do Estado social (Menezes, 2001, p.20-26).
Essa mudança sintetizava o avanço das reivindicações dos movimentos oper ários do século XIX, que lutavam
incessantemente pela melhoria das condições de vida e trabalho. Essas lutas originaram tanto as propostas
socialistas quanto o Welfare State.
No plano político o princípio da igualdade significou o voto eqüivalente entre todos os homens, isto é, um homem,
um voto. As dificuldades de aplicação do princípio de igualdade residiram e residem na dimensão socioeconômica
ou, mais precisamente, na sua implementação no âmbito do mercado em geral e, em especial, no mercado de
trabalho. O fato é que durante todo o século XX os exescravos, ex-colonos e as mulheres em vários países
ocidentais travaram e continuam travando verdadeiras batalhas pela inclusão e pelo tratamento igualitário em
todas as esferas da vida social, ao mesmo tempo em que repudiaram e repudiam todas as formas de discriminação
com base nas diferenças naturais e exigem o reconhecimento de suas particularidades, uma vez que estas foram
e são construídas socialmente como desigualdades. Após a Segunda Grande Guerra Mundial, às lutas dos
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
28
2016
trabalhadores por melhores salários e condições de vida somaram-se as lutas das mulheres, dos negros, de grupos
étnicos, que passaram a exigir uma ação do Estado para assegurar a igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho e na educação.
Vários autores registram que a década de 1960 pode ser considerada aquela na qual se originaram movimentos
sociais que estimularam mudanças sociais pro230 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 fundas na dinâmica
das sociedades ocidentais. Tais mudanças repercutiram sobremaneira nos esquemas interpretativos das ciências
sociais. O dicionário do pensamento social do século XX, por exemplo, registra as características que se seguem
estudadas pelos teóricos em relação aos novos movimentos sociais. A maioria dos autores concebe as ações em
termos de comportamento coletivo conflitante que abre espaços sociais e culturais; tais movimentos são encarados
como instituições politizantes da sociedade civil, redefinindo, dessa forma, as fronteiras da política institucional;
oferecem, mediante sua própria existência, um modo diferente de designar o mundo e desafiar os códigos culturais
predominantes sobre bases simbólicas; criam novas identidades que compreendem exigências inegociáveis;
expressam processos de aprendizado coletivo evolutivo; constituem novas articulações sociais que cristalizam
novas experiências e problemas em comum, na esteira de uma desintegração geral da experiência baseada na classe
econômica. O significado geral que essas formulações conferem aos novos movimentos sociais é que eles ganham
maior consciência de sua capacidade de produzir novos significados e novas formas de vida e ação social
(Outhwaite, Bottomore, 1996, p.502).
No que diz respeito às relações raciais, Guimarães, por exemplo, observa
que, por volta dos anos de 1960,
...a ciência social começa a abandonar os esquemas interpretativos que tomam as
desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes
(preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido
como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos
de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo
ponto, à revelia dos indivíduos. (1999, p.156)
Este mesmo autor observa, também, que na ciência política foi a época em
que as análises clássicas de poder e dominação de Dahl e Lipset cederam lugar a
análises sobre o .poder sistêmico., feitas por estudiosos como Barach e Baratz,
Steven Lukes e outros (Guimarães, 1999, p.156).
Essa mudança pode ser considerada uma evolução ou, no mínimo, um deslocamento
profundo do pensamento social. As características principais desse processo
foram a .descoberta. e a teorização de fenômenos sociais irredutíveis ao indivíduo
que conduziram a teoria do direito, e o próprio pensamento liberal, à busca de
novas formas de compatibilização entre direitos individuais e restrições à ação individual
(Guimarães, 1999, p.156).
Por meio desse debate, que ganha ampla visibilidade nos anos 70/80, é
possível observar tanto as atualizações quanto as resistências à incorporação de
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
29
2016
novos esquemas interpretativos pela ciência social e pela ciência política. Uma aná-
lise sucinta das políticas públicas de ação afirmativa implementadas a partir da década
de 60 na sociedade norte-americana permite, de modo inicial, observar a extens
ão das mudanças em curso tanto na teoria quanto nas práticas sociais.
A JURISPRUDÊNCIA AMERICANA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
A expressão ação afirmativa, segundo Jones (1993, p.345), refere-se a .ações
públicas ou privadas, ou programas que provêem ou buscam prover oportunidades
ou outros benefícios para pessoas, com base, entre outras coisas, em sua perten
ça a um ou mais grupos específicos..
A primeira referência à .ação afirmativa. aparece, com esse sentido, na legisla
ção trabalhista de 1935 (The 1935 National Labor Relations Act), prevendo que
...um empregador que fosse encontrado discriminando contra sindicalistas ou oper
ários sindicalizados teria que parar de discriminar e, ao mesmo tempo, tomar ações
afirmativas para colocar as vítimas nas posições onde elas estariam se não tivessem
sido discriminadas. (Guimarães, 1999, p.154)
A idéia básica vem do centenário conceito inglês de eqüidade (equity), ou
de administração da justiça de acordo com o que era justo numa situação particular,
por oposição à aplicação estrita de normas legais, o que pode ter conseqüências
cruéis.
A antiga noção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado decisões de
cortes americanas, conservando o sentido de reparação por uma injustiça passada.
A noção moderna se refere a um programa de políticas públicas ordenado pelo
executivo ou pelo legislativo, ou implementado por empresas privadas, para garantir
a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais. (Guimarães, 1999, p.154)
Uma das questões centrais no debate sobre as políticas públicas de discrimina
ção positiva é, precisamente, sob quais princípios de direito baseiam-se as leis e
os programas referidos como ações afirmativas?
As desigualdades sociais combatidas pela ação afirmativa originam-se, normalmente,
de práticas sistemáticas de algum tipo de discriminação negativa. Essa foi
a primeira justificativa que possibilitou tratar diferenciadamente um grupo social. Na
atualidade, entretanto, o alcance de tais ações ampliou-se e alguns juristas e estudiosos
do tema sustentam que elas podem e devem ser empregadas para a promoção de
maior diversidade social, uma vez que essas políticas podem propiciar a ascensão e
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
30
2016
232 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002
o fortalecimento de grupos sub-representados nas principais posições da sociedade.
De modo geral, as discussões giram em torno de três perspectivas, em que
duas correspondem a uma forma de justiça reparatória (compensatória) ou
distributiva e uma terceira, de caráter preventivo, que teria a intenção de coibir que grupos com grande
probabilidade de serem discriminados sofram tal processo.
Gomes, por exemplo, classifica as políticas governamentais norte-americanas
de combate à discriminação como .neutras., isto é, constituídas pelas normas
meramente proibitivas de conteúdo inibitório5, e como ações afirmativas, decorrentes
de políticas públicas concebidas pelo poder executivo com o apoio dos poderes
legislativo e judiciário. De acordo com esse autor, o Estado norte-americano
atua, nas ações afirmativas, com base na chamada Spending Clause da constituição,
que pressupõe o dispêndio de recursos públicos para causas de interesse coletivo.
No interior das políticas afirmativas, o autor identifica dois tipos: as ações reparadoras
ou restauradoras e as ações redistributivas (Gomes, 2001, p.53).
Na primeira perspectiva, a ação afirmativa reparatória (compensatória) teria
a função de ressarcir os danos causados, tanto pelo poder público quanto por pessoas
físicas ou jurídicas, a grupos sociais identificados ou identificáveis.
Nessa forma de ação é fundamental que somente os responsáveis sejam
penalizados e que as vítimas reais, reconhecidas individualmente, sejam total ou
parcialmente ressarcidas. Dessa forma, evita-se a chamada discriminação reversa6,
isto é, o favorecimento daqueles que não foram vítimas de discriminação.
Na perspectiva distributivista, a ação afirmativa estaria relacionada a uma igualdade
proporcional, exigida pelo bem comum, na distribuição de direitos, privilégios
e ônus entre membros da sociedade, que pode ser implementada por meio de
vários artifícios com o objetivo de diminuir ou eliminar as iniqüidades decorrentes
da discriminação (Menezes, 2001, p.38; Gomes, 2001, p.66).
Duas vertentes principais podem ser observadas no interior da perspectiva
distributivista.
A primeira baseia-se na idéia da igualdade ao nascer (equality at birth). O
argumento central é que no momento do nascimento inexistem fatores de distin-
ção relevantes entre as pessoas, a não ser aqueles de ordem natural, tais como raça
e sexo, os quais, por sua própria natureza, não se revestem de maior importância
para efeito de aferição de futura inteligência ou capacitação (Gomes, 2001, p.67).
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
31
2016
Assim, as diferenças são produto da vida em sociedade, que têm como principal
matéria-prima os valores.
A segunda vertente ancora-se em argumentos utilitaristas, ao sustentar que
não obstante o objetivo da ação afirmativa ser o de favorecer a maior participação
de determinados grupos (negros e mulheres, por exemplo) em certas posições e
profissões no mercado de trabalho, portanto, na sociedade, a sua finalidade última
é a redução substantiva ou eliminação das desigualdades sociais relacionadas com a
divisão do poder e da riqueza (Gomes, 2001, p.69; Menezes, 2001, p.38).
Dworkin, um dos expoentes dessa vertente, afirma, com base em sua leitura
da Constituição federal norte-americana, que esta, por meio do princípio de igualdade,
impede não apenas a chamada discriminação subjetiva, mas também a discrimina
ção estrutural. Como discriminação estrutural entendam-se padrões socioecon
ômicos díspares entre as pessoas, em decorrência de injustiças sociais de toda
ordem, educação deficiente e insuficiente, preconceitos que interferem e influenciam
as perspectivas de vida das pessoas. Para o autor, a erradicação dessas formas
de discriminação seria moralmente legítima e juridicamente uma meta pública racional
e necessária (Dworkin, 1978, 1985, 1996). A ação afirmativa, nesta perspectiva,
seria uma mecanismo fundamental de combate à discriminação e ao racismo
estrutural.
Assim, a aplicação dos princípios da justiça distributiva, em sua versão discutida
por John Rawls, possibilitaria tanto a igualdade de oportunidades como o combate
a desigualdades não justificáveis socialmente. Na prática, estas políticas reconhecem
oficialmente, por um lado, a persistência da perenidade das discriminações
e do racismo e, por outro lado, têm como meta a implantação de políticas públicas
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
32
2016
voltadas à ampliação da diversidade e do pluralismo em todas as dimensões da vida
social (Gomes, 2001, p.44-45).
Dito de outro modo, para além do ideal de concretização da igualdade de
oportunidades, figuraria, entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas, o
de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair
do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça
em relação a outra, do homem em relação à mulher etc. (Gomes, 2001, p.44).
Aqui reside, aparentemente, um aspecto distintivo entre as perspectivas jurídica e
política em relação à ação afirmativa. A distinção está na análise segundo a qual, não
obstante o papel desempenhado pelos tribunais americanos na implementação dos
programas de ação afirmativa, estes atuaram de modo corretivo e não propositivo.
Em outra linha de argumentação, Guimarães, ao sintetizar o debate norteamericano em torno das ações
afirmativas, informa sobre algumas questões centrais em seu interior. A primeira ordem de questões está
relacionada com o confronto entre dois valores nucleares daquela sociedade: o igualitarismo e o individualismo.
A segunda ordem de questões refere-se às implicações da passagem (ou do deslocamento) de uma tradição jurídica
centrada no direito individual para o reconhecimento de direitos coletivos. A terceira ordem de questões,
intimamente imbricada com as anteriores, relaciona-se com o questionamento da noção de mérito numa sociedade
em que as diferenças naturais foram construídas como desigualdades sociais. E, finalmente, a quarta ordem de
questões situa-se na exigência de uma representação diversa na ocupação de posições estratégicas no mercado
de trabalho, como forma de diminuir tensões sociais provenientes da sobrerepresentação masculina branca.
Ao identificar duas perspectivas teóricas principais, a axiológica e normativa e
a histórica e sociológica, o autor passa a demonstrar a recepção das questões acima
descritas em cada uma delas.
De acordo com Guimarães, na perspectiva axiológica e normativa, o argumento
central, em torno do qual se debatem três posições, é: .as políticas de ação
afirmativa forçaram uma confrontação aguda entre dois valores nucleares da sociedade
americana: igualitarismo e individualismo. (Lipset apud Guimarães, 1999, p.15).
Assim, as políticas de ação afirmativa teriam substituído o igualitarismo, no qual a
idéia nuclear é a igualdade de oportunidades para os indivíduos, por uma igualdade
de resultados, que transfere a unidade de ação social, econômica e política dos
indivíduos para os grupos de pertença identitária (Guimarães, 1999, p.152).
De acordo com Guimarães, Seymor Martin Lipset conclui que tal tensão só poderá ser desfeita se as políticas de
ação afirmativa retomarem .seu objetivo original de garantir tratamento igual para os indivíduos., sugerindo que
as novas estratégias, para proporcionar a ascensão social de membros de minorias, .sejam de cunho universalista
ou referidas a traços variáveis, tais como pobreza, ao invés de referirem-se a raça, gênero ou etnicidade..
Tudo indica que Lipset retoma o debate proposto por Myrdal na década de 1940, conhecido como o .Dilema
americano., substituindo seus termos. Para Myrdal, a contradição central situava-se na relação entre o credo
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
33
2016
universalista, baseado no mérito individual e na igualdade de oportunidades, e as particularidades ou
particularismos e hierarquias da vida cotidiana, mormente a segregação e discrimina ção racial. Para Lipset, em
vez de segregação e discriminação raciais aparece agora a pobreza. O que em Myrdal era implícito . o direito é a
arena dos indivíduos e não dos grupos . em Lipset torna-se explícito. Para Myrdal, o conflito moral ocorria entre
as intenções e as ações da maioria branca. Em Lipset o conflito situa-se entre valores individualistas e pertenças
grupais. Sua conclusão é que não haveria lugar para direitos de grupos (Lipset apud Guimarães, 1999, p.152). Assim,
a crítica de Lipset pode ser considerada conservadora, pois atribui aos indivíduos a responsabilidade pela posição
social que ocupam, considerando que é indevida qualquer intervenção estável e que não se sustenta diante da
tradição liberal americana.
O debate sobre ação afirmativa reflete a evolução do pensamento social
que, a partir da década de 60, passou a descobrir e teorizar fenômenos sociais
irredutíveis ao indivíduo e a induzir o próprio pensamento liberal e a teoria do
direito a buscarem novas formas de compatibilização entre direitos individuais e
restrições coletivas à ação individual (Guimarães, 1999, p.156).
Ora a sobre-representação de pessoas com uma mesma característica .naturalizada., em qualquer distribuição de
recursos, deve ser investigada, não porque seja anormal, mas porque .sexo., .cor., .raça., .etnia. são construções
sociais, usadas, precisamente, para monopolizar recursos coletivos. Ações afirmativas são políticas que visam
afirmar o direito de acesso a tais recursos a membros de grupos subrepresentados, uma vez que se tenham boas
razões e evidências para supor que o acesso seja controlado por mecanismos ilegítimos de discriminação (racial,
étnica, sexual). (Guimarães, 1999, p.158)
A jurisprudência que se forma nos Estados Unidos em torno da legalidade ou não de certas práticas de ação
afirmativa busca, justamente, construir pontes entre os direitos coletivos e os direitos individuais. O ponto
central dessa jurisprudência é a noção de reparação.
A defesa da validade moral das ações afirmativas conduziu a duas outras posições, no interior da perspectiva
normativa e axiológica. A posição liberal, enraizada no credo individualista, defende tais ações, baseando-se na
idéia de mérito, de igualdade de oportunidades. Uma terceira posição, que abomina tanto a meritocracia quanto o
individualismo, defende aquelas ações com base em uma
ética política (Guimarães, 1999, p.163).
Essa última posição observa que os liberais preferem as políticas universalistas, chamadas color-blind, às politicas
particularistas, chamadas race-conscious. Assim, para os defensores do credo individualista é central a idéia de
mérito e igualdade de oportunidades. Para os defensores de uma ética política, é fundamental a crítica à
meritocracia e ao individualismo.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
34
2016
Um dos principais representantes desta última posição é Duncam Kennedy (1995), que chama a posição liberal de
.fundamentalismo meritocrático.. O argumento central da crítica de Kennedy é que, no caso da ação afirmativa,
assim como no que se refere ao voto e à liberdade de expressão, o objetivo é político e prévio à realização de
ilustração ou à recompensa de .mérito., tal como determinada pelas instituições existentes. O valor em causa é a
comunidade, e não a capacidade
individual. No fundo o que se quer mostrar é que os valores, em geral, escondem e justificam ações diferentes das
que explicitam, ao contrário da crença dos liberais e conservadores de que os valores estruturam e orientam
sempre ações específicas.
Assim, o valor supremo a ser perseguido é, portanto, a representação da diversidade cultural e comunitária em
todos os âmbitos da vida pública. Aqui fica clara a convicção de que as desigualdades entre os seres humanos é,
hoje, produto de subordinação política e cultural. Desse modo, as ações afirmativas poderiam garantir a
preservação e o desenvolvimento da diversidade cultural (Guimarães, 1999, p.163).
De acordo com Guimarães, a perspectiva histórica e sociológica que ganha cada vez mais espaço na literatura
enfatiza o modo como políticas de ação afirmativa vieram ou podem vir a se constituir, bem como os impactos que
tiveram ou podem vir a ter sobre a estrutura social. Isto é, procura compreender os antecedentes sociais e
históricos (sistema de valores, conjunturas políticas, movimentos sociais e ações coletivas) que tornaram ou podem
vir a tornar possível a construção de políticas públicas de cunho e de intenção antidiscriminatórios em países
plurirraciais ou étnicos de credo democrático. Tais discussões giram ainda em torno dos obstáculos e dos
incentivos sociais (o sentido do jogo político e social) para a adoção dessas políticas em situações nacionais
concretas.
A DISCUSSÃO BRASILEIRA
As posições conservadoras de Lipset muito se assemelham às críticas de intelectuais e da imprensa brasileira em
relação à ação afirmativa, a meu ver produto da não-atualização dos esquemas interpretativos e conceituais. A
distinção é que a pobreza, que passou a ser a palavra de ordem da reação conservadora nos EUA, sempre apareceu
para os nossos conservadores de forma prioritária na explicação dos problemas sociais. Lá, os negros e as
mulheres, aparentemente, estão desafiados a manter as conquistas obtidas com os programas de ação afirmativa,
especialmente entre os anos de 1960 e de 1980; aqui, negros e mulheres necessitam lutar para a implementação
de políticas públicas e programas que ampliem sua participação em posições estratégicas do mercado de trabalho,
em paralelo à crítica feita à sociedade que os inferioriza.
Colocando em outros termos, a questão é saber o quanto custou e custa para os afrodescendentes o juízo de
superioridade que opera no Brasil, o qual tem possibilitado a vigência da expressão .juntos mas desiguais. que, ao
que tudo indica, tem se sobreposto a qualquer conflito moral no interior do grupo dominante branco.
De acordo com Guimarães, a discussão sobre políticas públicas com o fito específico de beneficiar os afro-
brasileiros é ainda incipiente no país. Os argumentos contrários vão em três direções:
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
35
2016
1. As ações afirmativas significam o reconhecimento de diferenças étnicas e raciais entre os brasileiros, o que
contraria o credo nacional de que somos um só povo, uma só raça. 2. Há aqueles que vêem em discriminações
positivas um repúdio ao princípio universalista e individualista do mérito que orienta a vida pública brasileira
e tem sido a principal arma contra o particularismo. 3. Para outros, simplesmente, não existem possibilidades reais
de implementação dessas políticas no Brasil.
Assim, no primeiro caso a negativa de reconhecer a existência formal da discriminação racial, quando ela é
denunciada e comprovada, transmuda-se na afirmação de que ela não pode existir porque não somos brancos,
porque somos todos mestiços. Esse consenso nacional, todavia, não resiste a um exame mais detalhado. Tudo se
passa nessa versão romântica do anti-racismo, como se se quisesse negar uma realidade na qual, no íntimo,
acredita-se: declara-se que as raças não existem, mas se usa a classificação de .negros. e .brancos. dos Estados
Unidos, como se esta fosse a classificação racial verdadeira, como se os brancos americanos não fossem, eles
próprios, também mestiços; como se eles fossem puros, .cem por cento. brancos. Apenas nossos brancos é que
seriam mestiços e, por isso, seriam considerados .negros. nos Estados Unidos.
.Na verdade, é contra essa classificação .odiosa., que nos transformaria, a todos, em negros, que se levanta a nossa
indignação, negando as raças e, ao mesmo tempo, a possibilidade de haver discriminação entre nós.. Ao se perguntar
que .nós. é este?, quem se inclui neste .nós.?, o autor responde: .aparentemente todos os que .não são
ostensivamente de cor.. (Guimarães, 1999, p.169).
A POLÍTICA EDUCACIONAL E A ESCOLA NA ERA DA AÇÃO
AFIRMATIVA
Existe um certo consenso entre os estudiosos de que as ações afirmativas destinadas a promover a igualdade . o
combate à discriminação na área da educação nos EUA é disciplinado no Título VI do Estatuto dos Direitos Civis
de 1964 . são o resultado da iniciativa de entidades públicas e privadas que buscaram se adequar à política
antidiscriminatória patrocinada pelo governo federal.
A materialização dessa adequação ocorreu, e ocorre, por meio de
...programas preferenciais, concebidos e implementados pelas próprias instituições
educacionais, ora pela observância estrita das normas proibitivas de discriminação
inseridas no Estatuto dos Direitos Civis, ora mediante severa vigilância por parte de
órgãos governamentais e entidades de promoção dos direitos de minorias. (Gomes,
2001, p.94)
Desde o início de sua implantação nos anos 60, logo após a assinatura de um decreto executivo pelo presidente
John Kennedy, que determinava a inserção dos negros no sistema educacional de qualidade, somente em 1978
ocorreu a primeira contestação que se tornou pública. O caso Regents of the University of California versus Bakke
representou um momento fundamental no debate sobre as ações afirmativas na área da educação.
O caso envolvia um programa preferencial de admissão na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia
em Davis. De acordo com esse programa, dezesseis por cento das vagas do curso de Medicina seriam destinadas a
estudantes pertencentes a minorias. Num universo de cem vagas, restariam 84 para competição entre outras
pessoas não classificadas como minoria. O programa, contudo, tinha uma falha séria em sua concepção, isto era
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
36
2016
visível ao primeiro contato: para as dezesseis vagas reservadas só podiam concorrer as minorias, mas o inverso
não era verdadeiro, ou seja, as minorias também podiam concorrer a uma das 84 vagas restantes!
Por esse e outros motivos, um candidato branco, Alan Bakke, moveu ação contra a Faculdade perante a Justiça
Estadual da Califórnia, alegando violação ao seu direito a Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 239 igual
proteção da lei (14ª Emenda à Constituição dos EUA), bem como infringência ao Título VI da Lei dos Direitos Civis
de 1964. (Gomes, 2001, p.105)7
Esse caso colocou em evidência a disputa entre os dois postulados filosóficos das ações afirmativas . a tese da
justiça compensatória e a tese da justiça distributiva. Isto é, a disputa entre uma posição que postula que o
Estado, para implementar qualquer medida .afirmativa. em prol de minorias, tem que produzir .evidências. da
existência da discriminação e apontar as respectivas vítimas; e outra que sustenta que a sub-representação de
minorias nas diversas profissões .constitui a prova cabal da discriminação do passado, razão pela qual não haveria
a necessidade de que os beneficiários da medida redistributiva proposta sejam as verdadeiras vítimas da
discriminação. (Gomes, 2001, p.114).
Para Guimarães, nesse último sentido estaria contida, para além da dimens ão redistributiva, a novidade das ações
afirmativas como políticas públicas, uma vez que elas podem prevenir que pessoas pertencentes a grupos com
grande probabilidade estatística de serem discriminados ou indivíduos de certos grupos de risco tenham seus
direitos alienados (Guimarães, 1999, p.154).
Os comentários de Dworkin sobre o Caso Bakke estendem-se a dois outros desdobramentos fundamentais do
debate: o primeiro é a compatibilidade do fator raça com a legislação federal de direitos civis, endossada pelo
julgamento da Corte Suprema; o segundo é o entendimento de que a diversidade deve ser compreendida entre os
objetivos impostergáveis que toda instituição universitária deve perseguir, enquadrando-se na rubrica da
autonomia universitária.
O CASO BRASILEIRO
O que se deve ter em mente é que, sendo as universidades e as faculdades as instituições responsáveis pela
formação dos professores que operam nos diferentes graus de ensino em todo o país, o conhecimento de nossa
diversidade cultural no plano dos conteúdos ministrados deve acoplar-se à diversidade no plano representacional,
isto é, à das pessoas que são formadas nos diferentes cursos. Aqui reside um problema fundamental: se é verdade
que o liberalismo recomenda a neutralidade do Estado em alguns domínios, como por exemplo o religioso, o mesmo
não ocorre com a educação.
Assim, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: como indivíduos e grupos portadores de identidades raciais e
ou étnicas distintas da dominante podem ser representados com eqüidade perante Estados cujas instituições não
.reconhecem. as suas identidades particulares, isto é, suas diferenças? (Gomes, 2001, p.74)
Para Taylor, a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do reconhecimento, ou da falta deste,
ou seja, o modo como ele é representado pelos outros seres humanos pode afetar uma pessoa ou um grupo, de
modo a causar sérios danos à medida que aqueles que os cercam tenham uma imagem desprezível ou desdenhosa.
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
37
2016
Para este autor, a ausência de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado pode ser uma das principais fontes
de opressão, confinando alguém em um falso, distorcido e reduzido modo de ser (Taylor, 1994, p.26; Silvério, 1999,
p.44-55). Essas fontes de opressão ganham visibilidade e efetividade na sociedade em geral e, em especial, no
processo educacional em que os conteúdos culturais e os valores sociais são inculcados.
No fundamental, a discussão sobre as relações raciais, no caso brasileiro, inicia-se nas escolas e não no âmbito da
política educacional, pela simples (e falsa) negação da existência de racismo, e pode ser considerada um fenômeno
muito recente. Ela adquire maior visibilidade a partir das denúncias dos movimentos negros sobre o papel ideológico
do mito da democracia racial e, também, de alguns trabalhos realizados a partir da década de 1970, que passaram
a demonstrar que as crianças e jovens negros tanto pressionavam mais o mercado de trabalho quanto tinham um
menor rendimento escolar e evadiam-se do ensino de primeiro grau em proporção muito maior do que as crianças
e jovens brancos (Rosemberg, 1986; Hasenbalg, Silva, 1990).
Quaisquer que sejam as variáveis explicativas do fenômeno da diferença de anos de escolarização entre brancos
e negros na atualidade, alguns estudos demonstram que parte do problema está associada ao racismo e à
discriminação racial presentes em nossa sociedade em geral e, em especial, na instituição escolar.
Outros estudos demonstram que o racismo e a discriminação racial estão associados à experiência branca. A
branquitude (whiteness) .se define como uma consciência silenciada .quase. incapaz de admitir sua participação
provocante em conflitos raciais que resiste, assim, em aceitar e a relacionar-se com a experiência dos que recebem
a violação e o preconceito. (Rossato, Gesser, 2001, p.11).
Esta consciência silenciada ou experiência branca pode ser definida como .uma forma sócio-histórica de
consciência. nascida das relações capitalistas e leis coloniais, hoje compreendida como .relações emergentes entre
grupos dominanCadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 241 tes e subordinados.. Essa branquitude como
geradora de conflitos raciais demarca concepções ideológicas, práticas sociais e formação cultural, identificadas
com e para brancos como de ordem .branca. e, por conseqüência, socialmente hegemônica (Rossato, Gesser, 2001,
p.11).
A experiência branca, ou branquitude, pode então ser observada e compreendida como uma .forma de amnésia
social associada a certos modos de subjetividade que, em contextos sociais particulares, são percebidas como
normais. De acordo com esse raciocínio, a experiência de outros grupos raciais (negros, pardos em geral,
afrodescendentes) é descaracterizada como de seres humanos e, por conseqüência, é percebida como indicadora
de desajustes no contexto de humanidade.
O encontro com o .outro. (denominado índio, escravo, preto, negro, nomenclaturas essas estabelecidas para
justificar sua desumanidade, invisibilidade e coisificação), não incluído como membro social, permitiu aos
colonizadores angloeuropeus perceberem a branquitude como uma representação de identidade e ponto de
referência para legitimar a distinção e a superioridade, assegurando assim sua posição de privilégio (Rossato,
Gesser, 2001, p.13).
No contexto colonial as marcas dessa identidade dominante seriam representadas pela ordem, racionalidade e
autocontrole. Os demais grupos raciais seriam vistos como indicadores de caos, irracionalidade, vandalismo e por
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
38
2016
meio da completa perda da auto-regulação. Um dos resultados desse contexto histórico foi o movimento de eugenia
do final do século XIX (1880) e início do século XX (1920), que tinha como objetivo manter a raça .pura.. Ou seja,
pessoas não brancas eram racialmente discriminadas e consideradas inferiores e, conseqüentemente, vítimas de
preconceito. O termo eugenia, de origem grega, significa .bom de nascimento.. A crença estabelecida por meio
desse movimento era a de que vários aspectos observados no comportamento humano (moral, social, intelectual)
eram considerados hereditários. O movimento veiculava também a idéia de que, pela composição hereditária do
ser humano, era possível prever sua futura atuação na sociedade. Essa crença, aparentemente, tem mantido um
espaço contínuo na consciência popular por mais de um
século e afetado gerações.
Da mesma forma que ocorreu em outros países, as premissas do movimento da eugenia trouxeram ao Brasil as
explicações para os fenômenos raciais, classificando-os como um exemplo de ineficácia biológica hereditária e
fazendo com que, conforme a cor da pele, as pessoas se sentissem (ou se sintam) mais ou menos
privilegiadas umas em relação às outras.
De acordo com a teoria sociocultural da aprendizagem, fatores sociais e culturais exercem um papel crucial no
processo de alfabetização de uma criança. Vygotsky (1986) explica com sua teoria de desenvolvimento cognitivo
que processos psicológicos se relacionam com o ambiente social e cultural. Nessa perspectiva ele enfatiza as
conexões entre fatores sociais de natureza cultural e histórica, bem como os de natureza interpessoal. Esse autor
salienta que a linguagem não é só instrumento de comunicação, mas também um instrumento que tem dado configura
ção à evolução cultural dos povos. Dessa forma, as crianças aprendem e internalizam o que se veicula no contexto
em que vivem e, no caso específico da discriminação, obviamente elas aprendem e internalizam as representações
racistas Exposta a criança a esta aprendizagem, o racismo internalizado é propagado intra e intergerações. Assim,
esse fenômeno não é algo do passado; infelizmente, ele é um dos problemas centrais e perenes em sociedades
multirraciais como a brasileira.
Conforme a teoria de Vygotsky (1986), esse fenômeno sociocultural vivido na sala de aula propicia a internalização
de fatores de aprendizagem discriminatórios que viriam a contribuir e reforçar os esquemas culturais e cognitivos
já veiculados no ambiente familiar e comunitário.
O afrontamento de tais barreiras, invisíveis e visíveis, coloca muitas crianças de origem não branca numa posição
de resistência. No entanto, outras crianças assumem uma posição chamada, em inglês, racelessness (decomposição
racial). Essas crianças abandonam sua tradição cultural ou étnica e se vêem forçadas a usar uma postura e atitude
esbranquiçada para serem bem-sucedidas e terem acesso ao grande desejo de .subir na vida. e alcançar assim o
objetivo almejado, ou mais próximo do almejado. Esse fenômeno é caracterizado como uma busca de
descolonização por meio da imitação do comportamento branco tido como dominante. (Rossato, Gesser,
2001, p.22)
Desenvolvendo essa consciência poderemos encontrar milhões de crianças negras no Brasil e no mundo. Muitas
delas sentem-se silenciadas, ou seja, sentem que suas vozes, experiências e histórias não são validadas e ouvidas
pela escola.
Assim, em boa medida, o combate à pobreza no Brasil passa necessariamente pela manutenção da criança e do
jovem negro na escola. Mas em uma escola de qualidade que consiga transmitir, sem mistificação e de forma mais
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
39
2016
equânime para todos, a contribuição de cada raça, de cada etnia na formação sociocultural brasileira. A construção
de um tal processo escolar depende de uma política educacional que considere, entre outras, duas condições
básicas: a inclusão imediata dos jovens negros nas universidades por meio de programas de ação afirmativa e a
reformulação curricular da formação de professores a partir de parâmetros multiculturais. Dessa forma acredito
que o combate ao racismo institucional e às discriminações inscritas em nossas relações sociais terão maior
eficácia.
RECOMENDAÇÕES DE PESQUISA LIVROS - Dos quilombos a favela
- Jacobinos negros
-Mascaras brancas peles negras
- Funk-se se puder
FILMES - Selma
- Panteras Negras
MÚSICAS - Mama Africa
- Todo Camburão tem um pouquinho de navio negreiro (Cantor O Rappa)
- Negro Drama (Cantor Os racionais)
- Boa Esperança (Cantor Emicida )
ARTISTAS - Ray Charles
- Nina Simone
- Michael Jackson
- Machado de Assis
- Antonio Calado
- Chiquinha Gonzaga
- Elisa Lucinda
- Pixinguinha
- Cartola
- Ruth Souza
- Solano Trindade
LIDERANÇAS
- Dandara Palmares
- Carlos Marighela
ALGUNS PENSADORES
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
40
2016
- Abdias Nascimento:
- Maria Carolina de Jesus:
- Malcon X:
- Martins Luter King:
ALGUNS MOVIMENTOS SOCIAIS - Reaja ou seja morto
- Fórum de juventudes do RJ
EXERCÍCIOS DE VETIBULARES
ANTERIORES UERJ 2014
No I Congresso Mundial das Raças, ocorrido em Londres
em 1911, o médico João Baptista de Lacerda ilustrou suas
reflexões sobre a sociedade brasileira analisando a tela
“A redenção de Cam”, que retrata três gerações de uma
família.
Essa pintura foi utilizada na época para indicar a seguinte
tendência demográfica no Brasil:
(A) controle de natalidade
(B) branqueamento da população
(C) equilíbrio entre faixas etárias
(D) segregação dos grupos étnicos
ENEM 2013
Olá! Negro
Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos
e a quarta e a quinta gerações de teu sangue sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações dessas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro íoruba,
negro que foste para o algodão de USA
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreenda agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!
Olá, Negro! Olá. Negro!
A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!
LIMA. J, Obras completas: Rio de Janeiro, Aguilar, 1958
(fragmento).
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
41
2016
O conflito de gerações e de grupos étnicos reproduz, na
visão do eu lírico, um contexto social assinalado por
A) modernização dos modos de produção e consequente
enriquecimento dos brancos.
B) preservação da memória ancestral e resistência negra
à apatia cultural dos brancos.
C) superação dos costumes antigos por meio da
incorporação de valores dos colonizados.
D) nivelamento social de descendentes de escravos e de
senhores pela condição de pobreza.
E) antagonismo entre grupos de trabalhadores e lacunas
de hereditariedade.
ENEM 2014
Negro, filho de escrava e fidalgo português, o baiano Luiz
Gama fez da lei e das letras suas armas na luta pela
liberdade. Foi vendido ilegalmente como escravo pelo seu
pai para cobrir dívidas de jogo. Sabendo ler e escrever,
aos 18 anos de idade conseguiu provas de que havia
nascido livre. Autodidata, advogado sem diploma, fez do
direito o seu ofício e transformou-se, em pouco tempo, em
proeminente advogado da causa abolicionista.
AZEVEDO, E. O Orfeu de carapinha. In: Revista de
História.Ano 1, n.o 3. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, jan. 2004 (adaptado).
A conquista da liberdade pelos afro-brasileiros na
segunda metade do séc. XIX foi resultado de importantes
lutas sociais condicionadas historicamente. A biografia de
Luiz Gama exemplifica a
A) impossibilidade de ascensão social do negro forro em
uma sociedade escravocrata, mesmo sendo alfabetizado.
B) extrema dificuldade de projeção dos intelectuais
negros nesse contexto e a utilização do Direito como
canal de luta pela liberdade.
C) rigidez de uma sociedade, assentada na escravidão, que
inviabilizava os mecanismos de ascensão social.
D) possibilidade de ascensão social, viabilizada pelo apoio
das elites dominantes, a um mestiço filho de pai
português.
E) troca de favores entre um representante negro e a
elite agrária escravista que outorgara o direito
advocatício ao mesmo.
UERJ 2015
A demarcação de terras de comunidades quilombolas é
fato recente nas práticas governamentais brasileiras.
Um dos principais objetivos dessa política pública é
viabilizar a promoção de:
(A) aceleração da reforma agrária
(B) reparação de grupos excluídos
(C) absorção de trabalhadores urbanos
(D) reconhecimento da diversidade étnica
UERJ 2014
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
42
2016
No cartum, há uma alusão aos "rolezinhos"•,
manifestações em que jovens, em geral oriundos de
periferias, formam grandes grupos para circular dentro
de shoppings. Com base no diálogo entre os guardas e nos
elementos visuais que compõem o cartum, é possível
inferir uma crítica do cartunista baseada no seguinte
fato:
(A) os jovens se descontrolam em grupos muito numerosos
(B) os guardas pertencem à mesma classe social dos
jovens
(C) os guardas hesitam no cumprimento de medida
repressiva
(D) os jovens ameaçam as atividades comerciais dos
shoppings
ENEM 2009
Os melhores cri ticos da cultura brasileira trataram- na
sempre no plural, isto e , enfatizando a coexiste ncia no
Brasil de diversas culturas. Arthur Ramos distingue as
culturas na o europeias (indi genas, negras) das europeias
(portuguesa, italiana, alema etc.), e Darcy Ribeiro fala de
diversos Brasis: crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e de
Brasis sulinos, a cada um deles correspondendo uma
cultura especi fica.
MORAIS, F. O Brasil na visa o do artista: o pai s e sua
cultura. Sa o Paulo: Sudameris, 2003.
Considerando a hipo tese de Darcy Ribeiro de que ha
va rios Brasis, a opc ao em que a obra mostrada representa
a arte brasileira de origem negro-africana e :
A
B
C
D
E
ENEM 2011
Quando os portugueses se instalaram no Brasil, o país era
povoado de índios. Importaram, depois, da África, grande
número de escravos. O Português, o Índio e o Negro
constituem, durante o período colonial, as três bases da
população brasileira. Mas no que se refere à cultura, a
contribuição do Português foi de longe a mais notada.
Durante muito tempo o português e o tupi viveram lado a
lado como línguas de comunicação. Era o tupi que
utilizavam os bandeirantes nas suas expedições. Em 1694,
dizia o Padre Antônio Vieira que “as famílias dos
portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje
umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam
mística e domesticamente, e a língua que nas ditas
famílias se fala é a dos Índios, e a portuguesa a vão os
meninos aprender à escola.”
TEYSSIER, P. História da língua portuguesa . Lisboa:
Livraria Sá da Costa, 1984 (adaptado).
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
43
2016
A identidade de uma nação está diretamente ligada à
cultura de seu povo. O texto mostra que, no período
colonial brasileiro, o Português, o Índio e o Negro
formaram a base da população e que o patrimônio
linguístico brasileiro é resultado da
A) contribuição dos índios na escolarização dos
brasileiros.
B) diferença entre as línguas dos colonizadores e as dos
indígenas.
C) importância do Padre Antônio Vieira para a literatura
de língua portuguesa.
D) origem das diferenças entre a língua portuguesa e as
línguas tupi.
E) interação pacífica no uso da língua portuguesa e da
língua tupi.
ENEM 2010
Negrinha
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não;
fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos
assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos
vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha
esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa
não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo,
amimada dos padres, com lugar certo na igreja
e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as
banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de
jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando
audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora
em suma – “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio
da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos
em carne viva.
[...]
A excelente dona Ina cia era mestra na arte de judiar de
crianc as. Vinha da escravida o, fora senhora de escravos –
e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e zera
ao regime novo – essa indece ncia de negro igual.
LOBATO, M. Negrinha. In: MORICONE, I. Os cem
melhores contos brasileiros do se culo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000 (fragmento).
A narrativa focaliza um momento histo rico-social de
valores contradito rios. Essa contradic ao infere-se, no
contexto, pela
A) falta de aproximac ao entre a menina e a senhora,
preocupada com as amigas.
B) receptividade da senhora para com os padres, mas
deselegante para com as beatas.
C) ironia do padre a respeito da senhora, que era perversa
com as crianc as.
D) resiste ncia da senhora em aceitar a liberdade dos
negros, evidenciada no final do texto.
E) rejeic ao aos criados por parte da senhora, que preferia
trata -los com castigos.
ENEM 2011
A Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, inclui no currículo
dos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficiais e particulares, a obrigatoriedade do ensino
sobre História e Cultura Afro-Brasileira e determina
que o conteúdo programático incluirá o estudo da História
da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil, além de instituir, no
calendário escolar, o dia 20 de novembro como data
comemorativa do “Dia da Consciência Negra”.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 27
jul. 2010 (adaptado).
A referida lei representa um avanço não só para a
educação nacional, mas também para a sociedade
brasileira, porque
A) legitima o ensino das ciências humanas nas escolas.
B) divulga conhecimentos para a população afro-brasileira.
C) reforça a concepção etnocêntrica sobre a África e sua
cultura.
D) garante aos afrodescendentes a igualdade no acesso à
educação.
E) impulsiona o reconhecimento da pluralidade étnico-
racial do país.
GABARITO
UERJ
2014
UERJ
2015
UERJ
2016
ENEM
CPV – MARÉ/ CEASM
AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL
44
2016