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CPV – MARÉ/ CEASM AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL 1 2016 Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que demonstra como a polêmica que se monta em torno de seu significado transcende em muito as questões acadêmicas, para atingir um significado mais abrangente, da ideologia de dominação. Somente admitindo o papel social, ideológico e político do racismo poderemos compreender sua força permanente e seu significado polimórfico e ambivalente. Apenas desta forma poderemos compreender por que se trata de um conceito tão polêmico e, também, por que em determinados contextos políticos e momentos históricos o racismo adquire tanta vitalidade e se desenvolve com tanta agressividade: ele não é uma conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com pesquisas de laboratório que comprovem a superioridade de um grupo étnico sobre outro, mas uma ideologia deliberadamente montada para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa, portanto, uma ideologia de dominação, e somente assim pode-se explicar a sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma questão científica cuja última palavra seria dada pela ciência é plena ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e nem por isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no contexto das relações locais, nacionais e internacionais. O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também ideológico e político. É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas através do seu viés acadêmico e estritamente científico, uma vez que ele transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário superpõe-se a essas conclusões com todo um arsenal ideológico justificatório de dominação. Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido de que no próximo século milhões de homens se matarão por um ou dois graus do índice cefálico”. Isso foi escrito em 1880. O que esse teórico do racismo queria expressar eufemisticamente é que a humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferenças raciais seriam O racismo como arma ideológica de dominação

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CPV – MARÉ/ CEASM

AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL

1

2016

Uma história contada diferente

Sobre o racismo um dos temas mais polêmicos, instigantes e inesgotáveis do mundo moderno, concentram-se

opiniões contraditórias, que discutem em vários níveis, as consequências de sua prática. A discussão sobre as

diversas formas de sua atuação, significado e função vem sempre acompanhada de uma carga emocional, o que

demonstra como a polêmica que se monta em torno de

seu significado transcende em muito as questões

acadêmicas, para atingir um significado mais

abrangente, da ideologia de dominação. Somente

admitindo o papel social, ideológico e político do

racismo poderemos compreender sua força

permanente e seu significado polimórfico e

ambivalente.

Apenas desta forma poderemos compreender por que

se trata de um conceito tão polêmico e, também, por

que em determinados contextos políticos e momentos

históricos o racismo adquire tanta vitalidade e se

desenvolve com tanta agressividade: ele não é uma

conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com

pesquisas de laboratório que comprovem a

superioridade de um grupo étnico sobre outro, mas

uma ideologia deliberadamente montada para justificar a expansão dos grupos de nações dominadoras sobre

aquelas áreas por eles dominadas ou a dominar. Expressa, portanto, uma ideologia de dominação, e somente assim

pode-se explicar a sua permanência como tendência de pensamento. Vê-lo como uma questão científica cuja última

palavra seria dada pela ciência é plena ingenuidade, pois as conclusões da ciência condenam o racismo e nem por

isso ele deixa de desempenhar um papel agressivo no contexto das relações locais, nacionais e internacionais.

O racismo tem, portanto, em última instância, um conteúdo de dominação, não apenas étnico, mas também

ideológico e político. É por isso ingenuidade, segundo pensamos, combatê-lo apenas através do seu viés acadêmico

e estritamente científico, uma vez que ele transcende as conclusões da ciência e funciona como mecanismo de

sujeição e não de explicação antropológica. Pelo contrário superpõe-se a essas conclusões com todo um arsenal

ideológico justificatório de dominação.

Lapouge, um dos teóricos, dizia: “Estou convencido de que no próximo século milhões de homens se matarão por

um ou dois graus do índice cefálico”. Isso foi escrito em 1880. O que esse teórico do racismo queria expressar

eufemisticamente é que a humanidade travaria a maior guerra de sua história e que as diferenças raciais seriam

O racismo como arma ideológica de dominação

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um dos pretextos ideológicos de que os agressores lançariam mão para justificar a conquista de territórios

colonizáveis.

É uma constante o traço antropológico estar embutido na crista da ofensiva racista de dominação. Com isso não

queremos dizer que toda antropologia é racista. Pelo contrário. Mas o que acontece é que a divulgação que se faz

dessa ciência, especialmente para a opinião pública leiga, é nesse sentido. A expressão de Lapouge teve

contestadores, mas o que se viu foi a florescência progressiva dessa posição no final do século XIX e início do

século XX, a ponto de fazer com que milhões de pessoas dela compartilhassem. O racismo é um multiplicador

ideológico que se nutre das ambições políticas e expansionistas das nações dominadoras e serve-lhe como arma de

combate e de justificativa para os crimes cometidos em nome

do direito biológico, psicológico e cultural de “raças eleitas”.

Há também o racismo interno em várias nações, especialmente

nas que fizeram parte do sistema colonial, através do qual suas

classes dominantes mantêm o sistema de exploração das

camadas trabalhadoras negras e mestiças.

Com a montagem do antigo sistema colonial e a expansão das

metrópoles colonizadoras, esse racismo se desenvolveu como

arma justificadora da invasão e do domínio das áreas

consideradas “bárbaras”, “inferiores”, “selvagens” que, por

isso mesmo, seriam beneficiadas com a ocupação de seus

territórios e a destruição de suas populações pelas nações

“civilizadas”.

O racismo larval que encontramos em todos os povos antes da aventura colonialista passa a revestir-se de uma

roupagem científica a ser manipulado como se ciência fosse. No particular podemos dizer que o racismo moderno

nasceu com o capitalismo. Referimo-nos ao racismo como o entendemos modernamente, o qual procura justificar a

dominação de um povo, nação ou classe sobre outra invocando argumentos “científicos”. Antes do aparecimento do

capitalismo,

“(…) as tentativas feitas para justificar a dominação europeia sobre os indígenas eram fundadas em crenças

sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos, ao contrário dos povos submetidos, nada mais lógico e natural de

que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse os seus adeptos. Os donos de escravos negros podiam

inclusive justificar a escravidão em uma passagem do Velho Testamento, no qual se lê que os filhos de Cam

foram condenados a ser lenhadores e aguadeiros. Obviamente, essas razões sobrenaturais logo começaram a

perder seu valor e em seguida os brancos imaginaram outras justificativas mais de acordo com a natureza. A

doutrina da seleção natural e da sobrevivência do mais apto foi um argumento que veio a calhar. A rapidez com

que esse conceito puramente biológico chegou a dominar em todos os campos e atividades do pensamento

europeu nos dá a ideia da necessidade urgente que se precisava para justificar a dominação. Nessa teoria

universalmente aceita, a dominação europeia encontrou a forma de justificar-se que estava procurando. Já que

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os brancos haviam conseguido mais êxito que as outras raças, tinham de ser, per si, superiores a ela. O fato de

que essa dominação tinha data muito recente foi justificado alegando-se que o europeu médio não tinha 3

perspectiva mundial, assim como os outros argumentos que procuravam demonstrar que as raças restantes

ocupavam na realidade uma posição inferior na escala da evolução física”

É exatamente nesta confluência do capitalismo com as doutrinas biológicas da luta pela vida e a sobrevivência do

mais apto que o racismo se apresenta como corrente “científica”. Surge, então, a ideia de raça como chave da

história. Ela aparece exatamente na Inglaterra com Robert Knox (Races of Men, 1850) e na França com Arthur

de Gobineau (Essai sur l’inégalité des races humaines).

Para Alan Davies,

“(…) do primeiro surgiu o mito do gênio racial saxão –

mais tarde anglo-saxão – e do último surgiu o mito do

gênio racial ariano; mas ambos os mitos eram variantes

do tema geral da superioridade branca europeia sobre

os não-brancos. Sua gênese foi política. Knox

procurava provar que o homem saxão era democrata

por natureza e por isso o futuro dominador da terra.

Gobineau, por outro lado, não gostava da democracia e

procurou provar que seu surgimento era um sinal certo

de decadência e da morte iminente da civilização. Em

ambos os casos as raças não-brancas eram relegadas a

uma posição inferior como símbolos dos elementos

primitivos e não-criativos na natureza humana”

Deduz-se, portanto, sem muito esforço, que o racismo pode ser considerado – da forma como o entendemos

atualmente – um dos galhos ideológicos do capitalismo. Não por acaso ele nasceu na Inglaterra e na França e depois

desenvolveu-se tão dinamicamente na Alemanha. O racismo é atualmente uma ideologia de dominação do

imperialismo em escala planetária e de dominação de classes em cada país particular.

Desta forma explica-se o sistema colonial e o pilar de seu êxito: de um lado, exterminar as populações autóctones

das áreas ocupadas e, de outro, justificar o tráfico negreiro com a África, um dos fatores mais importantes da

acumulação capitalista nos países europeus. As populações autóctones não tinham direito aos territórios onde

viviam por serem primitivas; e às africanas, que já sofriam a maldição bíblica de Cam, juntava-se agora seu atraso

biológico, sua semelhança e proximidade com os mais primitivos espécimes da raça humana, quer dizer, eram

antropóides que se desviaram de sua árvore genealógica. Com isso, o chamado processo civilizatório tinha o

respaldo da ciência. A afro-América, que compreendia, no século XVIII, o Caribe (Antilhas, Guianas), e grande

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parte da América espanhola continental (costa do Peru, partes do que são hoje a Venezuela e a Colômbia) já

estavam inteiramente dominadas, e a justificativa para a sua dominação era a mesma: a incapacidade inata

(biológica) que os nativos tinham para se civilizarem.

Toda essa população nativa ou compulsoriamente trazida da África fazia parte de uma massa sem história, sem

máscara, sem cultura, sem moral e sem perspectiva civilizatória. Já no início do século XIX os teóricos racistas

substituíram as explicações um pouco vagas por explicações “científicas”, como já foi dito, enquanto as demais

áreas da Ásia, África e Oceania eram ocupadas com o mesmo pretexto.

Foi a época áurea da antropometria, quando Gobineau, Ammon, Broca, Levi e Quatrefages desenvolviam pesquisas

no sentido de saber se os habitantes das cidades eram superiores (por questões biológicas) aos camponeses pela

sua capacidade craniana; se os nórdicos eram superiores aos alpinos ou, como queria Levi, se os mediterrâneos

eram superiores a outras “raças” europeias.

Tais conclusões eram baseadas em pesquisas históricas; na mensuração de crânios e esqueletos; na medição de

índices cefálicos, e na capacidade craniana de cada grupo pesquisado. Tudo isso, no entanto, representava, em

última instância, as contradições e os conflitos das nações europeias em 4

luta pela dominação continental. Convém notar que alguns deles, como é o caso de Gobineau, chegaram às suas

conclusões antes de terem lido A origem das espécies, de Darwin, que surgiu em 1859 e deu novo alento a essas

hipóteses com a sua teoria da “sobrevivência do mais apto”, criando a escola do darwinismo social. Como diz uma

antropóloga, “havia-se descoberto uma razão” 'científica' que santificava o velho axioma 'o poder

faz o direito'”. Por outro lado, entrava-se na época aguda do colonialismo e as disputas pelos territórios

conquistados ou a serem conquistados. Afirmou Ruth Benedict:

“O racismo converteu-se em grito de guerra durante este período nacionalista. A pátria, que necessitava de uma

palavra-de-ordem aglutinadora, se outorgou um pedigree e um vínculo que levava a que qualquer homem podia

compreender e sentir-se orgulhoso dele. O racismo foi, a partir daí, uma babel de vozes diferentes. Os franceses,

os alemães, os eslavos, os anglo-saxões, todos produziram literatos e políticos consagrados a demonstrar que,

desde o princípio da história europeia, os triunfos da civilização devem-se exclusivamente à sua ‘raça’”

Como se vê, essa antropo-sociologia era reflexo e rescaldo de uma competição sociopolítica entre as nações da

Europa. Era, por isso mesmo, uma ciência eurocêntrica. Com a instalação e o dinamismo do sistema colonial e seu

desdobramento imperialista, ela se estende ao resto do mundo e aí procura ter uma visão mais abrangente e

sistemática, unindo todas as diferenças étnicas europeias em um bloco compacto – o branco –, que passa a se

contrapor ao restante das populações não civilizadas, dependentes, e racialmente diversas das matrizes daquele

continente. Não se cogita mais nas diferenças entre o nórdico, o alpino, o mediterrâneo, que passam a ser, de modo

genérico, componentes da raça branca. E essa raça tinha por questões de superioridade biológica o direito de

tutelar os demais povos.

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A partilha da África, feita por Bismarck na Alemanha, entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885

criou uma trégua entre as nações conquistadoras, e com isso o mundo ficou dividido entre os brancos civilizados

europeus e os povos não-brancos “bárbaros” e “selvagens”.

Civilizados que mandam e bárbaros que obedecem

Ordenado o colonialismo através do racismo, as nações dominantes sentiram-se à vontade para o saque às colônias

e para as razias mais odiosas nas regiões da Ásia, América Latina, África e Oceania e para agir contra todos os

que compunham as multidões de desamparados e anônimos da história. Não só roubaram-lhes as riquezas, mas suas

culturas, crenças, costumes, língua, religião, sistemas de parentesco e tudo o que durante milênios esses povos

constituíram, estruturaram e dinamizaram.

As explicações eram fáceis e já vinham pré-fabricadas pela sociologia antropológica desenvolvida na Europa para

dar aparência de verdade científica ao crime. A própria opinião pública liberal ou pretensamente humanista

europeia achava essa espoliação natural e defendia o direito dos ditos civilizados de tutelarem os povos

colonizados. Renan, neste sentido, escreveu:

“A regeneração das raças inferiores pelas raças superiores está dentro da ordem providencial da humanidade. O

homem do povo é quase sempre, entre nós, um nobre renegado, sua mão pesada é mais acostumada ao manejo da

espada do que ao utensílio servil. Prefere bater-se a trabalhar, isto é, regressa ao seu primeiro estado. Regere

imperio populos, eis a sua vocação. Derramai esta devorante atividade sobre os países que, como a China,

concitam a conquista estrangeira. Dos aventureiros que desinquietam a sociedade europeia, fazei um ver sacrum,

um exame como dos francos, dos lombardos, dos normandos, e cada qual estará no seu papel. A natureza gerou

uma raça de operários – é a raça chinesa – duma maravilhosa destreza de mão e quase nenhum 5

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sentimento de honra; governai-a com justiça, cobrando-lhe pelo benefício de tal governo um amplo erário em

proveito da raça conquistadora, e ela ficará satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra é o negro, sede para

ele bom e humano e tudo estará em ordem; uma raça de senhores e soldados é a raça europeia. Que se reduza

esta nobre raça a trabalhar no ergástulo como os negros e os chineses e ela revolta-se. Entre nós todo revoltado

é, mais ou menos, um soldado que errou de vocação, um ser feito para a vida heróica e que constrangeram a uma

tarefa contrária à sua raça, mau operário, soldado bom demais. Ora, a vida que revolta os nossos trabalhadores

faria a felicidade de um chinês, dum fellah, seres de maneira alguma militares. ‘Que cada um faça aquilo para que

nasceu e tudo correrá bem'”

Os europeus – arianos, mediterrâneos, alpinos etc. –

neste contexto eram os brancos. A grande massa de

povos colonizados era a população indistinta, e o

denominador que as igualava era a vocação de servir,

trabalhar para os brancos, que tinham o dom divino e

biológico de governá-la.

Com a passagem do colonialismo para o imperialismo

(neocolonialismo), o racismo é remanejado em sua

função instrumental. As metrópoles passam a ver as

áreas coloniais como habitadas por povos indolentes,

incuravelmente incapazes de criar uma poupança

interna que os elevasse ao nível dos países brancos, que

tinham estes predicados e se desenvolveram, ao

contrário do mundo não-branco que, por esta razão,

permanece subdesenvolvido.

A teoria do pensamento pré-lógico desses povos,

criada por L. Lévy Bruhl, condenava-os a uma posição

de dependência circular, porque eram atrasados em consequência de sua própria estrutura psicológica, sendo

refratários e impermeáveis à experiência e à razão e essencialmente religiosos. Estabelecia-se, assim, uma divisão

estanque entre os povos dominados e os dominadores, pois esse pré-logismo impedia-os de passar da economia

natural para a economia monetária (lógica) levada pelos dominadores (5). Neste sentido, K. Marx e F. Engels

escreveram, em 1848:

“(…) devido ao rápido desenvolvimento dos instrumentos de produção e dos meios de comunicação, a burguesia

arrasta na corrente da civilização até as nações mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia

pesada que destrói todas as muralhas da China e faz capitular os bárbaros mais tenazmente hostis aos

estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção. Numa

palavra, modela o mundo à sua imagem”

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O imperialismo multiplica as formas do racismo, “moderniza-o” na medida em que há necessidade de uma arma de

dominação mais sofisticada. Segundo a teoria de L. Lévy Bruhl, como éramos pré-lógicos, os movimentos de

libertação que se dinamizavam nas regiões colonizadas ou dependentes não eram políticos, mas etnocêntricos,

chauvinistas, xenófobos, nacionalistas ou messiânicos, ou seja, eram movimentos pré-políticos. Embora o conceito

de movimentos pré-políticos tenha sido cunhado por um historiador grandemente ligado ao pensamento marxista

– E. J. Hobsbawn – acreditamos que ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoliberal de analisar e interpretar

a dinâmica social. Se o aceitarmos, seriam excluídos como políticos todos os movimentos do chamado Terceiro

Mundo; a luta de Zapata e Pancho Villa, no México; a de Sandino, na Nicarágua; o movimento camponês de Pugachov,

na Rússia; todos os movimentos de libertação da África, como o kinganbista, incluindo os Mau Mau e o de Lumumba.

Tudo seria englobado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianismo, e seria descartada sua essência

política. Os povos “inferiores” não tinham condições de entrar no sentido universal da história, eram a-históricos.

Com isto justificava-se a repressão contra eles e os seus líderes. Fora dos padrões normativos dos valores políticos

europeus, civilizados e “normais”, não existiam movimentos que pudessem ser

enquadrados como aceitos pelas nações dominadoras, como continuadores do “sentido” da civilização. As próprias

lutas de libertação nacional eram (como acontece até hoje) consideradas revoltas intertribais, movimentos

atípicos e perturbadores do processo civilizatório. Não tínhamos acesso à história, à civilização e à igualdade de

direitos. A nossa inferioridade congênita e inapelável – biológica e psicológica – nos reduzia a satélites do processo

civilizatório.

“A questão racial é essencialmente política e não apenas científica”.

Tudo isto era respaldado por uma intelectualidade que se apresentava como tutora do conhecimento, do saber e,

ao mesmo tempo, assessora dos mentores metropolitanos.

Como vemos, a chamada “questão racial” não pode ser compreendida se a interpretarmos como uma questão

meramente científica, cuja solução será encontrada pelos antropólogos entre as quatro paredes de um laboratório

ou nas salas de congressos de especialistas. Pelo contrário. Devemos partir de uma posição crítica radical, através

da reformulação política, da modificação dos pólos de poder, especialmente das áreas do chamado Terceiro Mundo.

É uma situação que ficará sempre inconclusa se não a analisarmos como um dos componentes de um aparelho de

dominação econômica, política e cultural.

No caso da América Latina, o racismo, como ideologia do colonialismo, penetrou fundo no pensamento da elite

intelectual colonizada. Todo o arsenal “científico” que vinha da Europa sobre a questão racial era aqui repetido

sem ser filtrado, não porque fosse a “última palavra da ciência”, mas porque já vinha com o julgamento das

metrópoles. No lado oposto expressava-se uma visão democrática e não racista do problema; esta corrente

progressista era desacreditada pela intelligentsia colonizada. O cientista russo Tchernichevsky, por exemplo,

escreveu que “os escravistas eram pessoas da raça branca, os cativos eram negros; por isso a defesa da escravidão

nos tratados científicos tomou a forma da teoria da diferença radical entre as diferentes raças humanas”. E Jean

Finot, em seu livro O preconceito racial, declarou: “as raças como categorias irredutíveis existem somente como

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ficções nos nossos cérebros”. E mais: “as diferenças culturais existem e foram assinaladas neste livro, porém

somente são produtos transitórios, como resultado de circunstâncias externas, e desaparecerão do mesmo modo”

No entanto, essas conclusões anti-racistas eram consideradas heresias científicas. Sílvio Romero, depois de citar

o antropólogo alemão Lapouge, endossando-lhe a tese da superioridade do alemão em relação ao francês, escreve

sobre o pensamento de Finot: “Fugir das tolices do russo que se assina Finot, e cujo nome antigo é João Finkelhaus,

literato de segunda ordem, ignorantíssimo em antropologia e ciência em geral”

Mas não era somente Sílvio Romero quem endossava o racismo no Brasil da época. E convém esclarecer que

estávamos em pleno processo abolicionista e os escravistas e senhores de escravo tinham, como um dos suportes

que legitimava a escravidão, a inferioridade biológica e cultural do africano. Euclides da Cunha, outro importante

representante de nossa cultura dominante, repetia o mesmo pensamento racista. Sua posição em relação ao

mestiço e ao negro não deixa dúvidas. Estuda o negro afirmando que “a raça dominada (negra) teve aqui dirimidas,

pela situação social, as facilidades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade extrema, sem

as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros, toda a pressão da vida colonial”

Para ele, o negro é a “besta de carga”, o “filho das paisagens adustas e bárbaras”; Palmares é “grosseira

odisseia” e por isto a ação dos bandeirantes destruindo-o

foi um benefício à nossa civilização; são “vencidos e

infelizes”; o escravo negro é “humilde”, mesmo sendo

quilomba, 7

“temeroso”, “aguilhoado à terra”; são “foragidos”, a raça é

“humilhada e sucumbida”. Para ele a desigualdade racial

era um fato provado “ante as conclusões do evolucionismo”.

O negro, como vemos, era o componente de uma raça

inferior. O índio, por seu lado, não tinha capacidade de “se

afeiçoar às mais simples concepções do mundo”. E, quanto

ao mestiço desses cruzamentos, no seu “parênteses

irritante” não há lugar para ele, é um desequilibrado, de

um desequilíbrio incurável, pois “não há terapêutica para

este embate de tendências antagonistas” (10).

A ideologia do colonialismo era, e ainda é, alimentada por toda uma literatura racista que nos vinha, ou nos vem,

das metrópoles colonizadoras, para nos inferiorizar através da nossa própria auto-análise.

O racismo brasileiro quer um país “eugênico”

Passada a fase da abolição, com sua conclusão negativa para a população negra, e concluído o golpe militar

republicano, com a persistência das oligarquias agrárias, o racismo brasileiro procura novas roupagens

“científicas”. Na Europa o racismo entra em ascensão e transforma-se em força agressiva, agressividade que terá

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a sua conclusão na vitória do nazismo na Alemanha. No Brasil há uma recomposição ideológica do mesmo sentido.

Essa tendência racista-elitista de nossa intelectualidade tradicional se revigora.

Na época da ascensão do nazismo e do fascismo, houve aqui no Brasil um trabalho ideológico racista feito pela

nossa intelectualidade. Essa divulgação e essa prática concentraram-se na Liga da Higiene Mental, que congregou

grandes nomes da ciência. Jurandir Freire Costa, autor do livro História da psiquiatria no Brasil, afirmou que o

programa dessa entidade tinha como objetivo a intolerância e o obscurantismo. Fundada em 1923 e dedicada à

prevenção de doenças mentais, longe de estabelecer uma abordagem científica de doença mental, adotava e

enfatizava posições nitidamente ideológicas, elaborando propostas no sentido da adoção apaixonada e integral do

arianismo, da superioridade racial, justamente as que prevaleceram na Alemanha nazista. Seus membros mais

conspícuos passaram a defender na área profissional, e publicamente, a esterilização e a segregação perpétua de

todos os indivíduos considerados loucos ou desequilibrados, segundo os critérios de sua avaliação; daí passaram a

pregar o mesmo destino para as pessoas de “raça inferior”, ainda segundo os padrões que adotavam e que definiam

como tais os não-brancos puros

“Já se quis uma reforma “eugênica” dos salários: maiores para os brancos, menores para os negros”. A pregação

da Liga concentrou seus fogos particularmente na imigração: o Brasil deveria, nesse campo, adotar rigorosos

critérios seletivos, em que se inseria a condenação à entrada de negros e asiáticos em nosso país – “rebotalho de

raças inferiores” –, alegando que “já nos bastavam os nordestinos, os híbridos e os planaltinos miscigenados com

negros”. Xavier de Oliveira, um dos membros da Liga, partidário do que entendia por eugenia, manifestava sua

satisfação pela decadência incontestável e pela “extinção não muito remota” dos índios da Amazônia. A condenação

ao fim próximo alcançava, também, os mestiços, cuja proibição de entrada no Brasil era encomendada pela Liga em

1928. Outra de suas reivindicações: a reforma eugênica dos salários, privilegiando os brancos.

Reivindicava também concessão de benefícios econômicos e financeiros às famílias que procriassem indivíduos

“superiores”. A mais audaciosa foi a criação de Tribunais de Eugenia, que decidiriam sobre a esterilização e o

confinamento de membros das raças inferiores. Em 1934 a revista Arquivos Brasileiros de Higiene Mental,

editada pela Liga, publicava a lei alemã de 8

esterilização dos “doentes transmissores de taras”, com entusiástica introdução ao seu texto. “O mundo culto”,

dizia a publicação, “tomava conhecimento da nova e grande lei alemã de esterilização dos degenerados”. A citada

lei, de 14 de julho de 1933, era assinada por Hitler, além de Frick e Gurther, ministros do Interior e da Justiça,

respectivamente.

Outro artigo esclarecedor dos Arquivos foi aquele no qual o seu autor procurava demonstrar que a Inquisição

operara a partir de uma “filosofia eugênica”, pois as suas torturas e seus sacrifícios “tiveram uma consequência

benéfica para a raça”. Em 1934, conta ainda Jurandir Freire Costa, a Liga associava-se à polícia em ações “sempre

caracterizadas pela truculência”; a polícia fornecia, confidencialmente, nomes e endereços de alcoólatras, que

eram, então, procurados pelos psiquiatras da Liga e internados em hospitais e centros ditos de saúde mental; ali

eram submetidos a tratamentos de acordo com os métodos da Liga, que funcionou, ostensivamente, durante três

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décadas. Nela pontificavam médicos de renome, particularmente psiquiatras: representavam a ciência oficial, isto

é, a ciência das classes dominantes, numa época em que o nazismo já se manifestava e apresentava a raça alemã

como “raça eleita”.

Entre esses nomes famosos, figuravam Renato Kehl, presidente da Sociedade de Eugenia em 1929; Alberto Farani,

presidente da Seção de Estudos de Cirurgia e Sistema Nervoso da Liga de Higiene Mental e chefe do serviço dos

ambulatórios de Profilaxia Mental do Hospital Rivadávia Correia; Xavier de Oliveira, docente de Clínica Psiquiátrica

da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro e médico do Hospital Nacional de Psicopatas.

À época da Liga de Higiene Mental, a década de 1920 e a primeira metade da década de 1930, surgiram e se

ampliaram consideravelmente em nosso país, no campo quase virgem das ciências sociais, as teses de Oliveira

Vianna, com uma obra toda ela de cunho racista, elitista e neocolonialista.

Assim como aconteceu na época de Sílvio Romero, a produção cultural dominante espelhava a alienação social e,

consequentemente, cultural a qual estava submetida. A obra de Oliveira Vianna, em particular, é um marco

significativo de como a intelectualidade brasileira deixa-se vergar ideologicamente e refletia em sua produção

uma rejeição à sua própria condição de ser humano e social. Esta atitude representava, e atualmente ainda

representa, uma negação e/ou fuga de nosso ser étnico, cultural e político, expressa através de uma produção

estimulada pelo neocolonialismo; em outras palavras, o imperialismo tecnocrático.

Da derrota do nazismo ao aparecimento da Guerra Fria

Derrotado o nazismo, o pensamento de direita e especialmente o racismo entraram em recesso, e no âmbito das

ciências biológicas e sociais houve toda uma rearticulação contra tais ideias. Foi o momento dos grandes

pronunciamentos dos antropólogos e dos sociólogos, que repuseram a questão racial em termos científicos. Em

1950 divulgou-se uma declaração redigida na casa da Unesco por oito dos maiores nomes da antropologia e da

sociologia mundiais, entre eles: Juan Comas, do México; Levi Strauss, da França; Morris Ginberg, da Inglaterra;

A. Montagu (relator), dos Estados Unidos, e L. A. Costa Pinto, do Brasil. Nas suas conclusões diziam:

a) Os antropólogos só podem estabelecer classificação racial sobre características puramente físicas e

fisiológicas.

b) No estado atual dos nossos conhecimentos, não foi ainda provada a validade da tese segundo a qual os grupos

humanos diferem uns dos outros pelos traços psicologicamente inatos, quer se trate da inteligência ou do

temperamento. As pesquisas científicas revelam que o nível de aptidões mentais é quase o mesmo em todos os

grupos étnicos.

c) Os estudos históricos e sociológicos corroboram a opinião segundo a qual as diferenças genéticas não têm

importância na determinação das diferenças sociais e culturais existentes entre diferentes grupos da espécie

Homo sapiens, e as mudanças sociais e culturais no seio de diferentes grupos foram, no conjunto, independentes

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das modificações na sua constituição hereditária. Vimos produzirem-se transformações sociais consideráveis que

não coincidem de maneira alguma com as alterações de tipo racial.

d) Nada prova que a mestiçagem, por si própria, produza maus resultados no plano biológico. No plano social, os

resultados, bons ou maus, que alcançou são devido a fatores de ordem social.

e) Todo indivíduo normal é capaz de participar da vida em comum, compreender a natureza dos deveres recíprocos

e respeitar as obrigações e os compromissos mútuos. As diferenças biológicas que existem entre os membros de

diversos grupos étnicos não afetam de maneira nenhuma a organização política ou social, a vida moral ou as relações

sociais.

Enfim, as pesquisas biológicas vêm escorar a ética da fraternidade universal; pois o homem é, por tendência inata,

levado à cooperação e, se este instinto não encontra em que se satisfazer, indivíduos e nações padecem igualmente

por isso. O homem é por natureza um ser social, que só chega ao pleno desenvolvimento de sua personalidade por

trocas com os seus semelhantes. Toda recusa de reconhecer este laço social entre os homens é causa de

desintegração. É neste sentido que todo homem é o guardião de seu irmão. Cada ser humano é apenas uma parcela

da humanidade, a qual está indissoluvelmente ligado.

Depois desse documento saiu a Declaração de 1951, assinada por um grupo de antropólogos e geneticistas, que

ampliava mais analiticamente o texto do primeiro, com as mesmas conclusões. Outro documento da Unesco, e nos

parece que o último, redigido em Moscou, ainda é mais enfático na condenação ao racismo.

No Brasil a reação não é diferente. Em 1935 surge o Manifesto dos intelectuais contra o preconceito racial, em

que se enfatiza o racismo como anticientífico:

“O movimento contra o preconceito racial visa apenas a combater as influências estranhas que nos querem arrastar

para o turbilhão dos racismos truculentos, como também contribuir para todos os meios para o estudo dos

problemas surgidos na própria formação étnica, tendo sempre em mira promover maior harmonia e mais fraternal

cordialidade entre os elementos que vão caldeando na etnia brasileira”.

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Assinam o documento, entre outros, Roquete Pinto, Maurício de Medeiros, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Hermes

Lima, Leônidas de Rezende e Joaquim Pimenta. Em seguida podemos citar o Manifesto contra o racismo, da

Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, que foi aprovado por aclamação no dia 3 de setembro de 1942.

O documento terminava nos seguintes termos:

“(…) queremos oferecer a todo o mundo civilizado a nossa magnífica filosofia no tratamento das raças como o

maior protesto científico e humano e a maior arma espiritual contra as ameaças sombrias da concepção nazista da

vida, este estado patológico de espírito que pretende envolver a humanidade numa espessa e irrespirável

atmosfera de luto”.

Era a volta, também no Brasil, de uma ciência social que repudiava os postulados nazistas no julgamento das raças

e a sua função e papel no processo civilizatório.

Já haviam se realizado, nessa ocasião, dois congressos afro-brasileiros: o primeiro em Recife, em 1934, por

iniciativa de Gilberto Freyre; e o segundo em Salvador, por iniciativa de Edson Carneiro, 10

em 1937. Nos anais de ambos podemos ver a preocupação de muitos congressistas em relação ao problema racial

e o seu dilema no Brasil. Dos anais do primeiro podemos destacar as comunicações de Mário de Andrade, Alfredo

Brandão, Gilberto Freyre, Adhemar Vidal, Jovelino M. de Camargo Jr, Mário Melo, Rui Coutinho, Rodrigues de

Carvalho e outros. Nesses autores nota-se a preocupação de descartar a inferiorização do negro, via fatores

biológicos (inatos), e ressaltar a escravidão como causa de nosso atraso. No segundo congresso vemos a

preocupação de Edson Carneiro, Artur Ramos, Donald Pierson, Aydano do Couto Ferraz, Alfredo Brandão e Jorge

Amado, cada um a seu modo procurando encaminhar o tema no mesmo sentido.

No terceiro congresso, realizado em 1982, as intervenções de Décio Freitas, Raimundo de Souza Dantas, Clóvis

Moura, Gilberto Freyre e outros vão na direção de reabilitar o processo miscigenatório e destacar a participação

social do negro em nossa história, posição contrária à dos eugenistas da década de 1930, que consideravam este

fenômeno um fator de degenerescência da sociedade brasileira. A postura democrática em relação ao problema

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racial, que teve nos antropólogos e sociólogos da Unesco a expressão mais lúcida, começa em determinado

momento, a ser contestada.

No plano político internacional, por outro lado, saía-se da política de colaboração dos quatro grandes vencedores

da Segunda Guerra Mundial – Inglaterra, França, União Soviética e Estados Unidos – para o confronto da Guerra

Fria. Assistia-se, ao mesmo tempo, os movimentos de libertação da África, dentro do processo de descolonização

que se dinamizava. Nesse contexto político iniciam-se os ataques às conclusões dos cientistas da Unesco.

O mais relevante sintoma desse protesto e o que mais repercussão alcançou foi o de Arthur Jensen, professor de

psicologia educacional da Universidade de Bekerley. Ele combate as conclusões da declaração da Unesco de 1951

e a de 1964. Afirma textualmente:

“O fato de que diferentes grupos raciais neste país tenham origem geográficas largamente diferenciadas e tenham

tido histórias largamente diferentes, o que os submeteu a diferentes pressões seletivas econômicas e sociais, faz

com que seja altamente provável que seus acervos genéticos difiram em algumas características comportamentais

geneticamente condicionadas, inclusive inteligência ou capacidade de raciocínio abstrato. Quase todo o sistema

anatômico, fisiológico e bioquímico investigado apresenta diferenças raciais. Por que seria o cérebro uma

exceção?”

Já o professor de psicologia da Universidade de Londres e entusiasta de Jensen, H. J. Eysenck, baseando-se em

testes de QI de jovens negros americanos, conclui pela existência de diferenças que, dentro da estrutura social

atual (julgamentos de valor), significam inferioridade. Este cruzamento de resultados de testes com resultados

de pesquisas de geneticistas é uma forma deliberada de confundir os fatos e chegar-se a uma conclusão

preestabelecida. Por outro lado, todos sabem que as técnicas de medir a inteligência pelo nível do QI são cada vez

mais contestadas.

A antropóloga Ruth Benedict, antes dos professores citados, já punha em dúvida essas técnicas, especialmente

quando aplicadas sem os diferenciais culturais e sociais. Cita o exemplo de uma comparação feita entre brancos

do Mississipi, Kentucky e Arcansas com negros de Nova Iorque, Illinois e Ohio. O QI dos brancos do Sul é inferior

ao QI dos negros do Norte. Os resultados foram os seguintes:

Brancos Negros Mississipi 41,25

Nova Iorque 45,02

Kentucky 41,50

Illinois 47,35

Arkansas 41,55 Ohio 49,50 Fonte: BENEDICT, Ruth. Raza: ciencia y política. México, Fondo de Cultura Econômica,

p. 97.

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Contra esses dados, H. J. Eysenck conclui um de seus livros dizendo:

“(…) O reconhecimento da natureza biológica do homem e o reconhecimento da desigualdade geneticamente

determinada, associados inevitavelmente ao seu desenvolvimento, são um começo absolutamente necessário a

qualquer tentativa de utilizar os métodos da ciência e a razão, num esforço destinado a nos salvar dos perigos

(sic) efetivamente reais com que nos defrontamos”.

Racismo e determinismo genético

É exatamente em continuação a essa biologização da história e da sociedade que, na década de 1970, surge uma

nova ciência: a sociobiologia, sistematizada por Edward Wilson, da Universidade de Harvard, e assim definida:

“(…) uma ideologia biológica que, empenhada em provar que todo comportamento humano é determinado

geneticamente, como nos animais, deu uma roupagem moderna ao velho darwinismo social. A partir daí a bibliografia

só faz aumentar a lista iniciada com o Macaco nu e a História natural da monogamia, do adultério e do divórcio, da

antropóloga norte-americana Helen Fischer, para quem há uma lei natural, inscrita em nossos genes, que molda o

relacionamento efetivo e o acasalamento entre os seres da espécie humana. Outro livro deste gênero é Personas

sexuais, de Camile Paglia, que considera os papéis sexuais, o machismo e a feminilidade decorrentes apenas de

nossa natureza biológica e não, também, das relações culturais, históricas, estabelecidas entre homens e mulheres;

relações condicionadas pela peculiaridades das épocas e dos lugares onde ocorreram”

“Como o velho racismo, a sociobiologia procura explicações biológicas para fenômenos sociais”.

Poderíamos citar mais de uma centena de obras da nova sociobiologia, mas o que se viu dá para perceber o

renascimento do racismo via genética. O preocupante é que essas ideias não se exprimem apenas através de livros,

mas de uma prática universitária na direção da dominação ideológica do conhecimento. Neste sentido estava

prevista, na Universidade de Maryland, a realização da conferência intitulada “Fatores Genéticos no Crime:

Descobertas, Usos e Implicações”, cujo prospecto referia-se ao “aparente fracasso do enfoque social para o

crime” e sugeria a realização de pesquisas genéticas para o desenvolvimento de métodos capazes de identificar –

e tratar quimicamente – criminosos em potencial. A Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos, por sua vez,

publicou em novembro de 1992 o relatório Compreender e prevenir a violência, sugerindo a realização de mais

pesquisas desse tipo e na mesma direção, com investigações sobre marcadores bioquímicos e tratamento com

drogas para comportamentos violentos e anti-sociais, embora admitindo a escassez de evidências substantivas

para uma propensão ao crime de per si. Como se pode ver é a volta disfarçada aos métodos eugênicos dos cientistas

do III Reich. Analisando tal situação, escreveu Patrick Bateson:

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“(…) as diferenças existentes entre as pessoas são muitas

vezes pensadas como adaptações, como produtos da evolução

darwiniana e, portanto, como atribuíveis a diferenças

genéticas. Para o não biólogo, ‘diferença genética’ é sinonimo de

inevitabilidade – o problema começa aí. Às pessoas claramente

exploradas ou oprimidas é dito que devem aceitar essa situação

porque nada podem fazer para alterar os seus genes. Esse tipo

de ideias, que penso não serem geralmente partilhadas pelos

cientistas que parecem dar-lhes credibilidade, é agora parte de

nossa vida política. Por essa razão, e talvez injustamente, o

determinismo genético tornou-se o 12

grande tema de muitas discussões públicas sobre sociobiologia

(…) A ênfase no egoísmo e na luta pela existência na evolução

biológica teve um efeito de confirmação insidiosa na opinião

pública (Bateson, 1989). A competição foi encarada como motor

da atividade humana. A experiência nas universidades e nas

artes é avaliada pelos mesmo parâmetros que supostamente

resultam tão bem no campo do esporte ou na feira. Os indivíduos

prosperam competindo e vencendo. Esta visão da natureza

humana, popular entre os políticos de direita, foi justificada pelo recurso à biologia, e os próprios biólogos foram,

por sua vez, algo influenciados pelo movimento de opinião pública. (…) Nenhum de nós sabe tudo, e a nossa tendência

para as generalizações tolas está sujeita à rápida correção por outros cuja experiência tenha sido diferente (…)

Tal como as coisas estão, o apelo à biologia feito pela Nova Direita não se dirige tanto ao corpo coerente de ideias

científicas como a um mito confuso. Pensa-se na biologia como tratando da competição – e isso significa luta. O

conceito darwiniano da sobrevivência diferencial nutre-se da crença na importância do individualismo (15).

Discutindo o lado ético da aplicação da sociobiologia, ou da biologia em particular, escreveu Hilton Japiassu:

“(…) aliás, nos dias de hoje, parece inegável o impacto social na biologia sobre a vida de cada um de nós. Ela não

constitui apenas uma pesquisa sem freios da verdade, isenta de toda e qualquer crítica política ou moral. Já foi o

tempo em que se podia declarar, como H. R. Oppenheimer, um dos responsáveis pela construção das primeiras

bombas atômicas, que: ‘(…) nosso trabalho mudou as condições da vida humana; mas a utilização feita dessas

mudanças é uma questão dos governos, não dos cientistas’. Ora, a palavra-de-ordem ‘a verdade pelo amor à

verdade' torna-se hoje insustentável. Porque a ciência não é mais, e tampouco pode ser, considerada um

domínio da exclusiva competência dos cientistas. Os trabalhos dos microbiologistas, por exemplo, que

decodificaram as moléculas de ADN. Dão-nos a esperança de um controle genético de numerosos males surgidos

no nascimento. Mas essas pesquisas já foram utilizadas, como testemunham os cientistas americanos Zimmerman,

Radinsky, Rothemberg e Mayers, pelo governo dos Estados Unidos, para cultivar micróbios violentos destinados à

guerra bacteriológica: ‘Essa pesquisa conduz a uma produção genética capaz de gerar subpopulações variadas, que

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poderão ser utilizadas pelos que detêm o controle tecnológico. Essas subpopulações poderão compreender soldados

combativos, robôs resistentes para executar as tarefas físicas peníveis, ou filósofos-reis aos quais seriam

transmitidos poderes hereditários”” (Autocritique de la science, Seuil, 1975)

Estamos nas fronteiras do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, quando um dos seus personagens define

felicidade: “E esse, acrescentou sentenciosamente o Diretor, é o segredo da felicidade e da virtude – gostar

daquilo que se tem de fazer. Este é o propósito de tudo: fazer as pessoas amarem o destino social do qual não

podem escapar”. Estaríamos plenamente na era do determinismo genético.

O mundo apresentado por Huxley pode ser o objetivo desses cientistas. Mas a biologia genética, via engenharia

genética, tem objetivos ainda mais seletivos e ideologicamente racistas. Sobre a visão de radicalismo

epistemológico dessa postura científica, escreveu Hilton Japiassu:

“(…) os gigantescos progressos da biologia e da engenharia genética já tornaram possível uma outra forma de

neo-eugenismo, desta feita bastante mais sofisticado. Diria que um neo-eugenismo fundado nas ciências

biogenéticas já se anuncia, sem que possamos predizer de modo seguro quais serão as grandes opções para o

futuro. O fato é que, nesse domínio, já existem sofisticados métodos permitindo a detecção dos ‘maus genes’,

vale dizer, dos genes que, direta ou indiretamente, são responsáveis por certas doenças. Como nos lembra P.

Tuiller, ‘(…) quaisquer que sejam os limites atuais da ciência médica em matéria de diagnóstico e de terapêutica,

criou-se uma situação nova; doravante é possível concebermos em longo prazo um 13

gigantesco empreendimento de purificação do capital genético da humanidade (ou de certas populações). O que

levanta numerosas questões ao mesmo tempo técnicas e éticas’”. (Les passions du savoir, Fayard, 1988, p. 154)

Em outras palavras, os detentores dessa sofisticada tecnologia podem programar, por exemplo, a cor da

humanidade ou de alguns grupos ou populações (de acordo com os seus critérios de valor étnicos) considerados de

“maus genes”. Se considerarmos a ideologia de quem monopoliza essa tecnologia, os negros e os não-brancos serão

o objetivo desse projeto e tentarão projetar um mundo branco e de robôs.

A Europa ergue um muro contra não-brancos e pobres

Além deste racismo, há aquele que está se disseminando de forma crescente e cada vez mais agressiva. Em todo

o chamado Primeiro Mundo (capitalismo imperialista central) ele vem se afirmando, quer por legislações que tornam

indesejáveis no seu território membros de determinadas etnias, quer pela incorporação por parte de partidos

políticos que endossam essa ideologia e, finalmente, pelo comportamento irracional de grande parte da população

desses países. Na Inglaterra, na França, na Áustria, e especialmente na Alemanha, o racismo vem aumentando

assustadoramente, especialmente neste último país, onde se manifesta através do neonazismo, cuja violência tem

feito desaparecer centenas de vidas e cujos métodos de ação são idênticos aos de Hitler.

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“Auschwitz Total, Hitler Superditador, Antiturcos à Prova: alguns títulos de jogos neonazistas”.

Esses países começam a proteger-se dos “genes maus”, representados pelas populações não brancas em geral, que

procuram “invadir” o recinto intocável das nações brancas. Esta ideologia racista cresce juntamente com a ideia

da unificação da Europa. Há movimentos de extrema-

direita por toda parte, como a Frente Nacional da França

e os republicanos e neonazistas da Alemanha. Nos países

nórdicos, como a Noruega, há parlamentares de extrema-

direita ostensivamente racistas. Segundo Harlen Désir,

para alguém eleger-se basta dizer: “Chega de árabes,

jamaicanos e turcos!” Na França, segundo ele, parte da

população não aceita a fusão e a formação de uma nação

plurinacional e sem barreiras. Esta resistência é sentida

principalmente nas regiões fronteiriças, onde o discurso

de Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, tem

forte penetração.

Na Alemanha e na Suécia estão virando moda videogames distribuídos pela extrema-direita britânica, com os

sugestivos nomes Jogar em Reblinka ou Quando o Gás Tiver Terminado o Trabalho Você Terá Ganho (18). O jogador

consegue pontos matando judeus, turcos, homossexuais e ecologistas ao som de Deutshland über Alles (Alemanha

acima de tudo), estrofe glorificada por Hitler e depois da guerra suprimida do hino nacional alemão.

Os ataques racistas se multiplicam e a ultradireita ganha terreno. Os governos da Comunidade Europeia mantêm

leis discriminatórias contra os imigrantes dos países não-europeus, apesar de lá se encontrarem há mais de 15

anos. Não é de estranhar que os jovens transformem o videogame em propaganda racista, pois não é apenas na

Alemanha e na Suécia que a juventude assim se diverte. Na Áustria o fato se repete: Auschwitz Total… Hitler

Superditador… Antiturcos à Prova… Segundo Sandra Lacut, da France Press, de Viena: “(…) as escolas da Áustria

e de outros países europeus foram invadidas por uma série de jogos de computador racistas e neonazistas, nos

quais as crianças ‘dirigem’ campos de extermínio de judeus ou ‘compram’ gás para matar os imigrantes turcos. (…)

Um estudo realizado pelo Ministério de Educação revela que na cidade austríaca de Lintz, onde Hitler passou

parte de sua juventude, 39% dos jovens sabem que existem esses jogos 14

neonazistas e 22% já os jogaram. Em Salzburgo, um em cada cinco jovens que tem um computador já viu publicidade

neonazista em sua tela. Os videogames trivializam o Holocausto (assassinato em massa de judeus, ciganos,

homossexuais, comunistas e dissidentes durante o nazismo) e incitam o ódio contra os judeus e turcos. O jogo

Administrador de Campo de Concentração consiste em dirigir o campo de Treblinka (Polônia) e conseguir bastante

dinheiro – por exemplo, arrancando os dentes de ouro dos judeus mortos – para adquirir o gás necessário para

aniquilar os turcos. Outro, chamado Prova Ariana, coloca perguntas que revelam ao jogador seu grau de pureza

racial. Aquele que for apenas ‘meio ariano’ pode se desforrar ‘matando comunistas’. De acordo com o grau de

‘impureza do sangue’, o jogador pode ser varredor ou limpador de privadas. E o ‘judeu’ é automaticamente atirado

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na câmara de gás”. O que à primeira vista parece ser apenas um detalhe vem demonstrar até que nível a propaganda

neonazista está se aproveitando da nova tecnologia e da comunicação avançada nos mesmos moldes de Hitler.

Segundo El País, os alemães e os belgas, de acordo com pesquisas feitas pela Comunidade Europeia, são os cidadãos

europeus que mais admitem os seus sentimentos racistas. Mas é na França e na Grã-Bretanha que a xenofobia e a

violência racial se mostram mais intensas. Nos últimos quatro anos (a pesquisa vai até 1990) houve 20 assassinatos

motivados por racismo na França. As vítimas eram norte-africanos de nacionalidade ou de origem.

Seis jovens cabeças raspadas (skin-heads) mataram a ponta-pés um tunisiano pai de quatro filhos. O policial que

os deteve contou que aquilo que mais o chocou foi o fato de eles terem a sensação de nada terem praticado de

condenável. Outros três jovens mataram a tiros um jovem harki (francês de origem argelina) “para se divertir”.

Cerca de 76% das pessoas entrevistadas depois do assassinato dos três norte-africanos declararam: “O

comportamento deles pode justificar as reações racistas”.

Em 1989 ocorreram, em Londres, em média seis incidentes racistas por dia. O Instituto de Estudos da Polícia

estimou em sete mil os casos conhecidos de racismo no país, mas sugeriu que a cifra poderia ser dez vezes superior.

Isto porque as vítimas temiam denunciar as agressões “por falta de confiança na polícia”. Uma mãe asiática

suportou que seus filhos fossem esfaqueados e apedrejados – “Pensei que fosse um comportamento normal em

relação aos estrangeiros” – e não procurou ajuda.

Na Itália, os ataques a estrangeiros estão adquirindo uma sequência e um furor inesperados, acalentados por uma

crescente onda de imigrantes clandestinos. Na Espanha, a fúria contra marroquinos, portugueses e africanos é

uma reação social em alta, mas a discriminação elege como presa também uma minoria espanhola: os ciganos. Estes

últimos são hoje na Espanha cerca de meio milhão de pessoas e, como no caso dos negros nos Estados Unidos, sua

dança e sua música são muito apreciadas.

Longe de melhorar, as coisas pioraram, assinala o volumoso estudo de oito capítulos elaborado e aprovado pela

Comissão de Investigação do Racismo e Xenofobia criado pelo Parlamento Europeu, presidido pelo eurodeputado

Glyn Ford. Nem a Comunidade Europeia, nem os governos dos seus Estados-membros tomaram medidas para

corrigir a situação alarmante, já denunciada em 1986. O mito da Europa como terra de asilo caiu por terra.

A Alemanha é o país onde os sentimentos racistas são mais claramente expressos. Em 1989 (e daí para cá este

sentimento aumentou), cerca de 75% dos alemães ocidentais achavam que havia estrangeiros demais no país e 93%

eram favoráveis a reduzir o número de trabalhadores imigrantes. Cerca de 60% da população da ex-Alemanha

Ocidental admitem ter sentimentos anti-semitas. As pesquisas revelam, também, que um quinto dos alemães tem

ódio racial contra africanos e asiáticos e opiniões muito negativas sobre os turcos.

O racismo como ideologia neocolonial

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Falta agora nos referirmos ao racismo político dos países do chamado Primeiro Mundo (capitalismo central) contra

os países dependentes que fizeram parte do antigo sistema colonial, que não foi desmontado até hoje. Uma das

particularidades é que são, em sua totalidade, países que têm populações não-brancas.

À medida que se aguçava a luta entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, os norte-americanos concentraram

suas atividades de dominação nas áreas incluídas em seu leque de influências. Com o pretexto de combater a

subversão, estabeleceram governos subalternos externamente e ditatoriais internamente. Como norma, as

ditaduras militares. Com isso consolidaram sua dominação neocolonial. Mas, por uma série de circunstâncias, na

América Latina, Ásia, Oriente Médio e África houve movimentos que conseguiram se afastar de sua órbita. Por

coincidência, movimentos de países que haviam participado da aventura colonial como dominados. Em outras

palavras: surgiram principalmente em territórios onde houve o tráfico negreiro, a escravidão ou outras formas de

trabalho compulsório típicas do sistema colonial. Grande parte de suas populações, ou melhor, de sua composição

demográfica, é esmagadoramente não-branca.

Com a crise estrutural do sistema capitalista, na fase de imperialismo tecnocrático, houve a necessidade de uma

reciclagem no processo e nas táticas de dominação. De um lado, para consolidar o seu domínio econômico e, de

outro, como manifestação de racismo.

A primeira manifestação mais aguda deste comportamento foi a operação que os Estados Unidos organizaram

contra a Líbia em 1981. Foi preparada uma operação de terrorismo de Estado para assassinar seu líder. Depois de

várias operações de agressão militar, nas quais foram abatidos dois

aviões líbios (em território líbio), constatou-se que um dos filhos de

Kadafi havia sido assassinado. Isto porém não sensibilizou a opinião

pública mundial. A mídia criou para consumo internacional a imagem de

que Kadafi era o líder do terrorismo internacional, o que os fatos

desmentiam.

Depois veio a invasão da ilha de Granada. A pretexto de obedecer os

apelos de uma entidade fantasma, os norte-americanos ocuparam a

ilha, assassinaram seu presidente e centenas de seus habitantes. A

opinião internacional não se mobilizou nem denunciou o crime,

possivelmente por se tratar de uma país de negros.

Registramos também a invasão do Panamá, com o pretexto de

combater o narcotráfico. Em 1989 a 82ª Divisão Aerotransportadora dos Estados Unidos invadiu seu território,

prendeu o presidente Noriega, sequestrou-o e levou-o para ser condenado pelos tribunais norte-americanos. A

intervenção norte-americana destruiu a economia do país, tentou extinguir o Exército e colocou um de seus

representantes como chefe do Estado. Mas a opinião pública não se emocionou. Pelo contrário. Toda a imprensa

mundial teceu elogios ao ato. O Panamá é também um país de negros, mestiços e índios.

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Por fim, os casos mais recentes: a Guerra do Golfo contra o Iraque, a invasão da Somália, a tentativa (que persiste)

de ocupar o Haiti e os massacres de Ruanda passam como acontecimentos sem relevância. As razões apresentadas

são de “ação humanitária”, “restauração da democracia”, “combate ao narcotráfico”, pois não cola mais o “perigo

comunista”.

É uma reciclagem hipócrita do antigo sistema colonial, que se reestrutura no neo-colonialismo tecnocrático,

racista. Para justificá-lo utilizam não só a sócio-biologia, da engenharia genética e das hipóteses que procuram

demonstrar a existência de raças inferiores, mas também canhões, aviões e tanques de guerra.

Estamos às vésperas do terceiro milênio. Vamos entrar numa época em que as ordenações sociais serão

radicalmente reformuladas. Nesse processo as atuais nações atrasadas, dependentes e espoliadas, vindas do

antigo sistema colonial, assumirão um papel novo, resgatando o passado de dominação. E o realinhamento social

também será étnico, pois as raças não-brancas habitam por herança desse sistema as regiões espoliadas. Esse é

o desafio do milênio que se avizinha e que não será outro senão a realidade do socialismo em dimensão planetária.

O recente debate sobre cotas no Brasil, no meu entender equivocado, tem permitido trazer para a superfície da

discussão sociopolítica do país os problemas dos grupos historicamente discriminados. O equívoco consiste em

enfatizar a modalidade mais polêmica das políticas de ação afirmativa. Tais políticas têm servido, em vários países,

para minimizar os pesados custos sociais para populações que foram colonizadas, externa e internamente, em

países hoje considerados multirraciais e ou multiétnicos, que procuram pautar-se pela construção e

aprofundamento dos ideais democráticos.

Em linhas gerais debater em torno da aceitação ou não-aceitação das cotas, além de empobrecer a discussão de

conteúdo, significa perder a oportunidade de levantar e tentar responder à seguinte questão: Como podemos

incluir minorias historicamente discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso

almejado, e, ao mesmo tempo, debater em que bases é possível rever aspectos fundamentais do pacto social?

Nas páginas seguintes tento responder a esta questão discutindo, não de forma exaustiva, alguns aspectos que

considero fundamentais no debate sobre as políticas públicas de ação afirmativa. Um primeiro aspecto importante

é com relação ao princípio de igualdade1, como aquele que tem servido de base a todas as sociedades democráticas

ou em vias de democratização, mas que na atualidade tem-se colocado mais como obstáculo às mudanças do que

operado no sentido de propiciar tratamento diferenciado a quem a sociedade tem tratado desigualmente. Um

segundo aspecto presente no debate contemporâneo, com profundas implicações para as políticas públicas de ação

afirmativa, é a discussão sobre o estatuto da raça como uma categoria válida para a explicação e compreensão das

desigualdades sociais. Finalmente, a discussão em torno das políticas de ação afirmativa como uma via alternativa

de resolução dos conflitos resultantes das desigualdades raciais e

de gênero tem implicado uma profunda revisão dos pressupostos do liberalismo ou, mais precisamente, dos limites

e possibilidades daqueles pressupostos para a solução de problemas contemporâneos.

Ação Afirmativa e o combate ao Racismo institucional no Brasil

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Em interessante artigo intitulado .O princípio da igualdade e a escola., Comparato (1998), para tecer considerações

sobre tal princípio, parte da distinção entre diferenças sociais e desigualdades sociais. Assim, as diferenças

sociais têm uma base natural ou são produto de uma construção cultural. No primeiro caso, um exemplo comum é

a diferença entre os sexos. No segundo caso, a diferença funda-se num complexo agregado de costumes,

mentalidades etc., que confere uma mesma visão de mundo e ou uma mesma tradição tribal ou grupal, possibilitando

distinção em relação aos demais. Aqui estamos falando da identidade como atribuída e ou construída.

Seguindo em sua argumentação, o autor afirma que as desigualdades sociais, de maneira distinta das diferenças

sociais, têm por base um juízo de superioridade e inferioridade entre grupos, camadas ou classes sociais. Assim,

o problema pode ser esboçado da seguinte forma: desde o surgimento do liberalismo existe uma tendência, ou ao

menos uma preocupação de eliminar, paulatinamente, as desigualdades sociais. A questão é como fazer a distinção

entre aquilo que é o reconhecimento de uma diferença natural ou cultural e, portanto, preservar

essa diferença e, por outro lado, eliminar as desigualdades sociais (Comparato, 1998, p.47-48).

Após afirmar que a desigualdade social é marca registrada da sociedade brasileira, desde os seus primórdios, e

associá-la à nossa origem ibérica2, autor identifica dois focos principais de geração de desigualdades sociais no

Brasil. O primeiro, que considera o mais importante, é a desigualdade entre ricos e pobres. O segundo, que afirma

ser também forte mas de menor importância quando comparado ao primeiro, é a desigualdade entre brancos e

negros

A desigualdade entre ricos e pobres seria a principal fonte de preconceitos e atritos e o grande fator de atraso

da sociedade brasileira. E é inconsciente. A desigualdade entre brancos e negros, decorrente da escravidão3,

seria a principal fonte de geração e manutenção de hierarquias sociais vinculadas ao pertencimento racial. Em

síntese, a junção entre o desprezo pelo trabalho físico, posse de empregados e o preconceito contra pobre

contrastaria com o prestígio intelectual embutido em nossa .doutorice.. Negando-se a ficar no plano do diagnóstico,

Comparato parte para o remédio prioritário para reverter o quadro de desigualdade social no Brasil: a educação.

Uma discordância em relação ao diagnóstico acima é possível. É, precisamente, o fato de atribuir-se à desigualdade

entre ricos e pobres a proeminência da explicação sobre os profundos problemas sociais do país. Creio que as

desigualdades são um produto de uma trama complexa entre o plano econômico, político e cultural. Além disso, a

multiplicidade de fatores na explicação das desigualdades tem a vantagem de mostrar tanto a multicausalidade

dos elementos explicativos da vida social quanto o aspecto dinâmico e relacional das relações sociais.

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Mesmo se se considerar a proeminência da desigualdade

entre ricos e pobres na explicação dos fenômenos sociais, o

modo como ela se expressa na contemporaneidade brasileira

é problemático, uma vez que os indicadores sociais mostram

uma confluência entre desigualdade econômica e

desigualdade racial4. Estes estudos demonstram que a

dimensão econômica explica apenas parte das desigualdades

entre negros e brancos, a outra parte é explicada pelo

racismo, e a discrimina ção racial teve uma configuração

institucional, tendo o Estado legitimado historicamente o

racismo institucional.

Uma outra ordem de problemas que aparece no texto de

Comparato é a visão de um individualismo não anárquico,

característico do verdadeiro liberalismo, versus um

individualismo anárquico, que seria a origem de todas as

nossas mazelas.

De certa forma, o modo como Comparato coloca o problema já contém uma resposta que se estrutura baseada em

nossa origem ibérica e pelo nosso .liberalismo. deformado. Assim, minha proposta é recolocar o problema da

desigualdade social entre brancos e negros como uma dimensão fundamental da explicação da desigualdade entre

ricos e pobres. Acredito que as discriminações e os racismos são componentes essenciais na conformação da

sociedade brasileira e operam menos no plano individual e mais no plano institucional e estrutural.

Retomando o pressuposto que toda desigualdade se estrutura a partir de um juízo de superioridade,

aparentemente os negros, desde que foram trazidos para as terras brasileiras, estiveram submetidos a todo tipo

de juízos, normalmente negativos e pejorativos, sobre sua condição de diferente no plano sociocultural. Assim, o

modo como as diferenças naturais e culturais são construídas socialmente, na forma de desigualdades sociais,

torna-se um problema científico e político nas sociedades contemporâneas multirraciais.

RAÇA E DESIGUALDADE SOCIAL

Concordo com Omi e Winant (1994) que raça não é apenas algo a mais, isto é, algo que é adicionado, mas é, sim,

parte integrante e constitutiva de nossas experiências cotidianas mais comuns. No Brasil, no entanto, existiu e

existe uma tentativa de negar a importância da raça como fator gerador de desigualdades sociais por uma parcela

significativa dos setores dominantes. Só muito recentemente vozes dissonantes têm chamado a atenção sobre a

singularidade de nossas relações raciais.

Andrews, por exemplo, tenta mostrar como o sistema de categorização racial brasileiro tem sido dinâmico no

tratamento da mistura de raças. O centro do debate tornou-se a existência de uma categoria racial intermediária,

que aparece normalmente nomeada como mulato, pardo e ou moreno, que seria o fator de distinção do sistema

classificatório brasileiro.

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.Ao contrário do .pardo. ou do .preto., o .moreno. não indica automaticamente ancestralidade africana. (Andrews,

1998, p.385). As discordâncias sobre o modo de categorizar os morenos no sistema brasileiro podem desvendar a

dimensão política da nossa classificação racial. No fundamental, o moreno seria uma categoria dissolvente da

polaridade negro e branco, isto é, nele estaria contida a síntese brasileira. O próprio Andrews vai mostrar, por

meio de suas pesquisas empíricas, que tal suposição ou imposição não se sustenta.

A característica básica do modelo brasileiro de classificação racial, quando contrastado com o modelo norte-

americano, por exemplo, é a multipolaridade. De acordo com Fry, .o modo múltiplo permite que os indivíduos possam

ser classificados de distintas maneiras. [...]. Permite o que podemos chamar de .desracializa ção. da identidade

individual. (Fry, 1995/1996, p.132-133). Para este autor, um indicador da desracialização estaria na possibilidade

de aplicação do termo .moreno. e .moreninho. à uma grande gama de .aparências. que podem incluir descendentes

de europeus e descendentes de africanos, entre outros.

A característica básica do modelo americano, de acordo com os antropólogos, é a bipolaridade com base na

hipodescendência, conhecida na cultura popular dos EUA como a .regra de uma gota só. (one drop rule). De acordo

com Gilliam, a hipodescendência implica uma situação na qual a pessoa herdaria ad infinitum a identidade social do

progenitor menos prestigiado geração após geração. A autora chama a atenção para o fato de que a

hipodescendência só se refere a pessoas de descendência africana; nenhum outro grupo teve que se debater com

este modelo de identidade social (Gilliam, 2000, p.94).

Fry reconhece que ambos os modos de classificação são baseados em noções neolamarckianas de descendência,

portanto, são racistas. Mas, de acordo com o autor, o modo bipolar produziria um mundo de raças essencializadas

(apud Gilliam,2000, p.93). Para o autor, .o movimento negro quis romper com o modo múltiplo de classificação,

mudando as regras do jogo. E o fez com tanta energia que começou a negar qualquer especificidade brasileira,

descrevendo o país como .pior que o apartheid , por exemplo. (Fry, 1995/1996, p.132-133).

Segundo Gilliam, Fry .está correto ao associar a crítica ao modelo bipolar dos Estados Unidos com a intenção

original de proteger os brancos contra a poluição biológica. (2000, p.94). Mas, o apelo para que os brasileiros se

orientem pela expressão multipolar resulta em não admitir a existência da expressão bipolar à brasileira para um

amplo setor da população afrodescendente, que não tem conseguido desracializar sua identidade individual, mesmo

quando quer. Isso se deve às marcas corpóreas e aos permanentes atributos .carinhosos. do cotidiano popular

brasileiro, que nem sempre estão presentes nas universidades e centros de pesquisa, tais como .aquele negão.,

.aquela neguinha assanhada. ou o famoso .só podia ser preto.. Assim, se a ambigüidade tem sido um traço

característico de nossa classificação racial, ela não tem impedido que uma parcela significativa da população negra

seja permanentemente racializada no cotidiano e que, por isso mesmo, tenha assumido sua identidade negra de

forma não ambígua e contrastante em relação ao seu outro, o branco. Essa assunção não ambígua, aparentemente,

desvenda a intrincada trama do nosso universo de classificações que tem permitido, por meio do uso e abuso da

multipolaridade, a subordinação funcional dos não-brancos.

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Dentre várias evidências citadas por Andrews em relação ao peso relativo da .morenidade., para plasmar a

identidade sociorracial vale relembrar a referência aos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo, um dos principais

do país.

O Estado mantém arquivos classificados por tópicos sobre uma variedade de temas, incluindo .Negros no Brasil..

O arquivo sobre os negros, que remonta à década de 1880, contém três grossas pastas e centenas de artigos. Para

meados de 1988, o arquivo sobre mulatos continha oito artigos. Isto reflete dois fatos: que os jornalistas de São

Paulo que escreveram sobre os afro-brasileiros durante o último século tenderam a agrupá-los sob o título de

negros; e mesmo quando esses jornalistas distinguiram entre pretos e pardos, os arquivistas de O Estado

continuaram a agrupá-los em uma única categoria de .negros.. A categoria racial do mulato, supostamente tão

importante no Brasil, mal parece ter surgido na consciência destas pessoas. (Andrews, 1998, p.384)

Outro aspecto fundamental observado por Andrews é o vínculo entre o racismo institucional e a política estatal.

O autor encontra evidências da relação entre o governo estadual (em São Paulo) e os proprietários rurais de terras

para fomentar o desenvolvimento econômico, subsidiar a imigração européia e impedir a diversifica- ção

profissional entre os afro-brasileiros recém libertos (Andrews, 1998, p.50).

Para Andrews e Hanchard, a escravidão é somente uma das diversas variáveis explicativas a serem consideradas

para determinar por que, em 1889, ou seja, apenas um ano depois da Abolição . os trabalhadores afro-brasileiros

foram afastados da competição .objetiva. de mercado em São Paulo. Na avaliação desses autores, na imigração de

europeus meridionais e no tratamento diferencial concedido aos novos imigrantes, em detrimento dos afro-

brasileiros, encontram-se um grau de dirigismo e intervenção estatal incomuns (Andrews, 1998, p.93-147;

Hanchard,2001, p.29-59).

Assim, as classificações, embora importantes, não dão conta dessa dimensão objetiva que representou a presença

do Estado na configuração sociorracial da força de trabalho no momento da transição do trabalho escravo para o

trabalho livre, nem da ausência de qualquer política pública voltada à população ex-escrava para integrá-la ao novo

sistema produtivo. Daí poder afirmar que a presença do Estado foi decisiva na configuração de uma sociedade

livre que se funda com profunda exclusão de alguns de seus segmentos, em especial da população negra.

Concordo com Emília Viotti da Costa que .para explicar as percepções que as pessoas têm dos padrões raciais,

seria preciso investigar fora do âmbito estreito das relações raciais. (1985, p.238). Somente dessa maneira é que

poderíamos, no caso brasileiro e latino-americano, incorporar os avanços recentes na conceituação da política

racial e étnica.

Ao contrário de uma geração de estudiosos, que tentou fundir raça com etnia, a compreensão teórica mais recente

da formação das identidades raciais estabelece uma distinção entre as duas, nos contextos em que o fenótipo

(aquilo que definimos como raça) torna-se uma questão de maior destaque do que a língua, a cultura ou a

religião. (Hanchard, 2001, p.29)

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Entre outras implicações dessa nova forma de compreensão vale destacar duas: a primeira tem relação com o modo

pelo qual os estudiosos vêem a raça e a etnia; a

segunda vincula-se à .transnacionalização. dos

movimentos sociais latinoamericanos. No primeiro

caso, os estudos destacam que alguns grupos

.étnicos. são assimilados, independentemente do

momento histórico, por sua adequação .racial. ao

grupo dominante, enquanto para outros grupos

.étnicos. a diferença fenotípica transforma-se em

uma marca. No segundo caso, especialmente, entre

os .índios. e os .negros.

...fatores externos e internos levaram a uma

crescente identificação racial com outros

grupos fenotipicamente semelhantes, que passaram pela escravidão racial e por

outras formas de opressão nas relações com as elites criollas, descendentes de europeus.

Essa identificação de uma comunidade fora das fronteiras dos Estados nacionais

enfatiza os entrelaçamentos da identidade racial, nacional e cultural. (Hanchard,

2001, p.30)

Em linhas gerais, o que o autor quer destacar é que o termo raça, contemporaneamente,

...refere-se ao emprego das diferenças fenotípicas como símbolos de distinções sociais.

Os significados e as categorias raciais são construídos em termos sociais, e não

biológicos. Esses símbolos, significados e práticas materiais distinguem sujeitos dominantes

e subordinados, de acordo com suas categorizações raciais. (Hanchard, 2001,

p.30)

Assim, a raça, para além de um marcador da diferença fenotípica, tem sido

utilizada como status de classe (ou grupo) e de poder político (Gilroy, 1987; Hall,

1986, 1992).

Nesse caso, do meu ponto de vista, reside o divisor de águas entre novas e velhas abordagens sobre a raça e,

obviamente, a possibilidade de uma compreensão contemporânea da potencialidade que as políticas públicas

compensatórias tem de solucionar, mesmo que de modo parcial e temporário, os problemas gerados pelas

desigualdades sociais com base no pertencimento a um grupo racial.

Gilroy, por exemplo:

...sugere que raça funciona como um conduto entre a cultura e a estrutura social,

entre os sentidos e valores que os grupos atribuem às diferenças raciais e a escolha,

a imposição e o reforço desses sentidos e valores nos mercados de trabalho, no

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aparelho de Estado e nas instituições políticas, sociais e culturais. (apud Hanchard,

2001, p.31)

Essa sugestão de Gilroy faz relembrar a existência, até muito recentemente, de inúmeros anúncios em .cadernos

de empregos., dos principais jornais brasileiros, que exigiam boa aparência, o que, aparentemente, excluía os

negros e .morenos . de várias possibilidades de emprego, independentemente do grau de escolarização e da

competência profissional. No aparelho de Estado, a meu ver, a ausência de políticas públicas substantivas em

relação à habitação popular de qualidade, ao atendimento à saúde e à educação, reflete o descaso para com aqueles

milhões de brasileiros que são considerados inferiores, segundo o juízo de superioridade das elites e dos setores

intermediários, os quais supostamente tiveram mobilidade por mérito técnico e profissional.

OS ANOS DE 1990

Resultado de uma árdua luta realizada pelos movimentos negros nas duas décadas anteriores, nos anos 90 do século

XX presenciamos uma mudança de postura significativa, em todos os segmentos da sociedade brasileira, em relação

ao tratamento das questões da população negra no país. Dentre os fatores que mais contribuíram para a maior

visibilidade das desigualdades sociais entre negros e brancos podem-se destacar o aumento e a divulgação de

pesquisas empíricas; o surgimento de vários conselhos de

desenvolvimento e participação da comunidade negra, no plano

estadual e municipal; e o reconhecimento oficial, em

20/11/1995, no plano federal, da existência da discriminação

racial e do racismo, com a implantação por meio de decreto do

Grupo de Trabalho Interministerial . GTI ., com a função de

estimular e formular políticas de valorização da população

negra.

É, portanto, sintomático que, na década de 90 do século XX,

alguns intelectuais tenham observado a necessidade de

ampliar os estudos pós-abolição, tentando mensurar de modo

mais sistemático e preciso as desigualdades a que os negros estavam submetidos em nosso país, e também passado

a assumir uma posição, sugerindo medidas necessárias para diminuir as distâncias sociais entre negros e brancos.

Hasenbalg, por exemplo, observava, em 1992, que com os estudos existentes sobre as desigualdades raciais já

seria possível intervir de três maneiras na correção de distorções. Em primeiro lugar, por meio do caminho jurídico

utilizando a legislação que pune o racismo como crime. Em segundo lugar, pela aplicação de ações afirmativas que,

de acordo com o autor, visariam à igualdade entre grupos no plano dos direitos e consistiriam no tratamento

preferencial baseado no pertencimento a grupos (de raça ou gênero) para compensar a discriminação no passado.

Para Hasenbalg, dois obstáculos interpor-se-iam para tal implantação: a ausência de apoio político e o sistema de

classificação racial brasileiro (dificuldade de identificar quem é não branco). Finalmente, as políticas não

racialmente específicas que, segundo o autor, possuem caráter redistributivo e se constituem em programas

variados para combater a pobreza nas suas raízes. Estas últimas irão sempre depender, em grande medida, .do

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tipo de governo eleito, da correlação de forças políticas e da obtenção de um padrão de desenvolvimento

sustentado que facilite a redistribuição. (Hasenbalg, Silva, 1992, p.15).

Apesar dos obstáculos apontados por Hasenbalg, no Brasil, a segunda metade dos anos de 1990 é marcada, dentre

outros temas, pela introdução do debate sobre a ação afirmativa. O debate gira, aparentemente, em torno das

mudanças ocorridas no pensamento social a partir do final da Segunda Grande Guerra e suas implicações para a

ação coletiva e para a ação estatal nos Estados Unidos. Desse modo podemos aprender com a discussão sobre a

ação afirmativa (affirmative action) e a identificação de distorções sociais, ao considerar o credo americano e a

realidade sobre a qual foram e são aplicadas aquelas políticas públicas e, também, suas repercussões no contexto

brasileiro.

AÇÃO AFIRMATIVA E ESTRUTURA SOCIAL

Uma das polêmicas centrais no debate sobre ação afirmativa na dimensão

normativa trata da complexidade e da variabilidade do princípio da igualdade jurídica,

ou seja, a Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 229

...dificuldade de alcançar uma formulação precisa e, especialmente, o incessante

esforço na tentativa de assegurar a sua aplicação . o que repercute na busca pela

própria justiça . confundem-se, sob um determinado prisma com a evolução do

direito constitucional moderno. (Menezes, 2001, p.15)

Existe um certo consenso entre os estudiosos da área do direito de que, a partir do advento da Declaração de

Direitos da Virgínia (em 12/06/1776), reconhecido como o documento precursor das modernas declarações de

direitos fundamentais, o tema da igualdade passa a ter um grande desenvolvimento no planojurídico. As mudanças

estimuladas pelo desenvolvimento do capitalismo no mercado teriam provocado a transição do princípio jurídico da

igualdade de todos perante a lei, isto é, de um princípio isonômico ou formal . que, aparentemente, permitiria um

mesmo tratamento normativo para todos os indivíduos . para um princípio de igualdade material ou substantiva.

Assim, o princípio jurídico da igualdade teria deixado de ser apenas um sustentáculo do Estado de direito para

ser um dos pilares do Estado social (Menezes, 2001, p.20-26).

Essa mudança sintetizava o avanço das reivindicações dos movimentos oper ários do século XIX, que lutavam

incessantemente pela melhoria das condições de vida e trabalho. Essas lutas originaram tanto as propostas

socialistas quanto o Welfare State.

No plano político o princípio da igualdade significou o voto eqüivalente entre todos os homens, isto é, um homem,

um voto. As dificuldades de aplicação do princípio de igualdade residiram e residem na dimensão socioeconômica

ou, mais precisamente, na sua implementação no âmbito do mercado em geral e, em especial, no mercado de

trabalho. O fato é que durante todo o século XX os exescravos, ex-colonos e as mulheres em vários países

ocidentais travaram e continuam travando verdadeiras batalhas pela inclusão e pelo tratamento igualitário em

todas as esferas da vida social, ao mesmo tempo em que repudiaram e repudiam todas as formas de discriminação

com base nas diferenças naturais e exigem o reconhecimento de suas particularidades, uma vez que estas foram

e são construídas socialmente como desigualdades. Após a Segunda Grande Guerra Mundial, às lutas dos

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trabalhadores por melhores salários e condições de vida somaram-se as lutas das mulheres, dos negros, de grupos

étnicos, que passaram a exigir uma ação do Estado para assegurar a igualdade de oportunidades no mercado de

trabalho e na educação.

Vários autores registram que a década de 1960 pode ser considerada aquela na qual se originaram movimentos

sociais que estimularam mudanças sociais pro230 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 fundas na dinâmica

das sociedades ocidentais. Tais mudanças repercutiram sobremaneira nos esquemas interpretativos das ciências

sociais. O dicionário do pensamento social do século XX, por exemplo, registra as características que se seguem

estudadas pelos teóricos em relação aos novos movimentos sociais. A maioria dos autores concebe as ações em

termos de comportamento coletivo conflitante que abre espaços sociais e culturais; tais movimentos são encarados

como instituições politizantes da sociedade civil, redefinindo, dessa forma, as fronteiras da política institucional;

oferecem, mediante sua própria existência, um modo diferente de designar o mundo e desafiar os códigos culturais

predominantes sobre bases simbólicas; criam novas identidades que compreendem exigências inegociáveis;

expressam processos de aprendizado coletivo evolutivo; constituem novas articulações sociais que cristalizam

novas experiências e problemas em comum, na esteira de uma desintegração geral da experiência baseada na classe

econômica. O significado geral que essas formulações conferem aos novos movimentos sociais é que eles ganham

maior consciência de sua capacidade de produzir novos significados e novas formas de vida e ação social

(Outhwaite, Bottomore, 1996, p.502).

No que diz respeito às relações raciais, Guimarães, por exemplo, observa

que, por volta dos anos de 1960,

...a ciência social começa a abandonar os esquemas interpretativos que tomam as

desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes

(preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido

como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos

de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo

ponto, à revelia dos indivíduos. (1999, p.156)

Este mesmo autor observa, também, que na ciência política foi a época em

que as análises clássicas de poder e dominação de Dahl e Lipset cederam lugar a

análises sobre o .poder sistêmico., feitas por estudiosos como Barach e Baratz,

Steven Lukes e outros (Guimarães, 1999, p.156).

Essa mudança pode ser considerada uma evolução ou, no mínimo, um deslocamento

profundo do pensamento social. As características principais desse processo

foram a .descoberta. e a teorização de fenômenos sociais irredutíveis ao indivíduo

que conduziram a teoria do direito, e o próprio pensamento liberal, à busca de

novas formas de compatibilização entre direitos individuais e restrições à ação individual

(Guimarães, 1999, p.156).

Por meio desse debate, que ganha ampla visibilidade nos anos 70/80, é

possível observar tanto as atualizações quanto as resistências à incorporação de

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novos esquemas interpretativos pela ciência social e pela ciência política. Uma aná-

lise sucinta das políticas públicas de ação afirmativa implementadas a partir da década

de 60 na sociedade norte-americana permite, de modo inicial, observar a extens

ão das mudanças em curso tanto na teoria quanto nas práticas sociais.

A JURISPRUDÊNCIA AMERICANA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS

A expressão ação afirmativa, segundo Jones (1993, p.345), refere-se a .ações

públicas ou privadas, ou programas que provêem ou buscam prover oportunidades

ou outros benefícios para pessoas, com base, entre outras coisas, em sua perten

ça a um ou mais grupos específicos..

A primeira referência à .ação afirmativa. aparece, com esse sentido, na legisla

ção trabalhista de 1935 (The 1935 National Labor Relations Act), prevendo que

...um empregador que fosse encontrado discriminando contra sindicalistas ou oper

ários sindicalizados teria que parar de discriminar e, ao mesmo tempo, tomar ações

afirmativas para colocar as vítimas nas posições onde elas estariam se não tivessem

sido discriminadas. (Guimarães, 1999, p.154)

A idéia básica vem do centenário conceito inglês de eqüidade (equity), ou

de administração da justiça de acordo com o que era justo numa situação particular,

por oposição à aplicação estrita de normas legais, o que pode ter conseqüências

cruéis.

A antiga noção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado decisões de

cortes americanas, conservando o sentido de reparação por uma injustiça passada.

A noção moderna se refere a um programa de políticas públicas ordenado pelo

executivo ou pelo legislativo, ou implementado por empresas privadas, para garantir

a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais. (Guimarães, 1999, p.154)

Uma das questões centrais no debate sobre as políticas públicas de discrimina

ção positiva é, precisamente, sob quais princípios de direito baseiam-se as leis e

os programas referidos como ações afirmativas?

As desigualdades sociais combatidas pela ação afirmativa originam-se, normalmente,

de práticas sistemáticas de algum tipo de discriminação negativa. Essa foi

a primeira justificativa que possibilitou tratar diferenciadamente um grupo social. Na

atualidade, entretanto, o alcance de tais ações ampliou-se e alguns juristas e estudiosos

do tema sustentam que elas podem e devem ser empregadas para a promoção de

maior diversidade social, uma vez que essas políticas podem propiciar a ascensão e

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o fortalecimento de grupos sub-representados nas principais posições da sociedade.

De modo geral, as discussões giram em torno de três perspectivas, em que

duas correspondem a uma forma de justiça reparatória (compensatória) ou

distributiva e uma terceira, de caráter preventivo, que teria a intenção de coibir que grupos com grande

probabilidade de serem discriminados sofram tal processo.

Gomes, por exemplo, classifica as políticas governamentais norte-americanas

de combate à discriminação como .neutras., isto é, constituídas pelas normas

meramente proibitivas de conteúdo inibitório5, e como ações afirmativas, decorrentes

de políticas públicas concebidas pelo poder executivo com o apoio dos poderes

legislativo e judiciário. De acordo com esse autor, o Estado norte-americano

atua, nas ações afirmativas, com base na chamada Spending Clause da constituição,

que pressupõe o dispêndio de recursos públicos para causas de interesse coletivo.

No interior das políticas afirmativas, o autor identifica dois tipos: as ações reparadoras

ou restauradoras e as ações redistributivas (Gomes, 2001, p.53).

Na primeira perspectiva, a ação afirmativa reparatória (compensatória) teria

a função de ressarcir os danos causados, tanto pelo poder público quanto por pessoas

físicas ou jurídicas, a grupos sociais identificados ou identificáveis.

Nessa forma de ação é fundamental que somente os responsáveis sejam

penalizados e que as vítimas reais, reconhecidas individualmente, sejam total ou

parcialmente ressarcidas. Dessa forma, evita-se a chamada discriminação reversa6,

isto é, o favorecimento daqueles que não foram vítimas de discriminação.

Na perspectiva distributivista, a ação afirmativa estaria relacionada a uma igualdade

proporcional, exigida pelo bem comum, na distribuição de direitos, privilégios

e ônus entre membros da sociedade, que pode ser implementada por meio de

vários artifícios com o objetivo de diminuir ou eliminar as iniqüidades decorrentes

da discriminação (Menezes, 2001, p.38; Gomes, 2001, p.66).

Duas vertentes principais podem ser observadas no interior da perspectiva

distributivista.

A primeira baseia-se na idéia da igualdade ao nascer (equality at birth). O

argumento central é que no momento do nascimento inexistem fatores de distin-

ção relevantes entre as pessoas, a não ser aqueles de ordem natural, tais como raça

e sexo, os quais, por sua própria natureza, não se revestem de maior importância

para efeito de aferição de futura inteligência ou capacitação (Gomes, 2001, p.67).

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Assim, as diferenças são produto da vida em sociedade, que têm como principal

matéria-prima os valores.

A segunda vertente ancora-se em argumentos utilitaristas, ao sustentar que

não obstante o objetivo da ação afirmativa ser o de favorecer a maior participação

de determinados grupos (negros e mulheres, por exemplo) em certas posições e

profissões no mercado de trabalho, portanto, na sociedade, a sua finalidade última

é a redução substantiva ou eliminação das desigualdades sociais relacionadas com a

divisão do poder e da riqueza (Gomes, 2001, p.69; Menezes, 2001, p.38).

Dworkin, um dos expoentes dessa vertente, afirma, com base em sua leitura

da Constituição federal norte-americana, que esta, por meio do princípio de igualdade,

impede não apenas a chamada discriminação subjetiva, mas também a discrimina

ção estrutural. Como discriminação estrutural entendam-se padrões socioecon

ômicos díspares entre as pessoas, em decorrência de injustiças sociais de toda

ordem, educação deficiente e insuficiente, preconceitos que interferem e influenciam

as perspectivas de vida das pessoas. Para o autor, a erradicação dessas formas

de discriminação seria moralmente legítima e juridicamente uma meta pública racional

e necessária (Dworkin, 1978, 1985, 1996). A ação afirmativa, nesta perspectiva,

seria uma mecanismo fundamental de combate à discriminação e ao racismo

estrutural.

Assim, a aplicação dos princípios da justiça distributiva, em sua versão discutida

por John Rawls, possibilitaria tanto a igualdade de oportunidades como o combate

a desigualdades não justificáveis socialmente. Na prática, estas políticas reconhecem

oficialmente, por um lado, a persistência da perenidade das discriminações

e do racismo e, por outro lado, têm como meta a implantação de políticas públicas

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voltadas à ampliação da diversidade e do pluralismo em todas as dimensões da vida

social (Gomes, 2001, p.44-45).

Dito de outro modo, para além do ideal de concretização da igualdade de

oportunidades, figuraria, entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas, o

de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair

do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça

em relação a outra, do homem em relação à mulher etc. (Gomes, 2001, p.44).

Aqui reside, aparentemente, um aspecto distintivo entre as perspectivas jurídica e

política em relação à ação afirmativa. A distinção está na análise segundo a qual, não

obstante o papel desempenhado pelos tribunais americanos na implementação dos

programas de ação afirmativa, estes atuaram de modo corretivo e não propositivo.

Em outra linha de argumentação, Guimarães, ao sintetizar o debate norteamericano em torno das ações

afirmativas, informa sobre algumas questões centrais em seu interior. A primeira ordem de questões está

relacionada com o confronto entre dois valores nucleares daquela sociedade: o igualitarismo e o individualismo.

A segunda ordem de questões refere-se às implicações da passagem (ou do deslocamento) de uma tradição jurídica

centrada no direito individual para o reconhecimento de direitos coletivos. A terceira ordem de questões,

intimamente imbricada com as anteriores, relaciona-se com o questionamento da noção de mérito numa sociedade

em que as diferenças naturais foram construídas como desigualdades sociais. E, finalmente, a quarta ordem de

questões situa-se na exigência de uma representação diversa na ocupação de posições estratégicas no mercado

de trabalho, como forma de diminuir tensões sociais provenientes da sobrerepresentação masculina branca.

Ao identificar duas perspectivas teóricas principais, a axiológica e normativa e

a histórica e sociológica, o autor passa a demonstrar a recepção das questões acima

descritas em cada uma delas.

De acordo com Guimarães, na perspectiva axiológica e normativa, o argumento

central, em torno do qual se debatem três posições, é: .as políticas de ação

afirmativa forçaram uma confrontação aguda entre dois valores nucleares da sociedade

americana: igualitarismo e individualismo. (Lipset apud Guimarães, 1999, p.15).

Assim, as políticas de ação afirmativa teriam substituído o igualitarismo, no qual a

idéia nuclear é a igualdade de oportunidades para os indivíduos, por uma igualdade

de resultados, que transfere a unidade de ação social, econômica e política dos

indivíduos para os grupos de pertença identitária (Guimarães, 1999, p.152).

De acordo com Guimarães, Seymor Martin Lipset conclui que tal tensão só poderá ser desfeita se as políticas de

ação afirmativa retomarem .seu objetivo original de garantir tratamento igual para os indivíduos., sugerindo que

as novas estratégias, para proporcionar a ascensão social de membros de minorias, .sejam de cunho universalista

ou referidas a traços variáveis, tais como pobreza, ao invés de referirem-se a raça, gênero ou etnicidade..

Tudo indica que Lipset retoma o debate proposto por Myrdal na década de 1940, conhecido como o .Dilema

americano., substituindo seus termos. Para Myrdal, a contradição central situava-se na relação entre o credo

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universalista, baseado no mérito individual e na igualdade de oportunidades, e as particularidades ou

particularismos e hierarquias da vida cotidiana, mormente a segregação e discrimina ção racial. Para Lipset, em

vez de segregação e discriminação raciais aparece agora a pobreza. O que em Myrdal era implícito . o direito é a

arena dos indivíduos e não dos grupos . em Lipset torna-se explícito. Para Myrdal, o conflito moral ocorria entre

as intenções e as ações da maioria branca. Em Lipset o conflito situa-se entre valores individualistas e pertenças

grupais. Sua conclusão é que não haveria lugar para direitos de grupos (Lipset apud Guimarães, 1999, p.152). Assim,

a crítica de Lipset pode ser considerada conservadora, pois atribui aos indivíduos a responsabilidade pela posição

social que ocupam, considerando que é indevida qualquer intervenção estável e que não se sustenta diante da

tradição liberal americana.

O debate sobre ação afirmativa reflete a evolução do pensamento social

que, a partir da década de 60, passou a descobrir e teorizar fenômenos sociais

irredutíveis ao indivíduo e a induzir o próprio pensamento liberal e a teoria do

direito a buscarem novas formas de compatibilização entre direitos individuais e

restrições coletivas à ação individual (Guimarães, 1999, p.156).

Ora a sobre-representação de pessoas com uma mesma característica .naturalizada., em qualquer distribuição de

recursos, deve ser investigada, não porque seja anormal, mas porque .sexo., .cor., .raça., .etnia. são construções

sociais, usadas, precisamente, para monopolizar recursos coletivos. Ações afirmativas são políticas que visam

afirmar o direito de acesso a tais recursos a membros de grupos subrepresentados, uma vez que se tenham boas

razões e evidências para supor que o acesso seja controlado por mecanismos ilegítimos de discriminação (racial,

étnica, sexual). (Guimarães, 1999, p.158)

A jurisprudência que se forma nos Estados Unidos em torno da legalidade ou não de certas práticas de ação

afirmativa busca, justamente, construir pontes entre os direitos coletivos e os direitos individuais. O ponto

central dessa jurisprudência é a noção de reparação.

A defesa da validade moral das ações afirmativas conduziu a duas outras posições, no interior da perspectiva

normativa e axiológica. A posição liberal, enraizada no credo individualista, defende tais ações, baseando-se na

idéia de mérito, de igualdade de oportunidades. Uma terceira posição, que abomina tanto a meritocracia quanto o

individualismo, defende aquelas ações com base em uma

ética política (Guimarães, 1999, p.163).

Essa última posição observa que os liberais preferem as políticas universalistas, chamadas color-blind, às politicas

particularistas, chamadas race-conscious. Assim, para os defensores do credo individualista é central a idéia de

mérito e igualdade de oportunidades. Para os defensores de uma ética política, é fundamental a crítica à

meritocracia e ao individualismo.

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Um dos principais representantes desta última posição é Duncam Kennedy (1995), que chama a posição liberal de

.fundamentalismo meritocrático.. O argumento central da crítica de Kennedy é que, no caso da ação afirmativa,

assim como no que se refere ao voto e à liberdade de expressão, o objetivo é político e prévio à realização de

ilustração ou à recompensa de .mérito., tal como determinada pelas instituições existentes. O valor em causa é a

comunidade, e não a capacidade

individual. No fundo o que se quer mostrar é que os valores, em geral, escondem e justificam ações diferentes das

que explicitam, ao contrário da crença dos liberais e conservadores de que os valores estruturam e orientam

sempre ações específicas.

Assim, o valor supremo a ser perseguido é, portanto, a representação da diversidade cultural e comunitária em

todos os âmbitos da vida pública. Aqui fica clara a convicção de que as desigualdades entre os seres humanos é,

hoje, produto de subordinação política e cultural. Desse modo, as ações afirmativas poderiam garantir a

preservação e o desenvolvimento da diversidade cultural (Guimarães, 1999, p.163).

De acordo com Guimarães, a perspectiva histórica e sociológica que ganha cada vez mais espaço na literatura

enfatiza o modo como políticas de ação afirmativa vieram ou podem vir a se constituir, bem como os impactos que

tiveram ou podem vir a ter sobre a estrutura social. Isto é, procura compreender os antecedentes sociais e

históricos (sistema de valores, conjunturas políticas, movimentos sociais e ações coletivas) que tornaram ou podem

vir a tornar possível a construção de políticas públicas de cunho e de intenção antidiscriminatórios em países

plurirraciais ou étnicos de credo democrático. Tais discussões giram ainda em torno dos obstáculos e dos

incentivos sociais (o sentido do jogo político e social) para a adoção dessas políticas em situações nacionais

concretas.

A DISCUSSÃO BRASILEIRA

As posições conservadoras de Lipset muito se assemelham às críticas de intelectuais e da imprensa brasileira em

relação à ação afirmativa, a meu ver produto da não-atualização dos esquemas interpretativos e conceituais. A

distinção é que a pobreza, que passou a ser a palavra de ordem da reação conservadora nos EUA, sempre apareceu

para os nossos conservadores de forma prioritária na explicação dos problemas sociais. Lá, os negros e as

mulheres, aparentemente, estão desafiados a manter as conquistas obtidas com os programas de ação afirmativa,

especialmente entre os anos de 1960 e de 1980; aqui, negros e mulheres necessitam lutar para a implementação

de políticas públicas e programas que ampliem sua participação em posições estratégicas do mercado de trabalho,

em paralelo à crítica feita à sociedade que os inferioriza.

Colocando em outros termos, a questão é saber o quanto custou e custa para os afrodescendentes o juízo de

superioridade que opera no Brasil, o qual tem possibilitado a vigência da expressão .juntos mas desiguais. que, ao

que tudo indica, tem se sobreposto a qualquer conflito moral no interior do grupo dominante branco.

De acordo com Guimarães, a discussão sobre políticas públicas com o fito específico de beneficiar os afro-

brasileiros é ainda incipiente no país. Os argumentos contrários vão em três direções:

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1. As ações afirmativas significam o reconhecimento de diferenças étnicas e raciais entre os brasileiros, o que

contraria o credo nacional de que somos um só povo, uma só raça. 2. Há aqueles que vêem em discriminações

positivas um repúdio ao princípio universalista e individualista do mérito que orienta a vida pública brasileira

e tem sido a principal arma contra o particularismo. 3. Para outros, simplesmente, não existem possibilidades reais

de implementação dessas políticas no Brasil.

Assim, no primeiro caso a negativa de reconhecer a existência formal da discriminação racial, quando ela é

denunciada e comprovada, transmuda-se na afirmação de que ela não pode existir porque não somos brancos,

porque somos todos mestiços. Esse consenso nacional, todavia, não resiste a um exame mais detalhado. Tudo se

passa nessa versão romântica do anti-racismo, como se se quisesse negar uma realidade na qual, no íntimo,

acredita-se: declara-se que as raças não existem, mas se usa a classificação de .negros. e .brancos. dos Estados

Unidos, como se esta fosse a classificação racial verdadeira, como se os brancos americanos não fossem, eles

próprios, também mestiços; como se eles fossem puros, .cem por cento. brancos. Apenas nossos brancos é que

seriam mestiços e, por isso, seriam considerados .negros. nos Estados Unidos.

.Na verdade, é contra essa classificação .odiosa., que nos transformaria, a todos, em negros, que se levanta a nossa

indignação, negando as raças e, ao mesmo tempo, a possibilidade de haver discriminação entre nós.. Ao se perguntar

que .nós. é este?, quem se inclui neste .nós.?, o autor responde: .aparentemente todos os que .não são

ostensivamente de cor.. (Guimarães, 1999, p.169).

A POLÍTICA EDUCACIONAL E A ESCOLA NA ERA DA AÇÃO

AFIRMATIVA

Existe um certo consenso entre os estudiosos de que as ações afirmativas destinadas a promover a igualdade . o

combate à discriminação na área da educação nos EUA é disciplinado no Título VI do Estatuto dos Direitos Civis

de 1964 . são o resultado da iniciativa de entidades públicas e privadas que buscaram se adequar à política

antidiscriminatória patrocinada pelo governo federal.

A materialização dessa adequação ocorreu, e ocorre, por meio de

...programas preferenciais, concebidos e implementados pelas próprias instituições

educacionais, ora pela observância estrita das normas proibitivas de discriminação

inseridas no Estatuto dos Direitos Civis, ora mediante severa vigilância por parte de

órgãos governamentais e entidades de promoção dos direitos de minorias. (Gomes,

2001, p.94)

Desde o início de sua implantação nos anos 60, logo após a assinatura de um decreto executivo pelo presidente

John Kennedy, que determinava a inserção dos negros no sistema educacional de qualidade, somente em 1978

ocorreu a primeira contestação que se tornou pública. O caso Regents of the University of California versus Bakke

representou um momento fundamental no debate sobre as ações afirmativas na área da educação.

O caso envolvia um programa preferencial de admissão na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia

em Davis. De acordo com esse programa, dezesseis por cento das vagas do curso de Medicina seriam destinadas a

estudantes pertencentes a minorias. Num universo de cem vagas, restariam 84 para competição entre outras

pessoas não classificadas como minoria. O programa, contudo, tinha uma falha séria em sua concepção, isto era

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visível ao primeiro contato: para as dezesseis vagas reservadas só podiam concorrer as minorias, mas o inverso

não era verdadeiro, ou seja, as minorias também podiam concorrer a uma das 84 vagas restantes!

Por esse e outros motivos, um candidato branco, Alan Bakke, moveu ação contra a Faculdade perante a Justiça

Estadual da Califórnia, alegando violação ao seu direito a Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 239 igual

proteção da lei (14ª Emenda à Constituição dos EUA), bem como infringência ao Título VI da Lei dos Direitos Civis

de 1964. (Gomes, 2001, p.105)7

Esse caso colocou em evidência a disputa entre os dois postulados filosóficos das ações afirmativas . a tese da

justiça compensatória e a tese da justiça distributiva. Isto é, a disputa entre uma posição que postula que o

Estado, para implementar qualquer medida .afirmativa. em prol de minorias, tem que produzir .evidências. da

existência da discriminação e apontar as respectivas vítimas; e outra que sustenta que a sub-representação de

minorias nas diversas profissões .constitui a prova cabal da discriminação do passado, razão pela qual não haveria

a necessidade de que os beneficiários da medida redistributiva proposta sejam as verdadeiras vítimas da

discriminação. (Gomes, 2001, p.114).

Para Guimarães, nesse último sentido estaria contida, para além da dimens ão redistributiva, a novidade das ações

afirmativas como políticas públicas, uma vez que elas podem prevenir que pessoas pertencentes a grupos com

grande probabilidade estatística de serem discriminados ou indivíduos de certos grupos de risco tenham seus

direitos alienados (Guimarães, 1999, p.154).

Os comentários de Dworkin sobre o Caso Bakke estendem-se a dois outros desdobramentos fundamentais do

debate: o primeiro é a compatibilidade do fator raça com a legislação federal de direitos civis, endossada pelo

julgamento da Corte Suprema; o segundo é o entendimento de que a diversidade deve ser compreendida entre os

objetivos impostergáveis que toda instituição universitária deve perseguir, enquadrando-se na rubrica da

autonomia universitária.

O CASO BRASILEIRO

O que se deve ter em mente é que, sendo as universidades e as faculdades as instituições responsáveis pela

formação dos professores que operam nos diferentes graus de ensino em todo o país, o conhecimento de nossa

diversidade cultural no plano dos conteúdos ministrados deve acoplar-se à diversidade no plano representacional,

isto é, à das pessoas que são formadas nos diferentes cursos. Aqui reside um problema fundamental: se é verdade

que o liberalismo recomenda a neutralidade do Estado em alguns domínios, como por exemplo o religioso, o mesmo

não ocorre com a educação.

Assim, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: como indivíduos e grupos portadores de identidades raciais e

ou étnicas distintas da dominante podem ser representados com eqüidade perante Estados cujas instituições não

.reconhecem. as suas identidades particulares, isto é, suas diferenças? (Gomes, 2001, p.74)

Para Taylor, a identidade do ser humano é parcialmente moldada a partir do reconhecimento, ou da falta deste,

ou seja, o modo como ele é representado pelos outros seres humanos pode afetar uma pessoa ou um grupo, de

modo a causar sérios danos à medida que aqueles que os cercam tenham uma imagem desprezível ou desdenhosa.

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Para este autor, a ausência de reconhecimento ou o reconhecimento inadequado pode ser uma das principais fontes

de opressão, confinando alguém em um falso, distorcido e reduzido modo de ser (Taylor, 1994, p.26; Silvério, 1999,

p.44-55). Essas fontes de opressão ganham visibilidade e efetividade na sociedade em geral e, em especial, no

processo educacional em que os conteúdos culturais e os valores sociais são inculcados.

No fundamental, a discussão sobre as relações raciais, no caso brasileiro, inicia-se nas escolas e não no âmbito da

política educacional, pela simples (e falsa) negação da existência de racismo, e pode ser considerada um fenômeno

muito recente. Ela adquire maior visibilidade a partir das denúncias dos movimentos negros sobre o papel ideológico

do mito da democracia racial e, também, de alguns trabalhos realizados a partir da década de 1970, que passaram

a demonstrar que as crianças e jovens negros tanto pressionavam mais o mercado de trabalho quanto tinham um

menor rendimento escolar e evadiam-se do ensino de primeiro grau em proporção muito maior do que as crianças

e jovens brancos (Rosemberg, 1986; Hasenbalg, Silva, 1990).

Quaisquer que sejam as variáveis explicativas do fenômeno da diferença de anos de escolarização entre brancos

e negros na atualidade, alguns estudos demonstram que parte do problema está associada ao racismo e à

discriminação racial presentes em nossa sociedade em geral e, em especial, na instituição escolar.

Outros estudos demonstram que o racismo e a discriminação racial estão associados à experiência branca. A

branquitude (whiteness) .se define como uma consciência silenciada .quase. incapaz de admitir sua participação

provocante em conflitos raciais que resiste, assim, em aceitar e a relacionar-se com a experiência dos que recebem

a violação e o preconceito. (Rossato, Gesser, 2001, p.11).

Esta consciência silenciada ou experiência branca pode ser definida como .uma forma sócio-histórica de

consciência. nascida das relações capitalistas e leis coloniais, hoje compreendida como .relações emergentes entre

grupos dominanCadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 241 tes e subordinados.. Essa branquitude como

geradora de conflitos raciais demarca concepções ideológicas, práticas sociais e formação cultural, identificadas

com e para brancos como de ordem .branca. e, por conseqüência, socialmente hegemônica (Rossato, Gesser, 2001,

p.11).

A experiência branca, ou branquitude, pode então ser observada e compreendida como uma .forma de amnésia

social associada a certos modos de subjetividade que, em contextos sociais particulares, são percebidas como

normais. De acordo com esse raciocínio, a experiência de outros grupos raciais (negros, pardos em geral,

afrodescendentes) é descaracterizada como de seres humanos e, por conseqüência, é percebida como indicadora

de desajustes no contexto de humanidade.

O encontro com o .outro. (denominado índio, escravo, preto, negro, nomenclaturas essas estabelecidas para

justificar sua desumanidade, invisibilidade e coisificação), não incluído como membro social, permitiu aos

colonizadores angloeuropeus perceberem a branquitude como uma representação de identidade e ponto de

referência para legitimar a distinção e a superioridade, assegurando assim sua posição de privilégio (Rossato,

Gesser, 2001, p.13).

No contexto colonial as marcas dessa identidade dominante seriam representadas pela ordem, racionalidade e

autocontrole. Os demais grupos raciais seriam vistos como indicadores de caos, irracionalidade, vandalismo e por

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meio da completa perda da auto-regulação. Um dos resultados desse contexto histórico foi o movimento de eugenia

do final do século XIX (1880) e início do século XX (1920), que tinha como objetivo manter a raça .pura.. Ou seja,

pessoas não brancas eram racialmente discriminadas e consideradas inferiores e, conseqüentemente, vítimas de

preconceito. O termo eugenia, de origem grega, significa .bom de nascimento.. A crença estabelecida por meio

desse movimento era a de que vários aspectos observados no comportamento humano (moral, social, intelectual)

eram considerados hereditários. O movimento veiculava também a idéia de que, pela composição hereditária do

ser humano, era possível prever sua futura atuação na sociedade. Essa crença, aparentemente, tem mantido um

espaço contínuo na consciência popular por mais de um

século e afetado gerações.

Da mesma forma que ocorreu em outros países, as premissas do movimento da eugenia trouxeram ao Brasil as

explicações para os fenômenos raciais, classificando-os como um exemplo de ineficácia biológica hereditária e

fazendo com que, conforme a cor da pele, as pessoas se sentissem (ou se sintam) mais ou menos

privilegiadas umas em relação às outras.

De acordo com a teoria sociocultural da aprendizagem, fatores sociais e culturais exercem um papel crucial no

processo de alfabetização de uma criança. Vygotsky (1986) explica com sua teoria de desenvolvimento cognitivo

que processos psicológicos se relacionam com o ambiente social e cultural. Nessa perspectiva ele enfatiza as

conexões entre fatores sociais de natureza cultural e histórica, bem como os de natureza interpessoal. Esse autor

salienta que a linguagem não é só instrumento de comunicação, mas também um instrumento que tem dado configura

ção à evolução cultural dos povos. Dessa forma, as crianças aprendem e internalizam o que se veicula no contexto

em que vivem e, no caso específico da discriminação, obviamente elas aprendem e internalizam as representações

racistas Exposta a criança a esta aprendizagem, o racismo internalizado é propagado intra e intergerações. Assim,

esse fenômeno não é algo do passado; infelizmente, ele é um dos problemas centrais e perenes em sociedades

multirraciais como a brasileira.

Conforme a teoria de Vygotsky (1986), esse fenômeno sociocultural vivido na sala de aula propicia a internalização

de fatores de aprendizagem discriminatórios que viriam a contribuir e reforçar os esquemas culturais e cognitivos

já veiculados no ambiente familiar e comunitário.

O afrontamento de tais barreiras, invisíveis e visíveis, coloca muitas crianças de origem não branca numa posição

de resistência. No entanto, outras crianças assumem uma posição chamada, em inglês, racelessness (decomposição

racial). Essas crianças abandonam sua tradição cultural ou étnica e se vêem forçadas a usar uma postura e atitude

esbranquiçada para serem bem-sucedidas e terem acesso ao grande desejo de .subir na vida. e alcançar assim o

objetivo almejado, ou mais próximo do almejado. Esse fenômeno é caracterizado como uma busca de

descolonização por meio da imitação do comportamento branco tido como dominante. (Rossato, Gesser,

2001, p.22)

Desenvolvendo essa consciência poderemos encontrar milhões de crianças negras no Brasil e no mundo. Muitas

delas sentem-se silenciadas, ou seja, sentem que suas vozes, experiências e histórias não são validadas e ouvidas

pela escola.

Assim, em boa medida, o combate à pobreza no Brasil passa necessariamente pela manutenção da criança e do

jovem negro na escola. Mas em uma escola de qualidade que consiga transmitir, sem mistificação e de forma mais

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equânime para todos, a contribuição de cada raça, de cada etnia na formação sociocultural brasileira. A construção

de um tal processo escolar depende de uma política educacional que considere, entre outras, duas condições

básicas: a inclusão imediata dos jovens negros nas universidades por meio de programas de ação afirmativa e a

reformulação curricular da formação de professores a partir de parâmetros multiculturais. Dessa forma acredito

que o combate ao racismo institucional e às discriminações inscritas em nossas relações sociais terão maior

eficácia.

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-Mascaras brancas peles negras

- Funk-se se puder

FILMES - Selma

- Panteras Negras

MÚSICAS - Mama Africa

- Todo Camburão tem um pouquinho de navio negreiro (Cantor O Rappa)

- Negro Drama (Cantor Os racionais)

- Boa Esperança (Cantor Emicida )

ARTISTAS - Ray Charles

- Nina Simone

- Michael Jackson

- Machado de Assis

- Antonio Calado

- Chiquinha Gonzaga

- Elisa Lucinda

- Pixinguinha

- Cartola

- Ruth Souza

- Solano Trindade

LIDERANÇAS

- Dandara Palmares

- Carlos Marighela

ALGUNS PENSADORES

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AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL

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2016

- Abdias Nascimento:

- Maria Carolina de Jesus:

- Malcon X:

- Martins Luter King:

ALGUNS MOVIMENTOS SOCIAIS - Reaja ou seja morto

- Fórum de juventudes do RJ

EXERCÍCIOS DE VETIBULARES

ANTERIORES UERJ 2014

No I Congresso Mundial das Raças, ocorrido em Londres

em 1911, o médico João Baptista de Lacerda ilustrou suas

reflexões sobre a sociedade brasileira analisando a tela

“A redenção de Cam”, que retrata três gerações de uma

família.

Essa pintura foi utilizada na época para indicar a seguinte

tendência demográfica no Brasil:

(A) controle de natalidade

(B) branqueamento da população

(C) equilíbrio entre faixas etárias

(D) segregação dos grupos étnicos

ENEM 2013

Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos

e a quarta e a quinta gerações de teu sangue sofredor

tentarão apagar a tua cor!

E as gerações dessas gerações quando apagarem

a tua tatuagem execranda,

não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!

Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,

negro-fujão, negro cativo, negro rebelde

negro cabinda, negro congo, negro íoruba,

negro que foste para o algodão de USA

para os canaviais do Brasil,

para o tronco, para o colar de ferro, para a canga

de todos os senhores do mundo;

eu melhor compreenda agora os teus blues

nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá. Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!

LIMA. J, Obras completas: Rio de Janeiro, Aguilar, 1958

(fragmento).

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2016

O conflito de gerações e de grupos étnicos reproduz, na

visão do eu lírico, um contexto social assinalado por

A) modernização dos modos de produção e consequente

enriquecimento dos brancos.

B) preservação da memória ancestral e resistência negra

à apatia cultural dos brancos.

C) superação dos costumes antigos por meio da

incorporação de valores dos colonizados.

D) nivelamento social de descendentes de escravos e de

senhores pela condição de pobreza.

E) antagonismo entre grupos de trabalhadores e lacunas

de hereditariedade.

ENEM 2014

Negro, filho de escrava e fidalgo português, o baiano Luiz

Gama fez da lei e das letras suas armas na luta pela

liberdade. Foi vendido ilegalmente como escravo pelo seu

pai para cobrir dívidas de jogo. Sabendo ler e escrever,

aos 18 anos de idade conseguiu provas de que havia

nascido livre. Autodidata, advogado sem diploma, fez do

direito o seu ofício e transformou-se, em pouco tempo, em

proeminente advogado da causa abolicionista.

AZEVEDO, E. O Orfeu de carapinha. In: Revista de

História.Ano 1, n.o 3. Rio de Janeiro:

Biblioteca Nacional, jan. 2004 (adaptado).

A conquista da liberdade pelos afro-brasileiros na

segunda metade do séc. XIX foi resultado de importantes

lutas sociais condicionadas historicamente. A biografia de

Luiz Gama exemplifica a

A) impossibilidade de ascensão social do negro forro em

uma sociedade escravocrata, mesmo sendo alfabetizado.

B) extrema dificuldade de projeção dos intelectuais

negros nesse contexto e a utilização do Direito como

canal de luta pela liberdade.

C) rigidez de uma sociedade, assentada na escravidão, que

inviabilizava os mecanismos de ascensão social.

D) possibilidade de ascensão social, viabilizada pelo apoio

das elites dominantes, a um mestiço filho de pai

português.

E) troca de favores entre um representante negro e a

elite agrária escravista que outorgara o direito

advocatício ao mesmo.

UERJ 2015

A demarcação de terras de comunidades quilombolas é

fato recente nas práticas governamentais brasileiras.

Um dos principais objetivos dessa política pública é

viabilizar a promoção de:

(A) aceleração da reforma agrária

(B) reparação de grupos excluídos

(C) absorção de trabalhadores urbanos

(D) reconhecimento da diversidade étnica

UERJ 2014

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2016

No cartum, há uma alusão aos "rolezinhos"•,

manifestações em que jovens, em geral oriundos de

periferias, formam grandes grupos para circular dentro

de shoppings. Com base no diálogo entre os guardas e nos

elementos visuais que compõem o cartum, é possível

inferir uma crítica do cartunista baseada no seguinte

fato:

(A) os jovens se descontrolam em grupos muito numerosos

(B) os guardas pertencem à mesma classe social dos

jovens

(C) os guardas hesitam no cumprimento de medida

repressiva

(D) os jovens ameaçam as atividades comerciais dos

shoppings

ENEM 2009

Os melhores cri ticos da cultura brasileira trataram- na

sempre no plural, isto e , enfatizando a coexiste ncia no

Brasil de diversas culturas. Arthur Ramos distingue as

culturas na o europeias (indi genas, negras) das europeias

(portuguesa, italiana, alema etc.), e Darcy Ribeiro fala de

diversos Brasis: crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e de

Brasis sulinos, a cada um deles correspondendo uma

cultura especi fica.

MORAIS, F. O Brasil na visa o do artista: o pai s e sua

cultura. Sa o Paulo: Sudameris, 2003.

Considerando a hipo tese de Darcy Ribeiro de que ha

va rios Brasis, a opc ao em que a obra mostrada representa

a arte brasileira de origem negro-africana e :

A

B

C

D

E

ENEM 2011

Quando os portugueses se instalaram no Brasil, o país era

povoado de índios. Importaram, depois, da África, grande

número de escravos. O Português, o Índio e o Negro

constituem, durante o período colonial, as três bases da

população brasileira. Mas no que se refere à cultura, a

contribuição do Português foi de longe a mais notada.

Durante muito tempo o português e o tupi viveram lado a

lado como línguas de comunicação. Era o tupi que

utilizavam os bandeirantes nas suas expedições. Em 1694,

dizia o Padre Antônio Vieira que “as famílias dos

portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje

umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam

mística e domesticamente, e a língua que nas ditas

famílias se fala é a dos Índios, e a portuguesa a vão os

meninos aprender à escola.”

TEYSSIER, P. História da língua portuguesa . Lisboa:

Livraria Sá da Costa, 1984 (adaptado).

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AULÃO SOBRE RACIMOS NO BRASIL

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2016

A identidade de uma nação está diretamente ligada à

cultura de seu povo. O texto mostra que, no período

colonial brasileiro, o Português, o Índio e o Negro

formaram a base da população e que o patrimônio

linguístico brasileiro é resultado da

A) contribuição dos índios na escolarização dos

brasileiros.

B) diferença entre as línguas dos colonizadores e as dos

indígenas.

C) importância do Padre Antônio Vieira para a literatura

de língua portuguesa.

D) origem das diferenças entre a língua portuguesa e as

línguas tupi.

E) interação pacífica no uso da língua portuguesa e da

língua tupi.

ENEM 2010

Negrinha

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não;

fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos

assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos

vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha

esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa

não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo,

amimada dos padres, com lugar certo na igreja

e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as

banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de

jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando

audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora

em suma – “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio

da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos

em carne viva.

[...]

A excelente dona Ina cia era mestra na arte de judiar de

crianc as. Vinha da escravida o, fora senhora de escravos –

e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e zera

ao regime novo – essa indece ncia de negro igual.

LOBATO, M. Negrinha. In: MORICONE, I. Os cem

melhores contos brasileiros do se culo. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2000 (fragmento).

A narrativa focaliza um momento histo rico-social de

valores contradito rios. Essa contradic ao infere-se, no

contexto, pela

A) falta de aproximac ao entre a menina e a senhora,

preocupada com as amigas.

B) receptividade da senhora para com os padres, mas

deselegante para com as beatas.

C) ironia do padre a respeito da senhora, que era perversa

com as crianc as.

D) resiste ncia da senhora em aceitar a liberdade dos

negros, evidenciada no final do texto.

E) rejeic ao aos criados por parte da senhora, que preferia

trata -los com castigos.

ENEM 2011

A Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, inclui no currículo

dos estabelecimentos de ensino fundamental e

médio, oficiais e particulares, a obrigatoriedade do ensino

sobre História e Cultura Afro-Brasileira e determina

que o conteúdo programático incluirá o estudo da História

da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a

cultura negra brasileira e o negro na formação da

sociedade nacional, resgatando a contribuição do

povo negro nas áreas social, econômica e política

pertinentes à História do Brasil, além de instituir, no

calendário escolar, o dia 20 de novembro como data

comemorativa do “Dia da Consciência Negra”.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 27

jul. 2010 (adaptado).

A referida lei representa um avanço não só para a

educação nacional, mas também para a sociedade

brasileira, porque

A) legitima o ensino das ciências humanas nas escolas.

B) divulga conhecimentos para a população afro-brasileira.

C) reforça a concepção etnocêntrica sobre a África e sua

cultura.

D) garante aos afrodescendentes a igualdade no acesso à

educação.

E) impulsiona o reconhecimento da pluralidade étnico-

racial do país.

GABARITO

UERJ

2014

UERJ

2015

UERJ

2016

ENEM

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