racismo (solange)
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Reflexo do racismo á brasileira na mídiaTRANSCRIPT
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SOLANGE MARTINSCOUCEIRODE LIMA professorade Antropologiada ECA-USP.
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"racismo brasileira"na mdia
Reflexos do
S O L A N G E M A R T I N S C O U C E I R O D E L I M A
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58 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 2 ) : 5 6 - 6 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
m diversos trabalhos recentes pu-
blicados em forma de coletnea,
resultado de seminrios e cursos
realizados pela USP no ano de
1995, os autores relembraram
uma frase com a qual Florestan Fernandes
definiu o sentimento do brasileiro com re-
lao ao preconceito: preconceito de ter
preconceito. Para todos os estudiosos da
questo racial no Brasil esta frase quase
um dogma. Penso que ela o discurso mais
eloqente e sintetizador do modo peculiar
como as relaes entre as raas se forma-
ram e se cristalizaram neste pas.
Do mesmo modo, em inmeras confe-
rncias, palestras e encontros acadmicos
de diversos tipos, a questo de como o ne-
gro tratado pela mdia foi exaustivamente
discutida. Ningum desconhece a galeria
de papis subalternos, de empregados do-
msticos, subservientes ou ento estereo-
tipados que foram sempre reservados a ato-
res e atrizes negros. Ou ento so as famo-
sas mulatas que sempre serviram de tem-
pero para as histrias brasileiras; isto quan-
do a mulata no era protagonista, pois nes-
ses casos sempre se procurou, como se pro-
cura at hoje, atrizes brancas com fentipo
mais amorenado. Jorge Amado, autor que
invariavelmente descreve suas protagonis-
tas como mulatas sensuais e cheias de atri-
butos sexuais, teve vrios de seus roman-
ces adaptados para a televiso. Os papis-
ttulo das obras foram sempre desempenha-
dos por atrizes brancas: Gabriela, a do cra-
vo e canela, Tieta, Tereza Batista. Recen-
temente anunciou-se que para a minissrie
Dona Flor e seus Dois Maridos os autores
e diretores da rede Globo procuravam uma
protagonista. Entre as sugestes apareci-
am s atrizes brancas, sendo uma delas,
inclusive, loira de olhos azuis.
Em trabalho que apresentei no Congres-
so da Intercom, Sociedade Brasileira de
Estudos Interdisciplinares da Comunica-
o, em 1995, analiso, na introduo, estu-
dos do negro que foram realizados na rea
de comunicao social. Entendo por co-
municao social a mdia de massa (im-
prensa, rdio, televiso, propaganda), como
tambm a literatura em suas diferentes for-
mas de expresso (ficcional, cientfica,
popular, didtica) e as artes (cinema, tea-
tro, msica). Inicio aquele paper comen-
tando a pesquisa feita por Florestan
Fernandes, na dcada de 40, que analisa
representaes coletivas existentes na tra-
dio oral da cultura popular brasileira e
que j mostrava que nela se encontram re-
presentaes negativas e estereotipadas
sobre o negro nas canes de ninar, nas
quadrinhas e frases populares e nas hist-
rias contadas para as crianas. Passo em
revista, no referido texto, os trabalhos re-
sultantes de pesquisa que tomaram como
campo de investigao o rdio, a televiso,
o teatro e a dramaturgia teatral, o cinema,
a literatura ficcional, cientfica, popular,
didtica e paradidtica, bem como a im-
prensa e a propaganda. Todos eles mos-
tram que o negro retratado, quando se
trata do perodo escravocrata, como escra-
vo em suas diversificaes de fugitivo, fiel
ou traidor, ou na ps-abolio, como em-
pregado subalterno, subserviente e exer-
cendo sempre papel secundrio na trama
da histria. A figura da mulata sensual e
destruidora de lares por demais conheci-
da, tambm. Esses trabalhos foram todos
realizados tendo como referencial terico
as cincias humanas e sociais (histria,
sociologia e antropologia).
Como professora da ECA tenho orienta-
do, desde a dcada de 80, pesquisas que tm
como temtica a questo do negro e a comu-
nicao e que atraram estudantes formados
nas reas de comunicaes, dando a essa
investigao respaldo terico diverso daque-
le mencionado acima. Eu mesma, caminhan-
do na rea de encontro entre antropologia e
comunicaes, estou, atualmente, desenvol-
vendo investigao sobre a identidade e a
trajetria da personagem negra na telenove-
la brasileira desde a dcada de 70 at o pre-
sente momento. Essa pesquisa visa sistema-
tizar dados que tenho colhido desde os anos
70, quando defendi dissertao de mestrado,
na qual desenvolvi estudo sobre o negro na
televiso em So Paulo e na qual dedico um
captulo telenovela, produto ento emer-
gente na indstria cultural brasileira (Cou-
ceiro de Lima, 1983).
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Assim, a tarefa de discutir o negro na
mdia no mbito de um artigo para esta
revista difcil na medida em que estou
mergulhada nessa questo, e os limites de
um artigo no seriam suficientes para
esgot-la, enquanto discusso e resultado
de uma pesquisa bastante longa. Ao mes-
mo tempo, como observei acima, a questo
da estereotipia e da invisibilidade do negro
na mdia tem sido tratada com muita fre-
qncia, e escrever aqui sobre ela seria
apenas repetir o que todos j sabemos. Por
isso preferi abordar, neste artigo, um recor-
te dessa questo que o de pensar a mdia
em relao ao nosso tipo de racismo que
vem sendo chamado de racismo brasilei-
ro, ou brasileira.
Comumente os profissionais da mdia
dizem que ela retrata a realidade social do
Brasil e que se os negros no esto na pu-
blicidade e se ocupam papis subalternos
na fico e TV porque esta a sua situ-
ao na sociedade brasileira. Seria isso
uma verdade? Os produtos da mdia, como
a telenovela, a publicidade, so realmente
retratos fiis da realidade? Como fica sua
funo de tambm despertar o sonho e o
desejo do consumidor? Qualquer um que
se dispuser a assistir a um captulo, de pre-
ferncia o ltimo, de uma novela poder
constatar que a harmonia que se produz no
final entre ricos e pobres, amigos e inimi-
gos est longe de ser uma reproduo fiel
da realidade. , sim, um produto que pro-
move uma fuga da realidade. Por que en-
to no caso do negro se exige que a reali-
dade venha antes e determine o que a fic-
o vai exibir? Por que para o negro a mdia
tem que ser verdade?
Responder apenas que isso acontece
porque a mdia preconceituosa, discri-
minadora do negro, apenas parte da ques-
to. Mais do que isso a mdia absorve o
racismo vigente na sociedade brasileira,
ou seja, esse racismo que ela mesma de-
nominou cordial e que to bem incorpo-
rado nos produtos que veicula. Desse modo
a resposta pergunta o Brasil um pas
racista?, a que alguns intelectuais muito
ligados questo racial responderam que
sim, no pode ser transposta para a mdia,
locus onde podemos ver essa ambigida-
de aparecer em vrias verses (Pereira,
1996). Por causa dessa ambigidade, cer-
tas realizaes da mdia so consideradas
de contedo racista, quando examinadas
por estudiosos, brancos ou negros, ou por
militantes negros ou mesmo por pessoas
que tm um nvel de sensibilidade mais
aguado para captar esse racismo cordial-
mente velado e implcito. As mesmas
mensagens, entretanto, quando observa-
das por pessoas menos atentas ao precon-
ceito, podem passar totalmente desperce-
bidas ou mesmo ter uma leitura ingnua
ou capciosa. Alguns exemplos podero
ajudar a esclarecer meu raciocnio.
H algumas semanas, num sbado
noite, procurando algo para assistir na tele-
viso de canais abertos, sintonizei, na mai-
or rede de televiso do pas, um programa
de um humorista conceituado e famoso e
que leva seu nome. Em cena uma situao
que me fez atualizar um passado que julga-
va enterrado. Era um baile, tipo gafieira, no
qual as personagens estavam grosseiramen-
te pintadas de preto e intercalavam falas
cmicas com uma dana debochada, que
representava a estereotipia do negro ma-
landro do morro, cuja fala errada e carre-
gada de gria. Imediatamente atualizei em
minha memria um trecho de um progra-
ma relatado no livro de Borges Pereira,
levado ao ar por uma emissora de televiso
na dcada de 60 e que focalizava situao
muito parecida (Pereira, 1967). Essa volta
no tempo me fez pensar: afinal o que mu-
dou na nossa telinha? Srgio Cardoso foi,
com seriedade, no jocosamente, pintado
de negro para viver a cabana do Pai Thomas
no final dos anos 60; apesar dos protestos
de alguns atores ocorridos naquele momen-
to, nada mudou. No ano de 1986 foi mon-
tada a pera Porgy and Bess de George
Gershwin, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, com o elenco todo maquilado de
preto. A revista Veja, em matria bastante
longa, comenta, entre outras coisas, que
nenhuma organizao negra havia discuti-
do a questo. No final dos anos 90 repete-
se o mesmo quadro falsamente engraado,
usa-se os mesmos recursos de humor falso
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e estereotipado, e apresenta-se para um
pblico que, supomos, seria hoje mais es-
clarecido e informado sobre o racismo no
Brasil e no mundo. Ser que ? O brasileiro
mdio que assiste televiso e que no s-
bado noite sintoniza esse programa de
humor consideraria desrespeitosa essa
maneira de retratar um grupo tnico que
representa quase metade da populao de
seu pas? Ser que esse pblico percebe
que h nesse quadro uma manifestao de
preconceito com relao comunidade
negra? Arriscaria responder que no. A
fisionomia desse racismo que hoje alguns
poucos segmentos da sociedade admitem
que existe, e que qualificamos de brasi-
leira, a responsvel por essa facilidade
com que as pessoas absorvem uma mensa-
gem recheada de esteretipos e preconcei-
tos sem se darem conta.
Mas ento poderamos concluir que
nada mudou desde os anos 60? Acho que
uma resposta afirmativa ou negativa seria
simplista demais. Mais uma vez nos depa-
ramos com a ambigidade. A mdia tam-
bm sensvel s mudanas da sociedade
e, embora a reboque delas, est sempre
procurando se atualizar e incorporar, de
modo domesticado, claro, anseios de par-
celas da sociedade que lutam pelos seus
direitos e por mudanas. Assim, minorias
como negros e homossexuais, questes
sociais como o desaparecimento de crian-
as ou problemas dos sem-terra, temas
como ecologia e meio ambiente, Aids, alei-
tamento, ganham espao nas novelas e nas
reportagens. Recentemente, e para aten-
der protestos de entidades do Movimento
Negro por causa de uma novela que exi-
biu cena agressiva de preconceito explci-
to, a rede Globo nos brindou com uma
famlia negra de classe mdia na novela A
Prxima Vtima. Apesar de alguns ganhos
que esta situao trouxe para a imagem do
negro, ela tambm demonstrou uma gran-
de dificuldade de se lidar com a proble-
mtica racial. Em algumas cenas a preo-
cupao de inverter as situaes tradicio-
Camila Pitanga
e Norton
de Oliveira (na
outra pgina),
interpretando
personagens da
telenovela
A Prxima Vtima
Rede
Glo
bo/D
ivulg
ao
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nais era tanta que chegava a beirar o rid-
culo. Cito, como exemplo, uma em que o
fotgrafo de moda, jovem loiro de olhos
azuis, namorado da moa negra, recebi-
do para jantar pela famlia dela. A seqn-
cia de gafes e quebra de etiqueta que ele
comete parecia querer demonstrar contras-
te com o refinamento da famlia negra.
Toda a crtica ao seu comportamento
verbalizada pelo irmo mais velho, e tam-
bm mais sofisticado, da moa, enquanto
os outros membros da famlia, embora
tambm horrorizados, procuram desculp-
lo de modo benevolente. Depois dessa
cena, e durante todo o desenrolar da nove-
la, o jovem nunca mais repete essas gafes
em nenhuma outra situao, continuando
a exercer sua profisso em ambientes
muito sofisticados sem nunca mais enver-
gonhar a namorada. Acrescente-se que a
situao criada j seria inverossmil num
personagem cuja profisso fotgrafo de
moda remete a um mundo no qual a vida
e as pessoas so, por si ss, altamente so-
fisticadas. Assim, o recurso usado para es-
tabelecer contraste e inverter o lugar-co-
mum a que o pblico j se acostumara
pareceu falso e demonstrou o despreparo
dos profissionais em retratar o negro e sua
famlia de modo normal, vivendo como
vivem os brancos. Talvez uma assessoria
de pessoas ligadas, por exemplo, ao Mo-
vimento Negro pudesse ajudar a minorar
os efeitos, s vezes imprevisveis, de ten-
tativas malfeitas de melhorar a imagem
do negro na mdia.
Em outros momentos captamos exem-
plos mais precisos desse preconceito no
assumido, que esconde sua cara e que fa-
brica, por exemplo, peas publicitrias de
extremo contedo racista, implcito ou ex-
plcito. A propaganda foi e ainda a gran-
de divulgadora, em diferentes verses, da
negra gorda, associada a produtos como
forno, fogo, geladeira, produtos de lim-
peza, etc. Essa imagem antiga ainda per-
manece disseminada tanto em revistas
como na televiso. Ao lado delas existem
hoje situaes mais modernas que mos-
tram, entretanto, uma outra face, mais ou
menos implcita, do preconceito. Infeliz-
mente no posso, nos limites deste artigo,
contar com a imagem, o que facilitaria
minha exposio. Por isso a descrio se
torna o nico recurso de que disponho para
descrever e comentar algumas peas pu-
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blicitrias que considero muito significa-
tivas aos propsitos deste texto. Recente-
mente publiquei pequeno artigo no qual
comento uma publicidade de um piso
cermico que, para elucidar a mensagem
de durabilidade do produto, coloca em
cima desse piso cinco crianas em dife-
rentes situaes (Couceiro de Lima, 1994).
Uma menina clara com uma boneca na
mo, uma oriental segurando uma ma,
um menino loiro agachado ao lado de um
carrinho de rodas, um outro menino claro
em primeiro plano e uma criana negra,
sem nada na mo, situada em segundo
plano, mais recuada. Na seqncia seguin-
te aparece outra foto que representa o
passar dos anos, do piso e das crianas.
Cada uma das crianas se tornou o adulto
que a foto anterior anunciava: a menina
clara, uma dona de casa empurrando um
carrinho de supermercado, a nissei que,
obviamente, tornou-se uma cientista da
rea de exatas tem um tubo de ensaio na
mo, o menino do carrinho porta um skate,
o garoto claro representa um executivo de
gravata e mala de viagem e o garoto ne-
gro, que no tinha nada na mo a anunciar
seu futuro, tornou-se um frentista de pos-
to de gasolina envergando um macaco
branco e um regador, na posio de quem
estava pronto para completar a gua do
motor de um carro. Sem querer
desqualificar nenhuma profisso, fica evi-
dente que a mensagem contida no texto
no-verbal nega ao negro a possibilidade
de mobilidade social. Essa publicidade,
que teria um impacto muito maior para o
leitor se pudesse ser vista (j se disse que
uma foto vale por mil palavras!), , na
minha opinio, um exemplo que nenhuma
pessoa poderia deixar de considerar racis-
ta, mesmo aquelas que defendem e acredi-
tam que o Brasil o pas da democracia
racial. Mas ainda assim me pergunto: ser
que com as viseiras que o racismo cordial
e no assumido coloca no brasileiro a lei-
tura que fao dessa publicidade to trans-
parente assim para todos?
Recordo-me que quando foram veicu-
ladas as duas peas publicitrias da
Benetton, que suscitaram polmica no
meio negro a da me negra amamentan-
do a criana branca e a das duas crianas,
uma loira de cachos e a outra negra de
penteado de chifres no alto da cabea , o
que era para muitos de ns mais do que
bvio no foi interpretado com tanta cla-
reza nem mesmo no nosso meio universi-
trio. Tive, com colegas meus da ECA,
algumas conversas reveladoras de que eles
no viam nem sentiam como eu o conte-
do racista existente naquelas imagens.
Alguns viam a beleza plstica do seio negro
amamentando a criana branca, salienta-
vam a beleza do jogo de cores em branco
preto e vermelho, mas no se preocupa-
vam com aqueles signos que, num pas de
passado escravocrata, tornavam-se sm-
bolos da submisso e do uso da escrava
negra pela senhora branca. Com relao
ao outro anncio citado, que foi, tambm,
veiculado em outdoors, surgiu, alm de
polmica e controvrsias, uma reao mais
efetiva de algumas entidades ligadas ao
Movimento Negro, que interpelaram ju-
dicialmente a famosa griffe italiana. Por
ter escrito artigo sobre o assunto e pelas
relaes acadmicas que mantenho com a
questo dos afro-descendentes e a comu-
nicao, fui convidada a depor no momen-
to em que o processo estava sendo instru-
do (Couceiro de Lima, 1995). Durante o
longo depoimento que prestei a uma jo-
vem promotora, que se mostrou muito
atenta e sensvel s questes de discrimi-
nao e racismo, fui informada, por ela
mesma, que o representante da agncia de
publicidade que mantinha, na ocasio, a
conta da Benetton alegou em seu depoi-
mento que os chifrinhos no cabelo da cri-
ana negra do referido anncio eram, na
verdade, um penteado muito usado em
tribos africanas e que em momento algum
sugeriam associao com o diabo. Ora, no
imaginrio cristo, a associao entre chi-
fres e o diabo e cachos loiros e anjos bar-
rocos por demais familiar. Os chifres
remetem ao diabo de um modo muito mais
evidente do que a eventualidade, se fosse
verdadeira, da existncia de penteado nes-
se estilo em tribos africanas. Apesar dis-
so, ainda ouvi, de pessoas do nosso meio
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universitrio, que apesar das insinuaes
contidas na mensagem a imagem da cri-
ana negra tinha um olhar mais angelical
do que a da criana branca, cuja expresso
era mais maliciosa! Como se pode perce-
ber nada suficientemente bvio e trans-
parente num pas cuja identidade est pro-
funda e enraizadamente marcada pela ide-
ologia da democracia racial. O precon-
ceito de ter preconceito parte to ntima
do nosso ser, talvez muito mais do que
possamos imaginar e, certamente, de um
modo que no permite que a maioria das
pessoas tome dele conscincia.
Para no ficarmos apenas no terreno
da propaganda gostaria de citar apenas um
exemplo, este relativo a um artigo da im-
prensa. Em julho de 1995 um dos maiores
jornais de So Paulo publicou, em matria
de primeira pgina, artigo sobre projetos
em tramitao no Congresso Nacional e
que foram considerados polmicos pelo
jornalista autor da matria que a eles se
referiu do seguinte modo: [...] so de
minorias e etnias que querem imagens
politicamente corretas, evanglicos que
pretendem banir a nudez e nacionalistas
que tentam impor cotas para a produo
nacional. Estavam entre esses projetos o
da senadora Benedita da Silva que prev a
participao de 40% de artistas e profissio-
nais negros nas produes televisivas.
Depois de reproduzir declaraes da se-
nadora sobre o projeto em questo, o jor-
nalista adverte: quem espera que isso
[participao de 40% de negros na televi-
so] multiplique vinhetas da mulata
globeleza no carnaval corre risco em ou-
tra frente: a nudez indecorosa e cenas de
sexo podem ser vetadas segundo outro
projeto da Cmara. O teor da matria,
apesar de pretender ser srio, na verdade
colocou, dentro do rtulo de polmico,
projetos srios para uma coletividade,
outros de cunho mais particularista e ou-
tros, ainda, sem nenhuma importncia;
juntou todos no mesmo caldeiro e, ao
destacar o projeto da senadora Benedita
Advogados
brasileiros do
sc. XIX. Foto
de Pierre Verger
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da Silva, interpretou o mesmo do jeiti-
nho brasileiro. Bom seria se ter mais
negros na televiso fosse ter mais mulatas
sem roupa! Afinal, bom mesmo, no pas
do carnaval, a mulata que, como se v,
continua sendo a tal!
A questo da representao do negro
na mdia impressa foi, mais recentemen-
te, abordada em dissertao de mestrado,
defendida na ECA (Ferreira, 1993). Tam-
bm a relao imprensa-racismo foi ob-
jeto de dissertao recente na mesma
escola (Conceio, 1996). O exemplo
acima serve para demonstrar que, mes-
mo policiada pelos manuais de redao,
a grande imprensa comete deslizes e es-
correga no preconceito, aquele sutil, que
no permite protesto, pois sua manifes-
tao to escondida que nem se pode
provar que exista. Explcito ou implci-
to, os exemplos que poderiam ser citados
certamente extrapolariam os limites de
um artigo e so repetitivos de uma situa-
o constante que projeta para os dom-
nios da mdia a ambigidade que permeia
as relaes raciais no Brasil. Admitirmos
a existncia dessa ambigidade no sig-
nifica que tenhamos dvida da existn-
cia do racismo no cotidiano da nossa
sociedade mas, sim, que o mito da demo-
cracia racial ainda impede as pessoas de
reconhec-lo, seja no cotidiano de suas
vidas, seja na fico produzida pela
mdia. Jornalistas, como os demais pro-
fissionais da comunicao e, certamente,
a maior parte de profissionais com nvel
universitrio so socializados de modo a
absorver, acreditar e defender a idia da
democracia racial. Assim sendo, as ma-
nifestaes de preconceito e racismo que
transmitem ao exercer suas profisses e
no cotidiano da suas vidas refletem um
pensamento e uma ideologia forjados
exatamente por mecanismos sutis de
inculcamento de preconceitos que agem
eficientemente na produo do racismo
brasileira. A formao universitria se
exime de discutir a questo nas salas de
aula, o que contribui para que os alunos,
futuros profissionais, atentem para a exis-
tncia desse racismo que sintomaticamen-
te foi chamado de cordial pela prpria
grande imprensa. Cordial porque rara-
mente agride abertamente; porque per-
mite brincadeiras e piadas de gosto, no
mnimo, duvidoso; porque estabelece re-
laes ambguas que possibilitam que os
atingidos fiquem na dvida se realmente
esto sendo vtimas de preconceito ou
no; e permite que, muitas vezes, sejam,
eles prprios, chamados de racistas ao
contrrio, ou mesmo de complexados,
termo freqentemente usado para desig-
nar o negro que denuncia aes implci-
tas de preconceito.
O Grupo de Polticas Pblicas, reuni-
do pela Pr-Reitoria de Extenso e Cultu-
ra da Universidade de So Paulo, no ano
de 1995, para elaborar diagnstico e su-
gestes para questes relativas promo-
o da comunidade negra, teve como tema
de um de seus subgrupos a discusso da
imagem do negro na mdia. Como mem-
bro desse subgrupo sugeri Universidade
de So Paulo inserir nos currculos de suas
unidades a discusso de questes ligadas
ao racismo e discriminao na socieda-
de brasileira. Tal insero poderia se dar
atravs de palestras, cursos ou mesmo de
matrias curriculares que propusessem a
abordagem desse tema. Essa medida de-
veria atingir, no s, mas principalmente,
a Escola de Comunicaes e Artes, uma
vez que dela saem e sairo os profissio-
nais da comunicao deste pas.
A identidade desses profissionais,
construda e forjada nos parmetros desse
racismo brasileira, devolve sociedade
mensagens de um racismo e preconceito
tambm brasileira. Por isso ele no
admitido nem por quem o constri, nem
por quem o consome. Esto entre esses
consumidores de mensagens no apenas
os brancos, mas tambm os negros; no
apenas os adultos, mas tambm as crian-
as brancas que se socializam com uma
imagem negativa do negro; as crianas
negras que constroem sua identidade
modelada numa imagem totalmente dife-
rente daquela que elas vem no espelho;
da mulher negra que se v aprisionada ao
estigma da mulata que a tal e que cer-
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tamente no ela, mulher comum que
estuda, trabalha, ama e sofre como todas
as outras mulheres brancas! Sabemos que
a formao da identidade um processo
de construo no qual, em sociedades
complexas, atuam mltiplos agentes e
entre eles a comunicao tem uma presen-
a importante. A existncia de uma iden-
tidade negra deformada e estereotipada
presente em diversos produtos da comu-
nicao social responsvel pela constru-
o de novas identidades que refletem
aquela. Apesar de o movimento negro, dos
estudiosos negros e brancos demonstra-
rem preocupao com essa questo, a so-
ciedade e a academia, de um modo geral,
parecem ter reservado, at agora, pouca
ateno a ela. Mudar a sociedade, assu-
mir o racismo, discuti-lo para enfim
exorciz-lo, seria uma forma de mudar a
imagem que a comunicao transmite dos
afro-descendentes. Mas tambm mudar
a mdia, introduzir imagens mais
diversificadas e reais do negro e sua vida,
realizar programas que debatam e divul-
guem discusses sobre a questo racial e,
sobretudo, tratar o afro-descendente com
dignidade e respeito poderia, tambm, ser
um caminho para mudar essa sociedade.
Quem comear primeiro?