racismo (solange)

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Reflexo do racismo á brasileira na mídia

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  • SOLANGE MARTINSCOUCEIRODE LIMA professorade Antropologiada ECA-USP.

  • "racismo brasileira"na mdia

    Reflexos do

    S O L A N G E M A R T I N S C O U C E I R O D E L I M A

  • 58 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 2 ) : 5 6 - 6 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7

    m diversos trabalhos recentes pu-

    blicados em forma de coletnea,

    resultado de seminrios e cursos

    realizados pela USP no ano de

    1995, os autores relembraram

    uma frase com a qual Florestan Fernandes

    definiu o sentimento do brasileiro com re-

    lao ao preconceito: preconceito de ter

    preconceito. Para todos os estudiosos da

    questo racial no Brasil esta frase quase

    um dogma. Penso que ela o discurso mais

    eloqente e sintetizador do modo peculiar

    como as relaes entre as raas se forma-

    ram e se cristalizaram neste pas.

    Do mesmo modo, em inmeras confe-

    rncias, palestras e encontros acadmicos

    de diversos tipos, a questo de como o ne-

    gro tratado pela mdia foi exaustivamente

    discutida. Ningum desconhece a galeria

    de papis subalternos, de empregados do-

    msticos, subservientes ou ento estereo-

    tipados que foram sempre reservados a ato-

    res e atrizes negros. Ou ento so as famo-

    sas mulatas que sempre serviram de tem-

    pero para as histrias brasileiras; isto quan-

    do a mulata no era protagonista, pois nes-

    ses casos sempre se procurou, como se pro-

    cura at hoje, atrizes brancas com fentipo

    mais amorenado. Jorge Amado, autor que

    invariavelmente descreve suas protagonis-

    tas como mulatas sensuais e cheias de atri-

    butos sexuais, teve vrios de seus roman-

    ces adaptados para a televiso. Os papis-

    ttulo das obras foram sempre desempenha-

    dos por atrizes brancas: Gabriela, a do cra-

    vo e canela, Tieta, Tereza Batista. Recen-

    temente anunciou-se que para a minissrie

    Dona Flor e seus Dois Maridos os autores

    e diretores da rede Globo procuravam uma

    protagonista. Entre as sugestes apareci-

    am s atrizes brancas, sendo uma delas,

    inclusive, loira de olhos azuis.

    Em trabalho que apresentei no Congres-

    so da Intercom, Sociedade Brasileira de

    Estudos Interdisciplinares da Comunica-

    o, em 1995, analiso, na introduo, estu-

    dos do negro que foram realizados na rea

    de comunicao social. Entendo por co-

    municao social a mdia de massa (im-

    prensa, rdio, televiso, propaganda), como

    tambm a literatura em suas diferentes for-

    mas de expresso (ficcional, cientfica,

    popular, didtica) e as artes (cinema, tea-

    tro, msica). Inicio aquele paper comen-

    tando a pesquisa feita por Florestan

    Fernandes, na dcada de 40, que analisa

    representaes coletivas existentes na tra-

    dio oral da cultura popular brasileira e

    que j mostrava que nela se encontram re-

    presentaes negativas e estereotipadas

    sobre o negro nas canes de ninar, nas

    quadrinhas e frases populares e nas hist-

    rias contadas para as crianas. Passo em

    revista, no referido texto, os trabalhos re-

    sultantes de pesquisa que tomaram como

    campo de investigao o rdio, a televiso,

    o teatro e a dramaturgia teatral, o cinema,

    a literatura ficcional, cientfica, popular,

    didtica e paradidtica, bem como a im-

    prensa e a propaganda. Todos eles mos-

    tram que o negro retratado, quando se

    trata do perodo escravocrata, como escra-

    vo em suas diversificaes de fugitivo, fiel

    ou traidor, ou na ps-abolio, como em-

    pregado subalterno, subserviente e exer-

    cendo sempre papel secundrio na trama

    da histria. A figura da mulata sensual e

    destruidora de lares por demais conheci-

    da, tambm. Esses trabalhos foram todos

    realizados tendo como referencial terico

    as cincias humanas e sociais (histria,

    sociologia e antropologia).

    Como professora da ECA tenho orienta-

    do, desde a dcada de 80, pesquisas que tm

    como temtica a questo do negro e a comu-

    nicao e que atraram estudantes formados

    nas reas de comunicaes, dando a essa

    investigao respaldo terico diverso daque-

    le mencionado acima. Eu mesma, caminhan-

    do na rea de encontro entre antropologia e

    comunicaes, estou, atualmente, desenvol-

    vendo investigao sobre a identidade e a

    trajetria da personagem negra na telenove-

    la brasileira desde a dcada de 70 at o pre-

    sente momento. Essa pesquisa visa sistema-

    tizar dados que tenho colhido desde os anos

    70, quando defendi dissertao de mestrado,

    na qual desenvolvi estudo sobre o negro na

    televiso em So Paulo e na qual dedico um

    captulo telenovela, produto ento emer-

    gente na indstria cultural brasileira (Cou-

    ceiro de Lima, 1983).

    E

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    Assim, a tarefa de discutir o negro na

    mdia no mbito de um artigo para esta

    revista difcil na medida em que estou

    mergulhada nessa questo, e os limites de

    um artigo no seriam suficientes para

    esgot-la, enquanto discusso e resultado

    de uma pesquisa bastante longa. Ao mes-

    mo tempo, como observei acima, a questo

    da estereotipia e da invisibilidade do negro

    na mdia tem sido tratada com muita fre-

    qncia, e escrever aqui sobre ela seria

    apenas repetir o que todos j sabemos. Por

    isso preferi abordar, neste artigo, um recor-

    te dessa questo que o de pensar a mdia

    em relao ao nosso tipo de racismo que

    vem sendo chamado de racismo brasilei-

    ro, ou brasileira.

    Comumente os profissionais da mdia

    dizem que ela retrata a realidade social do

    Brasil e que se os negros no esto na pu-

    blicidade e se ocupam papis subalternos

    na fico e TV porque esta a sua situ-

    ao na sociedade brasileira. Seria isso

    uma verdade? Os produtos da mdia, como

    a telenovela, a publicidade, so realmente

    retratos fiis da realidade? Como fica sua

    funo de tambm despertar o sonho e o

    desejo do consumidor? Qualquer um que

    se dispuser a assistir a um captulo, de pre-

    ferncia o ltimo, de uma novela poder

    constatar que a harmonia que se produz no

    final entre ricos e pobres, amigos e inimi-

    gos est longe de ser uma reproduo fiel

    da realidade. , sim, um produto que pro-

    move uma fuga da realidade. Por que en-

    to no caso do negro se exige que a reali-

    dade venha antes e determine o que a fic-

    o vai exibir? Por que para o negro a mdia

    tem que ser verdade?

    Responder apenas que isso acontece

    porque a mdia preconceituosa, discri-

    minadora do negro, apenas parte da ques-

    to. Mais do que isso a mdia absorve o

    racismo vigente na sociedade brasileira,

    ou seja, esse racismo que ela mesma de-

    nominou cordial e que to bem incorpo-

    rado nos produtos que veicula. Desse modo

    a resposta pergunta o Brasil um pas

    racista?, a que alguns intelectuais muito

    ligados questo racial responderam que

    sim, no pode ser transposta para a mdia,

    locus onde podemos ver essa ambigida-

    de aparecer em vrias verses (Pereira,

    1996). Por causa dessa ambigidade, cer-

    tas realizaes da mdia so consideradas

    de contedo racista, quando examinadas

    por estudiosos, brancos ou negros, ou por

    militantes negros ou mesmo por pessoas

    que tm um nvel de sensibilidade mais

    aguado para captar esse racismo cordial-

    mente velado e implcito. As mesmas

    mensagens, entretanto, quando observa-

    das por pessoas menos atentas ao precon-

    ceito, podem passar totalmente desperce-

    bidas ou mesmo ter uma leitura ingnua

    ou capciosa. Alguns exemplos podero

    ajudar a esclarecer meu raciocnio.

    H algumas semanas, num sbado

    noite, procurando algo para assistir na tele-

    viso de canais abertos, sintonizei, na mai-

    or rede de televiso do pas, um programa

    de um humorista conceituado e famoso e

    que leva seu nome. Em cena uma situao

    que me fez atualizar um passado que julga-

    va enterrado. Era um baile, tipo gafieira, no

    qual as personagens estavam grosseiramen-

    te pintadas de preto e intercalavam falas

    cmicas com uma dana debochada, que

    representava a estereotipia do negro ma-

    landro do morro, cuja fala errada e carre-

    gada de gria. Imediatamente atualizei em

    minha memria um trecho de um progra-

    ma relatado no livro de Borges Pereira,

    levado ao ar por uma emissora de televiso

    na dcada de 60 e que focalizava situao

    muito parecida (Pereira, 1967). Essa volta

    no tempo me fez pensar: afinal o que mu-

    dou na nossa telinha? Srgio Cardoso foi,

    com seriedade, no jocosamente, pintado

    de negro para viver a cabana do Pai Thomas

    no final dos anos 60; apesar dos protestos

    de alguns atores ocorridos naquele momen-

    to, nada mudou. No ano de 1986 foi mon-

    tada a pera Porgy and Bess de George

    Gershwin, no Teatro Municipal do Rio de

    Janeiro, com o elenco todo maquilado de

    preto. A revista Veja, em matria bastante

    longa, comenta, entre outras coisas, que

    nenhuma organizao negra havia discuti-

    do a questo. No final dos anos 90 repete-

    se o mesmo quadro falsamente engraado,

    usa-se os mesmos recursos de humor falso

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    e estereotipado, e apresenta-se para um

    pblico que, supomos, seria hoje mais es-

    clarecido e informado sobre o racismo no

    Brasil e no mundo. Ser que ? O brasileiro

    mdio que assiste televiso e que no s-

    bado noite sintoniza esse programa de

    humor consideraria desrespeitosa essa

    maneira de retratar um grupo tnico que

    representa quase metade da populao de

    seu pas? Ser que esse pblico percebe

    que h nesse quadro uma manifestao de

    preconceito com relao comunidade

    negra? Arriscaria responder que no. A

    fisionomia desse racismo que hoje alguns

    poucos segmentos da sociedade admitem

    que existe, e que qualificamos de brasi-

    leira, a responsvel por essa facilidade

    com que as pessoas absorvem uma mensa-

    gem recheada de esteretipos e preconcei-

    tos sem se darem conta.

    Mas ento poderamos concluir que

    nada mudou desde os anos 60? Acho que

    uma resposta afirmativa ou negativa seria

    simplista demais. Mais uma vez nos depa-

    ramos com a ambigidade. A mdia tam-

    bm sensvel s mudanas da sociedade

    e, embora a reboque delas, est sempre

    procurando se atualizar e incorporar, de

    modo domesticado, claro, anseios de par-

    celas da sociedade que lutam pelos seus

    direitos e por mudanas. Assim, minorias

    como negros e homossexuais, questes

    sociais como o desaparecimento de crian-

    as ou problemas dos sem-terra, temas

    como ecologia e meio ambiente, Aids, alei-

    tamento, ganham espao nas novelas e nas

    reportagens. Recentemente, e para aten-

    der protestos de entidades do Movimento

    Negro por causa de uma novela que exi-

    biu cena agressiva de preconceito explci-

    to, a rede Globo nos brindou com uma

    famlia negra de classe mdia na novela A

    Prxima Vtima. Apesar de alguns ganhos

    que esta situao trouxe para a imagem do

    negro, ela tambm demonstrou uma gran-

    de dificuldade de se lidar com a proble-

    mtica racial. Em algumas cenas a preo-

    cupao de inverter as situaes tradicio-

    Camila Pitanga

    e Norton

    de Oliveira (na

    outra pgina),

    interpretando

    personagens da

    telenovela

    A Prxima Vtima

    Rede

    Glo

    bo/D

    ivulg

    ao

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    nais era tanta que chegava a beirar o rid-

    culo. Cito, como exemplo, uma em que o

    fotgrafo de moda, jovem loiro de olhos

    azuis, namorado da moa negra, recebi-

    do para jantar pela famlia dela. A seqn-

    cia de gafes e quebra de etiqueta que ele

    comete parecia querer demonstrar contras-

    te com o refinamento da famlia negra.

    Toda a crtica ao seu comportamento

    verbalizada pelo irmo mais velho, e tam-

    bm mais sofisticado, da moa, enquanto

    os outros membros da famlia, embora

    tambm horrorizados, procuram desculp-

    lo de modo benevolente. Depois dessa

    cena, e durante todo o desenrolar da nove-

    la, o jovem nunca mais repete essas gafes

    em nenhuma outra situao, continuando

    a exercer sua profisso em ambientes

    muito sofisticados sem nunca mais enver-

    gonhar a namorada. Acrescente-se que a

    situao criada j seria inverossmil num

    personagem cuja profisso fotgrafo de

    moda remete a um mundo no qual a vida

    e as pessoas so, por si ss, altamente so-

    fisticadas. Assim, o recurso usado para es-

    tabelecer contraste e inverter o lugar-co-

    mum a que o pblico j se acostumara

    pareceu falso e demonstrou o despreparo

    dos profissionais em retratar o negro e sua

    famlia de modo normal, vivendo como

    vivem os brancos. Talvez uma assessoria

    de pessoas ligadas, por exemplo, ao Mo-

    vimento Negro pudesse ajudar a minorar

    os efeitos, s vezes imprevisveis, de ten-

    tativas malfeitas de melhorar a imagem

    do negro na mdia.

    Em outros momentos captamos exem-

    plos mais precisos desse preconceito no

    assumido, que esconde sua cara e que fa-

    brica, por exemplo, peas publicitrias de

    extremo contedo racista, implcito ou ex-

    plcito. A propaganda foi e ainda a gran-

    de divulgadora, em diferentes verses, da

    negra gorda, associada a produtos como

    forno, fogo, geladeira, produtos de lim-

    peza, etc. Essa imagem antiga ainda per-

    manece disseminada tanto em revistas

    como na televiso. Ao lado delas existem

    hoje situaes mais modernas que mos-

    tram, entretanto, uma outra face, mais ou

    menos implcita, do preconceito. Infeliz-

    mente no posso, nos limites deste artigo,

    contar com a imagem, o que facilitaria

    minha exposio. Por isso a descrio se

    torna o nico recurso de que disponho para

    descrever e comentar algumas peas pu-

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    blicitrias que considero muito significa-

    tivas aos propsitos deste texto. Recente-

    mente publiquei pequeno artigo no qual

    comento uma publicidade de um piso

    cermico que, para elucidar a mensagem

    de durabilidade do produto, coloca em

    cima desse piso cinco crianas em dife-

    rentes situaes (Couceiro de Lima, 1994).

    Uma menina clara com uma boneca na

    mo, uma oriental segurando uma ma,

    um menino loiro agachado ao lado de um

    carrinho de rodas, um outro menino claro

    em primeiro plano e uma criana negra,

    sem nada na mo, situada em segundo

    plano, mais recuada. Na seqncia seguin-

    te aparece outra foto que representa o

    passar dos anos, do piso e das crianas.

    Cada uma das crianas se tornou o adulto

    que a foto anterior anunciava: a menina

    clara, uma dona de casa empurrando um

    carrinho de supermercado, a nissei que,

    obviamente, tornou-se uma cientista da

    rea de exatas tem um tubo de ensaio na

    mo, o menino do carrinho porta um skate,

    o garoto claro representa um executivo de

    gravata e mala de viagem e o garoto ne-

    gro, que no tinha nada na mo a anunciar

    seu futuro, tornou-se um frentista de pos-

    to de gasolina envergando um macaco

    branco e um regador, na posio de quem

    estava pronto para completar a gua do

    motor de um carro. Sem querer

    desqualificar nenhuma profisso, fica evi-

    dente que a mensagem contida no texto

    no-verbal nega ao negro a possibilidade

    de mobilidade social. Essa publicidade,

    que teria um impacto muito maior para o

    leitor se pudesse ser vista (j se disse que

    uma foto vale por mil palavras!), , na

    minha opinio, um exemplo que nenhuma

    pessoa poderia deixar de considerar racis-

    ta, mesmo aquelas que defendem e acredi-

    tam que o Brasil o pas da democracia

    racial. Mas ainda assim me pergunto: ser

    que com as viseiras que o racismo cordial

    e no assumido coloca no brasileiro a lei-

    tura que fao dessa publicidade to trans-

    parente assim para todos?

    Recordo-me que quando foram veicu-

    ladas as duas peas publicitrias da

    Benetton, que suscitaram polmica no

    meio negro a da me negra amamentan-

    do a criana branca e a das duas crianas,

    uma loira de cachos e a outra negra de

    penteado de chifres no alto da cabea , o

    que era para muitos de ns mais do que

    bvio no foi interpretado com tanta cla-

    reza nem mesmo no nosso meio universi-

    trio. Tive, com colegas meus da ECA,

    algumas conversas reveladoras de que eles

    no viam nem sentiam como eu o conte-

    do racista existente naquelas imagens.

    Alguns viam a beleza plstica do seio negro

    amamentando a criana branca, salienta-

    vam a beleza do jogo de cores em branco

    preto e vermelho, mas no se preocupa-

    vam com aqueles signos que, num pas de

    passado escravocrata, tornavam-se sm-

    bolos da submisso e do uso da escrava

    negra pela senhora branca. Com relao

    ao outro anncio citado, que foi, tambm,

    veiculado em outdoors, surgiu, alm de

    polmica e controvrsias, uma reao mais

    efetiva de algumas entidades ligadas ao

    Movimento Negro, que interpelaram ju-

    dicialmente a famosa griffe italiana. Por

    ter escrito artigo sobre o assunto e pelas

    relaes acadmicas que mantenho com a

    questo dos afro-descendentes e a comu-

    nicao, fui convidada a depor no momen-

    to em que o processo estava sendo instru-

    do (Couceiro de Lima, 1995). Durante o

    longo depoimento que prestei a uma jo-

    vem promotora, que se mostrou muito

    atenta e sensvel s questes de discrimi-

    nao e racismo, fui informada, por ela

    mesma, que o representante da agncia de

    publicidade que mantinha, na ocasio, a

    conta da Benetton alegou em seu depoi-

    mento que os chifrinhos no cabelo da cri-

    ana negra do referido anncio eram, na

    verdade, um penteado muito usado em

    tribos africanas e que em momento algum

    sugeriam associao com o diabo. Ora, no

    imaginrio cristo, a associao entre chi-

    fres e o diabo e cachos loiros e anjos bar-

    rocos por demais familiar. Os chifres

    remetem ao diabo de um modo muito mais

    evidente do que a eventualidade, se fosse

    verdadeira, da existncia de penteado nes-

    se estilo em tribos africanas. Apesar dis-

    so, ainda ouvi, de pessoas do nosso meio

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    universitrio, que apesar das insinuaes

    contidas na mensagem a imagem da cri-

    ana negra tinha um olhar mais angelical

    do que a da criana branca, cuja expresso

    era mais maliciosa! Como se pode perce-

    ber nada suficientemente bvio e trans-

    parente num pas cuja identidade est pro-

    funda e enraizadamente marcada pela ide-

    ologia da democracia racial. O precon-

    ceito de ter preconceito parte to ntima

    do nosso ser, talvez muito mais do que

    possamos imaginar e, certamente, de um

    modo que no permite que a maioria das

    pessoas tome dele conscincia.

    Para no ficarmos apenas no terreno

    da propaganda gostaria de citar apenas um

    exemplo, este relativo a um artigo da im-

    prensa. Em julho de 1995 um dos maiores

    jornais de So Paulo publicou, em matria

    de primeira pgina, artigo sobre projetos

    em tramitao no Congresso Nacional e

    que foram considerados polmicos pelo

    jornalista autor da matria que a eles se

    referiu do seguinte modo: [...] so de

    minorias e etnias que querem imagens

    politicamente corretas, evanglicos que

    pretendem banir a nudez e nacionalistas

    que tentam impor cotas para a produo

    nacional. Estavam entre esses projetos o

    da senadora Benedita da Silva que prev a

    participao de 40% de artistas e profissio-

    nais negros nas produes televisivas.

    Depois de reproduzir declaraes da se-

    nadora sobre o projeto em questo, o jor-

    nalista adverte: quem espera que isso

    [participao de 40% de negros na televi-

    so] multiplique vinhetas da mulata

    globeleza no carnaval corre risco em ou-

    tra frente: a nudez indecorosa e cenas de

    sexo podem ser vetadas segundo outro

    projeto da Cmara. O teor da matria,

    apesar de pretender ser srio, na verdade

    colocou, dentro do rtulo de polmico,

    projetos srios para uma coletividade,

    outros de cunho mais particularista e ou-

    tros, ainda, sem nenhuma importncia;

    juntou todos no mesmo caldeiro e, ao

    destacar o projeto da senadora Benedita

    Advogados

    brasileiros do

    sc. XIX. Foto

    de Pierre Verger

  • 64 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 2 ) : 5 6 - 6 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7

    da Silva, interpretou o mesmo do jeiti-

    nho brasileiro. Bom seria se ter mais

    negros na televiso fosse ter mais mulatas

    sem roupa! Afinal, bom mesmo, no pas

    do carnaval, a mulata que, como se v,

    continua sendo a tal!

    A questo da representao do negro

    na mdia impressa foi, mais recentemen-

    te, abordada em dissertao de mestrado,

    defendida na ECA (Ferreira, 1993). Tam-

    bm a relao imprensa-racismo foi ob-

    jeto de dissertao recente na mesma

    escola (Conceio, 1996). O exemplo

    acima serve para demonstrar que, mes-

    mo policiada pelos manuais de redao,

    a grande imprensa comete deslizes e es-

    correga no preconceito, aquele sutil, que

    no permite protesto, pois sua manifes-

    tao to escondida que nem se pode

    provar que exista. Explcito ou implci-

    to, os exemplos que poderiam ser citados

    certamente extrapolariam os limites de

    um artigo e so repetitivos de uma situa-

    o constante que projeta para os dom-

    nios da mdia a ambigidade que permeia

    as relaes raciais no Brasil. Admitirmos

    a existncia dessa ambigidade no sig-

    nifica que tenhamos dvida da existn-

    cia do racismo no cotidiano da nossa

    sociedade mas, sim, que o mito da demo-

    cracia racial ainda impede as pessoas de

    reconhec-lo, seja no cotidiano de suas

    vidas, seja na fico produzida pela

    mdia. Jornalistas, como os demais pro-

    fissionais da comunicao e, certamente,

    a maior parte de profissionais com nvel

    universitrio so socializados de modo a

    absorver, acreditar e defender a idia da

    democracia racial. Assim sendo, as ma-

    nifestaes de preconceito e racismo que

    transmitem ao exercer suas profisses e

    no cotidiano da suas vidas refletem um

    pensamento e uma ideologia forjados

    exatamente por mecanismos sutis de

    inculcamento de preconceitos que agem

    eficientemente na produo do racismo

    brasileira. A formao universitria se

    exime de discutir a questo nas salas de

    aula, o que contribui para que os alunos,

    futuros profissionais, atentem para a exis-

    tncia desse racismo que sintomaticamen-

    te foi chamado de cordial pela prpria

    grande imprensa. Cordial porque rara-

    mente agride abertamente; porque per-

    mite brincadeiras e piadas de gosto, no

    mnimo, duvidoso; porque estabelece re-

    laes ambguas que possibilitam que os

    atingidos fiquem na dvida se realmente

    esto sendo vtimas de preconceito ou

    no; e permite que, muitas vezes, sejam,

    eles prprios, chamados de racistas ao

    contrrio, ou mesmo de complexados,

    termo freqentemente usado para desig-

    nar o negro que denuncia aes implci-

    tas de preconceito.

    O Grupo de Polticas Pblicas, reuni-

    do pela Pr-Reitoria de Extenso e Cultu-

    ra da Universidade de So Paulo, no ano

    de 1995, para elaborar diagnstico e su-

    gestes para questes relativas promo-

    o da comunidade negra, teve como tema

    de um de seus subgrupos a discusso da

    imagem do negro na mdia. Como mem-

    bro desse subgrupo sugeri Universidade

    de So Paulo inserir nos currculos de suas

    unidades a discusso de questes ligadas

    ao racismo e discriminao na socieda-

    de brasileira. Tal insero poderia se dar

    atravs de palestras, cursos ou mesmo de

    matrias curriculares que propusessem a

    abordagem desse tema. Essa medida de-

    veria atingir, no s, mas principalmente,

    a Escola de Comunicaes e Artes, uma

    vez que dela saem e sairo os profissio-

    nais da comunicao deste pas.

    A identidade desses profissionais,

    construda e forjada nos parmetros desse

    racismo brasileira, devolve sociedade

    mensagens de um racismo e preconceito

    tambm brasileira. Por isso ele no

    admitido nem por quem o constri, nem

    por quem o consome. Esto entre esses

    consumidores de mensagens no apenas

    os brancos, mas tambm os negros; no

    apenas os adultos, mas tambm as crian-

    as brancas que se socializam com uma

    imagem negativa do negro; as crianas

    negras que constroem sua identidade

    modelada numa imagem totalmente dife-

    rente daquela que elas vem no espelho;

    da mulher negra que se v aprisionada ao

    estigma da mulata que a tal e que cer-

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 2 ) : 5 6 - 6 5 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 65

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    Revista Veja, 5 de novembro de 1986.

    Folha de S. Paulo, 10 de julho de 1995.

    tamente no ela, mulher comum que

    estuda, trabalha, ama e sofre como todas

    as outras mulheres brancas! Sabemos que

    a formao da identidade um processo

    de construo no qual, em sociedades

    complexas, atuam mltiplos agentes e

    entre eles a comunicao tem uma presen-

    a importante. A existncia de uma iden-

    tidade negra deformada e estereotipada

    presente em diversos produtos da comu-

    nicao social responsvel pela constru-

    o de novas identidades que refletem

    aquela. Apesar de o movimento negro, dos

    estudiosos negros e brancos demonstra-

    rem preocupao com essa questo, a so-

    ciedade e a academia, de um modo geral,

    parecem ter reservado, at agora, pouca

    ateno a ela. Mudar a sociedade, assu-

    mir o racismo, discuti-lo para enfim

    exorciz-lo, seria uma forma de mudar a

    imagem que a comunicao transmite dos

    afro-descendentes. Mas tambm mudar

    a mdia, introduzir imagens mais

    diversificadas e reais do negro e sua vida,

    realizar programas que debatam e divul-

    guem discusses sobre a questo racial e,

    sobretudo, tratar o afro-descendente com

    dignidade e respeito poderia, tambm, ser

    um caminho para mudar essa sociedade.

    Quem comear primeiro?