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UMA EXPERIÊNCIA DE PROJETO INTERDISCIPLINAR DE LEITURA: RELATO DE CASO Dirce Colaço Geraldi Durval Cordas Suzana Carpigiani de Lara Relato de Experiência Resumo: O presente artigo tem como objetivo relatar a experiência de desenvolvimento do projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame, de São Paulo. O artigo foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e relato de experiência dos autores. A reflexão sobre o percurso e os resultados obtidos aponta ganhos de aprendizagem por parte dos educadores em sua busca por desenvolver projetos cada vez menos presos aos limites do currículo escolar. Palavras-chave: Leitura. Interdisciplinaridade. Projetos educacionais. Inclusão escolar. 1 Problema Como se desenvolveu o projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame? 2 Objetivo Relatar a experiência de desenvolvimento do projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame. 3 Metodologia Para a elaboração do presente artigo os autores fizeram uso de pesquisa bibliográfica e relato de caso. Com a pesquisa bibliográfica buscou-se salientar os conceitos-chave em que se baseia a prática educativa desenvolvida pelos autores no Ensino Fundamental II do Colégio Notre Dame, instituição paulistana de ensino particular pertencente à Rede Azul de Educação, fundada e mantida pela Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Castres. O relato de caso baseou-se em análise documental e na retomada de dados e informações levantadas por observação participativa. Os autores são professores de História, Produção de Texto e Língua Portuguesa, três componentes curriculares envolvidos no projeto de leitura de paradidático focado no relato. A obra, lida pelos alunos da única turma de 8º ano do Ensino Fundamental II do colégio, foi Cinderela chinesa (MAH, 2006). O projeto se

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UMA EXPERIÊNCIA DE PROJETO INTERDISCIPLINAR DE LEITURA: RELATO DE CASO

Dirce Colaço Geraldi Durval Cordas Suzana Carpigiani de Lara Relato de Experiência Resumo: O presente artigo tem como objetivo relatar a experiência de desenvolvimento do projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame, de São Paulo. O artigo foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e relato de experiência dos autores. A reflexão sobre o percurso e os resultados obtidos aponta ganhos de aprendizagem por parte dos educadores em sua busca por desenvolver projetos cada vez menos presos aos limites do currículo escolar. Palavras-chave: Leitura. Interdisciplinaridade. Projetos educacionais. Inclusão escolar. 1 Problema

Como se desenvolveu o projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame?

2 Objetivo

Relatar a experiência de desenvolvimento do projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, de Adeline Yen Mah, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame.

3 Metodologia

Para a elaboração do presente artigo os autores fizeram uso de pesquisa bibliográfica e relato de caso.

Com a pesquisa bibliográfica buscou-se salientar os conceitos-chave em que se baseia a prática educativa desenvolvida pelos autores no Ensino Fundamental II do Colégio Notre Dame, instituição paulistana de ensino particular pertencente à Rede Azul de Educação, fundada e mantida pela Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Castres.

O relato de caso baseou-se em análise documental e na retomada de dados e informações levantadas por observação participativa. Os autores são professores de História, Produção de Texto e Língua Portuguesa, três componentes curriculares envolvidos no projeto de leitura de paradidático focado no relato. A obra, lida pelos alunos da única turma de 8º ano do Ensino Fundamental II do colégio, foi Cinderela chinesa (MAH, 2006). O projeto se

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desenvolveu entre setembro e outubro de 2014, com a participação de 28 alunos e quatro professores (o quarto componente curricular foi Língua Espanhola).

4 Esboço de fundamentação teórica

Os autores do presente artigo são professores de uma mesma instituição de ensino, na qual têm-se esforçado na condução de projetos interdisciplinares e na reflexão sobre seus pressupostos e resultados. Aqui serão apresentados brevemente os fundamentos teóricos dessa ação e reflexão.

A interdisciplinaridade se caracteriza pela tentativa de integrar diferentes áreas do conhecimento num trabalho de troca e cooperação, aberto ao diálogo e ao planejamento, visando romper a lógica de rigidez e isolamento das diversas disciplinas (PIRES, 1998). Difere e representa um avanço em relação à multidisciplinaridade (trabalho conjunto das disciplinas, cada uma com seus objetivos próprios) e se posiciona como meio-termo em relação à transdisciplinaridade, em que nem mesmo se distinguem os limites entre as várias áreas (NOGUEIRA, 2001).

Para a construção de estratégias consistentes com um caminho nessa direção, a modalidade de trabalho por projetos tem-se mostrado adequada, na medida em que a organização dos saberes e dos fazeres em torno de um ou mais objetivos despertados por uma realidade sugestiva descola o empenho de docentes e alunos do cumprimento por vezes mecanizado dos currículos (cf. CARDOSO et al., 2008). O trabalho por projetos se caracteriza como uma das abordagens de ensino que podem oferecer “aos educandos uma visão mais ampla e global dos fenômenos estudados, [...] com a contribuição das diferentes disciplinas para uma perspectiva globalizante” (SILVA, 1999, p. 68 apud ALMEIDA, 2012, p. 158).

Como critério de estabelecimento de objetivos para os projetos interdisciplinares e como norte da avaliação de seu cumprimento, a perspectiva de que tais projetos contribuam para a construção de habilidades e competências (cf. PERRENOUD, 1999) do aluno apresenta-se como conveniente. A competência é entendida como conjunto de qualidades desenvolvidas pela pessoa mediante a interação entre uma estrutura de conhecimento bem organizada e a experiência prática, resultando na capacidade de “agir com criatividade diante de situações-problema inusitadas” (ROVAI, 2010, p. 18).

Em projetos interdisciplinares que trabalham com a leitura de obras paradidáticas surge a necessidade de lidar com valores universais e particulares da comunidade em que a escola está inserida. “Se quisermos analisar o que se passa num grupo, [...] é preciso admitir como hipótese prévia que o sentido do que se passa aqui e agora nesse grupo liga-se ao conjunto da contextura institucional de nossa sociedade” (LAPASSADE, 1983, p. 14 apud ALMEIDA, 2008, p. 71-72). Assim, questões como a da violência simbólica e do bullying são provocadoras e representativas de experiências vividas no cotidiano escolar e para além dele.

Os problemas da violência e do bullying, que geram movimentos de opressão e isolamento, remetem ao conceito de inclusão, que abrange diferentes dimensões no contexto escolar. Não se trata, de fato, tão somente de incluir aquele que por qualquer razão esteja fora da escola, inclusive por dificuldades de aprendizagem ou necessidades especiais, mas também aquele que frequenta a

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escola sem participar do que acontece em sala de aula, “assumindo a condição de subalterno” (ALMEIDA, 2005, p. 68).

Enfim, se a instituição de ensino se abre ao sujeito excluído, num movimento consciente e integrado às práticas cotidianas de ensino e administração, pode-se falar de uma instituição que se apresenta como escola acolhedora (cf. LICKONA, 1991 apud MARQUES, 1998).

Nesses conceitos, retomados em poucas palavras, residem as principais referências para a experiência relatada nestas páginas.

5 Resultados obtidos

Apresenta-se aqui um projeto interdisciplinar de leitura de obra paradidática a partir de três recortes: seu roteiro; as ideias orientadoras da escolha de uma leitura paradidática; a apresentação de seu produto final.

Com esses três passos pretende-se chamar a atenção para a lógica que se procura seguir em todos os projetos desse tipo realizados no segmento de Ensino Fundamental II do Colégio Notre Dame.

5.1 Análise do roteiro de leitura

No Colégio, os roteiros dos projetos de leitura têm seguido desde 2012 uma mesma estrutura, aos poucos enriquecida, mas não alterada, para favorecer a identificação de cada exigência do projeto. Serão aqui detalhados os componentes de um roteiro básico, tomando como referência o do projeto de leitura de Cinderela chinesa (MAH, 2006).

O roteiro é encabeçado pelos logotipos do Colégio e das Escolas Associadas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), selo que a escola possui desde 2010. Logo abaixo aparecem os dizeres “roteiro de trabalho” (que em 2015 passam a ser “roteiro de leitura”) e a identificação de trimestre, turma, componentes curriculares e dados bibliográficos da obra.

Um elemento introduzido em 2014, a partir de reflexões sobre o trabalho interdisciplinar (cf. GARCIA, 2014; FAZENDA, 2011), é o tema norteador, que tende a unificar a ação de todos os componentes curriculares em sua orientação aos alunos e na condução e supervisão das atividades do projeto. Para Cinderela chinesa, este foi o tema definido:

Gata borralheira em debate Neste livro autobiográfico a autora nos conta como buscou, tal qual no clássico conto de fadas, uma chance de escapar ao seu destino de criança renegada. A solução, para ela, não viria na forma de sapatinhos de cristal ou fadas-madrinhas, mas sim nos estudos e no amor. Na China de meados do século passado, sua vida torna-se um exemplo da necessidade de não abandonarmos o que somos e o que queremos ser, nunca abdicando de nossos sonhos e desejos. Qual é a nossa atitude perante os renegados que nos cercam? Combatemos ou contribuímos para o seu isolamento?

No texto aparecem as palavras-chave propostas para a reflexão sobre o

livro: “renegada”, “abdicando” e “isolamento”, sublinhando a opressão vivida pela protagonista; “estudos”, “amor”, “sonhos”, “desejos”, como possibilidades de saída

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dessa condição. A relação com os excluídos no cotidiano escolar é explícita, e a formulação de duas perguntas finalizando o texto busca chamar a atenção de cada aluno para o que este tem a ver direta ou indireta com o problema.

O próximo elemento do roteiro são os objetivos:

1. Ler e interpretar uma obra de memórias autobiográficas. 2. Conhecer melhor o mundo e um pouco mais de si mesmo. 3. Despertar o hábito da leitura e a consciência de que, por meio da

leitura, é possível tomar consciência das próprias necessidades e das dos outros, promovendo a transformação pessoal e do mundo.

4. Conhecer o contexto histórico que permeia essa leitura. 5. Aprimorar a linguagem oral e escrita em espanhol. 6. Desenvolver as habilidades ligadas ao debate.

Nos roteiros elaborados a partir do segundo trimestre de 2015,

reorganizaram-se os objetivos, explicitando que expressam intenções pedagógicas muito precisas. Assim, essa seção foi renomeada como “Por que e para que fazemos” e subdividida em “justificativa”, “competências a desenvolver” e “habilidades a adquirir/aprimorar” (cf. PERRENOUD, 1999; ROVAI, 2010).

Esse ajuste alinha os roteiros a uma perspectiva de trabalho que aos poucos vai-se instaurando no Colégio, pela qual, por um lado, se compreende que as metas do trabalho educativo não se restringem às dimensões factual e conceitual, mas dizem respeito também aos procedimentos e às atitudes, e, por outro lado, se considera a busca da aquisição ou aprimoramento de competências e habilidades um caminho mais coerente com a preocupação com o desenvolvimento integral do educando (cf. SILVA, 1999 apud ALMEIDA, 2012).

Embora menos explícita, já era essa a visão norteadora da elaboração dos objetivos para a leitura de Cinderela chinesa.

Em seguida, o roteiro expõe, na seção “Execução”, as ações solicitadas dos alunos individual e coletivamente:

1. O trabalho será feito em grupos, previamente determinados para o

trimestre. 2. A montagem do trabalho se dará da seguinte maneira: Parte 1: individual Fazer a leitura e o registro das passagens que mais se destacam no texto. Os registros individuais serão usados como consulta na avaliação de verificação em Língua Portuguesa.

Parte 2: em grupo a) Montar um esquema ou linha de tempo apresentando os principais

eventos que aconteceram na China no período entre 1937 (nascimento da autora) e 1952 (saída da autora de Hong Kong para Londres).

b) Encenar uma parte do livro, com falas em espanhol. c) Debater questões implicadas no conto da Cinderela e nessa sua

retomada no livro Cinderela chinesa: discriminação e preconceito; egoísmo que leva à negligência da necessidade do outro; superficialidade e futilidade; abandono (familiar e social), etc. O debate será organizado pela turma, que preparará uma pauta comum e, nos grupos, elaborará questões e estratégias de resposta, elegendo um membro de cada grupo como debatedor (porta-voz, assessorado pelos

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demais membros do grupo antes e durante o debate). As discussões poderão ter como plateia uma outra classe do colégio.

Deseja-se, com o roteiro de leitura e as orientações dos professores, que o

aluno tenha à sua frente as diferentes dimensões do trabalho de aprofundamento inspirado no livro, para assumi-las como protagonista do seu processo educativo.

Dessa forma, procura-se frisar que o procedimento de leitura tem uma primeira dimensão individual e pessoal, que exigirá do aluno uma forma de registro (resumos, anotações pessoais1) e terá como instrumento de controle uma prova de verificação objetiva.

Uma segunda parte do trabalho é coletiva e resulta em produtos parciais e em um produto final. Os parciais visam habilidades que se configuram necessárias para a compreensão do contexto da obra lida (como, no caso específico, as implicadas na confecção da linha de tempo) ou que se desenvolvem tirando proveito da obra (como as ligadas à apropriação de uma língua estrangeira, a espanhola no exemplo dado).

O produto final tenta ser uma síntese do percurso, oferecendo-se como espaço para a resposta aos questionamentos suscitados pelo tema norteador. Para finalizar Cinderela chinesa, optou-se pelo debate, tendo em vista o perfil da turma a que se propôs a leitura.

Na seção seguinte do roteiro apresenta-se o peso de cada componente sobre a avaliação dos produtos do projeto. A nota final é a média dos conceitos dados por cada professor, ponderada segundo o peso previamente definido para cada componente; trata-se de uma nota individual, pontuada de 0 a 10:

1. Verificação (Língua Portuguesa) ................................. = até 4,0 pontos 2. Linha do tempo (História) ............................................ = até 2,0 pontos 3. Encenação (Espanhol) ................................................ = até 2,0 pontos 4. Debate (Produção de Texto) ....................................... = até 2,0 pontos

O emprego da média das avaliações é um modo precário de contornar o

fato de que, embora tendendo como perspectiva para a interdisciplinaridade, o trabalho se assenta na configuração escolar dada pelo modelo de currículo e organização de tempo e conteúdos vigente. Sendo assim, acaba por ficar a cargo do professor a condução do projeto de modo a valorizar a integração dos diversos componentes curriculares, uma vez que, no cotidiano, o tempo e o espaço para o acompanhamento dos alunos durante o processo é fragmentado e segmentado.

No projeto sobre Cinderela chinesa, embora a nota sobre o produto “debate” tenha ficado sob a responsabilidade do professor de Produção de Texto, esse conceito foi obtido por consenso entre três professores, os autores deste artigo, que reorganizaram seus horários, com o apoio da coordenação pedagógica do Colégio, para acompanhar o desenvolvimento da atividade.

O penúltimo item do roteiro (o último é a identificação dos professores participantes) comunica os prazos do projeto:

Avaliação de verificação em Língua Portuguesa no dia 7/10/14

1 Paralelamente aos projetos de leitura, é solicitada de todos os alunos do Ensino Fundamental II

e do Ensino Médio a manutenção de um diário de leitura (cf. MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2007) para registros pessoais sobre os livros paradidáticos lidos. Essa atividade é acompanhada pelo professor de Produção de Texto.

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Entrega da linha do tempo no dia 8/10/14 Debate no dia 8/10/14 Encenação nos dias 22 e 23/10/14

Essas datas delimitam o fim dos processos de execução. Cada professor

dedica tempo em aula para a preparação dos produtos, de modo a dar orientação e suporte aos alunos. A cada ano, nos momentos de planejamento (nas semanas iniciais e finais do ano) e nas reuniões ordinárias do corpo docente (semanais), frisa-se a necessidade de dedicar espaços e tempo à execução dos projetos, integrando ao máximo o trabalho de leitura dos paradidáticos aos objetivos e conteúdos próprios de cada componente.

Com isso, procura-se combater um modo equivocado de conduzir o trabalho, que tornaria os projetos ocasiões paralelas ao cotidiano de ensino e aprendizagem, acabando por inutilizá-los como ferramenta pedagógica.

5.2 A escolha de Cinderela Chinesa

A turma a que se propôs a leitura de Cinderela chinesa era uma sala de 8º ano, a única do Colégio nessa série. É uma turma interessada, curiosa, composta por alunos que aceitam e gostam de desafios, mas também heterogênea e tendente à intolerância perante o diferente.

Nesse grupo havia alunos com dificuldades acentuadas de aprendizagem ou quadro psicossocial comprometido (integrados à turma na perspectiva inclusiva adotada pelo Colégio). Um deles, aqui nomeado Antônio, precisava de constante intervenção dos professores para se ajustar adequadamente às aulas e não sofrer com a intolerância por parte dos colegas.

A sala foi posta a par do problema e chamada a colaborar com o aluno em questão. No começo aceitaram, mas com o decorrer do tempo foram perdendo a paciência com ele, a ponto de isolá-lo em todas as atividades propostas em sala. A coordenação e os professores adotaram várias estratégias2 para enfrentar o problema, mas os resultados foram pequenos.

Não se pode, porém, falar apenas do aluno oprimido; é preciso citar também a figura do aluno agressor. Um dos integrantes da turma com esse perfil, nomeado Júlio para fins deste relato, não perdia oportunidades para provocar e constranger seu colega, incisivamente e, por vezes, de modo sorrateiro, contaminando a classe, que se tornava espectadora e coautora das agressões. Percebendo e investigando essas atitudes, professores e coordenação vieram a descobrir junto à família que Júlio também era, por sua vez, vítima de abusos semelhantes, em casa, por parte de um irmão mais velho — outra situação recorrente em episódios de bullying.

Resolveu-se, então, por adotar a leitura de Cinderela chinesa e usar do projeto de leitura como oportunidade para estabelecer as discussões que se faziam necessárias naquele momento.

2 No final de 2014, realizou-se também o projeto “Aprendizagem solidária”, visando trabalhar os

problemas de relacionamento dessa turma, que provinham, segundo a avaliação do corpo docente e da coordenação do segmento, de um olhar que não via no outro alguém que, nas suas diferenças, traz em comum as mesmas necessidades e desejos básicos. Os alunos foram convidados a se preparar e passar um dia com crianças carentes atendidas numa creche ligada à Rede de educação à qual pertence o Colégio.

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O livro é de leitura simples e escrito com muita sensibilidade. No decorrer da narrativa, a autora apresenta os familiares e as suas questões no dia a dia até com certo distanciamento. Adeline Yen Mah aborda o bullying, a intolerância e a discriminação sofrida por ela e ainda enfoca o modo como superou tudo isso: estudo, conhecimento, paciência e perseverança, os recursos de que dispunha para conquistar a liberdade.

O livro mostrou-se também indicado para a situação por apontar a escola como lugar acolhedor, que pode mostrar uma saída, como aconteceu com a personagem principal desse relato autobiográfico. Para ela, o espaço escolar era o único lugar onde era aceita, onde reconheciam suas qualidades e ela podia mostrar quem realmente era, sem sofrer humilhações.

5.3 Execução do produto “debate”

O debate foi feito em sala de aula, com os alunos sentados em semicírculo, para que todos pudessem se ver e dialogar. Previamente, foram formados grupos que deveriam ter um líder que apresentaria as conclusões e responderia em nome do grupo.

Foram convidados, para assistir, os alunos do 7º ano, que nunca tinham participado de um debate e também não conheciam o livro. Para que o 7º ano pudesse entender as discussões, foi solicitado que antes de começar o debate propriamente dito os alunos do 8º contassem um pouco do enredo da obra.

Os professores foram os mediadores e dirigiram as questões, de forma a que os alunos percebessem que na sala deles ocorriam o bullying e a intolerância com o colega, e que a escola, nessa circunstância, diferentemente do livro, não estava servindo como um lugar acolhedor.

Conforme os assuntos iam sendo abordados, os alunos que quisessem participar levantavam a mão e eram chamados ordenadamente.

Uma das surpresas do dia se deu quando os alunos do 7º ano começaram a participar, emitindo opiniões muito pertinentes e questionando os maiores sobre seus posicionamentos. Nesse contexto, o aluno José (nome fictício), do 7º ano, pediu a palavra e deu seu depoimento, dizendo que sofria perseguição de sua madrasta, assim como a personagem do livro. Ele contou que sua mãe falecera havia seis meses (único fato já sabido) e que por isso foi obrigado a ir morar com seu pai, que se casara novamente e tinha duas filhas. José explicou que sua madrasta não o aceitava, fazendo com que em todo o tempo em que estivesse em casa ficasse somente em seu quarto, não devendo ter contato com suas irmãs. Contou também que sua madrasta ia ao colégio buscar suas irmãs, mas fingia que não o via e ia embora, o que o obrigava a ficar até o fim da tarde esperando que o pai viesse buscá-lo quando saísse do trabalho.

A intervenção dos professores, nesse momento, foi no sentido de observar que, assim como a personagem principal de Cinderela chinesa, ele também poderia fazer a escolha pelos estudos e pelos amigos do colégio.

Como José era novo na escola, esse episódio serviu para que os colegas o conhecessem melhor e o acolhessem. Percebeu-se também certa mudança em sua postura, pois, antes dessa manifestação, ele era um pouco agressivo e deslocado, mas a partir daí ficou mais solícito e retomou os estudos, que antes não lhe importavam muito.

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Antônio e Júlio, agredido e agressor respectivamente, representaram a segunda surpresa do debate, mesmo diante dos objetivos explícitos do projeto. Se era esperado que na sala houvesse uma mudança de percepção ou atitude, a reação tão imediata desses dois alunos não era um resultado óbvio.

De fato, no decorrer do debate Antônio explicitou seu domínio da leitura, que visivelmente se alimentava também de sua identificação pessoal com a protagonista do livro. Sua abordagem não se limitava ao conhecimento do enredo, mas atingia também o contexto histórico e social da obra.

Júlio, se não participou tão brilhantemente da discussão, do ponto de vista da assimilação da obra, conseguiu expressar seus sentimentos e dar-se conta da semelhança de seus sofrimentos com os vividos pela autora-protagonista do relato.

Ao final do debate, vários alunos das duas séries pediram que esse tipo de trabalho ocorresse mais vezes. 6 Conclusão

Pretendeu-se com este artigo relatar a experiência de desenvolvimento do projeto interdisciplinar de leitura da obra Cinderela chinesa, realizado com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental no Colégio Notre Dame.

Para tanto, procurou-se identificar as principais bases teóricas subjacentes à elaboração e condução desse projeto, bem como descrever alguns de seus elementos.

Considerando o percurso apontado à luz dos conceitos que orientam a ação dos autores deste artigo, sujeitos da experiência relatada, convém salientar conquistas, problemas e perspectivas de continuação do trabalho.

Em relação à interdisciplinaridade que se pretende praticar, observa-se que se trata de uma meta que os autores consideram ainda por atingir. Na experiência relatada, há indícios de conquistas nesse sentido, como a manutenção do foco sobre o tema norteador, que transcendia claramente os objetivos específicos dos componentes curriculares participantes. Mas também se podem ver limitações, em especial as relacionadas à segmentação da avaliação.

Quanto ao formato do produto do projeto, um problema identificado e objeto de maior atenção a partir daí é a tendência de o aluno tímido ficar ainda mais retraído numa atividade como essa. Nesse sentido, o trabalho por projetos e tendencialmente interdisciplinar pode colaborar para que cada aluno, com as suas características e as dificuldades que deve procurar transpor, seja olhado e apoiado, tendo também a oportunidade de uma valorização de suas diferentes habilidades e competências.

A equipe de docentes participantes e a instituição consideram esta modalidade de trabalho e reflexão de grande relevância para a formação dos educadores e da própria escola como espaço coletivo de aprendizagem.

Referências bibliográficas ALMEIDA, Júlio Gomes. Como se faz escola aberta?: experiência de abertura de uma escola na periferia de São Paulo. São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção Questões Fundamentais da Educação.)

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ALMEIDA, Júlio Gomes. Práticas institucionais e formação de educadores: o universo da escola como ambiente de aprendizagem coletiva. Notandum, ESDC/ CEMOrOC-Feusp/IJI-Universidade do Porto, n. 17, jul.-dez. 2008. ALMEIDA, Júlio Gomes. Interdisciplinaridade: significando o trabalho escolar em contextos metropolitanos. Contrapontos, v. 12, n. 2, p. 154-161, maio-ago. 2012. CARDOSO, Fernanda Serpa et al. Interdisciplinaridade: fatos a considerar. Revista Brasileira de Ensino de Ciência e Tecnologia, v. 1, n. 1, p. 22-37, jan./abr. 2008. FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Desafios e perspectivas do trabalho interdisciplinar no Ensino Fundamental: contribuições das pesquisas sobre interdisciplinaridade no Brasil: o reconhecimento de um percurso. Interdisciplinaridade, São Paulo, v.1, n. 1, p. 10-23, out. 2011. GARCIA, Joe. Interdisciplinaridade: concepções, princípios e práticas pedagógicas. In: XVII SIMPÓSIO DE EDUCAÇÃO DA REDE AZUL. Educar numa sociedade plural, São Paulo, 24-25 jan. 2014. (Conferência.) LAPASSADE, George. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. LICKONA, Thomas. Education for Character: How our Schools can Teach Respect and Responsability. New York: Bantam Books, 1991. MACHADO, Anna Rachel; LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lília Santos. Trabalhos de pesquisa: diários de leitura para a revisão bibliográfica. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. MAH, Adeline Yen. Cinderela chinesa: a história secreta de uma filha renegada. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MARQUES, Ramiro. Educar para valores. 1998. Disponível em: <http://www.ese.ipsantarem.pt/usr/ramiro/docs/etica_pedagogia/EDUCAR%20EM%20VALORES.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015. NOGUEIRA, Nilbo Ribeiro. Pedagogia dos projetos: uma jornada interdisciplinar rumo ao desenvolvimento das múltiplas inteligências. São Paulo: Érica, 2001. PERRENOUD, Philippe. Construir competências é virar as costas aos saberes? Pátio: Revista Pedagógica, v. 11, p. 15-19, nov. 1999. PIRES, Marília Freitas de Campos. Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no ensino. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, n. 2, p. 173-182, fev. 1998. ROVAI, Esméria (Org.). Competência e competências: contribuição crítica ao debate. São Paulo: Cortez, 2010.

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SILVA, Jair Militão da. O docente no ensino básico: novas demandas e competências. Jornal da USP, São Paulo, p. 2, 1998.