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UMA EXPERIÊNCIA DE PLANTÃO PSICOLÓGICO À POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO: ARTICULANDO COMPREENSÕES* Rodrigo Cíannangelo de Oliveira** Henríette Tognettí Penha Morato APRESENTAÇÃO DO TEMA tempos os serviços públicos em saúde mental brasi- leiros mostram-se escassos e precários. Mesmo os planos de saúde que oferecem cobertura para atendimentos psicoló- gicos ainda não têm grande abrangêncla. Em geral, apenas os mais caros permitem esse benefício. Desde sua fundação, em 1999, o LEFE-USP (Labora- tório de estudos e prática em Psicologia fenomenológica e existencial da USP) tem investigado e colocado em ação projetos de prática psicológica clínica em contexto insti- tucional que buscam se afirmar como alternativas efetivas para o abismo entre o fazer psicológico e a sociedade. Oferecendo atendimentos gratuitos aos sujeitos que se rela- cionam com essas instituições (funcionários e/ou usuários e seus respectivos familiares), esses projetos têrn buscado alargar a abrangência do acesso à atenção psicológica. O presente capítulo se vale de uma experiência de prática psicológica em instituição para realizar algumas considerações pertinentes a esse campo. Durante três anos, uma equipe de psicólogos e estagiários ligados ao LEFE- USP, da qual fazia parte o autor deste capítulo, ofereceu, a dois Batalhões da Polícia Militar do Estado de São Paulo, um serviço de plantão psicológico dirigido aos policiais e seus familiares. Para ilustrar as condições em que o projeto ocorreu, será apresentado um breve histórico. Posteriormente, algumas "Texto extraído de Oliveira, RG, 2005. "Pesquisador principal. "Orientadora da pesquisa. questões que surgiram no cotidiano dessa prática, ou que se expressaram em depoimentos dos usuários do serviço, serão objeto de reflexão no intuito de investigar outras possibilidades de compreensão para esse projeto de prática psicológica em instituição. HISTÓRICO DO PLANTÃO PSICOLÓGICO À POLÍCIA MILITAR Embora a equipe do LEFE tenha implantado serviços de plantão psicológico em dois Batalhões da Polícia Militar de São Paulo, esta exposição se restringirá a descrever a primeira dessas implantações. A configuração de um serviço de Psicologia em instituição tem certas caracterís- ticas que tornam cada projeto único, mas é possível dizer que o modo de compreensão envolvido pode ser expresso a partir de uma experiência particular. O contato entre o LEFE-USP e a Polícia Militar se iniciou no ano 2000, com um pedido dirigido pelo Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) da região em questão. Inicialmente, solicitava-se uma avaliação do nível de estresse da corporação. Nesse momento, a coordenação do LEFE constituiu uma equipe, que passou a refletir sobre algumas possibilidades de resposta ao pedido recebido. Algumas considerações se fazem pertinentes nesse ponto do percurso. Todos os projetos de prática psicológica em instituição empreendidos pelo LEFE se iniciaram por um pedido vindo da própria instituição. Os sujeitos que elaboram e encaminham esse tipo de pedidos geralmente exercem função ou cargo de comando, já que apenas nesse

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UMA EXPERIÊNCIA DE PLANTÃOPSICOLÓGICO À POLÍCIA MILITAR

DO ESTADO DE SÃO PAULO:ARTICULANDO COMPREENSÕES*

Rodrigo Cíannangelo de Oliveira** • Henríette Tognettí Penha Morato

APRESENTAÇÃO DO TEMA

Há tempos os serviços públicos em saúde mental brasi-leiros mostram-se escassos e precários. Mesmo os planos desaúde que oferecem cobertura para atendimentos psicoló-gicos ainda não têm grande abrangêncla. Em geral, apenasos mais caros permitem esse benefício.

Desde sua fundação, em 1999, o LEFE-USP (Labora-tório de estudos e prática em Psicologia fenomenológicae existencial da USP) tem investigado e colocado em açãoprojetos de prática psicológica clínica em contexto insti-tucional que buscam se afirmar como alternativas efetivaspara o abismo entre o fazer psicológico e a sociedade.Oferecendo atendimentos gratuitos aos sujeitos que se rela-cionam com essas instituições (funcionários e/ou usuáriose seus respectivos familiares), esses projetos têrn buscadoalargar a abrangência do acesso à atenção psicológica.

O presente capítulo se vale de uma experiência deprática psicológica em instituição para realizar algumasconsiderações pertinentes a esse campo. Durante três anos,uma equipe de psicólogos e estagiários ligados ao LEFE-USP, da qual fazia parte o autor deste capítulo, ofereceu, adois Batalhões da Polícia Militar do Estado de São Paulo,um serviço de plantão psicológico dirigido aos policiais eseus familiares.

Para ilustrar as condições em que o projeto ocorreu, seráapresentado um breve histórico. Posteriormente, algumas

"Texto extraído de Oliveira, RG, 2005."Pesquisador principal."Orientadora da pesquisa.

questões que surgiram no cotidiano dessa prática, ou quese expressaram em depoimentos dos usuários do serviço,serão objeto de reflexão no intuito de investigar outraspossibilidades de compreensão para esse projeto de práticapsicológica em instituição.

HISTÓRICO DO PLANTÃOPSICOLÓGICO À POLÍCIA MILITAR

Embora a equipe do LEFE tenha implantado serviçosde plantão psicológico em dois Batalhões da Polícia Militarde São Paulo, esta exposição se restringirá a descrever aprimeira dessas implantações. A configuração de umserviço de Psicologia em instituição tem certas caracterís-ticas que tornam cada projeto único, mas é possível dizerque o modo de compreensão envolvido pode ser expressoa partir de uma experiência particular.

O contato entre o LEFE-USP e a Polícia Militar seiniciou no ano 2000, com um pedido dirigido pelo Conseg(Conselho Comunitário de Segurança) da região em questão.Inicialmente, solicitava-se uma avaliação do nível de estresseda corporação. Nesse momento, a coordenação do LEFEconstituiu uma equipe, que passou a refletir sobre algumaspossibilidades de resposta ao pedido recebido.

Algumas considerações se fazem pertinentes nesse pontodo percurso. Todos os projetos de prática psicológica eminstituição já empreendidos pelo LEFE se iniciaram porum pedido vindo da própria instituição. Os sujeitos queelaboram e encaminham esse tipo de pedidos geralmenteexercem função ou cargo de comando, já que apenas nesse

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nível hierárquico pode-se ter a autonomia e a autoridadenecessárias para idealizar e efetivar projetos que alteremo cotidiano da instituição. Assim, é preciso considerar,antes de responder ao pedido, a impossibilidade de saberse os demais sujeitos institucionais estão implicados efeti-vamente nele.

De fato, como aponta Prilleltensky (1994), raramenteos psicólogos consideram, no trabalho com organiza-ções sociais, os conflitos gerados pela distribuição desi-gual do poder e pela hierarquia. Quando solicitados aintervir numa organização, costumam agir como se todosos participantes fossem apenas colaboradores em buscade um objetivo comum, não percebendo as contradiçõesentre seus interesses, metas e expectativas. Nesse sentido,efetivar, em uma organização social, o pedido de alguémque exerce função de comando sem dar atenção aos demais"pedidos" que possam ser expressos faz com que a práticapsicológica se coloque exclusivamente a serviço dos inte-resses do poder instituído.

Em direção semelhante, sugere Lévy (2001) que opedido efetivado pela organização social pode ter o sentidode uma "(...) metáfora do que não pode ser expresso" (p.23), ou seja, pode ocultar algo naquilo que explicita, e,portanto, precisa ser refletido.

Assim, o primeiro momento da prática psicológica eminstituição se constitui de um período de conhecimentomútuo entre os atores institucionais e a equipe de psicó-logos/estagiários. A esse momento os profissionais doLEFE dão o nome de cartografia. A partir da cartografia, épossível compreender a demandados sujeitos institucionaispor atenção psicológica, o que pode muitas vezes diferirgrandemente daquilo que foi expresso no pedido inicial.Por demanda compreende-se o pedido que os própriossujeitos fazem, quando lhes é oferecida a oportunidade. Naidentificação da demanda percebe-se o que os sujeitos dainstituição esperam da prática psicológica e como queremque ela aconteça.

Estas reflexões se fazem necessárias para situar o primeiromomento do trabalho da equipe do LEFE junto à PolíciaMilitar. Após diversos dias de encontros na instituição,em que a equipe de psicólogos e o contingente de poli-ciais deram-se a conhecer, foi possível pensar o pedido deavaliação do estresse de outra maneira.

Os policiais pareciam já saber muito sobre o estressede sua situação profissional. Em várias conversas, diziamdas severas obrigações, das situações de risco de morte, docontato com a miséria humana, e deixavam claro o quantoera difícil conviver com essa realidade opressora.

Para que, então, avaliar algo que já se conhece?Talvez para referendar, pela palavra de especialistas, algo

que até então se mostrara "apenas" na dimensão da expe-riência.

A seguinte análise de Critelli (1996), refletindo sobre opensamento ocidental moderno (a que Heidegger chamoumetafísica), aponta para a mesma direção, expressando umacompreensão histórica para essa subestimação da experi- jência em favor dos conceitos e das explicações racionais:

(...) depois de Platão ter instituído o conceito (uno,eterno, incorruptível) como o lugar de manifestaçãoda verdade de tudo o que é; depois de Aristóteles terestabelecido que ao intelecto pertence esta funçãode conhecimento; e depois de Descartes ter mo-

dulado este intelecto como Cogito (...), parece-meque o Ocidente moderno aceitou esta via como aúnica perspectiva adequada, viável e válida para aaproximação entre homem e mundo, para seu sabera respeito de tudo com que se depara, inclusive ele

mesmo (p. 12 e 13) [destaque nosso].

Assim, o sentido que se mostrou à equipe de psicó-logos apresentava uma requisição de outra ordem. Em vezde avaliação, talvez fosse mais pertinente oferecer àquelespoliciais a oportunidade de retomarem-se como sujeitos,validando as afetaçóes engendradas por essa condição.

Nessa perspectiva, sugeriu-se a implantação de umserviço de plantão psicológico. Durante determinadoperíodo da semana, uma dupla de psicólogos/estagiárioscolocar-se-ia à disposição naquela Companhia, de maneiraa que os policiais pudessem procurar atendimento se assimo desejassem.

REFLEXÕES SOBRE O PLANTÃOPSICOLÓGICO À POLÍCIA

MILITAR

Em outro trabalho, foi possível expressar a compre-ensão de que:

(...) a rotina de trabalho do policial militar incluiuma extensa gama de atividades, desde o atendi-mento a ocorrências sociais (realização de partos,contenção de indivíduos alcoolizados, mediaçãode brigas), realização de rondas ostensivas comvistas à prevenção da criminalidade, até o enfren-tamento em casos de roubo, sequestro, tráfico dedrogas. (OLIVEIRA, 2005, p. 63)

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Ha direção sugerida por Heidegger, que afirma que "O

ttress tem ° carater fundamental de solicitação de um serinttfpdadó' (2001, p. 165 [grifos do autor]), é possível

vislumbrar um outro significado para o estresse aludidonelo pedido inicialmente dirigido à equipe de trabalho,j0 LEFE. Estresse é o termo que se refere às solicitações(no caso, excessivas) às quais o sujeito é chamado a corres-ponder diante do mundo. Enquanto solicitação, pode sercompreendido como fruto da condição ek-stática humana,

%••) Parte ^a constituição da essência do homem ek-sistente" (HEIDEGGER, op. cit., p. 163).

Assim, o plantão psicológico oferecido à Polícia Militarpode revelar o sentido de espaço de reflexão, no qual se dáatenção à forma como o sujeito se conduz pelas solicitaçõesenquanto ser que vive no modo da existência. Em outrostermos, "(•-•) atenção ao modo de ser do homem comocuidado de si e trânsito pelas interpelações dos entes quelhe fazem frente" (OLIVEIRA, op. cit., p. 65).

Entretanto, as mesmas condições podem ser pensadasem relação aos plantonistas. Inseridos na mesma estruturaek-sistente, é preciso que tenham um espaço de atenção

às suas próprias interpelações no cotidiano do trabalhoque realizam.

Esta consideração é peculiarmente importante porque,nas duas Companhias em que o plantão psicológico foiimplantado, houve momentos em que a procura peloserviço cessou, levando os plantonistas a passar por

momentos de tédio. A primeira intenção da equipe, nessemomento, foi tentar identificar o que na instituição estaria

provocando aquela situação. O policial teria vergonha dese expor, por ser visto procurando atendimento? Seria arigidez institucional a responsável? Pesaria a dificuldadede se admitir frágil?

Procurava-se apenas no outro o motivo que fazia comque, em alguns momentos, o serviço parecesse perder sua

efetividade. Contudo, é possível dizer que essa maneirade responder ao desconforto tinha um sentido específico.Todas as questões formuladas eram de fato pertinentes,mas talvez seu foco pudesse ser dirigido para outro lado.A equipe de plantonistas havia se institucionalizado, e,

portanto, se tornara passível das mesmas críticas que dirigiaà instituição.

Apenas a partir das reflexões propiciadas pela super-visão foi possível perceber, nesse e em outros episódiossemelhantes posteriores, os efeitos da força coerciva que a

instituição exercia sobre os plantonistas, convidando-os apartilhar de seus princípios e valores.

Envoltos pela instituição, e refletindo-a, como umespelho, os plantonistas atravessaram, em mais de umaoportunidade, uma crise de função e efetividade, análogae similar à crise aludida pelos policiais em relação ao seupróprio cotidiano profissional. Abertos para esse sentido,conseguiram novamente transitar pela instituição comoforça instituinte, e não como coisa instituída. Nessemomento, foi possível compreender que, a despeito dapossibilidade de qualquer alívio momentâneo, a sucessãode crises atravessada sinalizava a necessidade de dirigir umainterrogação aos usuários do serviço, a quem a prática sedestinava. Em outros termos, a prática só poderia ter umsentido para a equipe de plantonistas se desvelasse umsentido para aqueles a quem se dirigia.

Enfim, foi preciso permitir que os próprios policiaisexplicitassem sua posição pessoal sobre o serviço, atravésde depoimentos. Foram entrevistados quatro policiais, dois

de cada uma das Companhias em que o serviço era reali-zado. A situação de depoimento

foi criada para propiciar a apresentação de umanarrativa, pela qual o sujeito possa ir tecendo um

sentido para o serviço de plantão psicológico, fa-zendo uso da compreensão prévia que ele já tem,para que dela algo possa ser interpretado. Ao nar-

rar, o sujeito pode retomar a si mesmo numa pers-pectiva historial e significativa do vivido. Assim,

colocando a experiência em trânsito pela lingua-gem, o sujeito resgata, na sua própria história, acompreensão do vivido como referência que redi-

mensiona a sua situação, reabrindo possibilidadesfuturas e permitindo novas perspectivas para o

próprio sofrer. (OLIVEIRA, 2005, p. 71)

De fato, conforme aponta Gendlin (1978/1979), numaaproximação possível dos existenciais heideggeríanos coma clínica psicológica, a condição humana se apresentano mundo a partir de três disposições: a forma como seencontra no mundo e situa a si mesmo (Befmdlichkeií)',a compreensão implícita, anterior à cognitiva, que surgedesse encontrar-se; e a fala, possibilidade de comunicar

essa compreensão prévia.Busca-se, portanto, permitir que o depoente explore, a

partir da pergunta dirigida pelo entrevistador, sua experi-ência na temática sugerida (no caso, o serviço de plantão

psicológico) e explicite o sentido por ela revelado. O depoi-mento visa à comunicação das compreensões do sujeito emrelação à situação considerada, em busca de um sentido.

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Por outro lado, a experiência de plantonista, propiciandosuas próprias compreensões prévias, também permite quese investiguem novos sentidos para o serviço. Portanto, apartir desse ponto, a intenção é articular as compreensõesexpressas pelos policiais às compreensões colhidas durantea experiência de plantonista, realizando algumas considera-

... tem aqueles que têm vergonha... ficam acanhjSdos... se tivesse a iniciativa de alguém... de apoiar...;|aí muita gente seria ajudada.

O desafio inicial era admitir para si mesmo, e depois cole- £tivamente, a vontade de ser atendido. Como a equipe de

coes pertinentes ao campo da prática psicológica em insti- plantonistas se colocava sempre em algum lugar "público" da

tuição, em especial à modalidade plantão psicológico.

ARTICULANDO COMPREENSÕESPOSSÍVEIS

instituição, ainda que os atendimentos propriamente ditospudessem ser realizados em ambientes mais restritos, era difícilque alguém procurasse o serviço sem ser visto pelos colegas.

A situação de exposição configurava-se como dificul-dade, obstáculo a ser superado. Um trecho do depoimento04 talvez sugira um encaminhamento a essa questão:

... a gente está sempre na posição de ter que re-solver as coisas... Quando você quer alguém queresolva para você... não tem a quem recorrer...

O policial militar tem a função socialmente atrí-

Ao longo da colheita dos depoimentos, foi possívelperceber que o serviço de plantão psicológico se mostrava,na fala dos policiais, ambivalente. Ao mesmo tempo emque aparecia como possibilidade de um necessário resgacedo sujeito e da narrativa de suas correspondências às inter-pelações do mundo, revelava-se também como algo poten- buída de manutenção da ordem. Em última análise, elecialmente perigoso. Propondo-se a dar atenção ao sujeito é sempre aquele que ajuda, presta assistência, resolve asem sua especificidade, e não tomá-Io apenas como caso coisas. E possível dizer que o policial não tem o costumeespecífico de uma situação geral, o plantão psicológico se de estar "do outro lado", sendo aquele que pede ajuda,tornara tão libertador quanto assustador. Contudo, essa compreensão talvez ainda não contemple

O resgate do sujeito implica a retomada da responsabi- a questão.lidade diante da própria existência. Pode-se dizer que esse A ordem resiste às afetabilidades, mantendo-se como verdadefato se mostra de maneira especialmente notável numa Por si e em si mesma. Mante-la parece algo difícil para um serinstituição como a PM, em que todos são^uniformizados" ontologicamente afetável, como o humano. O extremo da

em torno de um ideal supostamente comum. Na proprie- ordem é uma ut°Pk ** sociedades humanas convivem comdade do sujeito, retoma-se a possibilidade de fazer esco- a simultaneidade das forças de ordenação e de (re)criação, insti-

lhas, e salienta-se a necessidade de responsabilizar-se pelasAssim, para que seja possível contemplar a função

militar, de defender a ordem incondicionalmente, a insti-consequências delas.

A primeira escolha pela qual o cliente do plantão psicoló-gico na Polícia Militar precisa se responsabilizar, enquanto

. . . , , . X T humanos não podem representar a ordenação impolutasu eito, e o próprio ato de ter procurado o serviço. Nas , , . . . . _ r

• j j da própria ordem, a instituição precisa razer isso por

tuição cumpre um papel preponderante. Se os sujeitos

palavras do depoente 03,eles. Assim, lançada absolutamente por sobre os frágeis

Eu acho que esse serviço... apesar de muitos pó- , . j -i i • .:humanos, incapazes daquilo que ela representa, a msti-liciais precisarem... mas não terem coragem miçâo ̂ £m $[ «mems indivíduos" (FIGUEIREDO,

Por isso eu fiz uma pergunta para você sobre a 1995) Insinua.se> assini) o soterramento do sujeito,gente poder ter outro lugar... porque tem genteaqui que a gente sabe... já foi o meu caso... deprecisarem... mas às vezes... até por vergonha defalarem "ah, por que está precisando de um psi-cólogo...?"... as pessoas confundem... psicólogo...psiquiatra... loucura...

Na mesma direção, no depoimento 02,

Ainda no depoimento 04,A vida pessoal da gente fica muito... em segun-do plano... você fica muito vinculado à polícia...acaba deixando muitas coisas da sua vida pessoalem segundo plano...

Compreendida dessa maneira, a situação do policialnão implica apenas estar pouco acostumado a pedir ajuda;

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«w

Uma Experiência de Plantão Psicológico à Polícia Militar do Estado de São Paulo: Articulando Compreensões 143

i sequer se sente autorizado a pedi-la. Para cumprir seu

erviço de combate à desordem e ao caos, a forma comoinstituição militar está organizada não permite que o

nolicial reclame para si direitos de sujeito.Contudo, a prática do plantão psicológico, inserida no

cotidiano do trabalho do policial, sugere a possibilidadede legitimação de sua experiência enquanto sujeito, viabi-lizando sua expressão na relação com o plantonista. Talvezpor isso, essa prática possa ter um caráter ameaçador. Opolicial sabe que, embora seja atraente e necessária, a possi-bilidade de colocar-se como sujeito não é aquilo que ainstituição espera dele.

Por outro lado, sabe que é aquela instituição que pagaseus salários, garantindo a manutenção de sua sobrevi-vência. Sabe também, e essa talvez seja a questão prin-

cipal, que ocupa uma determinada posição dentro daestrutura institucional e que isso, de alguma maneira, faz

dele alguém. Inserindo-o numa teia de funções, cargos ehierarquias rigidamente articulada, a PM priva o sujeitode si, mas íhe garante, em contrapartida, um lugar insti-tucional de pertencímento.

Essa talvez seja uma compreensão relevante para aquestão da dificuldade em procurar o plantão psicológico,tantas vezes expressa pelos policiais, tanto nos depoimentoscomo no dia-a-dia do serviço. A partir dela, também épossível buscar um significado para o relato contido nodepoimento 01,

... mas eu mesma falar dos meus problemas euquase não falo. Então... é isso.E como se... eu não quisesse misturar os meus

problemas particulares com os problemas que eutenho aqui na Cia... profissionais... Eu tento nãomisturar.

Esse serviço é oferecido num local de trabalho. Mefaz pensar algo que... se você vem em... um lugarde trabalho então tem que ser... como eu posso

falar isso para você...? Que você está aqui e queo trabalho é para melhorar o nosso ambiente detrabalho... a nossa vida social aqui no trabalho...não a vida particular.

Por ser oferecido em um "lugar de trabalho", o serviço,na visão da policial, deveria ater-se a questões profissionais.Em outras palavras, pode-se dizer que, para ela, o plantãopsicológico se configurava como espaço aberto aos seus'problemas" enquanto policial militar, e não enquanto

sujeito.

Além disso, agora também é possível dizer que,enquanto prática psicológica, a "avaliação de estresse",inicialmente requisitada, se adapta muito bem às caracte-rísticas e aos objetivos institucionais. Organizando os indi-víduos em torno de um "problema" comum, os resultadosda avaliação possivelmente forneceriam uma classificaçãodos policiais ao longo de um contínuo de maior ou menorestresse. Efetivar-se-ia, novamente, a tendência de trocar asingularidade pelo pertencímento a uma categoria, dessavez com o aval de uma equipe de especialistas.

No entanto, retomando a já citada ambivalência dospoliciais em relação ao serviço, a mesma possibilidade deresgate do sujeito em sua narrativa, que tinha um aspectoassustador, também se apresentava "(...) tentadoramentenecessária" (OLIVEIRA, 2005, p. 118). Da mesma depo-ente que afirmou compreender o plantão como apoio que

se restringia a questões profissionais, depois de lhe ser ditoque o serviço também estava aberto a questões "pessoais",foi possível colher:

Por exemplo... eu tenho dificuldade com um cer-to sentimento meu. Por exemplo... eu sou uma

pessoa assim muito insegura. Eu tenho um rela-cionamento onde eu tenho muito ciúme... e eu

queria trabalhar isso. Tem como?

E, ainda,

Então eu acho importante o trabalho de vocês e

acho que tem que ser divulgado e esclarecido. Euacho que vocês deviam pegar e falar com o pesso-al assim... "a gente está aqui para...". Apesar quevocês fizeram isso... não foi? Até fizeram...

Ela propõe que o serviço seja mais bem divulgado, paraque todos saibam a que se destina. Porém, logo em seguida,admite que isso já havia sido feito. Dessa forma, é possíveldizer que, em seu depoimento, a policial expressa umacompreensão que não condiz com aquilo que ela já "sabia"sobre o plantão psicológico.

Essa aparente contradição pode se dar porque o "saber"envolvido nesse episódio não era dado pela experiência.Antes de iniciar a implantação do serviço, a equipe de plan-tonistas esteve em algumas reuniões e preleções, apresen-tando-se e explicando como aconteceria o plantão psico-lógico. Contudo, conforme revela o trecho de depoi-mento anterior, tal explicação não bastou para que a poli-cial compreendesse o uso que poderia fazer do plantão.Assim, sugere-se que, para seus usuários, o sentido do

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144 Uma Experiência de Plantão Psicológico à Polícia Militar do Estado de São Paulo: Articulando Compreensões

plantão psicológico não está no entendimento cognitivoda situação, mas também se refere à dimensão da experi-ência. Como a policial nlo havia, até aquele momento,procurado atendimento, pode-se dizer que de fato ela não"sabia" nada sobre o plantão, mesmo estando devidamenteinformada sobre ele.

Na dimensão da experiência, já tematizada anterior-mente, através dos existenciais afetabilidade-compreensão-fala, pode acontecer uma aprendizagem outra, que mesclao saber cognitivo às impressões e afetabilidades pessoais.Pode-se datj portanto, a aprendizagem enquanto conhe-cimento tácito (FIGUEIREDO, 1993). Como tatuagem,o conhecimento tácito se inscreve no sujeito, e passa afazer parte dele,

Por esse motivo, é também na dimensão do conheci-mento tácito que se dá a relação plantonista-cliente noplantão psicológico. O espaço aberto pelo plantão permite,a partir da publicízação dos sujeitos (ARENDT, 2003),uma experiência significativa que, mobilizando o tácito,desvela sentidos.

Na prática, os policiais perceberam essa característica dediversas maneiras diferentes. No depoimento 02,

Eu acho que conversando a gente vai entenden-do como é a situação. (...) A gente conversando...abrindo o jogo... abre a mente da gente... a gente

pensa mais...

Expresso de outra forma, no depoimento 03,Aí... numa outra vez a gente conversou... aí eu fuiinterrompida... eu sou da administração... me cha-maram... e depois desse dia a gente não conversou

mais... Mas o pouco que eu conversei com ela já

me deu outra visão para o que eu estava passan-;;

do... Eu acho que me ajudou bastante...-

Outra compreensão possibilitada por essa experiência de •

plantão psicológico em instituição diz respeito ao cuidado

com os plantonistas. Como abordado anteriormente, o

plantonista se apresenta como ser afetável, assim corno

seu cliente. Na relação propiciada peío plantão, o cliente

pode ter compreensões suscitadas, para as quais encontrará

atenção por parte do plantonista, em busca de sentido.

Porém, também o plantonista precisa encontrar um espaço

de reflexão para suas próprias compreensões, e a supervisão

costuma ser o espaço privilegiado para esse cuidado.

Vale dizer que, também na supervisão, a atenção precisacontemplar a experiência do plantonista, e não seus "saberes

teóricos" sobre o plantão psicológico. Em outros termos,

precisa se dar com especial atenção ao tácito envolvido

no trabalho do plantonista. Dessa maneira, a supervisão

cuida da equipe de plantonistas durante toda a realização

do trabalho, inclusive nos momentos de tédio, paralisia e

desânimo que surgem na interface com a instituição.

Este capítulo teve a intenção de explorar algumas

compreensões possíveis sobre o campo da prática psico-

lógica em instituição, deixando-se acolher por reflexões

propiciadas pela orientação fenomenológica existencial,

a partir de uma experiência de plantão psicológico reali-

zada na Polícia Militar do Estado de São Paulo. Por deixar

algumas questões relevantes ainda por desenvolver, espera-

se que este trabalho possa suscitar outras iniciativas, no

intuito de dar maior consistência ao campo teórico da

prática psicológica em instituições.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2003. 352p.

CRITELLI, DM. Analítica do sentido: uma aproximação einterpretação do real de orientação fenomenológica. SãoPaulo: Brasiliense, 1996. I40p.

FIGUEIREDO, LC. Sob o signo da multiplicidade. In: Cadernosde subjetividade. São Paulo: PUC/SP, n. l, p. 89-95, 1993.

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HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes,

2001. 311p.LEVY, A. Ciências clínicas e organizações sociais. Belo Hori-

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OLIVEIRA, RG. Uma experiência de plantão psicológico àPolícia Militar do Estado de São Paulo: reflexões sobresofrimento e demanda. Dissertação (Mestrado), Instituto

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PRILLELTENSKY, L The Morais and Politics of Psychology:psychological discourse and the status quo. New York:State University of New York Press, 1994. 283p.

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Unia Experiência de Plantão Psicológico à Polícia Militar do Estado de São Paulo: Articulando Compreensões 145

QUESTÕES COMENTADAS

.1 £ possível refletir que o "comando" de uma instituição co-nhece, de maneira privilegiada, muitas das necessidades desua instituição. Por que, então, se afirma que um pedido poratenção psicológica vindo dos responsáveis por esse "co-mando" não deve ser efetivado diretamente, e pede umareflexão anterior por parte dos profissionais da Psicologia?

# Ern geral, todo projeto de prática psicológica em instituiçãoinicia-se por um pedido vindo da própria instituição. Os sujeitosque elaboram e encaminham esse tipo de pedido geralmenteexercem função ou cargo de comando, já que apenas nesse ní-vel hierárquico se pode ter a autonomia e a autoridade neces-sárias para idealizar e efetivar projetos que alterem o cotidianoda instituição. Contudo, resta a questão: esse pedido ressoa ademanda dos demais sujeitos institucionais?

Não atentar a essa reflexão pode significar um mero colocar-se a serviço do poder instituído e da manutenção do status quoinstitucional, contribuindo para o emudecimento dos demaisatores institucionais.

2) Como se configura e qual a intenção de uma "cartografia ins-titucional"?

R: A cartografia se constitui de um período de conhecimentomútuo entre atores institucionais e equipe de profissionais daPsicologia, visando ao aclaramento da demanda por atenção psi-cológica que se explicita nas vozes desses atores institucionais.Essa demanda pode, muitas vezes, divergir daquilo que foi ex-presso no pedido inicial. Na identificação da demanda, tambémse busca compreender o que os sujeitos da instituição esperamda prática psicológica e como querem que ela aconteça.

3) O que é possível refletir sobre a "institucionalização da equipede trabalho" a que se refere o texto?

R: Um projeto de prática psicológica em instituição deve preverum espaço de cuidado para a equipe de profissionais da Psico-logia no qual se dê atenção à forma como os sujeitos vêm seconduzindo pelas solicitações que lhe fazem diante do cotidiano

desse trabalho. Em outros termos, os atendentes estão inseri-dos na mesma estrutura ek-sistente dos atendidos, e, portanto,é preciso que tenham um espaço de atenção às suas própriasinterpelações. Em determinados momentos do trabalho expli-citado no texto, a equipe de plantonistas se institucionalizou,cedendo, irrefletidamente, aos efeitos da força coerciva que ainstituição exercia, convidando-a a partilhar de seus princípiose valores. Apenas a partir das reflexões propiciadas pela super-visão foi possível novamente transitar pela instituição de formainstituinte, e não instituída.

4) Por que motivo, embora atraente, o plantão psicológico noprojeto exposto pelo texto também podia adquirir, para seususuários, um aspecto ameaçador?

R: Para cumprir seu serviço, a forma como a instituição militarestá organizada não permite que o policial reclame para si direi-tos de sujeito, e é justamente a isso que o plantão psicológicose refere. Inserindo o sujeito social numa teia de funções, cargose hierarquias, rigidamente articulada, a PM aparta o sujeito desi, mas lhe garante, em contrapartida, um lugar institucional depertencimento. Nesse sentido, o plantão psicológico ameaça arenúncia que torna possível esse pertencimento.

5) A partir do texto, o que é possível dizer sobre a "aprendiza-gem" que pode ocorrer no plantão psicológico?

R: Na dimensão da experiência, em que o humano se apresentanos existenciais afetabilidade-compreensâo-fala, pode aconteceruma aprendizagem outra, que mescla o saber cognitivo às im-pressões e afetabilidades pessoais. Uma aprendizagem enquantoconhecimento tácito que se inscreve no sujeito, como tatuagem,e passa a fazer parte dele. É na dimensão desse conhecimentotácito que se dá a relação plantonista-cliente no plantão psico-lógico.

O espaço aberto pelo plantão permite, a partir da publiciza-ção dos sujeitos, uma experiência significativa que, mobilizandoo tácito, desvela sentidos.