thalita morato ferreira - unesp

170
unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Câmpus de Araraquara - SP Thalita Morato Ferreira A Roda de Virgílio: um estudo da figuratividade na poesia bucólica, didática e épica ARARAQUARA S.P. 2020

Upload: others

Post on 10-May-2022

10 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Thalita Morato Ferreira - Unesp

unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

ldquoJUacuteLIO DE MESQUITA FILHOrdquo Faculdade de Ciecircncias e Letras

Cacircmpus de Araraquara - SP

Thalita Morato Ferreira

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade

na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

ARARAQUARA ndash SP 2020

Thalita Morato Ferreira

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UnespAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas

Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

ARARAQUARA ndash SP

2020

Ferreira Thalita Morato

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Thalita Morato

Ferreira mdash 2020

168 f

Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash

Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita

Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus

Araraquara)

Orientador Maacutercio Thamos

1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica

Literaacuteria I Tiacutetulo

Thalita Morato Ferreira

A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

Data da defesa 30042020

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara

Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie

Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara

Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir

tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 2: Thalita Morato Ferreira - Unesp

Thalita Morato Ferreira

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UnespAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas

Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

ARARAQUARA ndash SP

2020

Ferreira Thalita Morato

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Thalita Morato

Ferreira mdash 2020

168 f

Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash

Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita

Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus

Araraquara)

Orientador Maacutercio Thamos

1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica

Literaacuteria I Tiacutetulo

Thalita Morato Ferreira

A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

Data da defesa 30042020

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara

Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie

Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara

Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir

tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 3: Thalita Morato Ferreira - Unesp

Ferreira Thalita Morato

A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Thalita Morato

Ferreira mdash 2020

168 f

Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash

Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita

Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus

Araraquara)

Orientador Maacutercio Thamos

1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica

Literaacuteria I Tiacutetulo

Thalita Morato Ferreira

A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

Data da defesa 30042020

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara

Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie

Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara

Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir

tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 4: Thalita Morato Ferreira - Unesp

Thalita Morato Ferreira

A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos

Data da defesa 30042020

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA

Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias

e Letras de Araraquara

Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara

Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie

Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara

Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir

tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 5: Thalita Morato Ferreira - Unesp

Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir

tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 6: Thalita Morato Ferreira - Unesp

AGRADECIMENTOS

ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo

Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo

o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa

desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e

humana

Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa

do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem

como pela minha formaccedilatildeo

Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento

agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do

caminho

Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo

despertar e pela poesia do maternar

Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia

Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo

o meu carinho amor e o meu afeto constante

Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira

agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo

pelo apoio e amizade

Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela

amizade e carinho

Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que

me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria

E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos

A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito

obrigado

O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e

exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e

na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)

RESUMO

O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da

Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo

com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso

o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de

Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo

o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do

seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a

Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada

texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O

presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao

entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como

especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um

tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma

traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um

estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para

a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica

Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica

ABSTRACT

The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of

Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through

Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of

expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In

addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called

Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the

simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite

scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics

in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel

comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different

characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three

styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as

specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment

followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian

excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure

of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic

didactic and epic poetry

Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30

Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91

Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 13

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33

3 A criacutetica virgiliana46

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da

Eneida46

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57

41 Textos temaacuteticos e figurativos57

42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81

53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as

abelhas 99

55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104

56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108

57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121

58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125

59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131

6 Consideraccedilotildees Finais 149

Bibliografia 156

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III

Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247

Figura 2 - A Roda Virgiliana

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592

Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha

para dizer (2007 p11)

Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por

ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados

ineacuteditos (2007 p 12)

[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por

amor (2007 p 12-13)

Italo Calvino (2007)

13

Introduccedilatildeo

Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a

Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta

deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos

estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na

corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica

As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio

Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V

dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No

livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que

foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium

O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para

Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os

bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio

Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2

Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis

Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou

logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico

acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o

maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec

IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no

palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma

1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se

ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma

14

galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as

escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta

grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das

Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos

habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros

Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra

de Virgiacutelio

AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato

A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais

temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997

p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na

memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se

e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de

execuccedilatildeordquo

Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA

biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e

metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e

maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a

Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas

(SANTOS 2007 p73)

Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a

tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta

aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico

Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem

repleta de elementos figurativos

As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra

configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute

composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos

da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos

15

no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto a apicultura

Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou

cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico

Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o

responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio

trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma

Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a

virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao

reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem

com valor humano e portanto universal

Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas

composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da

Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se

tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito

Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto

das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas

composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso

com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode

substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo

submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-

se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente

duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis

subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas

uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos

de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu

O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros

tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A

segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma

siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por

( ˉ ˘ ˘ )

16

O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente

do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente

representado por ( ˉ ˉ )

A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser

substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas

breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser

substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo

que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja

o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a

segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)

Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)

Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)

Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute

fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um

hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs

tempos) (PRADO 1997 p 171-172)

Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro

ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ

1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm

Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns

textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria

duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no

17

ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J

Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais

como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix

Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-

los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do

poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse

um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja

o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar

para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana

constituem um material vasto e ainda pouco explorado

O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de

Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa

presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos

recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os

excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as

caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais

satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre

os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio

e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de

Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs

cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles

a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido

sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada

excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes

na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o

presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria

Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir

de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura

poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa

e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio

de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos

pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto

claacutessico latino

18

O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs

principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo

figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim

como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas

Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico

didaacutetico e eacutepico

Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido

nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto

tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar

o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se

perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma

rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute

preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das

Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos

excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que

garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia

existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia

existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas

mantecircm entre si

Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto

virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando

como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos

textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito

de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos

descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar

o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo

referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que

revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar

Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para

leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e

histoacutericas)

Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V

a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)

19

da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas

figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos

estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos

com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo

meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam

predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um

determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para

traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que

nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser

depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si

Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para

complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica

dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que

todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como

os demais trechos em latim dos tratadistas antigos

O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise

metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os

recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso

compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de

sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos

latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em

relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a

Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos

tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos

importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos

gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais

relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os

20

gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os

pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio

No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e

grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio

como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o

entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico

e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de

interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada

discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine

Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros

No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de

Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da

deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica

e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)

Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e

estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio

No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um

textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e

procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de

Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo

teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se

nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros

(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)

No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos

selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de

traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas

mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada

obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras

se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos

didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio

e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente

de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e

anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees

21

apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes

da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte

O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto

de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica

ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos

de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em

descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que

aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos

22

1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga

Retoacuterica

Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida

natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade

autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ

2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz

nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar

compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua

pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra

quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que

apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a

configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali

atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)

presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos

hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim

de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a

sua forma de expressatildeo

No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas

do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas

Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt

Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo

Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e

lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a

temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia

de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor

5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza

23

que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de

temaacutetica portanto diferente da eacutepica

Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)

opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica

Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda

A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou

ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute

a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma

mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e

consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita

por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)

Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena

lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo

A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia

eacutepicardquo

Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do

mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito

de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria

entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um

texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido

do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute

possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no

interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste

evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por

redes figurativas diferentes

Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no

iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)

No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso

24

Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu

A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se

mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra

necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril

Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a

poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes

figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo

humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo

dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido

grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de

grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de

significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada

em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo

ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada

discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no

discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e

eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de

sentido

Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras

de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as

mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do

texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na

construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os

diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto

Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii

Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana

afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas

pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico

25

Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est

Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente

Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que

podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos

remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama

figurativa que nos remete a assuntos mais singelos

Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs

obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os

modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)

para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo

segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se

pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico

Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in

Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs

genera dicendi

Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam

Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina

Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo

humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente

Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos

pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes

nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas

figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os

principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao

compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido

arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada

26

figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-

se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs

estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria

de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica

escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra

tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma

descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das

Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em

que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas

caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e

grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou

diferentes tipos de estilo fixando modelos

De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como

se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um

gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no

desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos

gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de

Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus

poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e

Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem

Maria)

Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos

gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de

cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro

Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada

um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o

vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais

representativos

27

Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia

Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41

Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo

de Garlacircndia assim descreve

Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem

Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave

28

Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-

nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as

Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente

Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)

encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de

Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos

(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de

Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu

trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs

cenaacuterios de atuaccedilatildeo

A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia

dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e

configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada

obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute

interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica

De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete

com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a

variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo

como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas

das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro

a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash

que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime

classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado

anteriormente

Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII

prescreve trecircs genera elocutionis que

satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na

29

elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida

Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos

de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo

de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente

Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar

os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e

apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda

Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)

Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos

de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se

compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus

significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes

efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente

30

Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio

Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26

Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis

Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor

despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e

Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-

se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos

o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados

(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a

descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os

31

caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que

haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra

Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem

representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o

boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo

figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se

agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que

o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo

Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem

tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o

cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem

e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar

(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim

aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos

semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente

Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas

Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que

podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o

texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas

didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda

serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como

conseguiu registraacute-los em suas obras

Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas

que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs

obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os

temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios

As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela

Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos

entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas

presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como

diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos

atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em

contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido

de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a

32

leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo

como um efeito de sentido que perpassa as obras

33

2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente

Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados

Norma Discini 2009 p 27

Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos

emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)

provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos

antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia

sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de

sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram

criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como

a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)

O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma

reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela

provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois

era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas

habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a

Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que

poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea

a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso

cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)

Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978

p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca

da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de

expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo

Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978

p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos

Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo

34

Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso

como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um

efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees

Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de

uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de

figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos

portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos

adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia

dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso

Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em

vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura

e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade

humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade

de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos

expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto

verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon

como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone

Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa

concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias

(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras

(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-

se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na

substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais

elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou

baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante

Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da

noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal

definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem

Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo

Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios

expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a

mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo

35

O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da

expressatildeo a seus fins

Compagnon (2014 p 167) diz que

Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo

Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em

sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma

O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees

Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade

enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e

consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute

voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade

que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo

e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito

de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da

36

semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo

do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o

ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados

Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no

discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras

presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito

de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por

exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais

das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes

cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos

Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos

que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente

os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais

figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio

Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de

individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado

podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos

podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar

dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a

tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o

singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs

Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida

o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma

classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica

deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por

Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra

deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios

No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a

Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que

descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um

benfeitor

(Buc I hex 1-10) Meliboeus

37

Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas

Tityrus

O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti

Melibeu

Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis

Tiacutetiro

Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse

A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer

dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o

protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica

compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de

poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os

guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas

sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p

17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do

campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e

rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o

tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as

composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos

satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p

18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A

escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe

ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida

essencialmente campestre

38

O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira

bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra

de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas

quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo

singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem

como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa

aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo

Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas

vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica

recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute

atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o

som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras

Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do

pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel

que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio

ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando

entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica

um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar

em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as

figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede

Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na

dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito

sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo

Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma

determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com

coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas

Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que

datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar

a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O

efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das

personagens bem como na espacialidade descrita

Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado

na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente

campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque

39

uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo

portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar

o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que

abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo

Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as

Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um

poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos

teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o

plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes

se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra

seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas

representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre

meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e

praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm

agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica

De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo

grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos

em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos

dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do

seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes

temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura

sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no

quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I

(Geo Canto I hex 1-5)

Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam

Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas

As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia

didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo

40

descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar

com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os

conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)

Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos

nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados

Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e

figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos

(Geo I 176-177)

Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas

Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados

Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica

pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto

essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da

lentilha da Peluacutesia

(Geo I 227-230)

Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas

Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros

comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam

(2014 p 190-191)

O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes

6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte

41

penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)

Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever

sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo

ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na

posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido

engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O

estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras

que lhe datildeo corporalidade no enunciado

Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador

Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e

consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo

reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso

o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica

(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)

Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae

Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por

8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)

42

sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes

A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas

aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e

chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma

A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as

aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de

figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo

grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees

desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um

efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa

presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que

lhe daacute corporalidade para existir

Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia

temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada

estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela

recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que

permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e

figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos

Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos

singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana

Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a

recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer

configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo

Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o

mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem

medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de

Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em

alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de

precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem

sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o

gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando

com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que

43

uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por

definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de

um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-

nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre

eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os

estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-

Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os

caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas

no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas

pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio

que eacute proacuteprio do estilo humilde

De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo

usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da

carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos

comentaacuterios do Renascimento

Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo

Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o

cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo

mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila

matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que

define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos

pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a

representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de

representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar

na carreira de Virgiacutelio

Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo

mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele

pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que

acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um

caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes

contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de

figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda

arranjado verticalmente

44

Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel

Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style

Shepherd at ease Farmer Soldier ruler

Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax

Sheep Cow Horse

Crool Plow Sword

Pasture Field city camp

Beech apple pear Laurel cedar

Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91

Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo

organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o

objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim

ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo

Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda

que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica

como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico

didaacutetico ou eacutepico

Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o

nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados

em seus trecircs aros concecircntricos

Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler

(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os

nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de

Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso

a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e

Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes

comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um

estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso

de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi

9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634

45

agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em

Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome

portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que

natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo

simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de

pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo

Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo

especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro

da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de

seu contexto de atuaccedilatildeo

Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs

tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII

mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os

caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou

grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras

especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um

efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do

discurso

10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida

46

3 A criacutetica virgiliana

31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida

Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos

Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes

abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui

os comentaacuterios que julgamos mais relevantes

Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras

virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa

assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a

discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela

enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70

Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um

bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como

exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas

frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a

obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica

tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com

Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura

ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que

a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana

ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no

entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela

destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com

publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona

Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de

ambas as obras virgilianas

O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo

de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos

da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da

multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana

parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes

criacuteticas na obra do poeta mantuano

47

A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de

ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas

de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma

certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se

considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees

criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada

uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema

como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano

A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute

certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo

era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)

A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma

Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as

nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os

escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No

entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos

anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a

Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca

A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas

Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees

de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios

esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes

as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes

formas como cada obra se realiza

No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto

as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a

vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito

se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio

48

Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de

Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou

a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle

(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores

contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios

assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril

(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974

uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New

Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris

de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura

pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada

de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras

Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo

Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos

de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle

(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem

uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de

uma fantasia evasiva rural

A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem

espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que

influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de

visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma

monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio

Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam

um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute

sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell

chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris

de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um

acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de

Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo

panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal

como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria

poesia

49

Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk

preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer

sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises

formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka

(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico

das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees

acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das

Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema

pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada

poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed

(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores

protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem

sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de

Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero

bucoacutelico em Vergiacutelio

No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy

Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia

filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra

relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca

Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao

cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao

campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e

consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em

plano inferior devido agraves guerras civisrdquo

Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando

como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de

Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio

pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico

50

de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do

ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases

da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e

era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores

Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor

que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se

desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com

confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda

que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu

piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno

excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)

Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti

E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar

Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como

Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos

(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por

encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime

correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo

Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das

Geoacutergicas

eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile

51

No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo

como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua

concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto

Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os

escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois

com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das

tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica

equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se

destacar que

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

Segundo Funari (2001 p 100)

Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do

imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava

as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na

mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma

desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras

representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e

a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo

Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias

remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as

aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem

divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado

pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado

ao longo do caminho Sabe-se por fim que

A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por

52

ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)

Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar

uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses

do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o

seu destino

Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a

Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora

Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica

enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias

Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949

p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)

A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas

Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores

eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a

Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de

lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S

WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study

of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P

BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W

DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos

natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica

virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e

cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida

destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos

53

recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo

buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino

O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e

estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento

poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de

Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico

dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que

satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica

valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da

expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas

32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho

Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra

italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes

do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De

fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No

prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta

Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por

ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera

delle lettere)

Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma

estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010

p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria

e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia

a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota

Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se

de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos

em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como

sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada

pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe

seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele

54

se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em

movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da

cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um

templo para Ceacutesar Augusto

(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus

Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio

Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica

futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas

composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica

para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura

(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros

bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos

que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos

que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico

Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram

como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da

11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos

55

epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato

de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um

cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale

destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de

igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso

os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de

atuaccedilatildeo

Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas

obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas

para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa

progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso

poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo

dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam

diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente

Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de

progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de

Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a

sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no

sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras

uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que

sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo

presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida

constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um

dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser

um reflexo da ideia de totalidade17

A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que

procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que

16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo

56

contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para

Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas

Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal

A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do

poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o

entendimento de suas obras

57

4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto

41 Textos temaacuteticos e figurativos

Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o

tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12

Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o

como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em

destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo

e tessitura

Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico

ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar

os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade

de sentido

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)

a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo

A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um

percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto

em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a

Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades

da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado

Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos

predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam

preponderantemente figuras ou seja termos concretos

Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O

tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como

58

satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar

explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para

concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo

disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da

ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto

Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)

procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente

figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema

abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura

corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural

Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da

significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da

significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas

responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai

se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de

iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que

vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim

por meio de um plano da expressatildeo

Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam

eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos

com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo

De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)

a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer

Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e

expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos

essenciais de um texto

Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo

hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo

59

Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem

crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras

Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20

18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis

60

Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu

Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras

Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das

teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em

que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees

presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe

do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para

receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo

Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas

aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza

A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo

Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute

nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob

a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que

ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas

Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do

amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina

21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades

61

- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)

coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)

Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema

da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo

representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para

produzirem a vida

Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os

seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O

discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada

A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos

da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro

o vento da Primavera

Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias

certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus

representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais

Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos

crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos

ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave

primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima

crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros

animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu

Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da

fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como

ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo

entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o

cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma

como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo

Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos

abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo

existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo

De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer

liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente

perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere

apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo

62

humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que

indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do

mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que

designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um

dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza

puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No

pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute

depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema

Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de

realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma

o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos

figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo

caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel

De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto

literaacuterio

tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado

Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui

selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas

no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema

abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de

prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema

Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo

Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa

com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo

Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso

figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos

assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)

Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que

63

Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro

Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das

Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais

cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave

interpretaccedilatildeo de uma dada realidade

De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto

(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem

percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem

totalmente os percursos temaacuteticosrdquo

Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que

ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em

textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo

Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato

que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um

conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas

Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados

mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas

elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado

definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido

soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute

relaccedilatildeo

Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos

perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia

entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as

figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido

construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de

sentido a ser suscitado no leitor

64

Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem

Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas

Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do

discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um

projeto de leitura

Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720

podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e

Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda

de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela

rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias

narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma

recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros

em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo

ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave

28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar

65

Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir

da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram

jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se

em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para

dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e

posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo

da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter

piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias

acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o

conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado

para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o

filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua

piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito

de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex

707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias

aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o

pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema

A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu

grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam

o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto

Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da

estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o

primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe

um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo

exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de

produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003

p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som

com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o

desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo

Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases

da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse

investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial

Para Barros (2005 p 70)

66

Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras

Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto

Para Fiorin (1995 p 175)

Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado

O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua

compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os

significados dos seus elementos de expressatildeo

Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo

afirma

A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema

Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade

pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio

da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e

o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido

Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos

Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel

67

Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia

bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso

figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o

estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das

obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da

poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes

estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da

recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular

de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila

de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos

cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo

para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida

um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente

Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto

selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e

grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir

de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra

e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e

eacutepica

Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico

trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente

nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas

e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos

entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito

particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da

linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu

plano da expressatildeo

Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado

grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente

Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido

sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido

o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere

68

portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da

poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-

731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao

tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam

cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene

Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o

efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um

rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos

choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia

bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que

abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O

estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo

aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para

que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a

Daacutefnis

Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem

um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das

Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as

abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema

no contexto da poesia didaacutetica

Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e

temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se

demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento

figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em

conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo

definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo

engendrados em cada texto

69

42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico

Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo

que elas contamrdquo

(BRODSKY 1994 p 97)

O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta

informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica

suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma

como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo

(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade

poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que

faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)

leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a

linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito

esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto

Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos

evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e

iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto

Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com

a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em

um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho

artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o

portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas

semelhantes

O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta

recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor

Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo

poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de

combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do

sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um

discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos

esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as

palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um

sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia

70

[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto

Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar

um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie

de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens

do mundo

Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo

como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica

porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta

encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo

de imagens

Como bem observa Thamos (2003 p 109)

Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo

Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de

Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator

determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse

nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila

(Buc IV 23-25)

Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

71

Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25

Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade

da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute

circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia

expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas

flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do

novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso

destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular

da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso

Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que

[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []

Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta

Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia

eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)

A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda

etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por

iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas

a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade

Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila

destacamos os seguintes versos

(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua

mesa e nem uma deusa de seu leito

Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do

paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a

72

homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue

puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma

ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma

cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem

criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo

descrita em um tom de ludismo e serenidade

Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular

a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra

artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p

114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num

pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo

receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a

apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a

massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS

2003 p115)

O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma

evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs

Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la

Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o

ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou

algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico

A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto

acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem

inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso

destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais

amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave

cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho

A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria

esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre

73

apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de

estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja

um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em

que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do

mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo

ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de

sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)

Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere

espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela

disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo

vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do

mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a

ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos

gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar

impressotildees referenciais

Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que

A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de

representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em

correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando

ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso

Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto

podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o

mundo natural concreto

De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade

incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo

uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo

enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram

selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular

da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante

Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o

trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como

as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras

Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos

de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos

74

ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que

uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de

soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual

que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado

graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo

(Lima 2003 p100)

ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo

(Octavio Paz 2012 p 31)

75

5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises

51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES

CANTADORESrdquo

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas

Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465

76

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo

tu calamos inflare leuis ego dicere uersus

hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca

siue sub incertas Zephyris motantibus umbras

siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5

siluestris raris sparsit labrusca racemis

MENALCAS

Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas

MOPSVS

Quid si idem certet Phoebum superare canendo

MENALCAS

Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10

aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri

incipe pascentis seruabit Tityrus haedos

MOPSVS

32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967

77

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi

carmina descripsi et modulans alterna notaui

experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae

puniceis humilis quantum saliunca rosetis

iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas

Sed tu desine plura puer successimus antro

MOPSVS

Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20

flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)

cum complexa sui corpus miserabile nati

atque deos atque astra uocat crudelia mater

Non ulli pastos illis egere diebus

frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25

libauit quadrupes nec graminis attigit herbam

Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones

interitum montesque feri siluaeque loquontur36

Daphnis et Armenias curru subiungere tigris

instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30

et foliis lentas intexere mollibus hastas

Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae

33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere

78

ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis

tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt

ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35

Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis

infelix lolium et steriles nascuntur auenae

pro molli uiola pro purpureo narcisso

carduos38 et spinis surgit paliurus acutis

Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40

pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)

et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen

DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS

FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE

MENALCAS

Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45

quale sopor fessis in gramine quale per aestum

dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo

Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum

fortunate puer tu nunc eris alter ab illo

Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50

dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra

Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis

MOPSVS

An quicquam nobis tali sit munere maius

38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin

79

Et puer ipse fuit cantari dignus et ista

iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55

MENALCAS

Candidus insuetum miratur limen Olympi

sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis

Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas

Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas

Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60

ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis

Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant

intonsi montes ipsae iam carmina rupes

ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo

Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65

ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo

Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis

craterasque duo statuam tibi pinguis oliui

et multo in primis hilarans conuiuia Baccho

ante focum si frigus erit si messis in umbra 70

uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar

Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon

saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus

Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota

reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75

Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit

dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae

semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt

43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum

80

Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis

agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80

MOPSVS

Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona

Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri

nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae

saxosas inter decurrunt flumina uallis

MENALCAS

Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85

haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo

haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo

MOPSVS

At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret

non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)

formosum paribus nodis atque aere Menalca 90

45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin

81

52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo

V

Menalcas

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar

os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre

os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47

Mopso

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das

sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como

a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros

Menalcas

Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo

Mopso

Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51

46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes

82

Menalcas

Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores

de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que

pastam

Mopso

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na

casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo

Menalcas

Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo

ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti

Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

Mopso

52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo

83

Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios

sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do

filho chama de crueacuteis os deuses e os astros

Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes

oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto

Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram

a tua morte Daacutefnis

Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu

as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas

Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as

videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis

campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66

deixaram os campos depois que os fados te levaram

Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio

improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o

paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros

Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer

isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos

Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de

formoso rebanho mais formoso sou

Menalcas

Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos

cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute

59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa

84

igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro

como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos

astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou

Mopso

Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz

foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou

Menalcas

O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as

estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos

restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao

rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os

oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As

proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus

Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois

para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas

espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo

alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra

durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar

Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80

saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves

69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas

85

Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do

monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de

tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre

permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo

votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos

Mopso

O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o

silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm

entre vales pedregosos

Menalcas

Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que

ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho

Acaso eacute de Melibeu85rdquo

Mopso

E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze

o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno

de ser amado)

81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)

86

53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto

A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em

que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura

recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo

O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz

respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado

que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute

que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo

pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de

uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e

significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo

(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios

modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre

pastores

Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina

Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as

bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo

menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana

e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio

afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos

tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros

Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado

os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre

inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens

do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus

cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na

singela flauta

Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas

coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de

Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido

87

tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e

personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos

A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico

Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o

nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se

que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero

bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria

praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica

Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao

campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)

como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida

pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a

isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente

no mito de Daacutefnis sua principal fonte

Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo

presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso

(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio

nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso

mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico

pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem

empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia

bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a

partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na

expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de

construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de

personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica

O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida

ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da

composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim

que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical

O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de

compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical

natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de

88

Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []

(BOLEacuteO 1936 p 59)

Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave

arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que

o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito

servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e

IX

As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade

dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio

assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas

tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas

E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas

caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da

muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que

revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico

Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)

A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)

O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto

dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em

troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso

recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo

Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)

tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de

amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores

deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)

Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos

uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores

Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de

89

disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)

A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores

Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos

celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De

acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema

todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os

dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados

que visam o mero prazer de recitar

Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala

dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que

apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus

MENALCAS

Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os

olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e

portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no

momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a

singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A

descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no

hexacircmetro 3

90

Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos

Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras

Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre

ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a

Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a

disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio

bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as

aacutervores cantam a natureza que os cerca

O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio

bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a

sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave

construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex

4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a

descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico

MOPSVS

Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo

das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta

sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros

Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5

Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS

Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados

A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia

significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras

91

proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente

figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute

uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido

e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso

identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)

vecircm ao encontro desse raciociacutenio

O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-

se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem

elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo

basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees

assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc

Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da

sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de

Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da

beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus

Fonte CUMMING Robert 1998 p 22

92

O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das

palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em

Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas

no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem

com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder

figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de

movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam

Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem

destaque os hexacircmetros 6 e 7

[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis

Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros

A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa

da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo

estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da

videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas

A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor

remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica

No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico

vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo

temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo

Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para

o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis

afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de

Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu

filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi

uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-

se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns

temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso

se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde

93

(hex 13-15)

MOPSVS

Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas

Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)

A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute

que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos

As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo

campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto

Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da

poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples

Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o

espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso

MENALCAS

Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro

Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta

O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos

e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso

rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de

sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na

94

fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes

vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia

pastoril

Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta

circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel

escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram

os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem

disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens

tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de

gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus

amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade

que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos

Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino

fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto

bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades

que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio

cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os

elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto

de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem

natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do

regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram

plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico

Afinal

Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)

No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute

que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa

da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do

pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma

95

vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser

lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres

De acordo com Prado (1992 p 55)

Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis

Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo

chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando

os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se

gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto

e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo

(PRADO 1992 p 56)

Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim

ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-

se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma

longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56

grifo do autor)

Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da

temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico

e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao

Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano

Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no

discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios

96

aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar

tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que

torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute

a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em

um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)

Nas palavras de Prado (1992 p 57)

Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma

Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam

entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio

Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de

Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de

Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de

qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA

1992 p 59 grifo do autor)

Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se

entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non

consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu

valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre

interlocutoresrsquo

com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)

97

Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV

Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo

haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas

se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute

produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito

de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em

sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)

Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se

destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o

canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto

[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis

nem os rios que descem por entre vales escarpados

A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da

cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre

ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda

em meio ao vale

Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema

principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor

ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo

campestre

O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute

depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando

uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo

enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo

contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo

como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de

uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e

Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre

(Daacutefnis Ceres)

98

Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema

contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus

o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos

o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais

procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em

andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto

99

54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado

para as abelhasrdquo

Protinus aerii mellis caelestia dona

exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem

Admiranda tibi leuim spetacula rerum

magnanimosque duces totiusque ordine gentis

mores et studia et populos et proelia dicam 5

In tenui labor at tenuis non gloria si quem

numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo

Principio sedes apibus statioque petenda

quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti

ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10

floribus insultent aut errans bubula campo

decutiat rorem et surgentis atterat herbas

Absint et picti squalentia terga lacerti

pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres

et manibus Procne pectus signata cruentis 15

omnia nam late uastant ipsasque uolantis

ore ferunt dulcem nidis immitibus escam

At liquidi fontes et stagna uirentia musco

adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20

ut cum prima noui ducent examina reges

uere suo ludetque fauis emissa iuuentus

uicina inuitet decedere ripa calori

100

obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

In medium seu stabit iners seu profluet umor 25

transuersas salices et grandia conice saxa

pontibus ut crebris possint consistere et alas

pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis

sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus

Haec circum casiae uirides et olentia late 30

serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae

floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem

Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

seu lento fuerint aluaria uimine texta

angustos habeant aditus nam frigore mella 35

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae

nequiquam in tectis certatim tenuia cera

spiramenta linunt fucoque et floribus oras

explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40

et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae

Saepe etiam effosis si uera est fama latebris

sub terra fouere larem penitusque repertae

pumicibusque cauis exesaeque arboris antro

Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45

unge fouens circum et raras superinice frondis

86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque

101

neu propius tectis taxum sine neue rubentis

ure foco cancros altae neu crede paludi

aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu

saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50

Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit

sub terras caelumque aestiua luce reclusit

illae continuo saltus siluasque peragrant

purpureosque metunt flores et flumina libant

summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55

progeniem nidosque fouent hinc arte recentis

excudunt ceras et mella tenacia fingunt

Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli

nare per aestatem liquidam suspexeris agmen

obscuramque trahi uento mirabere nubem 60

contemplator aquas dulcis et frondea semper

tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores

trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen

tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum

ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65

intima more suo sese in cunabula condent

Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus

regibus incessit magno discordia motu

continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello

corda licet longe praesciscere namque morantis 70

89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi

102

Martius ille aeris rauci canor increpat et uox

auditur fractos sonitus imitata tubarum

tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant

spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos

et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75

miscentur magnisque uocant clamoribus hostem

ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis

erumpunt portis concurritur aethere in alto

fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem

praecipitesque cadunt non densior aere grando 80

nec de concussa tantum pluit ilice glandis

ipsi per medias acies insignibus alis

ingentis animos angusto in pectore uersant

usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos

aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85

hi motus animorum atque haec certamina tanta

pulueris exigui iactu compressa quiescunt

Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo

deterior qui uisus eum ne prodigus obsit

dede neci melior uacua sine regnet in aula 90

Alter erit maculis auro squalentibus ardens

(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore

et rutilis clarus squamis ille horridus alter

desidia latamque trahens inglorius aluom90

90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum

103

Vt binae regum facies ita corpora plebis 95

namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto

quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator

aridus elucent aliae et fulgore coruscant

ardentes auro et paribus lita corpora guttis

Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100

dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum

et liquida et durum Bacchi domitura saporem

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt

contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92

instabilis animos ludo prohibebis inani 105

Nec magnus prohibere labor tu regibus alas

eripe non illis quisquam cunctantibus altum

ire iter aut castris audebit uellere signa

Inuitent croceis halantes floribus horti

et custos furum atque auium cum falce saligna 110

Hellespontiaci seruet tutela Priapi

Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis

tecta serat late circum quoi94 talia curae

ipse labore manum duro terat ipse feracis

figat humo plantas et amicos inriget imbris 115

91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui

104

55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas

Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera

tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves

assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e

combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os

deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que

natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem

as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo

agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis

moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis

matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102

alimento doce para agrestes ninhos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um

tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o

vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de

abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma

margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com

folhagens hospitaleiras

No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados

salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir

95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas

105

as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido

em Netuno108 as que tardam

Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110

ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros

de violetas bebam a uacutemida fonte

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas

corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas

entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112

Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo

agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e

vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos

[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115

Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em

tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade

de uma aacutervore carcomida116

Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao

redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo

queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde

eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta

o eco repercutido da voz119

107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco

106

Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120

e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e

as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim

felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas

formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis

Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute

os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla

buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os

aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze

ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas

pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu

costume no interior da morada126

Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis

sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os

coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze

estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida

Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os

bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo

pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham

encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas

combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande

orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero

de bolotas chove da sacudida azinheira

Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no

pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor

120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas

107

obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e

estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco

poeira

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele

que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor

reine na desimpedida corte

Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de

ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor

aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois

umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa

poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor

brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais

Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis

natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco

Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os

favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o

fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles

imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do

acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e

a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua

foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado

trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor

dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele

mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto

108

56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto

Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic

poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana

demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim

por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade

que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as

composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro

Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas

apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva

jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada

a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso

pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a

simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O

trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um

livro de versos didaacuteticos

Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja

um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do

puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)

nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende

didaacutetico

O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De

origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer

aprender ensinar instruirrdquo

Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro

convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o

diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia

amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras

que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia

elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo

dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo

a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de

109

intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os

diferentes poemas didaacuteticos

Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia

do gecircnero da poesia didaacutetica130

Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de

Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica

et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas

assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio

Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos

Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo

os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre

elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a

presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a

particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)

Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo

sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem

as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)

No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p

247) assim expotildee

Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros

130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)

110

trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)

No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta

obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado

o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do

esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes

de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro

agriacutecola

Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)

Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas

Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo

quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo

Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico

classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de

agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de

aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos

preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas

aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto

significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os

tratados teacutecnicos sobre agricultura

O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra

virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da

beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e

natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)

O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui

selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura

mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas

111

Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das

letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e

da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50

Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para

pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a

escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e

como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o

pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se

deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um

trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem

O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados

moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e

plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os

temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento

Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas

um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como

na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo

inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que

nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom

didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las

figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto

IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para

realizar um elogio agrave primavera (315-345)

Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo

feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas

apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados

ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo

apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os

temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade

no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo

referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica

Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com

a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas

o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do

112

trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim

com o motivo da obra o de instruir

Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso

podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos

transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito

de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a

manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas

Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao

trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes

tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de

outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No

Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e

284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)

No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)

tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se

entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras

e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e

andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso

cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)

Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais

adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste

pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas

as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel

(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos

113

palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem

Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)

trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que

elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens

dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e

a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em

seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que

colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas

114

A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o

trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo

instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho

sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que

as abelhas possam fundar a colocircnia

Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos

Procne entre as aves predadoras

(hex 13-15)

Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis

Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos

De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-

se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido

havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu

Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as

duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada

em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem

que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto

pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim

ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)

No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo

imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem

um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o

mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972

p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute

sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos

expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da

andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as

aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto

115

De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei

para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da

eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p

110)

(Hex 18-24)

At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos

Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras

O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe

de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas

impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam

de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a

colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o

proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho

das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno

das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas

fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na

polinizaccedilatildeo das flores

De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)

O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma

Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem

116

(hex 19)

[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva

Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute

icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper

graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica

Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita

uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos

afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com

as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a

assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso

Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado

(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte

Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae

uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma

abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)

Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente

a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais

sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial

suscitado pela linguagem

Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das

caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos

(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis

117

seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella

cogit hiems eademque calor liquefacta remittit

Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos

Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo

das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo

se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que

as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam

aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica

que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana

longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o

compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com

a forma literaacuteria

Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso

facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou

calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas

Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom

Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre

O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e

monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o

melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in

118

aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta

latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses

termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra

virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais

precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os

pesquisadores

Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois

tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum

facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo

os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas

como suacuteditos de reis

Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em

campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e

horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute

que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et

sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem

da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo

superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor

elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs

hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que

produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem

(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural

poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos

deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)

ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea

do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o

mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos

preparar os vinhos amargos com mel

Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa

119

Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris

Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre

as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas

Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103

At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu

Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os

vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir

da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e

brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se

revela um trabalho artiacutestico com a linguagem

Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115

Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser

modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura

apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica

valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos

Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na

anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos

120

Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica

a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos

para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph

Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de

referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a

escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas

contamrdquo (1994 p 97)

As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia

didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O

trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada

algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o

caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de

uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas

Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio

Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por

Seacutervio assim afirma

[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico

Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV

hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para

as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero

didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz

didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido

moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as

abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo

pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a

gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)

121

57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo

ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte

munera ne mox aut Laurentis nate superbos

aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo

Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615

arma sub aduersa posuit radiantia quercu

Ille deae donis et tanto laetus honore

expleri nequit atque oculos per singula uoluit

miraturque interque manus et bracchia uersat

terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620

fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem

sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes

solis inardescit radiis longeque refulget

tum leues ocreas electro auroque recocto

hastamque et clipei non enarrabile textum 625

Illic res Italas Romanorumque triumphos

haud uatum ignarus uenturique inscius aeui

fecerat ignipotens illic genus omne futurae

stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

ludere pendentis pueros et lambere matrem

impauidos illam tereti ceruice reflexam

mulcere alternos et corpora fingere lingua

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635

consessu caueae magnis Circensibus actis

131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957

122

addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum

Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris

Post idem inter se posito certamine reges

armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640

stabant et caesa iungebant foedera porca

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae

distulerant (at tu dictis Albane maneres)

raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus

per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat

accipere ingentique urbem obsidione premebat

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Illum indignanti similem similemque minanti

aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650

et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

Romuleoque recens horrebat regia culmo

Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655

porticibus Gallos in limine adesse canebat

Galli per dumos aderant arcemque tenebant

defensi tenebris et dono noctis opacae

aurea caesaries ollis atque aurea uestis

uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660

auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant

gaesa manu scutis protecti corpora longis

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos

lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo

extuderat castae ducebant sacra per urbem 665

pilentis matres in mollibus Hinc procul addit

Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis

et scelerum poenas et te Catilina minaci

132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum

123

pendentem scopulo Furiarumque ora trementem

secretosque pios his dantem iura Catonem 670

Haec inter tumidi late maris ibat imago

aurea sed fluctu spumabant caerula cano

et circum argento clari delphines in orbem

aequora uerrebant caudis aestumque secabant

In medio classis aeratas Actia bella 675

cernete erat totumque instructo Marte uideres

feruere Leucaten auroque effulgere fluctus

Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar

cum patribus populoque penatibus et magnis dis

stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680

laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus

Parte alia uentis et dis Agrippa secundis

arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum

tempora nauali fulgent rostrata corona

Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685

uictor ab Aurorae populis et litore rubro

Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum

Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

Vna omnes ruere ac totum spumare reductis

conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690

Alta petunt pelago credas innare reuolsas

Cycladas aut montis concurrere montibus altos

tanta mole uiri turritis puppibus instant

Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum

spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695

Regina in mediis patrio uocat agmina sistro

necdum etiam geminos a tergo respicit anguis

Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis

contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam

tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700

133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque

124

caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae

et scissa gaudens uadit Discordia palla

quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello

Actius haec cernens arcum intendebat Apollo

desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705

omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei

Ipsa uidebatur uentis regina uocatis

uela dare et laxos iam iamque immittere funis

Illam inter caedes pallentem morte futura

fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710

contra autem magno maerentem corpore Nilum

pandentemque sinus et tota ueste uocantem

caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos

At Caesar triplici inuectus Romana triumpho

moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715

maxima ter centum totam delubra per urbem

Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant

omnibus in templis matrum chorus omnibus arae

ante aras terram caesi strauere iuuenci

Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720

dona recognoscit populorum aptatque superbis

postibus incedunt uictae longo ordine gentes

quam uariae linguis habitu tam uestis et armis

Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros

hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725

finxerat Euphrates ibat iam mollior undis

extremique hominum Morini Rhenusque bicornis

indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes

Talia per clipeum Volcani dona parentis

miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730

attollens umero famamque et fata nepotum

125

58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)

ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides

em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo

Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob

um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra

natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa

[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus

penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze

imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios

do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro

refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro

havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a

origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras

combatidas

E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em

volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela

voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus

corpos com a liacutengua

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na

assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se

135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)

126

uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes

de Cures

Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do

altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a

porca imolada

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos

contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as

viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue

escorriam

E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade

com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara

destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia

o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui

145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha

127

um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os

gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e

ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus

cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus

pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os

dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes

sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela

cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta

tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos

e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166

e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe

mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata

em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas

ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o

Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho

do ouro

160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro

128

De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e

o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu

feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua

cabeccedila173

Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o

exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175

da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas

Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com

ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa

egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma

sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia

que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se

chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas

torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro

pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No

centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a

vista para as duas serpentes atraacutes

171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado

129

Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra

Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio

da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187

alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado

Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos

todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar

velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do

fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas

e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as

pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os

seus secretos rios

E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses

da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas

retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees

todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio

sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os

coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas

no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas

Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes

soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o

184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia

130

Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados

dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204

indignado com a ponte

[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e

estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria

e a fama dos seus descendentes

200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)

131

59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do

texto

Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim

esclarece

Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses

Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita

Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer

Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria

acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros

elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito

da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo

Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O

termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo

lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro

a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro

datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso

caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas

manifestaccedilotildees

132

A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em

hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos

romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em

luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria

comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo

ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno

e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees

que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem

Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na

previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da

poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro

da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o

quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente

encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de

individuaccedilatildeo no texto

Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)

Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus

Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos

tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito

sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos

troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria

mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos

Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma

identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e

segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu

destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder

sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades

No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612

a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e

133

ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da

futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto

das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no

escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que

se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de

Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do

cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do

poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma

linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo

Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos

personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por

exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as

estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir

os eventos

As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas

desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias

figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa

figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente

Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes

ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias

miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum

admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo

O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da

perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras

contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge

134

como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-

lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL

2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo

cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de

estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do

contexto da poesia eacutepica

Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para

o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar

entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da

armadura que enchem os braccedilos quando levantadas

Miraturque interque manus et bracchia uersat

e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos

A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de

Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que

indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece

ao ser manuseado e admirado por Eneias

Terribilem cristis galeam flammasque minantem

o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas

No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que

havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha

Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um

acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela

guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos

No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado

com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute

surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao

troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash

filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias

alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e

confirmar a alianccedila predestinada

135

Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra

Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de

artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa

Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para

que produzam uma arma de caraacuteter singular

(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum

A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem

Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas

dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito

nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-

lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo

com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas

chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder

da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus

trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de

coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro

trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada

dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee

rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu

e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas

Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas

portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos

meusrdquo

Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico

que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato

136

o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus

presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa

(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno

A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador

mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas

e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da

descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar

tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano

A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)

Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o

capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no

oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor

de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e

por fim um escudo que eacute inenarraacutevel

Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma

particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute

qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que

natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute

assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante

para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais

detalhada

As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma

temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal

(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por

excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais

altos()rdquo

137

Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes

hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de

Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os

triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto

artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a

sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia

que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes

ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos

ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale

ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da

palavra poeacutetica

O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando

Rocircmulo e Remo (hex 630-634)

Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua

E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua

Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte

uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte

aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da

vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o

fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas

para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL

2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se

ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados

pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute

o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito

ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado

quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite

138

procubuisse lupam geminos huic ubera circum

a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas

A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de

destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute

sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor

Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos

Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de

Eneias foram amamentados por uma loba

A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os

gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de

Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir

(hex 60-63)

Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores

As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores

No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-

se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste

pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir

alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a

crianccedila que traz boas novas

Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado

no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de

Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os

detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos

pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os

Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo

preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas

139

dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos

durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de

Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos

apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas

segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em

meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos

assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)

Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um

pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse

de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que

deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra

(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas

usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre

Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que

era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz

(hex 635-641)

Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca

Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada

Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No

pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e

ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do

esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que

fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos

seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo

140

viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas

esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios

(hex 642-645)

Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres

Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam

Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um

acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado

guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo

para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um

conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os

irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos

albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano

Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a

diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas

Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p

60) assim registrou esse acontecimento

Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)

Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens

Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo

responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o

141

poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e

confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio

procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para

declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais

uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas

apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem

do cerco agrave Roma

(hex 646-651)

Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis

E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti

obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute

sitiada

ingentique urbem obsidione premebat

e sitiava a cidade com um enorme cerco

Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)

Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant

Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade

Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao

ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com

base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final

142

do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de

espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha

Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela

qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em

507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A

imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente

Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis

E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas

Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois

o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas

representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia

O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul

da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os

comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653

In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat

No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo

e defendia o alto do Capitoacutelio

O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio

eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar

iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis

No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo

ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se

trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo

Romuleoque recens horrebat regia culmo

O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo

143

O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de

Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se

manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo

a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-

lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-

se para o leitor a imagem do Capitoacutelio

Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno

dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno

no monte Capitolino

(hex 655-662)

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis

E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo

Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se

refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos

Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat

O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos

dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que

sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema

Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de

Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro

e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave

144

fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram

chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias

sagradas

(hex 663-666)

Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]

Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados

De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington

(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de

nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por

Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste

pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes

pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais

(hex 666-670)

[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem

Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis

No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o

Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute

responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador

romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias

divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas

Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou

Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral

145

coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo

apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que

o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos

Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que

atravessa o escudo como um tipo de fronteira

(hex 671-674)

Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant

Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas

Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um

animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de

Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como

seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval

contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da

batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos

romanos (GRIMAL 2014 p33)

Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-

se a figura de Otaviano em destaque

(hex 675-688)

In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx

146

No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia

Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o

senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio

e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas

monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a

Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os

presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana

A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)

O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma

a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de

Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e

Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a

batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-

se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os

justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes

episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a

percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo

contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa

147

portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias

acontecimentos que ainda natildeo aconteceram

O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave

peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do

dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos

O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)

Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um

termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele

carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei

Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o

tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado

e um futuro

Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos

personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave

presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado

148

a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os

primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo

divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com

isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado

Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as

figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um

estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma

construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma

recorrecircncia figurativa

Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a

rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio

marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial

um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia

As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias

engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa

do heroacutei e seu povo

A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para

temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos

romanos

149

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso

reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos

e figurativos na construccedilatildeo do sentido

Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que

configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto

mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio

Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e

figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico

efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto

Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas

para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras

a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do

grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular

tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de

Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e

eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade

temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio

Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar

em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As

Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou

diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir

deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra

de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores

frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas

traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico

singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado

pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se

de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos

relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime

grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que

satildeo descritos os feitos dos heroacuteis

150

Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do

princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do

discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de

procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia

estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que

eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade

previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica

Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam

sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do

gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo

Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma

temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples

Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade

instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado

para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras

participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas

melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a

obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados

para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda

a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste

excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica

descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras

presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na

apicultura

Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez

que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de

guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida

couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-

nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos

151

Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada

estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de

personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta

em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis

temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva

As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada

efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa

do dizer

Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis

stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os

animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes

ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que

figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito

Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus

figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por

Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia

tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade

do cenaacuterio no contexto do humilis stylus

Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu

que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros

281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto

aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo

justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos

podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns

conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem

disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves

caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto

como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale

destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as

abelhas se alojarem

Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo

Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos

anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo

152

Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes

destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus

apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a

menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes

portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo

personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e

os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos

previsiacuteveis neste contexto

No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como

protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus

que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o

seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais

representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui

estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos

representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das

personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas

e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis

Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes

na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo

grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens

sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita

Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma

homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e

para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos

Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o

mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e

grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a

diferentes discursos com diferentes pontos de vista

Segundo Discini (2009 p 59)

descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo

153

do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido

Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias

figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo

ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas

revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se

um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em

destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os

estilos

Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo

definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a

construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade

para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes

personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e

accedilotildees

Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico

e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio

coerente

Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que

perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a

especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das

accedilotildees circunscritas a cada estilo

Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)

Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []

Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam

nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir

154

deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender

como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um

especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo

A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica

alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem

experimentando-a e revificando-a

Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a

construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a

palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa

e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a

partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a

eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica

Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas

alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos

textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-

nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de

compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria

Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos

trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia

filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio

classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos

Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas

obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo

pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes

recorrecircncias figurativas

Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as

necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de

mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano

Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento

estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs

obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso

objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos

textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar

155

ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo

da isotopia figurativa presente em cada obra

Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio

destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da

estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema

figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de

excertos da obra virgiliana

Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu

contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica

didaacutetica e eacutepica

156

BIBLIOGRAFIA

AGUILAR David Paniagua El panorama literaacuterio teacutecnico-cientiacutefico em Roma (siglos I-II DC)

ldquoet docere et delectarerdquo Salamanca Universidade de Salamanca 2006

ALBRECHT Michael von Historia de la literatura romana Volumen I Version castellana

por los doctores Dulce Estefaniacutea y Andreacutes Pocintildea Peacuterez Barcelona Empresa Editorial

Herder 1997

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Trad direta do grego com introduccedilatildeo e iacutendices por Eudoro de

Souza Lisboa Guimaratildees Editora 1964

ARISTOacuteTELES HORAacuteCIO LONGINO A poeacutetica claacutessica Trad de Jaime Bruna

Introduccedilatildeo de Roberto de Oliveira Brandatildeo Satildeo Paulo Cultrix 1981

BALDAN Maria de Lourdes Ortiz Gandini Figuratividade da retoacuterica agrave semioacutetica In

In____ 50ordm Seminaacuterio do Grupo de Estudos Linguumliacutesticos do Estado de Satildeo Paulo - GEL

2002 Satildeo Paulo Anais do Gel 2002

BARROS Diana Luz Pessoa de Teoria semioacutetica do texto 4 ed Satildeo Paulo Aacutetica 2005

BECHARA Evanildo SPINA Segismundo (org) Os Lusiacuteadas ndash Antologia Luiacutes de Camotildees

Coleccedilatildeo Littera Grifo Mec 1973

BENVENISTE Eacutemile Problemas de linguiacutestica geral Trad M da G Novack e L Neri Satildeo

Paulo Nacional-Edusp 1976

BERTRAND Denis Caminhos da semioacutetica literaacuteria Trad Grupo Casa Bauru-SP Edusc

2003

BOLEacuteO Manuel de Paiva O bucolismo de Teoacutecrito e de Vergiacutelio Coimbra Biblioteca da

Universidade 1936

BORNECQUE Henri amp MORNET Daniel Roma e os romanos Trad Alceu Dias Lima

Satildeo Paulo Edusp 1976

157

BOWDER Diana Quem foi quem na Roma Antiga Satildeo Paulo Art Editora 1980

BRANDAtildeO Junito de Souza Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia e da religiatildeo

romana Petroacutepolis Vozes-Edunb 1993

BRANDAtildeO Junito de Souza Os idiacutelios de Teoacutecrito e as bucoacutelicas de Vergiacutelio Tese de

concurso agrave caacutetedra de Latim do Coleacutegio Pedro II (Internato) Rio de Janeiro Irmatildeos

Pongetti-Editores 1950

BRITTO Paulo Henriques A traduccedilatildeo literaacuteria Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2012

BRODSKY Joseph Menos que um Trad Sergio Flaksman Satildeo Paulo Cia das Letras

1994

BRUMMER Iacobus (editor) Vitae Vergilianae Leipzig Teubner 1912

CALVINO Italo Por que ler os claacutessicos Trad Nilson Moulin Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2007

CAMARA JUNIOR J Mattoso Dicionaacuterio de linguiacutestica e gramaacutetica 8 ed Petroacutepolis

Vozes 1978

CAMOtildeES Luiacutes V de Os Lusiacuteadas Comentados por Augusto Epiphanio da Silva Dias

Porto MagalhatildeesampMoniz 1910

CAMOtildeES Luiacutes V de Liacuterica Introduccedilatildeo e notas de Aires da Mata Machado Filho Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Edusp 1982

CARDOSO Zeacutelia A A Literatura latina Porto Alegre Mercado Aberto 1989

CART A et al Gramaacutetica latina Trad Maria Evangelina Villa Nova Soeiro Satildeo Paulo

Taq-Edusp 1986

CARVALHO Raimundo Bucoacutelicas de Virgiacutelio uma constelaccedilatildeo de traduccedilotildees In ____

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

158

CASCUDO Luis da Cacircmara Vaqueiros e cantadores Satildeo Paulo Global 2005

CASSIRER Ernst Linguagem e mito Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1972

CITELLI Adilson Linguagem e persuasatildeo 15 ed Satildeo Paulo Editora Aacutetica 2002

COHEN Jean Estrutura da linguagem poeacutetica Satildeo Paulo Cultrix Edusp 1974

COLEMAN Robert (ed) Vergil Eclogues Cambridge Cambridge University Press 1994

COMMELIN P Nova mitologia grega e romana Trad Thomaz Lopes Rio de Janeiro

Ediouro [19--] (Coleccedilatildeo Elefante)

COMPAGNON Antoine O democircnio da teoria literatura e senso comum Trad Cleonice

Paes Barreto Mouratildeo Consuelo Fortes Santiago 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG

2014

CONINGTON Aeneid Books VII-IX ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and

Anne Rogerson Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONINGTON Eclogues ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Brian Breed

Exeter Bristol Phoenix Press 2007

CONINGTON Georgics ldquoThe Works of Virgilrdquo Introduced by Philip Hardie and Monica R

Gale Exeter Bristol Phoenix Press 2008

CONTE Gian Biagio Latin literature a history Translated by Joseph B Solodow revised

by Don Fowler and Glenn W Most Baltimore London Johns Hopkins University Press

1999

CORREA J A C Poesiacutea latina pastoril de caza y pesca Madrid Gredos 1984

CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana Roma Enciclopedia Italiana 1996

vol III IV e V

159

CHEVALIER Jean e GHEERBRANT Alain Dicionaacuterio de siacutembolos ndash mitos sonhos

costumes gestos formas figuras cores nuacutemeros Trad Vera da Costa e Silva et alii Rio

de Janeiro Joseacute Olympio Editora 1999

CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p

22

DISCINI Norma O estilo nos textos histoacuterias em quadrinhos miacutedias literatura 2 ed Satildeo

Paulo Contexto 2009

DISCINI Norma Corpo e estilo Satildeo Paulo Contexto 2015

ELIADE Mircea Mito e realidade 6 ed Traduccedilatildeo Poacutela Civelli Satildeo Paulo Editora

Perspectiva 2002

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino-portuguecircs Belo Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2003

FERREIRA Antoacutenio Poemas Lusitanos Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbekian 2000

FIORIN Joseacute Luiz A leitura e a interpretaccedilatildeo de textos In ____ LIMA Alceu Dias et al

Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 19-23

FIORIN Joseacute Luiz A noccedilatildeo de texto na semioacutetica In___Organon Revista do Instituto de

Letras da UFRGS v9 n23 1995

FIORIN Joseacute Luiz Elementos de anaacutelise do discurso15 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

128

FOWLER Alastair Literary Names personal names in English Literature Oxford University

Press United Kingdom 2012

FUNARI Pedro Paulo Greacutecia e Roma - Repensando a Histoacuteria 2 ed Satildeo Paulo Contexto

2001

GARLAND John of The Parisiana Poetria Edited with introduction translation and notes

by Traugott Lawler New Haven and London Yale University Press 1974

160

GONZAGA Tomaacutes Antocircnio Mariacutelia de Dirceu Coleccedilatildeo Grandes Obras Satildeo Paulo Editora

Escala 2006

GREIMAS Algirdas Julien amp COURTEacuteS Joseph Dicionaacuterio de Semioacutetica Trad Alceu Dias

Lima et al 2 ed Satildeo Paulo Contexto 2011

GREIMAS Algirdas Julien Ensaios de semioacutetica poeacutetica Trad de Heloysa de Lima Dantas

Satildeo Paulo Cultrix 1975

GRIMAL Pierre Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 4a ed Trad Victor Jabouille

Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2014

GRIMAL Pierre Virgiacutelio ou o segundo nascimento de Roma Trad Ivone Castilho Benedetti

Satildeo Paulo Martins Fontes 1992

GUILLEMIN Virgilio poeta artista y pensador Version castellana de Eduardo J Prieto

Buernos Aires Argentina Biblioteca de Cultura Claacutessica Editorial Paidoacutes sd

GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo Paulo Mestre Jou 1970

HANSEN Joatildeo A Instituiccedilatildeo retoacuterica Teacutecnica retoacutetica Discurso In Matraga vol 20 n 33

Rio de Janeiro 2013

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Trad Maacuterio da

Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987

HASEGAWA Alexandre Pinheiro Os limites do gecircnero bucoacutelico em Vergiacutelio 2005 262 f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras (Letras Claacutessicas)) - Universidade de Satildeo Paulo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

HEGEL A poesia In Esteacutetica poesia Lisboa Guimaratildees editores 1993

LIMA LEITAtildeO Antocircnio Joseacute de As obras de Publio Virgiacutelio Maro Rio de Janeiro Impressatildeo

Regia 1819

HJELMSLEV Louis Prolegocircmenos a uma teoria da linguagem 2 ed Trad J Teixeira

Coelho Netto Satildeo Paulo Perspectiva 2003

161

HOUAISS Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 3 ed rev e aum Rio de Janeiro Objetiva

2008

HUIZINGA Johan Homo ludens o jogo como elemento da cultura Satildeo Paulo Perspectiva

2007

JAKOBSON Roman Linguiacutestica e comunicaccedilatildeo Trad Izidoro Blikstein e Joseacute Paulo Paes

Satildeo Paulo Cultrix 1989

JAKOBSON R O que eacute a poesia In TOLEDO Dioniacutesio (org) Ciacuterculo linguiacutestico de

Praga estruturalismo e semiologia Trad Z de Faria R Toledo e D Toledo Porto Alegre

Globo 1978 p 167-180

JOHN OF GARLAND Encyclopaedia Britannica In

httpswwwbritannicacombiographyJohn-of-Garland Acesso Outubro2018

LAIRD Andrew Re-inventing Virgilrsquos Wheel the poet and his work from Dante to Petrarch

In___Classical literary careers and their reception Edited by Philipd Hardie and Helen

Moore Cambridge University Press 2010

LAUSBERG Heinrich Elementos de retoacuterica literaacuteria 4 ed Traduccedilatildeo prefaacutecio e

aditamentos de R M Rosado Fernandes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993

LEONI G D A Literatura de Roma Livraria Nobel SA 1969

LIMA Alceu Dias et al Latim da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Para uma leitura poeacutetica da Eacutegloga V de Virgiacutelio In Latim da fala agrave

liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

LIMA Alceu Dias Ensino das letras (des)encontros do 3ordm grau In Latim da fala agrave liacutengua

Araraquara-SP FCL-UNESP 1992 p 11-16

LIMA Alceu Dias A leitura do poeacutetico questotildees de semioacutetica e de meacutetodo In

Significaccedilatildeo revista brasileira de semioacutetica n 1 Ribeiratildeo Preto (SP) 1974 p 59-79

162

LIMA Alceu Dias De metrificaccedilatildeo e poesia latina In Alfa revista de linguiacutestica

(UNESP) Satildeo Paulo v 47 n 1 p 99-109 2003

LIMA Alceu Dias Poesia latina anotaccedilotildees linguiacutesticas e fonoestiliacutesticas In Significaccedilatildeo

revista brasileira de semioacutetica Satildeo Paulo n 89 p 145-54 1990

LIMA Alceu Dias Uma estranha liacutengua questotildees de linguagem e de meacutetodo Satildeo Paulo

Edunesp 1995

LIMA Luiz Costa A questatildeo dos gecircneros In LIMA Luiz Costa (Org) Teoria da literatura

em suas fontes Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 v 1 p 237-274

LIacuteVIO Tito Histoacuteria de Roma Ab urbe condita libri Primeiro Volume Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas de Paulo Matos Peixoto Satildeo Paulo Editora Paumape 1989

LONGO Giovanna Ensino de latim problemas linguiacutesticos e uso de dicionaacuterio 105f

Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual

Paulista Araraquara 2005

LOPES Edward Fundamentos da linguiacutestica contemporacircnea Satildeo Paulo Cultrix 2005

LOPES Edward A identidade e a diferenccedila raiacutezes histoacutericas das teorias estruturais da

narrativa Satildeo Paulo Edusp Imprensa Oficial 1997

LOPES Ivatilde Carlos Entre expressatildeo e conteuacutedo movimentos de expansatildeo e condensaccedilatildeo

In____ Itineraacuterios revista de literatura (Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 65-75

130

MARTIN Reneacute amp GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

1990

MAYER Ruy As Geoacutergicas de Vergiacutelio Versatildeo em prosa dos trecircs primeiros livros e

comentaacuterios de um agrocircnomo Lisboa Livraria Saacute da Costa 1948

MENDES Joatildeo Pedro Construccedilatildeo e arte das bucoacutelicas de Virgiacutelio Coimbra Livraria

Almedina 1997

163

MENDES Mauro Virgiacutelio e os cantadores Salvador-BA 2005 40 fls Disponiacutevel em

httpwwwarquivorscommauromendes11htm Acesso em outubro de 2018

MIOTTI Charlene Martins Notas e comentaacuterios sobre a traduccedilatildeo da eacutecloga IV In

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

MONTAGNER Airto C Eacutepica lugares e caminhos In Principia revista do Departamento de

Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras - LECO - INSTITUTO DE LETRAS - CEH

- Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ano 17 Nordm XXIX 2014

OLIVA NETO Joatildeo Acircngelo Por que ler os claacutessicos In Entrelinhas (2011) Disponiacutevel em

httpswwwyoutubecomwatchv=bRzQg5SApbE Acesso em janeiro2020

PARATORE Ettore Histoacuteria da Literatura Latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1983

PAZ Octavio O arco e a lira Trad Ari Roitman e Paulina Watch Satildeo Paulo Cosac Naify

2012

PAZ Octavio Signos em rotaccedilatildeo 3 ed Trad Sebastiatildeo Uchoa Leite org e rev Celso

Lafer e Haroldo de Campos Satildeo Paulo Perspectiva 2009

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura grega

(vol I) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2002

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana

(vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2009

PERUTELLI Alessandro ldquoO texto como professorrdquo In O espaccedilo literaacuterio da Roma antiga ndash

vol I a produccedilatildeo do texto editado por G Cavallo A Giardina e P Fedeli trad de Daniel

Pelucci Carrara e Fernanda Messeder Moura 293ndash327 Belo Horizonte Tessitura 2010

PHILARGIRIUS Iunius Explanatio in Bucolica Ed HHagen In Appendix Seruiana

Leipzig 1902

164

POUND Ezra Abc da literatura 9 ed Trad Augusto de Campos e Joseacute Paulo Paes Satildeo

Paulo Cultrix 2001

PLATAtildeO amp FIORIN Para entender o texto 16 ed 7 impressatildeo Satildeo Paulo Editora Aacutetica

2003

PRADO Joatildeo Batista Toledo Canto e encanto o charme da poesia latina contribuiccedilatildeo para

uma poeacutetica da expressividade em liacutengua latina 272f Tese (Doutorado em Letras)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo

1997

PRADO Joatildeo Batista Toledo O mito de Daacutefnis assassinato e apoteose do heroacutei In Latim

da fala agrave liacutengua Araraquara-SP FCL-UNESP 1992

PRADO Joatildeo Batista Toledo A configuraccedilatildeo do espaccedilo poeacutetico concepccedilotildees sobre

metricologia latina In Espaccedilos e paisagens antiguidade claacutessica e heranccedilas

contemporacircneas Vol 1 Coimbra 2012 Disponiacutevel em

lthttpsdigitalisucpthandle10316231761gt Acesso em Jan2020

PROBI Valerii M Vergilii Bucolica et Georgica commentarius accedunt scholiorum

Veronensium et aspri quaestionum Vergilianarum fragmenta edidit Henricus Keil Halis

Sumptibus Edvardi Anton 1848

RAMOS Peacutericles E da Silva Nota introdutoacuteria agrave IV Bucoacutelica In ____ VIRGIacuteLIO

Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos introd de Nogueira Moutinho

Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

RIBEIRO Maacutercio Luiz Moitinha A poesia pastoril as bucoacutelicas de Virgiacutelio Satildeo Paulo

2006 123 p Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em

Letras Claacutessicas do DLCV da FLFCH da Universidade de Satildeo Paulo

ROSTAGNI Enrico Il Codice Mediceo di Virgilio La Libreria dello Stato 1931

SANTOS Elaine C Prado dos O IV canto das Geoacutergicas Satildeo Paulo Scortecci 2007

SARAIVA F R dos S Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs 12a ed (fac-similar) Belo

165

Horizonte Rio de Janeiro Garnier 2006

SAUSSURE Ferdinand de Curso de linguiacutestica geral 25 ed Trad Antocircnio Chelini Joseacute

Paulo Paes e Izidoro Blikstein Satildeo Paulo Cultrix 2003

SENECA L A Cartas a Luciacutelio 2 ed Trad J A Segurado e Campos Lisboa Calouste

Gulbenkian 2004

SILVA Ignacio Assis Figurativizaccedilatildeo e metamorfose o mito de Narciso Satildeo Paulo

Edunesp 1995

SOARES Virgiacutenia Sementes de Frustraccedilatildeo na Eneida In Humanitas - 35-36- FLUC 1983-

1984

STAIGER Emil Conceitos fundamentais da poeacutetica Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

1972

THAMOS Maacutercio amp LIMA Alceu Dias Verso eacute pra cantar e agora Virgiacutelio In ____ Alfa

revista de linguiacutestica (UNESP) Satildeo Paulo v 49(2) p 125-132 2005

THAMOS Maacutercio As armas e o varatildeo leitura e traduccedilatildeo do canto I da Eneida Satildeo Paulo

Editora da Universidade de Satildeo Paulo 2011

THAMOS Maacutercio Poesia e imitaccedilatildeo a busca da expressatildeo concreta 145f Dissertaccedilatildeo

(Mestrado em Letras) Faculdade de Ciecircncias e Letras Universidade Estadual Paulista

Araraquara 1998

THAMOS Maacutercio Figuratividade na poesia In____Itineraacuterios revista de literatura

(Semioacutetica) Araraquara n 20 (especial) p 101-118 2003

THAMOS Maacutercio Catulo e a figuratividade poeacutetica ou um pequeno drama liacuterico em trecircs

atos In ____Mateacuteria de poesia criacutetica e criaccedilatildeo Org Antocircnio D Pires e Maria Luacutecia O

Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica

2010 p 33-46

THOMAS R F Prose into poetry tradition and meaning in Virgils ldquoGeorgicsrdquo In Harvard

studies in classical philology Cambridge Mass London vol XCI p229-260 1987

166

TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New

York Routledge 1996

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998

TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed

Unicamp 2014

VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e

notas 1 ed Campinas Editora da UNICAMP 2011

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres

1956

VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres

1967

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira

Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de

Odorico Mendes Belo Horizonte Tessitura Crisaacutelisa 2005

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996

VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo

Grupo de Trabalho Odorico Mendes Cotia SP Ateliecirc Editorial Campinas SP Editora da

Unicamp 2008

VIRGIL Georgics Translation by H Rushton Fairclough Cambridge Massachusetts

Harvard University Press London Willian Heinemann Ltd 1986

VIRGILE Georgiques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint- Denis Paris Les Belles

Lettres 1968

167

VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel

Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930

VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres

1959 e 1957

VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92

VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes

Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948

VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose

Ballesta Editor 1946

VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina

Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc

Editorial 2005

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008

VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008

WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press

Cambridge New-York 2010

Figuras

Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de

histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 2002 p247

Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)

Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592

168

Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria

Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London

Yale University Press 1974 p 40-41

Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo

Paulo Mestre Jou 1970 p 26

Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol

IV 1996 p 465

Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa

Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22

Page 7: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 8: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 9: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 10: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 11: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 12: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 13: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 14: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 15: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 16: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 17: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 18: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 19: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 20: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 21: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 22: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 23: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 24: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 25: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 26: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 27: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 28: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 29: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 30: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 31: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 32: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 33: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 34: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 35: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 36: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 37: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 38: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 39: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 40: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 41: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 42: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 43: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 44: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 45: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 46: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 47: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 48: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 49: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 50: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 51: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 52: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 53: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 54: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 55: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 56: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 57: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 58: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 59: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 60: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 61: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 62: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 63: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 64: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 65: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 66: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 67: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 68: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 69: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 70: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 71: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 72: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 73: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 74: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 75: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 76: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 77: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 78: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 79: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 80: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 81: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 82: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 83: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 84: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 85: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 86: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 87: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 88: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 89: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 90: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 91: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 92: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 93: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 94: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 95: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 96: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 97: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 98: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 99: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 100: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 101: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 102: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 103: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 104: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 105: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 106: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 107: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 108: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 109: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 110: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 111: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 112: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 113: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 114: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 115: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 116: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 117: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 118: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 119: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 120: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 121: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 122: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 123: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 124: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 125: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 126: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 127: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 128: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 129: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 130: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 131: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 132: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 133: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 134: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 135: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 136: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 137: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 138: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 139: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 140: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 141: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 142: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 143: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 144: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 145: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 146: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 147: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 148: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 149: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 150: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 151: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 152: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 153: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 154: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 155: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 156: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 157: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 158: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 159: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 160: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 161: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 162: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 163: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 164: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 165: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 166: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 167: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 168: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 169: Thalita Morato Ferreira - Unesp
Page 170: Thalita Morato Ferreira - Unesp