uma dor silenciosa - pdf leyapdf.leya.com/2011/jan/uma_dor_silenciosa_gwsa.pdf · 14 uma dor...

30
Francisco Guerra UMA DOR SILENCIOSA

Upload: trinhduong

Post on 07-Feb-2019

272 views

Category:

Documents


8 download

TRANSCRIPT

Francisco Guerra

UMA DOR SILENCIOSA

NOTA DO EDITOR

Este livro traz-nos uma versão dos acontecimentos que levaram à origem do processo «Casa Pia». Uma versão relatada por Francisco Guerra, considerado pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público, uma das principais testemunhas do processo. Apesar de se basear em factos, supostamente vividos directamente pelo FG e como tal denunciados às autoridades, optámos por alterar alguns dos nomes referidos nesta história. Tratam-se dos nomes dos presumíveis abusadores e de algumas das pessoas envolvidas na falada rede pedófila. Fazemo-lo porque não é nossa intenção, com esta publicação, pôr em causa a honra ou o bom nome, de nenhum dos principais visa-dos no processo que têm pugnado pela sua total inocên-cia e contra os quais também não transitou em julgado, até esta data, qualquer decisão condenatória. Explicado isto, falta referir quais são os nomes ficcionados. Eles são: Alcino, Alexandre Freitas, André Cunha, António Carvalho, Campos Serra, Carneiro, Duarte Costa, José Marques, Josefina Silva, Manuel João, Paulo Horta, Paulo

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra8

Neves, Pedro Ramos, Rui Santos, Sousa Pires e Tavares Coelho. Os nomes reais dos arguidos e/ou pessoas que foram sujeitas a investigação, são mencionados apenas nos relatos factuais, como é o caso da cronologia do processo, bem como da sentença final, tal como nela constam.

Queria deixar um agradecimento especial às pessoas que me acompanharam ao longo dos últimos oito aos. Foram elas que, de diferentes formas, me sal-varam a vida e, graças a quem, continuo aqui hoje. Elas são a Dr.a Catalina Pestana, Dr.a Olga Miralto, Dr. Pedro Strecht, Dr. Álvaro de Carvalho, ex -inspec-tor Dias André e Joana Grilo.

13 Prefácio

17 Cronologia do processo

27 O dia da sentença final

31 Os primeiros anos da infância

49 A chegada à Casa Pia

65 O dia em que tudo deixou de fazer sentido

81 O homem do Ferrari vermelho

87 A casa de Elvas

103 A rede

115 Por fim, a bomba rebenta

137 Usar fraldas aos 20 anos

143 A tentativa de suicídio

153 O grande amor da minha vida

163 O grande dia

171 O futuro

177 A sentença

181 A Casa Pia

ÍNDICE

PREFÁCIO

Por minha vontade pessoal, não gastaria mais um minuto que fosse, com o chamado «Processo Casa Pia».

É a altura, em meu entender, de deixar a burocracia jurídica aos burocratas da justiça.

Virar a página, e organizar cidadãos conscientes de que abusos sexuais, ou outros, exercidos sobre crianças e adolescentes, precisam da sua intervenção pró-activa, para, juntos, fazermos frente às redes nacionais e inter-

nacionais, que são mais ou menos toleradas por cada um de nós, e pelos Estados, alguns dos quais são por elas financiados.

Quando, após a leitura do Acórdão do julgamento em

primeira instância, o Francisco Guerra me disse que estava a escrever um livro, para contar o que a sentença não tinha dito, tentei dissuadi-lo.

O Francisco, não é perito em escrita, e ainda tem muitas feridas abertas e muita raiva. Estas condições não ajudam a fazer história.

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra14

Respondeu-me, que isso não seria um impedimento a contar o que mais ninguém a não ser o Carlos Silvino e ele tinham protagonizado.

Só me convenceu, quando, o homem de 25 anos que é hoje, apelou à minha coerência. «Sabe tão bem como eu, que ainda existem abusadores e cúmplices dentro da Casa Pia, e pede-me que me cale?»

Este Francisco, eu não conhecia ainda. Ele tinha razão, a verdade jurídica nem sempre coincide com a verdade factual.

As provas não chegaram para condenar alguns dos abusadores, e as leis iníquas existentes em 2002, nesta área do Direito Penal, não permitiram investigar outros suspeitos.

Diziam as supracitadas leis, que qualquer criança abu-sada na infância, perdia o direito de apresentar queixa aos 16 anos e 6 meses. 16 anos e 6 meses significam realidades psicossociológicas muito diferentes, mormente quando se trata de crianças institucionalizadas.

Não conhecem as leis, por piores que sejam, e a ins-tituição onde vivem foi o último refúgio que os acolheu.

Muitas vezes o inferno dos abusos tinha começado antes, no contexto familiar.

O Francisco Guerra, como todos os outros, têm o direito de narrar a sua verdade de forma a que outros, na mesma idade em que eles foram vítimas, acreditem que vale a pena a denúncia.

Quando um homem de 25 anos expõe a sua intimidade, que o ensinaram a guardar em segredo, está sem dúvida nenhuma a crescer como pessoa, e a ajudar a crescer o colectivo.

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra 15

Este não é um livro sensacionalista, nem traz os nomes que constam do processo, que não foram tornados públi-cos. É um livro que obriga os profissionais, as famílias e as instituições a aprenderem a ler os sinais que as crianças vão dando, sem assobiar para o ar.

O Francisco Guerra viveu poucos dias na Casa Pia depois de eu ter assumido funções de Direcção na Insti-tuição. Odiou-me, congratulo-me por isso.

Por todos os caminhos que percorreu depois da prisão de Carlos Silvino, a Casa Pia acompanhou-o sempre, à distância.

Não posso pois subscrever as suas afirmações, mas ouvi de muitos outros, factos tão semelhantes, que fizeram esbater qualquer dúvida que me tenha surgido ao longo do processo.

CRONOLOGIA DO PROCESSO

2002

— 23 de Novembro —O jornal Expresso publica a primeira reportagem sobre abusos de

menores na Casa Pia de Lisboa. A notícia refere Carlos Silvino da Silva, motorista da instituição, como abusador, segundo um testemunho de um ex-aluno a quem é atribuído o nome fictício de «Joel».

— 25 de Novembro —Carlos Silvino da Silva, conhecido por Bibi, ex-casapiano e motorista da

instituição, é preso no escritório da sua advogada.Teresa Costa Macedo, ex-secretária de estado da Família, defende-se

publicamente das acusações que lhe são feitas pela notícia do Expresso, segundo a qual teria abafado um relatório de 1982 onde eram men-cionados os nomes de Carlos Cruz e Jorge Ritto e garante ter tido nas mãos fotografias que incriminam várias personalidades da vida política portuguesa.

Bagão Félix, ministro do Emprego e Segurança Social, demite Luís Rebelo, Provedor da Casa Pia.

— 26 de Novembro —Fica a saber-se que as provas do relatório de 1982 entregues por Teresa

Costa Macedo à Judiciária foram destruídas depois de arquivadas.

— 27 de Novembro — O site PortugalDiário publica várias reportagens sobre a Casa Pia.

Numa delas afirma que o local de recolha dos alunos da Casa Pia era o jardim de Belém, e uma entrevista com o agente da judiciária que ouviu os jovens em 1982.

— 28 de Novembro —Jorge Ritto, em declarações à SIC, diz estar disponível para ir à polícia

falar sobre o que aconteceu em 1982. Carlos Cruz, que viu o seu nome divulgado pelo Diário de Notícias como sendo um dos abusadores de me-nores, vai a todas as televisões declarar-se inocente.

— 29 de Novembro —Bagão Félix nomeia Catalina Pestana como Provedora da Casa Pia,

substituindo o recentemente demitido Luís Rebelo.

— 30 de Novembro —Polícia Judiciária encontra filmes pornográficos em casa de um

pediatra.

— 3 de Dezembro —Hugo Marçal, entretanto nomeado advogado de Carlos Silvino, diz

aos jornalistas que o seu cliente está psicologicamente afectado. Bagão ordena sindicância à Casa Pia.

— 5 de Dezembro —Numa reportagem da TVI, «Teresa», uma aluna da Casa Pia que foi

encontrada em casa de Jorge Ritto, em 1982, garante ter tido na mão fotos com personalidades públicas. Os nomes são escondidos por sinais sonoros.

— 28 de Dezembro —Os jornais falam, pela primeira vez, numa holandesa «desconhecida»

que pagava a defesa de Bibi. Mais tarde ficou a saber-se que se tratava de uma portuguesa residente na Holanda, que seria meia-irmã de Carlos Silvino.

2003

— 31 de Janeiro —Carlos Cruz, apresentador de televisão, Ferreira Dinis, médico, e Hugo

Marçal, até aí advogado de Bibi, são presos. O apresentador é detido no Algarve e a Judiciária alega que se preparava para fugir do país. No dia seguinte, Hugo Marçal é libertado após pagamento de caução. Os outros dois arguidos ficam em prisão preventiva sem possibilidade de paga-mento de caução.

— 22 de Fevereiro —Gertrudes Nunes, uma mulher de Elvas que trabalha como ama para a

Segurança Social, é constituída arguida.

— 1 de Abril —É detido Manuel Abrantes, ex-Provedor da Casa Pia.

— 5 de Maio —Hugo Marçal volta a ser detido e fica em prisão preventiva.

— 20 de Maio —Jorge Ritto, embaixador, é preso preventivamente.

— 21 de Maio —O juiz de instrução do processo, Rui Teixeira, vai à Assembleia da

República pedir o levantamento da imunidade parlamentar de Paulo Pedroso, deputado do PS.

— 22 de Maio —Paulo Pedroso, dirigente socialista e ex-ministro, é preso preventiva -

mente.

— 30 de Maio —Herman José, humorista, presta declarações na Polícia Judiciária e é

constituído arguido.

— 1 de Setembro —A audição por videoconferência para memória futura das 32 vítimas da

Casa Pia é cancelada, após os advogados dos arguidos pedirem o afasta-mento do juiz do inquérito, Rui Teixeira.

— 8 de Outubro —Paulo Pedroso sai em liberdade do Estabelecimento Prisional de Lisboa

e é recebido, na rua, por vários dirigentes do PS. Segue, depois, para a Assembleia da República onde é recebido em ambiente de festa pelo seu grupo parlamentar.

— 17 de Outubro —Hugo Marçal sai em liberdade mas é-lhe aplicada a medida mínima de

termo de identidade e residência.

— 29 de Dezembro —A fase de inquérito chega ao fim e o Ministério Público acusa 10 dos 13

arguidos.

— 31 de Dezembro —Ferreira Dinis passa para o regime de prisão domiciliária.

2004

— 2 de Abril —Jorge Ritto sai da prisão mas fica obrigado, pelo tribunal, a apresenta-

ções periódicas.

— 4 de Maio —Carlos Cruz passa ao regime de prisão domiciliária.

— 7 de Maio —Manuel Abrantes é posto em regime de prisão domiciliária.

— 31 de Maio —Carlos Silvino da Silva, Carlos Cruz, Jorge Ritto, Ferreira Dinis, Manuel

Abrantes, Hugo Marçal e Gertrudes Nunes são pronunciados. Paulo Pedroso, Herman José e Francisco Alves não são incluídos no despacho de pronúncia e não vão a julgamento.

— 25 de Novembro —Começa, no Tribunal da Boa-Hora, o julgamento.

— 2 de Dezembro —A segunda sessão realiza-se no Tribunal de Monsanto, depois de os juí-

zes a quem foi entregue o caso terem decidido que a Boa-Hora não tinha condições para albergar um julgamento que envolvia tanta gente.

O DIA DA SENTENÇA FINAL

Combinei com a Dra. Catalina Pestana estar à porta de casa dela às 8h00 do dia 3 de Setembro de 2010, para irmos juntos para o tribunal. A ansiedade era tanta que nessa noite não consegui dormir!

Andei horas, sozinho em casa, de um lado para o outro, e então resolvi arranjar -me e ir andado. Parecia que o tempo não passava. Vesti o meu fato novo e uma gravata amarela comprados especialmente para a ocasião. Afi-nal, tinha esperado oito anos por este dia. Eram 4h30 da manhã quando parei o carro à porta de casa da Dra. Cata-lina Pestana e foi ali que passei, acordado, o resto da noite a ler jornais.

Às 6h00, abriu um café que existe nas redondezas, fui tomar o pequeno -almoço e voltei para o carro. Às 7h30, meia hora antes do que estava combinado, a Dra. Catalina apareceu na rua. Surpreendido, saí do carro e fui ter com ela. Ficou muito admirada de me ver já ali.

– Não conseguia dormir. Cheguei eram 4h30 da manhã – co ntei -lhe.

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra30

– Ficaste aqui na rua, dentro do carro? Porque é que não bateste à porta?

– Não lhe ia bater à porta àquela hora, Sra. Dra.– Não me acordavas, Francisco. Eu também não dormi.Quando entrámos no carro da Dra. Catalina Pestana

olhei para ela com atenção. Estava muito elegante. Vinha muito bem penteada e usava um vestido muito bonito. Então reparei em mim, impecável, com o meu fato e gra-vata novos, e não resisti a dizer -lhe:

– Estamos os dois tão bonitos que até parece que vamos para um casamento!

Rimo -nos os dois, num misto de alegria e ansiedade, sem conseguirmos esconder os muitos nervos que aquele dia nos trazia.

OS PRIMEIROS ANOS DA INFÂNCIA

Nasci na Damaia, no dia 27 de Outubro de 1985. As pri-meiras recordações de infância que guardo não são as melhores. Lembro -me que a casa dos meus pais, onde vivia, era velha e escura e tinha um corredor muito com-prido, daqueles que parecem não acabar, pelo menos, é assim que a lembro. Uma casa suja e desarrumada.

Quanto aos meus pais, Manuel Casimiro e Teresa Maria, recordo -os sempre bêbedos. Já não eram jovens quando eu nasci. Tinham trinta e tal ou quarenta anos quando isso aconteceu, e não sei o que lhes terá passado pela cabeça para acharem que seria uma boa ideia terem filhos. Talvez eu não tenha sido desejado, não sei. Nunca ninguém mo conseguiu dizer. A verdade é que eles não nasceram para ser pais, não têm ideia do que isso é. Nunca tiveram o mínimo de responsabilidade sobre a vida deles e isso também não mudou depois do meu nascimento. Fiquei sempre com a ideia de que não trabalhavam porque nunca os ouvi dizer que saíam para o emprego. Não era isso que impedia a minha mãe de passar o tempo todo na rua, nem sei a fazer o quê. Mal a via. Já o meu pai

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra34

passava os dias na tasca, a beber. Apesar desse ambiente não ser o mais recomendado para uma criança, às vezes, levava -me com ele. Não sei o que lhe passava pela cabeça, mas de qualquer modo, estarem juntos em casa também não era solução: agrediam -se mutuamente, gritavam e a escandaleira era tal que a polícia estava sempre a ir lá ver o que se passava. É disto que me lembro.

Tenho ideia de que nos meus primeiros cinco anos de vida, felizmente, passei mais tempo com os meus avós paternos, Francisco e Odete Guerra, do que com os meus pais. Viviam em Benfica e, ainda hoje, a maior parte das minhas recordações de miúdo têm lugar em casa deles. O meu avô era dono da cadeia de lojas «Tem Tudo». Ao que sei terá sido a primeira rede de «lojas dos 300» que apareceu em Portugal. Tinha também stands de auto-móveis. Eram pessoas que viviam bem, de tal maneira que a minha avó não trabalhava, e podia ficar em casa comigo. Eu gostava imenso de estar com eles. A vida lá era muito diferente da que tinha em casa dos meus pais. Os meus avós preocupavam -se comigo, gostavam de mim, mimavam -me, brincavam comigo. A minha avó Odete era tão querida que costumava chamar -me até de «olhos de azeitona». Ninguém mais me tratou assim, com tanto carinho.

Todos os brinquedos que tive nessa altura foram -me oferecidos pelos meus avós. Davam -me bonecos e carros telecomandados. Eu adorava. Já com os meus pais não me lembro de me terem dado uma única prenda.

Durante anos, a minha avó foi a minha protectora. Lembro -me de que sempre que tinha de ir para casa dos meus pais, a minha avó protestava. Não gostava nada que

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra 35

eles me levassem. Talvez por ter consciência daquilo por que eu passava lá…

Quando tinha entre quatro ou cinco anos, a minha avó Odete morreu, sem que eu soubesse como nem porquê. Foi nesse dia que o meu mundo começou a ruir. Não me recordo de muitos pormenores, nem de a ver doente, nem de como soube da notícia ou como me explicaram o que tinha acontecido. Tenho uma vaga ideia de estar no seu funeral e de ser esse o dia a partir do qual perdi o contacto com o meu avô Francisco. Durante os 20 anos seguintes não soube nada dele, como se tivesse mor-rido também naquela tarde. Só voltámos a falar quando, do nada, recebo no dia de Ano Novo, há cerca de um ano atrás, um inesperado telefonema seu. Disse -me que vivia agora num lar de idosos e fui de imediato visitá -lo. Contou -me muitas coisas sobre essa etapa da minha vida. Foi através dele que, por exemplo, fiquei a saber que a minha avó Odete morreu depois de ter sofrido um AVC e ter entrado em coma. Foi também ele que me deu as poucas fotografias que tenho da minha infância, que guardo como se fossem um tesouro. Não tenho outras. São imagens do meu baptizado, ao que me disse: «uma festa muito grande e bonita». Falou -se sobre os negócios que teve e sobre como as coisas começaram a correr mal depois da morte da minha avó. Parece que o meu pai exigiu a metade da herança a que tinha direito e, em pouco tempo, gastou tudo em álcool. O meu avô, que era diabético, teve umas complicações de saúde e pouco depois teve de amputar as duas pernas. A vida dele nunca mais voltou a ser como era quando a minha avó Odete era viva. A minha também não.

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra36

Depois do funeral da minha avó fui viver com os meus pais e é nessa altura que me lembro de ver pela primeira vez lá em casa o meu irmão Marco, que parecia recém--nascido. Era, pelo menos, um bebé muito pequeno. Mas sempre me fez confusão por não me lembrar de ver a minha mãe grávida ou de me terem dito que ele tinha nascido.

Eu e o Marco sempre fomos muito parecidos fisica-mente um com o outro. Vê -se logo que somos irmãos. E somos os dois iguais ao nosso pai.

A casa dos meus pais era, como se pode imaginar, uma grande confusão. Tudo fora do sítio, tudo sujo, desor-ganizado. Como estavam sempre bêbados batiam -me e maltratavam -me. Acontecia muitas vezes, ao fim do dia, o meu pai chegar a casa com os copos e mandar -me ir com o meu irmão pedir esmola porque tinha gasto o dinheiro todo e queria continuar a beber. Não havia comida em casa, mas isso não o preocupava… Desatava aos gritos e empurrava -nos porta fora e eu tinha de trazer dinheiro para casa. Nessas alturas sentia muita vergonha, mas pegava no meu irmão, que era pequeno, e andava ali na rua onde morávamos a pedir esmola a quem passava e, às vezes, também entrava nos cafés. Algumas pessoas davam -nos umas moedas, outras enxotavam -nos como se fossemos cães com sarna. E eu só podia voltar para casa quando tivesse dinheiro para entregar ao meu pai. Caso contrário, ele dava -me uma tareia e voltava a mandar -me ir para a rua, mendigar.

Não foi um período feliz e eu não gostava nada daquilo.Certo dia, a minha tia Josefina, que era irmã da minha

mãe, foi -nos visitar à Damaia e saiu de lá muito preocupada

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra 37

com as condições em que eu e o meu irmão vivíamos e fez queixa ao Tribunal de Menores. Por causa dessa queixa, a minha tia Gabriela, que também é irmã da minha mãe, e o meu tio Vítor, marido dela, que moram em Peniche, tomaram conta do meu irmão Marco. Já eu, fui viver para a Ajuda, para o Rio Seco, para casa dos meus tios Josefina e Leopoldo.

Gostei muito de viver em casa deles. O meu tio Leopoldo tinha sido marinheiro e, depois, trabalhou num estaleiro. A minha tia Josefina era estofadora. Conheceram -se de uma maneira muito engraçada. Um dia, a minha tia foi ao estaleiro onde ele trabalhava para estofar qualquer coisa num barco, e foi assim que se conheceram e depois casa-ram. O tio Leopoldo era bastante mais velho do que ela, aí uns 14 ou 15 anos, mas isso não foi um impedimento a que se apaixonassem.

Quando fui viver para casa deles, já eram os dois refor-mados. O tio Leopoldo sofria dos pulmões, creio que por causa do trabalho que teve, e a tia Josefina devia ter um problema qualquer nas costas, porque se estava sempre a queixar. Tratavam -me bem, especialmente o meu tio Leopoldo, que era muito meu amigo. Para além da minha avó, foi a única pessoa que me deu carinho. Era uma pessoa muito divertida, estava sempre a brincar comigo e nunca se aborrecia por eu lhe fazer perguntas. Aprendi muitas coisas com ele. Em tempos, o tio Leopoldo tinha tido um papagaio que repetia tudo o que ele lhe ensinava e tudo o que ouvia. Ele contava -me muitas histórias com esse papagaio e eu ria -me muito com aquilo tudo.

O meu tio levava -me para todo o lado. Íamos juntos ao café, passeávamos, comprava -me gelados. Lembro -me de,

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra38

uma vez, ver uma nota de mil escudos caída no chão do café e de a ter mostrado ao meu tio. E ele disse -me: «Põe o pé em cima dela e apanha -a.» Foi o que eu fiz, apanhei a nota e entreguei -lha. Nesse dia, comprou -me três gelados. O meu tio passava muito tempo na sociedade recreativa do Rio Seco, a jogar dominó com os amigos dele e eu andava sempre por ali com eles ou ia brincar com outros miúdos. Como havia um campo de futebol, jogávamos muito à bola.

Em casa dos meus tios, dormia num sofá -cama, o que não me importava nada, e comia sempre a horas, algo a que já me tinha desabituado em casa dos meus pais. Também tinha que rezar, porque a minha tia Josefina era Evangélica e obrigava -me a ir à igreja. Era a parte de que menos gostava, mas do mal o menos. A minha tia tratava--me bem, apesar de não ser muito meiga, pelo contrário, até era mandona, especialmente com o meu tio Leopoldo, que fazia tudo o que ela queria. Por outro lado, comigo, deixou sempre muito claro que eu era um fardo na vida dela, que só lá estava em casa porque o Tribunal tinha decidido. Mas, apesar de ser ríspida, nunca me tratou mal. Lembro -me que a minha tia era sempre a primeira a levantar -se e ir para a cozinha fazer café. Eu acordava com aquele cheiro de que tanto gosto no ar. Ainda hoje, em minha casa, quando faço café, me lembro daqueles tempos e da casa dos meus tios.

Outra das boas recordações que tenho com os meus tios é de irmos os três para a Moita, para uma quintinha que eles ali tinham. O tio Leopoldo chamava -lhe a «Quinta das Malvinas», mas não sei se era esse o nome ou se era ele que lhe chamava assim. Havia uma casa, que tinha sido

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra 39

construída pelo meu tio e que não tinha nem água nem luz. A água vinha de um tanque grande, que também tinha sido construído por ele e, às vezes, no Verão, eu ia para lá tomar banho. A luz provinha de um gerador a gasolina. Naquela quintinha havia videiras e muitas árvores de fruto e eu e o tio Leopoldo passávamos o dia a tratar das árvores ou numa oficina que ele também lá tinha, a arranjar coisas. Lembro -me muito bem de andar por ali a brincar com um autocarro muito grande, azul, que o tio Leopoldo me tinha dado. Tinha bonecos lá dentro e tudo. E eu andava sempre a limpar o autocarro, ia à oficina buscar panos e limpava o autocarro. Tinha uma fixação com aquilo. Uma vez, não sei como fiz, ao tirar um pano entornei uma lata cheia de tinta que estava numa das prateleiras. Ele ajudou -me a limpar tudo e no fim, disse -me: «Não te preocupes, não faz mal. Não vamos dizer nada à tua tia!» Tenho muitas saudades dessa quinta dos meus tios, que foi vendida anos mais tarde, quando o tio Leopoldo adoeceu. Há uns tempos, meti -me no carro e fui à Moita à procura da casa e do terreno, mas está tudo muito mudado e não consegui encontrar nada. Talvez já nem exista. Mas penso muitas vezes que, se tivesse dinheiro, gostava de a comprar.

�Certo dia ouvi a minha tia dizer no Tribunal de Meno-

res que não podia ficar comigo, que não aguentava. Ainda assim o juiz decidiu que era ela que ficava com a minha tutela. Voltei para casa dos meus tios e continuei normal-mente a fazer a vida que fazia. Passava a maior parte do tempo com o meu tio Leopoldo e, mesmo quando não saíamos, estava sempre ao pé dele. Uns tempos depois,

Uma dor silenciosa | Francisco Guerra40

talvez umas duas semanas, não sei ao certo, saí sozinho com a minha tia Josefina. Ela não me disse para onde íamos, mas dirigiu -se ao Campo das Cebolas, onde ficava a antiga central de camionagem. Assim que percebi que me ia meter, sozinho, numa camioneta, comecei a chorar, pus -me aos gritos e desatei aos pontapés. Preparava -se para me mandar para o Lar Evangélico do Porto, que ficava em Águas Santas.

Acho que nesse dia chorei tudo o que tinha para cho-rar. Mas nem os meus gritos estridentes a impediram de me meter na camioneta, e lá fui eu, com cinco ou seis anos, sozinho, para um sítio que não conhecia, onde me esperavam dois desconhecidos. Senti -me muito infeliz durante toda a viagem, nenhum dos passageiros falou comigo, não havia ninguém para me ajudar e nem sequer sabia para onde ia.

O Lar Evangélico era uma casa muito grande e velha, cheia de paredes sujas, onde viviam muitos miúdos e miúdas que, como eu, não tinham ninguém que quisesse tomar conta deles. Mais parecia uma prisão. Foi fun-dado em 1948, pelo pastor evangélico Joaquim Eduardo Machado e pela sua mulher, Isénia Machado. Tinham seis filhos e nem sequer eram ricos, mas preocuparam -se com as crianças e os idosos que, depois da II Guerra Mundial, viviam ao desamparo. Começaram por levar para a sua própria casa algumas destas pessoas e, depois, como o espaço já era pequeno para tanta gente, mudaram -se para a casa de Águas Santas, e foi nessa altura que lhe chamaram Lar Evangélico Português. Esta instituição viveu sempre da caridade alheia – das doações da Igreja Evangélica e de particulares – e, por isso, sempre teve muitas dificuldades.