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Uma defesa da reflexão teórico crítica na pesquisa e prática da administração pública Autoria: Maria Ceci Misoczky

Resumo

Este ensaio teórico expressa a inquietação com a escassez de reflexões teórico críticas no contexto atual da administração pública brasileira. Parte da constatação de que esse é um fenômeno que não se reproduz nos países aonde se originou a nova ortodoxia do campo – a nova administração pública (NAP). Em defesa da relevância da reflexão teórico crítica se realiza uma revisão da história das idéias na disciplina, enfatizando a separação entre política e administração, a centralidade do modelo de gestão empresarial e da eficiência segundo a lógica simoniana. Posteriormente, se aborda o ideário da NAP mostrando como ele está repleto de concepções e categorias que sempre dominaram o campo, defendendo-se o argumento de que, graças a isso, o passo além - a adoção dos valores do mercado – se deu com grande facilidade. Defendendo a importância de considerações sociais e políticas sobre as implicações que a adoção da NAP tem, no contexto brasileiro, para a democracia, a equidade e a justiça social, este ensaio se encerra com a expressão de algumas preocupações que poderiam estar presentes em uma agenda de pesquisas e práticas orientada por tais considerações. Introdução Este ensaio teórico resulta de uma inquietação com a quase ausência de reflexões teóricas que considerem as dimensões políticas, ideológicas e sociais, no contexto atual da administração pública brasileira. Esta falta de reflexividade pode ser uma expressão de acomodação, de conformismo. Ou, quem sabe, talvez continuemos reflexivos e preocupados, apenas não encontramos espaços para que essa reflexão se expresse e seja compartilhada pela comunidade de pesquisadores e praticantes da administração pública. Ao tomar como referência os Anais do ENANPAD, nos últimos cinco anos, fica a sensação de que a discussão sobre a adequação do ideário gerencialista para o campo das organizações públicas está superadoi. O mesmo ocorre ao se considerar alguns de nossos principais periódicosii. Trata-se, segundo a característica dominante dos artigos, meramente de implementar os preceitos gerencialistas e de estudar sua implementação, sempre seguindo os passos da metodologia positivista. No entanto, ao se fazer uma busca por periódicos dos países onde esse ideário se desenvolveu e que foram chave para sua disseminação, como é o caso dos Estados Unidos e do Reino Unido, encontra-se um intenso debate, tanto com relação aos aspectos teóricos, quanto sobre as conseqüências de sua implementação. Será que estamos vivendo um fenômeno de estrangeirismo (Motta, Alcadipani e Bresler, 2001) incompleto? Absorvemos do estrangeiro, apenas as idéias e modelos, e ignoramos as críticas às contradições e as análises dos efeitos adversos ou paradoxais (Hood e Peters, 2004). Ou será que se trata de um fenômeno de estrangeirismo completo, já que continuamos a reboque, de modo acrítico, dos circuitos de disseminação de ideários e retóricas liderados pelas agências internacionais de cooperação técnica e financeira?

Este fenômeno fica ainda mais interessante quando se considera o intenso debate e pluralidade de teorias e críticas que hoje caracterizam o campo dos estudos organizacionais, onde

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as teorias e práticas gerencialistas são objeto de reflexão e, mesmo, de contestação. Isto se evidencia nos próprios Anais do ENANPAD. Ou seja, o fenômeno de falta de reflexividade teórico crítica não é um fenômeno do campo da administração brasileira como um todo.

Embora pareça óbvio, é bom recordar que a teoria é mais potente que a pesquisa empírica e que essa, na verdade, depende dos fundamentos teóricos.

“A base teórica de uma disciplina é o que define, integra e cria tal disciplina, que guia qualquer pesquisa empírica e observacional. Entretanto, para ser valiosa, esta base teórica nunca pode ser tomada como dada. Na medida em que mudamos social e politicamente também mudam nossas motivações e reações ao que nos cerca, e a teoria precisa, constantemente, acompanhar essas mudanças. A teoria acompanha as mudanças através do questionamento constante das suposições da disciplina, nunca permitindo que suposições teóricas se tornem axiomas com status e validade assumidos sem reflexão ou análise.” (Gillroy, 1997, p.163-164) A decisão de submeter esse artigo para o Encontro de Administração Pública e

Governança decorre do desejo de aproveitar e, ao mesmo tempo, valorizar esse novo espaço, considerando-o como promissor para realizar reflexões que rompam com a separação entre discurso político e práticas sociais, com o domínio da hiper-racionalidade em detrimento de práticas relacionais (Miller, 2002). Afinal, a produção acadêmica tem um papel crítico a cumprir, especialmente ao considerar e desopacificar processos históricos e sociais de construção de naturalizações e reificações. Mais especificamente, o objetivo desse ensaio teórico é refletir sobre a colonização do campo da administração pública por valores e práticas da gestão empresarial, e sobre a conseqüente fragilização da dimensão política no seu interior, e sobre a construção de outros caminhos.

Antes de introduzir as partes que compõem esse texto é necessário justificar a opção pela revisão da história das idéias a partir de autores americanos. Em primeiro lugar, esta escolha se deve ao fato de que a delimitação da AP como disciplina, bem como a constituição de seu corpo teórico dominante se dão nos Estados Unidos, especialmente na primeira metade do século XX. Da mesma forma, um dos braços do movimento da NAP, reinvenção do governo, tem origem e se dissemina a partir desse país. Em segundo lugar, a redação desse ensaio tem uma preocupação com a AP no contexto brasileiro que foi, como relata a Profa. Tânia Fischer em sua tese de doutorado, constituída sob a tutela dos Estados Unidos (Fischer, 1985). Além disso, com relação ao restante do artigo, dada a escassez das reflexões teórico críticas no contexto brasileiro, tais referências só podem ser encontradas na literatura internacional.

Também é preciso esclarecer sobre os significados adotados para alguns termos nesse texto:

� Administração Pública (AP) indica a prática da gestão em organizações públicas e, ao mesmo tempo, um campo de estudos que inclui como objetos a administração de organizações públicas e a análise da formação de políticas públicas, incluindo aqui práticas sociais e relações políticas entre coletivos e organizações.

� Gestão Pública (GP) indica a prática da gestão no setor público, incluindo relações com outros setores, como no mix público privado e nas parcerias com organizações não governamentais, sob a marca da governança.

� Governança é um construto intelectual que expressa mudanças na unidade de análise – de programas e agências para ferramentas de ação, no foco – de hierarquias para redes, da relação público versus privado para a relação público mais privado, de comando e

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controle para negociação e persuasão (Salamon, 2002). Trata-se, nos países europeus, de uma evolução dentro do marco do gerencialismo; de um esforço retórico, no bojo da terceira via, de afastamento de marcas politicamente desgastadas - como é o caso da NAP. É uma tentativa de transcender tanto a hierarquia como os mercados com novos instrumentos de produção de serviços e com o fortalecimento dos mecanismos regulatórios, através dos quais o Estado pode exercer controle, ainda que a alguma distância (Newman, 2003).

� Nova administração pública (NAP) é uma expressão síntese para o movimento gerencialista que se desenvolve a partir dos anos 80, tendo sido cunhada por Hood, em 1991, para designar aspectos comuns a processos de reforma administrativa.

� Gerencialismo indica o mesmo que NAP, tendo sido uma expressão freqüente no processo de reforma do aparelho de Estado brasileiro, onde a NAP foi rebatizada como administração pública gerencial (Bresser Pereira, 2001). No item a seguir se revisa o ideário da NAP, considerada como uma nova ortodoxia e

apresentada por seus defensores como um novo paradigma. Essa retórica da novidade é questionada, ao se revisar a delimitação da disciplina AP e suas categorias centrais, desde o clássico de Woodrow Wilson, também se afirma que a ênfase na separação entre administração e política, bem como na eficiência modelada à imagem da administração empresarial, tão presentes na retórica da NAP, têm estado sempre presentes se considerarmos a história das idéias que formam a disciplina. Argumenta-se, então, que a naturalização da administração pública (AP) como "ação racional, definida como ação corretamente calculada para realizar determinados objetivos desejados" (Waldo, 1964, p.22), ao longo do século XX, abriu caminho para a aceitação, praticamente sem resistências, do ideário da NAP. Nesse sentido, concorda-se com Spicer (2002) que, refletindo sobre a relação entre AP e história das idéias, critica a dissociação entre as mesmas e o conseqüente processo através do qual as concepções que constituem sua base são consideradas como naturais e não sujeitas à contestação. Nas partes finais se levantam temas e questões que poderiam ajudar na retomada de uma agenda teórica, reflexiva e crítica, no campo da AP no Brasil.

1 Nova administração pública, nova ortodoxia Uma das características mais marcantes dos tempos atuais é a disseminação da idéia de que, no contexto de um planeta globalizado, existem “verdades” de validade global. Coincidentemente, estas “verdades”, nos diversos espaços de vida e ação social, possuem um mesmo pano de fundo (de caráter marcadamente ideológico, ainda que subsumido pela retórica que o dissemina) - as concepções da nova economia política (Borges, 2000), que pode ser sintetizada, em traços gerais, como uma mistura dos referenciais da economia dos custos de transação com a teoria da escolha pública e a teoria da agência, com ingredientes de uma versão modernizada da tradição corporificada no trabalho de Frederick Taylor (Pollitt, 1990) e da teoria do processo decisório à moda de Herbert Simon (Box et al., 2004).

No campo da AP a “verdade” prescrita tem sido a de que as burocracias públicas são incapazes de um gerenciamento eficiente e, em decorrência, suas funções devem, sempre que possível, passar para a execução de organizações privadas com fins lucrativos. Quando este não for o caso, seja por se tratar de ações e serviços com alto grau de externalidade e que, portanto, devem permanecer sob controle público, seja por se dirigirem a grupos populacionais que não dispõem de condições de compra, estas podem ser executadas por organizações públicas ou, preferencialmente, por ONGs (World Bank, 1997). No entanto, em ambos os casos, organizações

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públicas ou sem fins lucrativos devem adotar formas organizacionais e modelos de gestão das organizações privadas, que teriam sua eficiência evidenciada pela mera capacidade de sobreviver e expandir-se em ambientes competitivos. Grau (1997, p.236) identifica na doutrina da NAP o foco na "substituição dos métodos burocráticos por métodos manejados pelo mercado para a provisão de bens e serviços produzidos pelo governo". Para que isso possa acontecer "se trata de constituir mercados para a maioria dos serviços públicos, separando a elaboração das políticas da provisão de serviços (ou execução de políticas). Isso se realiza abrindo-os para a competição e desenvolvendo vínculos contratuais entre os provedores de serviços, os consumidores e os financiadores dos mesmos, de modo a criar a figura de 'vendedores' e 'compradores' (…). A separação dessas figuras se completa com mudanças nas práticas de trabalho no interior das agências, assim como entre elas e seus financiadores, de modo que as agências possam responder às pressões do mercado".

Schwartz (1994), a partir da revisão das reformas realizadas na Austrália, Nova Zelândia, Dinamarca e Suécia, indica quatro mudanças organizacionais importantes para transformar as práticas na AP: separação da elaboração das políticas da provisão, com uma correspondente centralização do controle sobre os recursos orçamentários em relação aos resultados produzidos; introdução do princípio do pagamento por parte dos usuários; concentração das decisões estratégicas em pequenos grupos que "gerenciam os gerentes"; abolição do monopólio público na provisão dos serviços, introduzindo o princípio da competição. Na prática, isso implica em especialização funcional (especialmente através da separação dos papéis de financiador, comprador e provedor, e de funções comerciais e não comerciais); criação de agências autônomas e semi-autônomas para executar funções da AP; modificação dos estatutos de organizações como hospitais e escolas para aumentar sua autonomia financeira e administrativa; e desregulamentação de certos setores do serviços público (Grau, 1997).

"O enfoque de mercado na NAP, ou 'the entrepreneural management paradigm', assume implicitamente que o setor público e o setor privado são similares em sua essência, e respondem aos mesmos incentivos e processos; que as agências governamentais podem ser vistas como corpos empresariais que funcionam melhor em um ambiente de mercado competitivo; e que as agências centrais da administração devem estar subordinadas às prioridades e processos orçamentários." (Grau, 1997, p.420)

De acordo com Boston et al. (1996) a NAP pode ser sintetizada como a definição de regras de modo a separar a operação da formulação de políticas, entendida, agora, como a definição de objetivos e da missão da organização, de metas de desempenho e indicadores de avaliação. Hood (1995) a sintetiza como a redução ou remoção de diferenças entre o setor público e o privado, refletindo tanto a crença nos métodos do mercado e nas empresas privadas quanto a descrença nos servidores públicos. As idéias da NAP se disseminam através da linguagem do racionalismo econômico, e são promovidas por uma nova geração de “econocratas” (Hood, 1995, p.94). Apesar de variações na implementação da NAP nos diferentes países, Hood (1995) identifica temas comuns: uma mudança de ênfase do processo de elaboração de políticas para habilidades gerenciais, de processos para resultados, de hierarquias ordenadas para bases mais competitivas para a provisão de serviços, de pagamentos fixos para variados, de serviços uniformes e inclusivos para contratos de provisão.

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Barzelay (1998) defende que teria se constituído um novo paradigma - pós-burocrático, que corresponderia ao surgimento de uma cultura em que relações organizacionais, enfoques operativos, tecnologias administrativas, mística e atitudes seriam de um novo tipo. Será mesmo? 2 O que há de novo na nova administração pública? Para Box et al. (2001) a NAP tem características que já estavam presentes na ortodoxia da administração pública, marcada pela separação entre administração e política. Para Hood (1995) muitos aspectos doutrinários da NAP têm estado presentes na AP desde seus primórdios.

Como se verá na reconstrução realizada a seguir, revisando a delimitação da AP como disciplina, bem como suas referências centrais, a separação entre administração e política e a administração empresarial como modelo a ser copiado, estiveram, de fato, sempre presentes. Também esteve sempre presente, como aliás não poderia deixar de ser, uma visão racionalista e positivista, tipicamente moderna, centrada na eficiência, para a qual a contribuição de Herbert Simon é marcante. No encerramento desta parte do ensaio se retoma essa trajetória das idéias que organizam a disciplina ao longo do século XX, chegando ao ponto de se tornarem naturalizadas, parte do senso comum, o que acaba por garantir a disseminação da ideologia da NAP sem maiores resistências. 2.1 Administração Pública como arte e ciência da gerência aplicada aos negócios do Estado

A construção contemporânea da AP como disciplina tem como marco o ensaio de Woodrow Wilson (1953), originalmente publicado em 1887, e a afirmação da separação entre política e administração, bem como da eficiência como categoria central.

"A Ciência da Administração é o mais recente fruto do estudo da Ciência Política, iniciado acerca de dois mil e duzentos anos atrás. É uma criação do nosso século, quase de nossa geração. Por que teria ela tardado tanto a aparecer? Por que esperou pelo nosso tão preocupado século, para exigir atenção? A Administração é a mais evidente parte do Governo; é o Governo em ação; é o executivo operante, o mais visível aspecto do Governo, e, naturalmente, é tão antigo quanto o próprio Governo. É o Governo em ação, e seria natural esperar-se que o Governo em ação tivesse prendido a atenção e provocado o exame minucioso dos escritores de política, muito cedo, na história do pensamento sistemático. (…) Até os nosso dias todos os autores de política, que agora lemos, pensaram, discutiram e dogmatizaram somente a respeito da constituição do Governo; sobre a natureza do Estado, a essência e a origem da soberania, poder popular e prerrogativa real; sobre o sentido imanente do Governo e os mais altos objetivos fixados ao Governo pela natureza humana e os propósitos dos homens. (…) A questão era sempre: quem deve fazer a lei e o que deve ser essa lei? A outra questão – como a lei deve ser administrada sabiamente, com eqüidade e rapidez e sem atrito – era posta de lado como um 'detalhe prático' que os amanuenses poderiam tratar depois que os doutores tivessem concordado sobre os princípios. (…) Pouca ou nenhuma dificuldade havia com respeito à Administração, pelo menos pouco a que dessem ouvido os administradores. As funções do Governo eram simples porque era simples a própria vida. (…) Dificilmente haverá uma única tarefa de Governo que tenha sido antes simples, não se tenha tornado agora complexa. (…) Esta é a

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razão pela qual deve haver uma Ciência da Administração que procure retificar as trilhas do Governo, tornar as suas opiniões mais eficientes, fortalecer e purificar sua organização e incutir em seus deveres a devoção." (Wilson, 1953, p.66-67)

Após revisar as práticas da administração governamental na Prússia e na França

napoleônica, Wilson (1953, p.68) justifica a necessidade de sua americanização. "Se formos empregá-la deveremos americanizá-la e, não só do ponto de vista formal, meramente na linguagem, mas radicalmente, em pensamento e princípio, tanto quanto em sua finalidade." A partir daqui o que se encontra é uma construção da definição de AP impregnada pelo ethos da sociedade americana.

"O campo da administração é um campo de negócios. Ele está afastado da pressa e lutas da política; sob alguns aspectos mesmo ele se mantém afastado do controvertido terreno do estudo constitucional. É uma parte da vida política somente na medida em que os métodos do escritório comercial são uma parte da vida social; somente como a máquina é parte do produto manufaturado. (…) O mais importante a ser observado é a verdade já tantas vezes e com tanto sucesso reiterada pelos nossos reformadores do serviços público; a saber: que a administração está fora da esfera própria da política. As questões administrativas não são questões políticas. Esta é uma distinção altamente autorizada e nela eminentes autores alemães insistem, como ponto pacífico. Glunstschili, por exemplo, nos leva a separar a administração tanto da política quanto do direito. A política, diz ele, é a atividade do Estado nas coisas grandes e universais, enquanto que a administração, por outro lado, é a atividade do Estado nas coisas pequenas e individualizadas. A política é assim campo específico do estadista e a administração, do funcionário técnico." (Wilson, 1953, p.71-72)

Apesar da aparente ingenuidade da dicotomia política/administração expressa no ensaio

de Wilson, esta separação demarcou, claramente, o espaço acadêmico do novo campo da AP, que deveria se ocupar apenas com a execução de políticas por corpos burocráticas dos governos (Whicker, Atrickland e Olshfiski, 1993). De modo coerente com essa distinção, Waldo (1964, p.4) definine AP como "a organização e gerência de homens e materiais para a consecução dos propósitos de um governo." Simon, Smithburg e Thompson (1950, p.7) vão nessa mesma direção, definindo a AP como uma área da administração que se diferencia unicamente por seu objeto de estudo – "atividades do executivo nacional, dos governos estaduais e locais; comissões e conselhos criados pelo Congresso e legislativos estaduais; corporações governamentais; certas agências especializadas". Os autores excluem, expressamente, as organizações do judiciário e do legislativo. Ou seja, apenas organizações operativas dos "negócios do Estado" são objeto da AP. Também com o propósito de constituir a AP como uma ciência, Urwick (1937, p.5) defende que existem princípios que devem governar arranjos de associações humanas de qualquer tipo. "Esses princípios podem ser estudados como questões técnicas, independente do propósito da empresa, da sua composição de pessoal, ou de qualquer teoria constitucional, política ou social." Além disso, como afirma Urwick (1937, p.49), tais organizações humanas “podem ser examinadas sem considerar qualquer teoria constitucional, política ou social, subjacente à sua criação”.

Gulick (1955), então administrador da cidade de Nova York, aborda o tema da administração pública no contexto do que denomina "nova cultura", caracterizada pelo vasto aumento no número de seres humanos, pelo desenvolvimento científico e tecnológico, e pela

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acomodação cultural que indicaria uma tendência à auto-destrutividade. "Como a administração pública é a ciência e arte de governar sistemas, operações e serviços, particularmente no lado gerencial, não precisamos nos desculpar da afirmação de que a administração pública é um ingrediente essencial da nova cultura, sem a qual não haveria chances de sobrevivência para a humanidade." Olhando para a AP, naquele contexto, apresenta alguns passos à frente que precisariam ser dados. Entre eles se encontra que a "administração pública, como um campo de análise e entendimento, precisa estar mais intensamente relacionada com o estudo dos negócios", e que "administração pública precisa re-examinar e reformular sua doutrina e prática com relação ao uso da perícia em gestão pública e privada" (Gulik, 1955, p.73)

"Aqueles que estão preocupados com a administração pública e os que estão com os negócios privados devem trabalhar em conjunto. (…) embora hajam diferenças de objetivos, hoje está claro que essas são superficiais, e que as experiências são similares e complementares. É altamente provável que a administração pública e a privada sejam parte de uma única ciência administrativa, que não pode ser formulada a não ser que se inclua na sua análise os problemas da ação humana organizada seja no governo, nos negócios privados, ou em qualquer organização social de voluntariado." (Gulik, 1955, p.74)

2.2 A centralidade da eficiência nas organizações públicas da modernidade Além da separação entre as dimensões política e técnica na AP, e da referência à administração empresarial como um modelo a ser seguido, aparece, também, nas citações acima, a preocupação com a eficiência.

Essa centralidade é expressa por Gulick (Apud Waldo, 1953, p.406) em sua afirmação de que "na ciência da administração, seja pública ou privada, o bem essencial é a eficiência". "O objetivo fundamental de uma ciência da administração é a realização do trabalho a ser feito com o menor gasto de esforço humano e de material." Essa centralidade estabelece, definitivamente, pela adoção do referencial desenvolvido por Herbert Simon (1947). Ao introduzir a transcrição de um trecho desse autor, Waldo (1953, p.406) deixa clara a relação entre a AP como ciência, e a adoção da racionalização, como critério de eficiência. "A idéia de que o objetivo central do estudo da administração é atingir a eficiência está relacionada com duas outras idéias – como tem sido sugerido. Uma dessas é que a administração é uma ciência, ou pode se tornar uma ciência se adequadamente desenvolvida. A outra é que, como um caso de análise lógica, meios e fins na ação cooperativa humana podem ser separados e, através do método adequado para tratá-los, devem ser separados." Seguindo esta lógica, o Governo é visto como um instrumento para o exercício consciente e coletivo da razão.

A influência de Simon (1947) sedimenta a centralidade da racionalidade instrumental na AP. Além disso, muitos autores dessa disciplina, sob sua liderança, buscam uma abordagem cientificista – uma abordagem puramente preocupada com afirmações factuais, em que não existe base para afirmativas éticas. Ou seja, separa-se política de administração, fatos de valores, democracia de políticas públicas. Ainda, na medida em que a eficiência se torna a referência central para a ação organizacional, ocorre um deslocamento das questões essencialmente políticas para fora do foco. De acordo com Fischer (1990) a questão “produção para o quê e para quem” ganha um status secundário ou, muito pior, é simplesmente ignorada. Assim, a eficiência - peça central de um esquema argumentativo, identificado por Gillroy (1997), como paradigma do mercado – cria uma modelo persuasivo da realidade, de um contexto

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prático no qual uma política é discutida e decidida. No entanto, os administradores públicos aplicam métodos de cálculo de eficiência sem compreender, devidamente, as implicações deste paradigma, tomando-o como dado e inevitável no processo de escolha. Isto expressa o senso comum, que confere à eficiência seu poder para determinar as escolhas, mesmo em situações em que isso não é inteiramente apropriado. “O ‘poder’ da eficiência é o ‘poder’ do paradigma do mercado. É a ‘verdade’ percebida, o ‘senso comum’ e a ‘practicidade’ desta combinação, desta estratégia de concepção de políticas, que dá poder e status central aos princípios econômicos, colocando o ônus da prova nos princípios que contradizem a condição estabelecida.” (Gillroy, 1997, p.166) Além disto, na disciplina existe o domínio absoluto e inquestionável – até os nossos dias – do positivismo quantitativista (Lowery e Evans, 2004), levando a uma predisposição de aceitar o status quo social e político, bem como a refletir com base nos arranjos sociais existentes (Jun e Rivera, 1997).

2.3 A vitória do paradigma de mercado De alguma forma, ao longo da história da disciplina e por influência das ciências sociais e política, sempre esteve presente a contradição entre idealismo orgânico / foco na justiça social e racionalidade técnica / foco na eficiência. No entanto, para o senso comum, a idéia do Estado como uma unidade ou totalidade, organizada em função de um conjunto de fins, que deve pautar seus processos e ações pela busca da eficiência, se dissemina de tal forma que parece um disparate questioná-la (Spicer, 1997).

“Uma expressão do modernismo na AP é a preocupação com a aplicação das suposições da economia de mercado, do positivismo, e dos princípios da eficiência, como um status quo padrão para avaliar escolhas administrativas. Dentro da disciplina, pouco tempo e esforço tem sido dedicado à análise crítica da força deste ‘paradigma’ de pensamento e do seu uso pelos administradores. Os gerentes assumem que as suposições do mercado valem para o setor público e que oferecem as definições ‘verdadeiras’ sobre o que as pessoas são, o que as leva a cooperar ou não, e porque o papel do Estado deve ser estreito e focalizar na obtenção da eficiência.” (Gillroy, 1997, p.164)

A esse respeito temos a crítica, pouco valorizada entre nós, de Guerreiro Ramos (1989).

Para ele uma teoria das organizações baseada no modelo centrado no mercado não poderia ser considerada aplicável em todas as formas de atividade da sociedade, pois exerceria uma influência que desfiguraria a vida humana. Para este autor a ciência administrativa é uma ideologia que legitima a sociedade de mercado. “A teoria da organização, tal como tem prevalecido, é ingênua. Assume este caráter porque se baseia na racionalidade instrumental, inerente à ciência social dominante no ocidente. Na realidade, até agora esta ingenuidade tem sido o fator fundamental de seu sucesso prático.” (Guerreiro Ramos, 1989, p. 1)

Enfim, como vimos, existe uma longa tradição na AP, considerando que os governos devem ser dirigidos como se fossem negócios. Esta recomendação tem significado que as organizações públicas devem adotar desde a administração científica até as práticas da qualidade total, já que estas se mostraram úteis nas organizações privadas. A NAP leva essa idéia um pouco mais adiante, ao afirmar que as organizações públicas devem não apenas ser gerenciadas como se privadas fossem, mas devem também adotar os valores das organizações privadas, do mercado. Entre esses valores se destacam a competição, mecanismos de escolha seguindo a lógica do consumo, a admiração pelo espírito empreendedor (DeLeon e Debhardt, 2000).

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Acredita-se que a facilidade com que esse passo adiante foi dado se deve à presença hegemônica das práticas gerenciais, segundo o modelo empresarial, desde a constituição da AP enquanto disciplina. Até porque a disseminação da crença nas qualidades superiores do paradigma do mercado não enfrentaram resistências. A ausência de evidências empíricas sobre o impacto desta lógica na AP não impede sua crescente legitimidade. De repente, parece natural considerar que se pode servir ao interesse público simplesmente seguindo o interesse pessoal, que a competição é mais eficiente que a cooperação, que a disputa entre interesses leva sempre a um equilíbrio desejável, que a resposta dos gestores públicos aos interesses individualizados e de curto prazo de seus clientes (sic) levará a um melhor resultado do que buscar satisfazer interesses coletivos publicamente definidos - através de processos deliberativos ou participativos (dos cidadãos).

Para o vitorioso paradigma do mercado o auto-interesse do indivíduo consumidor, manifesto em preferências expressas, forma a referência para toda a decisão administrativa. A satisfação material dessas preferências é assumida como sendo de fundamental importância para a política governamental, que deve ser limitada para não interferir com a produção e nas relações no mercado. Neste referencial teórico se considera que não existe comunidade, apenas agregados de indivíduos. O paradigma do mercado encontra meios para a agregação eficiente das preferências no instrumento sistema de preços, que permitiria aos indivíduos e aos tomadores de decisão aceitar ou impor escolhas com base em suposições gerenciais sobre a disposição dos indivíduos para pagar (Gillroy, 1997).

O gerencialismo, com sua estreita racionalidade instrumental, reproduz a crença de que o trabalho do administrador é eficiente e efetivo caso tenha atingido os fins ou objetivos que busca, e desloca, por irrelevante ou sem sentido, a reflexão sobre as implicações que tal concepção da AP tem para a democracia, a equidade, a justiça social. Aliás, não poderia ser de outra forma, já que essas expressões se referem mais a valores do que a fatos, mais à política do que à administração, sendo, portanto, irrelevantes sob a égide do paradigma do mercado.

Segundo Spicer (2004, p.359) a tentativa de escapar de considerações sociais e políticas através da adoção da racionalidade instrumental, falha porque quando esta se aplica na AP, redunda em uma concepção particular de Estado. “Argumentar, como fazem os gerencialistas, que o gestor público deve selecionar ações administrativas para atingir seus propósitos de modo eficiente e efetivo – sejam quais forem tais propósitos – é pedir que vejamos o governo e a administração através de lentes da teleocracia.”

Em outras palavras, assumir “a crença de que os principais problemas da administração pública são técnicos reflete uma forma de teoria política” (Spicer, 2001, p.131). Esta teoria política supõe, desde a perspectiva desenvolvida por Herbert Simon (1947), a tendência a “ignorar o conflito em torno de fins políticos e sociais, seja nas organizações públicas, seja nas comunidades políticas, e a focalizar nossa atenção no desenvolvimento de modos mais eficientes e efetivos de atingir fins” (Spicer, 2001, p. 66). Cabe a nós, pesquisadores e praticantes da AP, decidirmos se ignoramos essas questões ou se as colocamos na nossa agenda cotidiana de trabalho. 3 Em busca de outros caminhos Acredita-se, concordando com Spicer (2004), que não conseguimos – e nem devemos - separar as idéias sociais e políticas, bem como o contexto econômico e cultural, da nossa visão e prática na AP. É a partir dessa convicção que organizamos, nesse item, algumas idéias sobre

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temas que poderiam estar presentes em uma agenda de pesquisas e práticas voltada para a construção de outros caminhos para a AP brasileira. Para começar é indispensável retornar à filosofia política, em busca de esclarecimentos sobre as implicações morais e políticas das idéias sobre administração que defendemos, bem como das práticas gerenciais que decidimos adotar (Spicer, 2004). Não devemos esquecer, ao pesquisar e praticar no campo da AP, que as idéias importam, que elas implicam em conseqüências (Terry, 1998). “Se não estivermos conscientes das idéias morais e políticas contidas em nossas palavras, escritos, e ações, corremos o risco de que a AP, enquanto um campo de estudos e de prática, se torne cativa de idéias que não só são de pouca serventia, mas que são destrutivas de valores que temos em alta conta.” (Spicer, 2004, p.361) Na AP estamos envolvidos em escolhas e ações que precisam considerar os seres humanos em sua plenitude, o modo como agimos coletivamente, bem como as definições e papéis que correspondem ao Estado considerando as vidas em comunidade. Se a definição da pessoa é limitada às suas preferências de consumo, a ação coletiva se torna um processo de agregar interesses individuais que resultará em uma definição ótima do interesse público e do Estado como mera fração do mercado, sem nenhuma consideração própria das suas responsabilidades. Aceitando que nossas decisões, enquanto administradores públicos, afetam as vidas de muitas pessoas, as suposições e princípios das teorias que informam estas decisões precisam acompanhar os processos políticos e sociais, e considerá-los como a essência de cada decisão política. Precisamos sempre lembrar que é muito difícil, para grande parte da população, sobreviver aos danos causados por teorias inconscientemente aplicadas no contexto da AP. Trata-se, portanto, de refletir criticamente sobre os referenciais teóricos que adotamos, considerando sempre as práticas e mundos estas teorias autorizam. Molina e Spicer (2004), preocupados com essa questão, recorrem a Aristóteles e Isaiah Berlin para refletir sobre a idéia da incompatibilidade entre certos valores humanos, bem como entre estes e a decisão racional voltada a fins. Neste sentido, a escolha entre valores contraditórios não é simplesmente um problema moral, muito menos um problema racional, é também e principalmente um problema político. “Se aceitamos que a AP é freqüentemente colocada face a escolher ou julgar entre valores incompatíveis e incomensuráveis, surge a questão sobre como fazer tais escolhas. (…) O pluralismo de valores na AP pode ser visto como um limitador da racionalidade instrumental, tomada como referência inquestionável por muitos autores. Em oposição, para Isaiah Berlin, segundo as reflexões de Molina e Spicer (2004), dados valores conflitivos, devemos fazer escolhas com base em idéias gerais, no padrão de vida perseguido por um grupo ou por uma sociedade. Nesse tipo de processo, regras, valores e princípios, variam na sua preponderância de situação para situação. Ou seja, o contexto prático específico precisa ser considerado sempre que existam valores em conflito. Estas decisões jamais poderão ser as mais eficientes segundo qualquer julgamento racionalista, já que envolvem uma ampla gama de importantes valores humanos. Na mesma direção, Moore (1983, p.3), ao rejeitar a separação entre administração e política, defende uma concepção de AP que considere a responsabilidade na definição de objetivos, chamando-a de administração política. Nessa é “inevitável e desejável que os administradores públicos assumam responsabilidades pela definição dos propósitos que buscam atingir, e que, portanto, participem do diálogo político sobre seus objetivos e métodos”. Ainda considerando a relação entre política e administração, surge a questão sobre as conseqüências da adoção da NAP para a democracia. Segundo Christensen e Laegreid (2002), ainda que a NAP focalize na participação, o faz enfatizando o interesse pessoal, em vez do interesse público. Essa opção pode, para esses autores, produzir uma erosão na publicidade dos

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serviços públicos, levando a déficits de democracia. Box et al. (2001) têm a mesma preocupação, afirmando que a NAP ameaça eliminar a democracia como um princípio orientador da AP. Ainda sobre esse tema, DeLeon e DeLeon (2002) reconhecem a atenção, no contexto atual, para práticas de participação nos processos de governo. No entanto, destacam a contradição entre a lógica da eficiência e a possibilidade da administração democrática. Também consideram que a NAP adota um caminho tecnocrático e economicista que confere mais autoridade para os gestores, fechando espaços para esforços colaborativos. Como resposta, sugerem que os pesquisadores e praticantes da AP incorporem um ethos democrático em suas reflexões e atividades. Temos também um problema com a “gaiola de ferro metodológica” em que nos encontramos. Lowery e Evans (2004, p.306) abordam as estratégias e procedimentos metodológicos que os pesquisadores do campo da AP utilizam para estudar os fenômenos de seu interesse, destacando não apenas a pequena quantidade e a pouca variedade das metodologias qualitativas utilizadas, mas principalmente o domínio absoluto que o positivismo exerce na disciplina. Assim, abordagens interpretativistas e construcionistas estão praticamente ausentes. Perspectivas filosóficas como a hermenêutica, o pragmatismo, a teoria crítica, p. ex., também estão praticamente ausentes. Ou seja, o aparente consenso existente no campo, além da escassez de reflexões críticas e da construção de outras concepções e práticas, também se deve à escassez de alternativas filosóficas e metodológicas. De acordo com Stivers (2000) precisamos de abordagens que, em vez de evitar impulsos contraditórios, reconheçam – e mesmo adotem – sua irresolutividade como parte da vida pública e, portanto, como mais adequado para a compreensão do trabalho em organizações públicas. Trata-se, portanto, de tornar o campo permeável a reflexões teóricas, filosóficas e metodológicas, que se encontram disseminadas nos estudos organizacionais, mas que não transitam pela AP. Considerações Finais Nesse ensaio teórico realizou-se, simultaneamente, uma revisão da construção teórica da AP, de modo a compreender a facilidade com que o paradigma do mercado, através do ideário da NAP, se torna hegemônico nas últimas décadas. Posteriormente, se apresentam algumas preocupações que devem estar presentes para que se possa pensar outros caminhos, teóricos e práticos, no espaço da disciplina. Dadas as características desse ensaio, não se poderia encerrá-lo com conclusões. Em vez disso, a opção adotada é a de encerrar com questões em aberto. Algumas decorrentes de reflexões realizadas nesse texto, outras meros insights de momento. Acredita-se que esse é um encerramento coerente com o espírito que motivou a redação desse texto – o de provocar o debate e a continuação da reflexão, considerando o contexto brasileiro.

Quais são as motivações políticas para as reformas orientadas para o mercado? Qual o significado destas motivações no cenário das relações internacionais entre países?

Qual a tradução do ideário prescrito pelas agências internacionais, realizado pelos atores sociais, no processo de reforma do aparelho de Estado brasileiro? Que paradoxos esta tradução têm gerado?

Como as reformas da administração refletem ou contradizem a imagem de Estado representada nos princípios estabelecidos no texto constitucional?

Como se compreenderia os novos arranjos organizacionais, ao focalizar primeiramente no contexto político e nas características da nossa formação social?

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O que efetivamente está acontecendo no contexto das organizações públicas brasileiras, e que relação isso tem com o tema da democracia?

Quais as mudanças no papel do governo e dos servidores públicos? Quais as mudanças na definição dos conteúdos dos principais papéis políticos e administrativos? Quais as mudanças nas definições sobre cidadania e suas implicações para as características das políticas públicas?

Finalmente, não poderia encerrar sem um apelo à Direção e Coordenadores, aos

associados da ANPAD, para que reflitam sobre os motivos e, principalmente, sobre as conseqüências para a produção acadêmica brasileira no campo da administração pública, da separação entre Políticas Públicas e Gestão Pública e Governança. Se esta é uma decisão inspirada teoricamente está bem, terá sido a expressão de uma opção e de uma correlação de forças de momento. No entanto, pode ser que tenha sido uma decisão tomada no impulso e de modo mimético. Em qualquer caso, estou convencida de que precisamos incluir esta questão – que separa política e administração - na nossa agenda de reflexões.

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i Artigos que se caracterizam como ensaios teóricos, discutindo reflexivamente aspectos relacionados à nova administração pública / gerencialismo e/ou ao processo de reforma do aparelho Estado brasileiro, independente de posição favorável ou crítica.

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