centralidade epistemológica do trabalho: ideologia e suprassunção teórica

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  • 8/3/2019 Centralidade Epistemolgica do Trabalho: Ideologia e Suprassuno Terica

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    CENTRALIDADEEPISTMICA

    DO TRABALHO

    Ideologia e suprassuno terica

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    P832 Porath, Henrique de Campos

    Centralidade epistmica do trabalho: ideologia esuprassuno terica / Henrique de Campos Porath. Florianpolis: UFSC, 2011.179 p.; 14,8 x 21 cm.

    ISBN: 978-85-61682-62-0

    1. Materialismo histrico. 2. Trabalho. 3. Alienaosocial. I Porath, Henrique de Campos

    CDD 162.6

    Copyright 2011 Henrique de Campos Porath

    Capa

    Tiago Roberto da Silva

    Foto da capaPiku

    Editorao eletrnicaCarmen Garcez, Tiago Roberto da Silva

    Bibliotecria

    Luiza Helena Goulart da Silva

    Todos os direitos reservados aEditoria Em Debate

    Campus Universitrio da UFSC TrindadeCentro de Filosoa e Cincias Humanas

    Bloco anexo, sala 301Telefone: (48) 3338-8357

    Florianpolis SCwww.editoriaemdebate.ufsc.br

    www.lastro.ufsc.br

    Impresso no Brasil

    2011

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    HENRIQUE DE CAMPOS PORATH

    CENTRALIDADEEPISTMICA

    DO TRABALHOIdeologia e suprassuno terica

    Florianpolis

    2011

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    Agradeo...

    A todos que me apoiaram, incentivaram, questionaram, ins-tigaram, duvidaram, criticaram.

    minha famlia.

    pequena, grande companheira, e nossa pequelina, est-

    mulos contnuos, oferecendo-me o conforto e aconchego de nos-sa casa itinerante.

    presena constante de meus pais. Eternamente grato.

    Ao acolhimento de meus tios Reginaldo, Maris, Olav, Iane Ruy, que nunca faltaram.

    famlia eleita. Meus amigos, especialmente Cristiano, pe-la pacincia em ceder-me seus ouvidos e, mais assim, fazer-sepresente nas reexes.

    Ao professor Mario Duayer, que, alm de introduzir-me nabibliograa base deste estudo, no hesitou em ajudar no que fossepreciso para o seu desenvolvimento, com rigor e profundidade.

    Ao orientador, o professor Fernando Ponte, que, por suaabertura, viabilizou este estudo apostando em minha capacidade

    desde o incio. Sua trajetria fala por si e representa incentivo persistncia e imprescindibilidade da crtica social.

    Aos colegas, especialmente Cassiane, pelo interesse emdialogar.

    Aos professores do programa de ps-graduao que se ze-ram presentes neste tortuoso caminho de reexes, introduzin-do-me nas discusses da sociologia.

    Albertina e Ftima, dupla dinmica.

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    No posso ainda furtar-me meno do GEPOC (Grupo deEstudos e Pesquisa em Ontologia Crtica), por ter me auxiliado

    na introduo literatura abordada, com Gyrgy Lukcs frente.Meu muito obrigado.

    E, last but not least, ao CNPq, cujo auxlio nanceirosignicou bem mais que dinheiro.

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    Milongade Sete CidadeS(a eSttiCado Frio)

    Vitorramil

    Fiz a milonga em sete cidadesRigor, Profundidade, ClarezaEm Conciso, Pureza, LevezaE Melancolia

    Milonga feita solta no tempoJamais milonga solta no espaoSete cidades frias so sua morada

    Em ClarezaO pampa innito e exato me fez andarEm Rigor eu me entregueiAos caminhos mais sutisEm ProfundidadeA minha alma eu encontreiE me vi em mim

    A voz de um milongueiro no morreNo vai embora em nuvem que passa

    Sete cidades frias so sua moradaConciso tem ptios pequenosOnde o universo eu viEm Pureza fui sonharEm Leveza o cu se abriuEm MelancoliaA minha alma me sorriu

    E eu me vi feliz

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    SUMRIO

    Introduo ............................................................................................11

    1. Trabalho como categoria fundamental

    para o devir do ser social .......................................................17

    1.1 O trabalho como pr teleolgico.......................................181.1.1 Teleologia e causalidade...........................................181.1.2 A alternativa...............................................................271.1.3 As alternativas como horizonte do exerccio

    da liberdade ..................... .........................................291.2 O pr teleolgico de segundo grau .................................. 311.3 Pr teleolgico, valor de uso e estrutura de

    objetivaes. ..................................................................... 351.4 tica e Valor............... ....................................................... 47

    2. Alienao, objetivao, estranhamento

    e dominao social......................................................................55

    2.1 Alienao e estranhamento nos Manuscritos de Paris .... 562.1.1 Fontes do modelo de ao humana

    em Marx: a demarcao frente a Hegel

    e Feuerbach ..............................................................58

    2.1.2 A suprassuno de Hegel e Feuerbach em Marx .... 722.1.3 Alienao e estranhamento ante a

    individuao ............................................................. 812.2 Estranhamento e dominao social .................................. 94

    3. Momento ideal na prxis e ideologia..........................109

    3.1 O momento ideal na atividade humana..........................1113.2 Ideologia .........................................................................120

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    4. Concorrncia ideolgica e suprassuno

    terica................................................................................................139

    4.1 Cincia e ideologia .........................................................1414.2 A imprescindibilidade da crtica e sua suprassuno

    terica ..............................................................................1554.2.1 Critrios para a suprassuno terica ....................157

    a) Aspecto objetivo: os critrios crticos ...............158b) Aspecto prtico-cotidiano: os critrios

    explanatrios ......................................................160c) Aspecto terico: os critrios categoriais............163

    5. Concluso........................................................................................165

    Referncias...........................................................................................173

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    INTRODUO

    Aeterna luta da humanidade contra a insensatez, a viso cadavez mais prxima da beira do precipcio, a marcha rumo au-todestruio, a morte do sujeito, a morte do artista, o aquecimentoglobal; cada vez mais, a necessidade de reexo sobre a dinmicade desenvolvimento do sistema capitalista torna-se premente.

    A inquietao que provocou o desdobramento terico queaqui se encontra tinha em sua base um sentimento de frustrao.Frustrao em instintivamente sentir a necessidade de dissemi-nar sentimento de solidariedade que fosse capaz de transformaros rumos de desenvolvimento atuais.

    Sabendo a teoria como um importante fator de interpreta-o da dinmica do real e, ao mesmo tempo, um sintoma do

    esprito do tempo, pareceu que, na passagem para o sculo XXI,a emergncia e a permanncia do ps-modernismo como um im-portante referencial terico para os estudos sociais tivesse bas-tante a dizer.

    O ps-modernismo a lgica cultural de um capitalis-mo no disposto para o combate, mas de uma compla-cncia sem precedentes. A resistncia s pode comear

    encarando esta ordem tal como ela (ANDERSON,1998, p. 136).

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    Assim, a proposta inicial desse estudo era hercleo: contex-tualizar a produo ps-modernista, principalmente a circunscri-

    ta ao campo do materialismo losco, e analisar as consequn-cias decorrentes dessa concepo de sociedade.

    Ao dar incio a esse esforo um primeiro obstculo j fezcom que o sentido do trabalho devesse ser revisitado: a sensvelcarncia fundamentos ontolgicos que capacitassem o estudocrtico daqueles autores.

    No se trata de sacramentar determinada dogmtica atra-

    vs do repdio acrtico de teorias que a contradigam; pelo con-trrio, a busca foi por categorias de pensamento que pudessemcoadunar diferentes vertentes tericas a m de erigir um aparatoconceitual mais amplo, condizente com a complexidade socialcontempornea. A sensao, sentida na aproximao com refe-renciais ditos ps-modernos, foi a de que a fragmentao, cul-tuada pelo multiculturalismo, com sua relatividade de valores,

    interditava o dilogo, claramente imprescindvel para a demar-cao dos estudos sobre a sociedade.

    O que o ps-modernismo parecia proporcionar, portanto,no era um instrumento cognitivo capaz de promoo de de-senvolvimento social, ou uma revoluo epistmica, ou, muitomenos, uma transformao espiritual. Antes, adubava as terrasdo conformismo, do individualismo, da confuso terica e re-

    tardava a percepo da premncia da transformao social. Ascoisas so do jeito que so, e pronto! Quem somos ns para dizero certo e o errado, ou quem so eles para nos diz-lo? No m dascontas, ningum teria nada a dizer.

    Diante desse quadro de animosidade, apatia, ou, na melhordas hipteses, hedonismo que autores do ps-modernismo pare-ciam disseminar, cumpria a consolidao de um referencial te-

    rico que fosse capaz de estabelecer um ponto de vista aberto acontribuies, que buscasse sua preciso conceitual nessa prpria

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    abertura. Caracterstica essa que, por sua vez, representa a possi-bilidade de sustentar-se crtica a si mesma, de querer corrigir seus

    postulados face ao desenvolvimento terico. O rigor, por outrolado, exigiria tambm o estabelecimento de critrios de compati-bilidade para a produo. Assim, o esforo intrnseco a esse refe-rencial seria a costura por entre diferentes conhecimentos tendo atotalizao como meta a ser constantemente reiterada.

    O estudo dessa base terica prvio ao aprofundamentodos textos dos autores ps-modernistas. E esse estudo que se

    pretendeu realizar aqui.Os estudos realizados principalmente com a obra Ontolo-

    gia do ser social, de Lukcs, incidentalmente em dilogo com acorrente doRealismo crtico, de Roy Bhaskar, proporcionaram ofundamento terico capaz de desenvolver a necessidade intelec-tual sentida face aos autores do ps-modernismo. Eles, por suavez, encontraram-no nos alicerces do materialismo histrico-

    -dialtico, o que nos remete, principalmente, a Marx.A grandeza desse autor, que soube dialogar campos dspares

    do conhecimento social, tambm razo de suscitar desconan-a. A amplitude de sua proposta reverbera em diversos camposdo conhecimento social provando sua natural tendncia trans-disciplinaridade. Tendncia essa sensvel na obra de Lukcs, deampla envergadura, e, hodiernamente, no trabalho inaugurado

    pelo campo do Realismo Crtico, que promete grandeza no di-logo entre estudiosos de diferentes reas.

    A questo central desse estudo gira em torno da seguintepergunta: como possvel o estabelecimento de um referencialcrtico que seja capaz de manter-se aberto a contribuies late-rais e, ao mesmo tempo, fomente um estatuto de cienticidadeaos postulados que concatena?

    Para responder a essa questo sentiu-se a necessidade deencontrar uma base losca que integrasse as sociedades num

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    mesmo modelo, mas, tambm, que contivesse a explicao dassensveis diferenas entre os diversos grupos humanos. A on-

    tologia tal qual desenhada por Lukcs responde a essa questoarmando a centralidade do trabalho.

    Armar a centralidade do trabalho, como um pr teleolgi-co, como se ver, assume-o como o motor que permite huma-nidade erigir sobre a natureza algo que lhe absolutamente no-vo: o ser social, uma segunda natureza. Tom-lo como ponto departida desenha uma espiral explanatria que toma o embrion-

    rio como continente em potncia dos sensveis desdobramentosdo ser social. Assim, o movimento conceitual aqui exposto partedo mais simples ao mais complexo, desenvolvendo as imbrica-es que conferiro preciso categoria ideologia.

    O ponto de partida, portanto, um modelo de ao huma-na que contenha a possibilidade de instaurao da sociedade,caracterizando indivduo e sociedade como dois entes distintos;

    e cujo desenvolvimento seja capaz de situar a tenso existen-te entre categorias fundamentais do ser social, como teleologia,causalidade, momento ideal, alienao, estranhamento, valor evalor de uso, estrutura de objetivaes etc.

    Assim, o primeiro e o segundo captulos so dedicados introduo a esse modelo. No primeiro desenha-se a dinmicado pr teleolgico, em estreita relao aos destaques feitos por

    Lukcs na Ontologia do ser social. No segundo, o objetivo ,atravs de um estudo dos Manuscritos de Paris, de Marx, vis-lumbrar a dinmica de individuao coincidente com aquela dopr teleolgico armada por Lukcs distinguindo as categoriasde alienao, objetivao e estranhamento. A importncia desseprocedimento ampliar a descrio da estrutura de objetivaesproduzidas pelo ser social, esboar os termos do conito em quea dominao social se realiza e, colateralmente, vericar a sinto-nia entre o jovem Marx e o maduro Lukcs.

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    A anlise do conceito de estranhamento, realizado com aajuda dos estudos de Ranieri, contribui para vislumbrar os ter-

    mos da dominao, dos limites e dos estmulos da ao humana,o que, no desenvolvimento desse estudo contribuir para a de-nio da dimenso ideolgica e sua funo diante da reproduodo especco hic et nunc social. A dominao econmica nosurge como nica sequer como principal. Est na base, comoltima, porque ineliminvel a relao homem-natureza.

    A gura tornada mais complexa.

    Encontrar o papel que o momento ideal joga na atividadehumana e a importncia de sua reproduo desvenda os ne-xos que relacionam a dominao da produo de riqueza comaquela realizada pela disputa ideolgica. Assim, investigar asrelaes existentes entre dominao e disseminao de refe-renciais tericos pela dimenso ideolgica promete oferecercritrios para a Aufhebungou a suprassuno1 dessa disputa.

    Esse estudo, mais uma vez tomando Lukcs por referncia, realizado no terceiro captulo.

    No quarto e ltimo captulo so apresentados critrios que,aplicados na disputa ideolgica, poderiam promover a supras-suno terica e capacitar o esforo cientco a uma transdis-ciplinaridade direcionada a totalizaes cada vez mais abran-

    1

    O substantivo alemoAufhebungpode expressar o ato de erguer (algo do cho), o deguardar (um objeto, para que se conserve) e o de suspender (a vigncia de legalidadede um ato jurdico), sendo geralmente traduzido por supresso, abolio ou mesmosuperao. Seu signicado original , porm, mais rico e variado e, conforme ocontexto no qual utilizado, interessante vert-lo por suprassuno ou sobressuno,na medida em que a dinmica da expresso dialtica carrega consigo, no momentoqualitativamente novo, traos da etapa que est sendo superada ou suprimida.Traduzimos o substantivo Aufhebungpor suprassuno, neste trabalho, pelo fato deque ele abrange analiticamente os distintos nveis da composio dialtica, na medidaem que aquela reteno dos traos do elemento anterior remete ao estabelecimento

    do momento precedente, ou posterior, que ser qualitativamente distinto (RANIERI,2001, p. 77-78, nota 18).

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    gentes. Critrios esses apresentados por Bhaskar em perceptvelsintonia com o modelo de ao humana estudado.

    Esse desenvolvimento terico soma-se ao esforo de erguerum referencial crtico, cuja maior realizao seja contribuir parao estabelecimento de um estatuto de cienticidade para as ci-ncias humanas. Esse trabalho de crtica, nalmente, tenderiaa ser direcionado no apenas produo terica concorrente,tampouco apenas a si prpria, mas, principalmente, direcionadaa uma existncia social que tem se provado incapaz de promover

    um desenvolvimento sensvel, sustentvel e harmnico para oconjunto da humanidade.

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    TRABALHO COMO CATEGORIA

    FUNDAMENTAL PARA O DEVIRDO SER SOCIAL

    Esse estudo parte do pressuposto de que o trabalho, realizaoconsciente de ns previamente concebidos, rica fonteanaltica. Rica a ponto de fornecer discernimento, em sua formaembrionria, de dimenses que evoluram gradativa e concomi-tantemente ao desenvolvimento das sociedades, tais como a ti-ca, a esttica, o fenmeno jurdico, a religio, o conhecimento,a sociabilidade, e assim por diante. Por ser o trabalho modelode toda ao humana, os desenvolvimentos posteriores podemser explicados pelas carncias, falhas e acertos incrustados nas

    objetivaes realizadas compostas, por sua vez, pelas cadeias decausalidade mobilizadas intencional ou casualmente.

    Para proceder anlise do trabalho como a atividade queprovoca o salto ontolgico do ser determinado biologicamenteem direo quele que partilha essa determinao com a que por ele mesmo criada a determinao social , a atividade--trabalho ser tratada conforme apresentao de Lukcs, em sua

    Ontologia do ser social, isto , como um pr teleolgico, cate-gorizao plausvel da ao humana.

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    Trata-se de recorte metodolgico que quer ser capaz dedelinear no aspecto mais simples, mais bsico a forma embrio-

    nria, sinttica, das determinaes decorrentes do ser social.Nesse sentido, o trabalho representa a atividade realizadora dointercmbio orgnico entre o organismo humano com aquelemaior a que pertence. Intercmbio que leva a desdobramentosconcorrentes na prpria atividade-meio, erigindo objetivamentealgo que no est dado diretamente pela natureza. No desen-volvimento desse plano ontolgico essencial, pretende-se, car

    realada a necessidade da emergncia concomitante das diversasdimenses que, ao longo do tempo, complexicaram as socie-dades em seu desenvolvimento e que vindicam o trabalho comomodelo daprxis em geral.

    1.1 O trabalho como pr teleolgico

    1.1.1 Teleologia e causalidade

    Uma das conhecidas indicaes de Marx a respeito do tra-balho, diferenciando a atividade humana das demais realizaesdo ser, est em arm-lo como um ato nalstico, um pr teleo-lgico. Diz ele:

    Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamentehumana. Uma aranha executa operaes semelhantess do tecelo, e a abelha supera mais de um arquitetoao construir sua colmeia. Mas o que distingue o piorarquiteto da melhor abelha que ele gura na mentesua construo antes de transform-la em realidade.

    No m do processo do trabalho aparece um resultadoque j existia antes idealmente na imaginao do tra-

    balhador. Ele no transforma apenas o material sobre oqual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha

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    conscientemente em mira, o qual constitui a lei deter-minante do seu modo de operar e ao qual tem de subor-

    dinar sua vontade. E essa subordinao no um atofortuito. Alm do esforo dos rgos que trabalham, mister a vontade adequada que se manifesta atravsda ateno durante todo o curso do trabalho (MARX,2006, p. 211-212).

    Nessa breve passagem j est delineada, sinteticamente, ariqueza analtica proveniente do reconhecimento do trabalho co-

    mo uma realizao de um m previamente estipulado. O par ca-tegorial teleologia e causalidade so considerados, assim, essen-ciais para que a realizao humana se efetive diferenciadamenteaos demais seres vivos.

    Enquanto causalidade indica a existncia na natureza decomplexas relaes de causa e efeito, teleologia refere-se aofato de que o trabalhador tem em sua mente, anteriormente ao

    ato de pr as cadeias causais em movimento, uma vontade derealizao. A causalidade prov a essa vontade previso do queocorrer, orientando a posio ante alternativas para alcanar om que deseja. [...] ele gura na mente sua construo antes detransform-la em realidade. Essa condio permite que nasana natureza algo que sua causalidade imanente no forneceria.O resultado a ruptura da determinao biolgica.

    As respostas fornecidas pelos homens s necessidades desua reproduo orgnica gradativamente distanciam-se de suaimediaticidade espontnea, emprestando matria uma coor-denao nova de seus elementos. Ao invs da matria, de seuambiente ditar-lhe o comportamento, a virada ontolgica trazconsigo a necessidade de controle no apenas sobre a naturezae suas determinaes, mas tambm sobre si prprio; assim, ohomem subordina-se execuo do projeto que idealizou, adap-tando-o aos complexos conexos e discernindo suas interaes.

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    O projeto, compartilhado por aqueles que trabalham, nda porditar um comportamento adequado para o m desejado, em ou-

    tras palavras, o projeto dita um dever-ser para que se obtenha opretendido gozo, ou valor de uso.

    No processo de trabalho, a atividade do homem ope-ra uma transformao, subordinada a um determinadom, no objeto sobre que atua por meio do instrumentalde trabalho. O processo extingue-se ao concluir-se o

    produto. O produto um valor de uso, um material

    adaptado s necessidades humanas atravs da mudan-a de forma. O trabalho est incorporado ao objetosobre que atuou. Concretizou-se, e a matria est tra-

    balhada. O que se manifestava em movimento, do ladodo trabalhador, se revela agora qualidade xa, na for-ma de ser, do lado do produto. Ele teceu, e o produto um tecido (MARX, 2006, p. 215).

    O trabalho encontra-se na base da emergncia e desenvol-

    vimento do complexo originrio da sociabilidade. Como dito,nele so basilares duas caractersticas que caracterizam a prpriacategoria do pr teleolgico e que explicitam aAufhebung(a su-prassuno que se combina em outro nvel de qualidade, no ca-so, o desenvolvimento da sociedade pelo progressivo colocar-sedo homem no mundo): causalidade e teleologia2. Causalidade

    2

    Esta teleologia posta, importante enfatizar, no quer signicar um destino fatdico,resultado da interao de leis universais, algo como o fatalismo conveniente da certezado paraso (ou do inferno), quer, de outra forma, caracterizar a prvia ideao docomplexo no qual a ao humana se realiza como inerente atividade humana. Assim,antes de agir, durante a ao e depois dela o homem capaz de monitorar seu corpo(gestos, falas, expresses, tal qual os animais fazem) conseguindo inclusive ser crticoao prprio monitoramento (monitoramento de segundo grau, por que /foi deste jeito,foram atingidos os objetivos inicialmente desejados?). Idealiza o mundo atravs daalteridade, do dilogo e seus conitos com o objetivo; ideao esta que orienta aao para o sucesso das metas estabelecidas, seja l quais sejam e o que sucesso

    signique. Ideias sobre o mundo que podem estar em desconformidade com ele, jque nascemos ignorantes, e aparncia no igual a essncia. Assim, as estruturas no

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    referindo-se ao mundo natural e suas imanentes cadeias causais,enquanto a teleologia pressupe a vontade para um m previa-

    mente desejado. Como se v, causalidade e teleologia aparecemcomo caractersticas heterogneas, mas fundamentalmente com-binadas na emergncia do ser social. A teleologia, subordinaoa um m, no seria possvel caso a causalidade, que implica pre-visibilidade, no fosse possvel.

    [...], enquanto a causalidade um princpio de auto-movimento que repousa sobre si mesmo e que mantm

    esse carter mesmo quando uma srie causal tenha oseu ponto de partida num ato de conscincia, a teleo-logia, ao contrrio, por sua prpria natureza, uma ca-tegoria posta: todo processo teleolgico implica numanalidade e, portanto, numa conscincia que estabele-ce um m. Pr, neste caso, no signica simplesmenteassumir conscientemente, como acontece com outrascategorias e especialmente com a causalidade; ao con-

    trrio, aqui, com o ato de pr, a conscincia d incio aum processo real, exatamente ao processo teleolgico(LUKCS, 1981, p. 5).

    Teleologia posta, consciente orientao para um m, acer-ca-se exclusivamente ao ser social atravs do trabalho. No exis-te outra teleologia alm da do indivduo que se pe sobre a ma-tria, dominando-a e a si prprio para a realizao de um valor

    de uso. No se trata, portanto, de conceito generalizvel paraalm da esfera individual, embora a muito informe, carregandoconsigo as marcas da sociedade na qual existe.

    A atitude nalstica, portanto, inconcebvel na natureza

    se do por conhecimento simples, direto, em nvel emprico, exigem uma atividadeespecca para identicao dos complexos em atividade. A atividade humana, deacordo com essa categorizao, , portanto, uma prxis inevitavelmente orientadapor ideias, ainda que a teoria que conforma essas ideias esteja errada ou incompleta

    (como fatalmente estar). O trabalho, nestes termos, gura como forma central naespecicao da categoria.

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    inorgnica ou orgnica, na histria e, portanto, tambm na socie-dade tomada por ente coletivo. Mesmo nos animais superiores,

    que manifestam formas de conscincia (como os lees, que op-tam por determinada gazela dentre o bando, e programa seu boteatravs dessa deciso), essa atitude no ultrapassa nunca a ime-diaticidade da posio, a conscincia da escolha no ultrapassa onvel epifenmenico3. A constrio da cadeia causal da naturezano rompida e a escolha no forma acervo generalizvel paraatividades anlogas atravs da memria.

    Na ao humana, por sua vez, esse rompimento repre-sentado pelo rearranjo gradualmente progressivo nas cadeias decausalidade, com as escolhas formando acervo passado de ge-rao em gerao. Assim, a escolha realizada pelos animais noatinge, atravs da alienao no objeto almejado e um seu retorno conscincia do ser que escolheu, uma transformao internaem vista da compreenso e adaptao aos nexos em questo.

    O mesmo pode ser dito relativamente a outros animais queprecisam alterar a natureza ao seu redor para sobreviver, comoJoo de Barro, abelha, castor. Sua diferena com relao ao prhumano que, como espcie, no so capazes de ultrapassar es-se nvel mais imediato da sobrevivncia, de generalizar sua ex-perincia e de combinar a materialidade em outras formas almdaquelas prprias da espcie. Suas realizaes so constantesadaptaes ao ambiente, mais resultado da evoluo da espcieno ambiente que atos de conscincia.

    Nos animais domsticos, por outro lado, possvel imaginarque determinados comportamentos estejam vinculados a nalida-des, como o pedido de comida, carinho ou proteo. A mediao,entretanto, a que submetem essa atividade teleolgica no espon-

    3 Fenmeno secundrio e condicionado por processos siolgicos e, portanto, incapaz

    de determinar o comportamento futuro dos indivduos. V. Dicionrio HOUAISS,rubrica losoa.

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    tnea, autofundada na espcie, funda-se, diferentemente, na aohumana, que estimula determinados comportamentos recompen-

    sando-os. Em outras palavras, o condicionamento aos comporta-mentos continua sendo exterior espcie. O ambiente em que seencontram determina o comportamento adequado, comportamentoesse que se adapta ao ambiente, mas no promove sucessivas adap-taes no meio para aprimorar a reproduo da espcie.

    O pr teleolgico, assim, caracterstica exclusivamentehumana e, ainda, vinculada conscincia individual.

    Para que a Histria e a sociedade assumissem atitude na-lstica deveria estar pressuposto um esprito absoluto, no sentidohegeliano, que orienta o uxo total da atividade humana rumoa um determinado m. No entanto, a natural impossibilidade deum fechamento, um destino, o m da histria, um ponto de che-gada inexorvel tanto para o tempo como para a natureza impli-ca a impossibilidade de que se assuma a existncia de um sujeito

    transcendental, demirgico, que estivesse a organizar a totalida-de para algum m ou objetivo compartilhado. Essa implicaomina a possibilidade de expanso da referncia teleolgica pre-sente no trabalho para alm dos indivduos.

    A teleologia caracteristicamente inerente ao humana,ocorrendo o compartilhamento do referencial nalstico pela divi-so do trabalho, atravs da linguagem, poltica, moral etc. A teleo-

    logia, tipicamente presente na atividade laboral, s possvel por-que existe em cadeias causais reconhecidas, cujo funcionamentoretroage sobre o ser que as mobiliza para o m desejado. O proje-to que anteriormente se tem em mente apenas realizvel quandose tem o correto acionamento dos nexos especcos em questo,das legalidades operantes no rearranjo da matria.

    Nenhum desenvolvimento imanente das propriedades,

    das legalidades e das foras operantes no mero ser-em--si da pedra ou da madeira pode fazer derivar uma

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    casa. Para que isto acontea necessrio o poder dopensamento e da vontade humanos que organize tais

    propriedades de uma forma inteiramente nova em seusfundamentos (LUKCS, 1981, p. 7).

    Assumido que nem todos os nexos podem ser previstos,j que a realidade sntese de determinaes por vezes casuais(no previstas), a necessidade do sujeito atento, presente duran-te sua atividade, torna-se requisito para a realizao almejada.Para tornar a objetivao bem-sucedida acompanha seu proce-

    dimento laboral, corrigindo possveis desvios e imprevistos; ageneralizao, calcada na identicao de nexos causais, gestao embrio da previsibilidade, o referencial cientco, a estruturado se... , ento..., gerando um acervo cognitivo sobre as estrutu-ras de causalidade. Procurar o domnio sobre elas, j que habi-litariam multiplicidade de realizaes, resulta numa tendncia autonomizao da investigao dos meios. Com a cincia, essatendncia nalmente converte a verdade (i.e., a compreensoda constituio ontolgica das coisas) em um m em si mes-mo (DUAYER e MEDEIROS, 2006, p. 10). Para o ser social,a apreenso correta das causa-lidades concretas passa a ser maisimportante que a consecuo de qualquer m particular, confe-rindo autonomia ao conhecimento e cincia, sustentando, porm, aquela distino categorial entre teleologia e causalidade.

    [...] a busca dos meios para realizar o m no podedeixar de implicar um conhecimento objetivo do siste-ma causal dos objetos e dos processos cujo movimento

    pode levar a alcanar o m posto. No entanto, a posi-o do m e a busca dos meios nada podem produzirde novo enquanto a realidade natural permanecer oque em si mesma: um sistema de complexos cuja le-galidade continua a operar com total indiferena com

    respeito a todas as aspiraes e ideias do homem. Aquia busca tem uma dupla funo: de um lado evidenciar

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    aquilo que em si mesmo governa os objetos em ques-to independentemente de toda conscincia; de outro

    lado, descobrir neles aquelas novas conexes, aquelasnovas possveis funes que, quando postas em movi-mento, tornam efetivvel o m teleologicamente pos-to. No ser-em-si da pedra no h nenhuma inteno, eat nem sequer um indcio da possibilidade de ser usa-da como faca ou como machado. Ela s pode adquiriruma tal funo de instrumento quando suas proprieda-des objetivamente presentes, existentes em si mesmas,

    sejam adequadas para entrar numa combinao tal quetorne isto possvel (LUKCS, 1981, p. 8).

    Para a reproduo da natureza, de seu ser-em-si, poucoimporta as nalidades almejadas pelos homens, ela absoluta-mente indiferente a elas. Enquanto o pr teleolgico orienta-sepor um conjunto de realizaes valorizadas para a reproduode dado ser social, a correta posio dos nexos de causalida-

    de habilitada pela cognio, pelo reconhecimento dos nexoscausais presentes na atividade produtora. Essa, por sua vez,encontra-se vinculada a um referencial de utilidade, que valo-riza as alternativas presentes na cadeia de causalidade segundoa eccia para os ns desejados.4

    Como lembra Lukcs, essa caracterizao do trabalho j eravislumbrada desde a Grcia Antiga por Aristteles ao dividir a

    atividade laboral entre o pensar (nesis) e o produzir (poisis). Opensar trata, aqui nesse complexo, da ideia, dos objetivos a quese quer chegar, da teleologia, que cogita dos meios para atingiro m desejado; e o produzir trata da execuo material da ideiapreconcebida. Com Nicolai Hartmann, lsofo do sculo XX, adiviso de Aristteles ganha em concretude, pois divide o pensarem dois atos: o m desejado e a investigao dos meios para sua

    4 Destacam-se assim duas dimenses do valor de uso, o gozo imediato, reproduo davida social, e o valor de uso mediao para a obteno de outro valor de uso.

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    consecuo. O resultado a distino entre teleologia e causali-dade (LUKCS, 1981, p. 7).

    Exemplo a ilustrar essas categorias o processo laboralque quer produzir um instrumento adequado ao corte. DizLukcs que o que dene a eccia do processo a sequnciade alternativas do trabalhador que pe em movimento cadeiasde causalidade do ser-em-si natural, internamente complexase repletas de contradies. A causalidade refere-se questo:determinado material, manuseado de determinada maneira,

    capaz de produzir o m desejado? Ou, pode a pedra, sendolascada, produzir um instrumento de corte? A teleologia per-gunta: a pedra lascada corta? Isto , o m posto adequado nalidade desejada?

    fcil perceber que ambos os sistemas de posies, inter-namente articulados no ser social, funcionam dinamicamente epossuem por ponto de partida um sistema de reexo da realidade,

    de crenas, que, instrumentalizadas pela conscincia, precisamser ecazes satisfao das necessidades humanas, produzindovalores de uso e realizando o intercmbio entre o organismo hu-mano e a natureza.

    Objetivando o que antes foi ideado (um reexo, inexisten-te, abstrato, que tenta o rearranjo do existente para ns teis svariadas necessidades de reproduo) produz-se no ser natural

    algo que no existia em seu ser-em-si, fundado em torno de al-ternativas cgnitas. A pedra em seu ser-em-si, efetivamente, nose relaciona aos usos que lhe so atribuveis como faca ou ma-chado (LUKCS, 1981, p. 17).

    Entre teleologia e causalidade surge ento uma nova cate-goria, determinante para o ajustamento entre elas: a alternativa.

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    1.1.2 A alternativa

    O primeiro impulso para o movimento dos seres vivos anecessidade e a busca por sua satisfao. O homem comea ase distanciar, no entanto, desses impulsos marcantemente org-nicos quando entre a vontade e a satisfao interpe o trabalho,a posio teleolgica, um comportamento consciente dos meiose dos ns. Com isso, as alternativas, caminhos possveis de in-terveno nas cadeias de causalidade subordinados ao m de-

    sejado, incrementam a imprescindibilidade do carter cognitivoe representa indubitavelmente uma vitria do comportamentoconsciente sobre a mera espontaneidade do instinto biolgico(LUKCS, 1981, p. 21).

    O reconhecimento de alternativas no seu colocar-se sobre omundo possibilita, pelo contrapeso entre m desejado e m al-canado, a transformao espiritual do sujeito. Desejoso de can-

    dente sucesso poder criticar sua ao em vista de aes futuras,corrigindo sua ao pela escolha de alternativas que lhe pareammais adequadas.

    O resultado realizado, portanto, mais ou menos apropriado necessidade previamente sentida, constrange as atividades futuras reproduo ou transformao das alternativas eleitas. Dissoresulta estrutura deontolgica, um tpico dever-ser, que lida comrealizaes (ns adequados necessidade), comportamentos ade-quados (causalidade adequada para o m) e encadeia o ser do ho-mem em atitude reprodutora ou transformadora do ser social.

    A objetivao realizada, que produziu referncia de utili-dade reproduo do complexo social de que participa, esta-belece-se para ele mesmo como referncia coatora. Estando oreferencial de utilidade vinculado a um objeto apresentar-se-como referncia positiva para realizaes futuras; ou, tratando--se de relao puramente social, comportamental, a chancela de

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    utilidade ou adequao, referendada pelas prticas de grupo, re-forar os laos comunitrios.

    A ao humana objetivada insere-se na estrutura social e tor-na a qualidade da ao participante do todo. Tratando-se de umproduto material, a utilidade socialmente reconhecida possibilitaa troca dos produtos, a participao na diviso do trabalho; tratan-do-se de uma conduta moralmente aceita, habilita o produtor a sermembro da comunidade. A essa decorrncia da teoria do valor seretornar adiante ao se tratar da tica nessa atividade originria;

    importa por ora salientar a coercitividade inerente combinaoentre teleologia e causalidade, fato esse que produz, no estatuto daalternativa, julgamentos de correo ou adequao.

    J tendo contribudo para a explicitao da teleologia co-mo caracteristicamente humana, uma vez mais recorrer dis-tino entre ser social e ser biolgico pode ajudar a esclarecero estatuto ontolgico da alternativa diante das categorias tele-

    ologia e causalidade.As aparentes analogias que encontramos nos animaissuperiores o fato de que um leo se atire sobre esseantlope e no sobre aquele etc. so uma coisa in-teiramente diversa, e precisamente em sentido onto-lgico; essa escolha, de fato, se mantm no plano

    biolgico e no provoca transformaes interiores denenhum tipo; os processos que levaram a ela, portan-to, so meros epifenmenos no plano do ser biolgi-co. A alternativa social, ao contrrio, mesmo quando profundamente radicada no biolgico, como no casoda nutrio ou da sexualidade, no permanece fecha-da nessa esfera, mas sempre contm em si a referida

    possibilidade real de modicar o sujeito que escolhe(LUKCS, 1979, p. 81).

    Estando a ao vinculada a determinado m haver os ges-tos, os materiais, os instrumentos, enm, as alternativas sociais

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    mais adequadas a sua obteno. Essas alternativas, ao mesmotempo em que se apresentam, a despeito de sua conscincia, cri-

    teriosamente elencadas para o ser social como dever-ser, repre-sentam tambm o horizonte de exerccio da liberdade por exce-lncia. O retorno da objetivao ao sujeito contm o potencialde transform-lo, o que contribui para que novos horizontes deao, de alternativas, se abram para ele.

    1.1.3 As alternativas como horizonte do exerccio da liberdade

    A liberdade, do que a alternativa expresso, representa, nes-se movimento, no uma referncia absoluta, abstratamente con-cebida, mas um campo determinado de aes no interior de umcomplexo social concreto no qual operam foras tanto naturaisquanto sociais, decorrncias das respectivas estruturas. A totalida-

    de concreta representa os limites objetivos para a liberdade, comoum quadro de alternativas disponveis para a ao humana a partirdo qual o ser social reproduzido ou transformado.

    A limitao, contudo, no apenas objetiva. H tambm aimposio de limites em decorrncia da dimenso cognitiva. Asalternativas, ainda que existentes objetivamente, podem no serconhecidas pelos agentes e assim nem se apresentam efetiva-

    mente como tais. O questionamento das constries e o reconhe-cimento dos nexos de causalidade objetivamente atuantes cum-prem o papel de romper paradigmas e propor novas referncias ao. A liberdade, nesse sentido, a categoria que expressa apossibilidade de desenvolvimento do ser social, de tornar-se al-go diferente, a categoria que alude abertura da historicidade.

    A acumulao das experincias, atravs do pr teleolgicoe o retorno ao ser que se ps, elimina e conserva movimentos.As objetivaes xam reexos, possveis leituras do que . As

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    realizaes guardam em si a origem, distncia entre o posto eo m desejado, possibilitando a valorao e o controle, impli-

    cando-se na execuo seguinte (LUKCS, 1981, p. 23). A li- berdade, como esse reconhecimento de alternativas, amplia oleque de possibilidades objetivamente reconhecidas, sobrandoao sujeito as indissolveis amarras socialmente postas. Esse gra-dativo domnio, ou, pelo menos, reconhecimento das cadeias decausalidade da natureza trata do que Lukcs chamou recuo dasbarreiras naturais.

    O modelo da atividade humana aqui apresentado procurademonstrar a estrutura primordial do pr teleolgico, que me-deia a relao homem e natureza. No entanto, a gradativa diver-sicao de necessidades sociais, e a prpria estrutura imanenteda mediao pelo trabalho, reconhecendo o papel ativo e a fun-o da conscincia, tensionam o desenvolvimento em direoa formas mais evoludas, mais puras da prtica social. A estru-

    tura fundamental desse processo, que abrange alm da relaohomem-natureza, tambm as relaes sociais, est contida nessemodelo de trabalho.

    O texto, at aqui, abordou o problema sob o prisma da ativi-dade produtiva, da relao da posio teleolgica com as cadeiasde causalidade inerentes natureza. Entretanto, mister destacarque a mediao intencional como tal, um colocar-se conscienteem vista de determinado m, tambm se dirige coletividade,a outras pessoas. E isso feito e com vrias nalidades, comocoordenar as atividades para um m comum, obrigar execuode dada tarefa, imputar-lhe determinado comportamento, proi-bir outro etc. O pr teleolgico, que se refere imediatamente transformao de objetos naturais em valores de uso, dirige-setambm para outros homens, procurando inuenciar-lhes a con-duta. Com isso, o modelo se amplia envolvendo o que Lukcs

    chamou pr teleolgico de segundo grau.

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    1.2 O pr teleolgico de segundo grau

    O crescimento do complexo de objetivaes, a crescentediviso do trabalho e a produo de riqueza social combinam-sena complexicao da teia que medeia as intervenes imedia-tas sobre os objetos naturais. A atividade humana no se voltaapenas para a produo de objetos materiais, seno que tambm procura inuenciar outros comportamentos. A capacidade daao humana voltar-se para as conscincias, pelo uso de lingua-

    gens, pressuposto para a poltica, para a articulao das ativi-dades laborais coletivas etc. Lukcs chama a estes comporta-mentos que no se voltam imediatamente produo objetiva,mas que buscam inuenciar, dissuadir ou combinar comporta-mentos com outras pessoas de pr teleolgico de segundo grau.Os objetos que se tornam alvo das posies de segundo grauso as conscincias, as quais, no operando sem construir umainterpretao do mundo, so em potncia tangveis a constru-tos externos, os quais, uma vez considerados, podem referenciarcomportamentos futuros.

    No processo da vida scio-humana todos os momentos,fora aqueles de caracterstica biolgica espontneo-necessria(como respirar), so resultados da atividade teleolgica que ar-ticula processos causais. Essas estrutura e dinmica, no se res-tringindo to somente ao intercmbio orgnico com a natureza,

    estendem-se tambm quelas aes comunicativas que buscamdeterminado comportamento.

    A diferena que aqui surge entre aquelas aes que bus-cam provocar determinados comportamentos nos outros homense aquelas que atuam sobre objetos naturais para transform-losem objetos sociais est nas prprias cadeias causais mobilizadaspara o m esperado. A diferena a identicvel no seria tanto

    a estrutura e dinmica, mas o processo gentico, que, no pr de

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    segundo grau, tem mediaes sociais como m, e a natureza dascadeias causais acionadas no processo.

    Embora ambos os processos, materiais e sociais, nunca se-jam realizveis com pleno e adequado conhecimento de seus mo-mentos, as decises e reaes interpessoais fundamentam-se emcadeia causal incomparavelmente mais incerta. E isso porque aestrutura social compartilhada em constante transformao, isto, quem age o faz em face da uidez e relatividade daquela es-trutura de valorao de condutas, que dene o escopo de reaes

    possveis encerrando em si as contradies decorrentes dos coni-tos, bem como suas diversas possveis respostas, que caracterizama situao histrica na qual est encerrada dada sociedade.

    Essa diferena de objeto a delineada, entre as posies te-leolgicas de primeiro e segundo graus, aponta para a distinofundamental no mbito da epistemologia que, concomitante-mente, aproxima e diferencia o campo das cincias humanas e o

    das cincias naturais. Aproxima ao denir seus comuns objetosde estudo na identicao dos processos genticos, de naturezarelacional; e diferencia pelo tipo de legalidade identicado.

    Nas cincias naturais a legalidade existente em-si identi-cada como processo gentico da coisa mesma e, ainda que tenhauma atividade humana consciente em sua base, as cadeias decausalidade que a forjam so independentes do homem.

    Nos processos sociais, por sua vez, sustentados sobre umacadeia de causalidades socialmente posta, a legalidade ui-da, mais uma tendncia dependente do desdobramento social.Essa constante mutao, de legalidade efmera (mas referncianecessria), est suscetvel a novas formas e novas legalidades.Vincula-se a processos mais amplos de reproduo social.

    O uso da linguagem na tentativa de orientar comportamen-

    tos, procura referenciar-se nessas tendencialidades, estrutura

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    teleolgico, representam apenas alguns dos meios atravs dosquais as legalidades sociais se difundem.

    Seja pela retido de seus preceitos, pela coero, pela tradi-o, por suscitar culpa ou responsabilidade a interpretao dosvalores teis ao ser social, sua signicao, seu arranjo em cor-po terico-conceitual de retrica persuasiva valorizado comomarco civilizatrio e apresenta-se como importante refernciacultural. Esse referencial cultural assume formas variadas: arts-tica, religiosa, jurdica, moral, terico-cientca; mas sempre

    produo humana, cujo alvo imediatamente o outro, os con-itos, os sentimentos humanos compartilhados, e cuja validadeest no reconhecimento social dos valores teis que conformamidentidades, distinguem os diversos grupos humanos e adaptam--nos a suas especcas singularidades.

    As culturas produzem, dessa forma, ainda que por muitasmediaes, mas inevitavelmente (para resistirem aos conitos

    ideolgicos), razovel e minimamente coerente interpretaoda existncia, impingindo-lhe sentido, referncia, razo de ser,orientao eivada de carga valorativa, implicando comporta-mentos e reexes mais ou menos adequados aos especcose recorrentes conitos da existncia. A assuno de especcareferncia cultural produz determinada organizao do convviosocial, hierarquizando comportamentos que, por sua vez, impli-cam-se na reproduo material da sociedade e reetem uma da-da estrutura de poder.

    A atividade humana tpica, o trabalho, imprime em seusprodutos, atravs das alternativas escolhidas, especcas formasde objetivao. Revela, assim, no apenas a forma pela qual ohomem se relaciona com a natureza, mas tambm como se rela-ciona socialmente. O ser social, como resultado das objetivaeshistoricamente postas, contm as determinaes contingentesque o zeram precisamente-assim. A partir do ser natural, se-

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    produo da vida. A realizao dessa utilidade no processo dereproduo da vida confere valor de uso ao humana que a

    engendrou. Essa noo de valor de uso, portanto, vincula-se, an-tes de mais nada, funo desempenhada pelo gozo alcanadono processo de reproduo da vida humana. O m vislumbradono pr teleolgico, portanto, vincula-se a valor de uso na exatamedida em que tenha seu efeito til comprovado pelo sujeito quepe. Trata-se, assim, de um fundamento objetivo que conecta arealizao ao mundo social, saciao de necessidades humanas.

    O valor de uso completa-se no gozo da realizao humana.Essa denio se prende quela encontrada no Capital de Marxque vincula a realizao do valor de uso cristalizao de aohumana em coisas. E coisas aqui possuem natureza material ouimaterial. Assim se depreende do conhecido trecho:

    A mercadoria , antes de mais nada, um objeto exter-no, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz ne-

    cessidades humanas, seja qual for a natureza, a origemdelas, provenham do estmago ou da fantasia. Noimporta a maneira como a coisa satisfaz a necessidadehumana, se diretamente, como meio de subsistncia,objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de

    produo (MARX, 2006, p. 57).

    A conexo do valor de uso ca presa, portanto, mais rea-lizao de ao humana que cristalizao de fora humana emobjetos materiais, como se depreende da meno ao objeto exter-no ou do trecho de Marx abaixo em que h atribuio de valor namedida em que ocorra cristalizao de trabalho til em objetos.

    A fora humana de trabalho em ao ou o trabalhohumano cria valor, mas no valor. Vem a ser valor,torna-se valor, quando se cristaliza na forma de um ob-

    jeto (MARX, 2006, p. 73).

    No entanto, esse referencial de utilidade, atribudo reali-

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    zao humana no apenas discernvel na atividade estritamentematerial, de transformao da natureza. Valor de uso, em sentido

    mais amplo, trataria do encadeamento da realizao humana reproduo da vida. Todo trabalho, ao humana, pr teleolgi-co, que tem efeito til, produz valor de uso.

    Chamamos simplesmente de trabalho til aquele cujautilidade se patenteia no valor-de-uso do seu produtoou cujo produto um valor-de-uso. Desse ponto devista ser considerado sempre associado a seu efeito

    til (MARX, 2006, p. 63).Reconhecer a criao de valor de uso em todo trabalho que

    tenha efeito til abrange no apenas a transformao da naturezapara intermediar o intercmbio orgnico da vida humana, masrefere-se tambm orientao das condutas para o estabeleci-mento e reproduo de dada organizao social. Esse efeito til dado imediatamente pelo indivduo, mas pode ser gradativa-

    mente referendado por mais membros da sociedade, que tam-bm reconhecem naquele gozo utilidade para a reproduo desua vida. Dessa forma tem origem o valor de uso social, pr--requisito para o estabelecimento de relaes de troca.

    Quem, com seu produto, satisfaz a prpria necessida-de gera valor-de-uso, mas no mercadoria. Para criarmercadoria mister no s produzir valor-de-uso, mas

    produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso so-cial (MARX, 2006, p. 63).

    Valor de uso social, embora seja seu pressuposto, no serefere apenas forma da mercadoria. , mais, realizao huma-na cujo efeito considerado til no apenas pelo sujeito que oproduziu, mas tambm pela comunidade a qual pertence. Assim,valor de uso social revela-se base no apenas para as relaes

    de troca, porque realizaes que possuem juzos semelhantes

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    quanto utilidade; mas tambm pressuposto para as posiesteleolgicas de segundo grau, que esperam por reao um leque

    de comportamentos adequado, ou til, para a obteno de deter-minado m. Realizaes essas que, inltrando juzos de utilida-de nas mediaes, objetivam uma estrutura de valores de uso,cujas competncias esto em organizar a sociedade diante dosrecursos disponveis para prover sua reproduo orgnica e dis-ciplinar as relaes interpessoais a m de garantir a reproduode sua sociabilidade.

    Valor de uso social, portanto, arquiteta uma estrutura de ob-jetivaes, cara reproduo de determinado complexo social, eque se orienta pelos efeitos teis, valores de uso, inerentes a seuprocesso emergencial e incorporados durante seu desenvolvimen-to. O compartilhamento desses valores de uso, reconhecidamentecaros a determinado ser social e caracterizadores da especicida-de cultural, se volta s posies humanas futuras como um dever-

    -ser, como realizaes comprovadamente ecientes para sustentaraquele especco estilo de vida societria. Aos problemas dos me-canismos de reproduo social, portanto, liga-se o reconhecimen-to compartilhado do dever-ser, orientao da conduta humana, noque est contida a questo do valor de uso social.

    No processo da objetivao s pode cumprir o dever-ser suafuno especca porque o que desejado est inserido num ci-clo de existncia e, por isso, regula o comportamento adequado reproduo; de outra forma, essa categoria, valor de uso, o mdesejado pela atividade teleolgica, no seria capaz de implicaro homem em sua realizao e, tampouco, de apresentar-se comocritrio para a denio de sucesso. Desta forma, a realizao dovalor de uso critrio para avaliao da posio nalstica, quesustenta a fora do dever-ser.

    Valor de uso, assim, refere-se ao m da posio teleolgica,refere-se satisfao das necessidades fsicas ou espirituais dos

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    homens; e se realiza pela prtica humana, que reconhece nelaelementos necessrios para a reproduo da vida social. Esse

    mesmo reconhecimento do valor como elemento essencial paraa vida em sociedade retroage sobre o indivduo e exige-lhe de-terminadas condutas.

    Como apresentado no primeiro captulo, a posio teleolgi-ca sustenta-se em duas categorias que fundamentam sua emergn-cia: teleologia e causalidade. Causalidade vincula-se s interaesexistentes entre os complexos naturais e que existem de forma

    anloga a leis. Teleologia refere-se nalidade, ao debruar-se so-bre os complexos a serem postos em movimento a m de alcanardeterminada nalidade. So os efeitos teis, reconhecidos comotal por outros, depreendidos dessa realizao, que a inserem naproduo social e conferem realizao valor de uso social, isto, utilidade para a reproduo da vida em dada sociedade.

    Esse quadro de valores de uso socialmente compartilhado

    se apresenta, para as trajetrias de vida, como objetivos a seremperseguidos, e so, desta maneira, constantemente reproduzidosno ser social. Apenas possuem essa estatura porque capazes decomunicar, convincentemente, o conhecimento acumulado ssucessivas geraes, cumprindo o papel de guias para as situa-es em que diferentes alternativas se apresentam.

    O quadro de valores de uso no se comunica, no entanto,

    apenas atravs do pr teleolgico de primeiro grau. Cumpremimportante papel nesse captulo as concepes de mundo impl-citas em diversos discursos tericos, ideais, morais, religiosos,msticos, cientcos etc. (i.e., orientaes de conduta para situa-es cotidianas). Essas concepes, certicadas por ecciatanto na esfera produtiva (relao direta da interao orgnicada sociedade com a natureza) quanto social (culturas, tradies,tabus, moralidade etc.), veiculam os valores referendados porsua utilidade no corpo social e organizam a convivncia em de-

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    terminados patamares. A simbiose deste quadro de realizaeshumanas reprodutor de sociabilidade, ideologicamente propa-

    gado, com dadas relaes econmicas, modo de suprimento denecessidades orgnico-sociais, emerge a noo de modo de pro-duo ou totalidade como conceito referencial nas anlises dosespeccos hic et nunc historicamente dados.

    Ao mesmo tempo em que a mediao do pr teleolgico desegunda ordem, voltado a inuenciar a agncia humana, tentacriar um quadro de razovel estabilidade, normalidade, seguran-

    a e previsibilidade, em razo do dever-ser no espectro da aohomem-homem, esse quadro termina por favorecer a reprodu-o de dada estrutura social, resolvendo conitos, conjugando acooperao e coibindo condutas atentatrias ordem hegem-nica. E cumpre essa funo pela sacralizao de dadas condutase realizaes humanas, teis na viso daqueles que se pem atentar inuenciar as condutas de outros homens.

    Condutas desviantes, desejosas de transformao, e que di-vergem, portanto, da prpria noo de utilidade, erigem outrocorpo de valores como m desejvel. Ao desaarem os valo-res hegemonicamente aceitos como teis se rebelam contra o padro, cujo confronto resulta ou na transformao social, ouna discriminao, isolamento, amputao do membro desvianteou, ainda, os valores exibilizam-se e as condutas antes des-viantes so metabolizadas. Nesse ltimo caso os valores de usoadquirem carter social e as realizaes vinculadas a esse mhabilitam-se frente produo social e, em consequncia, comopassveis ao estabelecimento de reciprocidade.

    Valor de uso social, portanto, remete a esse espectro mais am-plo de realizaes humanas, de saciao de necessidades sociais.Ademais, remete, ainda, organizao da sociedade como um to-do, vez que a utilidade caracteristicamente mais abrangente, abar-cando a prpria organizao e o regramento das relaes sociais.

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    A relao real, objetiva, independente da conscincia,que designamos com o termo valor, efetivamente,

    sem prejuzo dessa sua objetividade, em ltima an-lise, mas apenas em ltima anlise, tambm o funda-mento ontolgico de todas as relaes sociais que cha-mamos de valores; e, por isso, tambm o veculo detodas essas relaes, processos etc. objetivos, mesmocontinuando a existir e a agir independentemente dasintenes dos atos humanos individuais que os reali-zam, s emergem condio de ser enquanto realiza-

    es desses atos e s podem explicitar-se ulteriormen-te retroagindo sobre novos atos humanos individuais(LUKCS, 1979, p. 83).

    Valor, criao humana para suprir necessidades socialmentesensveis, se consolida como tal, a despeito da conscincia sobresua existncia, ao apresentar-se como critrio para aes futuras,revelando o sucesso que obteve na saciao de necessidades so-

    ciais. O reconhecimento social da utilidade dessa realizao quepoder fazer com que outras posies humanas obedeam s pres-cries que divulga. Na base do valor est, portanto, o valor deuso, vetor da relao entre objetivao e necessidades humanas.O atendimento a determinadas necessidades de reproduo do sersocial autoriza a reiterao das alternativas contidas na realizao,tidas ento como organizadoras do hic et nunc histrico-social,um valor de uso social, fazendo com que o valor de uso seja posi-

    cionado como m desejado na atividade teleolgica.O movimento do corpo humano criador de valor de uso

    baseia-se em objetivaes anteriores que bem-sucederam namediao de demandas sociais. O que se realiza so atos ana-lticos e sintticos que reproduzem, modicam ou novamenteplasmam os atos precedentes. Anlises e snteses so por issoprodutos da conscincia e no momentos reais daquele processo

    real, sobre o qual a posio teleolgica procura inuir de vrias

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    maneiras (LUKCS, 1981b, p. 27-28); os resultados esperadosapenas so atingidos quando os momentos duradouros, centrais

    ao processo de objetivao, so observados.Nas diversas etapas do processo de objetivao com vistas

    criao de especco valor de uso vrias alternativas se interpem.Vrios outros valores de uso, de efeito esperado, servem comoreferncia para o preciso encadeamento dos elos de causalidade. Aopo por uma alternativa que no produza o efeito esperado con-duzir o resultado do trabalho a no produzir o efeito til que se

    desejava. [...] nenhuma coisa pode ser valor se no objeto til;se no til, tampouco o ser o trabalho nela contido, o qual noconta como trabalho e, por isso, no cria nenhum valor (MARX,2006, p. 63). A nalidade de produzir especco valor de uso im- pe determinadas alternativas durante o pr teleolgico, sendoseu sucesso critrio para dispndios futuros de energia humana.

    Somente a pedra que foi trabalhada de maneira apro-

    priada para cortar torna-se um elemento ativo do traba-lho, da produo do ser social. Se a operao no temsucesso, a pedra permanece um objeto da natureza eno pode, portanto, fazer parte do ser social. Aqui ma-nifesta-se em termos bastante concretos a estrutura danova forma do ser, da sociabilidade. De fato, ainda queo produto do trabalho que no teve sucesso permaneaum objeto da natureza e no atinja o ser social, nem

    por isso o processo da sua fabricao possui um car-ter social-negativo; trata-se, isto sim, de um dispndiode energia desperdiada (LUKCS, 1981b, p. 37-38).

    A estrutura fundamental do se... ento... (se a pedra forlapidada de determinada forma, ento ela atender a meu anseioe cortar adequadamente) tem por premissa o desejo de criar de-terminado valor de uso (o corte adequado), para que a realizao

    componha a estrutura de objetivaes, de valores de uso, do ser

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    social. Diante da ideao prvia do valor de uso desejado surgea possibilidade da postura avaliativa diante do processo.

    Esse referencial de utilidade, por seu permanente vnculocom a objetividade, no pode ser concebido em termos abstrato--absolutos. A especca designao de uma realizao ou con-duta como relevante para a reproduo de dado ser social podetensionar consagrao do comportamento como orientaoabsoluta, sustentada por tradies compartilhadas vinculadas ao pertencimento a determinada organizao humana. O que em

    aparncia tido por absoluto, a histria trata de relativizar.A estrutura de objetivaes que caracteriza a forma pela

    qual dado ser social se reproduz, varia em conformidade aos re-cursos naturais disponveis bem como em razo do desenvolvi-mento das foras produtivas, causando diferenciaes culturaisno apenas no espao mas tambm sustentando as transforma-es no tempo. O antes absoluto, ento, revela-se no mais que

    uma tendncia em direo a uma referncia objetivamente fun-dada e socialmente compartilhada.

    O valor de uso que a aparece, que inscreve o comporta-mento em dada posio na estrutura de objetivaes existente,revela-se como critrio para vericar se as escolhas feitas duran-te a posio teleolgica foram adequadas necessidade visada.A categoria termina por informar para as atividades posteriores

    se o processo dever ser repetido, modicado ou cancelado.Assim, tratando-se especialmente da produo material, a participao da natureza transformada, antropomorzada, naestrutura do ser social se d quando inserida em seu quadro devalores de uso, isto , quando a energia aplicada na naturezapara transform-la de acordo com as necessidades humanas ecazmente traduzida numa realizao reconhecidamente til

    para a reproduo do ser social. Embora o valor surja na es-trutura social como juzo quanto a sua utilidade, emanado da

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    conscincia, no deve, entretanto, induzir a consider-lo sujei-to a critrio subjetivo.

    O fundamento do valor de uso objetivo. Que a pedra equi-vocadamente polida no seja capaz de desempenhar a funopretendida no um dado da conscincia, mas da pedra relacio-nado ao m desejado, conscincia resta reconhec-lo.

    A objetividade a partir da qual a utilidade da realizao reconhecida, ultrapassa a esfera do intercmbio orgnico socie-dade-natureza. Alcana mesmo os complexos sociais a tal ponto

    mediados que aquela esfera de integrao resta velada pela proe-minncia de relaes sociais. O processo ganha tamanha abran-gncia que a referncia objetiva de utilidade impe-se tambms condutas que suprem necessidade imateriais na sociedade co-mo os servios, a moralidade, as referncias ideolgicas e, ousa-ria dizer, a potica.

    Acatada a objetividade desses referenciais, decorrente de

    sua vinculao reproduo de dado ser social, cumpre tambm identidade cultural estar assentada sobre necessidades sociais,principalmente a participao na estrutura de objetivaes que acaracteriza, revelando-se a identidade um referencial para a con-duta cotidiana. Conectando os diversos trabalhos na utilidade,a inuncia subjacente desse corpo de valores, disseminada notecido social, atinge tambm as concepes de mundo, atravs

    dessas referncias forjadas.Pense-se num corpo terico, uma articulao conceitual. Afuno que ele desempenha no tecido social, na reproduo dedeterminado complexohistrico-social e, portanto, de determi-nadas prticas sociais determina seu tempo de vida. O critrioque atribui valor, desta forma, tanto pedra quanto teoria, estobjetivamente denido. A conscincia que no o reconhece ten-

    de ao fracasso em sua prtica social. Portanto, cumpre aohumana, isto , reiterao consciente de atos indispensveis

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    que desenvolve as reaes avaliativas subjetivas emrelao sua bem-sucedida ou malsucedida realiza-

    o, em relao ao processo que produz o sucesso ou oinsucesso (LUKCS, 1981a, p. 38).

    Fundada numa continuidade natural em si determinada a reproduo da vida biolgica, realiza-se como um fenmenonatural, independente da vontade humana. Diferentemente, a vi-da social dos homens baseada em atos de conscincia, o colocar--se teleologicamente, traz consigo a instaurao de uma estru-

    tura de valores de uso, compondo um quadro til reproduode sociabilidades. A emergncia dessa estrutura referencial, ca-racterstica do ser social, tem sua explicao na natureza mesmado pr teleolgico. O m s se realiza medida em que restemreconhecidas as mediaes, valores de uso que so meios paraoutros, capazes de realizar o valor de uso que supra a necessida-de primeva. A diversicao de necessidades e suas consequen-tes respostas instauram e permanentemente transformam aquelequadro de valores que caracteriza o especco ser social.

    Essa estrutura de objetivaes, socialmente disseminada,remete no apenas produo, mas revelam tambm critrios deavaliao das realizaes participantes daquele meio social, im-putando-lhes funcionalidade social. Apesar de todas as circuns-tncias nas quais o homem age e de suas caractersticas fsico--psquicas apresentarem-se para ele como dadas, o uxo globalde sua existncia impe-lhe perguntas/necessidades s quais sev impelido a responder com decises alternativas (aprovando,negando, adaptando etc.), tendo por referncia a estrutura de ob-jetivaes vigente naquele ambiente social. Estas decises alter-nativas, que ele objetiva durante sua existncia, podem repro-duzir o establishmentou inuir em sua transformao porque,por sua vez, tambm a sua existncia objetivada gerar atitudes

    avaliativas naqueles que com ele convivem.

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    Cada deciso que o sujeito toma ao longo de sua vida, con-quanto seja traduzida em atitude, fato objetivo, torna-se fato imu-

    tvel, parte de sua trajetria. Nos atos posteriores ele, sabendoou no, estar indissociavelmente ligado a essa trajetria. Viver objetivar-se, pr-se no mundo. Enquanto viva, seus atos nocessam. Novas escolhas so inexorveis. Essa reiterao, renova-da pelas necessidades sentidas, permitir novas avaliaes sobreobjetivaes realizadas, sobre os efeitos produzidos, informandoas posies futuras atravs de questionamentos como: a condu-

    ta merece ser repetida? Precisa ser transformada? Ou mesmo seucancelamento seria mais benco para a continuidade da vida?

    No constante pr teleolgico dos indivduos, reproduzindo aestrutura de objetivaes, o especco ser social forja a especi-cidade da estrutura societria sustentando-a na utilidade das obje-tivaes. O valor de uso, inerente ao complexo trabalho, baseadona cognio das experincias bem-sucedidas para a reproduo

    do ser social, se volta ao processo como seu regulador, porquem desejado, e imbrica a ao humana num quadro de realizaesreferendadas como teis pela especca organizao social.

    1.4 tica e Valor

    Aps a apresentao da estrutura de valor qual resultanteda compreenso do trabalho como fundamento do erguimentodo ser social, cabe breve apreciao do lugar que a tica ocu- pa na consolidao das estruturas de valor ao lado da produ-o de mercadorias. A orientao de condutas presente na tica,avaliando moralmente os resultados da ao humana, promovedeterminado hic et nunc histrico-social e conforma a reprodu-o do ser social. A compreenso da tica, por impregnar corpos

    tericos, contribui para que se estabeleam critrios de crtica

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    no campo das cincias humanas, acarretando a suprassuno e acombinao de teorias concorrentes, objetivo ao qual se preten-

    de alar no ltimo captulo deste trabalho.Lukcs reitera diversas vezes ao longo dos captulos de sua

    Ontologia que os temas referentes tica deveriam ser recupe-rados e detalhados em obra prpria. Seu tempo de vida no opermitiu faz-lo. Contudo, diversos so os trechos nos quais seexcedeu em seus propsitos e legou pistas sobre sua interpreta-o dos fundamentos ontolgicos sobre os quais a tica se erige,

    os quais, por sua vez, estariam na base gentica do ser social.Como no poderia deixar de ser, as bases da tica tambm

    se encontram objetivamente fundadas, na especicidade obje-tivo-alienante do pr teleolgico. O esforo em delinear suasformas originrias no trabalho, no entanto, no deixa de lanarluzes sobre formas mais complexas que a tica adquire com odesenvolvimento do ser social e sua consequente progressiva

    mediao social.Relacionando o momento decisivo de uma posio teleol-

    gica aquele em que se analisa o sucesso da atividade, avalian-do os nexos de causalidade postos, e corrigindo ou consolidandoa ao humana para o m ideado com a produo de um valorde uso, conclui-se que uma das caractersticas centrais da ava-liao que retroage sobre o ser que pe a de se constituir como

    um dever-ser objetivamente fundado.O juzo consciente de que os elementos do processode trabalho (i.e., as causas materiais e o trabalho emsi) so corretos ou incorretos, verdadeiros ou falsos,teis ou inteis, adequados ou inadequados etc. tem

    por referncia, naturalmente, a realizao da nalidadepreviamente denida. Trata-se, portanto, de um ato deconscincia relacionado a um valor de uso. Isto signi-ca que, para Lukcs, a conscincia humana emerge

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    como um rgo de julgamento que, estendendo ametfora, secreta valoraes (DUAYER E MEDEI-

    ROS, 2006, p. 16).Conforme observado por Duayer e Medeiros, inferindo

    desde a Ontologia de Lukcs, quando o dever-ser comparecenas formas primitivas do trabalho, sua funo est basicamenterelacionada correta percepo das cadeias e relaes causais,que operam na natureza, vinculadas a um m desejado. A prviaideao dos meios e mesmo as casualidades que a interferem

    precisam ser levadas em considerao para a consecuo do mdesejado. Dessa correo da posio das cadeias de causalidade,de sua adequao ao processo desejado e da vigilncia de seu es-perado desenrolar emerge uma orientao de dever-ser, um tipode comportamento necessrio frente a dado projeto de produopara que o valor de uso se concretize como esperado.

    Com efeito, mesmo na coleta e na caa, formas nascen-

    tes do trabalho, alguma parcela daquelas posies de segun-do grau (comportamentos que visam orientar comportamentosalheios) j comparece. A comunicao, mesmo a mais singela, por gestos ou sons, requisito para a cooperao e expressodaquelas condies da vida, implica j em seu nascedourocerta generalizao social das normas do procedimento hu-mano (LUKCS, 1981b, p. 8). Num primeirssimo momen-to foi a fora das coisas que prescreveu normas sociais geraisque, atravs da educao, mimtica, tradio, transmitiu-se degerao em gerao inculcando modelos de comportamentonegativos e positivos. Entretanto, ainda que a transmisso daestrutura hierrquica de valores se desse pela herana culturale gradualmente se afastasse do imediatismo dos valores de usonecessrios reproduo biolgica, elas mantinham-se repro-duzidas em estreita relao com a alienao (objeticao),

    produtos de diversas posies teleolgicas.

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    O modo pelo qual os homens produzem seus meios devida depende, em primeiro lugar, da natureza dos meios

    de vida encontrados, e que [eles mesmos] tm de repro-duzir. Este modo de produo no deve ser consideradosob um nico ponto de partida, que o da reproduoda existncia fsica dos indivduos. Pelo contrrio, eleconstitui j uma forma determinada da atividade destesindivduos, uma forma determinada de externar (us-

    sern) sua vida, um determinado modo de vida deles. [Aforma] como os indivduos externam a sua vida o que

    eles so. O que so coincide, portanto, com a sua pro-duo, tanto com o que produzem como com a formacomo produzem. O que os indivduos so depende, por-tanto, das condies materiais de sua produo (MARXapudRANIERI, 2001, p. 109).

    Deste trecho infere-se o relacionamento ntimo que Marxconfere forma pela qual os homens produzem sua vida e o que

    eles efetivamente so. O que signica enfatizar, por outro lado,a vinculao entre a produo material da vida e o retorno destamesma produo determinando possibilidades de comportamen-tos, de escolhas entre alternativas, dos indivduos. Desse tipode orientao, deontolgica, decorre o processo de trabalho nose impondo apenas ao comportamento laborativo, mas se esten-dendo a uma transformao interna, impactando na construoda subjetividade. Anal, o autocontrole com vistas obtenode determinado produto implica, tambm, o controle (compor-tamento adequado e, portanto, sobredeterminado) sobre suasemoes, vontades, desejos, impulsos (o nascimento do supere-go freudiano). O resultado que o reconhecimento das formasde ser na natureza, sua manipulao para a saciao humana, suainviolabilidade traduzida mentalmente por necessidade naturale as demandas que da advm, tendem a impactar no sujeito de

    forma a que nele se aprimore, por essas mudanas internas, na

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    conscincia, seu intercmbio orgnico com a natureza, avanan-do contra as barreiras naturais.

    No se trata, entretanto, de um processo automtico ou me-cnico. O dever-ser emerso do trabalho desloca gradativamenteo ser social de seu estado de determinaes orgnico-biolgicase passa a promover certas qualidades que impactam em seu de-senvolvimento rumo a formas deprxis mais sosticadas, isto ,determinaes gradativamente mais socialmente puras, media-es para a produo de valores de uso.

    Em sua forma gentica, o dever-ser do trabalho, os com-portamentos exigidos para determinado m, gestado no pro-cesso laborativo, no necessariamente envolvendo um dever--ser para a totalidade do ser social, embora lhe seja intrnsecaa tendncia generalizao. O sucesso da posio teleolgica,reconhecido em sua funcionalidade, contribui para o compar-tilhamento da estrutura de valores presente na escolha entre

    alternativas e impele a que a forma de dever-ser, mediao ne-cessria para um determinado m, espalhe-se pelo tecido so-cial, atravs daquelas posies teleolgicas de segundo grau.Tenha-se em mente, por exemplo, a necessidade de certo graude previsibilidade nos comportamentos para o normal funcio-namento do metabolismo social, a coordenao das atividades para que se opere satisfatoriamente a diviso de trabalho, oabafamento das contradies intra-comunitrias, a garantia derazovel harmonia entre as partes etc.

    Ao procurar inuenciar outros homens em suas posiesteleolgicas, induzindo-os a determinados padres de compor-tamento norteados por valores realizados, a subjetividade dequem assim age adquire um papel qualitativamente diferenteem relao quelas que se orientam para o intercmbio org-nico com a natureza. A induo aceitao de determinadodever-ser implica que a transformao do sujeito tambm se

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    torne um objeto direto de posies teleolgicas, cujo contedo um dever-ser, isto , os comportamentos tambm terminam

    por ser valorados em relao reproduo ou transformao dedado hic et nunc histrico-social.

    A realidade social deste comportamento depende, nopor ltimo, de qual valor, entre os valores emergentesdo desenvolvimento social, esteja realmente ligado aele, de que contribuio real ele d para conservar, tor-nar perenes etc., estes valores (LUKCS, 1981, p. 62).

    Em se tratando da tica a partir do pr teleolgico, o quedeveria direcionar a prtica presente, portanto, o futuro. Eisso porque a tica s pode se fazer inuente e se perenizar co-mo guia para as alternativas enfrentadas, caso se vincule a umacadeia de eventos cara aos homens, cogitada positivamente pa-ra o arranjo futuro, apresentando-se, assim, como um critrionecessrio para a obteno do valor de uso almejado (ou de

    determinado comportamento), refutando alternativas concor-rentes e desencorajando a pesquisa de outros meios (DUAYERE MEDEIROS, 2006, p. 17).

    Dessa forma, o que decorre da anlise da tica, do dever-sercomo uma questo vinculada reproduo do ser social, quea postura valorativa que investiga relaciona-se leitura depre-endida das posies teleolgicas que produziram o presente. O

    acmulo cultural apresenta-se, desta forma, como referenciais salternativas vindouras, seja de forma a consagrar o posto, ou acritic-lo. Enquanto valor refere-se especialmente posio dom, como critrio de cotejamento do processo a partir do gozode seu resultado, o dever-ser o prprio regulador do enfrenta-mento entre alternativas. Apesar de momentos distintos no pro-cesso de ao humana so indissociveis, e precisamente sua

    combinao que confere concretude anlise conceitual.

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    [...], uma vez que o dever-ser enquanto fator determi-nante da prxis subjetiva no processo de trabalho s

    pode cumprir esta funo especca porque o que sepretende tem valor para o homem, ento o valor nopoderia tornar-se realidade neste processo se no fossecapaz de inserir no homem que trabalha o dever-serde sua realizao como critrio da prxis (LUKCS,1981, p. 36).

    A essas linhas gerais do comportamento tico, em estritarelao com a produo e reproduo de valores de uso no sersocial, retornar-se- ao se tratar da ideologia, algumas pginasadiante. Antes de adentrar no problema da ideologia, porm, preciso realar a distino entre alienao e estranhamento. Issoporque as ideologias dispersas pelo tecido social so reprodu-zidas ou combatidas com base em sua funcionalidade ao modode produo, que opera sustentado numa estrutura de relaessociais objetivo-alienadas estranha ao homem, de funciona-

    mento e dinmica prprios.

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    ALIENAO, OBJETIVAO,

    ESTRANHAMENTO EDOMINAO SOCIAL

    Queremos ser libertados. O que d uma enxadada nocho quer saber o sentido dessa enxadada. E a enxadado forado, que humilha o forado, no a mesmaenxada do lavrador, que exalta o lavrador. A prisono est ali onde se trabalha com a enxada. No h ohorror material. A priso est ali, onde o trabalho daenxada no tem sentido, no liga quem o faz comu-nidade dos homens.

    (Antoine de Saint-Exupry,

    Terra dos homens5)

    Pressupondo o trabalho, o pr teleolgico, ao humanafundamental, este captulo procurar apresentar o caminho peloqual as descries da realidade tomam corpo e assumem aparen-te autonomia na teia social, resultando, ao nal, instrumentos dedominao, constrio de possibilidades efetivas.

    5 SAINT-EXUPRY, 1970, p. 147

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    Passando pela apresentao do complexo trabalho e da Te-oria do Valor que lhe inerente, a caminhada agora se dirige

    a apresentar importante distino concernente ao complexo dotrabalho, ao pr teleolgico: a distino entre alienao, objeti-vao e estranhamento.

    Combinar esses conceitos no desenvolvimento terico quevem sendo apresentado contribui para explicar a autonomia queas ideias adquirem no decorrer da evoluo do ser social, bemcomo a forma pela qual retroagem nessa evoluo conformando-

    -lhe as possibilidades de ao e contribuindo para a dominaoabstrata sacramentada pelo sistema capitalista.

    A anlise do movimento de sociabilizao do ser social, procurando apontar-lhe as diversas facetas, passa, portanto,por esses fenmenos, centrais anlise da forma assumida pe-lo trabalho em sociedade dominada pela mercadoria: alienao(Entusserung) e estranhamento (Entfremdung). Para conseguir

    explic-los em sua diferena e assim revelar a contribuio ca-tegorial que sugere a proposta deste captulo, passar-se- pelosManuscritos de Paris, analisando-lhes as peculiaridades atravsdo apoio terico encontrado principalmente em Lukcs e Ranieri.

    Nos Manuscritos de Paris ou Manuscritos econmico-los-cos de 1844, os conceitos aparecem sendo tratados explicitamen-te, principalmente na tentativa de demarcar a posio de Marx

    frente a Hegel. Ao tratar dessa obra, a distino, que apenas recen-temente vem sendo explicitada pelas tradues brasileiras, in-crementada pelo instrumental analtico proporcionado por Ranieri(2001), cujo livro,A cmara escura, teve por intuito ilumin-la.

    2.1 Alienao e estranhamento nos Manuscritos de Paris

    Dedicar o incio deste captulo reexo desde os escritosde Marx, cuja compilao cou conhecida porManuscritos de

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    Paris ou Manuscritos econmico-loscos de 1844, tem o in-tuito de esclarecer o fundamento das concepes que proporcio-

    naram o desdobramento terico do autor e garantiram-lhe ine-gvel posio de destaque para o tratamento da losoa comoum referencial crtico sobre a sociedade. So nesses textos, de1844, que Marx aborda com especicidade o tema da alienaoe da objetivao com as consequncias do fenmeno no perodocapitalista, o estranhamento.

    O lanamento das bases de seu pensamento, como so in-

    terpretados os manuscritos, armam em todo momento a inver-so do pensamento hegeliano, isto , a primazia do objeto so-bre o sujeito, a matria sobre a ideia. O mundo (fsico), assim,seria absolutamente indiferente ao conhecimento que dele sefaa. Se a assertiva no pode ser mecanicamente vertida parao conhecimento sobre a sociedade, vez que no mundo social oconhecimento contribui para sua construo, assevera-se haver

    semelhanas nos dois postulados epistemolgicos e que, portan-to, conhecimento sobre a sociedade , tambm, realizvel e, por-tanto, caracterizvel como verdade.

    Essa assertiva, da primazia do objeto sobre o sujeito, reme-te Marx imediatamente vinculao dialtica com a empiria (omundo dos sentidos como possibilidade de conhecimento abstratodas estruturas genealgicas imanentes) e a referendar a histriacomo parmetro de totalizao do conhecimento acumulado. E is-so porque se torna capaz de demonstrar losoa as formas pelasquais o homem se produziu, retirando a disciplina de sua dimen-so lgico-especulativa e cotejando-a com a dimenso objetivaontologicamente perscrutada. Nessa imanncia, scio-histrica,as leis que governam as foras sociais no teriam as caractersticasinalterveis das leis fsico-naturais, mas delimitariam tendnciasem estrita dependncia com o desenvolvimento passado.

    Nesse sentido, a losoa em Marx, gura como suporte

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    epistemolgico, funcional ao conhecimento cientco absoluto(salientando que esse absoluto resta dialeticamente relativiza-

    do, pois que est fadado a estar suprassumido em totalizao6mais abrangente).

    2.1.1 Fontes do modelo de ao humana em Marx: a demarcaofrente a Hegel e Feuerbach

    Como reexo introdutria ao desenvolvimento conceitual

    concernente aos manuscritos de Marx, a opo pela inverso daexposio original (nos manuscritos a demarcao com Hegelest na ltima parte do terceiro manuscrito) contm a promessade esclarecer as fontes dos conceitos desenvolvidos por Marx.Assim, espera-se demonstrar como se opera a inverso do idea-lismo hegeliano para uma nova abordagem da realidade atravsda losoa, e a concepo de homem, mundo, conhecimento

    inerentes. Tal forma de abordagem quer apontar as diferenas,seus aspectos crticos e suas apropriaes, a ruptura que preser-va, a negao da negao, os termos da suprassuno da aliena-o losco-religiosa.

    Antes de mais, preciso um alerta. O foco desta exposi-o do pensamento hegeliano concentra-se apenas nos limitesda leitura desde Marx. No se pretende e no se vai alm por

    consciente insucincia de domnio da teoria hegeliana, aproxi-mando-se de sua losoa apenas pelos parmetros da dialticana forma da apropriao de Marx. De mais a mais, no objeti-vo deste estudo aprofundar ou apresentar em sua complexidadeprpria o pensamento hegeliano, esse apenas gura na medida

    6 Totalidade como as relaes ontologicamente fundadas, realidade existente em-si, etotalizao aqui tida como a atividade cognitiva que procura localizar o conhecimento

    em relao quela dinmica de totalidade, assim sendo capaz de combinar ou conitarreferenciais tericos distintos.

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