uma conduta sistemÁtica entre mÉdico … · sociologia compreensiva, ... pesquisas de campo e...

16
UMA CONDUTA SISTEMÁTICA ENTRE MÉDICO PESQUISADORES NA VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX DANIEL GUERRINI1 Resumo: Este artigo discute a atuação de médicos sanitaristas na virada do século XIX para o XX, que foi fundamental para a institucionalização da pesquisa científica no Brasil. Através de uma análise ideal-típica da realidade, baseada nos pressupostos da sociologia compreensiva, observa-se a ação de um grupo social, que colocou como objetivo a modernização da sociedade segundo os ideais científicos da microbiologia e da medicina experimental. Assim orientada, a ação desse grupo entra em choque com as políticas de modernização controlada do Brasil daquele período. Essas políticas autoritárias apoiavam, de maneira intermitente, pesquisas com fins utilitários. Mas a ação dos pesquisadores, executada a partir do seu compromisso com os valores da atividade científica, conseguiu alcançar estabilidade e continuidade nas atividades de pesquisa que conduziam. Nesta análise observa-se, em meio a um período de acentuada e conturbada modernização sociocultural do país, o início de um processo de diferenciação e autonomização das suas esferas culturais. Palavras-chave: Instruções; Artigo; Diretrizes; Normas; Palavras-chave. INTRODUÇÃO Este artigo propõe uma análise ideal-típica das ações de grupos e agentes sociais envolvidos no desenvolvimento e estabelecimento da medicina experimental no país, centrando na rede estendida de agentes ligados direta e indiretamente ao Instituto Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, na virada para o século XX. A abordagem proposta tem como objetivo maior evidenciar o processo de diferenciação e autonomização das esferas culturais i.e. racionalização cultural no Brasil, processo este que, a despeito dos variados marcos teóricos utilizados na literatura, tem sido por 1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná / Departamento de Ciências Sociais e Humanas, Brasil. [email protected] / [email protected]

Upload: dinhxuyen

Post on 12-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UMA CONDUTA SISTEMÁTICA ENTRE MÉDICO PESQUISADORES NA

VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX

DANIEL GUERRINI1

Resumo: Este artigo discute a atuação de médicos sanitaristas na virada do século XIX

para o XX, que foi fundamental para a institucionalização da pesquisa científica no

Brasil. Através de uma análise ideal-típica da realidade, baseada nos pressupostos da

sociologia compreensiva, observa-se a ação de um grupo social, que colocou como

objetivo a modernização da sociedade segundo os ideais científicos da microbiologia e da

medicina experimental. Assim orientada, a ação desse grupo entra em choque com as

políticas de modernização controlada do Brasil daquele período. Essas políticas

autoritárias apoiavam, de maneira intermitente, pesquisas com fins utilitários. Mas a ação

dos pesquisadores, executada a partir do seu compromisso com os valores da atividade

científica, conseguiu alcançar estabilidade e continuidade nas atividades de pesquisa que

conduziam. Nesta análise observa-se, em meio a um período de acentuada e conturbada

modernização sociocultural do país, o início de um processo de diferenciação e

autonomização das suas esferas culturais.

Palavras-chave: Instruções; Artigo; Diretrizes; Normas; Palavras-chave.

INTRODUÇÃO

Este artigo propõe uma análise ideal-típica das ações de grupos e agentes sociais

envolvidos no desenvolvimento e estabelecimento da medicina experimental no país,

centrando na rede estendida de agentes ligados direta e indiretamente ao Instituto

Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, na virada para o século XX. A abordagem

proposta tem como objetivo maior evidenciar o processo de diferenciação e

autonomização das esferas culturais – i.e. racionalização cultural – no Brasil, processo

este que, a despeito dos variados marcos teóricos utilizados na literatura, tem sido por

1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná / Departamento de Ciências Sociais e Humanas,

Brasil. [email protected] / [email protected]

esta negligenciado em proveito de análises críticas que tendem a deixar indistintas esferas

sociais e culturais.

A análise ideal-típica, como mostram Schnapper (2000), Bourdieu e Passeron

(2013), Freund (2003) e Weber (1999), constrói um modelo de curso de ação baseada na

relação com um conjunto coerente de valores, que no caso é aquele ligado à atividade

científica. As ações históricas selecionadas são então analisadas como se seguissem esse

conjunto valorativo e, a partir do curso da ação empírica e seus desdobramentos, deduz-

se as motivações que efetivamente a guiaram e o quanto se aproximaram ou afastaram do

modelo teórico construído.

Toda interpretação é aqui realizada a partir de fontes indiretas, além do Relatório

de Viagem Científica de Arthur Neiva e Belisário Penna (1916). O objetivo não é trazer

nenhum dado novo sobre esses fenômenos já estudados à exaustão, mas uma nova

interpretação, com pressupostos e consequências teóricos relevantes. O argumento central

é de que através de uma conduta sistemática orientada à pesquisa científica, os médicos

ligados à microbiologia da virada do século XIX para o XX assumiram uma autonomia

relativa em relação ao padrão de dominação tradicional e oligárquica da época. Apesar de

serem obviamente parte das elites culturais (quando não político-econômicas) do país, o

foco deste trabalho centra-se na sua atuação como pesquisadores e agentes das políticas

de saneamento de cidades e regiões brasileiras. Como tais, estes agentes se orientavam

segundo um ideal de modernização do país a partir de sua visão de mundo científica.

Na época, tal visão dizia respeito à nova teoria microbiana e seu papel no estudo

etiológico das doenças tropicais. Tentava-se superar a medicina baseada na observação de

sintomas e substituí-la por uma medicina feita a partir de pesquisas experimentais e,

nesse sentido, mais científica. O estudo das ‘verdadeiras’ causas das doenças, através de

pesquisas de campo e laboratoriais, guiou a ação dos agentes analisados, mudando a sua

concepção acerca da sociedade brasileira e fundamentando uma intervenção no mundo

que se tornava crítica em relação ao horizonte cultural das políticas que os sustentavam.

Essa intervenção foi eficaz mesmo diante das adversidades colocadas pela sociabilidade

senhorial e pela política oligárquica que ainda vigoravam na época. Do ponto de vista

teórico, o que se observa a partir desses fenômenos empíricos é um processo de

racionalização cultural, que ampliou os horizontes da modernização que se impunham

pelas elites.

UMA MODERNIZAÇÃO DE HORIZONTES CULTURAIS MAIS AMPLOS

A análise da atuação dos pesquisadores ligados à medicina experimental é situada

no contexto do que Florestan Fernandes (2006) chamou de política de modernização

controlada. Foi um período de grandes mudanças socioeconômicas e culturais

(BENCHIMOL, 1992; CARVALHO, 1987; SILVA, 2014; SEVCENKO, 2010;

CUKERMIAN, 2007; HOLLANDA, 1995). Moldou-se, à época, uma política de caráter

autoritário, que adquiriu especial ênfase a partir da segunda metade do século XIX, com

ascensão da oligarquia cafeeira do sudeste brasileiro. A ascensão dessa oligarquia colocou

em pauta a necessidade de o Brasil se modernizar para inserir-se no mercado mundial a

partir dos nexos da produção agrícola exportadora. O período marca a passagem do

regime de trabalho escravo para o assalariado, acentuando o processo de modernização e

inserção do país no mercado mundial capitalista através da importação de capitais e bens

industrializados e exportação de produtos agrícolas. O caráter controlado advém de ser

esse processo de modernização claramente dominado por uma elite oligárquica, que,

diante das manifestações e expressões populares ocorridas à época em razão das

mudanças que se impunham, reprimiam-nas violentamente. O horizonte das

transformações jurídico-políticas que se implementavam era aquele definido pelos grupos

no poder, com a anuência e o endosso dos estratos urbanos intermediários em ascensão.

O fato de as instituições de pesquisa científica terem sido criadas

concomitantemente ao desenvolvimento das estruturas econômicas capitalistas e do

Estado modernas não autoriza a conclusão fácil de que a ciência serviu, estava atrelada,

tomou parte, imiscui-se, ou qualquer outra forma de amalgamento que se queira, aos

interesses dominantes da época. Autores de perspectivas tão díspares e analisando

contextos diversos como Morel (1979), Corrêa (2003), Benchimol (1992), Cukierman

(2007) e Sevcenko (2010) assumem esse caminho em suas análises. O fato de cientistas e

pesquisadores no Brasil serem parte de uma elite cultural em um país agudamente

segregado e de profundas desigualdades socioeconômicas talvez conduzam as leituras

para esse tipo de argumento. Entretanto, em ciência, a capacidade de síntese deve ser

precedida pela análise, e o estabelecimento dos nexos entre as partes não pode levar ao

ofuscamento de suas características particulares para o benefício das características

gerais.

A situação da atividade científica durante o século XIX e entrada para o XX,

como dito, não era estável. Paralelamente às escolas profissionais isoladas,

desenvolveram-se diversos institutos de pesquisa científica. Alguns deles são: a Escola de

Minas de Ouro Preto, o Observatório Nacional, o Museu Nacional, o Instituto

Agronômico de Campinas, a Escola Agrícola de Taquari, no Rio Grande do Sul criada, o

Instituto Bacteriológico de São Paulo, o Instituto Butantã em São Paulo, o Instituto

Soroterápico Federal, mais tarde Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, e o Instituto

Biológico de São Paulo (SCHWARTZMAN, 1981; CUNHA, 2007, STEPAN, 1976;

CARVALHO, 2010; MORIZE, 1987; TEIXEIRA, 1989; FIOCRUZ, [201-]; SILVA,

2014). Criados com resistências política e social, eles contavam com parcos e

intermitentes recursos. Como afirmam Stepan (1976), Britto (1995), Carreta (2011) e

Silva (2014), tratava-se de um período em que a sociedade de modo geral não reconhecia

a importância da atividade científica. As instituições existentes, portanto, careciam de

legitimidade.

A grande maioria dos institutos teve existência intermitente ao longo do século

XIX. O Observatório Nacional e a Escola de Minas de Ouro Preto passaram longos

períodos do século XIX inativos (Morize, 1987; Sodré, 1987; Carvalho, 2010; Teixeira,

1989). Nas palavras de um diretor do Observatório, este vivia sob pressão de uma

“opinião pública [que] não estava bastante madura para possuir grandes estabelecimentos

científicos” (Emanuel Liais apud Sodré, 1987, p. 11). Isso ocorreu também como o O

Instituto Bacteriológico de São Paulo (STEPAN, 1976) e com a Escola Agrícola de

Taquari, criada em 1891 no Rio Grande do Sul, e fechada após a primeira turma de

engenheiros agrônomos se formarem (FIOCRUZ, [201-]).

A intermitência dos institutos está ligada, portanto, à falta de legitimidade da

atividade de pesquisa, associada à visão das elites regionais e nacionais de que esta não

passava de um recurso instrumental para fins imediatos. Maximiano Antônio da Silva

Leite, lente de Matemática da Academia de Marinha, trabalhando no Observatório

Nacional, expõe o dilema da instrumentalização da pesquisa, para quem em astronomia

“é preciso saber observar, sem o que a Ciência é mais curiosa que útil, e neste caso não

teria a proteção dos Governos” (apud MORIZE, 1987, p. 44). A ideia da utilidade da

ciência foi o que uniu o projeto de modernização das elites às concepções dos próprios

agentes desta atividade. Estabeleceu-se no horizonte da atividade científica a busca por

uma utilidade imediata, sem o que, sabia-se, não haveria apoio ou proteção dos governos

e sociedade. Como afirma Britto (1995), a ideologia da utilidade social foi largamente

utilizada a fim de angariar reconhecimento social e legitimidade à ciência.

O conhecimento médico e das engenharias se colocava, naquele momento, como

grande aliado dessa modernização autoritária, que objetivava equiparar o Brasil, ou ao

menos partes suas, às grandes cidades europeias. Negava-se o passado colonial bem

como as práticas e valores associados à população em geral, caracterizada como

ignorante, incapaz, inferior, incivilizada, etc. (BENCHIMOL, 1992; CARVALHO, 1987;

CUKIERMAN, 2007; SEVCENKO, 2010; SILVA, 2014; SÁ, 2009; OLIVEIRA, 1997).

Mas o conhecimento científico era instrumentalizado segundo os projetos de

modernização, o que é diferente de reconhecê-lo como legítimo. Atribuía-se-lhe a

capacidade de soterrar o passado colonial, vexaminoso para uma elite que se aprazia em

exibir suas conexões e proximidades com a civilização europeia (BENCHIMOL, 1992;

CUKIERMAN, 2007; SEVCENKO, 2010; SILVA, 2014). E foi nesse contexto que se

abriu a possibilidade de autonomização da esfera científica, conferindo estabilidade

social às suas atividades conspícuas. Mas como agiram os grupos responsáveis por esses

processos? Como foi sua adesão aos valores da atividade científica moderna e o que isso

significou para o curso de suas ações naquela sociedade?

Os funcionários do IOC também se queixavam das tentativas do governo em fazer

do instituto uma fábrica de vacinas. Os planos imediatistas fizeram, por exemplo, com

que o Instituto, após conter a peste bubônica da Capital do país (na época, Rio de

Janeiro)1, buscasse financiamento através de outros projetos sanitários (em outros

Estados com governos e empresas) (SÁ, 2009; BRITTO, 1995; A-FERNANDES, 1990;

CUNHA, 2007; SCHWARTZMAN, 2001; CUKIERMAN, 2007; THIELEN e SANTOS,

2002; STEPAN, 1976; AZEVEDO e FERREIRA, 2012).

Ao que indica a literatura, esse apoio político instrumental abria oportunidades

estruturais para a institucionalização da ciência, mas seu estreito horizonte cultural

dificultava muito o processo. Os pesquisadores assumiram vários cursos de ação, mas

todos com o claro objetivo de apoiar a atividade científica. Stepan (1976) considera o

papel de empreendedor científico de Osvaldo Cruz um dos fatores determinantes na

capacidade do IOC institucionalizar-se. Ele assumiu as tarefas administrativas necessárias

naquele momento crucial de institucionalização da atividade científica e foi responsável

pelo recrutamento e treinamento de um quadro altamente qualificado dentro do instituto

que dirigia2. Carreta (2011), por outro lado, expõe como Osvaldo Cruz desviava o foco

das incertezas que rondavam a soroterapia, valorizando a continuidade do apoio à

pesquisa para que se alcançasse, no futuro, melhores resultados. Delaporte (1995) mostra

como Carlos Chagas reescreveu a história de sua descoberta do Trypanossoma cruzi e da

doença de Chagas para não expor os erros e acasos que levaram ao seu sucesso. Em um

período delicado da história da atividade científica como aquele, o risco dessa exposição

era muito alto para o empreendimento como um todo. Era demasiado importante trazer à

luz a consistência e o rigor dos experimentos, assim como a solidez das teorias e

argumentos propostos, para garantir o apoio às atividades de pesquisa. Britto (1995)

mostra, por sua vez, como, após a morte de Oswaldo Cruz, os médicos sanitaristas

proferiam discursos laudatórios e até exageros mitificadores sobre a personalidade do

falecido pesquisador para sustentar o apoio à pesquisa científica no país.

Já ao fim do século XIX, “a ciência dos micróbios converteu-se no pólo (sic) mais

dinâmico da medicina brasileira” (Benchimol, 1995, p. 68). E, como coloca Oliveira

(1997), existiu nas cidades do período imperial e da Primeira República um engajamento

de uma elite dos médicos brasileiros nas políticas higienistas implementadas por diversos

governos. Uma das mais significativas foi aquela implementada por Rodrigues Alves,

eleito presidente da República em 1902. Este nomeou Osvaldo Cruz Diretor-Geral da

Saúde Pública, já à frente do Instituto Soroterápico do Rio de Janeiro, para implementar

suas reformas sanitárias.

O incentivo às pesquisas em microbiologia para implementar as políticas

sanitárias com o governo de Rodrigues Alves se insere no contexto de modernização

controlada já mencionado. Tratava-se de um período de ascensão da agricultura cafeeira e

a sociedade, especialmente seus setores dominantes, sentia a necessidade de modernizar o

país, que sofria com epidemias as mais variadas e péssimas condições sanitárias nos

centros urbanos em expansão. A necessidade de reformar esses grandes centros urbanos,

especialmente as áreas portuárias de importação e exportação de bens e pessoas, era

considerada urgente para que a imagem do país melhorasse entre os países estrangeiros,

de quem dependiam fundamentalmente os cafeicultores de São Paulo para o sucesso de

seus negócios (BENCHIMOL, 1992; OLIVEIRA, 1997; SEVCENKO, 2010;

CARRETA, 2011).

Rodrigues Alves, com maioria na câmara de deputados, conseguiu aprovar uma

lei que tornava a vacinação obrigatória e Osvaldo Cruz foi responsável pela

regulamentação da lei, que reforçou seu caráter autoritário. Osvaldo Cruz identificou-se

plenamente com os métodos autoritários de modernização de sua época, demandando,

por exemplo, a criação de um dispositivo jurídico para lidar com médicos que, em nome

do segredo profissional, se recusavam a informar as autoridades sobre doenças

contagiosas diagnosticadas. Na regulamentação da lei de vacinação, ele exigiu plena

liberdade e autonomia para executar as medidas que julgasse necessárias à erradicação da

varíola no Distrito Federal (OLIVEIRA, 1997; SEVCENKO, 2010; CUKIERMAN,

2007).

A política higienista previa a entrada de agentes sanitários nas residências e a

aplicação da vacina em todos os residentes indistintamente. Os deputados da oposição ao

governo federal fizeram discursos inflamados nos meios políticos e através dos jornais,

apelando aos direitos civis de privacidade e pela liberdade individual, contra as medidas

autoritárias do governo. A população, já insatisfeita e atingida pelo direcionamento

autoritário das políticas da República Oligárquica, se rebelou contra a obrigatoriedade da

vacinação, formando barricadas e resistindo aos agentes sanitários, à polícia, ao exército

e à marinha, no que foi denominado a Revolta da Vacina de 1904 (OLIVEIRA, 1997;

SEVCENKO, 2010; CARRETA, 2011; CUKIERMAN, 2007).

Além disso, as políticas higienistas de Osvaldo Cruz enfrentavam oposição dentro

da própria corporação médica por razões científicas tanto quanto extracientíficas. Do

ponto de vista da ciência médica, até então, os métodos profiláticos se baseavam na

observação de sintomas, e a ideia de que havia agentes patogênicos microbiológicos era

objeto de discussões nos meios especializados internacionais tanto quanto nacionais

(STEPAN, 1976; BEN-DAVID, 1960; CARRETA, 2011; BENCHIMOL, 1995; SILVA,

2014). No que dizia respeito aos argumentos extracientíficos, tratava-se de um período

em que a ciência tinha pouca legitimidade e o país pouca tradição no desenvolvimento de

pesquisas. Logo, os adeptos da microbiologia e, em especial, a equipe do IOC dispendia

um grande esforço na tentativa de convencer a corporação médica, mas também os

governos e a sociedade, de que a microbiologia e os métodos profiláticos da soroterapia

eram eficazes (BRITTO, 1995; CARRETA, 2011; BENCHIMOL, 1995; DELAPORTE,

1995).

O meio médico tradicional, que corroborava a visão de mundo senhorial,

mantinha uma clientela privada oriunda das famílias oligárquicas, do alto comércio e de

funcionários do Estado. O próprio ‘mundo médico oficial’ era parte das classes médias,

que cultuavam os valores tradicionais da sociedade. Esse meio médico, portanto, não

concordava com os métodos da administração da saúde pública impostos por Osvaldo

Cruz após 1902, malgrado o “prestígio francês” de sua base científica. Tais médicos

encontravam-se distantes desse novo paradigma científico. As preocupações higienistas

desta corporação estavam calcadas em uma visão de mundo senhorial, preocupada com a

higiene das famílias, de suas crianças e das casas pouco adaptadas ao clima tropical.

Contrapunham às políticas higienistas do Distrito Federal os ideais da liberdade

individual e dos direitos civis, com o que intencionavam preservar o status quo ante as

tentativas de modernizar o país. O ideal da liberdade individual apelava a um direito de

escolha no interior de uma sociedade profundamente desigual e marcada pela divisão

estamental (OLIVEIRA, 1997; SILVA, 2014).

Osvaldo Cruz, seus colaboradores e bacteriologistas de outros Estados como São

Paulo mantinham, pelo contrário, uma perspectiva nacional e percebiam que a medicina

clínica, baseada no atendimento particular das famílias brasileiras, não seria capaz de

resolver os problemas sanitários que enfrentavam (STEPAN, 1976; OLIVEIRA, 1997;

BRITTO, 1995; SÁ, 2009; SILVA, 2014). Com o paradigma microbiano encampado por

esses pesquisadores, configurava-se o caráter modernizador da conduta do cientista

brasileiro. Os pesquisadores adeptos da teoria microbiana davam-se conta, no processo,

das raízes sociais desses problemas. Eles realizavam observações por todo o país, que

alteravam a visão do homem brasileiro que se tinha à época. Sua adesão às políticas

higienistas autoritárias calcava-se, cada vez mais, na ideia de que não era 'o brasileiro'

que era incapaz de tornar-se civilizado ou moderno, mas que eram as péssimas condições

de vida que impediam o Brasil de modernizar-se (SÁ, 2009; OLIVEIRA, 1997).

O Relatório Neiva-Penna, resultado da viagem de Arthur Neiva e Belisário Penna

ao Norte e Nordeste do Brasil em 1912, promovida pelo IOC, como demanda da

Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão do Ministério dos Negócios da Indústria,

Viação e Obras Públicas, foi sintomática na mudança dessa interpretação do Brasil (SÁ,

2009; NEIVA e PENNA, 1916). O uso de expressões como “sertanejo inconsciente”

(NEIVA e PENNA, 1916, p. 83) e a referência às desigualdades entre o Sul do Brasil –

onde “se cuida de algum modo da instrução do povo” (NEIVA e PENNA, 1916, p.221) –

e as regiões norte e central, consideradas “vastos territorios (sic) abandonados,

esquecidos pelos dirijentes (sic), com populações vejetando (sic) na miséria, no

obscurantismo, entregues a si mesmas, flageladas pelas sêcas (sic) [...] e por moléstias

aniquiladoras” (NEIVA e PENNA, 1916, p. 222), denotam a visão de que as populações

miseráveis eram atingidas, vítimas de condições ambientais, especialmente políticas e

sociais, degradantes.

Observa-se que, com base nos ideais da medicina experimental e de laboratório e

na convicção acerca de seu papel na modernização do país, esses pesquisadores

mantiveram uma constância interna entre seus valores e sua ação no mundo. Desde a

adesão às políticas higienistas oficiais até a crítica às desigualdades e às relações políticas

e sociais que impunham miséria e degradação à população, esses pesquisadores

mantiveram-se fieis à sua visão de mundo científica. De maneira ideal-típica, a ação

desses pesquisadores orientava-se, como colocam Britto (1995) e Oliveira (1997), ao

desenvolvimento do país a partir de seus valores e práticas científicas. A ideia era de que

a ciência experimental conferia uma visão privilegiada do mundo aos pesquisadores nela

imersos, já que expunha as verdadeiras causas das doenças, contrariando as concepções

correntes da época. A identificação de tais causas extrapolava os limites do conhecimento

bacteriológico, pois punha em evidência as relações sociais que criavam condições

propícias à propagação das doenças. A política era colocada, nos discursos dos próprios

pesquisadores, no âmbito dos interesses mesquinhos, da corrupção e da ignorância.

Expunha-se também os laços que uniam a medicina tradicional àquelas relações arcaicas.

Tornava-se óbvia a ineficácia da medicina tradicional no controle das epidemias tropicais

e a medicina experimental passava então a ser imprescindível ao projeto de modernização

do país (OLIVEIRA, 1997; SILVA, 2014; BRITTO, 1995; SÁ, 2009).

Isso elucida como a união entre interesses político-econômicos dominantes e o

horizonte de atuação dos pesquisadores da medicina experimental, através do nexo da

ciência aplicada, não os tornou meros cúmplices em um projeto global de subjugação das

classes populares. Da parte dos pesquisadores, os projetos de modernização foram

articulados aos valores científicos, orientando de maneira clara e constante sua ação.

Assim, esse habitus transpassa os interesses oligárquicos e dos estratos dominantes

daquela sociedade. A ideia de que o desenvolvimento nacional deveria se basear nos

valores e práticas científicas forneceu um sentido específico às ações que implementaram

as políticas sanitárias em um país subdesenvolvido, de política oligárquica e autoritária e

que não reconhecia a atividade científica como legítima.

Os projetos de modernização controlada dos Governos da Primeira República,

ainda que enfrentassem oposição de setores da sociedade brasileira, não visavam a uma

mudança nas relações com as classes populares, as quais eram agora objeto de

investigação científica por parte de pesquisadores como Domingos José Freire, Francisco

Fajardo, Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, Vital Brazil, Adolfo Lutz, Arthur Neiva e

Belisário Penna. Essa a importância de distinguir sociedade e cultura na análise

sociológica. Pois, se havia uma modernização das estruturas sociais sendo implementada

pelas políticas republicanas, seu horizonte cultural mantinha-se estreito. Os médicos

pesquisadores passaram, em determinado momento, a criticar justamente a estreiteza

desse horizonte. Neiva e Penna (1916, p. 222) relatam essa incongruência de visão de

mundo quando, descrevendo a paisagem “trágica” das regiões observadas, preveem que

seu compromisso com a verdade e a franqueza de suas impressões não agradarão.

Percebiam seu relato como um dever de consciência e patriotismo contrário às

circunstâncias.

Quando as perspectivas de desenvolvimento interiorizadas por esses

pesquisadores se chocaram contra os limites das políticas higienistas da República

Oligárquica, eles começaram então a apoiar uma revolução do sistema político como um

todo, pois identificavam nas irracionalidades deste as causas das doenças que afetavam as

populações pobres e trabalhadoras. Essa crítica se concretizou, mais tarde, na criação da

Liga Pró-Saneamento do Brasil e através da adesão de alguns desses agentes à Revolução

de 1930, por verem nesta uma possibilidade de modernização social efetiva. A sociedade

deixou de ser vista, por esses pesquisadores, como contraexemplo de comportamentos e

hábitos, como faziam as prescrições médicas da época. Adquiria-se a consciência de que

a sociedade era, em realidade, vítima das relações arcaicas da política e das elites

brasileiras (BRITTO, 1995; OLIVEIRA, 1997; SÁ, 2009).

Conclusões

Como afirma Oliveira (1997), o fenômeno original nesse contexto social é que

existe uma crescente oposição do novo paradigma científico (microbiológico) em relação

ao sistema político representado pela República Oligárquica. A modernização posta em

marcha pelo governo de Rodrigues Alves pretendia deixar intacta a estrutura social

senhorial. Mas o meio médico oficial, com seu modelo de atendimento privado familiar,

não tinha a competência e os meios necessários para pôr em prática os projetos de

modernização. Assim, os médicos sanitaristas, munidos dos ideais da pesquisa

experimental, encabeçaram uma política higienista científica e fizeram descobertas que

terminaram por conquistar adeptos entre a comunidade médica. Os médicos sanitaristas,

como 'soldados de uma revolução científica', passaram, cada vez mais, a se opor a um

sistema político em crise crescente (OLIVEIRA, 1997).

As análises realizadas apontam para um processo de racionalização cultural e

autonomização das esferas de ação cultural. O que em outros países pode ter significado

uma tensão maior entre as visões científicas e as religiosas do mundo, no Brasil essa

autonomização significou mais uma tensão entre o horizonte cultural da atividade

científica e o próprio sistema político e social da virada de século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Nara, e FERREIRA, Luiz Otávio. Os Dilemas de Uma Tradição Científica:

Ensino Superior, Ciência E Saúde Pública No Instituto Oswaldo Cruz, 1908-1953.

História, Ciências, Saúde-Manguinhos 19, no 2, junho de 2012: 581–610.

doi:10.1590/S0104-59702012000200013.

BEN-DAVID, J. Roles and Innovations in Medicine. American Journal of Sociology, v.

65, n. 6, pp. 557-568, maio de 1960.

BENCHIMOL, Jaime L. Domingos José Freire E Os Primordios Da Bacteriologia No

Brasil. História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2, no 1, junho de 1995: 67–98.

doi:10.1590/S0104-59701995000200005.

______. Pereira Passos: um Haussman tropical: A renovação urbana da cidade do Rio de

Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo

e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de

editoração, 1992.

BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura.

Florianópolis: Editora UFSC, 2013.

BRITTO, N. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira [online]. Rio

de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1995. 144 p. ISBN 85-85676-09-4. Available from

SciELO Books

CARRETA, Jorge Augusto. Oswaldo Cruz E a Controvérsia Da Sorologia. História,

Ciências, Saúde-Manguinhos 18, no 3, setembro de 2011: 677–700. doi:10.1590/S0104-

59702011000300005.

CARVALHO, José M. de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Rio de

Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Available at:

<http://www.bvce.org/DownloadArquivo.asp?Arquivo=CARVALHO_Jose_Murilo_de_

%20A_Escola_de_Minas_de_Ouro_Preto.pdf>. Accessed in 2 of June of 2011.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não

foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

CORRÊA, Maíra B. O Brasil na Era do Conhecimento: Políticas de ciência e

tecnologia e

desenvolvimento sustentado. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós

Graduação

em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 2003.

CUKIERMAN, Henrique. Yes, Nós Temos Pasteur: Manguinhos, Oswaldo Cruz E a

História Da Ciência No Brasil. Rio de Janeiro, Brazil: Relume Dumará : FAPESP, 2007.

CUNHA, Luiz Antônio C. R. da. A Universidade Temporã: o ensino superior, da

colônia à era Vargas. 3ª edição. São Paulo: UNESP, 2007.

DELAPORTE, François. Chagas, a Lógica E a Descoberta. História, Ciências, Saúde-

Manguinhos 1, no 2, fevereiro de 1995: 39–53. doi:10.1590/S0104-

59701995000100004.

FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação

sociológica. São Paulo: Globo, 5ª ed., 2006.

FERNANDES, Ana Maria. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília:

Universidade de Brasília, ANPOCS, CNPq, 1990.

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2003.

FIOCRUZ. Escola de Agricultura e Viticultura de Taquari. Dicionário Histórico-

Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Acesso em 16 jul. 2015.

Online. Disponível em

<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/escagtaq.htm>

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a ed., São Paulo: Companhia das

Letras, 1995.

LADRIÈRE, Paul. Pour une sociologie de l’éthique. Paris: PUF, 2001.

LÖWITH, Karl. Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In: M. M. Foracchi

& J. M. Martins (orgs.). Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio

de Janeiro: LTC Editora, 1980.

MOREL, Regina Lúcia Moraes. Ciência e Estado: a política científica no Brasil. São

Paulo:

T. A. Queiroz, 1979.

MORIZE, Henrique. Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927).

Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins : Salamandra, 1987.

NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de

Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás. Memórias do Instituto Oswaldo

Cruz, Rio de Janeiro, v.8, n.30, p.74-224. 1916.

OLIVEIRA, Renato de. Éthique et médecine au Brésil. Étude sur les rapports entre le

débat sur l ́éthique médicale et la participation politique des médecins brésiliens dans la

période 1978-1988 – v. 1 e 2. (Tese de doutorado apresentada à E.H.E.S.S., Paris,

setembro de 1994). Lille: Presses Universitaires de Lille, 1997.

SÁ, Dominichi Miranda de. “Uma Interpretação Do Brasil Como Doença E Rotina: A

Repercussão Do Relatório Médico de Arthur Neiva E Belisário Penna (1917-1935).”

História, Ciências, Saúde-Manguinhos 16 (July 2009): 183–203. doi:10.1590/S0104-

59702009000500009.

SILVA, Márcia Regina Barros da. O Laboratório E a República: Saúde Pública,

Ensino Médico E Produção de Conhecimento Em São Paulo (1891-1933). Coleção

História E Saúde. Rio de Janeiro, RJ: Editora FIOCRUZ, 2014.

SCHNAPPER, Dominique. Compreensão Sociológica: como fazer análise tipológica.

Lisboa: Gradiva, 2000.

SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a Ciência: a formação da comunidade

científica no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia & Centro de Estudos

Estratégicos, 2001.

______. Ciência, Universidade e Ideologia: a política do conhecimento. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1981.

SEVCENKO, N. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:

Cosac Naify, 2010.

SODRÉ, Nelson W. Morize e o Observatório Nacional. In: MORIZE, Henrique.

Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927). Rio de Janeiro: Museu

de Astronomia e Ciências Afins : Salamandra, 1987.

STEPAN, Nancy. Beginnings of Brazilian science: Oswaldo Cruz, medical research and

policy, 1890-1920. New York: Science History Publications, 1976.

TEIXEIRA, Anísio. Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução

até 1969. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989.

THIELEN, Eduardo Vilela e SANTOS, Ricardo Augusto dos. Belisário Penna: notas

fotobiográficas. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2002, vol.9, n.2, pp. 387-404.

WEBER, Max. The Sociology of Religion. Boston: Beacon Press, 1964.