uma cidade sem escravos(?): memória, história e silêncio

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UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?): Memória, História e silêncio em Alagoinhas (BA) ALINE NAJARA DA SILVA GONÇALVES * “Tem pretensões este livro”. Com estas palavras que Américo Barreira inicia a escrita do que ele afirma ser um registro que tem a função de prestar um derradeiro serviço à terra que o acolheu” — Alagoinhas (BA). Alagoinhas e seu Município foi escrito em 1902, ou seja, menos de duas décadas após a abolição do sistema escravista no Brasil. O livro de Américo Barreira propõe a escrita da história de Alagoinhas desde a fundação da cidade até 1902, todavia é aqui analisado como um livro de memórias. Ao tratar da relação entre Memória e História, Nora (1993) esclarece que longe de serem sinônimos, memória e história se opõem, uma vez que a memória é conduzida por grupos humanos e está sujeita às lembranças, esquecimentos e manipulações. Além disso, segundo ele, “a memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, [...] que há tantas memórias quantos grupos existem.” Por outro lado, ao referir-se à História, faz-se a opção pela “reconstrução problemática e incompleta do que não existe mais” (NORA, 1993: 6). Pierre Nora concebe, assim, a memória, como uma necessidade da história ((NORA, 1993:14). Em 10 de agosto de 1902, Barreira escreveu: “Se de ti sair semente produtiva, se algum merecimento for encontrado nas páginas que lo compõem, estarei bem pago do esforço que representas, e compensada a intenção que te ditou”. 1 É com esta perspectiva, que Américo Barreira traça um painel da cidade de Alagoinhas, partindo da exposição da organização geográfica até a apresentação do panorama político e fatos considerados relevantes para a memória histórica local da época. O livro está dividido em quatro partes: Geographia; Dados e Factos; Nosographia; e por fim, Comércio, Indústria e Agricultura. A leitura da obra permite compreender que a narrativa tem, como o próprio autor revelou, intenções, e a maior delas seria apresentar a cidade de Alagoinhas segundo o olhar atento dos homens de poder daquele período. O capítulo inicial revela os limites espaciais, a divisão territorial, aspectos topográficos e orográficos, bem como * Licenciada em História (UNEB), Especialista em História e Cultura Afro-brasileira (FAVIC) e Mestra em Estudo de Linguagens(UNEB). Atualmente é Coordenadora da Linha de Pesquisa Literatura, Memória e Identidades Culturais no GEPEA (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alagoinhas) e docente da disciplina História e Cultura Afro-brasileira e indígena na Faculdade Regional da Bahia (FARAL - UNIRB). 1 As citações referentes à obre Alagoinhas e seu Município foram transcritas exatamente como aparecem no livro, dessa forma, podem aparecer expressões cuja grafia não correspondem à norma culta padrão da Língua Portuguesa empregada atualmente. O mesmo acontece com as citações dos periódicos analisados aqui.

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Page 1: UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?): Memória, História e silêncio

UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?):

Memória, História e silêncio em Alagoinhas (BA)

ALINE NAJARA DA SILVA GONÇALVES*

“Tem pretensões este livro”. Com estas palavras que Américo Barreira inicia a escrita

do que ele afirma ser um registro que tem a função de “prestar um derradeiro serviço à terra

que o acolheu” — Alagoinhas (BA). Alagoinhas e seu Município foi escrito em 1902, ou seja,

menos de duas décadas após a abolição do sistema escravista no Brasil. O livro de Américo

Barreira propõe a escrita da história de Alagoinhas desde a fundação da cidade até 1902, todavia

é aqui analisado como um livro de memórias. Ao tratar da relação entre Memória e História,

Nora (1993) esclarece que longe de serem sinônimos, memória e história se opõem, uma vez

que a memória é conduzida por grupos humanos e está sujeita às lembranças, esquecimentos e

manipulações. Além disso, segundo ele, “a memória emerge de um grupo que ela une, o que

quer dizer, [...] que há tantas memórias quantos grupos existem.” Por outro lado, ao referir-se à

História, faz-se a opção pela “reconstrução problemática e incompleta do que não existe mais”

(NORA, 1993: 6). Pierre Nora concebe, assim, a memória, como uma necessidade da história

((NORA, 1993:14).

Em 10 de agosto de 1902, Barreira escreveu: “Se de ti sair semente produtiva, se algum

merecimento for encontrado nas páginas que lo compõem, estarei bem pago do esforço que

representas, e compensada a intenção que te ditou”.1 É com esta perspectiva, que Américo

Barreira traça um painel da cidade de Alagoinhas, partindo da exposição da organização

geográfica até a apresentação do panorama político e fatos considerados relevantes para a

memória histórica local da época.

O livro está dividido em quatro partes: Geographia; Dados e Factos; Nosographia; e

por fim, Comércio, Indústria e Agricultura. A leitura da obra permite compreender que a

narrativa tem, como o próprio autor revelou, intenções, e a maior delas seria apresentar a cidade

de Alagoinhas segundo o olhar atento dos homens de poder daquele período. O capítulo inicial

revela os limites espaciais, a divisão territorial, aspectos topográficos e orográficos, bem como

* Licenciada em História (UNEB), Especialista em História e Cultura Afro-brasileira (FAVIC) e Mestra em Estudo

de Linguagens(UNEB). Atualmente é Coordenadora da Linha de Pesquisa Literatura, Memória e Identidades

Culturais no GEPEA (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alagoinhas) e docente da disciplina História e Cultura

Afro-brasileira e indígena na Faculdade Regional da Bahia (FARAL - UNIRB). 1 As citações referentes à obre Alagoinhas e seu Município foram transcritas exatamente como aparecem no livro,

dessa forma, podem aparecer expressões cuja grafia não correspondem à norma culta padrão da Língua Portuguesa

empregada atualmente. O mesmo acontece com as citações dos periódicos analisados aqui.

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a hidrografia, clima, religião, rendas públicas, meios de comunicação e imprensa. Segundo os

registros, Alagoinhas possuía “terras muito férteis” (BARREIRA, 1902:14), banhadas por

“algumas lagoas muito extensas, e meia dúzias de rios, que recebem as águas de uma infinidade

de ribeiros, córregos e regatos” (BARREIRA, 1902:11). Em relação aos rios, citou-os:

Subaúma, Sauhype, Quiricó Grande, Pojuca, Quiricózinho, Fortuna, Piabas, Catu, Aramary,

Urubú, Prata, Adão, Rio Vermelho, Riachão, Riacho das Flores, Riacho, Saguim, Una,

Camorogy e o Pitanga, divididos em cinco bacias hidrográficas. A existência de uma quantidade

significativa de rios e a fertilidade do solo, certamente foram determinantes para o

desenvolvimento econômico da cidade de Alagoinhas, registrada mais tarde pelo Dr. Américo

Barreira, como uma das mais prósperas e desenvolvidas da Bahia à época da escrita, com uma

população total de cerca de 30.000 habitantes, sendo que calcula-se que 16.000 destes residiam

na sede do município.

A Alagoinhas retratada por Américo Barreira (1902:18) é

[...] uma terra cosmopolita, visto como conta grandes colônias de naturaes e de

outros municípios, de Sergipe e estrangeiros, merecendo logar distincto a laboriosa

e próspera colônia italiana, cujos membros possuem diversas fábricas e alguns dos

melhores estabelecimentos commerciaes da cidade.

Este desenvolvimento da cidade foi revelado em registro de outros escritores que por ali

passaram naqueles tempos, como é o caso de Euclides da Cunha, em Canudos: Diário de uma

expedição. Em 1897, Cunha escreveu:

Alagoinhas é realmente uma boa cidade extensa e cômoda, estendendo-se

sobre um solo arenoso e plano.

Ruas largas e praças imensas; não tem sequer uma viela estreita, um beco

tortuoso. É talvez a melhor cidade do interior da Bahia.

Convergem para ela todos os produtos das regiões em torno, imprimindo-

lhe desenvolvimento comercial notável.” (CUNHA, 1897: sn)

Neste mesmo registro, Euclides da Cunha disse que pôde “observar com segurança a

região atravessada “entre a Estação da Calçada, em Salvador, e Alagoinhas”. No trajeto, ele

sinaliza a existência de engenhos movimentados e plantação opulenta. “A vizinhança de Pojuca

é revelada por canaviais extensos que se estendem pelos plainos dos tabuleiros”, afirmou. Em

seguida, citou o Engenho Central — ativo e de aspecto animador: “Trabalhava quando

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chegamos e, através da movimentação complicada das máquinas, ouvimos a orquestração

soberana do trabalho, alentador e forte.” (CUNHA, 1897: sn)2

Registros como este de Euclides da Cunha, bem como as linhas escritas por Américo

Barreira, despertaram o interesse em investigar os sinais da presença escrava em Alagoinhas,

não a partir do que foi revelado, mas a partir do que não foi. Embora indique a existência e,

mais que isso, a atividade e altivez do Engenho Central e de outros, como o Engenho Orobó e

o Engenho Retiro, que ainda segundo Barreira (1902: 21), era “o único engenho bem montado,

actualmente em atividade, em todo o município” — em 1902, de propriedade do Coronel Anísio

Pinto Cardoso, um dos arrendatários da Estrada de Ferro do São Francisco —, percebem-se nos

textos lacunas acerca da atuação direta dos negros na região e de fatos políticos relacionados a

esta presença negra, conforme será apresentado adiante.

Este artigo, em verdade, objetiva analisar os registros feitos por Américo Barreira como

uma fonte possível para a discussão a respeito da presença negra no contexto da escrita da

história/memória de Alagoinhas. A compreensão dos mecanismos que permeiam o processo de

elaboração de uma escrita memorialística e a apresentação de fontes que revelam os sinais dessa

população, servem como um pano de fundo para questionar o discurso de Barreira, bem como

sinalizar caminhos que permitam avançar em busca dos rastros desse passado muitas vezes

silenciado. Talvez pareça óbvio apoiar-se na convicção de que não foge à normalidade dos anos

pós-abolição a ocultação dos sujeitos que se enquadram numa posição de subalternidade,

todavia, cabe investigar essa exaltação ao potencial econômico e comercial da cidade, bem

como aos prédios e homens públicos, em detrimento da mão de obra que movia seu processo

de desenvolvimento econômico.

Entre 1857 e 1859, os Livros de Registro de Terras da Freguesia de Santo Antônio de

Alagoinhas apontam cerca de 36 engenhos na região, além de grandes Fazendas, registrando-

se propriedades com cerca de 900 tarefas de terra e até mesmo 2770 tarefas, como era o caso

do Engenho São Pedro da Boa Sorte, de propriedade de Manoel Dantas Novais e Rosa

Alexandrina Dantas.3 Quem trabalhava naquelas terras? Se quarenta anos depois, o Engenho

Central e o Engenho Orobó ainda estavam ativos, seriam os únicos? E o que foi feito daquela

2 A versão consultada foi editada pela Martin Claret em 2006, na coleção Obra Prima de Cada Autor. Cf. CUNHA,

Euclides da. Canudos: Diário de uma expedição. São Paulo: Martin-Claret, 2006. 3 Cf. Livro nº 1 e nº 2 de Registro de Terras da Vila de Santo Antônio de Alagoinhas (1857-1859). In:

Arquivo do Estado da Bahia. Anais do arquivo do Estado da Bahia. [s.l.]: [s.n.], 1982. 345 p. (46).

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mão de obra? Como se desenvolveu o movimento abolicionista na cidade? Foi precedido por

revoltas escravas? Estas perguntas certamente não serão respondidas neste trabalho, entretanto,

propõe-se questionar as lacunas presentes em Alagoinhas e Seu Município, por compreender

esta obra como um registro escrito sob a ótica da elite. Vale lembrar que esta foi uma obra

escrita sob encomenda e financiada pelo poder público local, que dita as “intenções” que

permeiam a escrita, conforme o próprio Barreira menciona e já foi citado neste texto.4

Américo Barreira não foi o único a propor-se a escrever as memórias da cidade de

Alagoinhas. De certo foi o primeiro, seguido por Naylor Bastos Vilas-Boas, que publicou em

1959, Traços da Vida de Inácio Pascoal Bastos; Salomão Barros, com Vultos e Feitos do

Município de Alagoinhas, em 1979; Joanita Cunha Santos, com Traços de Ontem (1987); e

Maria Feijó, que entre 1972 e 1992, publicou sete obras que registram suas memórias de

Alagoinhas.5 Este artigo reponde então a uma inquietação inicial, que talvez seja sanada quando

abordada em conjunto. É desse modo, uma pesquisa que está sendo desenhada e que objetiva

ser aprofundada na medida em que novas fontes forem sendo reveladas, trazendo muito mais

possibilidades interpretativas, do que certezas e/ou análises firmadas.

Américo Barreira certamente estava preocupado em escrever uma Alagoinhas voltada

ao progresso, desenvolvimento econômico e, acima de tudo, letrada e elitista. A exaltação aos

edifícios públicos, em especial do prédio da Câmara dos Vereadores — “considerado o melhor

deste gênero em todo o Estado da Bahia” (BARREIRA, 1902:18) — e o entusiasmo com que

refere-se ao povoado de Egreja Nova, o qual segundo ele,

[...] distingue-se de todos os outros povoados pelo número considerável de homens

letrados (médicos, bacharéis, farmacêuticos, padres, engenheiros), alguns dos quaes

têm representado papel saliente na política, na sciencia e no funccionalismo público

e particular (BARREIRA, 1902:19),

4 Cf. LIMA, Keite Maria Santos do Nascimento. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em

Alagoinhas (1868-1929) – Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia

e Ciências Humanas. Salvador, 2010. 5 Cf. VILAS-BOAS, Naylor Bastos. Traços da Vida de Inácio Pascoal Bastos (1860-1942). Memória

comemorativa do centenário do seu nascimento, em que trata, por forçosa correlação, de Alagoinhas e de Pedro

Rodrigues Bastos e sua descendência. Salvador, 1959; BARROS, Salomão. Vultos e Feitos do Município de

Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979; SANTOS, Joanita Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte:

Graphilivros, 1987; NEVES, Maria Feijó de Souza. Bahia de todos os meus sonhos. Rio de Janeiro. Edição

Particular, 1966; NEVES, Maria Feijó de Souza. Alecrim do tabuleiro. Rio de Janeiro: Editora Max, 1972;

NEVES, Maria Feijó de Souza. Canto que veio. Rio de Janeiro: [s.n], 1974; NEVES, Maria Feijó de Souza. Pelos

caminhos da vida de uma professora primária. Rio de Janeiro: Editora Max, 1978; NEVES, Maria Feijó de

Souza. Vitrais de Sonhos. Rio de Janeiro, Editora Max: 1985; NEVES, Maria Feijó de Souza. O pensionato:

paraíso das moças. Rio de Janeiro: Editora Max, 1988; NEVES, Maria Feijó de Souza. Beduíno do

Sonho (Sonetos e Poesias outras). Rio de Janeiro: Editora Max, 1992.

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reflete esta opção, que é reforçada ao longo da narrativa, pelo frequente destaque dado a homens

que compunham o cenário político de Alagoinhas, uma cidade que dispunha de vinte e um

jornais em atividade entre 1884 e 1902, o que reforça essa preocupação com as Letras, sendo

que destes, O Alagoinhense (1884) e O Popular (1896) — do qual foi redator chefe — , são

considerados os mais duradouros.

A segunda parte do livro é intitulada “Datas e Factos – Documentos Históricos”. Nesta

altura da escrita, Barreira apresenta o “mito” da fundação da cidade, numa narrativa que se

origina a partir da chegada de um padre português, em fins do século XVIII, um “homem

inteligente e de família nobre”. É importante ressaltar que estes atributos lhes são relegados

apesar do desconhecimento da sua identidade, bem como dos motivos que o levaram a fixar-se

nestas terras, onde “fundou a capella de Alagoinhas e dedicou-se à vida agrícola, constituindo-

se abastado proprietário. Foi dono de muitas terras, escolhendo para sua residência a fazenda

Ladeira, a 12 kilômetros para o norte da capella”. (BARREIRA, 1902:37) Um segundo padre,

também português — José Rodrigues Pontes — é quem eleva a capela à categoria de Freguesia

de Santo Antônio de Alagoinhas, sendo os limites da freguesia registrados no Alvará de D. João

VI, de 07 de novembro de 1816, onde cita os engenhos Orobó, Europa, Engenho Velho e

Engenho Barra.

Até ser elevada à categoria de vila, Alagoinhas pertencia a Inhambupe. É com a

resolução provincial de número 446, de 16 de junho de 1852, que passa a ser município

independente, contudo, o auto da instalação da nova vila se dá em dois de julho de 1853, quando

foram nomeados os primeiros vereadores: o Coronel José Joaquim Leal (presidente), Capitão

Manoel Ferreira Canna Brasil, Capitão Pedro Silva Mattos, Capitão José Moreira de Carvalho

Rego, Reverendo Estevam dos Santos Cerqueira, Capitão Francisco Silva Melo e Andrade e

João Batista Benevides, que juraram promover os meios de sustentar a felicidade pública

(BARREIRA, 1902:35).6

A exaltação dos grandes homens e seus feitos aparece como pano de fundo da escrita de

Américo Barreira, que recorre à nomeação dos homens de “boa família”, cuja atuação política

foi determinante para o desencadear de grandes acontecimentos em Alagoinhas. A chegada da

estrada de ferro foi um destes, que aliás, redefiniu os contornos não só territoriais, como

6 Sobre a atuação política do Coronel José Joaquim Leal e do Capitão José Moreira de Carvalho Rego, ver: LIMA,

Keite Maria Santos do Nascimento. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em Alagoinhas

(1868-1929) – Salvador. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia

e Ciências Humanas, 2010.

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políticos, desta cidade, sendo o grande responsável pela transferência da sede do governo

municipal (1868) e pela reconfiguração espacial. No entorno da estação começaram a surgir as

primeiras casas de palha dos garimpeiros e trabalhadores da estrada de ferro. Segundo Barreira,

o primeiro comerciante do local foi o Capitão Pedro Rego (Piroca) e as primeiras casas de telha

foram construídas entre janeiro e fevereiro de 1863.

O alvoroço causado pela chegada da estrada de ferro foi tamanho, a ponto de para

viabilizar a transferência da feira, haver a necessidade de intervenção policial. Certamente,

aqueles indivíduos que se opunham ao progresso e modernização que a ferrovia denotava,

estavam estabelecendo barreiras aos objetivos dos vereadores da cidade, que como foi posto

aqui, juraram promover a felicidade pública. Estabelecida nos arredores da ferrovia, Alagoinhas

foi elevada à categoria de cidade em 07 de junho de 1880.

Cabe aqui uma observação: após referir-se à elevação de Alagoinhas à categoria de

cidade, Américo Barreira dá um salto de nove anos e silencia o período que se estende entre

1880 a 1889, dando segmento a seu texto sob o subtítulo de ALAGOINHAS REPUBLICANA.

A respeito deste período, ele é enfático quando escreve:

E no período que vae desta data ao ano de 1889, muitos melhoramentos se fizeram,

como se verá adiante, quando trato dos edifícios públicos. Não se deram, porém,

factos políticos dignos de referência especial. (BARREIRA, 1902: 49) – grifo nosso.

Em Memória, Esquecimento, Silêncio, Michael Pollak (1989: 5) revela que o “silêncio

sobre o passado está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi”,

uma vez que — ainda segundo Pollak — muitas vezes o ato de silenciar sobre algo reflete uma

relação traumatizante, que pode estar relacionada a culpa ou ressentimento. Diante do exposto,

percebe-se que para Américo Barreira e seus correligionários, o processo de abolição do regime

escravista no Brasil era certamente um fato indigno de ser lembrado; que não merecia uma

referência em linhas que propunham a exaltação da cidade. Rememorar a exuberância dos

prédios públicos seria algo, àquele tempo e para o público ao qual se dirigia o escrito, muito

mais adequado.

Apesar de não participar de forma ativa da campanha republicana, foi realizada uma

reunião em 17 de novembro de 1889, em casa do Coronel Anísio Pinto Cardoso, onde pretendia-

se nomear uma comissão que deveria dirigir-se ao Chefe do Governo Provisório no Rio e ao

governador da província, “oferecendo adhesão perfeita e sem restrições ao programma do

governo republicano” (BARREIRA, 1902: 50). Ali fora criado o Centro Republicano

Provisório Alagoinhense. O Dr. Américo afirma que, “foi, ao que parece, Alagoinhas a primeira

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localidade bahiana que aderiu à República” (BARREIRA, 1902:55), o que foi consolidado no

dia 19 de novembro de 1889. A 25 de dezembro, o Dr. Virgílio Damásio foi aclamado chefe do

partido republicano alagoinhense. Na ocasião, após analisar os males causados pelo regime

monárquico, afirmou aceitar o cargo oferecido, “mas com a condição de ser ele a prova mais

cabal do esquecimento dos antigos ódios, das malquerenças que não podião viver no systema

republicano” (BARREIRA, 1902:62-63).”.

Pollak (1989:13) ressaltou que “a vontade de esquecer os traumatismos do passado

freqüentemente surge em resposta à comemoração de acontecimentos dilaceradores. Uma das

“malquerenças”, que certamente poderia ser vista como acontecimento devastador a ser

esquecido seria, justamente, o passado escravista, símbolo do império, do atraso e da

degeneração populacional, que em nada se assimilava ao contexto de prosperidade que

Alagoinhas exalava, principalmente considerando-se as possibilidades que a linha férrea

apontava. Alagoinhas e Seu Município mostra que esta cidade era “o ponto terminal ou inicial

de quatro ferrovias” e interligava em direções diversas, cerca de quinze cidades.

Américo Barreira dedica parte significativa da narrativa à exposição do histórico de

prédios públicos, como a Casa da Câmara — “belo e vasto edifício que tanto honra esta cidade”

(BARREIRA, 1902: 79). À medida em que traça um histórico do prédio, nomes de homens

ilustres que atuavam na política local vão sendo mencionados, como se ilustrassem o passo a

passo da edificação e inauguração dos cômodos: a construção dos alicerces, a seção que dá

frente à estrada de ferro e seu mobiliário, a cadeia pública, o andar superior, o fórum... até ser

inaugurada, oficialmente, em 2 de julho de 1899. Essa valorização dos prédios e monumentos

públicos — aqui enquadrados no que Pierre Nora (1993) chama de “lugares da memória” —

em oposição ao acontecimento político e contestador de uma ordem ali estabelecida, reflete a

tentativa de instituir os marcos de uma outra era; uma ilusão de eternidade. Segundo Nora

(1993:13), estes são

[...] sinais de reconhecimento e de pertencimento de um grupo numa sociedade que

só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há

memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,

organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas

operações não são naturais.

Pollak (1992) ressalta ainda, que na memória mais pública, os lugares da memória são

os lugares de comemoração. Desse modo, os chamados lugares da memória, “são bastiões sobre

os quais se escora [a história]. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não teria

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tampouco a necessidade de construí-los e o apreço pelo material, pelo palpável, diz respeito a

uma particularidade da memória arquivística, que segundo ele, se apoia no que há de mais

concreto, de mais visível, de mais preciso (NORA, 1993:. 13-14). Seguindo à exposição acerca

da Casa da Câmara, há menção ao Mercado, Cemitério Municipal, Hospital de Variolosos,

Iluminação, Praça de Mercado, viadutos, pontes, cruzeiros e igrejas. Apenas neste ponto surge

a alusão a um escravo, que na verdade, aparece como um personagem lendário. “Contarei aqui

uma das lendas que ouvi a propósito”, disse Barreira (1902: 97) e continuou:

Um escravo muito maltratado pelo senhor, saiu um dia à procura de um animal que

fugira do engenho. Chegando muito cansado a esse local, ajoelhou-se na areia, e

cheio de fé pediu a Jesus que abrandasse o coração do senhor, prometendo colocar

ali uma memoria, caso fosse feliz. Dias depois, ou porque ao rigoroso fasendeiro já

parecessem muitos os serviços do pobre negro; ou porque aquellas supplicas

fervorosas deste martyr da escravidão merecessem um milagre do Divino Martyr do

Golgotha, foi-lhe entregue pelo próprio senhor a sua carta de alforria. Crente e grato,

o liberto cumpriu que o escravo havia feito - grifo do autor.

Alguns pontos merecem ser considerados. Em primeiro lugar, percebe-se que o único

escravo que surge na narrativa como personagem, o faz como uma lenda, ou seja, um ser que

tecnicamente, não existiu; é mitológico. É a figura do escravo anônimo, em meio a tantos

senhores com nome e sobrenome e aparece muito mais para ilustrar uma história cristã,

carregada de fé e benevolência do que para sinalizar a existência de uma população escravizada

em Alagoinhas. Aliás, fica claro nesta lenda, que o Cruzeiro do Deserto, ali fincado, seria um

local para colocar uma memória de perdão e fé. À lenda do escravo liberto, segue-se uma

narrativa que destaca o povoado de Igreja Nova, que segundo o autor, dispunha de primazia

intelectual, de onde partiam grandes proprietários de Engenhos e Fazendas. Aqui Américo

Barreira faz uma referência também muito breve a índios, que segundo ele, estariam espalhados

em diversos pontos, mas também não se alonga neste sentido.

Para finalizar esta segunda parte da obra, Barreira traz algumas NOTAS

BIOGRAPHICAS, apresentando a biografia de cento e quarenta homens, sendo muitos destes

personagens centrais da sua escrita e, grande parte deles, citados como proprietários de

engenhos e grandes fazendas da região, engenheiros, padres e militares, principalmente. Como

se pretendesse assegurar seu desejo de corresponder a uma expectativa alheia, Barreira conclui

a segunda parte afirmando que neste trabalho, procurou “dizer a verdade sem propósito de ser

agradável a indivíduos, mas na firme intenção de ser útil à collectividade.” (BARREIRA,

1902:149)

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A terceira parte, intitulada “Nosographia”, propõe um estudo patológico, expondo,

descrevendo e classificando as doenças que assolavam o município. A dificuldade em matéria

de estatística, como assinala o doutor, é um dado que dificultou a precisão de algumas

informações por ele listadas, bem como a simplificação de alguns diagnósticos, que julga

“disparatados e deveras estaparfúdios”. Aqui, a existência de uma população indígena no

município aparece mais uma vez como uma referência breve... “Moléstia interna é o Proteu da

diagnose indígena; serve para tudo, dirime quaisquer dificuldades” (BARREIRA, 1902: 152).

O Dr. Américo continua o texto chamando atenção à má conduta de “certa classe de indivíduos”

que não dispõem de educação higiênica, e, de forma perversa, inundam os rios, fontes e vias

públicas de dejetos, “que comprometem os foros de civilização e educação, de que Alagoinhas,

por sua importância política e commercial, podia estar gosando em sua plenitude.”

(BARREIRA, 1902: 154)

O panorama das doenças que acometiam a população de Alagoinhas é revelado, tendo

destaque a epidemia de varíola, entre 1897 e 1898, afecções no estômago, pulmões e diarreias.

Avançar no mapeamento das doenças não é o propósito deste trabalho, todavia importa sinalizar

que a as enfermidades que acometem a população são postas como os sinais destoantes diante

do progresso que Alagoinhas denota, sendo resultado, principalmente, da falta de higiene e

degradação moral e cívica das populações mais pobres e que, estaria assolando as boas famílias,

como a do “distinto negociante snr. Victor Farano” (BARREIRA, 1902: 158). Embora não fosse

algo virtuoso para deixar registrado em memórias, o Dr, Américo alerta que contando as

infelicidades do presente, escreve para o futuro, a fim de haja uma reflexão sobre este assunto.

Ainda nesta seção, Américo Barreira transcreveu o relatório que apresentou à

Inspectoria Geral de Hygiene do Estado da Bahia, em 30 de janeiro de 1898, onde relata os

cuidados com os prisioneiros vindos de Canudos, por ocasião da guerra. Neste relatório,

encontram-se registrados também os tratamentos médicos direcionados aos variolosos, que,

conforme foi dito, eram muitos na Alagoinhas daqueles anos. Ali o Dr. Barreira registrou a

vacinação de crioulos adultos e crianças, nomeando-os no Anexo 4 do seu parecer:

Maria Augusta - Criança

Isabel - Criança

Antônio Bispo - Criança

Cosme Damião - Criança

Joana - Adulta

Innocencia - Criança

Pedro Celestino - Criança

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Além dos crioulos registrados, havia muitos pardos presentes no relatório, o que reforça

a suposição não só de uma presença marcante de descendentes de africanos na cidade, como é

possível relacioná-los às gentes sem senso de higiene e má educação, que segundo o referido

doutor, seriam propensos a uma conduta negativa que poderia ser a causadora da epidemia de

varíola que devastava Alagoinhas e maculava sua imagem progressista.

É importante lembrar, nesta altura do texto do Dr. Américo Barreira, que ele diplomou-

se na Faculdade de Medicina da Bahia, onde estudou entre 1889 e 1894. Ali, foi aluno de Nina

Rodrigues, a quem se refere no livro, afirmando: “Creio muito na sciencia do meu distinto

mestre” (BARREIRA, 1902: 158). A questão racial é um fator referencial ao se mencionar a

Faculdade de Medicina da Bahia. Naquela instituição, o “cruzamento de raças” era fator

determinante para explicar criminalidade, loucura e degeneração. A discussão sobre higiene

pública se tornou primordial em função do avanço de epidemias:

Tuberculose, febre amarela, varíola, lepra, peste, sarampo, febre tifoide, mal

de Chagas, beribéri, malária, coqueluche, cólera e escarlatina são alguns exemplos

de doenças infecto-contagiosas que alarmavam os médicos especialistas.

(SCHWARCZ, 1993: 206).

Lília Schwarcz, em Espetáculo das Raças, chama atenção à relação que é feita entre

raça e patologias pelos médicos da Escola Nina Rodrigues. A questão racial passa a ser vista

como determinante para o surgimento de certas moléstias. A sífilis, por exemplo, era apontada

como um sinal de degenerescência mestiça. A questão é que, conforme sinaliza a autora, para

os médicos baianos, “as epidemias não eram apenas epidemias, já que pareciam revelar o longo

caminho que nos distanciava da ‘perfectibilidade’, ou mesmo a ‘fraqueza biológica’ que

imperava no país.” (SCHWARCZ, 1993: 209) Nestes termos, certamente o Dr. Américo

acreditava serem os pardos, crioulos e pretos, os culpados pelas doenças, devido a uma suposta

inferioridade biológica.7

“Comércio, Industria e Agricultura” é o título da quarta parte das memórias aqui

analisadas. Ao tratar do trinômio que rege a economia local, Américo Barreira cita o Engenho

Orobó, propriedade do Sr. Major Honorato Guimarães Leal, que àquele tempo, fabricava “todos

os produtos de canna, sendo o único que produz assucar no município” (BARREIRA, 1902:

195). Fator que desperta uma inquietação frente aos anseios da pesquisa que aqui se desenha, é

a análise que o Dr. Américo faz sobre o declínio da lavoura, que nos anos iniciais do século

7 Para saber mais acerca da prática médica no contexto brasileiro do século XIX, incluindo uma análise

aprofundada sobre a Escola Nina Rodrigues, ver Schwarcz, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas,

instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Page 11: UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?): Memória, História e silêncio

11

XX, chegara ao mais lamentável estado de decadência. (BARREIRA, 1902: 204). Segundo ele,

os antigos senhores de escravos foram os principais culpados por este quadro decadente, uma

vez que, os ex-escravistas, “na vigência do regime negro, não souberam (se) preparar para o

trabalho livre, honrado e produtivo” (BARREIRA, 1902: 207).

A desonra que a memória escravista trazia era, então, a grande marca deixada pela

presença negra, aqui mais uma vez silenciada. Os questionamentos do senhor Américo Barreira

pairam sobre sua aflição diante da derrocada econômica causada pelo despreparo dos senhores

para o trabalho livre. Alagoinhas foi um dos últimos municípios a aderir à abolição e os

“homens de bem”, exaltados na narrativa analisada eram os mesmos senhores despreparados

para o recebimento de um trabalhador livre e digno. Na ótica do Dr. Américo, “Alagoinhas

participou daquele erro e do consequente fracasso” (BARREIRA, 1902: 209).

A quarta parte é concluída com o desabafo e a indignação do médico em relação à crise

econômica que pairava sobre a cidade. “Como se pode então compreender que antigos e

prósperos engenhos estejam hoje transformados em fasendas de criar e entregues quase

exclusivamente a pequenos rendeiros[...]?” (BARREIRA, 1902: 211) – questiona, como se

buscasse que os possíveis leitores pudessem remediar aquele quadro. Por fim, encerra com um

desabafo carregado de críticas, indiretas e expectativas:

Pertenço ao número dos que confessam e deploram os erros que se vêm

acumulando desde os tempos coloniaes na política, na administração e em tudo. Mas

estou plenamente convencido de que quando [...] uma orientação mais san, mais

segura e mais patriótica presidir aos destinos das raízes conservadoras do paiz, novos

horizontes se rasgarão ás nossas fontes de produção e riqueza; e a fortuna, que hoje

se tenta provar em orçamentos em balancetes e lançamentos fictícios e mentirosos,

será uma realidade consoladora e bela. E então unirá sua voz às vozes que hão de

cantar hosanas á prosperidade da pátria redimida. (BARREIRA, 1902, p. 211).

Nas “Paginas Finaes”, Américo Barreira confessa que o livro foi escrito às pressas e

agradece aos cavalheiros que o auxiliaram na organização de material “tão completo quanto o

permitiram as circunstâncias” (BARREIRA, 1902: 213). Despedindo-se, agradece a cidadãos

ilustres da cidade e conclui reforçando sua crítica frente aos “maus governos” e à “desorientação

política dos [...] homens, que tem posto à prova de todas as desventuras os extraordinários

recursos naturaes do Brasil” (BARREIRA, 1902: 218).

Em Memória e Identidade Social, Michael Pollak (1992: 201-204) ressalta que a

memória parece ser um fenômeno individual, contudo, citando Hawlbacks, lembra que deve ser

compreendida como um fenômeno construído socialmente e sujeita a flutuações,

transformações e mudanças constantes. Destaca, ainda, que a memória é constituída a partir de

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acontecimentos vividos — sejam eles pessoais ou coletivos — pessoas, personagens e lugares.

Considerando a seletividade peculiar à memória, bem como o seu papel enquanto um elemento

constitutivo da identidade individual e coletiva, é possível compreender que a seleção feita por

Américo Barreira ocultou vestígios da presença negra que despontavam de forma significativa

naquela sociedade alagoinhense, forjando uma memória a partir do campo de interesses e

identificações de um grupo específico, que, naqueles anos, controlava a política, a economia e

as relações de poder. Memória esta que ao ser incorporada como uma referência, passou a agir

por si só, influenciando as gerações futuras, como pode ser verificado a partir de uma análise

da obra de Salomão Barros, já mencionada neste trabalho, e que em muito se assemelha aos

escritos do Dr. Barreira que, aliás, é citado na epígrafe e na justificativa à edição de Vultos e

Feitos do Município de Alagoinhas:

“Alagoinhas e seu Município” é grandioso em todas as suas manifestações.

Por acharmos ser uma obra que não deva permanecer no esquecimento de todos nós

alagoinhenses — por nascimento ou adoção —, é que ele nos serviu de direção e

estímulo para uma continuidade que se torna precisa, embora por nós aqui traçada

obscuramente. (BARROS, 1979: 23)

Assim, obedecendo aos requisitos da elite alagoinhense, Alagoinhas e seu Município

traz uma cidade que parecer não ter possuído escravos, afinal, fala-se muito pouco neles e, se

aparecem, ora é como uma lenda, ora como o empecilho ao progresso. Em contrapartida, a

imprensa de Alagoinhas, desde 1877, trazia a tona a presença escrava em suas notícias,

inclusive, apontando caminhos para a liberdade de cativos, como pode ser conferido em edições

do Periódico A Verdade, que apresenta aos leitores notícias relacionadas a negros — escravos,

libertos ou livres. Ali revela-se, por exemplo, um espetáculo teatral em favor da alforria de uma

escrava cujo nome não é mencionado; a carta de alforria de “João, cabra, solteiro com 27 annos

de idade pouco mais ou menos, matriculado sob o número de ordem na matricula do termo de

Santo Amaro, nº 4826”, escravo de Maria Olindina do Nascimento Benevides; um edital do

Juizado de Orfãos e Ausentes, que anuncia o recebimento de

cartas propostas de arrematação dos escravos: José, preto, filho de Ignez, com 15

annos, avaliado em 700$000, Hermano, preto, com 13 annos, filho de Jesuína, liberta,

avaliado em 900$000, Luiz, preto, com 12 annos, avaliado em 800$000 (A Verdade,

11/02/1877);

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articulações entre o negro Manoel Doutor e a força policial local, bem como crimes, como o

cometido por Belmiro Antonio de Araujo, negro livre, feitor do Engenho do tenete-coronel

Manoel Francisco da Cunha (A Verdade, 11/02/1877)8.

O Alagoinhense, que parece ter sido um jornal satírico, em 11 de junho de 1885, critica

e questiona o escravismo, iniciando esta edição com um escrito abolicionista. Infelizmente o

desgaste provocado pelo tempo sobre o papel não permitiu a transcrição integral do texto, que

em parte dizia:

Oh! Maldita a cegueira quiçá produzida por interesses egoístas,

passageiros, mesquinhos, que impede vir o rubor às faces de nossos representantes,

quando no seio do parlamento, fazem juz ao odioso qualitativo de escravocratas!

Escravocratas! E em nome de qual princípio? Em nome de que interesse?

[...]

Em nome, pois, de que princípio e em nome de que interesse querem firmar

o engrandecimento de nossa pátria sobre o alicerce imoral da violência e injustiça?

[...]

O sangue dos captivos, como o sangue de Abel, brada vingança. [...] A lei

da reação tem em larga escala operado entre nós.

O escravo vingou-se terrivelmente, fazendo nos escravos. Nós o despojamos

da sua liberdade natural, e por três séculos, lhes rasgamos as carnes com os açoites

do captiveiro. Ainda mais embrutecemos lhe e lhe assassinamos o coração.

Do Democrata. (O Alagoinhense, 11/06/1885)

A apresentação das fontes acima reafirma a necessidade de questionar o hiato acerca da

atuação direta dos negros na formação da cidade de Alagoinhas, evidenciando sinais não

revelados do escravismo nesta cidade. Robério Santos Souza (2011), em “Tudo pelo Trabalho

Livre!”: Trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909), ao descrever e analisar

as implicações no processo de construção da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco,

enfatizou a participação da mão de obra escrava na ferrovia, apesar da proibição existente no

contrato firmado com o engenheiro Miguel de Teive e Argollo, afirmando:

[...] é importante destacar a presença negra, que constituía a principal força de

trabalho da Província e que compunha majoritariamente a sua demografia naquele

período. É bem provável que muitos negros livres, libertos ou escravos, juntamente

com os estrangeiros, trabalhassem na construção e no funcionamento de estradas de

ferro na Bahia. (SOUZA, 2011: 60)

O argumento de Robério Souza a respeito da expressiva quantidade de escravos é

reforçado diante do Recenseamento do Brazil em 1872, que aponta uma população de composta

8 Cf. A Verdade, Alagoinhas, 11 de fevereiro de 1877. N 15. Série 1ª, bem como A Verdade, Alagoinhas, 01 de

Abril de 1882. N 208. Anno 5.

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por 3763 escravos em Alagoinhas, sendo 1887 homens e 1876 mulheres, a maioria nascidos no

Brasil e analfabetos.

As fontes divulgadas nesse trabalho carecem, certamente, de um exame mais

aprofundado, todavia, sua exposição responde ao apelo de retirar o véu que oculta a história da

escravidão negra na cidade de Alagoinhas (BA) e vem exaltando uma memória que precisa ser

repensada, criticada e, talvez, reformulada, uma vez que é no mínimo perturbadora, a existência

de seis comunidades remanescentes de quilombos nos arredores de uma cidade, que atualmente

dispõe de mais de duzentos terreiros de candomblé em processo de mapeamento pelo IPAC,

segundo informações da diretoria da FENACAB (Federação Nacional do Culto Afro-

brasileiro), e nenhuma memória expressiva relacionada à cultura afro-brasileira, o que gera

muitos questionamentos ainda não respondidos.9 Alagoinhas, certamente, não foi uma cidade

sem escravos. Seguir os rastros das fontes citadas em busca de novos vestígios é um

compromisso futuro na tentativa de recompor trajetórias e trazer à tona uma história que possa

dar voz aos homens e mulheres outrora esquecidos.

Fontes e Referências

A Verdade, Alagoinhas, 11 de fevereiro de 1877 nº 15.

A Verdade, Alagoinhas, 2 de julho de 1877 n 32.

A Verdade, Alagoinhas, 01 de Abril de 1882. N 208. Anno 5.

BARREIRA, Américo. Alagoinhas e seu Município. Notas e apontamentos para futuro.

Alagoinhas: Typografia do Popular, 1902.

BARROS, Salomão. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas,

1979.

CUNHA, Euclides da. Canudos: Diário de uma expedição. São Paulo: Martin-Claret, 2006.

Livro nº 1 e nº 2 de Registro de Terras da Vila de Santo Antônio de Alagoinhas (1857-1859).

In: Arquivo do Estado da Bahia. Anais do Arquivo do Estado da Bahia. [s.l.]: [s.n.], 1982. 345

p. LIMA, Keite Maria Santos do Nascimento. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana

em Alagoinhas (1868-1929) – Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2010.

9 Os dados referentes à quantidade de terreiros na cidade foram fornecidos em conversa com diretoria da

FENACAB, no CENDOMA – Centro de Documentação e Memória de Alagoinhas, todavia, carecem de

comprovação documental. Em relação às comunidades remanescentes de quilombos, temos as comunidades de

Fazenda Cangula, Buri, Catuzinho, Fazenda Oiteiro, Gaiozo e Terra Nova, segundo dados do site do Ministério

de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, divulgados no sítio eletrônico

<http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/cadastrounico/gestao-municipal/processo-de-

cadastramento/arquivos/levantamento-de-comunidades-quilombolas.pdf> Acesso em 10 de junho de 2015 às

18h04min.

Page 15: UMA CIDADE SEM ESCRAVOS(?): Memória, História e silêncio

15

NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São

Paulo, n. 10, dez. 1993. P.7-28. Disponível no site

http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763.

O Alagoinhense, Alagoinhas, 11 de junho de 1885 n XC.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3. 1989.

_______________. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, nº 10, 1992.

Recenseamento Geral do Império, 1872. Disponível no sítio eletrônico

http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-

%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf

SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial

no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, Robério Santos. “Tudo pelo trabalho livre!”: trabalhadores e conflitos no pós-

abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. 182 p.