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O estudo teológico da religião: Uma aproximação hermenêutica Walter Salles

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O estudo teológico da religião:

Uma aproximação hermenêutica

Walter Salles

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

ReitorMarcelo Fernandes de Aquino, SJ

Vice-reitorAloysio Bohnen, SJ

Instituto Humanitas Unisinos

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

Diretora adjunta

Hiliana Reis

Gerente administrativo

Jacinto Schneider

Cadernos Teologia PúblicaAno III – Nº 24 – 2006

ISSN 1807-0590

Responsável técnica

Cleusa Maria Andreatta

Revisão

Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria

Caren Joana Sbabo

Editoração eletrônica

Rafael Tarcísio Forneck

Impressão

Impressos Portão

Editor

Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial

Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos

Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos

Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos

MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos

Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos

Esp. Susana Rocca – Unisinos

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Conselho científico

Profa. Dra. Edla Eggert – Unisinos – Doutora em Teologia

Prof. Dr. Faustino Teixeira – UFJF-MG – Doutor em Teologia

Prof. Dr. José Roque Junges, SJ – Unisinos – Doutor em Teologia

Prof. Dr. Luiz Carlos Susin – PUCRS – Doutor em Teologia

Profa. Dra. Maria Clara Bingemer – PUC-Rio – Doutora em Teologia

Profa. MS Maria Helena Morra – PUC Minas – Mestre em Teologia

Profa. Dra. Maria Inês de Castro Millen – CES/ITASA-MG – Doutora em Teologia

Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner – EST-RS – Doutor em Teologia

Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos

Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467

www.unisinos.br/ihu

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Cadernos Teologia Pública

A publicação dos Cadernos Teologia Pública, sob a

responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,

quer ser uma contribuição para a relevância pública da

teologia na universidade e na sociedade. A teologia públi-

ca pretende articular a reflexão teológica em diálogo com

as ciências, culturas e religiões de modo interdisciplinar e

transdisciplinar. Busca-se, assim, a participação ativa nos

debates que se desdobram na esfera pública da sociedade.

Os desafios da vida social, política, econômica e cultural

da sociedade, hoje, especialmente, a exclusão socioeco-

nômica de imensas camadas da população, no diálogo

com as diferentes concepções de mundo e as religiões,

constituem o horizonte da teologia pública. Os Cadernos

de Teologia Pública se inscrevem nesta perspectiva.

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O estudo teológico da religião:Uma aproximação hermenêutica

Walter Salles

“Dizer algo de alguma coisa já é dizer outra coisa, é interpretar.”

Introdução

Admitir, ao menos hipoteticamente, a aproxima-ção entre teologia e religião no contexto universitário éter por pressuposto a possibilidade da religião ser estuda-da cientificamente e de a teologia possuir cientificidadecomprovada para estudá-la. Entretanto, esta possibilida-de não é tão evidente quanto possa parecer.

Talvez não seja nenhum exagero de minha parteafirmar inicialmente que o assunto tal como aparece for-mulado no título deste artigo não pode se esquivar da re-flexão sobre o papel da teologia na universidade do sécu-lo XXI, ao menos como pressuposto no diálogo entre asciências que se dedicam ao estudo da religião. A pergun-

ta pelo lugar da teologia na universidade não é um meroartifício retórico, uma vez que a resposta a esta questãoacaba configurando a maneira de conceber a reflexão te-ológica e, igualmente, porque o problema da alocaçãoda teologia na universidade não é físico, mas epistemoló-gico, pois supõe uma revisão de seu paradigma: Que teo-logia? Que maneira de fazer teologia na universidadecomo estudo da religião? E tudo indica que o pluralismoreligioso desponta como um dos grandes desafios que seapresentam ao exercício da teologia neste início de sécu-lo XXI. Uma prática religiosa que, em nosso contexto, foitraduzida de forma magistral por Guimarães Rosa em seuromance Grande Sertão: Veredas:

Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião dereligião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue (...)

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Tudo me inquieta, me suspende. Qualquer sombrinhame refresca1.

O objetivo deste artigo é, pois, mostrar que a her-menêutica teológica é o caminho que torna plausível aelaboração de um discurso teológico de validade públicae pertinência acadêmica, na medida em que se entendaque a antropologia é o lugar de toda teologia. Todavia, onovo que se preconiza no exercício da teologia, seu em-preendimento hermenêutico e a sua orientação antropo-lógica, não corresponde a um discurso inaudito ou a umaprática nunca antes levada a termo. A própria história dopensamento teológico no Ocidente estaria a desmentiresta falsa pretensão. A novidade é, na verdade, provoca-da pelo cenário no qual se desenrola este trabalho teoló-gico, um cenário composto pela universidade com as re-visões epistemológicas pelas quais passam as ciências, oreconhecimento oficial da teologia por parte das autori-dades brasileiras (MEC), o que exigirá cada vez mais dateologia um discurso de validade pública, e por fim o plu-ralismo religioso que desponta como um novo paradig-ma para o exercício da teologia.2

É este cenário que convida a prática teológica aretirar da sua tradição a novidade de seu discurso, na

certeza de que o teólogo tem que ser moderno portradição.

Uma composição de lugar

O diálogo, ou às vezes o monólogo que caracterizaa relação entre a teologia e as ciências humanas que sededicam ao estudo da religião, possui uma história, umalonga história, marcada por alianças e conflitos. Comporo lugar a partir do qual me situo na discussão sobre o es-tudo teológico da religião me obriga a discorrer por umcaminho que já é em si mesmo um ato hermenêutico, umainterpretação, pois significa abandonar outros caminhospossíveis.

O caminho que desejo trilhar tem como preâmbu-lo a idéia de que a desqualificação e mesmo a qualifica-ção da teologia como intérprete da religião poderia ser ví-tima de um juízo apressado, diante de conceitos comple-xos, como ciência, religião e teologia, cuja relação entresi é um campo minado por “pré-conceitos” e lugares co-muns, tais como considerar a base empírica como o fun-damento último de toda e qualquer atividade científica,

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1 GUIMARÃES ROSA, João, Grande sertão: veredas, p. 15.2 Por exercício da teologia, salvo algumas exceções, refiro-me basicamente nesta reflexão à prática da teologia cristã.

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tomar a teologia somente por defensora da ortodoxia dafé eclesial e em última análise da fé cristã, bem como vera religião unicamente sob a perspectiva cristã e comouma dimensão arcaica, pré-moderna, e portanto ultrapas-sada da história da humanidade.

A história do pensamento teológico no Ocidentenos ensina que a passagem da teologia patrística à teolo-gia medieval, ou seja, seu ingresso na universidade, pro-vocou profundas transformações na maneira de se com-preender o trabalho teológico. O alcance destas mudan-ças somente se tornou perceptível no decorrer de um pro-cesso que tem no imperialismo da razão técnico-científi-ca, erigida como critério único de cientificidade, uma desuas características mais marcantes e na desqualificaçãoda teologia como ciência, uma das conseqüências maissignificativas para o múnus teológico.

Historicamente, a rigor, não se pode falar de “en-trar” na universidade, uma vez que a teologia foi parte in-tegrante da construção deste marco da cultura ocidental,tornado possível graças à visão cristã e teocêntrica pró-pria do mundo medieval, ou seja, uma visão unificada detoda a realidade em torno do nome Deus e que buscou auniversalidade do saber. Neste mundo teocêntrico, Deus

era a medida de todas as coisas, e o valor de algo ou dealguém era estabelecido na relação com Ele. O espaço eo tempo “geo-gráficos” eram visto sem grandes dificulda-des como espaço e tempo “teo-gráficos”, graças à contí-nua referência a Deus que permitia ao ser humano orien-tar-se e encontrar o sentido da vida.3 No interior destacultura, uma determinada prática teológica freqüente-mente se esqueceu da relatividade de suas afirmações eda historicidade da verdade, o que conduziu muitosteólogos a uma postura intransigente, marcada pelaconvicção de possuir definitivamente a verdade.

Com base na perspectiva histórica, pode-se afir-mar igualmente que religião é um termo elaborado peloOcidente, em decorrência das sistematizações teóricas edos conflitos ideológicos que marcaram um longo pro-cesso de elaboração cultural. Neste processo, a Teologiacristã teve um papel fundamental, uma vez que seu méto-do forneceu a gramática da linguagem utilizada para di-zer uma determinada visão de mundo e de Deus, que,com o passar do tempo, veio a ser hegemônica. Nesta es-truturação do pensamento ocidental, a perspectiva cristãnão raramente adotou uma forma hierarquizante paraidentificar as práticas internas da Igreja a fim de distin-

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3 VÁZQUEZ, Ulpiano, Pequenos avisos sobre a orientação espiritual, p. 55-9.

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gui-las de outras práticas religiosas. Por isso, gradativa-mente, tornou-se comum no Ocidente a distinção entre averdadeira e a falsa religião, ou seja, entre o monoteísmocristão e as outras formas de religiosidade, ditas pagãs.

Todavia, hoje, estamos distantes, e uma distânciasecular, daquele mundo no qual a teologia era a ciênciapor excelência que fornecia a gramática da linguagemusada para compreender o mundo e o ser humano, apartir da divindade. Este mundo ruiu, seu fundamento foiabalado pela mutação cultural provocada pelo antropo-centrismo moderno que trouxe como consequência umacrise de identidade para a própria teologia. Da solidez deum sistema tomista, que via a realidade de forma unitáriae totalizante do ponto de vista da fé cristã, a teologia pas-sou ao desconfortante lugar no meio de uma cultura mo-derna fragmentada. Além disso, a passagem de um mun-do a outro, do teocêntrico ao antropocêntrico, não foiapenas uma questão semântica, mas sobretudo signifi-cou, dentre tantas outras rupturas, a redução do exercícioda teologia à formação dos quadros da estrutura eclesiásti-ca: padres e pastores.

Todavia, hoje, a presença da teologia no contextouniversitário, ao menos como ciência que se dedica aoestudo da religião, requer um distanciamento deste mo-delo teológico, uma vez que tal modelo não corresponde

mais ao novo contexto histórico com o qual o discurso teo-lógico é chamado a dialogar. Um dos grandes desafiosque se impõe hoje ao exercício teológico, em diálogocom outras formas de saber, é o de “dizer Deus” numcontexto (pós-moderno?!) no qual se insiste em criticar avã pretensão de se descobrir uma verdade universal pormeio de esforços racionais. Para o chamado pensamentopós-moderno, não é mais possível conceber um centrode referência, seja Deus (mundo teocêntrico), seja o pró-prio ser humano (mundo antropocêntrico). Em outraspalavras, se para a modernidade a luz da razão humanaofuscara “a verdadeira luz que, vindo ao mundo, iluminatodo homem” (Jo 1,9), para a pós-modernidade ambasas luzes se extinguiram.

No caso específico da teologia cristã, a diversidadeda prática religiosa que encontramos hoje no Brasil ques-tiona alguns dos fundamentos do cristianismo e, portan-to, a maneira de fazer teologia sob a perspectiva cristã.Em parte, porque não parece ser mais viável o exercícioda teologia sem o respeito à dignidade das outras reli-giões, sobretudo daquelas que não possuem a tradiçãojudaico-cristã como matriz fundadora.

Além disso, a ligação congênita entre teologia e es-tudo da religião é cada vez mais questionada, uma vezque este estudo é igualmente reivindicado por outras for-

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mas de saber que não raramente lançam um olhar desuspeita sobre a reflexão teológica. Não porque o pensa-mento moderno tenha rejeitado a religião como objetode estudo, como assunto da ciência, mas porque, para achamada ciência moderna, a religião não é mais um as-sunto teológico propriamente dito, e sim antropológico,ou seja, religião, e tudo o que a ela se relaciona, interessaà ciência como expressão cultural do ser humano: aliena-ção, doença, projeção, degeneração, fuga da realidade,fanatismo, busca de sentido etc.

Ainda que o percurso desta reflexão esteja delimi-tado pelo papel da teologia no estudo da religião, nãopodemos esquecer que, para além desta fronteira, existeuma discussão anterior e mais abrangente: O que vem aser ciência no contexto acadêmico? A resposta a estaquestão é de grande importância, pois a pertinência dodiscurso teológico e a sua validade pública dependem emparte da noção de ciência que venha a ser usada comoparâmetro para definir quem merece ou não o statuscientífico no estudo da religião.

Historicamente, a inadequação científica da teolo-gia aos olhos da ciência moderna está em parte no recur-so à imaginação e à experiência religiosa que não se exau-

re na visualização e na sistematização das análises do ob-jeto estudado. A questão é que este recurso não é somen-te uma condição prévia da tarefa teológica, mas funda-mento da narratividade que lhe é própria, caracterizadapor uma linguagem construída com base em mitos, ritos,símbolos e práticas religiosas. Nem sempre, porém, aprática teológica, teve plena consciência deste seu funda-mento e, por vezes, deixou-se seduzir por um discurso cu-jas bases estavam firmadas em uma metafísica essencia-lista da tradição filosófica ocidental, discurso que tomouDeus por verdade ontológica e que começou a ruir sob oimpacto do pensamento moderno. Ao desmoronar a me-tafísica tradicional, diante do tremor sísmico provocadopela modernidade, com ela veio abaixo parte do edifícioteológico alicerçado na tradição cristã.4

A história do pensamento ocidental mostra-nosque a relação entre a ciência moderna, empírico-formal,e a fé religiosa evoca automaticamente a história de umlongo conflito e nomes como os de Galileu, Darwin,Hume, vêm freqüentemente à memória. Uma mentalida-de de corte positivista, ainda presente em diversos con-textos acadêmicos, tende a apresentar ciência e fé comoposições irreconciliáveis, a ver a relação entre ambas

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4 GEFFRÉ, Claude, La crise de la raison métaphisique, p. 465-83.

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sempre sob a ótica do conflito. Talvez o choque inicial en-tre ambas fosse inevitável, haja vista que a irrupção daciência moderna no mundo ocidental significou umagrande mudança de paradigma cultural.5

Aos poucos, os imensos benefícios proporciona-dos pelos avanços tecnológicos fizeram a ciência moder-na posicionar-se como via obrigatória para a apreensãodo real desde a sua estrutura empírico-formal, a tal pontoque muitos passaram a acreditar que fora dos paradig-mas desta ciência reinava o mito, a cultura infantil, a fan-tasia, o irreal, o irracional, o não-objetivo.6 Em outras pa-lavras, para a ciência moderna não há mistérios, masproblemas a serem claramente formulados, investigadose resolvidos. Para este tipo de mentalidade, os enuncia-dos da fé religiosa e da teologia não possuem consistên-cia por carecerem de uma base empírica, eliminando dafé a razoabilidade e conseqüentemente a possibilidadedo conhecimento.

A oposição a esta nova mentalidade não vinha so-mente do âmbito religioso, mas foi sem dúvida na reli-gião, mais propriamente em instituições poderosas comoas igrejas cristãs que viam seu poder, sua legitimidade e a

verdade de seus enunciados colocados à prova, que a re-sistência aos novos valores trazidos pela ciência modernatornou-se maior e às vezes mais violenta. Entretanto, estarejeição da religiosidade e a imposição de um determina-do modelo epistemológico ignora o fato de que tanto a féreligiosa como a religião são experiências antropológicasque se expressam por meio de um outro tipo de lingua-gem que não aquela das ciências modernas, e que nempor isso falseiam a realidade. Em outras palavras, a fé e areligião interpretam a realidade e dizem-na por meio deuma linguagem simbólica, metafórica.

Não é meu intuito entrar nos pormenores destahistória, mas sim, baseado nas conseqüências do encon-tro com a ciência empírico-formal, buscar uma melhorcompreensão do trabalho teológico na interpretação daexperiência religiosa, notadamente da religião cristã, a fimde mostrar que, para além do conflito que durante séculoscaracterizou a relação entre a teologia, a ciência (moder-na) e a religião, as ciências humanas que se dedicam aoestudo da religião, inclusive a teologia, possuem uma di-mensão antropológica de base fiducial que as aproxima eque reclama um constante ato de interpretação.

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5 Sobre este tema ver a obra de Thomas Khun, intitulada A estrutura das revoluções científicas.6 RAHNER, Karl,Teologia e ciência, p. 38.

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Como nos lembra a história da evolução do pen-samento científico no Ocidente, a crise da modernidadeeuropéia é também a crise do paradigma que colocacomo o único fundamento do saber científico a capacida-de de medir, observar e quantificar o objeto de estudo,ou seja, a delimitação do que é científico ao campo visual(esquema, lista, diagrama). Assim sendo, a distinção bá-sica que possibilita a classificação de uma forma de saberem científica ou não-científica está em permitir ou não aabertura a outros sentidos além da visão.7 Hoje, esta cir-cunscrição do saber científico a basicamente um sentidoé profundamente questionada. Questiona-se, por exem-plo, a idéia de que qualquer forma de saber que não sejacapaz de observar, medir e quantificar o seu objeto de es-tudo não possa ser qualificada como ciência. Ou ainda,que o discurso da chamada ciência experimental seja oúnico método capaz de se aproximar da realidade emdetrimento de outros discursos (poesia, mito, crenças...),que são constantemente reduzidos à insensatez, à falta desentido.

Como sabemos, constava do projeto iluminista asuperação da religião em nome do progresso da humani-dade, progresso este que se manifestava, em parte, na

autonomia e na tolerância universal. Todavia, a crençano progresso ilimitado da humanidade, fruto das inúme-ras conquistas proporcionadas pelo desenvolvimento dasciências experimentais, com o passar do tempo mos-trou-se ambíguo. Guerras, conflitos sociais, o abismo en-tre países ricos e pobres, a desigualdade no interior daspróprias nações e o fato de boa parte da humanidade sermuito mais vítima do que beneficiária do progresso técni-co–científico colocaram a racionalização ocidental sobsuspeita. Por mais que ilumine a nossa razão, a racionali-zação ocidental não é de todo evidente e sensata paratoda e qualquer razão, ou seja, trata-se de uma racionali-zação que possui seus limites. Afinal, a sua evidência estávinculada a contextos históricos e culturais bem determi-nados, e, como tal, não pode ser compreendida por todaa humanidade.

Além disso, a modernidade que combatera a fé re-ligiosa em nome da razão, que a destituíra de sua dimen-são social, reduzindo-a a esfera do privado, do mito, domágico ou a uma etapa infantil da humanidade, conside-rando-a resquício de um atraso cultural e de contradiçõeseconômicas, não conseguiu, por sua vez, instaurar o pa-raíso sobre a terra mediante a imposição de uma raciona-

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7 WESTHELLE, Vítor, Outros saberes, p. 264.

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lidade instrumental e prática como baluarte de toda ver-dade. Estes limites impostos à racionalidade modernanão nos devem fazer esquecer que a religião igualmente échamada a reconhecer seus limites e suas patologias, dei-xando-se purificar e organizar novamente seu universoconceitual à luz da razão humana, a qual não se restringeà racionalidade ocidental, técnico–científica. Desse modo,a discussão acerca dos fundamentos da religião, comoato humano ou desumano, não pode limitar-se ao uni-verso cristão e tampouco a uma determinada tradição ra-cional, que, durante séculos, se impôs culturalmente nahistória do Ocidente.

Em resposta a estes questionamentos, o postuladohermenêutico ganha espaço na pesquisa científica, ouseja, a ciência passa a ser vista como um ato construtivode interpretação da realidade. Esta forma de conceber aciência encontra-se em íntima relação com a suspeita quese abate sobre a centralidade outrora concedida à media-ção empírica, ao dogma da objetividade e à pressuposi-ção da neutralidade do pesquisador na análise de seu ob-jeto de estudo. O ato de pesquisar é interpretativo, situa-do num contexto histórico e atende a interesses determi-nados. Em outras palavras, a pesquisa científica não serestringe aos aspectos formais, supondo igualmente as-pectos existenciais, por estar inserida num quadro

referencial que pressupõe complexos processos culturais,formados por jogos ideológicos e por interesses pessoaise sociais.

Este quadro referencial requer um processo her-menêutico que não se esgota na mediação empírica, naobjetividade da pesquisa e tampouco na neutralidade dopesquisador, como referenciais absolutos. Por isso, o lo-cus hermenêutico de quem se dedica ao estudo da reli-gião, por exemplo, não indica rigor ou falta de rigor, massomente esclarece desde onde se interpreta esta realida-de. Além disso, o estudioso da religião deve estar ciente deque está diante de uma realidade profundamente comple-xa, que escapa à abordagem de uma única ciência.

Do ponto de vista teológico, esta dimensão her-menêutica coloca-nos diante da necessidade de se distin-guir entre uma teologia confessional voltada principal-mente para os interesses eclesiais e uma teologia igual-mente confessional, todavia dedicada à compreensão dareligião, das manifestações espirituais da cultura e do pa-pel das práticas religiosas no contexto social, sempre emdiálogo com outras ciências que estudam a religião. Taldistinção não significa que uma teologia seja mais cientí-fica do que a outra, mas apenas que uma e outra nature-zas teológicas possuem interesses e objetivos diferentes.O discurso teológico sobre a religião estaria, pois, para

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além das definições dogmáticas, na contínua busca deperceber as dinâmicas da linguagem religiosa no cotidia-no, nos códigos vitais que ajudam a dar sentido à existên-cia humana, no interior da cultura. Contudo, estar paraalém das definições dogmáticas não significa abandonaro dogma, mas sim a postura dogmática que nada maisfaz do que buscar na Escritura e na Tradição a confir-mação do que já fora previamente definido pelo magisté-rio eclesiástico.

Além dessa distinção, uma questão de outra natu-reza se impõe à prática teológica, visto que seu problemanão é somente o confinamento eclesiástico, mas diz res-peito igualmente a uma herança que coloca as ciênciassob o juízo da teologia, dentro da Igreja. Hoje, a teologiaé convidada a justificar a sua pertinência ao lado de ou-tros saberes que igualmente exigem a sua cidadania aca-dêmica. A teologia é chamada a ser um saber ao lado deoutros saberes e não mais “a” ciência diante da qual to-das as outras têm que se justificar. No que diz respeito aoestudo da religião, a teologia é um dos olhares que avêem de uma perspectiva particular.

Assim como nenhuma perspectiva esgota o queporventura se possa dizer da religião, a experiência religio-sa, por sua vez, não se diz totalmente numa única formahistórica de religião e institucionaliza-se em torno de mo-

tivos transreligiosos que nos reenviam, apesar de sua tex-tura religiosa, a motivos mais globalmente humanos. To-das as religiões tomam estes motivos e os inscrevem nasorganizações que lhes são próprias em função de regis-tros comuns, o que equivale dizer que as religiões não seconstituem somente como um conjunto organizado dosfenômenos religiosos, mas se estruturam também de umarelação determinada com o cultural e o social. Em outraspalavras, a religião possui uma dimensão eminentemen-te antropológica e como doadora de sentido é um convi-te à interpretação feito a distintos pontos de vista, pois, nalinguagem religiosa, símbolos e metáforas se entrelaçamcomo fios de uma trama que tecem o texto de uma cultu-ra fundamentado em um contexto histórico e em umatradição determinada.

Dois projetos de teologia: F. Schleiermachere J. L. Segundo

Uma vez realizada a composição de lugar combase na qual me situo para discorrer sobre o papel da teo-logia no estudo da religião, gostaria de abordar de formasucinta dois projetos teológicos que, a meu ver, fornecemum significativo referencial teórico a esta reflexão. Proje-

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tos que marcaram profundamente a prática teológica,um no contexto protestante, inicialmente europeu, e ou-tro no ambiente católico, notadamente latino-americano.Todavia, trazer para o espaço desta reflexão a contribui-ção de Friedrich Schleiermarcher (1768-1834) e de JuanLuis Segundo (1925-1996) comporta um duplo perigo:para os que conhecem seus métodos teológicos, temo serrepetitivo e superficial; para quem ambos os projetos sãodesconhecidos talvez o que se dirá a seguir seja demasia-damente abstrato. Todavia, vale o risco, sempre o riscoda interpretação.

A princípio, aproximar-se do pensamento teológi-co de Schleiermacher pode parecer algo estranho se le-varmos em conta a distância secular que nos separa desteteólogo protestante. Entretanto, a atualidade de seu pen-samento se mostra algo fecundo para a reflexão sobre aatual relevância do estudo teológico da religião. Em par-te, porque seu método teológico tem como pano de fun-do o diálogo com pessoas eruditas, acadêmicas ou não,que estavam imbuídas do espírito iluminista e que, devi-do a esta postura, menosprezavam a religião e conse-qüentemente desdenhavam da tarefa teológica. Alémdisso, por ser intenção de seu projeto teológico manter e

ampliar o lugar da religião, da fé cristã e da teologia na cul-tura moderna ilustrada. Não menos significativo é a defini-ção de religião proposta por Schleiermacher, profunda-mente arraigada na natureza humana e intimamente liga-da à idéia de autonomia proposta pelo Iluminismo, e ain-da hoje reivindicada pela cultura ocidental.

Um dos aspectos relevantes do projeto teológicode Schleiermacher leva-nos a repensar a tendência tipi-camente moderna – inclusive de algumas perspectivas teo-lógicas – de estudar a religião, colocando entre parêntesesa experiência do Sagrado (do Infinito) que a constitui. Anão-aceitação deste deslocamento ou a consideração daação do Infinito na realidade finita representa a expres-são consciente de uma recolocação da teologia numacultura moderna em transição (séculos XVIII e XIX) queacreditava ter alcançado a maioridade pelo uso da razãoe que, portanto, se atrevia a pensar baseada em si mes-ma, nas experiências e nos valores humanos. Nesta cultu-ra parecia não haver mais lugar para Deus, e pensadoresligados ao idealismo alemão, como, por exemplo Fichte,colocavam sérias dúvidas quanto à possibilidade de exis-tir um lugar para a teologia na universidade.8 Por isso, aimportância de Schleiermacher para o contexto teológico

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8 DREHER, Luis H, O método teológico de Friedrich Schleiermacher, p. 37.

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consiste, de certa maneira, no fato de ele ter sido um dospioneiros na tarefa de repensar o empreendimento teoló-gico num contexto marcado pela hostilidade oriunda dopensamento ilustrado.

Em sua obra Sobre a religião, Schleiermachercomeça o seu discurso sobre “A essência da religião”com uma pergunta ampla e abrangente: O que é reli-gião? Tal indagação lhe permite fazer uma primeiraadvertência:

A religião(...)há de recusar a tendência a estabelecer se-res e a determinar naturezas, a perder-se em uma infini-dade de razões e deduções, a investigar as últimas cau-sas e a formular verdades eternas (...)A religião(...)nãodeve servir-se do universo para deduzir deveres, ela nãodeve conter nenhum código de leis9.

Essa perspectiva teológica toma distância dos teó-ricos que procuram indagar sobre a natureza do Universoe a essência de um Ser supremo, afasta-se igualmentedos práticos que colocam a vontade de Deus como algofundamental na religião, e opõe-se à redução da religiãoao âmbito de doutrinas racionais e morais acerca deDeus. Isso porque a religião não é ciência e tampouco é

moralidade, sendo seu solo natural o ser humano, maisprecisamente seus sentimentos. A rejeição da postura demetafísicos e moralistas, abre um outro caminho que levaa definir a religião como intuição e sentimento.10

Esta definição que tem por pressuposto a presençado Infinito, na realidade finita, ou ainda, a possibilidadeda ação de Deus no ser humano, o que se configura emuma nítida rejeição da tentativa de tornar a idéia de Deuscativa dos novos paradigmas oriundos da noção de ciên-cia moderna que provocou o deslocamento da religiãopara o âmbito da razão especulativa e da moral. Na óticade Schleiermacher, este deslocamento significava renun-ciar ao específico da religião que não se confunde nemcom a moral, nem com a metafísica, e não só não se con-funde como é independente de ambas, afinal a religiãonão quer explicar o universo (metafísica) e tampouco de-seja aperfeiçoá-lo (moral), mas sim intuí-lo. Assim, cha-mar de religião a uma mescla de opiniões sobre o Ser su-premo ou acerca de obrigatoriedades relativas à vidahumana, opiniões quase sempre definidas pelas autori-dades eclesiásticas, é tomar um caminho que nos afastada essência mesma da religião.

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9 SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião, p.29-30. O que hoje freqüentemente se entende por religião, nos escritos de Shcleiermacher equi-vale à expressão religião positiva, ao passo que experiência religiosa se aproxima da sua idéia de religião.

10 Idem, ibidem, p. 33.

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Schleiermacher estava convencido da possibilida-de de o Infinito atingir nossos afetos e, portanto, provocarem nós o sentido e o gosto por ele. Essa perspectiva valo-riza o humano, sem se tornar cativa do pensamento mo-derno e ao mesmo tempo percebe a religião como auto-consciência imediata da presença do Infinito no finito. Énesta faculdade particular do espírito humano, o senti-mento, que surge a religião como algo constitutivo detoda a vida humana. A experiência do Infinito é, pois,sentimento que implica consciência da absoluta depen-dência de Deus, é a experiência de não se sentir a origemde si mesmo, uma vez que na religião o ser humano temconsciência de suas próprias limitações, da facticidade eda relatividade da sua existência e de vincular todos osafetos a Deus. Este sentimento torna-se parte integrantede toda a autocompreensão (autoconsciência) humana,afinal a dimensão absoluta da dependência de Deusdiz-nos que esta relação não define a pessoa somente emum determinado aspecto de sua existência, mas a pessoacomo um todo. Do ponto de vista antropológico (cristão),essa é a relação fundamental que abarca as demais rela-ções humanas e que ajuda a melhor definir o ser huma-no. A religião é, pois, concebida como a autoconsciênciade um “ser-em-relação”, relação do finito com o Infinito eessa relação, como algo constitutivo do ser humano, diz

respeito ao todo de sua existência. Uma relação que é naverdade um dado, uma oferta, e não uma mera conquis-ta humana, especulativa ou prática. Todavia, a absolutadependência não significa total passividade ou totalausência de liberdade, pois da parte do ser humanosignifica acolher livremente algo que lhe é ofertado, masque pode ser rejeitado.

Embora seja uma realidade infinita, incomensurá-vel, a religião deve possuir um princípio de individualiza-ção que possibilite a sua manifestação de diferentes ma-neiras, por meio de figuras mutáveis e historicamente si-tuadas, o que alguns chamam de religiões positivas. Ahistória das religiões continua em movimento, podendoproduzir novas formas positivas da religião que transfor-mariam o cristianismo histórico em algo do passado. Porisso, a religião cristã não pode pretender uma exclusivi-dade única e tampouco um caráter definitivo que abar-que todos os tempos. Para Schleiermacher, a antipatiacultivada em sua época era na verdade muito mais umaaversão a qualquer Igreja ou a qualquer forma de organi-zação religiosa que tivesse a intenção de transmitir areligião como sua propriedade exclusiva, do que pelareligião em si mesma.

Segundo Schleiermacher, o problema religiosofundamental para a modernidade é que a religião foi in-

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terpretada como saber, como conhecimento da divinda-de. Todavia, para ele, religião está na ordem da expe-riência imediata de Deus como disposição inata do serhumano para a relação com o Infinito, percebido da nos-sa finitude. A religião é, pois, afeição e receptividade,imediatidade e auto-experiência, e no que diz respeito aoestudo da religião, somente podemos compreender anossa relação com Deus, e não a realidade transcendentede Deus em si mesma.

A maneira de compreender a religião para Schleier-macher é aquela de uma unidade indissolúvel com a hu-manidade, sem, contudo, proceder de uma concepçãoreducionista da humanidade que nega a transcendênciana religião. A experiência do Infinito no finito faz da reli-gião uma característica fundamental do ser humano, ja-mais captada por completo, que o remete para além de simesmo ou de uma “simples” relação contingente. Issoporque a religião é fundamentalmente relação com oTranscendente que se passa no humano, não sendo a re-ligião, para essa perspectiva teológica, um estado passa-geiro no ser humano, pretérito de uma cultura, e tampou-co totalmente estranho ao ser humano, mesmo que essa

experiência comporte sempre uma novidade. Essa incli-nação natural expressa um profundo otimismo antropo-lógico que, ao contrário do pensamento moderno, enten-de a experiência religiosa como desdobramento da expe-riência humana, na qual se revela uma realidade trans-cendental e se produz determinada consciência da divin-dade.11 Na medida em que é elevada a conceito, essa ex-periência produz um discurso teológico, uma reflexão so-bre o discurso humano que fala de Deus.

Assim, o exercício da teologia consiste em ofereceruma descrição clara e vivificante de uma experiência in-terior comum, ou seja, a teologia é a clarificação de umaexperiência existencial concreta: o ponto de partida dotrabalho teológico é a experiência de fé de diferentes pes-soas em distintas situações. No lugar de uma teologia dostratados, temos uma teologia que parte das experiênciashumanas e essa maneira de se conceber a teologia tomadistância do aprisionamento monolítico que ameaçava areflexão teológica, ao se atrelar a teologia aos dogmas eaos interesses particulares dos representantes eclesiásti-cos. Para Schleiermacher, mesmo que a teologia tenhapor ponto de partida as experiências humanas dos cris-

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11 Por isso, um século e meio mais tarde, em continuidade a este pensamento, Karl Rahner fez a pergunta sobre as estruturas antropológicas que pos-sibilitam o ser humano acolher a automanifestação de Deus.

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tãos, dificilmente uma reflexão teológica poderá percebero valor de tais experiências, caso ela continue cativa deuma linguagem e de um conteúdo previamente definidospelas autoridades eclesiásticas.

Ao tomar a experiência religiosa como desdobra-mento da experiência humana e como a experiência quefornece o instrumental lingüístico para a tarefa teológica,Schleiermacher propõe um critério profundamente an-tropocêntrico que se distingue metodologicamente dametafísica que parte de um conceito de Deus e de umaética teológica, que tem por fundamento a idéia de lei deDeus. Além do que, esta opção metodológica se aproxi-ma do ethos do Iluminismo ao trabalhar com a idéia deautonomia e humanidade no interior da religião. Auto-nomia, porque a religião é apresentada como uma reali-dade inicialmente autônoma ante a razão, as leis e as au-toridades eclesiásticas. Humanidade, no sentido de que areligião brota do interior do próprio ser humano, comoaquilo que o constitui.

Esta aproximação entre a teologia e a religião pas-sa inevitavelmente pela compreensão daquilo que se

convencionou chamar de “arte e técnica da interpreta-ção”: a hermenêutica.12 E para Schleiermacher interpre-tar é na verdade o modo de ser humano, algo que não serestringe somente a uma dimensão da vida, mas diz res-peito à vida como um todo. Insatisfeito com o estado dahermenêutica em sua época, Schleiermacher propôs-se aorganizar as regras da hermenêutica a fim de fazer delauma “arte verdadeira”. Para ele, a hermenêutica é umaciência geral, sendo seu projeto contextualizar as herme-nêuticas regionais numa hermenêutica geral, destacandoo caráter universal da interpretação. Para esta concep-ção, a hermenêutica não se caracteriza como uma disci-plina auxiliar de algumas ciências, e sim como a arte decompreender em geral.

Apesar de alguns aspectos da obra teológica deSchleiermacher não se aplicarem à atual reflexão sobre oestudo da religião, o seu projeto teológico, no final do sé-culo XVIII, deu início a uma nova era tanto para os estudosteológicos quanto para a interpretação científica da reli-gião. Talvez não seja nenhuma imprecisão afirmar queuma de suas grandes contribuições para o estudo teológi-

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12 Schleiermacher nunca deu uma forma sistemática a seus escritos sobre hermenêutica. Todavia, em 1959, Heinz Kimmerle, sob a orientação deH-G Gadamer, publica um livro intitulado Hermenêutica (Hermeneutik), no qual reúne os escritos de Schleiermacher que abrangem o períodoentre 1805 e 1833. O desenvolvimento de sua reflexão sobre a arte da interpretação confere a Schleiermacher o título de fundador da herme-nêutica moderna.

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co tenha sido o fato de haver deslocado a compreensãoda religião do contexto de uma mera construção culturalpara a dimensão antropológica, concebendo a religiãocomo uma estrutura fundamental que faz parte de toda avida humana. Em outras palavras, a religião existe por simesma e não por permissão ou benevolência da ciência,sendo o seu estudo dinamizado pela atitude hermenêuti-ca que caracteriza tanto a teologia como as demais ciên-cias humanas. É justamente este caráter antropológico eo empreendimento hermenêutico da teologia que um sé-culo e meio mais tarde, num outro contexto, tomado pordiferentes problemas, fundamentariam a reflexão de umoutro teólogo: Juan Luis Segundo.

Em sua obra intitulada O dogma que liberta, Se-gundo define de forma sucinta o seu trabalho teológico:

o que de mim se exigia era a progressiva formação de ummodo cristão e global de pensar que pudesse lançar luz so-bre uma realidade complexa, na qual a fé de um grupo(preferentemente) de leigos se achasse comprometida.13

Dessa forma, a teologia surge como a busca desentido para a existência humana, ou ainda, consiste emajudar o ser humano a ser mais humano, falando-lhe deDeus, do Deus que se revela. A teologia deve, pois, aju-

dar o fiel a melhor compreender a sua fé em sintonia coma sua vida e a sua história, ou dito em termos neotes-tamentários, deve ajudar as pessoas a darem razão desua esperança (1Pd 3,15).

Uma das riquezas da reflexão teológica de J.L.Se-gundo está no esforço em demonstrar a impossibilidadede uma ciência neutra, afinal toda ciência está a serviçode uma escala de valores, e isso é profundamente huma-no. Não existe pesquisa, por mais objetiva que pretendaser, que não seja realizada fundamentada em um hori-zonte de interesses. Conhecer é sempre interpretar, e aestrutura hermenêutica de toda forma de saber faz-nosentrar com nossos paradigmas e categorias na interpre-tação do objeto de nossa experiência ou pesquisa. O serhumano não é pura razão, pois está inserido numa his-tória, sendo movido por interesses pessoais e coletivos.Todos nós precisamos de um sistema de referencialida-de para organizar nossos valores e orientar nossa exis-tência, o que exige inicialmente um ato de fé, entendidocomo uma dimensão antropológica fundamental, querse tenha uma religião ou não. À semelhança de Schlei-ermacher que concebe a religião como uma experiênciafundamentalmente antropológica, J.L.Segundo faz da fé

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13 SEGUNDO, Juan Luis, O dogma que liberta, p. 26.

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religiosa caso particular de uma dimensão antropológicauniversal.

Nesta visão antropológica, as informações queaceitamos como válidas sem uma verificação empíricaimediata é o que podemos denominar de dados trans-cendentes. Trata-se de informações não demonstradasempiricamente que nos chegam por via testemunhal eque aceitamos como verdadeiras por atenderem às nos-sas expectativas e também por serem transmitidas por al-guém em quem confiamos. E isso vale para todo cientis-ta, quer ele tenha uma fé religiosa ou não.14 Esses dadossão transcendentes não porque falam de Deus ou por setratar de uma linguagem estritamente religiosa, ou ainda,por se referirem a uma dimensão ou ser que transcenda arealidade, mas sim porque são dados a serem considera-dos como válidos ainda que a sua comprovação empíricanão nos seja possível num primeiro momento. Assim,“pode-se ser honrada e coerentemente ateu e, não obs-tante, sempre será mister estabelecer como válidos dadosque não se podem verificar empiricamente”15. Algo ine-rente até mesmo às chamadas ciências experimentaisque têm a mediação empírica como uma dimensão cen-tral de sua estrutura epistemológica.

Isso porque não existe um saber puramente desin-teressado ou livre de ideologias. A ciência moderna cons-titui-se num ato reconstrutivo de interpretação da realida-de, ao qual está associado um sistema referencial elabora-do baseado em jogos ideológicos, conflitos de interesses,crenças e convicções pessoais, objetivos formais e existen-ciais, bem como em condicionamentos históricos do mé-todo empregado no processo de produção científica. Essesistema referencial não está voltado somente para verda-des formais, mas, sobretudo, para afetos construídos narelação com princípios herdados, uma vez que inicialmen-te aceitamos tais princípios pelo fato de serem transmitidospor pessoas com as quais estabelecemos uma relação fidu-cial, por pessoas nas quais temos fé, no sentido antropoló-gico do termo. É esta fé antropológica que nos permiteacolher ou rechaçar determinado mundo de valores quetomam corpo em pessoas que, por sua vez, se apresentama nós como testemunhos referenciais.

Assim sendo, podemos dizer que todo ser humanonecessita de testemunhos referenciais para articular seumundo de valores, os quais são oferecidos pela socieda-de e exigem um ato de fé, pois não podemos experimen-tar até as últimas conseqüências todos os valores que irão

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14 Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, p. 31; 92.15 Idem, ibidem, p. 215.

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fundamentar a nossa existência antes de nos decidirmospor eles. Não sabemos por experiência própria o quãosatisfatório será o caminho por nós escolhido, pois a nos-sa escolha implica uma aposta, sendo a idéia de um ca-minho satisfatório construída das experiências alheias,não comprovadas previamente por nós16. A fé como umadimensão antropológica significa que ela é constitutivado ser humano, representando uma aposta existencial efazendo da sua verificabilidade última uma instância es-catológica. Assumo algo como verdadeiro ainda que nãoo possa verificar empiricamente, por enquanto. Trata-sede uma reapropriação pessoal de valores simbolicamentemanifestos no ambiente cultural por outras pessoas.

Por isso, tanto o ateísmo como o teísmo, de certamaneira, ultrapassam aquilo que pode ser comprovadocientífica e empiricamente, ou seja, se crer em Deus éuma aposta, igualmente o é a negação da sua existência.Mesmo o materialismo, sobretudo o histórico, necessitade elementos da fé antropológica que não podem vir daprópria ciência. O sucesso da análise marxista da realida-de, por exemplo, não está somente no seu rigor científico,mas também no sentimento de esperança suscitado nos

leitores de Marx, e este sentimento não pode ser compro-vado só por meio do método empírico-formal. A espe-rança numa sociedade justa é uma aposta e leva-nos aacreditar em algo que de imediato ultrapassa a comprova-ção empírica.

O ponto de partida da fé antropológica é a pes-soa individual, mas ela somente pode ser elaboradado tecido social no qual estamos inseridos e na rea-propriação pessoal de valores simbolicamente mani-festos no ambiente cultural por outras pessoas que nosservem de referência. Isso leva a fé antropológica auma aposta existencial que não se confunde com umpasso cego no escuro, pois a opção que tal fé comportasomente é possível graças ao testemunho de pessoasque nos ajudam a valorar, a dar sentido à própria vida.Assim, a fé antropológica, antes de se expressar nocampo religioso e de se exprimir no campo conceitualda teologia, traz em si mesma uma estrutura fiducialque fundamenta nossas escolhas, as quais limitam e rea-lizam nossa liberdade: todos nós, crentes ou não, cons-truímos nossa escala de valores, inicialmente confian-do em outras pessoas.17

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16 Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, p. 117.17 Idem, A libertação da teologia, p.115.

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É esta fé antropológica, que, sem deixar de sê-la,transforma-se em fé religiosa. A religiosidade desta di-mensão antropológica nos diz que pessoas como nós vi-veram determinados acontecimentos históricos como re-velação de Deus, querendo distingui-los de outros acon-tecimentos ordinários, e encarnam valores que dão senti-do à existência humana18. Por isso, por meio da fé religio-sa, não se trata de declarar a aceitação de normas e dog-mas, e sim aceitar uma proposta existencial apresentadae encarnada numa pessoa concreta. A fé cristã é a aceita-ção dos valores que Deus propõe na pessoa de JesusCristo, e isso acontece pelos caminhos da história,marcada por conquistas, esperanças e dilemas humanos.

A fé religiosa determina, pois, valores fundamen-tais naqueles que a aceitam, e na religião cristã esses va-lores ganham maior visibilidade com a proximidade doReino de Deus proclamado por Jesus Cristo, proximida-de que provoca uma metanóia, uma modificação radicalna escala de valores (Mc 1, 14-15). A fé religiosa edifica-da da fé antropológica surge como fonte de uma nova es-trutura significativa e deve dar soluções humanas a ques-tões humanas, desde um processo que J.L.Segundo cha-

ma de aprender a aprender: “depositamos a fé humananaqueles que souberam manter certos valores, basica-mente semelhantes aos nossos, aprendendo a realizá-losapesar de mudanças, incertezas e fracassos”19. Aprendera aprender com pessoas que vivem esses valores emdeterminadas situações que são tidas como revelação deDeus.

Do ponto de vista cristão, é a revelação que con-verte a fé antropológica em fé religiosa, a qual continua adesempenhar a mesma função básica, qual seja, estrutu-rar uma escala de valores que dá sentido à existência hu-mana. A revelação de Deus não cai do céu, mas brotadas experiências humanas cuja textura é sempre umapelo à interpretação, e esta concepção de revelaçãonos afasta da idéia de que a fé se tornaria religiosa quan-do abandonássemos as testemunhas humanas paraapoiar-nos exclusivamente na autoridade de Deus, ouseja, deixar os sinais dos tempos para fixar nossos olharnos sinais dos céus (Mt 16,1-4).

Do ponto de vista cristão, podemos afirmar queDeus, em sua liberdade infinita, decidiu revelar-se pormeio de sinais dos tempos e não de sinais dos céus, o que

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18 Idem, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, p. 79.19 Idem, ibidem, p. 96.

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faz do trabalho teológico abertura aos problemas mais ur-gentes da humanidade. Não podemos crer em Deus se-não a partir de um compromisso com a história humana,suas vicissitudes, seus dramas, suas alegrias, suas espe-ranças. E crer em Jesus como o Cristo supõe que tenha-mos fé naqueles que o conheceram, interpretaram e nostransmitiram sua crença nele, uma vez que não possuí-mos um acesso direto à sua vida e à sua palavra. O “eucreio” da fé pessoal supõe o “nós cremos” da tradição, eos relatos sobre Jesus são sempre atos interpretativos enão testemunhos objetivos.

Crer em Deus é uma experiência profundamentehumana que não anula a nossa liberdade. Crer é inter-pretar, é decidir, é assumir determinadas posturas nacomplexidade do real, de maneira razoável. Daí que tan-to a fé religiosa de um fiel quanto a fé antropológica deum ateu possuem uma estrutura antropológica comum: abusca por sentido, a organização da vida em torno deuma escala de valores e a necessidade de testemunhosreferenciais.

Apoiado na dimensão antropológica da fé religio-sa e na perspectiva hermenêutica inerente à própria reve-lação divina, o discurso teológico configura-se na possibi-

lidade de afirmarmos o valor da vida humana sob a pers-pectiva da fé cristã. Esta postura metodológica conduz ateologia a não ter Deus por objeto material, isto é, a nãopartir de Deus para falar do humano, ao contrário, amensagem divina ser interpretada com base em toda equalquer realidade humana. E ao se inserir no chamadoantropocentrismo teológico, J.L.Segundo entende que apresença de Deus na história não é uma concorrente ourival do ser humano, mas uma graça que fundamenta asua ação criadora como construtora de história. E mais,as verdades de fé existem hoje somente da interpretaçãoe da aplicação que o crente (o fiel) faz na sua vida: “...apretensão de somente conservar o depósito da revelaçãoé uma das melhores maneiras de lhe ser infiel, de corrom-pê-lo, de traí-lo. Porque é uma maneira por demais cô-moda de ser fiel”20, ou, como afirmava Schleiermacher,querer conservar a todo custo inalterada uma doutrina,dissociada de um processo hermenêutico, é transfor-má-la numa falsa ortodoxia.

À semelhança de Schleiermacher, apesar da dis-tância de mais de um século de história, a orientação an-tropológica e o empreendimento hermenêutico surgempara J.L.Segundo como dois pilares fundamentais para a

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20 Idem, O dogma que liberta, p. 13.

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edificação de um projeto teológico minimamente razoável.É, pois, nesta dupla dimensão do trabalho teológico, antro-pologia e hermenêutica, que vejo a possibilidade da pers-pectiva teológica ser portadora de um discurso de validadepública e pertinência acadêmica no estudo da religião.

A teologia como antropologia e como hermenêutica

A reorientação antropológica do estudo da reli-gião exige uma maneira nova de conceber o exercício dateologia, devido aos laços estreitos que a aproxima da re-ligião. O discurso teológico, para ter validade pública nodiálogo com a cultura contemporânea, há de trabalharcom uma definição de religião que esteja arraigada nanatureza humana e profundamente ligada à idéia de au-tonomia. A teologia, em sua aproximação hermenêuticada religião, há de considerar a religião como uma dimen-são antropológica antes de concebê-la como uma estru-tura eclesial, uma dimensão humana que guarda autono-mia diante de qualquer forma de discurso e de leis e deautoridades eclesiásticas. Autonomia entendida comosendo diferente de individualismo, pois não se trata detomar a própria experiência como instância absoluta,mas sim como fundamento em oposição à aceitação de

uma verdade baseada unicamente em autoridadesexternas (instituições, hierarquia, dogmas...).

Por isso, a teologia no seu diálogo como a comu-nidade acadêmica, deve ter como ponto de partida o po-sitivo da relação entre Deus e o ser humano, vale dizer, oempírico, que é diferente do empírico-formal das ciênciasexatas e experimentais, tomando, porém, distância deuma tentativa meramente especulativa de compreenderesta relação. A dimensão humana e, portanto, verificávelda experiência religiosa, fundamenta-se no fato de quedesta experiência emana um discurso religioso que seconstitui em respostas humanas a perguntas concretas,respostas caracterizadas por sua referência a Deus. Aexperiência religiosa não está acima de outras experiên-cias humanas e muito menos fora do humano.

Por sua vez, o discurso religioso que acompanha aexperiência religiosa é uma interpretação da realidadeque é comum a todos, pois se trata de uma experiênciahumana e não sobrenatural, no sentido de que não éuma experiência que esteja para além da própria huma-nidade, num recôndito ao qual somente alguns privile-giados ou mais instruídos têm acesso. Ou ainda, a fé emDeus não é anterior à experiência humana, crer em Deusé algo que nasce da maneira como se experimenta a pró-pria existência humana. Portanto, a fé religiosa ou a des-

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crença aparecem respectivamente ao crente e ao ateucomo a melhor maneira de interpretar o mundo comuma todos nós.

Entretanto, se compreendermos a experiência reli-giosa como uma disposição inata e particular do ser hu-mano para se relacionar com o Infinito, ou ainda, se to-marmos o ser humano como ponto de partida da com-preensão da religião, sem contudo reduzi-la ao humano,isso nos exigirá o esforço de pensá-la teologicamentepara além de uma humanidade auto-suficiente, em con-traposição à cultura ilustrada que não aceita a religiãocomo algo inerente ao ser humano e que igualmentenega a relação com o Transcendente, como abertura aoInfinito. Isso faz do chamado giro antropológico na teolo-gia um ponto de partida e não um fim em si mesmo.

Se me refiro à experiência religiosa como uma rea-lidade humana antes de ser eclesial, a fim de ressaltar suaautonomia ante a determinadas estruturas eclesiásticas, épreciso dar um passo a mais e dizer que tal experiência éigualmente uma realidade pré-teológica. A experiênciareligiosa constitui-se, pois, como ato primeiro, sendo odiscurso teológico um discurso sobre uma realidade ante-rior, autônoma, a qual pode ou não vir a institucionali-zar-se de forma eclesial e mesmo ser elevada a conceitocomo discurso sistematicamente estruturado.

Para dizer o mesmo com a linguagem de Schleier-macher, afirmar que a teologia é “filha da religião” equi-vale a dizer que o discurso teológico é elaborado combase em uma experiência religiosa que o precede, a qualnão é tomada necessariamente por uma instituição ecle-sial, mas como experiência, sentimento da ação do Infini-to no finito. Por isso, o método teológico, ao considerar oestudo da religião, deve ter por fundamento um necessá-rio e inevitável antropocentrismo que encontramos pre-sente em diversas reflexões teológicas do ponto de vistado chamado giro antropológico e fundamentados noqual podemos falar da religião como uma experiênciaprofundamente humana. Além disso, a particularidadeda experiência religiosa fornece o mapa linguístico paraque se possa interpretar a realidade, sendo este instru-mental linguístico o objeto de estudo da teologia comodiscurso interpretativo de uma realidade que a precede, eque, portanto, é pré-teológica, e da qual a experiênciacristã é apenas uma experiência específica, singular, enão a única possível e verdadeira. Esta especificidade daexperiência religiosa cristã como ponto de partida para oexercício da teologia requer, no entanto, o conceitogenérico de religião como dimensão constitutiva do serhumano, dimensão pré-teológica e pré-eclesial.

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Esta aproximação entre teologia e religião colo-ca-nos inevitavelmente diante da questão sobre a verda-de no contexto plural no qual vivemos: existe uma únicareligião verdadeira, plenitude das demais expressões his-tóricas da relação com o Sagrado, com o Transcendente?Provavelmente, não. Mas uma resposta negativa a estaquestão não deve ser precipitadamente identificada como menosprezo que, por vezes, caracterizou o discurso teo-lógico no que diz respeito à força e à importância da insti-tucionalização da experiência religiosa, ou ainda, à suacapacidade de nos situar no mundo e ajudar a estruturara própria vida. Entretanto, o risco desta institucionaliza-ção está em ligar a verdade religiosa a uma instituiçãocomo tal, ou ainda, compreender a verdade religiosa domomento histórico fundador que a legitima, momentomediado por uma instituição historicamente situada,portanto limitada.

A religiosidade que caracteriza o ser humano é amatriz antropológica que pode dar corpo a formas institu-cionais, mas pode também possibilitar ou dar lugar a for-mas não-institucionais que alguns chamam de “religiosi-dade errante”21. Nessa perspectiva, a religião diz mais do

que ela mesma na relação com o Sagrado, pois permite osurgimento da religiosidade que transcende as suas pró-prias fronteiras.

Este pluralismo religioso exigirá tanto dos teólogoscomo de outros estudiosos da religião a abertura a umamaior multiplicidade de temas, interesses e perspectivasque se situam para além das fronteiras da religião cristã edas diversas teologias que ela produz. Assim, a interdisci-plinaridade deixa de ser uma intriga entre diversas disci-plinas que procuram se apropriar do objeto religião e as-sume a noção de uma cooperação entre diversas formasde saber que compreendem não serem proprietáriasexclusivas do objeto que pesquisam.

Qual seria, no entanto, a importância da experiên-cia religiosa na tarefa teológica? O que a teologia acres-centa à experiência religiosa que ela já não possua em simesma? Uma experiência religiosa quase sempre neces-sita de ritualidade. Uma pessoa de fé religiosa, por vezes,precisa de um mestre espiritual. Em ambos os casos, po-rém, nem sempre existe a necessidade de um discursoteológico. Todavia, a presença da teologia se faz neces-sária quando a experiência religiosa se insere num con-

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21 Esta perspectiva é desenvolvida por Pierre Gisel em seu texto “Le New Age. Entre institutionalization de la religion et religiosité vagabondante. Unregar de théologien”.

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texto histórico diferente, na medida em que acontece ainevitável descontinuidade de formas e representaçõesdo mundo religioso.

Desse modo, a teologia seria a descrição ordena-da e metódica que clarifica a fé por meio de uma lingua-gem mais elaborada, sem contudo tender a um estudosistemático sobre Deus como verdade ontológica, e sim auma hermenêutica da linguagem religiosa como afirma-ções humanas sobre Deus e comportamentos humanosdiante dele. Hermenêutica aqui entendida não somentecomo técnica de interpretação de textos, mas acima detudo como “decifração da vida no espelho do texto”22 napossibilidade de compreender o sentido da vida no senti-do segundo, velado pelo sentido primeiro oferecido pelossímbolos da linguagem religiosa. É no equilíbrio instávelentre a linguagem simbólica e o discurso racional que seconstrói o discurso teológico sobre a religião, o qual deveestar estruturado de tal modo que a sua validaçãoaconteça na recepção de uma tradição que implica numaverdadeira produção de sentido.

Por isso, conceber a teologia como hermenêuticateológica, tem por pressuposto a idéia de que não existe

discurso teológico sobre a religião que não seja uma ten-tativa de interpretá-la. Além disso, a hermenêutica de-nuncia a ilusória pretensão de um saber desinteressado,centrada num “Eu” neutro, na medida em que todo pro-cesso interpretativo supõe um sistema referencial que or-ganiza uma determinada escala de valores, a partir daqual nos debruçamos sobre uma determinada realidade.Este deslocamento do ser humano com relação a todafalsa subjetividade central constitui-se num evento deverdade fundamental de nosso tempo.23

O exercício da teologia torna-se um constante atointerpretativo e considerá-lo dessa maneira é levar emconta a historicidade da verdade. O caráter hermenêuti-co da teologia está intimamente relacionado à sua di-mensão antropológica, uma vez que somente podemoscompreender textos históricos, como é o caso dos textosreligiosos, se tivermos em conta as questões que movema própria existência humana. No caso concreto do cristia-nismo, qualquer afirmação sobre Deus somente é possí-vel segundo a interpretação da linguagem da fé por meioda qual se dizem as diversas formas da relação com Deusna história. A afirmação de que Deus é criador está entra-

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22 RICOEUR, Paul, O conflito das interpretações, p. 322.23 GEFFRÉ, Claude, Como fazer teologia hoje, p.35.

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nhada de questões sobre a origem e o destino do serhumano que indaga sobre a sua condição de criatura ousobre a sua finitude, ou ainda, sobre o problema do malno mundo.

Com o decorrer da história, uma teologia com orien-tação hermenêutica tornou-se paulatinamente o destinoda razão teológica, significando hoje esta nova orientaçãoteológica tomar distância da metafísica clássica e das filo-sofias do sujeito para considerar o ser humano segundo adimensão lingüística que o constitui. Na medida em queeste distanciamento ganha espaço na reflexão teológica,podemos falar de uma “virada” na prática teológica:

....compreender a teologia como hermenêutica é tomar asério a historicidade de toda verdade, inclusive da verda-de revelada, e tomar a sério também a historicidade dohomem como sujeito interpretante(...) A teologia é sem-pre atividade hermenêutica, pelo menos no sentido emque ela é interpretação da significação atual do aconteci-mento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens de fésuscitadas por ele, sem que nenhuma delas possa serabsolutizada, nem mesmo a do Novo Testamento24.

No contexto da experiência religiosa cristã, a con-versação entre o sujeito interpretante e o texto supõe

uma condição prévia: o ato de fé, vale dizer, um prejulga-mento favorável com relação ao texto que é recebido datradição, tendo-o como palavra de Deus. Diálogo realiza-do sempre com base no chamado círculo hermenêutico:a inter-relação entre a riqueza dos questionamentos quesurgem da realidade e aquela da tradição, relação capazde produzir uma nova interpretação da Escritura. Nestecírculo hermenêutico, temos a busca por um equilíbrioentre a experiência pessoal e a tradição, a valorização dapessoa dentro de um processo de relação interpessoal.Trata-se da apropriação e da reapropriação da tradiçãopor parte do indivíduo, ou seja, o enraizamento das ma-nifestações particulares da fé numa determinada tradiçãoe a capacidade desta tradição de fornecer elementos paraa construção e reformulação da fé pessoal. E isso paraalém das fronteiras da teologia.

É justamente a presença da dimensão hermenêuti-ca em toda esfera do saber que, na minha opinião, possi-bilita estabelecer um diálogo entre a teologia e as outrasformas de saber no estudo da religião. Todavia, há de seconsiderar que a ciência hermenêutica é diferente da no-ção de ciência aristotélica que possibilitou a reivindica-ção da suposta neutralidade e objetividade na pesquisa

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24 Idem, Como fazer teologia hoje, p. 18.

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científica, o que marcou profundamente a história da cul-tura ocidental. E a diferença está em que hoje cada vezmais se acentua o caráter interpretativo de todo conheci-mento humano. Não existe acesso imediato à realidade,pois todo acesso à realidade é feito por meio da lingua-gem que já é necessariamente uma interpretação, a qualnão se configura como uma espécie de criação do nada.A interpretação é uma retomada, é uma apropriaçãodaquilo que dizem os textos da nossa predileção e aspessoas que se nos apresentam como testemunhos refe-renciais, para utilizar a linguagem de Juan Luis Segundo.

Além disso, colocar a interpretação como apro-priação criativa de uma determinada tradição é conside-rar o risco que está presente em todo ato interpretativo:

O risco da interpretação – nunca devemos esquecê-lo –é o risco da deformação, da distorção e do próprio erro.Mas quando se trata do cristianismo, é também o riscopuro e simples da própria fé... (e) a fé só é fiel ao seu im-pulso e ao que lhe é dado crer se levar a uma interpreta-ção criativa do cristianismo. O risco de, por falta de au-

dácia e lucidez, só transmitir um passado morto não émenos grave do que o do erro25.

Este risco da interpretação que na verdade signifi-ca o arriscar-se numa nova maneira de ser, possibilitadapela interpretação da textualidade da vida, tem por pres-suposto que o sentido do texto não está atrás do texto, naconsciência do autor, na reconstrução do contexto noqual o texto foi tecido ou na primeira recepção do texto, etampouco se encontra no próprio texto. O sentido estádiante do texto, na possibilidade da fusão de horizontesque a apropriação interpretativa do texto nos propicia: ohorizonte do texto e o novo horizonte de compreensão. Aquestão em torno da interpretação de um texto foi objetode uma longa querela e de numerosos debates. Não me épossível e nem cabível, neste momento, entrar nos por-menores desta história, mas apenas supô-los26.

Em todo o caso, se o sentido não está antes e nempor baixo, mas diante do texto, então“...ler não é decifrarum sentido antecedente, mas produzir um sentido, dei-

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25 Idem, Como fazer teologia hoje, p. 5-6.26 RICOEUR, Paul, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique, p. 39-118. Ao falar da interpretação como apropriação do texto, Ricœur diz que ela é

“todo contrário da contemporaneidade e congenialidade; ela é compreensão pela distância e compreensão na distância” (p.116). É nesta distânciaque nós, leitores e intérpretes, podemos habitar o mundo do texto e nele compreendermos a nós mesmos. Assim, como afirma o próprio Ricœur,“Hermenêutica é decifrar a vida no espelho do texto”.

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xando-se governar pela cadeia de significações”27. E naleitura de um texto, como ato interpretativo, aquilo doque nos apropriamos é uma proposição de mundo queestá desdobrada, desvelada, diante do texto. Por isso,compreender passa a ser entendido como compreen-der-se diante do texto, sendo que a apropriação do mun-do do texto conduz a novas produções de sentido na or-dem da linguagem e na ordem da práxis: a hermenêuticacentrada no mundo do texto conduz a reinterpretação daprática, não se prendendo a uma mera interpretação tex-tual. A apropriação do mundo do texto aponta para umanova possibilidade de existência, de fazer existir um mun-do novo. Por isso, para Paul Ricoeur, a hermenêutica éacima de tudo“decifração da vida no espelho do texto”28.

Assim, a tradição não se configura apenas e nemsobretudo como uma transmissão de valores e conceitosválidos de uma vez por todas, mas principalmente comoprodução de sentido. E a apropriação de uma tradiçãomediada pelo mundo do texto leva a novas produções,tanto na ordem da linguagem como na prática. Portanto,o cristianismo é tradição enquanto vive de uma origemprimeira que é dada, mas também é tradição porque estaorigem somente pode ser redita historicamente segundo

uma apropriação criativa da mesma, apropriação que ésobretudo interpretação da tradição num novo contextocultural, ou seja, interpretação criativa da linguagem dafé e da existência cristã.

Neste processo interpretativo que caracteriza o tra-balho teológico, o intelectus fidei é algo diferente da ra-zão especulativa que se move por meio do esquema su-jeito-objeto. A intelecção da fé implica o ato hermenêuti-co que se distingue de um simples ato de conhecimento eidentifica-se com um modo de ser no qual a compreen-são do passado é indissociável da compreensão de simesmo, sem contudo cair numa espécie de psicologismoou numa mera hermenêutica existencial. Compreender éconsiderado menos como ação da subjetividade e muitomais como inserção num processo de transmissão. Pro-cesso que, na linguagem de Juan Luis Segundo, se cha-ma aprender a aprender. Por isso,

A revelação atinge sua plenitude, seu sentido e sua atua-lidade somente na fé que a acolhe(...) A fé, em seu as-pecto cognitivo, é sempre conhecimento interpretativomarcado pelas condições históricas de uma época. E ateologia, enquanto discurso interpretativo, não é so-mente a expressão diferente de um conteúdo de fé

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27 GEFFRÉ, Claude, Como fazer teologia hoje, p. 37.28 RICOEUR, Paul, O conflito das interpretações, p. 322.

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sempre idêntico, que escaparia à historicidade. Ela étambém a interpretação atualizante do próprio conteú-do da fé29.

Do ponto de vista hermenêutico, os textos bíblicossão revelação, na medida em que desdobram diante denós a possibilidade de um ser novo e não porque foramescritos sob o ditado de Deus. Um ser novo segundo oqual podemos nos compreender, podemos decifrar avida. Por isso, a apropriação do texto implica uma novapossibilidade de existência associada à vontade de fazerexistir um novo mundo. Não há revelação sem conver-são nem sem um comportamento ético.

A apropriação do texto é igualmente a possibilida-de de um novo discurso. E todo discurso é em si mesmoalgo provisório, relativo, não se confunde com um saberconstituído, acabado, imutável, é linguagem interpretati-va, sempre relativa à perspectiva que o produziu. E estainterpretação é possível graças à alteridade do texto, àdistância que possibilita novos sentidos desde o nossopresente de leitor. Todavia, no caso concreto do trabalhoteológico, “o teólogo recebe o texto de uma comunidade,a Igreja. E é porque esta comunidade está em continuida-

de com a comunidade primitiva, que produziu esse texto,que ele não pode fazê-lo dizer qualquer coisa”30. Esta vi-são da teologia suscitou diversas críticas, a saber: a teolo-gia hermenêutica nada mais seria que uma teologia da pa-lavra, preocupada somente em propor uma nova interpre-tação teórica do cristianismo, deixando de lado a práticahistórica dos crentes e da Igreja; a teologia tomaria a her-menêutica somente como método de leitura de texto; ahermenêutica no trabalho teológico seria expressão dopensamento metafísico e de técnica de leitura.

Estas críticas talvez digam mais respeito a uma ati-tude dogmática na teologia que apresenta as verdades dafé de maneira autoritária, tendo por garantia unicamenteo magistério da Igreja. Para uma atitude dogmática deolhar a realidade, como me referi acima, o ponto de par-tida da teologia seria o ensinamento atual do magistério,aparecendo a Escritura como prova daquilo que já estavaestabelecido pelo magistério. Em outras palavras, umaatitude dogmática busca nas Escrituras e na tradição alegitimação de uma decisão já tomada.

Contrariamente a esta postura, a hermenêutica teo-lógica no estudo da religião leva a sério a historicidade da

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29 GEFFRÉ, Claude, Como fazer teologia hoje, p. 18.30 Idem, ibidem, p.23.

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verdade e a historicidade do intérprete da mensagemcristã que busca atualizá-la para a sua realidade, o quefaz da teologia um fenômeno de reescritura com baseem escrituras anteriores. Neste processo, temos a com-preensão do passado e a atualização criativa direciona-da para o futuro, perpassando a compreensão de si nopresente. Por isso, é igualmente tarefa da hermenêuticadiscernir a experiência histórica que fundamenta as for-mulações teológicas que se transformam em definiçõesdogmáticas31.

A teologia como hermenêutica é diferente dachamada teologia positiva, que privilegia a pesquisa his-tórica dos dados da fé e é distinta também da teologiaespeculativa, que enfatiza a explicação radical dos da-dos da fé. A teologia como hermenêutica procede a umareleitura dos “objetos textuais”, procurando decifrá-lospara hoje, e desta nova leitura realiza uma nova escritu-ra. A teologia hermenêutica é interpretação da palavrade Deus e das experiências históricas, o que faz dateologia um discurso necessariamente plural, não sendoeste pluralismo na teologia e mesmo na confissão de féuma exigência dos tempos modernos ou pós-modernos,

mas exigência da identidade hermenêutica própria aodiscurso teológico.

O empreendimento hermenêutico da teologia nãosignifica, contudo, o fim do dogma, mas sim o fato de setomar como ponto de partida o engajamento na leituracriativa dos textos da tradição, em sintonia com a apreen-são da realidade que, por sua vez, gera novos conceitos.No empreendimento hermenêutico, considera-se semprea posse relativa da verdade no plano humano, a qualaponta para uma verdade inacessível inerente ao misté-rio de Deus. Se o erro do historicismo foi identificar a ver-dade do cristianismo com a reconstrução dos fatos histó-ricos, o erro do racionalismo teológico foi a ruptura entreos enunciados dogmáticos e os fundamentos escriturísti-cos e históricos. Além do que, a concepção metafísica daverdade e a concepção de verdade do historicismo sãoherdeiras de uma mesma problemática de fundo: a idéiade correspondência, de adequação entre sujeito e objeto,segundo uma relação imediata na origem identificadacom a plenitude do ser ou com um fato histórico32. Porisso, não é inútil lembrar que todo relato histórico é ditono seio da história e como interpretação dessa história.

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31 Idem, Crer e interpretar, p. 50.32 Idem, ibidem, p. 75.

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O trabalho hermenêutico na teologia significa,pois, o esforço constante para tornar mais audível e inteli-gível a linguagem da fé religiosa. A linguagem teológicasupõe uma verdade que é fundamentalmente histórica,recebida por via testemunhal, e o testemunho no exercí-cio da teologia supõe sempre distância e interpretação.Portanto, não há acesso imediato à verdade, uma vezque a verdade dos enunciados da fé somente é atingidapela linguagem teológica numa perspectiva histórica. Averdade cristã para a linguagem teológica é sempre um“devir” entregue ao risco da história e da liberdade criati-va do crente, sob a moção do Espírito (Jo 14,26).

Um pressuposto fundamental neste debate her-menêutico que envolve o estudo da religião, do pontode vista cristão, é o fato de que o testemunho da comu-nidade primitiva tornou-se um texto, ou seja, a teologiatrabalha com um texto que já é em si mesmo um ato deinterpretação. Na verdade, a Escritura é um ato de inter-pretação, e a distância que nos separa dos textos bíbli-cos é a possibilidade de a teologia realizar um ato de re-interpretação da existência humana por meio da lingua-gem religiosa. E neste empreendimento hermenêutico ateologia encontra nos textos da Escritura, na tradição e

no conteúdo das nossas experiências históricas, critériosfundamentais para avaliar a pertinência da atual interpre-tação da mensagem cristã.

A reflexão sobre a dimensão hermenêutica da teo-logia no estudo da religião, com base na noção de texto,pode ser considerada como um paradigma apropriadoao objeto das ciências humanas, enquanto a metodolo-gia da interpretação de textos, um paradigma geral nocontexto das ciências humanas33. Isso permite conside-rar as ciências humanas como ciências hermenêuticas,uma vez que o objeto de estudo de tais ciências é seme-lhante a um texto sempre aberto à interpretação. E en-tender-se como ciência hermenêutica já em si mesmauma abertura ao outro, ao diferente, abertura que possi-bilita o diálogo entre a teologia e as ciências humanasno estudo da religião. Isso porque o caráter hermenêuti-co nos afasta de uma postura dogmática, enquanto anoção de “mundo do texto” nos distancia de uma inter-pretação subjetivista da realidade. Tanto a teologiacomo as ciências humanas, que se dedicam ao estudoda religião, interpretam a textualidade da vida com basenas tramas e nas urdiduras que tecem o texto da históriahumana.

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33 RICŒUR, Paul, Du texte à l’action, p.183.

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Conclusão

Com base na problemática, anunciada ao longodesta reflexão, algumas consequências para uma teolo-gia cristã do pluralismo religioso merecem destaque34.

Inicialmente, é preciso dizer que o passo inicialpara ultrapassar a oposição entre a ciência e a fé religiosanos conduz a uma concepção de fé religiosa que possuiuma dimensão antropológica razoável de ser e estar nomundo, bem como a uma ampliação do conceito de ra-zão para não nos tornarmos cativos de uma visão unilate-ral e racionalista do pensamento moderno, hoje profun-damente questionada. Não obstante o valor de todas asdimensões da racionalidade moderna, técnico-científica,a fé religiosa não deixa de ser uma instância razoável. Elanão é racional porque não se fundamenta na evidência(empírico–formal) da verdade crida, mas é razoável namedida em que se coaduna à estrutura racional humana:acreditar, amar, confiar. Esperar é humano e ultrapassa alógica ou a racionalidade puramente verificativa e quanti-tativa das ciências modernas, e crer, como ato humano,está além da razão (moderna), porém jamais contra ela enunca sem ela.

Em seguida, é importante lembrar que uma her-menêutica teológica do pluralismo religioso não temcomo preocupação primeira a formação de padres ou depastores, e sim ajudar o fiel a melhor compreender a suafé, a sua experiência religiosa, fazendo-a ser um processode amadurecimento, isto é, de humanização do ser hu-mano. Ajudar a experiência religiosa a iluminar a existên-cia humana, procurando responder às questões quetocam profundamente o coração humano.

É igualmente importante ressaltar que a mudançade lugar da teologia hoje não comporta necessariamenteo deslocamento físico que deu origem à universidade noperíodo medieval, quando a teologia deixou as escolasde grandes mestres para “entrar” num novo universo dosaber: a universidade. É da própria universidade que sebusca uma nova perspectiva teológica, novidade que pa-rece encontrar no estudo da religião um paradigma em-blemático. Todavia, este novo na teologia há de conside-rar a superação de um modelo teológico acentuadamen-te eclesiástico e clerical. Eclesiástico, porque sua funçãoprincipal consiste em encontrar na Escritura e na Tradi-ção fundamentos para o ensinamento do magistério. Cle-rical, porque é exercida exclusivamente por padres e pas-

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34 Fundamento-me sobretudo nos escritos do teólogo francês Claude Geffré.

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tores, e para a sua formação. Esta superação significa apassagem para uma teologia que busca, sobretudo, serintérprete da linguagem religiosa como doadora de sen-tido de vida.

Daí que a pluralidade das grandes religiões não-cristãs se configura no desafio maior para a Teologia cris-tã neste início do século XXI. Se o ateísmo foi o horizontedesde o qual, a partir da segunda metade do século XX, ateologia reinterpretava as grandes verdades da fé cristã, opluralismo religioso configura-se como o horizonte do sa-ber teológico no século XXI. Trata-se de uma questão in-contornável para o exercício da teologia que está a exi-gi-la inter-religiosa. Assim, tomar o diálogo inter-religiosocomo horizonte da teologia para este século significatambém colocar em discussão o conceito de verdadesubjacente à teologia cristã, ou seja, reinterpretar as ver-dades da fé cristã à luz das verdades contidas nas outrastradições religiosas.

O pluralismo religioso aponta para um significa-tivo deslocamento teológico, uma vez que o reconheci-mento teológico do valor da diversidade religiosa colo-ca obrigatoriamente a pergunta pelo lugar das religiõesno projeto salvífico de Deus. Numa teologia do plura-

lismo religioso, busca-se um discurso teológico queconsidere o valor positivo da historicidade das religiõesno que diz respeito à sua relação com o Absoluto, ouseja, considerar positivamente a alteridade das outrastradições religiosas em sua diferença irredutível, ouainda, de uma forma mais radical, pensar o pluralismoreligioso como algo querido por Deus. Esta teologiadeve considerar a diversidade religiosa como um plu-ralismo de direito e não como uma mera contingênciahistórica, isto é, o pluralismo não é uma cegueira cul-pável do ser humano e tampouco um fracasso da mis-são da Igreja, mas algo que misteriosamente faz partedos desígnios de Deus.

Enfim, cabe dizer que a reaproximação entre a teo-logia (cristã) e a religião no contexto acadêmico brasileiroaponta para uma nova maneira de conceber o exercícioda teologia dentro da universidade. Novidade em gesta-ção desde uma orientação antropológica que pretendelevar a sério a dimensão hermenêutica de toda e qual-quer ciência, o que colabora com a intelecção da religiãocomo dimensão constitutiva do ser humano e, ao mesmotempo, permite o diálogo entre a teologia e as outras for-mas de saber no mundo acadêmico.

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Walter Ferreira Salles (1963) é natural de Rio de Janeiro/RJ. Desde 2001, é professor naPontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). É graduado em Filosofia,1991, e em Teologia, 1995, pelo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (CES).Concluiu o mestrado em Teologia, 1997, pelo Centre Sèvres – Institut Supérieur de Théologieet de Philosophie de la Compangie de Jésus, França, com a dissertação Une nouvelle vie en Jé-

sus Christ (Uma nova vida em Jesus Cristo). É doutor em Ciências da Religião, 2006, pela Uni-versidade Metodista de São Paulo (UMESP). Sua tese de doutorado intitula-se A teologia e o es-

tudo da religião. A hermenêutica teológica como reinterpretação da linguagem da fé e da exis-

tência cristã.

Algumas publicações do autor

Antropologia, lugar de toda teologia. In: VV.AA. Teologia e modernidade. São Paulo: Fonte Editorial, 2005.Deus está morto! Nietzsche e o «fim» da teologia. In: Reflexão, v.83-84, p.37-49, 2003.O drama da criação. A primeira semana dos Exercícios Espirituais. Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 40, p.5-23, 2000.Jesus Cristo, Princípio e Fundamento. Revista de Espiritualidade Inaciana, n. 36, p.5-18, 1999.