um trem para lugar nenhum esperança

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  UM TREM PARA LUGAR NENHUM ESPERANÇA  de Pedro Murad

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Texto teatral que busca desenvolver o realismo mágico nos palcos.

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UM TREM PARA LUGAR NENHUM ESPERANÇA 

de Pedro Murad

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  Esse texto foi uma tentativa (frustrada, diga-se de passagem) de explorar não oabsurdo, mas o realismo mágico no teatro, através de recursos bastante simples: um

  palco vazio e apenas um efeito de luz ao final, evitando valer-se de outros recursos  pirotécnicos que a palavra pura e simples, flertando com uma teatralidade maiseconômica, numa dramaturgia de reminiscências. Logo, todo trabalho dos atores deve

 seguir um naturalismo bastante estrito, num espaço cênico despojado

.

PRIMEIRO MOVIMENTO

 Dois velhos, numa estação de trem abandonada.

VELHO 1:Ah, deixa disso, camarada! Ele não vem.

VELHO 2:Vem. Tem que vir!

VELHO 1:Essa hora...

VELHO 2:Uma hora o trem passa.

VELHO 1:

Sei não... Eu, se fosse você, voltava pra casa.VELHO 2:

 Nem pensar. Eu não volto. Nunca mais. Eles não vão me encontrar nem noInferno!

VELHO 1:Você fala, fala, mas vai acabar voltando. Aposto. Todo mundo sai assim.Jura que não volta. “O mundo é grande depois daquela colina”, “O mundoé um redemoinho”, “O mundo é...

VELHO 2:... “uma esperança”, uma esperança inútil, puta merda... Mas eu preciso deuma assim mesmo! Eu juro. Mesmo que no final não sobre nada. Quandoo trem chegar...

VELHO 1: (cortando)Ah, grande: o trem! Eu já ia me esquecendo.

VELHO 2:Quando ele chegar com todas as luzes. O vapor, o maquinista de bigodes,chapelão, o apito, “Êh trem chegando!”...

VELHO 1:Que conversa é essa? Trem, maquinista, apito... Acorda, cara!

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VELHO 2:Acordei. Bem cedo. Fiz a barba. Arrumei a mala. E vim!

VELHO 1: (irônico) Nossa! Que coragem!

VELHO 2:Tinha que ser hoje.

VELHO 1:Um dia como todos os outros.

VELHO 2:Diferente... Esse vento, esse sol... Diferente mesmo...

VELHO 1:

Pois é: como num filme!VELHO 2:Um dia como outro qualquer mas eu aqui, cacete. Tomando uma atitude. Evocê que não faz porra nenhuma? Fica só olhando. Me seguindo feito umasombra.

VELHO 1:Primeiro as damas!

VELHO 2: Não diz coisa com coisa. Sempre me botando para baixo. Querendo que eudesista. Ah, mas hoje eu não desisto! Vocês vão ver só.

VELHO 1:Vocês? Tem mais alguém aqui?

VELHO 2:Eu vou ganhar dessa vez. Pelo menos hoje... Hoje é o grande dia!

VELHO 1:“A partida”... Que bonito!

VELHO 2:Chame como quiser. Que se exploda! Eu vou pegar esse trem e sumir pelomundo.

VELHO 1:Sumir? Mas... Com que trem? Em que época você acha que estamos, cara?

 Não tem mais essa de trem. Eles já sumiram todos. Não sobrou nenhum. Ovento foi levando tudo. A estação, a cidade, a igreja, a pracinha, oMercado União... Não sobrou nada e você querendo bancar o grande heróido dia! Ah, conta outra!

VELHO 2:Vai rindo!

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VELHO 1:A poeira tomou conta de tudo. O mofo nas paredes...

VELHO 2: (olhando para o relógio) Daqui a pouco ele chega!

VELHO 1:E você mais enferrujado do que nunca!

VELHO 2:Mas eu não desisto fácil, meu caro.

VELHO 1:Bem, então... Pode esperar sentado!

VELHO 2:

Daqui a pouquinho ele vai chegar. Magnífico. Como da primeira vez. Vaivir descendo o vale, com mil trovões. — Todos os trovões do mundo, cara! — Vai iluminar a cidade inteira, quebrar os vidros das janelas com aquelerugido de leão. Um leão gigante pra cacete. Furioso. Do tamanho domundo.

VELHO 1:Olha, se quiser pode se esticar nesse banco.

VELHO 2:Dá pra sentir pelo cheiro. Bem fresco ainda. Eu me lembro do cheiro dele.

Tá bem perto, já.VELHO 1:Ah, que sono...

VELHO 2:  Na primeira vez, eu fiquei só olhando... Na segunda, eu cheguei mais perto. Na terceira vez — e bota uns quarenta anos nisso! — Eu quase subi.Ia só com a roupa do corpo. Mamãe que fosse cuidar da casa; meu velho,do jardim — porra de jardim escroto pra cacete — O maquinista sorriu pramim. Fez um sinal. Mandou eu entrar: “Não precisa pagar o bilhete,

garoto!” Um bilhete só de ida.VELHO 1:

 Nossa! Quanta cortesia!

VELHO 2:Um único bilhete pra qualquer lugar, distante, pra depois daquela colina — 

 pra puta que o pariu que fosse, mas qualquer lugar bem longe de vocês. Eunão precisava estar agora olhando pra sua cara.

VELHO 1:E acha que seria tão fácil se livrar de mim? Que podia dar as costas paratudo? Um viajante ilustre, meio turista de um lugarzinho de merda,escondido no mapa, que ninguém ouviu falar. Ah, eu aposto que pensou

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que seria diferente com você. Caiu nessa história também? “Vejam ogrande conquistador chegando!” O cowboy num trenzinho de merda, semum centavo no bolso.

VELHO 2:

Foi por pouco.VELHO 1:Mas é claro! Por menos ainda você ia embora desbravar o mundo. Quantasmulheres não ficaram esperando por você? Olhando da janela, esperando

  pelo trem, pelo grande príncipe que viria — Caceta! — resgatar seuscorações perdidos, seus sonhos perdidos num fogão de merda. Varrendo acasa, elas deviam sonhar muito contigo!

VELHO 2:Quem sabe?

VELHO 1:E aposto que você acreditou mesmo nessa história... Um sonhador comovocê... — Coisa rara, talvez o último — Feito galã de cinema. Tão belo,tão único, tão...

VELHO 2:Pode parar!

VELHO 1:Espera! Eu ainda não acabei. Aliás, a única coisa que acabou de verdade

aqui é você. Acabou e nem sabe. Fica esperando a bosta de um trem, numa bosta de estação abandonada, às moscas. Nem dá pra saber com certeza seisso aqui ainda é uma estação pra valer.

VELHO 2:Eu sei que é aqui.

VELHO 1:O mato tomou conta de tudo, os trilhos...

VELHO 2:

Eu não erro nunca. É aqui sim.VELHO 1:Bem... Se é que ainda dá para chamar aquilo ali de trilho...

VELHO 2:Cadê o agente da estação?

VELHO 1:Morreu. Aliás, ninguém sabe se ele existiu de verdade. Uma sombra. Nãofalava com ninguém. Parecia um fantasma. Sumiu com o último trem.

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VELHO 2:  Não tem “último trem” nenhum. Você está inventando essa história denovo.

VELHO 1:

Tudo bem. Se você quer mesmo achar que eu estou inventando, podeachar... Não está mais aqui quem falou.

VELHO 2:Ele apenas demora um pouco pra vir. O movimento não é mais o mesmo.

 Não tem necessidade.

VELHO 1:Claro! Pode esperar mais cem anos!

VELHO 2:

Cem anos?VELHO 1:Passa num segundo. Você fica aí, cheio de si, sentado como um rei,esperando por ele...

VELHO 2:Pra quem já esperou tanto, não é má ideia.

VELHO 1:Claro que não!

VELHO 2:Tudo passa tão depressa, que quando se vê... Olha, meu caro, vou te dizer uma coisa: eu posso estar ficando velho...

VELHO 1:Com toda certeza está, “Sr. Esperança”!

VELHO 2:... Mas vou embora hoje mesmo. Meus cumprimentos a todos e passar 

 bem!

 Breve silêncio.

VELHO 1:Bem... Não veio ninguém se despedir...

VELHO 2: Ninguém?... Melhor assim!

VELHO 1:Se é que ainda tinha alguém pra vir.

VELHO 2:Deixe eles em paz...

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VELHO 1:Ah, claro, não tem mais ninguém nessa história. Você passou uma

 borracha em tudo. Como se não existissem. Nunca existiram de verdade,não é mesmo? Vamos combinar assim.

VELHO 2: Não. Eu não combinei nada com você. As coisas é que não eram pra ser assim.

VELHO 1: Não? Então onde estão todos?

VELHO 2:Isso não interessa.

VELHO 1:

Mas é claro que interessa. E muito! Interessa mais do que você e suaaventura idiota, essa merda de trem que já passou e você dormia.

VELHO 2:Um sono tão grande...

VELHO 1:Quarenta anos — um sono e tanto!

VELHO 2:Mas eu precisava acordar. Você precisa entender: eu não estou tão velho

assim como parece. Hoje em dia, vive-se mais um pouquinho. A morte nãovem tão depressa como antigamente.

VELHO 1:A morte não conta mais, não é?

VELHO 2: Não! Pra falar a verdade, a morte nunca contou. Só o tempo passando cadavez mais depressa. Em disparada. Isso conta e muito. (tom) Eles vãoentender... Eu sei que vão...

VELHO 1: Não podem mais, e você sabe que não. Está um pouco tarde para isso.

VELHO 2:  Não me culpe mais, seu filho-da-puta! Não fale assim comigo! Eu nãotenho culpa de nada.

VELHO 1: No inferno, todos são inocentes! Diga isso olhando pra eles.

VELHO 2: Não!

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VELHO 1:Eu posso chamar...

VELHO 2: Não, não faça isso! Não estrague tudo! Hoje, não.

VELHO 1:Então, quando? A esposa, talvez...

VELHO 2: (cortando)Respeite os mortos!

VELHO 1:Ah, os mortos não morrem. Estão todos aí, olhando pra gente.

VELHO 2:

Ela está descansando sossegada.VELHO 1:Os mortos também não descansam.

VELHO 2:Eu fiz tudo por ela.

VELHO 1:Ah, que pena: os mortos não dizem “obrigado”! — Ninguém ensina praeles!

VELHO 2:Eu fiz o meu melhor...

VELHO 1:Mal-agradecidos! Eu sempre achei!

VELHO 2: (olhando para um ponto no infinito) Tudo mesmo... Quando encontrarem este corpo em alguma praia, inchado

 — algum pescador bêbado, um sortudo — boiando pelo mar sem-fim, vãodizer, de coração, o povo todo reunido: “Aí está um rei, filho, morreu commajestade!”

VELHO 1:“O rei e suas cem mil sereias”...

VELHO 2:Cem, duzentas, trezentas mil, todas loucas de amor, caceta! Quando meencontrarem... eu vou ser rei!

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SEGUNDO MOVIMENTO

 Passagem de tempo.

VELHO 1:

Demorando, né? Com um atraso desses...

VELHO 2: Não começa.

VELHO 1:Eu acho melhor fazermos uma reclamação — de papel passado, você fazum ofício, reconhece firma — ainda sabe escrever o seu nome? Aindalembra como é, aquelas letrinhas no papel, você faz assim com a mãodireita — ou a esquerda, você não é canhoto, é? Não mentiu pra gente essetempo todo, não foi? — Ah, cabeça minha, mentir é com o senhor mesmo:

o grande mestre das mentiras — Não pode assinar, jura? Essa mãotremendo é outra história mirabolante, um mal de família? Aquele tomboquando criança, menino levado, correndo pelo mato, no escurão da noite,morrendo de susto.

VELHO 2:De onde você tirou essa história?

VELHO 1:Treme direitinho. Anos disfarçando. Menino perdido no meio do mato, atétarde da noite, papai com o cinto na mão, esperando. O grande herói do

 bairro, a grande promessa, desbravando a Floresta Negra do quintal lá decasa, povo todo esperando.

VELHO 2:Gente supersticiosa que não tinha o que fazer.

VELHO 1:Tinha sim. E muito. Um monte de coisas por fazer, mas todos parados, omundo inteiro suspenso, esperando pelo retorno do pequeno aventureiro.

VELHO 2:

 Naquele mato tinha cobras, a noiva de branco dos cipós assombrando todomundo, naquela floresta ninguém botava os pés, meu caro.

VELHO 1:  Nem você, camarada. O menino doente, pele branca sem sol, unhascortadas, cabelos lisos — não, ninguém podia imaginar que aquele guritinha coragem.

VELHO 2: Nem eu imaginava.

VELHO 1:Mas o menino levantou da cama e pulou a janela num desatino louco — nem parecia ele — e foi correndo pro mato sem-fim, meninada olhando

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abismada — Eu estava lá, entre elas, comendo minha cocada e olhando asnuvens.

VELHO 2:Você como sempre. Em toda parte, você. Sempre por perto.

VELHO 1:Como não podia deixar de ser. Eram os ossos do ofício. Esse mundofodido nem tinha girado ainda e já éramos irmãos, meu caro!

VELHO 2: Nunca tive irmão. Nem que meu pai quisesse — velho só tinha olhos pro jardim, esqueceu?

VELHO 1:Esqueci dessa parte.

VELHO 2:Um jardim, o terço antes de dormir e minha mãe: a santa paz, o silêncio

 pelas paredes, se dormia como ninguém naquela casa!

VELHO 1:Uma casa silenciosa, né? Não fossem os fantasmas pendurados no teto...

VELHO 2: Não quero lembrar disso.

VELHO 1:Tem razão. Nosso menino ia longe, pulando a janela, meninada espantada

 — eu não, estava esperando aquele momento há tantos anos, a casa nemexistia ainda.

VELHO 2:Aquele momento? Ah, você sempre voltando ao início!

VELHO 1:Claro! Contando a história do começo. Se é que chegar ao fim não tenhasido algo tão agradável assim...

VELHO 2:  Não tente adivinhar o final. Não tem final nenhum ainda. Estamos sólembrando juntos.

VELHO 1:Bem juntos. Suas lembranças também são minhas. Minhas para sempre!

Silêncio.

VELHO 2:Suas também... Como quiser. Já me levaram tudo mesmo. Por que deixar 

as lembranças de fora, não é mesmo?

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VELHO 1:Um grande leilão, meu caro. O leilão das tuas lembranças!

VELHO 2:Quem deu mais por elas? Qual foi o grande lance? Essa eu queria saber...

VELHO 1:Bem...

VELHO 2:Venderam tudo mesmo. Por que não levar minhas lembranças?

VELHO 1:Gloriosas lembranças.

VELHO 2:

Deve ter sido um leilão e tanto!VELHO 1:Magnífico. O mundo inteiro veio. As rainhas da beleza, Cleópatra, osheróis do gibi, o Lex Luthor.

VELHO 2: Nunca pensei que fosse tão importante.

VELHO 1:Toda gente do mundo ali reunida. O pregoeiro começou pela prataria dacasa, dois lances e um arremate; depois os quadros na parede, cinco lancese um arremate; um cachimbo, seis lances disputadíssimos e um arremate!

VELHO 2:Cachimbo de meu avô.

VELHO 1:Quando trouxeram as suas lembranças — mas todas mesmo, não deixaramnenhuma de fora — o lance mínimo... e nenhum arremate! — mas nenhummesmo, só o silêncio pelo salão. A princesa escarlate deixando a sala,depois o prefeito.

VELHO 2: Não pode ser. Isso deve ser brincadeira...

VELHO 1:Parecia mesmo. Até eu fiquei espantado com aquele descaso. O salão numsegundo vazio — bem, eu sempre fui teimoso, você sabe. Essa curiosidadeainda vai acabar comigo!

VELHO 2:Um cavalheiro. Não ia sair de mãos abanando, não é? Precisava esvaziar acarteira.

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VELHO 1:  Nem precisei. O pregoeiro mandou se desfazer delas. Me deu todas degraça — ficou me devendo a gentileza de levar comigo aquele lixo.

VELHO 2:

Fico honrado com a parte que me toca. Com certeza você teve a finura deensacar tudo e jogar no lixo mais próximo. Nossa cidade, nossas calçadassempre bem limpas!

VELHO 1:  Nunca! Eu não faria uma coisa dessas. Um tesouro daqueles — tantasrelíquias de marmelada, tantos cacos de marfim — levei tudo pra casa — acredite, eu também tive uma casa — joguei tudo sobre a mesa e passeinoites de eternidade olhando, catalogando tudo, montando o quebra-cabeça.

VELHO 2:Foi assim que você descobriu tudo ao meu respeito. Podia saber de tudo. Ir contando pras pessoas da cidade. Pra cada uma delas, ir revelando meussegredos.

VELHO 1:Eu não seria indiscreto. Aquele tesouro — embora ninguém desse umtostão por ele — era só meu!

VELHO 2:Daí soube da grande Floresta Negra? De tudo o que aconteceu por lá. Tim-

tim por tim-tim. Só você pra saber.VELHO 1:Essa lembrança também era minha. Eu estava lá, lembra? — Garototravesso, já ia se esquecendo de mim? Corria tão apressado que nemreparou no camarada aqui entre a molecada.

VELHO 2:Mas isso ainda não diz nada. Você não sabia mais que o primeiro da fila.

VELHO 1:

Mas eu tinha um trunfo — escondido no bolso, há muito tempo, não saiade casa sem ele — o quebra-cabeça nunca foi tão útil, acredite! Pr’aquelashoras, as suas lembranças eram o meu talismã secreto.

VELHO 2:Grandíssimo filho-da-puta!

VELHO 1:Menino correndo pro meio do mato escuro, não corra, mamãe gritando,volte aqui, minha nossa, ficou maluco esse garoto, ninguém nunca maisvoltou vivo da Floresta Negra, meninada branca de susto.

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VELHO 2:Vocês, os grandes destemidos de bola de gude, das pipas estelares, dasfogueiras gigantes de papel jornal e latas de goiabada, nunca iriam tãolonge.

VELHO 1: Nem você. Eu sei de tudo. Essa mão tremendo. Esse arranhão na testa — foi um monstro marinho, a Noiva da Floresta, as plantas marcianas? — Ah, meu caro, era só tirar uma lembrancinha sua do bolso e desenrolar.Um papelzinho assim. Cada passo seu escrito.

VELHO 2:Você está blefando. Sempre blefando.

VELHO 1:Um papelzinho pequeno pr’aquele dia. Coisinha assim. Uma odisseia, um

romance com duzentas páginas, um filme delirante? Nada. Você corria eeu te seguia em teu encalço — Ia ser uma aventura e tanto! pensei com osmeus botões.

VELHO 2:Talvez a única coisa que tenha valido a pena na cidade. Uma história?Você entende de verdade o que é uma história?

VELHO 1:  Não me interrompa, sim? Onde eu estava?... Ah... No teu encalço! — Como sempre, não faço outra coisa — A floresta adentro, menino

correndo. Uma coruja, um gato-do-mato miando. Os gritos vão ficandolonge, vão sumindo...

VELHO 2:Só eu sei como era lá.

VELHO 1: Num minuto o menino — o mais corajoso da cidade — tropeça num cipó e bate com a cabeça — arranhão fundo, né? Doeu? — Menino se levanta e percebe que está sozinho.

VELHO 2: Nem tão sozinho assim, não é mesmo, camarada?

VELHO 1:Sozinho e com medo. Mas a floresta nem tinha começado ainda. Faltavamuito. Dois passos e nosso herói voltava pra casa — e eles pensando queàquela altura, você já devia ter topado com algum castelo, com a gruta dodragão, a misteriosa Casa de Chocolate.

VELHO 2:Quase isso. A Floresta Negra era um sonho antigo. Não cabia nos livros.

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VELHO 1: Nem a metade. Teriam que juntar todos os livros da escola, misturar tudo,embaralhar as páginas...

VELHO 2:

Mas voltando. Você ia me seguindo...VELHO 1:Quase dois passos à sua frente. Aquilo era mesmo fascinante. Não dava

  pra parar. A aventura nem tinha começado — Espera: agora estou melembrando... Tinha um som, uma música. Aquilo fez meus olhosfaiscarem! — Vou ficar te devendo essa, pode anotar no seu caderninho!

VELHO 2:Fico agradecido. Obrigado por lembrar.

VELHO 1:Mas as lembranças eram suas, esqueceu? Quem tem que agradecer sou eu!

VELHO 2:De nada. Disponha sempre delas.

VELHO 1:Com prazer. “A Grande Incursão na Floresta Negra” — Vou morrer tedevendo essa — As árvores crescendo até quase tampar o Sol, dinossauros

 passando ao longe. Fiquei feliz como nunca. Meu coração batendo forte.

VELHO 2: Nossa. Eu pensei que era o meu que batia forte.

VELHO 1:Isso é o que eu nunca entendi. Naquele lugar. A aventura apenascomeçando. E você de repente fica estancado, com medo, horrorizadomesmo. Eu ainda te chamei, acenando assim — “Pode vir, perigo mesmo,só a vinte mil léguas!” — Que nada: menino apavorado tapando osouvidos. Os olhos fechados. Não arredava o pé do chão. Feito uma mulamedrosa.

VELHO 2:Mas você ainda tinha o papel-das-minhas-lembranças na mão. Podia seguir em frente.

VELHO 1:Sem você? Abri o papelzinho de novo e a linha acabava. Ponto final. Nemmais uma palavra. Seis horas do grande herói sentado no chão, sem fazer nada, sem ouvir nada. Como eu poderia ir adiante? Vontade não faltou.

VELHO 2:Dois covardes, então. Eu e você. Dois medrosos no meio do mato.

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VELHO 1:Mas não foi isso que, tarde da noite, voltando pra casa, você deixou que

  pensassem de você. Turma levantando o senhorzinho nos braços — osobrevivente — mamãe agradecendo a Deus, o cinto do papai não estalariamais. Era uma festa, uma festa de coroação. Pro novo rei!

VELHO 2:Ao menos uma vez podia ser assim. Eu precisava de um momento meu.Que pensassem. Ninguém precisava saber a verdade. Ninguém nuncasoube.

VELHO 1:Por favor, me respeite. Eu não sou ninguém!

VELHO 2:Queira me desculpar, grande enxerido.

VELHO 1: No meio deles, vendo você voltar eu só tinha mesmo vontade de rir. Rir alto. Gargalhar feito o capeta.

VELHO 2:Essa foi boa, camarada. E por que não riu?

VELHO 1:Ora, quem disse que eu não ri? Ri baixinho — Não queria ser inconveniente e estragar a festa!

VELHO 2:Agradecido. Mesmo. Você, como sempre, soube ser discreto. Sabe a horaem que nessa vida precisamos ser sérios.

VELHO 1:Sérios? Outra piada sua. Das grandes. Não faço outra coisa na vida que rir de você. Rir alto — ouça, preste bem atenção: é isso que até essas paredestêm feito desde o início dos tempos: rir de você, meu caro, rir até sangrar os ouvidos! Vamos ficar pra sempre aqui, rindo até estourar os pulmões,rindo até o Fim do Mundo!

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TERCEIRO MOVIMENTO

 Passagem de tempo.

VELHO 2:

Ria até o trem chegar e eu rir por último! Você pode enfiar todas asminhas lembranças no cu!

VELHO 1: Nossa, que coisa mais feia! Essa grosseria de sempre...

VELHO 2:Estamos falando feito duas crianças — aquele tempo passou.

VELHO 1: Não passa. Posso provar que não passa.

VELHO 2: Não vamos jogar de novo. Estou ficando velho pra esse jogo.

VELHO 1:Mais uma partida, camarada! Pode escolher as cartas.

VELHO 2:Já chega. Preciso prestar atenção — não posso perder o trem de vista.

VELHO 1:O trem, outro jogo...

VELHO 2:Jogo nenhum. As lembranças, talvez — Já lhe disseram que você sabecontar histórias como ninguém? Tem uma imaginação de ouro, não seicomo não soube tirar proveito disso; podia ter ficado rico! — mas o trem éreal, talvez a única coisa verdadeira nesta história.

VELHO 1:Quer encostar o ouvido nos trilhos? Vai que podemos ouvir os trilhosvibrando...

VELHO 2:Boa ideia!

VELHO 1:Isso se você achar os trilhos...

VELHO 2: Não começa.

VELHO 1:Aqui é a estação, não é? Ou era? Já foi alguma coisa há mil anos atras. O

sol ainda era vermelho e tinha uma estação — linda, toda pintada de azul-limão, aquele entra e sai...

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VELHO 2: (caindo no jogo) Pessoal todo junto, acenando um adeus com a mão, família toda reunida...

VELHO 1:Lá se ia o mais novo soldado pro front, a grande promessa da cidade.

VELHO 2:Lembra como o meu caçula ficava bonito de farda?

VELHO 1:Outro trem voltando e uns chegavam sem braço, outros sem uma perna ouduas, aleijados de todo tipo, algum mais heroico vinha encaixotado, comuma bandeira por cima, mas todos cantando feito loucos — e estavamloucos mesmo!

VELHO 2:

Até os encaixotados cantavam. Não podiam desfalcar o coral.VELHO 1:Mas você não estava na estação naquela tarde, não é? Não queria ouvir amúsica, nem cantar com eles.

VELHO 2:Eu não podia. Tinha que trocar uma lâmpada, foi isso.

VELHO 1: (dando um soco no ombro do velho 2)  Não sabe o grande show que perdeu, garoto!

VELHO 2:Eu não aguentava mais o breu daquela casa.

VELHO 1:Chamaram a orquestra, o prefeito, os afiadores de faca, monges tocadoresde sino, o ceguinho da gaita, os motociclistas barulhentos.

VELHO 2:Toda noite eu tropeçava em alguma coisa. Nem tinha mais coragem de ir 

 pegar água na cozinha.

VELHO 1:O prefeito juntou todo mundo. Chamaram o maestro. Alguém teve a ideiade assar um porco.

VELHO 2:Maldita lâmpada. Não prestava há anos e eu sempre deixando pra outrodia. Uma preguiça de subir na escada...

VELHO 1:O padre não queria comer porco. Começaram a discussão entre matar o

 porco ou não.

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VELHO 2:Uma dor nas costas. Um cansaço. Pegar a escada na despensa...

VELHO 1:Alguém propôs matar o padre mesmo — Era a coisa certa, embora o porco

fosse mais saboroso — Começaram a brigar: os maronitas de um lado e osturcos otomanos, do outro.

VELHO 2:Pesava. Enquanto arrastava a escada me lembrei por que não trocavanunca aquela maldita lâmpada!

VELHO 1:Depois vieram os armênios... e deu-se o carnaval! Cabeças de um lado,explosões, gritos, golpes de baioneta.

VELHO 2:Valeu a pena o esforço. Ficou uma beleza. A casa clarinha como de dia!

VELHO 1:Os garçons e os homens da Cruz Vermelha vieram contar os mortos eferidos — eram tantos, e crianças também, muitas, crianças nessas horasnão podem faltar, nunca deixam de fora da festa as crianças!

VELHO 2:Aquela luz clareando tudo, inundando tudo. Eu podia ver a sala iluminada.Os retratos na parede. A poltrona onde o meu caçula vivia brincando. O

relógio... seis da tarde. O trem chegando. Eu estava atrasado! Como pudeesquecer, meu Deus? O meu caçula voltando da guerra...

VELHO 1:Mas quem disse que a festa ia terminar por causa de algumas cabeçasteimosas? O maestro mandou que voltassem a cantar. Todos. Até osfantasmas ficaram em posição.

VELHO 2:Vesti a camisa e saí correndo.

VELHO 1:Todo mundo cantando alto — eu não tive coragem de cantar, nunca fuimuito afinado — cantando marchinhas de antigos carnavais.

VELHO 2:Atravessei a rua correndo, peguei um táxi.

VELHO 1:Algum vizinho incomodado com a algazarra ligou para polícia.

VELHO 2:Aquele trânsito.

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VELHO 1:Música numa hora daquelas? Tão tarde da noite?!

VELHO 2:Eu quase matei o taxista. Saltei do táxi e vim correndo mesmo.

VELHO 1:Recolheram todos para a delegacia.

VELHO 2:Dobrei a esquina, vi a estação.

VELHO 1:O delegado queria matar um. Pavio curto aquele senhor.

VELHO 2:

Entrei na estação.VELHO 1:Vazia. Tinham recolhido todos. Quem chegasse nem imaginava a festa queacabaram de fazer.

VELHO 2:Aquele silêncio. Pisei na plataforma. Silêncio. Nenhuma alma.

VELHO 1:Você atrasado como sempre. Perdendo o melhor da festa.

VELHO 2: Nenhuma alma, nenhum trem — já tinha zarpado! — Mas bem ali...

VELHO 1:... o embrulho.

VELHO 2: (apontando) Tinham deixado ali.

VELHO 1:Um presente de natal. Desse tamanho.

VELHO 2:  Na certa devem ter esperado por mim... Alguém fez a gentileza dedescarregar.

VELHO 1:Já é meia-noite? Pode abrir o presente, garoto! O bom velhinho não seesquece de ninguém! “Seja rico ou seja pobre / O velhinho sempre vem”

VELHO 2:Cheguei perto. Encostei essa mão na madeira. Abri o tampo. O tampo...

Silêncio.

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VELHO 1: (disparando)Puta que o pariu! De novo com essa ladainha?!

VELHO 2:A guerra, eles não...

VELHO 1:Porra de guerra nenhuma! Não teve guerra, carambolas! Em que mundovocê acha que estamos?

VELHO 2:Um minuto de silêncio pra eles.

VELHO 1:Silêncio. Muito silêncio. A paz e o silêncio. Guerra nenhuma. Isso foialgum filme que você viu.

VELHO 2:Filme nenhum. Foi uma guerra terrível. (apontando) Olhe bem pra ele. Eleé a prova!

Silêncio.

VELHO 1: Não estou vendo nada...

VELHO 2:Como não? O caixão, caramba!

VELHO 1: Não tem caixão nenhum, meu caro.

Velho 2 percebe o espaço vazio onde deveria estar o caixão.

VELHO 2:Cabeça minha. Isso foi há muito tempo. Como poderia estar aqui? Procemitério. Foi pra lá que levamos depois.

VELHO 1:

Vou ter que contar a verdade pra você de novo?

VELHO 2: Não começa.

VELHO 1:Eu queria ser razoável com você. Juro. Mas tem horas que o senhor nosobriga a cometer algumas grosserias, cada deselegância...

VELHO 2:Por favor. Você pode parar. Eu não vou insistir com isso. Prometo.

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VELHO 1:Caçula? Um menino forte, não é? Ah, cabeça minha... não me lembro deter lido isso em lugar nenhum...

VELHO 2:

Pelo amor de Deus.VELHO 1:Acho que quem está ficando gagá sou eu. Deve ser isso. Cabeça minha...

VELHO 2:Mas, como eu estava dizendo, foi bom ter trocado a lâmpada. Você

 precisava ver como a casa ficou iluminada.

VELHO 1:Imagino. Você sentado na poltrona, olhando tudo, até pegar no sono.

VELHO 2:Cansaço, uma dor nas costas... Eu já era velho naquele tempo!

VELHO 1:Trocou a lâmpada, nosso herói trocador de lâmpadas!

VELHO 2:Ver as coisas funcionando...

VELHO 1:Ficar olhando tudo. Que beleza nossa casa arrumada!

VELHO 2:Você não acha?

VELHO 1:A mesma poltrona. Os retratos na parede — não: estou variando de novo.A parede vazia, sem retratos. A casa vazia, imensa, só você dentro,lembra?

VELHO 2: ( rindo )Como posso lembrar? Não consigo lembrar de nada, esqueceu? Vocêroubou as minhas lembranças. Ficou com todas.

VELHO 1:Assim é bem mais fácil, não é? Uma parede branca, sem retratos. Umacasa branca, lâmpada acesa, como um torneira aberta, transbordando deluz pela casa.

VELHO 2:Muita luz mesmo. Dava pra notar a quilômetros!

VELHO 1:

A luz aumentando, até inundar tudo. Você subindo as escadas, correndo pro segundo andar. Fugindo apavorado.

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VELHO 2:Experimente a luz nos pulmões pra você ver como é.

VELHO 1:Luz aumentando. Nosso herói engatinhando no telhado. Uma enchente de

luz. De repente, olha e percebe a cidade inteira inundada. Você ali, oúltimo náufrago, o sobrevivente, boiando pelo mar de luz.

VELHO 2:Isso está escrito também?

VELHO 1:Tudo. Essa deve ter sido a parte mais empolgante. Dessas que quando secomeça a ler, não dá mais pra parar.

VELHO 2:

Então continue que eu estou gostando. Está ficando divertido.VELHO 1:Uma onda derruba tudo. Você — como não poderia deixar de ser, é claro

 — não sabe nadar. Começa a se debater feito um desesperado.

VELHO 2:Aquilo era o fim do mundo. O dilúvio de luzes brancas.

VELHO 1:Se era. Você nada daqui, uma braçada dali, se agarra em alguma coisa.

VELHO 2:Eu estou lembrando. Essa parte eu me lembro!

VELHO 1:Uma coisa de madeira. Grande. Cabia alguém dentro.

VELHO 2:A única coisa que podia me salvar. Só o que dava pra me agarrar naquelahora. Eu fechei os olhos e me segurei nela.

VELHO 1: Naquela porra de caixão.

VELHO 2:Foi a enchente. Deve ter sido. Revirou o cemitério. Libertou todos osdefuntos.

VELHO 1:E entre eles, um todo especial, que não aguentava mais ficar preso!

VELHO 2:  Nem mais um dia. Me agarrei forte a ele. Agora você se estrepava pra

valer. Alguma coisa era de verdade naquela história toda. Alguma coisa

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que eu vivi. Que aconteceu de verdade. Algo que você não podia tirar demim.

VELHO 1:Percebeu isso meio tarde...

VELHO 2:Azar. Percebi quando tinha que perceber. Alguma coisa real,verdadeiramente real, mais real que você, forte como um tapa no rosto,mas que deixa a gente feliz pelo menos uma vez na vida. Meu filho. Umtapa no rosto acordando a gente de uma bebedeira infernal. A minha vidaali, pelo menos uma única vez, era minha de verdade, toda minha!

Silêncio.

VELHO 1:

Tá escuro. Casa escura. Alguém precisa trocar essa lâmpada...

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QUARTO MOVIMENTO

 Passagem de tempo.

VELHO 2:

Que foi? Perdeu a língua? Não vai dizer mais nada? Quem te ouviu falar esse tempo todo com certeza fez outra imagem de você. Eu esperava mais.Palavra. Esperava mais de você.

VELHO 1: Não perde por esperar.

VELHO 2:Falando feito um dragão, fogo saindo pela boca, cada palavra fritando agente feito brasa, um show. Olha, vou te dizer uma coisa: por um minutovocê me fez pensar que isso tudo aqui não tinha um propósito, que estamos

aqui por nada.

VELHO 1:E não estamos? Por um minuto eu pensei mesmo que estávamos...

VELHO 2: Nem adianta. Pode parar, reverendo. Não comece com outro sermão peloavesso

VELHO 1:Obrigado pelo elogio.

VELHO 2:O dedo em riste, apontado pra mim, sempre apontando pra mim. Pra ondequer que eu fosse, pro Inferno — eu e você no Inferno, sempre, bem juntos

 — olhando pra você — sim, eu percebia você me espreitando sempre, emcima de uma árvore, atrás de uma vitrine — quando ainda existiam vitrinesnessa porra de cidade, as ruas cheias de gente, mocinhas passando com osorvete, num domingo de sol.

VELHO 1:Cabelos anelados, sorvete de morango, os brincos...

VELHO 2:Você lembra como era? Algo de bom você tinha que guardar das minhasmemórias. Algo que preste, você conseguia reparar, não é? Pelo menosuma coisinha.

VELHO 1:Cabelos anelados, sorvete de morango, os brincos... brincos de brilhanteou vidro mesmo?

VELHO 2:

Brincos desse tamanho, não dava pra adivinhar assim. Bastava olhar aqueles brinco passando. O sorvete de morango e aquela vontade de nunca

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mais parar. De seguir em frente, atravessar a pracinha, duas voltas pela ruaapinhada de gente, girassóis gigantes, o camundongo malabarista.

VELHO 1:O camundongo — a grande atração, depois dos semáforos piscantes!

VELHO 2:O engraxate-perdigueiro, a louca paixão do homem-estátua pela suicida, a

 pipoca doce cobrindo os telhados. O trem podia demorar cem anos que acidade seguia em frente, no domingo nosso de cada dia, feito a moça

 barbada na quermesse dos gagos, distribuindo beijos.

VELHO 1:Um beijo pra mim, ela não cobrava. Fazia por cortesia.

VELHO 2:

  Não cobrava de ninguém, seu besta. Beijava todo mundo por ternuramesmo. Era uma santa, aquela menina! Quando ninguém estava olhando, amulher-barbada fazia milagres.

VELHO 1:Teve uma vez que uma mijadinha dela salvou a vida de um velho

 beberrão.

VELHO 2:Aquele sem-vergonha!

VELHO 1: Não foi um só: foram vários. As mães faziam fila.

VELHO 2:Um dia ela caiu dura. Foi o fim. Morreu menininha ainda. Cada fiodaquela barba virou uma relíquia. O pessoal guardava na carteira umfiozinho assim. Com o tempo ninguém sabia mais distinguir se aquilo eraum fio de barba ou um pentelho mesmo!

Os dois riem juntos.

VELHO 1: Nossa. Você realmente é demais!

VELHO 2:Bondade sua.

VELHO 1:Um mestre. Porra, eu tenho que confessar: você é perfeito. Por umsegundo, você quase me tira do sério.

VELHO 2: Não precisa parar de rir.

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VELHO 1:Me dá um autógrafo? Se não for pedir muito, é claro. Um autógrafo seuvale mais que um pentelhinho da mulher-barbada!

VELHO 2:

A velha comédia de sempre...VELHO 1:Bem velha mesmo...

VELHO 2:Mas que continua. Você aí pode querer a minha cabeça espetada na parededa sala.

VELHO 1:Esses cabelos brancos... O último urso do Alasca!

VELHO 2:Me ver empalhado?

VELHO 1:O ilustríssimo está empalhado. Não reparou?

VELHO 2:Quem sabe? Posso ter morrido faz tempo...

VELHO 1:Muito tempo, pode apostar.

VELHO 2:Os dois bem mortos, então.

VELHO 1:  Naquele leilão das tuas lembranças, eu soube que ficaríamos juntos parasempre — Aceitar isso foi a pior parte. Mas era mais forte do que eu.

VELHO 2:Alguém mais fraco do que eu? Nunca pensei que fosse encontrar.

VELHO 1:Pode comemorar, meu caro. Aproveite o seu momento.

VELHO 2:Um momento meu de verdade?

VELHO 1:Inteirinho. Aproveite antes que passe.

VELHO 2: Não passa. O tempo parou, lembra? Este instante é meu para sempre. Até o

trem chegar.

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VELHO 1: Não duvido. Talvez você tenha alguma coisa no bolso que eu não tenha.Um momento.

VELHO 2:

Pode apostar que sim.VELHO 1:Essa coisa que me faltou — isso mesmo: alguma coisa fez falta pra mimtambém, acredite — o tempo. Quando acordei pro mundo, alguém seachegou e me deu de presente — pode rir, existia alguém pra mimtambém, uma vida que eu podia jurar que era só minha, rala talvez, vidinhade nada, mas por um triz era minha de verdade. Uma história minha,começando...

VELHO 2:

Como todo mundo, “uma história”...VELHO 1:... “quase começando”. Alguém chegou perto de mim e me deu esserelógio quebrado, os ponteiros parados, uns números que eu não podia ler,nem sei se são números...

VELHO 2:Poético.

VELHO 1:

Foi-se o tempo, o cheiro, as mãos sempre limpas, nenhum suor, nada. Issoo ilustre nunca vai entender como é.

VELHO 2:O tempo da poltrona, da lâmpada acessa, dessa espera na estação?

VELHO 1:Um tempo onde se pode morar. Me tiraram isso e o sangue das veias. Nãofosse aquele leilão, seria o meu fim.

VELHO 2:

Ou não teria fim.VELHO 1:

 Nesse caso muito pior. Não ter fim é algo mais apavorante que morrer. Eu precisava de você, seguir os seus passos, viver a sua vida — embora devoconfessar que foi decepcionante, quase patético, uma vida bem ordinária.

VELHO 2:Que você ficou do lado de fora olhando.

VELHO 1:Imagine a minha decepção. O desapontamento. Aquilo era frustrante.Como quem para, numa noite de Natal — alguém sozinho, sem ninguém,

 parando em frente a uma janela de uma casa — e olha a ceia, a mesa farta

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  — a barriga roncando, um remorso teimoso aqui no fígado... — ascadeiras... vazias. A casa vazia. Alguém do lado de fora com fome eaquela mesa farta esperando uma família que resolveu dormir mais cedo

 — vai entender — e não beliscou nem um pedaço daquele pernil.

VELHO 2:Como um cachorro num churrasco?

VELHO 1:Um cachorro vira-lata expulso do churrasco. Do lado de fora da casa.Olhando tudo da calçada.

VELHO 2:Mas o churrasco não era o que parecia. No natal nunca estamos tão felizesassim. Aliás, no natal o pernil sobre a mesa e a garrafa de vinho são aúnica coisa sincera de verdade.

VELHO 1:O pernil e o vinho intactos, a noite inteira. Não venha me dizer que foifácil olhar um pecado daqueles e não poder fazer nada.

VELHO 2:Mas chovia. Sempre chove em setembro.

VELHO 1:Mais um motivo pro rei se esconder sob as cobertas.

VELHO 2:Os motivos foram tantos, meu caro...

VELHO 1:Imagino. Ficar coberto enquanto o mundo inteiro dança. Eu estava lá e

  pude ver. O pernil dançando sobre a mesa. O baile do peru de natal, adança louca das passas, tudo girando, numa festa dos diabos — vocêouvia? Com certeza ouvia...

VELHO 2:Claro. Com um barulho daqueles ninguém consegue dormir. Talvez do

lado de fora, lá na calçada mesmo, eu poderia respirar.VELHO 1:Por que não?

VELHO 2:Por um segundo eu quase abandonava as cobertas e escapava pela janela

 — não seria a primeira vez, lembra? — iria até a rua e quem sabe, no meioda rua...

VELHO 1:Ia me pegar desarmado. Eu sem ter onde me esconder. Seria o flagrante

 perfeito!

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VELHO 2:Seria. Eu ia te pegar de surpresa.

VELHO 1:Seria meu fim.

VELHO 2:Ou não. Por que logo numa noite de natal? Merda — meio piegas pensar numa coisa dessas, sendo natal...

VELHO 1:Isso nunca. Pelo amor de deus. Isso é golpe baixo!

VELHO 2:Calma. Ali sob as estrelas poderíamos fazer uma trégua — por umminutinho só — uma breve pausa. Eu tirando um maço de cigarro do

 bolso...VELHO 1:Se fumava tanto naqueles tempos...

VELHO 2:Dividindo um cigarro com você.

VELHO 1:Mas eu não fumo!

VELHO 2: Nós dois dividindo um cigarro, vendo a fumaça roçando a lua...

VELHO 1:Bonito. Gostei. Um cigarro só não faz mal...

VELHO 2:Como dois velhos amigos, dois irmãos — isso quase fomos por um triz,não é mesmo?

VELHO 1: Nunca. Alguma coisa não está encaixando direito nessa história...

VELHO 2:Tem razão. O cigarro não poderia disfarçar por muito tempo. Mesmofumando o maço inteiro, mais outro...

VELHO 1:Alguma coisa impossível entre nós dois. O mundo pequeno demais paranós dois...

VELHO 2:Hora de partir, então. Fim de conversa. Fim de jogo. Olho pra rua, você

teimando em olhar pra janela... Num segundo eu te dou a minha camisa, osmeus chinelos velhos e deixo você entrar. Uma troca, o que você me diz?

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Eu sem o tempo, você com todo o meu tempo pra viver, uma mesa postainteira esperando por você, lhe dando as boas vindas.

Silêncio.

VELHO 2: Não me olhe com essa cara. Não me diga que não gostou da ideia.

VELHO 1: Naquela noite.

VELHO 2:Você fez que não. Mas por dentro ficou feliz como nunca. Eu pude ver emseus olhos. Pelo menos uma vez na vida eu sabia mais de você que você demim. Eu estava no comando.

VELHO 1:Mas entrar assim... não era tão fácil...

VELHO 2:Quando você abriu os olhos já estava sentado na cabeceira da mesa, com ataça de vinho estendida, todos olhando pra você, esperando pelo brinde!

VELHO 1:Quase fiz um discurso... Se não fosse tão piegas numa noite de natal fazer discurso...

VELHO 2:Essa parte eu perdi. Já estava longe. Não importava mais. Só queria andar depressa até a estação...

VELHO 1:Me deixou naquela casa. Para sempre.

VELHO 2:Eu precisava correr. Depressa.

VELHO 1:Mas isso foi há tantos anos, tantas luas...

VELHO 2:Mas cheguei, não cheguei? Estou aqui, na velha estação...

VELHO 1:Devo confessar que sim.

VELHO 2:Correndo ofegante, cada vez mais depressa... Não podia perder o trem!

VELHO 1:

Os cabelos ficando branco a cada esquina...

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VELHO 2:Atravessar a última rua me custou mais quinze anos — imagino o quevocê não passou por lá, quantos natais você não pôde farrear naquela casa.

VELHO 1:

 Não diga bobagem. Seu plano foi inútil. O truque não deu certo.VELHO 2:Você ficou para trás, não foi? Sentado na poltrona, trocando lâmpadas,uma lâmpada depois da outra — o trocador de lâmpadas!

VELHO 1: Não foi bem assim.

VELHO 2:Estou aqui na estação, não estou? Cheguei a tempo!

VELHO 1:Chegou mesmo? Tem certeza? Em que tempo você acha que estamos?

VELHO 2:Eu na estação, você comendo a porra do pernil!

VELHO 1:Ora, ora... Nem uma coisa, nem outra, meu caro. Não sou tão bobo como

  pareço. Não ia cair assim na armadilha. Vim atrás, mordendo seucalcanhar, feito cachorro. Eu sou sua sombra — me acostumei a isso faz

tempo.VELHO 2:Então chegamos os dois no mesmo lugar.

VELHO 1:Ou lugar nenhum.

VELHO 2:Ah, quer saber? Chega de história. Não vou mais dar ouvidos. O trem deveestar quase chegando.

VELHO 1:Trem? Trem nenhum. Não estamos na estação ainda — Você se perdeu nomeio do caminho, velho. Se perdeu em algum lugar no meio do nada, semcasa, sem tempo, sem trem e sem esperança. Você perdido no meio donada.

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QUINTO MOVIMENTO

 Passagem de tempo.

VELHO 2:

Então nos perdemos os dois...

VELHO 1:Como? Eu segui cada passo seu. Cada movimento ficou registrado.

VELHO 2:Escapou de uma armadilha e caiu em outra. Entramos juntos na gruta dodragão. Uma gruta escura e sem saída.

VELHO 1:Eu nunca perdi o leme das coisas. Você não me enganaria duas vezes.

VELHO 2:Veio comigo até a beira do precipício e continuou andando, sempre emfrente. A cabeça erguida, esse nariz em pé. Nem percebeu quando o chãosumiu. Uma hora vamos ter que olhar pra baixo. Uma hora vamos começar a cair.

Silêncio.

VELHO 2:Perdeu a voz de novo? É vertigem?

VELHO 1: Não é isso.

VELHO 2: Não vai olhar o quebra-cabeça? Nem uma linha mais?

VELHO 1:Você sabe melhor que eu que não.

VELHO 2:Veio contando com a sorte. Pensando com os seus botões: “Vou seguir os

 passos daquele velho e ver no que dá. Com certeza não vai longe. Vai ficar rodando em círculos”.

VELHO 1: Não foi sempre assim?

VELHO 2:“E vou me divertir. Uma nova aventura, outra piada, nem o elefante-trapezista faz a gente se divertir assim”... Ah, dessa vez quem vai rir soueu.

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VELHO 1:Bravo. Você conseguiu. Achei mesmo que daqui pra frente seria contigo.

  Nada de lembranças gastas. Coisas novas, sim? Lembranças saindo doforno a todo instante!

VELHO 2:Pelando. No forno ainda. Fresquinhas, não é?

VELHO 1:Isso mesmo. Não contava com um sobressalto desses... Eu e você

 perdidos, em lugar-nenhum. Num tempo estranho assim...

VELHO 2: Não está gostando? Ah, que maldade! Guardei a melhor parte pra você.

VELHO 1:

Eu francamente preferia algo diferente...VELHO 2:O cardápio não está mais na sua mão. Não tem mais o que escolher. Asminhas lembranças desbotaram para sempre, não há mais nada para ler nelas. Brancas, minhas lembranças brancas.

VELHO 1:O velho decidiu morrer hoje. Decidiu botar um fim em tudo.

VELHO 2:

Fim? A aventura está só começando. Agora vem o melhor momento dafesta, a hora em que tiramos a princesa escarlate para dançar.

VELHO 1:A festa acabou. Foram todos embora.

VELHO 2:Acabou pra você que vai ter a fineza de ir embora.

VELHO 1:Ir embora? Pra onde? Sem você não tenho pra onde ir. Nem mesmo porqueir, entende?

VELHO 2:A princesa escarlate me estende a mão.

VELHO 1: Não me deixe.

VELHO 2:Tem uma música, nessa hora. Uma música bonita.

VELHO 1:

Está ficando escuro.

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VELHO 2:Mas aquela moça me olha com uns olhos... Aperta minha mão assim, deum jeito — se não fosse uma princesa eu ia pensar que era uma daquelasmeninas do Hotel Veneza.

VELHO 1:Isso não são modos de tratar uma dama.

VELHO 2:E quando dançamos, ela me abraça forte — eu posso sentir o coração dela

 batendo como um tambor. Bate mais alto que a música.

VELHO 1:A princesa escarlate nas mãos de um velho babão.

VELHO 2:

  Nem a orquestra bate tão alto assim. Com todos aqueles trombones, osmugidos do coro das vacas-leiteiras, os sinos, a algazarra de confete.

VELHO 1:Esse texto era pra ser meu. Tem alguma coisa errada nesse drama.

VELHO 2:Ah, mas a moça-barbada olhando do outro lado do salão, mordendo oslábios de ciúmes...

VELHO 1:

Mas ela não tinha morrido? Não tinham morrido todos?VELHO 2:Eu não posso ver uma mulher chorando. Tiro ela pra dançar também.

VELHO 1:Seu velho maroto!

VELHO 2:Você não tinha ido embora? Ainda não foi? Vai ficar a noite inteira

 plantado me espiando?

VELHO 1:Desculpe. Essa minha mania de não saber pra onde ir. De sempre esperar 

 por você.

VELHO 2:Mania mesmo. Isso cansa!

VELHO 1:Eu juro que um dia me emendo.

VELHO 2:

Assustando as moças. Perco um minuto com você e elas vão emboradesconsoladas.

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VELHO 1:Desculpe mesmo. Eu até estava gostando de ver os três se divertindo. Não

 precisavam parar por minha causa.

VELHO 2:

Tarde pra pedir desculpas.VELHO 1:Por favor. Chame as duas de volta. Diga que eu sinto muito. Faça qualquer coisa — qualquer coisa mesmo — mas não pare de dançar com elas.

VELHO 2:Agora é tarde.

VELHO 1:Eu insisto.

VELHO 2:A festa já acabou. Foram todos embora.

VELHO 1:Mas na melhor parte?! Quando finalmente...

VELHO 2:Quer parar? Chega! Não tem mais festa nenhuma!

Silêncio. Velho 1 começa a chorar como criança.

VELHO 2: Não precisa ficar assim...

VELHO 1:Minha última esperança. Aquilo era minha última esperança!

VELHO 2:Tarde. Os vizinhos iam reclamar. Amanhã é segunda-feira.

VELHO 1:E daí? Que importa, caramba?

VELHO 2:As pessoas precisam trabalhar.

VELHO 1:Trabalho nenhum. Isso tudo acabou. Os dias da semana não contam mais,esqueceu? A festa sim... Ela conta muito!

VELHO 2:Talvez se eu...

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VELHO 1:Você acabando com a minha última esperança. Só eu e você, aqui, nesselugar-nenhum. Eu e você no escuro.

Silêncio.

VELHO 2:Engraçado... Tem horas que eu me pego lembrando — não, desculpe, esse

 privilégio é só seu — talvez só imaginando, imaginando coisas...

VELHO 1:Imaginando. Só imaginando mesmo. Eu levei as suas lembranças comigo.Se elas não valem porra nenhuma, nem por isso vou me desfazer delas.

VELHO 2: Não precisa se desfazer. Pode guardar todas no armário do banheiro.

VELHO 1:Estão num lugar seguro.

VELHO 2:Enfim... Às vezes eu me pego imaginando coisas. Meu velho, um dia — faz tempo, pode ter acontecido há muito tempo mesmo, eu menino ainda...

VELHO 1:Cem anos, pode contar.

VELHO 2:Tanto faz. O tempo não importa mais. Importa de verdade aquela velha

 piada que ele gosta de repetir — repete até hoje, dá pra ouvir, todo santodia, meu velho volta do cemitério só pra vir me contar a piada. Todo santodia. Conta e volta pro Reino Encantado de Presuntos. Uma piada meioestranha, nunca entendi qual a graça. Talvez contando pra você euentenda...

VELHO 1: Não vai adiantar.

VELHO 2:Deixe de ser teimoso... melhor ouvir a piada do meu pai...

VELHO 1:  Não tem piada nenhuma. Isso não estava no quebra-cabeça. Você estáinventando.

VELHO 2:Que seja então. Eu inventei tanta coisa mesmo. Uma coisa a mais, outra amenos...

VELHO 1:Outro truque? Você já ganhou a partida. O Grande Trocador de Lâmpadas

 pode subir no trono agora!

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VELHO 2:Como é mesmo a piada? — Sou horrível contando piadas, um desastre,não repare — Bem... Lá vai... Dois homens amarrados no trilho do trem.

 Numa noite escura. Um breu. O otimista e o pessimista. Ali, amarrados notrilho do trem — Eu sei, parece coisa de faroeste, mas é mesmo, faz de

conta que é assim e continua ouvindo...

 À medida que conta a piada, interpreta os personagens, num teatro íntimo.

VELHO 2:O pessimista olha apavorado pr’aquela situação. “Vamos morrer,camarada. Daqui a pouco o trem vai passar por cima de nós”, ele diz,suando frio, feito um peixe, “o trem vai fatiar nós dois”. O otimista suspiraaliviado. “Quando a gente morre vê uma luz branca cegando a gente”.“Porra, mas isso é bom?” “Sei lá! Mas se é uma luz é porque deve ser Jesus e os anjinhos rechonchudos vindo.” “Mas eu preferia não ver porra

nenhuma. Preferia estar em casa, camarada.” “Não diga uma coisa dessas!Sempre existe uma saída. Pra tudo na vida há uma solução”. “Jesus e osanjinhos? Porra!” “Tem sempre um lado bom.” “Lado nenhum. Só o breumesmo, sem saída nenhuma”. “Não diga uma coisa dessas... Estou vendouma luz no fim do túnel!”... O pessimista olha desconfiado e diz furioso:“É o trem chegando, seu idiota!”... e o pessimista ri de nervoso, pelomenos uma vez ele ri de verdade esse pessimista. O otimista olhaespantado... suspira... “Nossa, verdade, é o trem mesmo, vai vir com tudo,mas olhando bem... olhando por outro ângulo... você está na minha frente,camarada”, e ri, o otimista, ri mais alto, feito um bêbado, e riem os dois, ootimista e o pessimista, o otimista sempre lembrando: “Ganhei a partida,

camarada, pelo menos vou ser quem nessa história vai rir por último!”

Velho 2 ri com vontade. Velho 1 fica sem entender.

VELHO 2:Desculpe. Deve ter sido saudade, sei lá. Ou essa certeza que vamos proInferno mesmo.

 Ri novamente. Tenta segurar o riso, se recompondo.

VELHO 2:

Eu nunca entendi qual é a graça dessa piada.

Velho 1 continua sem entender.

VELHO 2:Em todo caso, meu caro, me desculpe mas já está na hora.

Velho 1 se levanta intrigado, tentando impedir.

VELHO 2:  Não faça essa cara. Olhe, tome a chave da minha casa. Pode ficar com

tudo. Melhor aceitar dessa vez.

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VELHO 1:Isso é brincadeira?

VELHO 2:Brincadeira... Se não for brincadeira, estamos perdidos!

VELHO 1:Conversa. Você está maluco...

VELHO 2:Só estou esperando o meu trem. Desde o início eu não faço outra coisa,camarada. Esperando um trem para lugar nenhum. Esperança.

Ouve-se um som de trem em crescendo. Luzes laterais da coxia sinalizando um tremque vai chegar à estação. O efeito deve ser o mais real possível, como se fosse um tremde verdade, cruzando o palco da direita para a esquerda. Velho 1 fica desesperado.

Velho 2 pega a maleta, acena um adeus para o Velho 1 e se adianta até o local doembarque. Fica olhando vitorioso pro ponto onde vem o trem, olhando como se fosseum garoto. Luzes crescem até inundar o espaço.

FIM

® Registrado na Biblioteca Nacional Autor: PEDRO MURAD 

Tel.: 21 2225-1120

Cel.: 21 8846-3618

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