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FÁTIMA CRISTINA LEISTER UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU: o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (1946-1973) SÃO PAULO - SP 2012

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FÁTIMA CRISTINA LEISTER

UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU:

o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (1946-1973)

SÃO PAULO - SP

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

FÁTIMA CRISTINA LEISTER

UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU:

o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (1946-1973)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em História Social, sob

a orientação da Profª Drª Maria Antonieta

Martinez Antonacci.

SÃO PAULO - SP

2012

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Banca Examinadora

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Aos povos da Guiné-Bissau

e de todas as Áfricas

Povos da Guiné-Bissau

painel de Augusto Trigo*

Aos meus ancestrais e Irãs protetores

que me permitiram “ouvir os tambores”

* Augusto Fausto Rodrigues Trigo nasceu em Bolama (Guiné-Bissau), a 17 de Outubro de 1938. Foto do painel

feita por Rui Fernandes e publicada no blog Luís Graça e Camaradas da Guiné. Disponível em:

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com.br/2007/10/guin-6374-p2177-artistas-da-guin.html. Acesso em: 12

set. 2010.

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AGRADECIMENTOS

Certamente, há muito para agradecer e também é certo que alguém será

involuntariamente esquecido, razão pela qual adianto minhas sinceras desculpas.

À minha querida orientadora e amiga, Profª Maria Antonieta Antonacci, cujo

exemplo e sapiência serviram de inspiração para buscar o melhor de mim durante os

momentos solitários da escrita.

Aos professores da Universidade Veiga de Almeida, onde tudo começou, em

especial ao coordenador do curso de História, Prof. Paulo Sérgio Miranda Alves, pelo

incentivo e disponibilidade.

À coordenadora do curso de graduação em História da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP), Profª Mariza Romero, pela paciência e auxílio durante

momentos complexos e burocráticos, além da amizade e da excelência de suas aulas.

A todos os dedicados e competentes professores da graduação e pós-graduação

em História da PUC-SP, e, em especial, a Antônio Rago Filho, Estefânia Fraga, Heloísa Cruz,

Luiz Antônio Dias, Maria do Rosário Peixoto, Olga Brites e Yvone Avelino, agradecimentos

sinceros por terem escolhido lecionar e terem ouvido e criticado minhas ideias e lamentos.

Ao Prof. José da Silva Horta, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,

e ao Prof. Carlos Manuel Valentim, da Escola Naval de Lisboa, pelas sugestões, material

disponibilizado e auxílio desde o outro lado do Atlântico.

Aos companheiros Cristina Carvalho, Jorge Lúzio, Victor Martins e Carla Vieira,

pelos bons e inesquecíveis momentos vividos em sala de aula e fora dela. Aos meus amigos,

de perto e de longe, apenas por serem meus amigos.

Aos meus irmãos, Elza e Ari, meus cunhados João Carlos, Eloísa e Janice, meus

sobrinhos Fernanda, Eric, Fabiano, Vanessa, Conrado, Larissa e Jéssica, a gratidão por

fazerem parte da minha família.

Aos meus pais, Julieta e Ariovaldo, meu querido irmão João e meu sobrinho

Marcus Vinícius, com eterna saudade.

Ao meu companheiro Jorge Barcellos e nossa filha Thaís, razões de minha

existência, meu amor incondicional.

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_ O Senhor declara que há um Deus supremo

que fez o céu e a terra - disse Akunna durante uma

das visitas do sr. Brown. _ Nós também acreditamos

n’Ele e O chamamos Chukwu. Ele fez o mundo

inteiro e todos os outros deuses.

_ Não existem outros deuses - retrucou o sr.

Brown. _ Chukwu é o único Deus e todos os demais

são falsos. Vocês entalham um pedaço de madeira,

como aquele lá (e apontou para os caibros, dos

quais pendia o ikenga entalhado de Akunna), e

dizem que é um deus. Mesmo assim, continua não

passando de um simples pedaço de madeira.

_ Certo - respondeu Akunna. _É mesmo um

pedaço de madeira. Mas a árvore da qual foi

cortado foi feita por Chukwu, da mesma maneira,

aliás, que todos os deuses menores. Chukwu fez

esses deuses para serem os mensageiros através dos

quais todos nós podemos nos aproximar d’Ele.

“O Mundo se despedaça”, Chinua Achebe

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RESUMO

Não obstante a promulgação da Lei 10.639, que desde 2003 tornou obrigatório o ensino de

História, Cultura Africana e Afro-Brasileira, ainda há muito que avançar para minimizar

deficiências curriculares nacionais e reorientar reflexões sobre as Áfricas e os africanos. Há,

ainda, um vasto campo a ser explorado para preencher os vazios que a marca colonial legou.

Nesse sentido, a fim de ampliar horizontes históricos e contribuir com debates historiográficos

já formulados, o foco do presente trabalho dirige-se para a região da atual Guiné-Bissau,

especialmente no período em que compunha o Império Colonial Português. Praticamente

ausente da historiografia disponível no Brasil, as culturas de povos guineenses foram

destacadas dos registros contidos no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Esta revista

colonial, publicada entre 1946 e 1973, encontra-se hoje disponibilizada através da página

eletrônica do Projeto Memória de África e Oriente. Coordenado pela Fundação Portugal-

África, este projeto tem como objetivos coletar, tratar, digitalizar documentos espalhados

pelos centros de documentação de países lusófonos, disponibilizando-os aos pesquisadores

através da internet. O Boletim Cultural é uma fonte variada composta por 110 edições

publicadas quadrimestralmente de forma ininterrupta. São mais de 20 mil páginas, das quais

foram priorizados os artigos de cunho etnográfico, os quais, embora permeados pelos filtros

desqualificadores europeus, ofereceram a oportunidade de fazer contato com culturas pouco

conhecidas, majoritariamente constituídas na tradição oral. A intermediação realizada pelos

articulistas não inviabilizaram o processo. Ao contrário, através de seus estranhamentos, a

diferença foi evidenciada e ganhou uma linguagem escrita publicada nas páginas da revista,

que expressava, materialmente, a lógica colonial construída sob a interação entre política e

ciência. Nessa medida, esse conhecimento “científico” proporcionou, apesar de intenções

subjacentes, um canal de diálogo com vários atores que construíram histórias próprias,

contudo encapsuladas, até hoje, por outras que lhes foram impostas. Assim, orientados pela

política colonial “científica”, os trabalhos publicados nas páginas do Boletim Cultural

permitiram as primeiras aproximações com a Guiné-Bissau e seus elementos constituintes de

meados do século XX.

Palavras-chave: Guiné-Bissau, povos africanos, saberes, cultura material, liturgia e magia,

danças e cerimonial.

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ABSTRACT

In spite of the publication of Law 10.369 in 2003, which made the teaching of the history and

culture of Africa and African Brazilians compulsory, there is still much to be done to reduce

the defects in the national curriculum and offer better guidance for the study of the Africas

and of Africans. There are still many avenues that need to be explored in order to fill the gaps

that the colonial legacy has left. To this end, in order to broaden historical horizons and

contribute to the historiographical debate already under way, the focus of the present work is

directed at the area occupied by current Guinea-Bissau, especially during the period of the

Imperial Colonial Portuguese Empire. This area has been almost totally neglected in Brazil,

but the culture of Guinean people has been described in the annals of the Boletim Cultural da

Guiné Portuguesa. This colonial periodical, published between 1946 and 1973 is now

available online as the Projeto Memória de África e Oriente. Coordinated by the Fundação

Portugal-Africa, the aim of this project is to collect, collate and digitalize documents at

present scattered among the documentation centers of various Portuguese-speaking countries

and make them available to researchers on the internet. The Boletim Cultural is a varied

source made up of 110 editions published uninterruptedly three times a year. There are over

20,000 pages, whose main emphasis is on articles concerning ethnographics, which, although

often seen from an undesirably European perspective, offer the opportunity to study these

little-known cultures, which have been mostly handed down by oral tradition, and despite the

cultural bias they display, these articles are nevertheless well worth reading. In fact,

paradoxically, this alien perspective serves to highlight certain cultural features and the very

characteristic language used in them expresses quite pointedly the colonial logic upon which

political and scientific studies were based. In this way, this “scientific” knowledge, despite its

subtexts, has enabled a dialog to take place with various actors who made their own history,

despite this remaining restricted even until today, by others who sought to control it. Thus,

despite being strongly influenced by “scientific” colonial attitudes, these studies published in

the pages of Boletim Cultural, did allow the first approaches to be made to Guinea-Bissau and

its constituent elements in the 20th

century.

Keywords: Guinea-Bissau, African peoples, knowledge, cultural material, liturgy and magic,

dances, ceremonies.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Mapas:

Guiné-Bissau e países vizinhos 14

Senegâmbia 21

Divisão administrativa da Guiné Portuguesa 62

Ocupação do espaço pelos povos da Guiné, 1950 69

Regiões onde foi aplicado o Inquérito Etnográfico de 1946 75

Impérios africanos 78

Trocas comerciais na Alta Costa da Guiné - séc. XVII e XVIII 79

O “Império Português” - séc. XVI e XIX 79

Povos da Guiné-Bissau, por região 86

Guiné-Bissau e Guiné, mapa linguístico 86

“Carta étnica das densidades da população”, p/ Avelino Teixeira da Mota, 1954 88

Mande 94

Reinos Mandinga, Fula e outros reinos; Senegâmbia, séc. XVIII 96

Regiões de origem dos Fula da Guiné 97

Arquipélago dos Bijagó, principais ilhas 100

Arquipélago dos Bijagó e as gerações donas do chão 103

Figuras:

Cartilha colonial de Pedro Muralha, 1928 32

Sem título (grupo de jovens Bijagó correndo) 36

Juvenal Cabral 47

Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), n.1, 1946 49

Brasão de armas da Guiné Portuguesa 56

Felupe com seus instrumentos de caça 58

Gráfico comparativo: recenseamentos de 1950 3 1991 65

Árvore genealógica da “tribo Papel” 93

Djam-Djam, rei de Bubaque/Rubane 104

Primeiros “cidadãos diplomados” 121

Exposições coloniais 122

Família do tipo clânico do grupo Balanta-Mané 129

Morança-conjunto de palhotas dum agregado familiar do litoral 130

Tabanca em Ambeno, Ilha Roxa, Arquipélago dos Bijagó 132

Tipos de morança 132

Vista aérea de uma morança em construção 133

Bijagó: dança do vaca-bruto 137

Bijagó: dança do peixe-verga 137

Dança fúnebre Felupe 138

Dançarinos Balanta 138

Dançarinos Bijagó 138

Dança de mulheres Fula 139

Bombolon 139

Balafon 140

Mandinga, judeu, tocador de korá 141

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Músicos Felupe 141

Moça Papel aos pés do poilão 145

Irãs dos Manjaco de Bassarel, região de Cacheu 146

Interior de uma balouba Bijagó 147

Oniká 150

Excertos do Alcorão 152

A “bolsa de mandinga”de Abdul Injai 152

Um ferreiro - Odjiqui - da Ilha Formosa 158

Ferreiro fabricando adornos 159

Mestre escarificador manjaco 165

Moça Manjaca com escarificações 165

Rapaz Manjaco e seus dentes afiados 165

Meninas Balanta em dança ritual por ocasião do fanado 166

Rapazes Balanta regressando do fanado 166

Homem Grande Beafada, mulheres e filhos 169

Conselho de anciãos Balanta 170

Amortalhamento de um cadáver 172

“Cansarés” 172

Funeral Manjaco 174

Cobertura de cova tumular de um régulo de Biombo 175

Irã Manjaco assinalando galerias tumulares 176

Mulheres Felupe ceifando arroz 183

Homens Balanta arando a terra 183

Quadros:

Série “Memórias” do Centro de Estudo da Guiné Portuguesa 74

Inquérito Etnográfico de 1946 - distribuição dos grupos e funcionários 75

Ideias portuguesas associadas aos povos guineenses 123

Repartição das responsabilidades e funções nas diferentes fases da vida do Bijagó 161

Tabelas:

População “não civilizada”, Censo de 1950 64

Atividades praticadas pela população “não civilizada”, p/ gênero, Censo de 1950 66

População do Arquipélago dos Bijagó, Censo de 1950 101

Distribuição da população no Arquipélago dos Bijagó, por ilha, Censo de 1950 102

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

CAPÍTULO 1: CONHECIMENTOS SOB MEDIDA 30

1.1 Uma “ciência colonial” à moda lusitana 30

1.2 Conhecimentos coloniais à serviço da metrópole 44

1.2.1 As primeiras notícias 44

1.2.2 O Centro de Estudos e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa 47

1.3 Individualizar é preciso: fiscalizar e administrar 60

1.3.1 O Recenseamento de 1950: a Guiné em números 62

1.3.2 O Inquérito Etnográfico de 1946 70

CAPÍTULO 2: DESCOBRINDO A GUINÉ-BISSAU 77

2.1 Os tempos coloniais 77

2.2 A ocupação do chão guineense 87

2.2.1 O continente 93

2.2.2 O Arquipélago 100

2.3 A política colonial: a Guiné sob a “tutela” do Estado moderno 109

CAPÍTULO 3: POVOS DA GUINÉ-BISSAU E O BOLETIM CULTURAL 125

3.1 Aspectos das comunidades em meados do século XX 125

3.2 A magia dos povos da Guiné 142

3.3 Viver a magia 155

3.3.1 O cotidiano 155

3.3.2 Do nascimento à outra vida 162

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 179

BIBLIOGRAFIA 184

FONTES DO BOLETIM CULTURAL DA GUINÉ PORTUGUESA 199

APÊNDICE 203

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11

APRESENTAÇÃO

Chama a atenção o fato de navios de guerra norte-americanos estarem fundeados

ao largo da costa da Guiné-Bissau para garantir a ordem em caso de uma “eventual convulsão

política e militar”1, durante as eleições presidenciais do último 18 de março de 2012. A

Guiné-Bissau, país que apenas em 1974 alcançou a independência política de Portugal ainda

evidencia resquícios da “violência” política e exploração econômica nitidamente presentes.

Há indícios de que possua, ao longo da costa, em mar aberto, riquezas a explorar, tais como o

petróleo. Por essa e outras razões, as ações engendradas por países além Estados Unidos,

fazem lembrar disputas vividas por povos africanos desde o impacto da partilha da África no

final do século XIX.

Essa notícia teve pouca divulgação, assim como a fotografia do candidato Kumba

Yalá2, em trajes tradicionais, brandindo um machado típico de sua comunidade. A experiência

política na Guiné-Bissau tem sido conflituosa: golpes e contragolpes foram desfechados nos

últimos 15 anos e as consequências sociais e econômicas são, e continuam sendo, danosas. O

cerne do problema tem sido pouco debatido, cabendo às instituições internacionais, em

tentativas intervencionistas, tratar apenas sintomas, sem levar em conta as verdadeiras

responsabilidades sobre as causas da “doença”. Talvez não seja conveniente expô-las,

exatamente por serem conhecidas.

Não tenho dúvidas de que, alguns anos atrás, estes fatos passariam ao largo de

minhas atenções, pois não estaria envolvida com leituras, pesquisa e compromissos oriundos

deste deter-me na Guiné-Bissau. Até então, por conta de minha experiência durante os anos

fundamentais de escolarização (1963-1973), as Áfricas e os povos africanos praticamente

inexistiam em meus horizontes. Naqueles anos, estudar história era apenas um desafio para a

memória, pois, em tempos de ditadura militar, os alunos brasileiros “tinham que se contentar,

ou aturar, uma História de influência positivista, recheada por memorizações de datas, nomes,

de herois, listas intermináveis de presidentes e personagens”3.

1 CASSAMA, Lassana. Estados Unidos atentos às eleições na Guiné-Bissau. VOA Portuguese. Washington, 13

mar.2012.(jornal eletrônico). 2 Kumba Yalá já foi presidente entre 2000-2003 quando foi afastado por um golpe militar. Desde sua

independência política, nenhum presidente da Guiné-Bissau completou o mandato. 3 OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na

literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, 2003, p. 424.

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Uma das sequelas deixadas por esse tipo de ensino é que estudantes brasileiros, e

de outros países com práticas similares, passaram a conceber o continente africano através da

história europeia e norte-americana. Estas, pautadas no pensamento hegeliano4, propagaram

uma não historicidade em África, bem como relegaram o negro africano à coadjuvante de suas

próprias histórias. No Brasil, até hoje, tais discursos ainda são reproduzidos, isto é, a África

continua sendo apresentada apenas como pano de fundo para as narrativas dos feitos e das

conquistas europeias, como se seus movimentos dependessem de ações de outrem.

Nas últimas décadas, no entanto, essas “verdades” têm sido discutidas por

estudiosos de várias áreas do conhecimento. A partir desses debates, o que era inquestionável

perdeu consistência, pois foram sendo elucidadas as estratégias articuladas pelo poder, que

manipularam ou ocultaram os fatos para atender conveniências e interesses. Por essa razão, a

África, que antes era percebida como algo vazio e desinteressante, passou a ser “preenchida”

por povos e culturas africanas, repletos de histórias e memórias, que ainda reclamam seu

devido lugar.

Ao preparar um seminário sobre a Guiné-Bissau, em 2008, de início ficou

evidente o pouco conhecimento sobre a geografia política do continente africano5. Precisei de

certo tempo para localizar aquele país dentre os demais6, pois um olhar desatento pode,

facilmente, confundi-la com a Guinée (antiga colônia francesa) ou com a Guiné Equatorial

(antiga colônia espanhola)7.

4 HEGEL, Friedriech. Filosofia da História. Brasília: UnB, 1999.

5 O professor e antropólogo africano Kabengele Munanga afirma que o desconhecimento dos brasileiros em

relação à África passa por questões básicas. Com muita propriedade ele considera importante “ensinar aos alunos

brasileiros alguns aspectos da geografia política africana em geral, que a maioria dos brasileiros, até adultos,

ignora bastante” (MUNANGA,2009, p.9).

6 Atualmente, o continente africano é constituído pelos seguintes países: África do Sul, Argélia, Angola,

Benin, Botsuana, Burkina Faso, Burundi, Comores, Cabo Verde, República Centro africana, Chade, Camarões,

República Democrática do Congo, República do Congo, Costa do Marfim, Djibuti, Egito, Eritreia, Etiópia,

Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Quênia, Lesoto, Libéria, Líbia, Madagascar,

Malaui, Mali, Mauritânia, Mauricio, Marrocos, Moçambique, Namíbia, Níger, Nigéria, Ruanda, São Tomé e

Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Seychelles, Somália, Suazilândia, Sudão, Sudão do sul, Tanzânia, Togo, Tunísia,

Uganda, Zâmbia e Zimbábue.

Há uma questão antiga e pouco divulgada referente ao Saara Ocidental, único território africano que ainda não é

independente. Desde 1976, quando da saída dos colonizadores espanhóis, a região tem sido alvo de conflitos

entre a Frente Polisário, representante do povo Saaráui e o Marrocos. Segundo Pio Penna Filho (2010, p.3),

“muitas atrocidades foram cometidas de lado a lado (mesmo que de forma desproporcional) e o território virou,

literalmente, um campo minado [...] o governo marroquino ergueu um impressionante muro de areia com uma

extensão de 2.500 a 2.700 km”. Estes fatos são pouco comentados e revelam, entre outras arbitrariedades, que a

falta de comprometimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na condução política do problema, é

reflexo da influência tanto da França quanto dos Estados Unidos, os quais apoiam as pretensões marroquinas na

região. 7 A Guiné-Bissau, a Guinée e a Guiné Equatorial pertencem à região também denominada Guiné (Alta Guiné,

Senegâmbia, etc.) que é também integrada pelo Senegal, Gana, Cabo Verde, Costa do Marfim, Benim,

Camarões, Gabão, Gâmbia, Libéria, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa e Togo. A região da Guiné

assumiu várias denominações e não possui uma delimitação espacial constante ao longo do tempo. Sobre essas

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13

A Guiné-Bissau é um pequeno país da costa oeste africana. Sua extensão

territorial varia, pois a parte litorânea é regularmente inundada pelas marés que avançam até

40 quilômetros para o interior. Por conta desse fenômeno natural diz-se que a Guiné-Bissau

possui 36.125 km² na maré baixa e 28.000 km² na maré alta. O mar desempenha um papel

muito importante, pois

duas vezes ao dia ele se arremessa contra a terra, irrompendo pelas valas dentro e

formando [...] enseadas, penínsulas, istmos, ilhas e ilhotas. Os cursos de água, que

serpenteiam na Guiné, não são rios. São valas lodosas invadidas pelo mar. Apenas

em duas valas, que se abrem ao fundo duma outra mais vasta, a qual corta as terras

baixas da costa em duas metades quase perfeitamente iguais, vêm encontrar com o

mar fios de água doce, cascalhando sobre fundo de pedra solta: Geba e Corubal.

[...]. Foi o mar que directamente ou indirectamente contribuiu para a formação de

todos os entrepostos [...], com seu arfar ciclópico, enchendo e esvaziando as valas,

inundando terras que ficam à beira delas, conduzindo para o interior, bem para o

interior, uma fauna marítima, que serve de alimento a inúmeros seres, incluindo o

homem, tem sido o fulcro de todo o sistema orgânico local. 8

A região costeira é recortada por braços de mar que a distingue do relevo

essencialmente plano da região do interior, de poucas altitudes, não ultrapassando os 300

metros nos planaltos de Bafatá e Gabu. A faixa de florestas, incluídas as matas de Oio,

Catanhez, Cabedu e de Cacine, acompanha o limite máximo das marés. Em direção ao litoral

este cenário dá lugar a amplas planícies com muitas palmeiras e valas lodosas cercadas pelos

manguezais.

O clima é tropical (úmido e quente) e as estações do ano dividem-se entre os

meses de dezembro a abril (seca) e maio a novembro (chuvas). A riqueza e a diversidade da

fauna e da flora chamam a atenção na Guiné-Bissau, no entanto, em meados do século XX, já

se observava que o leão e o elefante, animais anteriormente abundantes na região, estavam

escasseando9, pois “um ou outro muito raramente ainda se (via) na mata de Cantanhez”

10.

Um cordão de ilhas junto à parte continental - o arquipélago dos Bijagó - é

separado da parte insular pelos canais de Geba, Pedro Álvares, Bolama e Canhabaque. As

fronteiras que separam a atual Guiné-Bissau da Guinée (République de Guinée,1958) e do

variações e designações ver: HORTA, José da Silva. “O nosso Guiné”: representações luso-africanas do espaço

guineense-(sécs. XVI-XVII). 8 QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.22, 1967, n.85-86, p.21. O avanço das

águas do mar sobre os dois rios (Geba e Corubal) produz um fenômeno localmente conhecido como macaréu. 9 Segundo dados apontados no Plano de Acção Nacional para a Biodiversidade, elaborado em 2002 pelo

Ministério de Desenvolvimento Rural e Agricultura, Recursos Naturais e Ambiente da República da Guiné

Bissau, o elefante (Loxodonta africana cyclotis - Blumenbach) foi considerado uma espécie em extinção e o leão

(Panthera leo senegalensis- Mayer) foi apontado como animal raro no território guineense. Cf. http://www.accc-

africa.org/documents/Strat_Biodiv_bissau.pdf. 10

QUINTINO, Fernando Rogado. op.cit, p.32.

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Senegal (République du Sénégal,1960) foram fixadas pelo acordo luso-francês de 1886. Foi a

partir desse ato que “ficaram incorporadas a Guiné Portuguesa as ilhas do arquipélago”11

.

O arquipélago, que já foi conhecido como Ilhas de Buam12

, entre outras

designações, está localizado na costa ocidental da África à frente dos rios Geba, Grande e

Tombali. Com uma área aproximada de 2.624 km², é constituído por 88 ilhas e ilhéus, foi

classificado pela Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas -

UNESCO, em 1996, como reserva da biosfera13

. A maioria das ilhas é desabitada e são

utilizadas, pelas populações locais, na agricultura, em cerimônias, libações ou rituais de

iniciação.

A vegetação é tipicamente tropical, com florestas úmidas, manguezais e savanas.

Muitas de suas riquezas naturais ainda não são conhecidas ou exploradas e as águas que

envolvem as ilhas são consideradas das mais ricas em peixe de toda a África. Sua fauna

também é particularmente rica e diversa abrigando, entre outros animais, hipopótamos14

,

tartarugas e golfinhos. Muitas aves migratórias permanecem no arquipélago até o final do

inverno de seus hábitat naturais, entre elas os flamingos, pelicanos e garças.

A partir da História Geral da África15

travei os primeiros “contatos” com o

continente. Esta obra, iniciada em 1964, foi produzida ao longo de 30 anos com

11

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Bissau, v.22,

1967, n.85-6, p.16. 12

Cf. cartografia do navegador Aires Tinoco de 1578. 13

Em 1996 foi criada a reserva Bolama-Bijagós em razão da exuberante fauna e flora preservadas. 14

O hipopótamo do arquipélago possui uma particularidade interessante: são os únicos no mundo a viverem em

água salgada e, por isso, por vezes são designados como hipopótamos marinhos. 15

No início de 2008 a biblioteca da PUC-SP possuía apenas os dois primeiros volumes da coleção História

Geral da África. Em 2011 a obra completa, finalmente, chegou ao público brasileiro, inclusive àquela biblioteca

e está, também, disponível através da internet na página do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

Guiné-Bissau e países vizinhos, vistos por satélite.

GUINÉ-BISSAU

SENEGAL

GUINÉE ARQUIPÉLAGO

DOS BIJAGÓ

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15

financiamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(UNESCO). Surgiu em resposta ao clamor por uma história da África a partir da perspectiva

dos próprios africanos e em consonância com os objetivos daquela entidade, “criada no pós-

guerra, período da cisão do mundo em dois grandes blocos e da Guerra Fria, bem como das

lutas de libertação dos povos africanos contra os poderes coloniais europeus”16

.

Em meados da década de 1990, mais de 300 cientistas, coordenados por um

comitê formado por 39 especialistas, majoritariamente africanos, completaram o desafio de

reconstruir a historiografia africana em tentativas de se libertar dos estereótipos do olhar

eurocêntrico. Desse significativo conjunto destaquei a análise de Amadou Hampâté Bâ17

sobre a tradição africana. Trata-se de leitura imprescindível para a compreensão de uma

mundividência singular, na qual o universo visível

é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo

invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa

vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem

em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal,

animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito

precisa cuja forma pode variar segundo as etnias18

ou regiões. A violação das leis

sagradas causaria uma perturbação no equilíbrio das forças que se manifestaria em

distúrbios de diversos tipos. Por isso a ação mágica, ou seja, a manipulação das

forças, geralmente almejava restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a

harmonia, da qual o Homem, como vimos, havia sido designado guardião por seu

Criador.19

A leitura da epopeia de Sundjata20

aumentou ainda mais meu interesse sobre

temas africanos. Nesta obra, o historiador e escritor Djibril Niane21

apresenta a marcante

16

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. História

Geral da África. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190257POR.pdf 17

Hampâté Bâ nasceu em 1900 em Bandiagara, região das savanas do oeste africano, atualmente o Mali.

Estudou e trabalhou na administração colonial francesa e, por indicação do diretor do Institute Français de

l’Afrique Noire (IFAN), em 1942, coletou narrativas de sociedades negro-africanas das savanas. Embora

educado na religião islâmica, sempre esteve ligado às suas raízes ancestrais e dedicou grande parte de seus

trabalhos à tradição oral. 18

Apesar das discussões em torno dos termos etnia/grupo étnico, vários autores os utilizam para referirem-se a

grupos humanos possuidores de características comuns, tais como língua, percepção de uma mesma

ancestralidade, costumes, etc. Obviamente, nas citações os termos estão transcritos tal como empregados pelos

autores. Porém, considerando que se trata de um termo impregnado de referências classificatórias, utilizado por

administradores e etnólogos coloniais, numa substituição “politicamente correta” do termo raça, ao longo do

presente trabalho preferi utilizar povos ou grupos ao fazer referências afins. 19

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. V.1.

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982 p.167-212, p.173. 20

NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a Epopéia Mandinga. São Paulo: Ática, 1982. Coleção Autores

Africanos, n. 15. 21

A obra de Djibril Tamsir Niane, nascido na Guinée (Conacri), foi lançada no Brasil, na década de 1980. Seu

trabalho fez parte do projeto “Coleção Autores Africanos” da Editora Ática (a maioria dos títulos publicados

encontra-se, infelizmente, esgotada). Outros títulos da coleção: De uma costela torta (Nuruddin Farah, Somália);

Dizanga dia Muenhu (Boaventura Cardoso, Angola); Flagelados do Vento Leste (Manuel Lopes, Cabo Verde);

O Astrolábio do Mar (Chems Nadir, pseudônimo de Mohamed Aziza, Tunísia); Aventura Ambígua (Cheikh

Hamidou Kane, Senegal); As aventuras de Ngunga (Pepetela, Angola); Climbiê (Bernard B. Dadié, Costa do

Marfim); O Mundo se despedaça (Chinua Achebe, Nigéria); Ilheu de Contenda (Teixeira de Sousa, Cabo

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16

trajetória daquele heroi e fundador do Império do Mali, contada pelo griô22

Mamadou

Kouyaté. Ao falar sobre seu trabalho como depositário do passado transmitido através da

palavra, Kouyaté tece críticas à história escrita:

Os reinos têm o seu destino traçado, tal como os homens: só o conhecem os

adivinhos, que investigam o futuro, cuja ciência dominam. Nós outros, griots reais,

somos os depositários da ciência do passado; mas quem conhece a história de um

país poderá ler o seu futuro. Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar

o passado; mas acontece que essa invenção matou a memória entre os homens: eles

já não sentem mais o passado, visto que a língua escrita não pode ter o calor da voz

humana. Todo mundo acredita conhecer, ao passo que o saber deve ser algo secreto.

Os profetas não escreveram, e sua palavra nem por isso é menos viva. Pobre

conhecimento, esse que se encontra imutavelmente fixado nos livros mudos...23

A importância do trabalho de Niane, segundo o historiador Boubacar Barry

(2001), reside no fato de ser a primeira obra que utilizou, exclusivamente, a tradição oral

como fonte, restabelecendo a figura do griô como guardião da memória. A tradição oral foi

equiparada aos registros escritos abrindo, assim, um caminho importante para historiadores

africanos24

e para a utilização de novos objetos e metodologias de pesquisa. Para Barry, “do

ponto de vista metodológico, as tradições orais são consideradas, acima de tudo, como

documentos de outra natureza, que são recolhidos para completar os documentos escritos de

origem europeia, principalmente.”25

Comumente, o período escravista do Brasil é estudado a partir das plantations,

dos “ciclos econômicos” ou do comércio europeu. A figura do negro é coisificada a ponto de

sua humanidade ser ignorada. Por essa razão a leitura de Los viajes de Equiano26

causou

surpresa, pois revelou ser possível uma história narrada a partir da experiência vivida pelo

africano escravizado Gustavus Vassa, ou melhor, Olaudah Equiano.

Verde). Apesar de nascidos em Portugal, também fazem parte da coleção as obras de Manuel Ferreira (Hora di

Bai) e de José Luandino Vieira (Luuanda e A vida verdadeira de Domingos Xavier). Um dos grandes

responsáveis desse projeto foi o Prof. Fernando Augusto Albuquerque Mourão, da Universidade de São Paulo,

que atualmente é coorientador da mestranda Joseneida Eloi com o trabalho O papel da coleção Autores

Africanos, iniciado em 2010. 22

Segundo Niane (1982, p.5), o termo griô (em francês griot) é utilizado para designar várias funções. Nas

sociedades africanas, em que o conhecimento era transmitido de forma oral, ou seja, pela Palavra, o griô

cumpria, entre outras, a função de transmitir a tradição histórica: “era o cronista, o genealogista, o arauto, aquele

que dominava a palavra, sendo, por vezes excelente poeta”. Com o passar do tempo passou, também, a ser

músico, percorrendo grandes distâncias, visitando vários povoados, tocando seu instrumento e falando do

passado. 23

NIANE, Djibril Tamsir. Sundjata ou a Epopéia Mandinga. São Paulo: Ática, 1982. Coleção Autores

Africanos, n. 15, p.65. 24

Como exemplo, Barry cita os trabalhos de Thierno Diallo (Fuuta Djalon), Abdoulaye Bathily (Gajaaga),

Mamadu Diuf (Kayoor), Umar Kane (Fuuta Toro), Sekené Mody Cissoko (Xaao) e o seu Royayme du Waalo.

Neles os autores abordaram, em grande maioria, o reino correspondente aos povos a que pertenciam. 25

BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Sephis. Rio de Janeiro: Centro de Estudos

Afro-Asiáticos, 2001, p.26. 26

VASSA, Gustavus. Los viajes de Equiano. Cuba: Editorial Arte y Literatura, 2002.

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17

Nascido em 1745 numa vila Ibo27

(Igbo, Ebo ou Heebo), no oeste da África,

Equiano, ainda muito jovem, foi capturado de sua aldeia juntamente com uma irmã mais

nova. Separado dela, foi “comercializado” várias vezes e passou por vários “senhores” de

lugares diferentes. Atravessou o Atlântico num navio de escravos e aportou em Barbados,

onde ficou brevemente, seguindo depois para a então colônia britânica da Virgínia. Ali foi

comprado por um tenente da marinha real, Michael Pascal, que o “rebatizou” Gustavus, em

homenagem ao rei Gustav I da Suécia28

. Vendido em 1763 a Robert King, trabalhou como

marinheiro, barbeiro, fabricante de vinho, e aprendeu a falar e escrever em inglês. Após

comprar sua alforria, em 1770, participou ativamente do movimento abolicionista na

Inglaterra e teve vários artigos publicados em jornais. Casado com uma inglesa branca,

Susannah Cullen, teve dois filhos e, com a ajuda de amigos, publicou, em 1789, As viagens

de Equiano, onde relata toda sua trajetória desde a aldeia Ibo. Lutou até sua morte, em 1797,

pelo fim do escravismo e revelou, através de sua obra, que a História pode ser escrita através

de diferentes perspectivas.

Ao escrever O Mundo se despedaça29

, o romancista, poeta, crítico literário e

professor Chinua Achebe30

destacou os efeitos do colonialismo. Mostrou, por exemplo, que

os interesses europeus despedaçaram mundos constituídos em tempos imemoriais.

Estabelecidos em espaços organizados, dos quais foram expropriados em nome da

“civilização”, muitos dos povos africanos foram manipulados em função de acordos políticos

e comerciais. O desalentado diálogo travado entre a personagem principal do romance,

Okonkwo, com um de seus pares, Obierika, expõe a barbárie:

_ Por acaso o homem branco entende os nossos costumes no que diz respeito à

terra?

_ Como é que ele pode entender se nem sequer fala a nossa língua? Mas declara que

nossos costumes são ruins; e nossos próprios irmãos, que adotaram a religião dele,

também declaram que nossos costumes não prestam. De que maneira você pensa

que poderemos lutar, se nossos próprios irmãos se voltaram contra nós? O homem

branco é muito esperto. Chegou calma e pacificamente com sua religião. Nós

achamos graça nas bobagens deles e permitimos que ficassem em nossa terra.

Agora, ele conquistou até nossos irmãos, e o nosso clã já não pode atuar como tal.

Ele cortou com uma faca o que nos mantinha unidos, e nós nos despedaçamos.31

27

Ibo é um dos povos estabelecidos na região sudeste da atual Nigéria. 28

O rei Gustav I (1496-1560) da Suécia foi o fundador da dinastia Vassa. 29

ACHEBE, Chinua. O Mundo se despedaça. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. 30

Albert Chinụalụmọgụ Achebe, assim como Equiano, nasceu entre o povo Ibo, em Ogidi , região sudeste da

atual Nigéria. 31

Ibid., p.198.

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18

Mundos repletos de saberes, histórias e culturas32

foram estrategicamente desqualificados.

Isto ocorreu, basicamente, pelo fato de terem sido classificados através de parâmetros

europeus, os quais, sob a primazia da razão cartesiana, apartaram da história tudo aquilo que

diferia de seus parâmetros e modelos de desenvolvimento.

Nestes últimos anos observei o reduzido número de obras publicadas e o exíguo

espaço concedido às questões africanas no mercado editorial brasileiro. Isto é facilmente

visualizado nas prateleiras das livrarias em geral e nos lançamentos em destaque. Na

biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por exemplo, não

existem mais do que uma dezena de livros sobre a África. Por outro lado, há considerável

bibliografia sobre a história francesa, inglesa, portuguesa ou estadunidense. Talvez isto seja

um reflexo da formação teórica de nosso sistema educacional, a qual, ao longo dos anos e sob

a hegemonia europeia e norte-americana, tem se pautado em historiografias lineares e

evolutivas33

. Há silêncios profundos, extensos e abrangentes, os quais urgem por ações

efetivas no sentido de rompê-los.

As incômodas inquietações decorrentes dessa trajetória encontraram abrigo na

indagação de Edward Said: “Quem deverá revelar e elucidar as disputas, desafiar e ter

esperança de vencer o silêncio imposto e a quietude conformada do poder?”34

. Desse encontro

surgiu a necessidade de “elucidar a disputa, desafiar e derrotar tanto o silêncio imposto quanto

o silêncio conformado do poder invisível.”35

Tais silêncios atuaram como forças

mobilizadoras que capturaram, irremediavelmente, minha atenção e conduziram ao tema do

Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de graduação em História36

.

A leitura de Aimé Césaire37

e Franz Fanon38

, dentre outros importantes

diaspóricos, chamou à reflexão acerca da responsabilidade com a qual deveria abordar

questões sobre a África e os africanos. Pensar sobre rótulos tais como o “nós” e “os outros”

ou o “ocidente” e o “resto”, por exemplo, permitiu que eu encarasse a zona de conforto na

32

A par dos significados do termo cultura, aqui é entendido conforme trabalhado por Raymond Williams

(2007, p.121), ou seja, um “substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou específico, indicando

um modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo da humanidade em geral”. 33

Sobre o ensino de história da África no Brasil ver OLIVA, Anderson Ribeiro. Lições sobre a África:

Diálogos entre as representações dos africanos no imaginário Ocidental e o ensino da história da África no

Mundo Atlântico (1990-2005). 2007, 404p. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de Brasília,

Brasília, 2007. 34

SAID, Edward. O papel público de escritores e intelectuais. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 30. 35

Ibid., p.34. 36

Sob a orientação da Profª Maria Antonieta Antonacci, o TCC transformou-se, em 2009, no Projeto de

Pesquisa: Os Povos da África do Oeste através do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa - 1946/1973.

Aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da PUC-SP foi o ponto de partida para o presente

trabalho. 37

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal Ediciones, 2006. 38

FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.

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qual estive por muito tempo. Conclui, incomodamente, que foram anos reproduzindo, sem

grandes questionamentos, discursos “adaptados” sobre o continente africano.

Apesar dos silêncios forçados pelo poder, surgiram as vozes e as lutas do

movimento negro no Brasil. Retomadas nas primeiras décadas do século XX39

, após a ilusória

“abolição”, sofreram um refluxo importante após o golpe militar de 1964. Apesar da

repressão, continuaram promovendo debates cada vez mais significativos e abrangentes,

porém as ações eram fragmentadas e não guardavam um sentido político de enfrentamento ao

regime. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) foi constituído e entrou em cena um

movimento politicamente organizado. (DOMINGUES, 2007). Uma de suas propostas,

apresentada em 1982, reivindicava a introdução do ensino de História da África nas escolas

brasileiras o que, após 21 anos, tornou-se realidade, ao menos formalmente, através da Lei nº

10.639/2003.40

A necessidade de uma lei específica evidencia a necessidade de reflexões e

debates. A começar pelo ensino de História, que, entre outros aspectos, “deveria considerar as

matrizes culturais da formação do Brasil”41

. Nas publicações e livros didáticos, que ainda

circulam nas escolas brasileiras, transparecem equívocos, ou seja, as narrativas insistem em

deformar ou omitir um passado que, em grande medida, ainda está por ser apreendido no

Ocidente. Há, portanto, muito que avançar no sentido de corrigir deficiências curriculares e

didáticas. Cléa Ferreira aponta que

a História e Cultura Afro-Brasileira quando não invisibilizada tem sido folclorizada

e estereotipada nos conteúdos didáticos, bem como as contribuições dos povos

indígenas. Os desafios são muitos para a superação dessas dificuldades e o papel das

39

A visibilidade do movimento negro no Brasil esteve mais evidente nas últimas décadas, contudo é

conveniente ressaltar que desde ele esteve presente desde o início do século XX. Naquela época os negros

uniram-se em torno de agremiações, sem cunho político, que, por vezes, incorporavam trabalhadores do mesmo

ramo de atividade. Segundo Petrônio Domingues (2007), a agremiação mais antiga de São Paulo foi o Clube 28

de Setembro, constituído em 1897. As maiores foram o Grupo Dramático e Recreativo Kosmos (1908) e o

Centro Cívico Palmares (1926). Em 1931, com a Frente Negra Brasileira (FNB), sucessora do Centro Cívico

Palmares, foi somado ao cunho assistencialista-cultural das antigas agremiações um perfil político formalizado

em 1936 com a constituição do Partido da Frente Negra Brasileira. Na década de 1930 as entidades, tal como a

FNB, visavam, principalmente, a inserção do negro na sociedade brasileira. Com a ditadura do Estado Novo de

Getúlio Vargas, os partidos foram extintos e houve grande repressão aos movimentos contestatórios. Sobre o

movimento negro no Brasil, especialmente nos anos da República, ver DOMINGUES, Petrônio. Movimento

Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo: Niteroi, v.12, n.23, p.100-123, jul.2007;

FERNANDES, Ricardo Luiz da Silva. Movimento negro no Brasil: mobilização social e educativa afro-

brasileira. África e Africanidades, Rio de Janeiro: ano 2, n.6, ago.2009, sem paginação, entre outras publicações. 40

A lei 10.639 de 09/01/2003 tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, em instituições

públicas e particulares, em caráter transversal, em todos os níveis de ensino no Brasil. Ela alterou o art. 26-A da

Lei no 9.394, de 20/12/1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Referido artigo passou

a vigorar com a seguinte redação: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e

privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira". A lei 11.645 de 10/3/2008 trouxe

nova alteração, ou seja, foi incluída a obrigatoriedade do estudo da história e da “cultura indígena”. 41

FLORES, Elio C. Etnicidade e ensino de História: a matriz cultural africana. Tempo. Niteroi, v.11, n.21,

p.65-81, Jul.2001, p.73.

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universidades e agências nacionais e estaduais de fomento é central, tendo em vista

os entraves que as hostes acadêmicas têm colocado para assumir uma ética na

produção de conhecimentos que reflitam um novo compromisso com a teoria, como

um espaço muito mais amplo de trocas.42

Das primeiras aproximações com a Guiné-Bissau, em 2008, reuni informações

que, de alguma forma, relacionavam-na com o Brasil. Durante o tráfico negreiro, por

exemplo, a região da Guiné forneceu escravos cujo destino, entre outros, foram os portos

brasileiros de Belém e São Luís. Este comércio não se prolongou por muito tempo, pois

perdeu a primazia para o litoral da Baía de Benin. O Brasil reconheceu a independência da

Guiné-Bissau em setembro de 1973, oficialmente em julho de 1974, antes mesmo da

“aceitação” dos portugueses43

. Paulo Freire44

, educador brasileiro que introduziu novos

métodos pedagógicos para a alfabetização, esteve na Guiné-Bissau, em 1977, prestando

consultoria para o projeto de reforma educacional durante o primeiro governo45

. Rogério

Andrade Barbosa46

, professor e escritor brasileiro, ex-voluntário das Nações Unidas na Guiné-

Bissau, também ali lecionou nos primeiros anos após sua independência e, hoje, é um

premiado recontador de histórias africanas.

O professor titular do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, nas áreas de

economia e administração, Ladislau Dowbor47

, foi coordenador técnico do Ministério do

Planejamento da Guiné-Bissau entre 1977 e 1981. A partir dessa experiência escreveu Guiné-

Bissau: a busca da independência econômica48

, uma análise das difíceis questões,

especialmente de ordem econômica, enfrentadas pelo novo país nos primeiros anos após sua

independência (e porque não dizer até os dias atuais). Relatou que o “fim do colonialismo

42

FERREIRA, Cléa Maria da Silva. Formação de professores à luz da história e cultura afro-brasileira e

africana: nova tendência, novos desafios para uma prática reflexiva. Revista ACOALFAplp: Acolhendo a

Alfabetização nos Países de Língua portuguesa, São Paulo, ano 3, n. 5, 2008, p.236-7. 43

A política externa brasileira em relação às colônias portuguesas em África caracterizou-se por avanços e

recuos. Até o governo Médici (1969-1974) o apoio a Portugal, principalmente junto à ONU, era mantido mesmo

após as denúncias de arbitrariedades cometidas pelo colonialismo lusitano. Havia, também, a parceria comercial

com a África do Sul em tempos de apartheid o que tornava mais difícil uma aproximação, não obstante os

interesses comerciais de ambos os lados do Atlântico. Segundo Svartman (2006, p.16), “o rápido

reconhecimento da independência das ex-colônias portuguesas neutralizou as críticas ao lusitanismo da política

externa brasileira”. 44

Sobre o trabalho de Paulo Freire na Guiné-Bissau ver: FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: uma

experiência em processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 45

O primeiro presidente da República da Guiné-Bissau foi Luís Cabral, irmão do líder revolucionário Amílcar

Cabral, que foi assassinado na Guinée (Guiné-Conacri) em 1973, poucos meses antes da independência da

Guiné. 46

Rogério Andrade Barbosa trabalha na área de literatura afro-brasileira e publicou mais de 70 livros sobre o

tema. Sobre seu trabalho e publicações ver: http://www.rogerioandradebarbosa.com/apresentacao.asp. 47

Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça; Doutor em

Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Cf.

http://dowbor.org/default.asp. 48

DOWBOR, Ladislau. Guiné-Bissau: a busca da independência econômica. São Paulo; Brasiliense, 1986.

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português” não significou autonomia ou o desvencilhar de pressões do mundo capitalista, que

continuaria desrespeitando as necessidades intrínsecas do novo país. Concluiu que

A Guiné-Bissau busca sem dúvida um outro desenvolvimento, mais justo, baseado

no mercado interno, adequado às suas necessidades reais. Mas o conjunto dos meios

financeiros e materiais deste desenvolvimento vêm de uma máquina internacional

rodada para promover a extraversão econômica, a implantação de multinacionais, a

monocultura de exportação. Entre a sua forma de vinculação internacional e as suas

opções internas, a Guiné-Bissau encontra cada vez menos espaço. O financiamento

externo, a tecnologia importada, aparecem como soluções mais fáceis e mais

rápidas para o desenvolvimento. Nem os financiamentos, no entanto, nem a

tecnologia são neutros. Com os meios, vêm os fins. E estes fins importados

raramente coincidem com os objetivos da população..49

Partindo dessas (poucas) informações

procedi a um levantamento historiográfico que,

obviamente, não esgota o que hoje se tem

publicado no Brasil sobre a África, a Guiné-

Bissau ou a Guiné “Portuguesa”. Consultando

autores africanos consagrados como Ki-Zerbo50

ou M’Bokolo51

, leituras obrigatórias para o

iniciante nos assuntos das Áfricas, percebi que as

referências à Guiné-Bissau ou à Guiné

“Portuguesa”, geralmente, as inserem num conjunto mais amplo, o qual assume várias

denominações tais como Alta Guiné, Senegâmbia52

, África Negra, África Subsaariana, entre

outros.

De acordo com o escritor português Mário Beja Santos (2008), muito pouco foi

publicado sobre a Guiné. Segundo ele, os relatos existentes são compostos, sobretudo até o

ano de 1936, por parcos testemunhos como os clássicos de André Álvares de Almada -

Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1594)53

- e Senna Barcellos - Subsídios

para a História de Cabo Verde e Guiné (1899)54

. Além destes trabalhos, os relatórios de

governadores e comandantes de campanha, bem como outros documentos oficiais,

compuseram a “historiografia” até 1938 quando João Barreto publicou História da Guiné,

49

DOWBOR, Ladislau. Guiné-Bissau: a busca da independência econômica. São Paulo; Brasiliense, 1986,

p.50-1. 50

KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África. v 2, São Paulo: Ática: UNESCO, 1982. 51

M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. São Paulo: Casa das Áfricas, 2009. 52

A região da Senegâmbia compreendia os atuais países do Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau chegando até ao

sul de Serra Leoa. Segundo Mamadou Mané (1989), a Senegâmbia foi o primeiro espaço de estruturas políticas,

formadas por negros, que os portugueses encontraram em meados do século XV. 53

ALMADA, André Álvares. Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde: desde o Rio Sanagá até os

Baixos de Sant’Anna.Porto: Typographia Commercial Portuense, 1841. 54

BARCELOS, Christiano José de Senna. Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné. Lisboa:

Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1899.

Senegâmbia

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1418-191855

. Somente em 1954 surgiu a Guiné Portuguesa56

, de Avelino Teixeira da Mota,

que também permaneceu “única” até o historiador francês René Pélissier, na década de 1980,

apresentar a História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-193657

.

Estudiosos de outras nacionalidades têm revelado aspectos plurais do continente

africano, embora a Guiné-Bissau não tenha sido abordada de forma específica. John Thornton,

por exemplo, analisou o impacto do comércio escravista nos dois lados do Atlântico, numa

“tentativa de resgatar essa pouco conhecida imigração de africanos para as Américas”58

.

Catherine Coquery-Vidrovitch organizou registros escritos deixados por viajantes,

exploradores, geógrafos e comerciantes, da antiguidade até o século XIX, e apontou “certos

aspectos significativos da descoberta pré-colonial”59

. James Sweet contribuiu “para a revisão

académica da diáspora africana, debruçando-se sobre os povos africanos e as culturas que

estes criaram no contexto do mundo colonial português”60

. Linda Heywood, com seu foco na

diáspora negra centro-africana no Brasil, revelou como “as dinâmicas culturais se fundiram

para influenciar a formação identitária e as tradições culturais entre as populações afro-

diaspóricas nas Américas e na África.”61

.

Percorrendo temáticas diversas, tais como migrações, reinos e impérios africanos,

comércio escravista, diáspora e expressões culturais afro-brasileiras, entre outras, estudiosos

no Brasil, na última década, têm garantido aproximação com as Áfricas, os povos africanos e

suas dispersões62

, assim como ofereceram trabalhos elaborados em face da lei 10.639/0363

.

55

BARRETO, João. História da Guiné- 1418-1918. Lisboa: edição do autor, 1938. 56

MOTA, Avelino Teixeira da. Guiné Portuguesa. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1954. 57

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

2001, v.1; 1997, v.2. 58

THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico 1400-1800. São Paulo:

Campus, 2003, p.11. 59

COQUERY-VIDROVITTCH, Catherine. A descoberta da África. Lisboa: Edições 70, 2004, p. 13. 60

SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007 p. 16. 61

HEYWOOD, Linda M. Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009, p.18. 62

Estão relacionadas apenas algumas obras de autores brasileiros publicadas nos últimos anos, a título de

exemplo: COSTA E SILVA, Alberto da. A Enxada e a Lança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011; SANTOS,

Gabriela Aparecida dos. Reino de Gaza. O desafio português na ocupação do sul de Moçambique (1821-1897).

São Paulo: Alameda, 2010; GEBARA, Alexsander. A África de Richard Francis Burton: Antropologia, política

e livre-comércio, 1861-1865. São Paulo: Alameda, 2010; FLORENTINO Manolo. Tráfico, Cativeiro e

Liberdade: Rio de Janeiro séc. XVIII-XIX. São Paulo: Civilização Brasileira, 2005; GOMES, Flávio.

Experiências atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o pós-emancipação no Brasil. Passo Fundo:

UPF, 2003; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo:

Companhia das letras, 2003; HERNANDEZ, Leila M.G.L. Os filhos da terra do Sol: a formação do Estado-

Nação em Cabo Verde. São Paulo: Selo Negro, 2002. 63

Estão relacionadas apenas algumas publicações brasileiras, a título de exemplo, que atendem às demandas da

lei 10.639/03: HERNANDEZ, Leila M.G.L. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São

Paulo: Selo Negro, 2005; ARNAUT, Luiz; LOPES, Ana Mónica. História da África: uma introdução. Belo

Horizonte: Crisálida, 2005; MATTOS, Regiane A. de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto,

2007; SERRANO Carlos, WALDMAN, Maurício. Memória D’África: a temática africana em sala de aula. São

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Alguns poucos brasileiros dedicaram estudos à Guiné. O antropólogo e professor

Wilson Trajano Filho, nos anos de 1987-88 e 1992, realizou pesquisas de campo, que

resultaram em artigos divulgados na Série Antropológica64

. A professora e socióloga Dilma

de Melo Silva viveu na Guiné-Bissau entre os anos de 1978 e 1984. Escreveu Por entre as

Dórcades Encantadas: os Bijagó da Guiné-Bissau65

, um olhar, certamente único, sobre um

povo praticamente desconhecido no Brasil.

Moema Parente Augel66

, que também viveu na Guiné-Bissau entre 1992 e 1998,

tem estudado, entre outros temas, a literatura daquele país. O desafio do escombro: nação,

identidades e pós-colonialismo na Guiné-Bissau67

, revelou que “com seu mosaico étnico e

consequente multiplicidade cultural, (a Guiné-Bissau) é um espaço onde naturalmente muitas

identidades convivem e se entrelaçam”.68

Porém, isto não expressa a constituição de uma

unidade ou uma identidade nacional, ao contrário, a Guiné-Bissau vive um contínuo processo

de buscar-se.

Através desses autores foi possível compreender que a Guiné-Bissau é constituída

por uma pluralidade singular, ou seja, num pequeno espaço geográfico coexistem múltiplas

falas, escritas, cores, vidas, gentes que compõem várias “Guinés”. A maior parte dos grupos

ali estabelecidos foi constituída dentro da tradição oral, em que a “palavra” falada exerce

outras funções para além da comunicação, sendo responsável, principalmente, pela gestão da

memória social.

A oralidade, é preciso esclarecer, não é um mero conjunto de histórias, lendas ou

relatos mitológicos. Como explica Maurício Waldman, “prefigura um conhecimento total,

vinculado a uma perspectiva cosmológica peculiar à consciência social negro-africana”.69

Nessa medida, para mergulhar em culturas africanas, o estudioso precisa “saber esquecer seu

Paulo: Cortez, 2008; SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2007; MACEDO,

José Rivar. Desvendando a História da África. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. 64

A Série Antropológica é uma divulgação de responsabilidade do Departamento de Antropologia da

Universidade de Brasília e reúne diversos artigos, que estão disponíveis na página:

http://www.dan.unb.br/br/serie-antropologica. 65

SILVA, Dilma de Melo. Por entre as Dórcades Encantadas: Os Bijagó da Guiné-Bissau. São Paulo: Terceira

Margem, 2000. 66

Moema Parente Augel é doutora em Literaturas Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi

radicada na Alemanha, onde lecionou Português e Cultura Brasileira. Dedica-se à literatura afro-brasileira e à

literatura guineense. 67

AUGEL, Moema P. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-

Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. 68

Ibid, p.22. 69

WALDMAN, Mauricio. Africanidade, Espaço e Tradição: a topologia do imaginário espacial tradicional

africano na fala do griot sobre Sundjata Keita do Mali. São Paulo, África, v.20-21, 2000, p.7.

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próprio mundo, do contrário [...] estará simplesmente transportando seu mundo consigo ao

invés de manter-se à escuta”70

.

Diferentemente da mundividência ocidental, a tradição oral, segundo Hampâté Bâ

(1982), incorpora uma associação inquebrantável entre o espiritual e o material. Ela faz parte

do cotidiano do homem africano e de sua comunidade. É algo que lhe é próximo e significa

uma visão particular do mundo onde todas as coisas são ligadas e interagem. Nesse sentido,

compreendi a importância de ter em conta tal particularidade para ser capaz de pensar sobre

“as muitas Guinés”.

Após ter buscado, sem muito sucesso, fontes bibliográficas sobre a Guiné, deparei

com o Projeto Memória de África e do Oriente71

. Coordenado pela Fundação Portugal-

África72

, este projeto, iniciado em 1997, vem recolhendo, tratando e disponibilizando no

formato digital, grande quantidade de registros (periódicos, fotografias, documentos oficiais,

livros didáticos, etc.), dispersos entre os centros de documentação dos países lusófonos. Entre

eles descobri o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa73

(BCGP), o qual, sob a

responsabilidade do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP), teve 110 edições

publicadas entre 1946 a 1973, todas integralmente digitalizadas e disponíveis para consulta.

Segundo Moema Parente Augel,

nada se iguala ao Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), realmente sem

similar nos outros países de colonização portuguesa [...] Constitui um receptáculo

precioso de informações no campo da administração colonial e no âmbito cultural,

no seu mais amplo sentido. 74

Este corpus documental possui, dentre outros registros, uma quantidade

significativa de artigos sobre temas variados. Naqueles de cunho etnográfico75

, vislumbrei

brechas para sondagens em torno de grupos da Guiné, considerando que a etnografia, na

70

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. v.1.

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.212. 71

O portal do Projeto Memória de África e do Oriente está disponível através do endereço http://memória-

africa.ua.pt. 72

A Fundação Portugal-África é uma organização não governamental de desenvolvimento, criada em 1995 na

cidade do Porto. Tem por finalidade “contribuir para a realização e incremento de acções de carácter cultural e

educacional a desenvolver em Portugal e em África, designadamente junto dos Países Africanos de Língua

Oficial Portuguesa, visando a valorização e continuidade dos laços históricos e de civilização mantidos entre

Portugal e os países africanos, numa perspectiva de progresso e de projecção para o futuro”. Cf.

http://www.fportugalafrica.pt/ 73

O Boletim Cultural é uma revista acadêmica criada em 1945. A partir de 1946 passou a circular sob a

supervisão do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, instituição surgida em Bissau, nesse mesmo ano, com o

fim de promover a colônia e disseminar “cultura e informação”. Sobre o Centro de Estudos e o Boletim Cultural

da Guiné Portuguesa ver o capítulo 2 adiante. 74

AUGEL, Moema P. Sol na Iardi: perspectivas otimistas para a literatura guineense. Via Atlântica, São Paulo,

n.3, 1999, p.26. 75

Além dos artigos etnográficos, que promovem a descrição dos costumes dos povos guineenses, o Boletim

Cultural apresenta vários contos e muitas fotografias. Botânica, veterinária, medicina tropical, história, saúde,

comércio, são alguns dos temas abordados em suas páginas.

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época, era um dos “primeiros estágios da pesquisa: observação e descrição, (um) trabalho de

campo”.76

Os colaboradores do Boletim Cultural foram, majoritariamente, funcionários civis

ou militares, muitos oriundos de Cabo Verde, colônia portuguesa à época da existência dessa

publicação. Embora efetuassem “pesquisas de campo” não “possuíam uma formação

específica, nomeadamente em antropologia (ao contrário das colaborações de médicos,

agrônomos, biólogos, veterinários), cujo ensino era incipiente em Portugal.”77

Por outro lado,

não é possível negar que existia uma

“antropologia aplicada”, funcionando nos momentos de normalidade da prática

colonial, ainda que não praticada necessariamente pela mão de antropólogos. Na

verdade, até há alguns anos em Portugal não se formavam antropólogos a um nível

académico, mas a antropologia era uma cadeira das escolas de quadros coloniais. Os

sistemas manejados por estes funcionários do regime foram os mais variados, desde

que permitidos pelo enquadramento colonial, e a pesquisa de campo constituiu o

denominador comum entre eles. O argumento que daqui emana refere-se a uma

especificidade do colonialismo português que, a despeito da pobreza, fragmentação

e subalternidade da antropologia portuguesa, agregou autonomamente um conjunto

de saberes sobre as colónias. 78

De fato, os colaboradores do Boletim Cultural não possuíam procedimentos

teórico-metodológicos críticos que amparassem suas investigações. Apesar destas

fragilidades, Henri Moniot considerou que “certa história era feita, por um punhado de

exploradores, militares, missionários, administradores [...] quase sempre empíricos e

autodidatas, ainda mais, isolados, sem eco, sem suporte universitário.”79

Grande parte da produção literária contida no Boletim Cultural é fruto da reflexão

e da escrita de funcionários da administração colonial portuguesa e de estudiosos da elite

metropolitana. Carrega preconceitos e o olhar culturalmente hierarquizante do colonizador,

porém, conforme Carlo Ginzburg (2006), o filtro e a intermediação presentes não inviabilizam

essa fonte, que oferece “fragmentos de discurso” prontos para novas leituras.

Diante dessas considerações, os artigos do Boletim Cultural foram abordados para

além da superfície, através de leituras a contrapelo, lembrando Walter Benjamin (1987). Na

percepção da diferença, que se destaca nos artigos publicados, culturas de povos da Guiné

foram destacadas e “traduzidas” para a escrita do colonizador. Como explica Homi Bhabha

76

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970, p.377. 77

CARVALHO, Clara. O saber e o olhar colonial: política e iconografia no Centro de Estudos da Guiné

Portuguesa. Soronda Revista de Estudos Guineenses. Bissau, n.8 - Nova Série, 2004a, p.63. 78

FALCÃO, Ana Mafalda A. C. M. Antropologia Colonial e a produção de Conhecimento sobre grupos étnicos

da Guiné Portuguesa: reflexão em torno da tese de Mário Humberto Ferreira Marques ‘Comportamento dos

Mandingas da Guiné’. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ANTROPOLOGIA, 3. 2006,

Lisboa, Actas...Lisboa:APA,2006,p.4. 79

MONIOT, Henri. A história dos povos sem história. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: Novos

Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.100.

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(1998, p.111), “o discurso colonial produz o colonizado como uma realidade social que é ao

mesmo tempo um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível.” Busquei, assim,

surpreender a diferença que permeia a escrita dos colaboradores do Boletim Cultural, relendo-

os com indispensável precaução. Procurei não apenas desfiar os “acontecimentos como as

contas de um rosário”80

, mas, a partir do mal estar provocado por conta de meus

desconhecimentos sobre a Guiné-Bissau a as Áfricas, articular presente e passado.

O recorte espacial foi direcionado para antiga Guiné Portuguesa, atual Guiné-

Bissau. O recorte temporal abrange a fase final do colonialismo português, particularmente o

período posterior à segunda guerra mundial, quando uma nova ordem foi estabelecida e

Portugal procurou reforços teóricos para manter seu ultramar. Nesse contexto surgiu o

Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP), principal fonte de registros utilizada. Os

marcos da pesquisa estão pautados no período de vida desse periódico. Isto não significa que

houve condições, dado o expressivo volume de textos, artigos, temas e abordagens presentes

nesse corpus documental, de abordá-lo em todas suas possibilidades. Foram priorizados os

artigos de cunho etnográfico, principalmente aqueles das décadas de 1940 até o início dos

anos 60, período em que houve maior número de publicações neste gênero.

Assim, para elaborar um prefácio a povos da Guiné-Bissau, o presente trabalho

foi organizado em três capítulos. O primeiro aborda a construção do conhecimento na

metrópole portuguesa, bem com as instituições criadas para, além de inserir estudiosos

lusitanos nos círculos acadêmicos internacionais, “produzir” teóricos e montar discursos que

reforçavam a manutenção do ultramar português. A articulação entre ciência e política ficou

evidenciada e serviu de suporte “científico” para os objetivos “imperiais” do governo

autoritário montado a partir de 1926. Coube destacar que estudiosos portugueses, assim como

alemães, alinhavam-se, no início do século XX, a estudos da antropologia física, ferramenta

imprescindível para suportar relações rácicas de poder.

Na Guiné, a partir das ações do Centro de Estudos e da publicação do Boletim

Cultural, apesar de instrumento da política “científica” colonial, nota-se outro tipo de

encaminhamento. Enquanto nos centros de estudos portugueses as características somáticas

ainda eram consideradas relevantes e estudadas à distância, a colônia aproximava-se dos

trabalhos “de campo” e das premissas da antropologia cultural. Por essa razão, todo o valioso

trabalho realizado no âmbito dessa agência foi praticamente ignorado pelos intelectuais da

metrópole e, possivelmente, tenha tido pouca divulgação.

80

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.232.

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Muitas das ações articuladas em Lisboa pretendiam, entre outras expropriações,

ter controle sobre a vida e o trabalho de povos africanos, além de cobrar-lhe impostos tão

necessários aos cofres de uma metrópole pobre e dependente. Porém, o aparato administrativo

sempre fora tão precário que, até meados do século XX, a Guiné era uma colônia

praticamente desconhecida, à exceção de poucos aglomerados populacionais, especialmente

da região costeira. Por essa razão foram realizados vários recenseamentos e inquéritos,

todavia pouco resultado prático adveio deles. À exceção do Inquérito Etnográfico de 1946,

único do qual se tem notícia, pois teve ampla divulgação através do Boletim Cultural. Da

mesma forma, os resultados e apreciações sobre o Recenseamento de 1950, não obstante as

prováveis inconsistências, estão fartamente detalhados em várias de suas edições.

O segundo capítulo traz um perfil da Guiné antes e depois de sua autonomia

administrativa, em 1879. Enquanto a Guiné de Cabo Verde merece destaque por sua

significativa e, ao mesmo tempo, curta participação no comércio escravista, revela, também,

ter sido uma região que era tudo, menos portuguesa. Após desvincular-se de Cabo Verde, tem

destaque o recrudescimento das campanhas de ocupação e “pacificação”, as quais perduraram

até meados da década de 1930.

A ocupação dos espaços continentais e insulares e o mapa redesenhado a partir da

expansão de povos islâmicos oferecem uma visão do complicado mosaico que foi sendo

construído desde os séculos anteriores à efetiva presença portuguesa a partir do final do XIX.

Os povos guineenses entram neste contexto, trazendo suas características gerais, considerando

que detalhes, certamente importantes, podem ter passado despercebidos.

Para além das populações autóctones, outros atores compunham o cenário da

Guiné Portuguesa, especialmente nos aglomerados urbanos. Destaca-se a presença cabo-

verdiana e os conflitos que ela acarretou junto a colonos portugueses e a luso-guineenses. A

ameaça econômica de estrangeiros e a rebeldia de grumetes81

tornava a administração colonial

impraticável. De um lado, uma elite crioula incipiente, reclamando por maior autonomia; de

outro, as rédeas curtas do Estado Novo português, fizeram daquele pequeno espaço uma

efervescência de interesses e valores conflitantes. Pode-se afirmar que a Guiné era, e continua

sendo, um espaço geograficamente pequeno, porém culturalmente denso.

81

Grumete é um aprendiz da marinha, um ajudante dos marinheiros na execução de vários trabalhos. No

contexto colonial português o termo é utilizado para designar o negro cristianizado, estabelecido no entorno dos

aglomerados populacionais de Cacheu e Bissau. Segundo Pélissier (2001, p.36), exerciam funções de

“marinheiros, de operários e de pequenos bufarinheiros negociando na sua etnia de origem[...]segundo o seu grau

de integração, mesmo de mestiçagem, são, quer auxiliares corajosos e muito úteis aos Portugueses contra os seus

irmãos - ou primos - de raça, quer aliados destes últimos.”

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As dificuldades da metrópole e suas repercussões na colônia são apontadas de

forma a compreender os encontros e desencontros com o governo de Lisboa e seus

representantes em solo guineense. Após as mudanças políticas ocorridas em Portugal, nas

primeiras décadas do século XX, especialmente após a instalação do regime autoritário,

ampliaram-se os mecanismos de controle e foi construído o amálgama jurídico que pretendeu

dispor e modificar modos de viver ancestrais. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e as

crescentes pressões internacionais pela descolonização, surgiram teorias cuidadosamente

elaboradas para oferecer o suporte necessário à posição intransigente pela manutenção e

continuidade do império português.

Por último, foram acompanhados alguns aspectos básicos das comunidades

guineenses, tais como estruturas de poder, organização social e famílias, formas de

povoamento e moradia, trabalho agrário, música e dança, em dinâmicas culturais. Com este

olhar descortinaram-se as singularidades da Guiné, revelando o chão, a morança, a família

“alargada”, a sacralidade da música, dos instrumentos e seus instrumentistas.

Em relação aos primeiros vislumbres da magia foi imprescindível o diálogo com

Hampâté Bâ (1982). Das páginas do Boletim Cultural, apesar de estranhamentos e

designações atribuídas aos grupos de forma exógena, foi possível perceber a forma como essa

magia esteve sempre presente na vida dos diversos povos da Guiné, mesmo entre os grupos

islamizados. A convivência com o visível e o invisível fazia parte do “ser” na Guiné, desde

sua gestação, nascimento até a morte, ou melhor, até a outra vida. Fica claro, porém, que tal

percepção ocorreu de forma superficial, pois seria impossível compreender tal experiência de

forma aprofundada, uma vez que só os “iniciados” podem vivenciá-la. Como apropriadamente

apontou Hampâté Bâ (1982), é imprescindível buscar a “tradição viva” que ainda permeia

pelas imensidões africanas, inclusive nalgum canto da Guiné.

Por fim, vale explicar que foi adotada a designação Guiné Portuguesa ou

simplesmente Guiné nas referências à Guiné-Bissau durante o período da dominação política

portuguesa. O gentílico guineense e sua forma plural são termos que não guardam relação

com os povos tradicionais, porém na falta de termo apropriado, a eles nos referimos como

povos guineenses ou povos da Guiné.

A grafia dos nomes dos povos guineenses apresenta variações de acordo com o

autor e o idioma de sua escrita. Nas citações, foram respeitadas, obviamente, as formas

adotadas no original. Ao longo do texto, os nomes atribuídos aos diversos povos foram

grafados sem flexão de gênero e número. Isto se explica pelo fato de que, entre povos

guineenses, apresentados pelo Boletim Cultural, não está presente a concepção da

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individualidade, ou seja, a pessoa e sua comunidade são um só. Portanto, as flexões tornam-se

impróprias. Iniciados em letra maiúscula faz-se a distinção entre o substantivo e a forma

adjetiva. (os Bijagó / povo bijagó, por exemplo).82

É preciso esclarecer, também, que nas citações extraídas do Boletim Cultural,

foram utilizados caracteres itálicos para diferenciá-las das bibliográficas e possibilitar que o

leitor observe essa distinção.

Sem dúvida alguma, há uma Guiné-Bissau diferente daquela (pouco) divulgada

nas mídias, esperando ser conhecida de forma positiva. Assim como há muitas Áfricas

espalhadas pelo imenso continente e pelas diásporas. Talvez outros estudiosos sintam-se

instigados a refletirem sobre elas e seus filhos, uma vez que “nada do que um dia aconteceu

pode ser considerado perdido para a história”83

.

82

Cabe mencionar, também, o acordo firmado na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia realizada no Rio de

Janeiro em 1953, quando foi estabelecida uma “convenção para a grafia dos nomes tribais” para uniformizar a

maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos em língua portuguesa. Foi estabelecido, por

exemplo, 1) Escrever os nomes com inicial maiúscula, sendo facultativo o uso dela quando tomados como

adjetivos; 2) Os nomes tribais, quer usados como substantivos, quer como adjetivos, não terão flexão de gênero e

de número, a não ser que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados. 83

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 223.

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CAPÍTULO 1

CONHECIMENTOS “SOB MEDIDA”

1.1 Uma “ciência colonial” à moda lusitana

Praticamente a Guiné era desconhecida: para o grande público

português, mesmo para o seu escol de cientistas, políticos

e homens de letras, continuava por descobrir! [...]

Acaso se pode fazer séria política indígena antes de se saber o que a

antropologia e a etnografia estão em condições de nos ensinar sobre

os naturais da terra?1

Marcelo Caetano, Ministro das Colônias, 1946

Ao início da República, em 1910, a instabilidade política em Portugal agravou-se.

A agitação social e a fragilidade econômica, situação “herdada da monarquia, fazia do

Portugal republicano pouco mais do que uma colônia em larguíssimos aspectos.”2 Sendo um

país essencialmente rural, houve, nessa época, uma forte tendência migratória do campo para

as cidades. Em razão do atraso no setor industrial, essa mão de obra não absorvida gerou um

excedente, o qual foi compelido a emigrar. Por conta desses deslocamentos, Portugal perdeu,

aproximadamente, meio milhão de habitantes na primeira década do século XX. Destes, cerca

de 220 mil chegaram ao Brasil, fortemente atraídos pelas oportunidades no Novo Mundo.

O governo republicano tentou direcionar a população rural do norte para suas

possessões no ultramar, pois isso resolveria, ao menos em parte, o desafio de povoá-las e,

assim, avançar no sentido da colonização. Era preciso, então, tornar as colônias conhecidas,

uma vez que eram, costumeiramente, referenciadas apenas enquanto coadjuvantes das

narrativas que exaltavam a história da expansão colonial. Pouco ou quase nada se sabia acerca

dos aspectos físicos daquelas paragens africanas e asiáticas e, principalmente, sobre os povos

que ali habitavam.

Em 1875 foi criada a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL)3 voltada,

especialmente, para a exploração do ultramar. Essa instituição pretendia, também, inserir os

estudiosos portugueses no contexto acadêmico europeu, pois, provavelmente, eles estivessem

1 CAETANO, Marcelo. Uma crónica nova da conquista da Guiné. BCGP, Bissau, v.1, 1946, n.1, p.11.

2 MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. 6 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p.597.

3 A SGL foi fruto da iniciativa privada e concorreu, em seus primeiros anos de funcionamento, com a

Comissão Central Permanente de Geografia, órgão do governo para o qual eram priorizados os recursos

públicos.

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desconectados das novidades e avanços científicos conquistados pelas demais potências

coloniais e, assim, ocupassem uma posição inferiorizada entre seus pares. Havia, portanto, a

intenção de

agremiar os esforços e realizar as aspirações de inúmeros estudiosos; ligar o país ao

convívio scientífico do mundo civilizado (…), e finalmente evocar a luz e a justiça

da Crítica moderna para o grandioso e infelizmente esquecido, caluniado ou

mutilado trabalho com que a Nação Portuguesa, pelos velhos cosmógrafos e

navegadores, há contribuído para a civilização geral e para a vasta e completa

Sciência da Terra.4

A situação marginal à qual era relegada a intelectualidade lusitana no âmbito

internacional decorria, em parte, dos longos anos de inércia em relação aos estudos coloniais.

Portugal esteve, literalmente, atrasado na produção de conhecimentos sobre suas possessões.

Quando da fundação da SGL, por exemplo, “já existiam cerca de quarenta instituições do

mesmo tipo”5 espalhadas pelas demais potências colonizadoras. Esse descompasso custou, às

iniciativas portuguesas, desconfiança, pouca credibilidade e a permanência numa posição

secundária entre os estudiosos europeus.

Dos trabalhos realizados no âmbito da SGL resultaram algumas publicações, que,

no entanto, tiveram curta duração e circularam de forma restrita nos espaços da

intelectualidade lusitana e, também, junto aos interessados em negócios no ultramar. Somente

a partir de 1920 passou a existir “uma propaganda oficial, por parte do aparelho de Estado,

dando origem a uma propaganda colonial de carácter moderno.”6, que pretendia redirecionar a

corrente migratória do Brasil para os espaços ultramarinos.

A maioria dos documentos de propaganda oficial tinha por finalidade melhorar a

imagem dos espaços coloniais, notadamente daqueles no continente africano, pois, ao longo

do século XIX, a África, de forma geral, carregava todo um referencial de negatividades.

Sobre a Guiné, em particular, o Guia do Viajante de 19077 mostrava que os portugueses

permaneciam, como ao longo de todo o período colonial, confinados às estruturas fortificadas

e divulgava um cenário pouco propício ao europeu:

A Guiné é bastante insalubre; contudo, na parte prehendida entre os rios Compony e

Colobá, que apresenta um pequeno relevo orographico, o clima e o ar são melhores e

a temperatura é mais baixa. Bissau [...] é o centro commercial mais importante de

4 SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA. A S.G.L. e as edições próprias de cartografia ultramarina

oitocentista. Cf. http://www.socgeografialisboa.pt/biblioteca-e-cartoteca/cartoteca. 5 THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português. Rio de

Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p.97. 6 COSTA, Nuno Silva. Da Barbárie à Civilização: representações do espaço Africano na propaganda Colonial

Portuguesa do primeiro quartel do século XX. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE

HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL: MEMÓRIA SOCIAL, PATRIMÔNIO E IDENTIDADES, 29., 2009,

Porto, Anais...p.11. 7 EMPRESA NACIONAL DE NAVEGAÇÃO. Guia do Viajante em Portugal e suas colónias em África. Typ.

De Christovão Augusto Rodrigues, Lisboa, 1907.

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toda a Guiné. Esta ilha mede 60 kilometros de comprimento e 35 de largura, é quasi

plana, muito fértil, arborizada e abundante d’água potável. No interior é a ilha

occupada pela raça Papel, só dentro do exíguo perímetro da praça é que temos

domínio effectivo. A não ser os encantos da natureza, nada há na Guiné que convide

a uma visita. Commodidades e distracções não há de espécie alguma (EMPRESA

NACIONAL DE NAVEGAÇÃO, 1907 apud COSTA, 2009, p.10)8.

A propaganda elaborada sobre as colônias, nas primeiras décadas da república,

não mencionava a existência de povos locais: era como se eles, praticamente, não existissem.

Privilegiava-se a divulgação de mapas, rotas, plantas de terrenos, por exemplo, além de serem

destacadas as ações do governo, as quais garantiam, embora com pouca verdade, boas

condições de vida e investimentos em infraestrutura nas cidades coloniais, especialmente de

Angola. Em última instância, “eliminaram os traços autóctones, tendo como consequência

uma clara censura ao conhecimento sobre os ‘espaços do outro’ ao mesmo tempo em que se

permitiu uma crescente popularização do império e do imperialismo português.”9

A Cartilha Colonial10

, elaborada por Pedro Muralha, em 1928, é um bom

exemplo da orientação que a propaganda colonial assumiu. Mais do que um informativo, este

documento, além de ter por objetivo atrair a população nortenha para o ultramar, revela uma

necessária inflexão do olhar português sobre a África:

Durante mais de quatro séculos as nossas possessões ultramarinas foram

consideradas como regiões vastíssimas e insalubres; inhospitos sertões cheios de

feras. A frase «costa d’ Africa» só nos fazia chegar á mente o crime, pois só para lá

iam degredados que o clima, que se dizia mortífero, castigava impiedosamente. E

todavia a Africa tem regiões onde o clima é tão benigno como na Europa; onde se

encontram vastíssimos campos de produção, onde o homem que trabalha vê a

compensação do seu trabalho. Em Africa, muito ao contrário da Europa, não há

mendigos nem ladrões. Dorme se com as portas abertas, sem receio dum assalto; ali

ninguém pede esmola porque todos trabalham e todos recebem o produto do seu

labor. Quem percorre a Africa numa excursão de estudo, antes que o não queira,

ficará eternamente um propagandista desse vastíssimo império que os nossos

antepassados nos legaram e que todos os portugueses teem obrigação de conhecer.

(MURALHA, 1928 apud COSTA, 2009, p.16)11

O investimento na propaganda colonial não era privilégio do governo republicano.

As empresas de exploração agrícola, pecuária, extrativista, entre outras, eram grandes

interessadas em possíveis colonos, ou seja, na mão de obra que eles poderiam oferecer.

Assim, ao inserir peças de propaganda em jornais, catálogos, panfletos, entre outros veículos,

8 EMPRESA NACIONAL DE NAVEGAÇÃO. Guia do Viajante em Portugal e suas colónias em África. Typ.

De Christovão Augusto Rodrigues, Lisboa, 1907, p. 300-303. 9 COSTA, Nuno Silva. Da Barbárie à Civilização: representações do espaço Africano na propaganda Colonial

Portuguesa do primeiro quartel do século XX. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE

HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL: MEMÓRIA SOCIAL, PATRIMÔNIO E IDENTIDADES, 29., 2009,

Porto, Anais..., p.18. 10

MURALHA, Pedro. Cartilha colonial: breve resenha histórica, geográfica e econômica das colônias

portuguezas, o esforço portuguez na África, América, Ásia e Oceania. Lisboa: Tip. Luso-Gráfica, 1928. 11

Id., p. 5.

Cartilha Colonial de

Pedro Muralha, 1928.

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divulgavam ofertas de trabalho e possíveis benefícios que a vida colonial poderia

proporcionar.

O projeto republicano português defendia que a “soberania e a independência

nacional haviam de sustentar-se sobre a ‘empresa de além-mar’, uma espécie de ‘utopia

lusitana’ que pretendia retornar a ‘gesta heroica de Quatrocentos’.”12

Tal qual a monarquia, o

regime republicano apoiava a instituição colonial em todos os sentidos, pois era ela que

alicerçava e dava fôlego a uma metrópole que em nada lembrava as glórias e riquezas dos

séculos passados.

Portugal deixava transparecer para as demais potências coloniais muitas

dificuldades para cumprir o acordo de promover civilização, progresso e melhoria nas

condições de vida dos habitantes de suas colônias. Era voz corrente sua incapacidade no

sentido de elaborar um conhecimento sobre o ultramar, a não ser por alguns esforços isolados.

Porém, a necessidade de manter o “império” e de enfrentar a pressão internacional foram

molas propulsoras que movimentaram os estudiosos, nem sempre na melhor direção.

Desde meados do século XIX, apesar de decretos oficiais solicitando que se

promovessem estudos sobre as colônias, a comunidade científica portuguesa não

correspondia. Mesmo inexistindo uma tradição investigativa nesse nível13

, ainda falava mais

alto, junto à intelectualidade, o sentimento de superioridade racial branca. Este desvalorizava

o negro a tal ponto que não o considerava importante a ponto de estudá-lo. O escritor Eça de

Queirós (1845-1900), por exemplo, nunca escreveu sobre as colônias, “pois elas não eram

consideradas relevantes. E o historiador Oliveira Martins (1845-1894) considerava que se

estava a esbanjar muito dinheiro com as colônias"14

.

Segundo Patrícia Matos (2006), foi Oliveira Martins quem introduziu em Portugal

a ideia de que as raças inferiores deveriam ser submetidas, pois estariam fadadas à extinção.

Para ele

sempre o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A

precocidade, a mobilidade, a agudeza própria das crianças não lhe faltam; mas essas

qualidades infantis não se transformam em faculdades intelectuais superiores. Resta

educá-los, dizem, desenvolver e germinar as sementes [...] Há decerto, e abundam os

documentos que nos mostram no negro um tipo antropologicamente inferior, não

12

PROENÇA, Maria Cândida; FARINHA, Luís. I República e Republicanismo. Lisboa: Instituto Camões,

2009, p.24. 13

O estudo oficial da antropologia em Portugal ocorreu, inicialmente, no âmbito da Universidade de Coimbra e

as primeiras investigações estavam voltadas à antropologia física adotando-se, como modelo, manuais franceses.

Conhecida como antropologia etnológica, visava ao estudo e característica das “raças”. 14

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.55-6.

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raro próximo do antropoide, e bem indigno do nome de homem. (MARTINS, 1978

apud OLIVA, 2009, p.35)15

Aliás, a ideia que norteou, por muito tempo, o pensamento do colonizador tinha o

negro como um ser inferior e, por conseguinte, indigno de possuir os mesmos direitos que os

brancos. Como ver igualdade àqueles percebidos como completamente diferentes à concepção

do “ser humano”? Daí as diferenças produzidas pela “raça”, que explicavam a existência

daqueles “à margem da compreensão dos europeus, e cujas formas e feições de tal forma

assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes e conquistadores que eles não

desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana.”16

Essa repulsa motivou,

segundo Anderson Oliva (2009), alguns ideólogos do colonialismo a defender a eliminação,

quer pelo homem, quer pelo tempo, das populações “indígenas”. No entanto, a ideia que

prevaleceu entre os portugueses propunha subjugá-las e explorá-las sem qualquer

contrapartida.

A investigação científica sobre as colônias portuguesas, no início do século XX,

praticamente inexistia. Era notório o “atraso português comparativamente aos avanços

estrangeiros em matéria de ciência e administração coloniais.”17

. O país estava isolado

relativamente aos pensadores da época, os quais valorizavam os aspectos sociais e culturais

dos povos em detrimento de suas características físicas.

As ideias do antropólogo Franz Boas (1858-1942), por exemplo, em oposição às

teses do evolucionismo e do determinismo biológico e geográfico, apontavam para a

necessidade de estudar as singularidades das culturas dos diferentes povos. Para ele, tais

singularidades transcendiam ideia de raça, parceira indissociável do etnocentrismo. Nesse

sentido o “anacronismo científico era evidente [...] em Portugal e de um modo semelhante na

Alemanha, continuava a insistir-se no estudo das características somáticas”18

. Era o momento

da exaltação do ser português, branco homem e europeu e, consequentemente, de um

pensamento colonial racista extremado.

Em Portugal, Antônio Augusto Esteves Mendes Correia19

foi um dos precursores

de estudos com base na antropologia física, tendo, provavelmente, se aproximado desse aporte

15

MARTINS, Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães, 1978, p.262. 16

ARENDT, Hanna. As origens do Totalitarismo, Imperialismo e Expansão do Poder, uma análise dialética.

Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1976, p. 93. 17

LOBATO, Manuel. Ciência portuguesa nas regiões tropicais: do projecto africano ao esvaziamento de

políticas sob a III república, parte I. Blogue História Lusófona, Lisboa, IICT, 2008, sem paginação. 18

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.139. 19

Mendes Correia (ou Corrêa) nasceu no Porto em 1888 e morreu em Lisboa em 1960. Enveredou pelo

caminho da pesquisa antropológica nas primeiras décadas do séc. XX tendo sido um dos fundadores da

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teórico por conta de sua formação em medicina. Introduziu o ensino de antropologia na

Universidade do Porto em 1912 e foi um grande defensor da pesquisa nas colônias, razão pela

qual chefiou algumas das missões antropológicas na África “portuguesa” entre 1930 e 1950.

Possivelmente, por conta de sua formação acadêmica, não concordava que a cultura

sobrepujasse o conceito de raça, pois, para ele, ambos estariam relacionados. Mendes Correia

deixava clara sua opção por um estudo que considerasse os aspectos biológicos e

hereditários de cada grupo humano, bem como seus comportamentos psicossociais,

sua aptidão maior ou menor ao trabalho e sua produção cultural. Sua opção teórica e

metodológica ganha maior sentido quando atentamos para a sua proposta de

trabalho: dar conta da totalidade das "raças" que convivem no interior de uma

estrutura política, o império, que, na verdade, traduz uma nação extremamente

heterogênea na multiplicidade dos povos que a habitam, mas nem por isto carente de

uma unidade de espírito.20

Nas primeiras décadas do século XX surgiram novas instituições, entre elas, a

Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (SPAE), fundada no Porto em 1918 por

Mendes Correia e que, “apesar de uma opção dominante pela antropologia física e pela

arqueologia, não deixará de estimular alguma pesquisa etnográfica.”21

Em janeiro de 1946, dois propósitos principais conduziram a visita de Mendes

Correia à Guiné: “estruturar as relações da ciência portuguesa com a África Ocidental

Francesa, especialmente com o Instituto Francês da África Negra (IFAN)” e, também, efetuar

levantamentos sobre o “estado biológico de populações consideradas em regressão.”22

É

importante salientar que a aproximação com o IFAN ocorreu por vários motivos, um dos

quais se refere à presença de grupos étnicos que se estendiam do território português para o

francês (ou vice-versa?), ainda havendo questões de fronteiras a serem definidas após o

acordo em 1886.

Ao retornar a Lisboa, Mendes Correia obteve a aprovação do Ministro das Colônias,

Marcelo Caetano, para a criação da Missão Antropológica e Etnológica da Guiné, cujos

objetivos demonstravam o escopo do trabalho:

a) a realização de investigações antropológicas, etnológicas e pré-históricas;

b) estudo da robustez e vitalidade dos indígenas e dos vários grupos étnicos à

Colônia;

Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (1918), além de membro de várias instituições de pesquisa.

Escreveu diversas obras, entre elas Raça e Nacionalidade (1919), Da raça e do espírito (1940) e a mais

significativa delas Raças do Império (1945). Foi deputado da Assembleia Nacional (1945-56) além de

presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa. Consta ter visitado o Brasil em 1934 e 1937, e também ser

membro da Academia de Medicina do Rio de Janeiro. 20

THOMAZ, O. R. O bom povo português: usos e costumes d´aquém e d´além-mar. Mana, Rio de Janeiro, v.

7, n. 1, Abr. 2001, p.68. 21

LEAL, João. Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 2000, p.35. 22

MOTA, Avelino Teixeira da. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946c, n.2, p.381-2.

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c) os estudos psicotécnicos e experimentais com o objetivo de colherem elementos

que permitam se conhecer as aptidões dos indígenas para os vários misteres

(podendo para este fim a missão manter estreita colaboração com missões

religiosas e serviços de saúde);

d) o estudo das instituições tradicionais e direito consuetudinário, devendo o chefe

da missão ouvir e consultar os serviços de saúde e de administração civil da

Colônia sobre os problemas de maior importância para a administração e para o

interesse das populações.23

Os estudos organizados sob a orientação de Mendes Correia buscaram investigar,

entre outros aspectos, a composição étnica, os hábitos alimentares, a ocupação demográfica e

as possibilidades de cooperação dos povos locais. Era a concepção de uma “antropologia da

mestiçagem” que se voltava para, principalmente, analisar a realidade do mestiço “a fim de

definir sua possibilidade de aproveitamento (ou não) no projeto colonial português do Estado

Novo.”24

Em última instância, a mestiçagem estava sendo analisada em termos do ganho

final, ou seja, o quão produtivo e proveitoso para o sistema seria “permitir” ou não que os

brancos se misturassem com os pretos.

Enquanto os portugueses deixavam de lado os estudos sobre as colônias e

sonhavam com as academias francesas, em 1928, o antropólogo e fotógrafo Hugo Adolf

Bernatzik25

intereou-se pela Guiné, especialmente pelo arquipélago dos Bijagó. Entre outras

atividades, fez várias fotografias e levantou dados para escrever No reino dos Bijagós26

. Na

mesma época o estudioso alemão Bernard Struck efetuou medições ao estilo da pesquisa

antropométrica.

Sem título. (grupo de jovens Bijagó correndo)

Hugo Bernatzik, final da década de 1930.

23

MOTA, Avelino Teixeira da. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946c, n.2, p.382. 24

THOMAZ, Omar Ribeiro. THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro

império português. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p.133. 25

Hugo Bernatzik (1897-1953) nasceu em Viena e deixou muitas obras de cunho etnográfico. Muitas

fotografias, entre outros pertencentes, foram destruídas durante a 2ª Guerra Mundial. Cf.

http://www.michaelhoppengallery.com/artist,show,1,29,0,0,0,0,0,0,hugo_bernatzik.html 26

BERNATZIK, Hugo Adolf. Im reich der Bidyogo: geheimnisvolle inseln in west Afrika. Imsbruck:

Kommissions Verlag, 1944.

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Em 1937, na cidade de Coimbra, foi criada a Sociedade Portuguesa de Estudos

Eugênicos (SPEE) pelo então Ministro da Instrução Pública, Eusébio Tamagnini27

. Surgia

amparada num projeto que vinculava a “pureza racial” à garantia do poder e da soberania da

nação. O artigo 2º, da portaria de constituição da SPEE, previa, como finalidade principal, o

estudo científico de temas voltados à “hereditariedade e eugenia que (pudessem) contribuir

para a conservação e progresso da espécie humana e, em especial, para o aperfeiçoamento

físico, intelectual e moral da população portuguesa.”28

Segundo Patrícia Matos (2006), os princípios da eugenia não foram aplicados de

forma extrema, uma vez que não houve mortes ou esterilizações. A questão girou, na verdade,

sobre a mestiçagem, assunto que produzia calorosos embates entre a elite lusitana. Havia

aqueles que condenavam a mistura racial, como o ministro Tamagnini, pois considerava as

nações colonizadoras mais evoluídas que os povos colonizados. Em 1940, ele rebateu a tese

de que os portugueses teriam “absorvido em demasia quantidade considerável de sangue

negro, em consequência de mestiçagem intensa com escravos negros importados da África

[...] e, conseguido manter a pureza étnica relativa da massa populacional” (TAMAGNINI,

1940, apud BRASIO, 1944, p.131)29

. Na academia do Porto, Mendes Correia mantinha um

discurso similar e considerava que a mestiçagem poderia produzir pessoas imprevisíveis,

prejudicando, dessa maneira, a continuidade da nação que deveria buscar a “pureza”.

O governo da Primeira República investiu na melhoria da formação dos

funcionários administrativos destacados para atuar nas colônias, pois eles eram, em última

instância, o elo entre Lisboa e os povos colonizados. Para isso foi reorganizada a Escola

Colonial, criada em 1906, e passou a oferecer, a partir de 1919, o curso geral30

, para

funcionários civis e militares das colônias e repartições do Ministério das Colônias, e o curso

para colonos, empregados do comércio e para todos os que desejassem exercer atividades no

ultramar.

Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, apesar da escassez de meios militares,

Portugal juntou-se aos aliados (Inglaterra, França, Rússia, Itália, Estados Unidos, Japão)

27

Eusébio Tamagnini de Matos Encarnação (1880-1972) foi Ministro da Instrução Pública de 23/10/1934 a

18/01/1936. 28

Cf. Portaria nº 7.948 de 14/12/1934, art. 2º Diário da República Eletrônico: www.der.pt 29

BRÁSIO, António. Os Pretos em Portugal. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1944. Nesta obra há um

significativo retrato da presença negra em Portugal desde o século XV. 30

O decreto 5.823 de 31 de maio de 1919 estabeleceu a duração do curso geral em 3 anos. Ministravam-se

disciplinas como geografia geral, meteorologia, colonização e história da colonização portuguesa, administração

e legislação colonial, regime econômico das colônias, higiene colonial, entre outras. Eram oferecidos, também,

cursos de línguas coloniais: fula e mandinga (Guiné), fioti e quimbundo (Angola), landim e suahili

(Moçambique), concani (Índia), teto e galoli (Timor).

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contra as potências centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Império Otomano e Bulgária). Sem

uma estratégia definida e com um precário aparato militar, apenas em janeiro de 1917 é que

os primeiros contingentes de portugueses embarcaram para frente de batalha. Apesar da

vitória, Portugal não obteve a contrapartida desejada, principalmente em relação a

investimentos esperados para suas colônias. Porém, sem o apoio político obtido

posteriormente, não seria possível manter “os espaços coloniais, (tão extensos e tão separados

entre si), libertos da cobiça de países como a Bélgica (sobre Cabinda), da União da África do

Sul (sobre Moçambique)”.31

O custo, financeiro e humano, da participação portuguesa na guerra, gerou

grandes dificuldades para o governo, principalmente quando cresceu a insatisfação entre os

soldados. As fortes pressões levaram os republicanos a abdicarem da liberdade em nome da

ordem e, como consequência, sobreveio o golpe militar de 1926. O autoritarismo do novo

regime chegou à sua forma final com a ditadura do Estado Novo, a constituição de 1933, e a

ascensão de António de Oliveira Salazar32

. “O ano de 1931 constituiu o início da mudança da

designação de Ditadura Militar para Ditadura Civil, etapa que antecedeu a formação em 1933

do Estado Novo.” Gradativamente, a influência de membros das “Forças Armadas que outrora

havia sido absoluta nas decisões políticas do país, começava a desaparecer a partir deste

período.”33

A partir do governo autoritário, a liberdade existente nas colônias sofreu um duro

golpe. Com uma política extremamente centralizadora e uma forte contenção de gastos, toda a

população do ultramar, das primeiras décadas do século XX, foi bastante afetada. Arquitetado

por Salazar, o Acto Colonial de 1930, incorporado à Constituição de 1933, alterou a relação

entre a metrópole e as colônias instituindo, à maneira inglesa, o Império Colonial Português34

e consagrando a colonização como parte da essência orgânica da Nação. O processo

colonizador, a partir daí, passou a alicerçar-se sobre uma “ciência colonial”, responsável por

construir um conhecimento “científico sobre o outro”. O conhecimento, a dominação e a

exploração dos domínios ultramarinos estavam, portanto, interligados. Surgiram discursos

31

PROENÇA, Maria Cândida; FARINHA, Luís. I República e Republicanismo. Lisboa: Instituto Camões,

2009, p.30. 32

De 1928 a 1932, Salazar foi Ministro das Finanças, presidente do Conselho de Ministros de 1932 a 1968 e

presidente interino de Portugal em 1951. 33

LARANJO, David Miguel. Ditadura Portuguesa. In: A política externa portuguesa na ditadura militar: as

relações com a Espanha (1926-1930). Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea) – Instituto

Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa, 2008, p.17. 34

O Império Português era formado por 8 colônias: Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola,

Moçambique, Estado da Índia (Goa, Damão e Diu), Macau e Timor. Era regido pelo Decreto-Lei 23.228 de

15/11/1933, modificado em 13/2/1937 pela Lei 1.948.

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simultaneamente político e científicos que definem a “nação” portuguesa como uma

“nação colonial”. Por essa razão, grande parte das preocupações dos autores que se

debruçam sobre a questão da “raça” e da “identidade nacional” diz respeito às

colónias. No que diz respeito à produção de um “saber colonial”, há um

comprometimento da ciência com o campo político. Por detrás do fortalecimento

deste “saber” estiveram instituições, escolas e museus que reuniram um vasto

espólio de obras, trabalhos e colecções de objectos, financiaram e patrocinaram

publicações, exposições, congressos e eventos similares ligados à divulgação de

“saberes” sobre as colónias.35

Enquanto a ditadura do presidente António Carmona36

desarticulava toda a

estrutura do sucumbido estado liberal português, foi estruturado um conjunto de dispositivos

legais37

, os quais, ao mesmo tempo em que concentravam todo o poder em Lisboa,

acentuavam a distância entre o mundo metropolitano e o mundo colonial. Sob a égide da

construção de uma nacionalidade portuguesa estendida a todo império, o que ocorreu, de

fato, foi o aprofundamento do abismo que sempre existiu entre o colonizador e os povos

colonizados traduzido, em grande media, a partir da determinação do que era ser civilizado ou

não civilizado. A diferença do estágio civilizatório separou, assim, os civilizados da

metrópole, Cabo Verde, Macau e Estado da Índia, de um lado, e os não civilizados das

colônias continentais africanas e, a partir de 1946, de São Tomé e Príncipe e Timor. A

nacionalização das colônias

deveria dar-se nos âmbitos econômico e político e também cultural: os “indígenas”

e os habitantes de todas as colônias portuguesas fariam parte do corpo da “nação

portuguesa”, espalhada pelos quatro cantos do mundo. Criava-se, assim, uma

estrutura legal para o império na qual se passava a associá-lo à idéia de “nação” ou

até mesmo a traduzi-lo por esta.38

Embora os textos legais buscassem transparecer respeito aos costumes dos povos

autóctones, continham a intenção implícita (ou não) de subjugá-los. As leis específicas

serviram

para retirar aos indígenas os seus direitos à propriedade do solo, à sua liberdade de ir

e vir, a sua liberdade de ter os seus “deuses”, de contratar os seus serviços, e lhes

impor o dever de trabalhar, de pagar impostos, sem que nada disto fosse considerado

ilegal [...] Era o momento de transcender do discurso colonizador para ação prática.

Era a hora de retirar dos indígenas a sua liberdade e de submetê-los à autoridade

35

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.55. 36

António Óscar de Fragoso Carmona era militar e participou do golpe de 1926; foi presidente de Portugal de

1926 a 1951, sucessivamente. Eleito a partir da Constituição de 1933, teve Oliveira Salazar como ministro das

finanças entre 1928 e 1932, como chefe de governo e homem de confiança até 1951. 37

Dentre os dispositivos legais destacam-se: o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e

Moçambique (1926), abolido em 1961, o Código do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas de África

(1928), o Acto Colonial (08/7/1930), abolido em 1951, a Carta Orgânica do Império Colonial Português e

Reforma Administrativa Ultramarina, de 1933. 38

THOMAZ, O. R. O bom povo português: usos e costumes d´aquém e d´além-mar. Mana, Rio de Janeiro, v.

7, n. 1, Abr. 2001, p.61.

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40

portuguesa, que lhes dirigiria a vida, determinando o que eles podiam ou não fazer,

como andar, como se vestir, para quem trabalhar o que beber, e onde gastar39

.

A nacionalização das colônias instituiu a figura do Império-Nação, que também

pretendia frear as ameaças dos demais imperialismos no período entreguerras. A estrutura do

regime e suas ações - a censura sobre a imprensa e o controle das instituições - impediam

debates em torno do colonialismo, não apenas na metrópole, mas extensivamente nas

colônias. Colocar-se em oposição ao projeto colonial significaria opor-se à própria nação.

A criação da Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado(PVDE)40

, em 1933,

alicerçou um governo baseado no “medo, na delação e na perseguição aos ‘inimigos’, um

regime policial, evidenciado por arbitrariedades de toda ordem e pelos espaços reservados à

prática de violências físicas”.41

O norte empregado pela repressão na metrópole foi estendido

aos territórios coloniais e “sobrepôs à violência quotidiana do colonialismo outras formas de

violência e repressão institucionais que tinham como propósito impedir qualquer tipo de

manifestação nacionalista ou emancipatória por parte das populações nativas”.42

Nos congressos e nos círculos acadêmicos eram frequentes os debates acerca da

necessidade de conhecer as populações autóctones, tanto em seus aspectos biológicos quanto

socioculturais. Esse conhecimento passou a ser encarado como uma questão de relevância

nacional, razão pela qual, entre outras medidas, o ensino da antropologia tornou-se obrigatório

na Escola Superior Colonial43

, local de formação dos funcionários que prestariam serviço no

ultramar, bem como dos missionários encarregados da educação dos povos locais. Cabe

lembrar que o papel da Igreja, neste momento, foi o de reforçar a “missão civilizadora”

portuguesa e se comprometia a “educar, proteger e evangelizar os nativos no sentido de estes

se tornarem ‘assimilados’ e saírem do estado de selvajaria, para uns, ou de barbárie, para

outros”.44

A Escola Superior Colonial surgiu a partir de um movimento intelectual português

que

preconizava uma “ocupação científica” dos territórios ultramarinos [...] em que o

controle dos nativos (da sua força de trabalho) e dos territórios coloniais (a

39

MARTINEZ, Esmeralda Simões. Legislação portuguesa para o ultramar. Revista África e Africanidades. São

Paulo, n.11, nov. 2010, sem paginação. 40

A PVDE deu origem à famigerada PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) em 1945. Esta existiu

até 1969 atuando na efetiva “neutralização” de ações contra o Estado Novo. 41

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português. Rio de

Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p.89. 42

Id.O bom povo português: usos e costumes d´aquém e d´além-mar. Mana, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, Abr.

2001, p.60. 43

A Escola Superior Colonial surgiu em 1927 quando da reorganização da Escola Colonial fundada em 1906. 44

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.68.

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41

exploração adequada dos seus recursos físicos) seria eficaz quando orientado por

pressupostos científicos; o seu fim seria a incorporação plena dos indígenas ao corpo

político da nação.45

A formação de quadros para atuar em todos os cantos do império passou a ser uma questão de

Estado. A pesquisa “científica” nas colônias fazia-se imprescindível a partir das ideias que

circulavam entre as potências colonizadoras.

O Ministério das Colônias e a Escola Superior Colonial promoveram congressos e

encontros de intercâmbio procurando inserir a intelectualidade lusitana nos debates

internacionais. Com a finalidade de dar continuidade aos estudos geográficos e cartográficos

do ultramar, foi criada a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (1936).

Entretanto, cinco anos após sua criação, apenas uma quarta parte do império estava mapeada,

os trabalhos de geologia eram restritos, ao passo que a “Índia Portuguesa era considerada

quase completamente estudada pelos britânicos”46

. Os estudos no campo da antropologia e da

etnografia eram episódicos, mesmo em colônias pequenas como a Guiné e o Timor.

Os estudos etnográficos desenvolvidos na metrópole durante o Estado Novo

ocorriam, muitas vezes, “à sombra das iniciativas governamentais e o tom repetitivamente

celebratório dos textos (articulava-se) mais amiudadamente com uma retórica ideológica de

inspiração ruralista e nacionalista.”47

Havia, portanto, uma intelectualidade metropolitana

“capaz de produzir análises etno-antropológicas passíveis de apropriação para uso político

sobre a população dominada e de cariz propagandístico na metrópole.”48

Esse mesmo tom

propagandístico está presente em muitos dos artigos publicados pelo Boletim Cultural da

Guiné Portuguesa, especialmente aqueles de autoria de funcionários egressos da Escola

Superior Colonial.

Muitas reformas institucionais sobrevieram no pós-guerra, entre as quais a

nova orientação da Escola Superior Colonial. Assumindo sua direção, Mendes Correia

lançou, em 1946, dois novos cursos: Administração Colonial e Altos Estudos Coloniais49

, este

45

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português. Rio de

Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p.101. 46

LOBATO, Manuel. Ciência portuguesa nas regiões tropicais: do projecto africano ao esvaziamento de

políticas sob a III república, parte I. Blogue História Lusófona. Lisboa: IICT, 2008, sem paginação. 47

LEAL, João. Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa:

Publicações Dom Quixote, 2000, p.49. 48

ABREU, Ana Mafalda; FALCÃO, Castro Menezes. Antropologia colonial e a produção de conhecimento

sobre grupos étnicos da Guiné Portuguesa... In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE

ANTROPOLOGIA, 3., 2006, Lisboa. Actas. Lisboa: APA, 2006, v. 1, p.8. 49

O curso de Administração Colonial preparava os funcionários da administração civil do império (a partir de

1954 seu nome mudou para Curso de Administração Ultramarina); o curso de Altos Estudos Coloniais estava

destinado aos funcionários nomeados para funções mais elevadas (a partir de 1954 passou a ser designado Curso

de Altos Estudos Ultramarinos; em 1961 surgiu o Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina -

ISCSPU).

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último “visando preparar os quadros teóricos do colonialismo”.50

Vários profissionais

envolvidos com a Escola Superior Colonial “buscaram produzir um saber colonial em geral (e

uma antropologia em particular) à altura das demais potências colonizadoras da época,

salvaguardando sempre as particularidades da colonização portuguesa.”51

Cada vez se tornava

mais visível o caráter funcional que a produção de conhecimentos sobre as colônias passava a

assumir.

Por conta da reestruturação da Escola Superior Colonial foi criado o Instituto de

Línguas Africanas e Orientais, o qual tinha entre seus objetivos:

Estudar a língua árabe, quer como instrumento de investigação da história do

domínio português no norte da África, quer como elemento de conhecimento do

mundo islâmico e da sua influência actual na Guiné, em Moçambique e na Índia;

Estudar o quimbundo (Angola), o ronga (Moçambique), o suaíli (norte de

Moçambique), o dialecto do Sena (Zambézia), o fula (Guiné) e o teto ou lalóli

(Timor);

Estudar as linguagens crioulas de Cabo Verde, Guiné, Índia e Macau;

Abrir cursos para ensino das línguas estudadas.52

Dessas diretrizes denota-se a precariedade da comunicação, mesmo após séculos, entre os

portugueses e os povos coloniais. Na Guiné, o estudo do árabe justificava-se em razão da

“progressiva islamização dos povos ainda há pouco feiticistas.”53

As outras dezenas de

línguas faladas na colônia foram excluídas, e “os termos do decreto que instituía o estudo do

fula seriam absolutamente arbitrários se não (estivesse claro) que este contingente muçulmano

era tido como ‘amigo de Portugal’.”54

O Centro de Estudos de Cartografia e Geografia Colonial surgiu para intensificar

os trabalhos de caráter geográfico iniciados pela antiga Comissão de Cartografia e

continuados pela Junta de Investigações coloniais. Mendes Correia também assumiu, em

julho de 1946, a presidência da Junta das Missões Geográficas de Investigações Coloniais

para “apoiar a obra colonizadora portuguesa cada vez mais na ciência e na técnica.”55

Os aparatos montados pelos portugueses denotam o esforço na busca da

legitimação do poder sobre o “outro”. Isto é feito através da produção de conhecimentos que

50

ABREU, Ana Mafalda; FALCÃO, Castro Menezes. Antropologia colonial e a produção de conhecimento

sobre grupos étnicos da Guiné Portuguesa... In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE

ANTROPOLOGIA, 3., 2006, Lisboa. Actas. Lisboa: APA, 2006, v. 1, p.5. 51

THOMAZ, Omar Ribeiro. O bom povo português: usos e costumes d´aquém e d´além-mar. Mana, Rio de

Janeiro, v. 7, n. 1, Abr. 2001, p.76. 52

MOTA, Avelino Teixeira da. , BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.2, 1947b, n.5, p.286. 53

Ibid., p.287. 54

THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiro império português. Rio de

Janeiro: Ed. UFRJ, 2002, p.104. 55

MOTA, Avelino Teixeira da. BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.1, 1946a, n.4, p.907.

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apresentam “o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem

racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução.”56

Em 1945, quando advieram fortes movimentos contra o colonialismo e emergiram

o atraso e a servidão que persistiam por todo império, o Estado Novo português tinha

praticamente consolidado o discurso que dava respaldo ao seu anacrônico império. A política

colonial de “ocupação científica” também deveria ser estendida às colônias, razão pela qual

Sarmento Rodrigues57

recebeu a nomeação para governar a Guiné. Foi lançado na vida

político-administrativa ultramarina pelo Ministro das Colônias, Marcelo Caetano, depois de

ter frequentado a Escola Superior Colonial com distinção. Também foi notado por ter alguns

artigos publicados na “Revista Militar”, que tratavam sobre estratégias da administração

ultramarina.

Um ano depois de ter chegado à Guiné, e por conta das comemorações do quinto

centenário de sua “descoberta”, várias obras públicas foram inauguradas por todo o território.

No campo cultural surgiu o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP), idealizado por

Sarmento Rodrigues e Avelino Teixeira da Mota58

, a quem convidou para acompanhá-lo e

assessorá-lo, tão logo recebeu a incumbência de administrar a colônia. Ambos conheceram-se

nos Açores

uma das áreas mais quentes da Segunda Guerra Mundial – tocada por uma guerra

submarina sem quartel entre os Aliados e a Alemanha -, onde Teixeira da Mota se

encontra em comissão a bordo do “Lima”, que surgem na imprensa periódica insular

os seus primeiros artigos. O Comandante do navio, capitão-tenente Sarmento

Rodrigues, nota desde logo a propensão do Tenente, em princípio de carreira, para a

escrita, revelando também um sentido de cumprimento rigoroso das tarefas que lhe

estão acometidas e da disciplina. Por isso mesmo, quando Sarmento Rodrigues é

nomeado governador da “Guiné Portuguesa”, Teixeira da Mota é naturalmente

convidado a integrar a sua equipa, cessando a comissão de embarque a 3 de abril de

1945. Um mês depois a Alemanha rendia-se. A guerra chegara a fim na Europa.59

56

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: ED. UFMG, 1998, p.111. 57

Manuel Maria Sarmento Rodrigues (1899-1979), português de Freixo de Espada à Cinta, governou a colônia

da Guiné Portuguesa entre 1945 e 1948. Integrou o governo de António Salazar como secretário do ministro dos

Negócios Estrangeiros (1928), como ministro das Colônias entre 1950 e 1961 (designação alterada em 1951 para

ministro do Ultramar) e como governador-geral de Moçambique (1961-1964). Galgou cargos na Marinha

chegando ao posto de almirante. Faleceu em Lisboa em 1979 deixando várias publicações sobre a vida política

do império português. 58

Nascido em 22/9/1920 em Lisboa, Avelino Teixeira da Mota teve longa carreira militar. Entre outros títulos,

foi da Academia Portuguesa de História (1962), lecionou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

(1965-1969) como regente da cadeira de História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Presidiu o

Tribunal da Marinha e deixou inúmeras obras, em especial sobre cartografia antiga e sobre a expansão marítima

portuguesa. Morreu em abril de 1982. Como auxiliar direto do governador Sarmento Rodrigues, foi o grande

impulsionador da pesquisa etnográfica no território da Guiné. 59

VALENTIM, Carlos Manuel. O Trabalho de uma vida. Bibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-

1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007, p.32.

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1.2 Conhecimentos coloniais a serviço da metrópole

1.2.1 As primeiras notícias

Coincidindo com a autonomia administrativa da Guiné, após desvincular-se do

governo indireto desde Cabo Verde, surgiram as primeiras produções escritas e impressas na

colônia. Bolama, então a “nova” capital, recebeu a primeira tipografia na cidade. Alguns anos

depois passou a circular o primeiro Boletim Official do Governo da Província da Guiné

Portugueza60

, publicação vinculada à administração e similar às já existentes, há bastante

tempo, nos demais territórios coloniais luso-africanos: Cabo Verde (1842), Angola (1846),

Moçambique (1854) e São Tomé e Príncipe (1859).

Nessa mesma época o cônego, Marcelino Marques de Barros (1844-1929),

nascido em Bissau e estudioso do vocabulário Mandinga, Beafada, Fula, Balanta e Bijagó,

teve divulgadas as suas recolhas pelo território da Guiné, com exemplos da literatura oral de

diversos grupos. Segundo João Vicente,

suas capacidades narrativas são postas ao serviço duma observação atenta da terra e

das gentes da sua Guiné, ao longo de 19 anos de presença activa e movimentada. Por

isso ele nos pôde deixar alguns escritos apreciáveis publicados em revistas

portuguesas do tempo, onde sobressai o etnólogo autodidacta que teve de ser, já que

o Governo português não lhe deu oportunidade de uma formação universitária

especializada.61

Os trabalhos de Marques de Barros foram publicados no Novo Almanaque para 1875 e 1892

(traduções de lendas), e no Almanaque Luso-Africano para 1899 (cantos e contos dos Balanta

e Beafada). Em 1900, o resultado da recolha de contos e parábolas em língua papel e

mandinga, além de canções em crioulo (kriol)62

foram publicados na revista Literatura de

60

O Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portugueza surgiu em 1884. Ao longo dos anos teve

alterações em seu nome: Boletim Official da Guiné Portugueza (1892-1898), Boletim Official da Província da

Guiné Portuguesa (1898-1927), Boletim oficial da Colónia da Guiné (1927-1951) e o Boletim oficial da Guiné

(1951-1974), este impresso na cidade de Bissau. Diferentemente do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa,

estes boletins tratavam, basicamente, de informes relativos à legislação da colônia. 61

VICENTE, João Dias. Subsídios para a biografia do sacerdote guineense Marcelino Marques de Barros

(1844-1929). Lusitania Sacra: Lisboa, 2ª série, n.4, 1992, p. 424. 62

O kriol ou crioulo de base portuguesa surgiu do contato da língua portuguesa com as línguas africanas,

provavelmente no final do séc. XVI na região da Senegâmbia, em especial nos entrepostos comerciais

(Ziguinchor, Cacheu, Geba e Farim) . Possui o léxico, na sua maioria, de origem portuguesa, porém, do ponto de

vista gramatical, assim como outras línguas crioulas, é autônomo e diferenciado. Segundo Dulce Pereira [2010?,

s/p], “os crioulos são línguas naturais, de formação rápida, criadas pela necessidade de expressão e comunicação

plena entre indivíduos inseridos em comunidades multilíngues relativamente estáveis.” Embora atualmente a

língua oficial da Guiné-Bissau seja o português, o kriol é a língua franca do país.

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Negros. Entre outras contribuições, o cônego Barros foi colaborador da Revista Lusitana63

,

onde, sob o título geral de O Guinéense, publicou vários artigos sobre as línguas da Guiné.

Os primeiros jornais que circularam na Guiné datam da década de 1920. Todos

tiveram vida efêmera, não sobrevivendo mais do que seis meses. Ecos da Guiné (1920), A Voz

da Guiné (1922) e Pró-Guiné (1924) apresentavam uma abordagem jornalística que,

notadamente, expressava a saudade da metrópole ou a apologia do desenvolvimento colonial,

temas bastante próximos ao recente regime republicano da metrópole. Pouco se referiam à

população autóctone, a qual era bastante reduzida nas cidades, apenas tolerada na prestação de

serviços na casa de colonos e administradores, ou seja, um tipo de escravidão doméstica.

O clima tensionado pelas Campanhas de Pacificação e Ocupação, que ocorriam

em pontos distintos do território, assim como os conflitos políticos na metrópole, estavam

refletidos na produção literária. Havia um clima

em que proliferava a má-língua, onde uma multidão burocrática efusiva se

projectava nos jornais, uns contra os outros, em ataques e contra-ataques: em suma,

um ambiente que denotava fortemente o sentimento generalizado de degradação

moral e política a que estavam sujeitos os colonos na Guiné. Daí que não se

produziu literatura no sentido estrito da palavra, salvo algumas manifestações

poéticas (poucas) que, mesmo assim, pouco ou nada tinham de africano.64

Existiram outros três jornais, também na década de 1930, os quais tiveram apenas

uma edição: 15 de Agosto (1932), Sport Lisboa e Bolama (1938) e Guiné Agradecida (1939).

Enquanto na metrópole a ditadura estabelecia-se, surgiu, em 1931, o jornal Comércio da

Guiné, “dirigido por Armando António Pereira, talvez um dos únicos guineenses com

formação superior na altura.”65

Apesar de, também, ter tido curta duração, pode ser

considerado o ponto de partida para uma produção literária a partir da colônia.

No Comércio da Guiné, o cabo-verdiano Fausto Duarte (1903-1953) obteve

especial destaque. Tendo migrado em 1928, atuou nesse periódico como repórter, cronista

desportivo, além de também desenvolver seu talento como romancista. Com a instabilidade

do setor jornalístico enveredou pela literatura colonial. Participou de concursos literários

patrocinados pela metrópole, que os utilizava dentro do contexto propagandístico colonial que

tencionava atrair a curiosidade da população branca para as colônias. Segundo Avelino

Teixeira da Mota, Fausto Duarte, entre outros escritores na década de 1930, procurava “na

63

Sobre a Revista Lusitana ver: http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/etnologia/revistalusitana/index.html. 64

AMADO. Leopoldo. A literatura colonial guineense. Icalp, v.20-21, jul./out.1990, p.4. 65

Ibid., p.9.

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colónia os temas de romances com grande aceitação pública”66

, colaborando, assim, para a

divulgação romanceada dos espaços coloniais.

Embora Moema Augel (2007) aponte que a literatura de Fausto Duarte67

denota

uma visão estereotipada e reducionista dos povos tradicionais, Leopoldo Amado (1990)

destaca, por outro lado, que ela abordou o confronto cultural entre brancos, cabo-verdianos e

povos guineenses, promovendo denúncias e “apelos à justiça e compreensão raciais”68

. O fato

de que Fausto Duarte era mestiço e letrado, e, por isso, não totalmente aceito quer pelos

brancos portugueses, que viam nele um usurpador de cargos, quer pelos mestiços da Guiné,

pode ter dado o tom à sua estética literária.

Não há notícias de que tenha havido outros trabalhos aos moldes das recolhas

efetuadas pelo cônego Barros, ou seja, voltados ao estudo das línguas e dos costumes das

populações autóctones. Preponderaram, ao contrário, “leituras pessoais das manifestações de

oratura [...] versões traduzidas em português (ou em francês), nas quais se sente o

arrastamento para o apuramento da expressão estética.”69

Os trabalhos elaborados dessa

maneira eram, na verdade, reformulações voltadas para um público específico na metrópole,

interessado no exótico e no pitoresco do mundo colonial. Como exemplo, destacam-se os

autores Viriato Augusto Tadeu, Contos do Caramó, Lendas e Fábulas Mandingas (1945) e

Norberto Lopes, Terra Ardente (1947), entre outros.

Os autores que atuavam na Guiné, nesse momento, eram, majoritariamente, cabo-

verdianos. É bom lembrar que nas décadas de 1920/30 houve uma grande entrada na Guiné de

emigrantes de Cabo Verde, os quais, em grande maioria, letrados. A baixa escolarização do

luso-guineense e dos grumetes pode explicar a ausência de colaborações nos jornais ou

produções literárias.

Nos anos 40 do século XX a atividade editorial na Guiné fica praticamente

paralisada, à exceção das publicações oficiais. Em 1943, surge o Arauto, quando as missões

católicas sentem a necessidade de um veículo de divulgação de suas atividades. Nesse

período, a política assimilacionista colheu os primeiros frutos “a par do refreamento da

resistência guineense, o que permitiu que o ‘Arauto’ fosse publicado com a periodicidade

66

MOTA, Avelino Teixeira da. O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.8, 1953, n.32,

p.610. 67

Principais obras de Fausto Duarte: Auá: Novela Negra (prêmio de literatura colonial de 1934); A Revolta (2º

lugar do concurso de 1942); O negro sem alma (1935); Rumo ao Degredo (1938); Foram estes os vencidos

(1945). 68

AMADO. Leopoldo. A literatura colonial guineense. Icalp, v.20-21, jul./out.1990, p.13. 69

GOMES, Aldónio; CAVACAS, Fernanda. A literatura do saber tradicional: a oratura. In: A Literatura na

Guiné-Bissau. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos

Descobrimentos Portugueses, 1997, sem paginação.

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possível até 1968.”70

Fausto Duarte escreveu para este periódico, assim como o cabo-verdiano

Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral. Entre outros colaboradores, consta Caetano Filomeno

de Sá, natural da colônia da Guiné.

1.2.2 O Centro de Estudos e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa (BCGP)

e esta Revista surge na hora própria, na hora oportuna

para recolher novos estudos e divulgá-los,

sobretudo para levar ao conhecimento do maior número

de pessoas possível aquilo que os estudiosos forem

apurando sobre esta nossa rica e promissora colônia.

Marcelo Caetano, Ministro das Colônias, 194671

Em 1945 tomou posse na Guiné o novo governador capitão-tenente Manuel Maria

Sarmento Rodrigues. Pertencente ao alto escalão da Marinha e tendo frequentado a Escola

Superior Colonial, entre 1940 e 1942, o novo governador fazia parte do grupo que apoiava a

ditadura do Estado Novo. Os aliados de Salazar promoviam a legitimidade e fundamentavam

a sobrevivência do império, mesmo em face de seu anacronismo. Buscando dar “sentido e

significado de Portugal no mundo, [...] Salazar e seus ideólogos apresentavam-se ao mundo

como antiliberais e anticomunistas, aspecto que demarcava o cariz essencialmente fascista do

regime”.72

A atuação política de Sarmento Rodrigues é digna de nota, principalmente porque

quando deixou a Guiné, substituiu Marcelo Caetano no Ministério das Colônias em 1950.

Num cenário hostil às práticas coloniais, trabalhou no sentido da consolidação do império

mesmo quando alguns países já haviam concedido a independência às suas colônias.

Promoveu mudanças, de início, ao nível dos discursos, quando apresentou a Salazar a obra de

70

AMADO. Leopoldo. A literatura colonial guineense. Icalp, v.20-21, jul./out.1990, p.14. 71

CAETANO, Marcelo. Uma crónica nova da conquista da Guiné. BCGP, Bissau, v.1, 1946, n.1, p.11. 72

PINTO, João Alberto da Costa. Gilberto Freyre e o lusotropicalismo como ideologia do colonialismo

português (1951-1974). Revista UFG, Goiânia, jun.2009, nº 6, p.147.

Juvenal Cabral

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Gilberto Freyre e, segundo João Alberto da Costa Pinto (2009), convenceu-o de sua

importância e utilidade política.

Através da obra freyreana, “buscava-se uma arquitetura teórica que justificasse a

tradição do colonialismo lusitano ao longo do tempo, como uma estrutura histórica

diferenciada daquela ocorrida em outros países colonialistas.”73

Nesse sentido, Casa Grande

e Senzala (1933) e O mundo que o português criou (1940), serviram com perfeição e com a

mesma perfeição foram utilizadas. Freyre moldou o português como um colonizador

diferente dos demais. Tornou-o, a partir da experiência brasileira, capaz de provar seu trato

fraterno com as populações tropicais em razão de seu passado multicultural. Em 1951

escreveu sobre a Guiné:

é, ao mesmo tempo, a mais antiga e a mais moça das terras ocupadas pelos

portugueses nos trópicos. Aqui madrugou o lusotropicalismo: todo um movimento

na moderna história humana de contatos de uns povos com outros, começado com os

contatos dos portugueses com ou mouros e que só essa expressão parece definir.

Mas foi uma aventura tão superficial, da Guiné, que a colonização do Brasil tropical

por portugueses decididos a se fixarem em terras tropicais, como agricultores,

superou-a como superou o próprio início dessa mesma expansão,a princípio tão

brilhante, em terras do Oriente.74

A arquitetura do lusotropicalismo serviu de base “teórico-científica” incorporada à maciça

propaganda internacional do colonialismo português, que pretendia fazer frente às pressões

em defesa da autodeterminação dos povos. Assim, Sarmento Rodrigues e Gilberto Freyre, em

grande medida, construíram uma “tradição inventada”, lembrando Eric Hobsbawm e Terence

Roger (2008), em que o colonialismo português era diferente dos demais e, portanto, sua

implementação era apropriada.

Não obstante a atuação política de Sarmento Rodrigues no Ministério das

Colônias, importa focar o início de seu governo na Guiné. Juntamente com Avelino Teixeira

da Mota criou o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP), instituição que objetivava

dar “à cultura do espírito incremento paralelo ao progresso material”75

. Idealizado em

dezembro de 1945, o Centro de Estudos foi oficialmente organizado em julho de 1946 para

traçar os rumos de uma nova revista colonial.

73

PINTO, João Alberto da Costa. Gilberto Freyre e o lusotropicalismo como ideologia do colonialismo

português (1951-1974). Revista UFG, Goiânia, jun.2009, nº 6, p.147. 74

FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: Topbooks: UniverCidade, 2001, p.247. 75

RODRIGUES, Manuel Maria Sarmento. Para a elevação do nível cultural da Guiné. BCGP, Bissau, v.1,

1946, n.1, p.8.

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49

Em julho de 1945, amparado pelo artigo nº 31 do Acto

Colonial, e pelo artigo nº 37 da Carta Orgânica do Império

Colonial Português, surgiu o Boletim Cultural da Guiné

Portuguesa (BCGP). A primeira edição, em 1946, destacava que a

nova publicação tinha por objetivo divulgar “cultura e informação”

para todo o território colonial e além dele. Segundo a versão

oficial, permitiria “que a gente da Guiné pudesse mais facilmente

tomar parte no movimento literário, científico, artístico, numa

palavra, intelectual, com vista à formação e desenvolvimento dos

valores espirituais. Ler e escrever”76

Curioso imaginar uma proposta para a alfabetização de

povos africanos, que dela prescindiam, através de um periódico português! O “discurso”

estava, certamente, mal elaborado.

Os primeiros artigos publicados foram escritos por Marcello Caetano e pelo

próprio governador e, na ocasião, foram nomeados membros honorários do Centro de

Estudos. Esta iniciativa “cultural” trazida pelo governador não teve aprovação unânime na

colônia, pois seu propósito desprendia-se dos interesses econômicos predominantes na Guiné.

Porém, apesar das relutâncias, Sarmento Rodrigues deu andamento a seu projeto “científico”,

contando com o trabalho in loco de seus funcionários:

É ao superior interesse que espero lhes mereça o estudo do que diga respeito aos

valores indígenas, das suas artes primitivas, das suas línguas, costumes e tradições,

de tudo que possa registrar uma existência, uma personalidade que o tempo

fatalmente destruirá[...] É preciso que a nossa vinda e permanência seja, como é,

superiormente acolhedora do presente e do passado, dos vencedores e dos

vencidos.77

O discurso de Sarmento Rodrigues deixa claro que a Guiné era um mundo

desconhecido para os portugueses. Prova disso é o fato de que ele acreditava ser possível

suprimir culturas ancestrais e seu pensamento demonstra pouco saber sobre as dinâmicas de

mundos africanos. Por outro lado, nesse fragmento de discurso estavam relacionados todos os

aspectos importantes para os quais as atenções deveriam ser direcionadas. Conhecer e

controlar povos autóctones era o caminho para a permanência portuguesa no ultramar.

Os estudos de caráter histórico, etnográfico e antropológico efetuados no âmbito

do Centro de Estudos “ganharam mais sistematicidade e qualidade (embora) realizados no

76

RODRIGUES, Manuel Maria Sarmento. Para a elevação do nível cultural da Guiné. BCGP, Bissau, v.1,

1946, n.1, p.6. 77

Id. Discurso proferido durante a 1ª Reunião Magna do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. BCGP, Notas

e Informações, Bissau, v.2, 1947, n.5, p.268.

BCGP, n. 1, 1946.

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50

território mais ‘marginal’ do império”78

. É possível relativizar a imbricação entre a produção

antropológica e os instrumentos de domínio colonial na Guiné, considerando que: “grande

parte das estruturas nativas foi mantida, a exploração se fazia de forma indireta, nunca houve

uma afluência significativa de colonos brancos” e a Guiné era um “dos territórios que menos

interessava à moderna empresa colonial capitalista”.79

Dessa maneira, passou a existir,

naquela colônia, uma instituição promotora de estudos, os quais constituíram um

“conhecimento científico” sobre a Guiné sem equivalência em todo o império ultramarino.

Quando visitou a Guiné em 1951, Gilberto Freyre ressaltou a iniciativa de

Sarmento Rodrigues ao dizer que

bastaria a presença, neste Centro, dos dois admiráveis investigadores de coisas da

Guiné que são o zootécnico Tendeiro e A. Teixeira da Mota para lhe dar solidez,

permanência, constância de esforço: virtudes não de todo comuns em iniciativas

portuguesas depois que ao ardor como que nupcial dos primeiros tempos se segue a

inevitável rotina da estabilização. Somos portugueses e brasileiros, gente de

entusiasmo fácil mas de constância difícil. O Centro de Estudos da Guiné

Portuguesa vem sendo uma afirmação dessa capacidade de constância, rara entre

portugueses homens de letras ou de ciência, quando se organizam para esforços de

interesse comum.80

A primeira Comissão Executiva do CEGP foi presidida por Caetano Filomeno de

Sá81

. Contava com membros residentes82

na Guiné e membros correspondentes83

moradores

em outras colônias, na metrópole ou no exterior, Para ser membro do CEGP era necessário ser

colaborador do Boletim Cultural ou prestadores de serviços no Centro de Estudos. Os

membros residentes eram funcionários administrativos da colônia e, assim como os

correspondentes, nomeados através de ato formal.

Anualmente era formada uma Comissão Executiva composta por um presidente,

alguns vogais, escolhidos entre os membros residentes, e um secretário. Tinha, entre outras, a

78

THOMAZ, Omar Ribeiro. "O bom povo português": usos e costumes d´aquém e d´além-mar. Mana, Rio de

Janeiro, v. 7, n. 1, Apr. 2001, p.64. 79

Ibid., p.64. 80

FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: Topbooks: UniverCidade, 2001, p.232. 81

Caetano Filomeno de Sá foi chefe da Delegação Aduaneira onde exerceu, de 1916 e 1919, a função de censor

- postal e telegráfico - das correspondências enviadas da Guiné. 82

Os primeiros membros residentes nomeados foram: Agostinho Gomes Pereira(secretário da Circunscrição

Civil de Catió), Amadeu Inácio Pereira Nogueira (Administrador da Circ. Civil de S. Domingos), 1º tenente

Antonio Augusto Peixoto Correia(Chefe da Repartição do Gabinete), Antonio Barbosa Carreira (Administrador

da Circunscrição Civil de Cacheu), Augusto de Jesus Santos Lima (Administrador da Circ. Civil dos Bijagós),

Fausto Castilho Duarte (Secretário da Comissão Municipal de Bolama), Dr. Honório José Barbosa (Juiz de

Direito da comarca), João Basso Marques (Delegado Aduaneiro de Cacheu), Alferes João Maria Bento, José

Mendes Moreira (Secretário da Circunscrição Civil de Gabú), Louride de Sousa Bel (comerciante e agricultor),

Octávio Candido Gomes Barbosa (Administrador de Circunscrição Civil), Rui dos Santos Serpa(Chefe da Seção

de Estatística) e Virgolino José Pimenta (Gerente do Banco Nacional Ultramarino). 83

Os primeiros membros correspondentes nomeados foram Edmundo Correia Lopes (filólogo) e Dr. J. P.

Marinho da Silva (escritor) de Lisboa e Dr. José de Oliveira (professor do ensino secundário) de Lourenço

Marques, Moçambique.

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função de compor a Comissão de Redação do Boletim Cultural, dirigir sua publicação, avaliar

os trabalhos apresentados e submeter, previamente, cada número à apreciação do governador.

Em tempos de salazarismo e de sua polícia política, a cultura e a informação, mesmo numa

colônia distante, eram promovidas sob o olhar atento do poder.

Além de gerir a publicação do Boletim Cultural, a Comissão Executiva era

responsável por organizar a Biblioteca e o Museu da Guiné. Os primeiros relatos da comissão

apontam inexistir qualquer biblioteca no território naquela época, embora houvesse uma

grande quantidade de materiais recolhidos para a Exposição Colonial de Bissau84

. A comissão

observou que a documentação histórica existente era pobre em virtude da “instalação

precária dos arquivos e a sua destruição por acção de agentes próprios do meio [...], por

incêndios naturais e por queimas propositadas.”85

Por desleixo ou precaução, muito se

perdeu e o pouco do que restou foi enviado ao Arquivo Histórico Colonial de Lisboa. Sobre o

Museu, a comissão relatou existir material em abundância, porém sem identificação e

tratamento adequados, razão pela qual foram estabelecidas algumas ações para a coleta e

catalogação daquilo julgado de interesse.

Foi, portanto, a partir do Centro de Estudos que foram sendo organizados o

museu, o arquivo histórico e a biblioteca na colônia da Guiné, no entanto, mudanças

significativas ocorreram a partir de 1973. Conforme o Guia do Museu Nacional da Guiné-

Bissau, publicado em 1988, após “a proclamação da independência política e transferência de

poder, foram desaparecendo, paulatinamente, peças e colecções do ex-Museu da Guiné

Portuguesa”86

. Além disso, merecem destaque as consequências da guerra civil ocorrida entre

1998 e 1999, que destruiu, quase que totalmente, as instalações e o acervo do Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), instituição que abrigava, na época, todo o acervo

cultural do país após a independência.87

Coube ao Centro de Estudos, em 1947, a organização da 2ª Conferência

Internacional de Africanistas Ocidentais (CIAO)88

. Nessa conferência, que aconteceu entre 8

84

A Exposição de Bissau ocorreu em meio às festividades promovidas pelo V Centenário da Descoberta da

Guiné, em 1946. 85

MOTA, Avelino Teixeira da. Relatório da 1ª Comissão Executiva do Centro de Estudos da Guiné

Portuguesa. BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.2, 1947a, n.6, p.562. 86

MUSEU Nacional da Guiné Bissau. Guião. Bissau: Gráfica Eme Silva Ltda., 1988, sem paginação. 87

Através do Protocolo de Cooperação de 28/6/2007, a Fundação Mário Soares e técnicos da Guiné-Bissaus

vêm trabalhando para a recuperação dos fundos documentais do INEP e de suas instalações contando, também,

com o apoio das embaixadas da Alemanha e dos Estados Unidos. Em janeiro de 2009 foi possível a reabertura da

Biblioteca Pública e do Arquivo Histórico Nacional da Guiné-Bissau. Também em 2009 foi iniciado o projeto de

recuperação, tratamento e digitalização do fundo da Repartição do Gabinete dos Governadores da Guiné. 88

A 1ª Conferência dos Africanistas Ocidentais aconteceu em janeiro de 1945 na cidade de Dakar por iniciativa

do Institute Français de l’Afrique Noire (IFAN) e Mendes Moreira compareceu como representante de Portugal.

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e 14 de fevereiro em Bissau, foram discutidas propostas para pesquisas imediatas na região,

tendo em conta as rápidas transformações que eram percebidas. A partir dela, o CEGP

aproximou-se de outras instituições de estudo, tais como o International African Institute, da

Grã-Bretanha e, especialmente, com o Institute Français de l’Afrique Noire (IFAN)89

, com

sede em Dakar.

A relação existente entre o CEGP e o IFAN tornou-se mais intensa a ponto de, em

1949, Teixeira da Mota ser nomeado membro do Conselho Superior Científico dessa

instituição francesa. Curiosamente, o mesmo não se verificava em relação aos centros de

estudos em Portugal, como sublinhou Sarmento Rodrigues:

As nossas relações culturais têm-se intensificado sobretudo com os territórios

vizinhos, no meio dos quais já hoje não somos mancha escura como outrora...É

claro que apesar de nunca termos merecido a devida consideração dos organismos

metropolitanos encarregados deste domínio das ciências coloniais - pois até hoje

ainda não foi enviada nenhuma das colaborações prometidas - nem por isso

deixaremos de tentar estabelecer contactos com eles, sempre agradáveis e sem

dúvida úteis em ensinamentos90

O intercâmbio que Teixeira da Mota mantinha com os intelectuais do IFAN, como

Theodore Monod e o historiador Raymond Mauny, era intenso, contrastando com o

distanciamento das instituições de pesquisa colonial da metrópole. Em meados do século XX,

por todo ocidente africano, tanto no ultramar francês quanto no inglês, multiplicavam-se

“quadros administrativos, técnicos, cientistas, intelectuais, que procuravam um novo rumo

para a investigação científica e para as ciências auxiliares da governação ultramarina”91

.

Cabe lembrar que os estudos antropológicos na metrópole na década de 1940

eram liderados por Mendes Correia e ainda estavam pautados na observação de aspectos

somáticos e físicos. É possível compreender a existência de embates em torno dos referenciais

teóricos adotados em Lisboa e em Bissau, o que não impediu as iniciativas “inovadoras” na

colônia, conforme relata Teixeira da Mota

Logo de início o “Centro de Estudos” procurou reagir contra a tendência, que se

nos afigurava demasiado centralizadora e antiquada, da investigação científica

ultramarina em Portugal, a qual se manifestava sobretudo através de missões

temporárias aos territórios. Sem negar as vantagens que algumas dessas missões

ofereciam, sobretudo quando movimentam recursos e meios científicos e técnicos de

Aconteceram outros encontros em Ibadan (Nigéria) em 1949 e Fernando Pó, em 1951, e a todos compareceram

representantes do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa - CEGP. 89

O Instituto Francês da África Negra (IFAN) foi criado em 1938 e publicou, de 1947 a 1956, a revista Études

Guinéennes (sucedida pela Recherches Africaines). Através dela foram divulgados os resultados de pesquisas

sobre ciência física, etnologia, economia e cultura da África ocidental francesa. Patrocinado pelo governo da

Guiné Francesa, foi dirigido por Georges Balandier e Theodore Monod, entre outros. 90

RODRIGUES, Manuel M. Sarmento. Discurso. Discurso proferido durante a Reunião Magna do Centro de

Estudos da Guiné Portuguesa em 16/2/1948. Bissau: BCGP, Notas e Informações, v.3, n.10, 1948, p.526. 91

VALENTIM, Carlos Manuel. O Trabalho de uma vida. Bibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-

1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007, p.33.

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que as províncias ultramarinas não dispõem, sempre apelámos para que, a par

delas, se fomentasse o desenvolvimento de instituições locais de investigação.92

O que Teixeira da Mota entendia como “científica” era a pesquisa direta, efetuada

por investigadores que vivenciassem a experiência do cotidiano em comunidades locais.

Segundo Carlos Manuel Valentim,

é indiscutível que os contactos que (Teixeira da Mota) manteve com cientistas e

investigadores europeus (entre outros Georges Balandier, Theódor Monod), que

trabalhavam em África, lhe proporcionou uma actualização com as novas correntes

científicas. Aos poucos foi-se distanciando da via “tradicionalista”. Tinha contactos,

é bem verdade, com o investigador e professor António Mendes Corrêa, mas não

seguia os seus métodos [...] Avelino Teixeira da Mota optará por seguir as teorias

das “escolas” francesa e inglesa, e ler as obras de autores como Georges Balandier,

que se apoiavam no Estruturalismo de Claude Levi-Strauss e na Antropologia

funcionalista anglo-saxônica.93

Não se pode falar dos anos iniciais do Centro de Estudos e do Boletim Cultural

sem conceder destaque ao empenho de Teixeira da Mota. Tendo chegado à Guiné através do

convite de Sarmento Rodrigues, desenvolveu um trabalho singular. Para ele, o Boletim

Cultural deveria servir como

um laço de união com a Metrópole e as outras colónias, por um lado, e com as

colónias estrangeiras vizinhas, pelo outro. E isto porque não só os trabalhos a nele

publicar terão a sua natural repercussão, mas também por muito haver a contar dos

indivíduos de fora, dos estudos afins lá feitos e de muitos elementos a lá obter [...]

(com) a publicação de trabalhos sobre a Guiné, escritos por pessoas vivendo na

colónia ou fora dela.”94

Para oferecer um tom “científico” ao Boletim Cultural, foram estabelecidas

“regras de publicação”.95

Os manuscritos encaminhados deveriam ter caráter histórico,

abordando fatos sobre o domínio português na região da Senegâmbia, cunho científico, no

sentido do estudo sistemático da Colônia e seus meios físico, biológico e humano,

particularmente a etnografia, ou cunho literário e artístico, notadamente na recolha da

literatura oral.

Para Teixeira da Mota, os funcionários administrativos e os missionários eram os

mais indicados para desenvolverem estudos etnográficos, pois eram os mais próximos dos

povos guineenses. Sua ideia baseava-se nos trabalhos do etnógrafo francês Maurice

Delafosse96

e do cônego Marcelino Marques de Barros. Os funcionários da colônia da Guiné

eram amadores na investigação e nunca contaram "com o apoio dos sábios de profissão, que

92

MOTA, Avelino Teixeira da. O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Bissau: BCGP, Notas e

Informações, v. 8, 1953, n.32, p.643-4. 93

VALENTIM, op.cit., p.155. 94

MOTA, Avelino Teixeira da. BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.2, 1947a, n.6, p.555-6. 95

Ver Apêndice B. 96

Maurice Delafosse (1870-1926), funcionário administrativo e etnógrafo francês, deixou extensa obra sobre a

África Ocidental francesa.

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sempre lhes faltou e foi negado."97

Porém, apesar disso, participaram de um trabalho pioneiro

que, hoje, oferece um elo com culturas africanas de meados do século XX.

Os primeiros manuscritos enviados à publicação foram considerados muito

genéricos, pois abordavam “grande extensão de pontos, (e) relativa pequenez de

profundidade”98

. Por essa razão, Teixeira da Mota orientou os colaboradores para que

fizessem observações localizadas, atentas às especificidades de cada região. Sugeriu, também,

que privilegiassem temas considerados de maior interesse, tais como a arte, especialmente

Bijagó, Mandinga e Nalú, religião, bem como a recolha de tradições históricas (orais e

escritas), na forma de lendas, mitos, contos, fábulas e provérbios. Há que ser considerado o

desconhecimento em relação à maioria das línguas faladas pelos povos guineenses, razão pela

qual seria praticamente impossível atender as orientações de Mota. Isto talvez explique a

ausência de trabalhos sobre alguns povos, tais como Sosso, Nalú, Banhum, entre outros.

O estudo das línguas locais era, portanto, muito importante, notadamente pelo fato

de que os portugueses tinham dificuldades na comunicação com a maioria dos povos

guineenses e certa resistência ao uso da língua crioula, a qual nem todos dominavam. Para

Teixeira da Mota, “o mundo das palavras é uma base de primeira ordem para o

conhecimento da vida psíquica e mesmo da social”99

das populações nativas e essa

compreensão permitiria “penetrar na complexidade da vida dos indígenas, discernir e

aprofundar os seus modos e a sua maneira de ser”100

.

O Boletim Cultural foi criado para ser uma revista colonial e, como tal, além das

orientações básicas, foi atribuída preferência a trabalhos oriundos de observações diretas pela

convivência com os povos autóctones. Assim, os manuscritos deveriam ser produto de

“pesquisas de campo”, a fim de serem evitadas distorções ou criatividades. Buscava-se a

novidade e originalidade, porém, de forma subjacente, apreender culturas para integrá-las ao

projeto estadonovista.

Segundo Fernando Simões da Cruz Ferreira (1950), presidente da 2ª Comissão

Executiva do CEGP, a observância de regras permitia que o Boletim não fosse desviado de

suas finalidades. A recusa de alguns trabalhos

trouxe ao Boletim uma série de inimizades e aborrecimentos, que desde então nunca

mais deixaram de o perseguir. Pretendia-se a todo custo fugir à literatura fácil, à

história de frases retumbantes, ao pitoresco de mau gosto, a que o Português é tão

propenso e que se revelam tão lamentàvelmente em numerosas publicações

97

MOTA, Avelino Teixeira da. BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.2, 1947a, n.6, p. 565. 98

Id. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946d, n.1, p. 184. 99

Ibid, p. 184. 100

Id. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946c, n.2, p.380. Sobre as pesquisas em torno das línguas dos povos

guineenses orientada por Teixeira da Mota ver item 1.3.2 adiante.

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nacionais. [...] (o Boletim) estimulou ao máximo a colaboração de indivíduos de

reduzida preparação científica mas de conhecimentos notáveis sobre determinados

assuntos por virtude de uma longa prática e permanência no território. Este acto

veio a acarretar-nos a má vontade de vários cientistas. E assim começou a correr a

vida do Boletim, sempre entre a hostilidade de escrivinhadores, de um lado, e a de

alguns investigadores científicos, do outro.101

Havia tensões em torno do Centro de Estudos e da publicação, pois o estímulo à

colaboração dos membros residentes, de “reduzida preparação científica”, incomodou a

intelectualidade metropolitana. Talvez esse menosprezo não tenha sido causado apenas por

essa destacada falta de preparo. Cabe ressaltar que a maioria desses colaboradores era oriunda

de Cabo Verde e, portanto, luso-africanos, o que leva a crer que o racismo velado pairava

sobre os “cientistas” metropolitanos. Em 1953, Teixeira da Mota ressaltava que a orientação

técnica imprimida às atividades do CEGP foi criteriosa, principalmente pelo fato

de as comissões executivas serem constituídas por indivíduos de vistas largas, que

souberam ràpidamente apreender a essência dos problemas de interesse para a

Guiné e que, mercê de um activo contacto com os organismos de investigação

estrangeiros de África, sobretudo os franceses, puderam manter em dia os seus

conhecimentos sobre as tendências e evolução na investigação científica africana.

Dessa maneira, se evitou que a organização caísse no patrioteirismo histórico-

saudosista, na literatice retórica, no pitoresco de mau gosto, tudo escondendo a

falta de idéias e de objectividade, em que tão frequentemente organizações culturais

tombam entre nós.102

Os colaboradores do Boletim Cultural tinham formação diversificada. Eram

engenheiros, agrônomos, médicos, oficiais da marinha, sacerdotes católicos, alguns egressos

da Escola Superior Colonial com múltiplas ocupações e áreas de interesse. Além dos artigos

etnográficos, também foram abordados temas variados, tais como geografia física e humana,

economia e administração, direito comum e particular dos diversos povos, demografia,

botânica, zoologia, parasitologia, medicina tropical, matemática, engenharia civil (pavimentos

e construções de moradias), entre outros.

Entre os colaboradores, destaca-se Amílcar Cabral. Através de sua participação

no recenseamento agrícola de 1953, por conta de sua formação como engenheiro agrônomo,

juntou subsídios para escrever sobre práticas agrícolas da maioria dos povos guineenses.

Segundo Cabral,

o tipo de exploração agrícola (variava) de povo para povo [...] a terra é um bem

colectivo, sendo-o também os produtos das plantas espontâneas. A propriedade

privada incide sobre os produtos obtidos pela agricultura praticada pelos elementos

constitutivos da família.103

101

MOTA, Avelino Teixeira da. Id. O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.8, 1953, n.32,

p.614. 102

Ibid., p.641-642. 103

CABRAL, Amílcar Lopes. Recenseamento Agrícola da Guiné: estimativa em 1953. Bissau: BCGP, v.11,

nº43, 1956, p.11.

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Tendo sido um dos fundadores do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde

– PAIGC, soube aproveitar o conhecimento da região, obtido quando do recenseamento

agrícola, para articular a luta armada que desencadeou a guerra pela independência no início

da década de 1960.104

Teixeira da Mota referia-se a Amílcar Cabral como um

agrônomo com preocupações sociais (que) escreveu sobre o recenseamento

agrícola, mecanização - tema de grande oportunidade - e utilização da terra na

África Negra [...] o primeiro agrônomo a chamar a atenção para a importância dos

sistemas de agricultura indígenas, na mesma altura em que nós próprios, por outro

caminho, essencialmente geográfico, também salientámos a necessidade de estudar

a fundo tais sistemas para que se possa fazer progredir a agricultura guineense.105

Nos primeiros 10 anos de existência o Boletim Cultural foi impresso em Lisboa,

na Sociedade Industrial de Tipografia106

. Seu formato é sóbrio e todas as capas têm cores

diferentes e discretas, além de trazerem o brasão107

da colônia da

“Guiné Portuguesa”. Adotado a partir de 1935, a metrópole

portuguesa era representada na parte esquerda, em branco, com

cinco pequenos escudos azuis posicionados em cruz, cada um deles

com cinco besantes de prata108

. A colônia da Guiné aparece em preto

com um cetro em ouro finalizado pela cabeça de um negro, alusão a

D.Afonso V, o Africano, rei de Portugal ao início da exploração do

continente. Unindo as partes, ondas verdes simbolizam a ligação

entre Portugal e a Guiné através do oceano.

Cada uma das representações reforçam a alteridade e as distâncias, geográfica e

cultural, que havia entre Portugal e a Guiné. Este símbolo demonstra que a metrópole e a

colônia estão, ao mesmo tempo, estão unidas e separadas pelo Atlântico e, ainda,

subentendem-se dualidades, tais como branco/negro, colonizador/colonizado,

civilizado/inculto, poder/submissão, marcadamente presentes no reforço constante da

diferença.

104

A importante trajetória de Amílcar Cabral e do PAIGC não faz parte do escopo do presente trabalho, porém

sugere-se consultar: FRANCO, Paulo Fernando Campbell. Amílcar Cabral: a palavra falada e a palavra vivida.

2009. 178f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo, São Paulo. 2009. 105

MOTA. Avelino Teixeira da. O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Bissau, BCGP, v.10, 1955, n.40,

p.649. 106

Do nº 45 ao nº 59 as edições do Boletim Cultural foram impressas ora em Bolama (números do ano de 1956),

ora na Imprensa Portuguesa da cidade do Porto, o que se manteve até os últimos números. 107

O brasão de armas foi instituído a partir de 1935 para cada uma das colônias portuguesas. Todos seguem o

mesmo padrão, exceto quanto à parte direita que guarda particularidades de cada uma delas. 108

O besante é uma peça de ouro ou prata, semelhante a uma moeda. Consta que o primeiro rei de Portugal,

D.Afonso I, adotou por brasão de armas do seu reino as cinco chagas de Cristo, com cinco besantes em cada uma

delas.

Brasão de armas da Guiné

Portuguesa - 1935

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A circulação do Boletim Cultural era feita de várias formas: todos os membros do

CEGP recebiam um exemplar, aos autores eram oferecidas 50 cópias de seus artigos, havia o

serviço de assinaturas mediante pagamento de frete e, também as edições eram permutadas

com organismos que manifestassem interesse.109

Considerando que o índice de alfabetização em Portugal, segundo Justino

Magalhães (1996), na década de 1950, chegava a apenas 50% da população, que a maioria

dos povos tradicionais vivia em culturas orais e que a publicação foi menosprezada pela

intelectualidade metropolitana, resta saber quem eram os leitores do Boletim Cultural. A

princípio, ele pode ter servido como um veículo de comunicação e informação entre o

governo colonial e os funcionários administrativos, haja vista que isto ocorria de forma

precária. Pode, também, ter feito parte do conjunto de ações que pretendiam divulgar o

desempenho da administração colonial na “melhoria” da vida dos povos colonizados. Tendo

em vista o grande número de países europeus que recebia, graciosamente, um exemplar, é

possível supor que a publicação tenha sido utilizada como instrumento de propaganda sobre

as pesquisas “científicas”em andamento na Guiné. De qualquer maneira, o Boletim Cultural e

os povos guineenses estão intimamente relacionados. Não através da prestação de serviços ou

do entretenimento, mas pelo fato de que, através de suas páginas, seus modos de vida estão

presentes.

Ao longo dos 28 anos ininterruptos de existência (1946-1973) foram impressas

mais de 23 mil páginas110

. Cada edição trazia, em média, 225 páginas organizadas em seções

permanentes:

Crónica da Colónia (Crónica da Província a partir de 1951): descreve os eventos

oficiais, discursos proferidos, visitas recebidas e efetuadas, enfim, fornece dimensões do

cotidiano das instituições coloniais. Destinava-se a “dar conta dos principais factos de

administração que vão ocorrendo [...], dando conhecimento a uns do que outros estão

fazendo noutro canto da Guiné, contribui-se para a formação mais nítida de um espírito de

equipa”111

. Esta seção cumpriu, em grande medida, o papel da imprensa jornalística,

inconstante durante o período colonial;

109

Foram permutados exemplares com todo o “mundo português”: Portugal, Madeira, Açores, Angola, Cabo

Verde, Moçambique, São Tomé, Timor e Macau. Vários países também receberam exemplares como Alemanha,

França, Holanda, Hungria, Inglaterra, Itália, Polônia, Romênia, Rússia, China, Colômbia, Estados Unidos,

Uruguai, assim como diversos países no continente africano a exemplo da Nigéria, Senegal, Gabão, entre outros.

O Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, possui 100 dos 110 exemplares publicados. 110

No Apêndice A consta o detalhamento das 110 edições do Boletim Cultural. 111

MOTA, Avelino Teixeira da. Relatório da 1ª Comissão Executiva do Centro de Estudos da Guiné

Portuguesa. BCGP, Notas e Informações, Bissau, v.2, 1947a, n.6, p.559.

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58

Etnografia (a partir do nº 5 juntou-se à seção Notas e Informações): visava dar

publicidade sobre a “actividade cultural da colónia, principalmente a do Centro de Estudos

[...] (e abordar) assuntos científicos e culturais do exterior que (fosse) de interesse divulgar

por se relacionarem com a colónia ou terem utilidade para os investigadores locais.”112

A seção Econômica e Estatística tinha por objetivo informar sobre economia,

finanças, transações comerciais da colônia com a metrópole, demais colônias e outros países,

bem como trazia a contabilidade final das exportações e importações. Ao final de 1948, por

exemplo, sabe-se que 57% das exportações foram direcionadas para Lisboa. Em valores, eram

expressivas as exportações para a “Checo-Eslováquia no valor de 16.000 contos, para a

França no valor de 10.125 contos, [...] para a Inglaterra 750 contos e para a África

Ocidental Britânica 627 contos.”113

No final da década de 1940, por exemplo, os produtos

mais representativos do comércio da Guiné eram a madeira bruta, o couro, o arroz, o óleo de

palma e a cera.

A seção Livros e Publicações tinha por objetivo compilar tudo o que fosse publicado

sobre a Guiné. Sem dúvida, guarda uma base de dados historiográfica de grande valor.

A seção Aspectos e tipos da Guiné Portuguesa foi incluída no sumário das

edições a partir do nº 61 (1961), embora já existisse desde o nº 3, de 1946. Traz um total de

438 fotografias, na maioria retratando representantes de povos autóctones. Na legenda dessas

fotografias, os retratados não são referidos por seus nomes, mas por seus grupos de origem ou

gênero, deixando transparecer a intencionalidade de coisificá-los, como no exemplo a seguir:

112

MOTA, Avelino Teixeira da. O Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.8, 1953, n.32, p.

616. 113

ECONOMIA E ESTATÍSTICA, BCGP, v.3, n. 12, 1948, p.1.139.

Felupe com seus instrumentos de caça.

BCGP n.71, 1963, Aspectos e Tipos da Guiné Portuguesa.

p.177)

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59

Por todas as edições surgem fotografias que acompanham os artigos, num total de

3170114

. Segundo Clara Carvalho (2004b, p.131), elas atuam como uma justificativa da

colonização e, dentro do Boletim Cultural, formam três grandes conjuntos:

as fotografias dos actos oficiais, ilustrando as secções “Crónica da colónia” e

“Crónica do Centenário” (até 1947), a fotografia etnográfica e a ilustração de artigos

científicos, geralmente de veterinária ou agronomia, a que (pode-se) acrescentar os

estudos históricos que por vezes são acompanhados de reproduções fotográficas de

documentos [...] Na sua totalidade formam um conjunto de representações

iconográficas significativo sobre as actividades coloniais e expressivo da forma

como são expostos o território e as populações controladas.

Compõem, também, algumas edições do Boletim, artigos voltados à literatura,

distinguidos em dois tipos: os contos recolhidos da tradição oral e os “contos de ficção”. Os

primeiros pretendiam traduzir, para a forma escrita, o que fora apreendido no contato direto

com os diversos grupos. Nessa linha merecem destaque os trabalhos de António Carreira

junto aos Mandinga; João Eleutério Conduto e os contos Bijagó e A. Gomes Pereira e os

contos Fula. Os “contos de ficção” surgiram, em grande medida, como resultado de prêmios

de incentivo concedido pelo Centro Cultural ou pela metrópole. Fernando Rodrigues

Barragão, Alexandre Barbosa e Francisco Valoura, juntamente com Fausto Duarte, são

destaques nesse particular.

Apesar de estarem permeados de marcas preconceituosas, os “contos de ficção”

trazem registros sobre atividades comerciais e práticas locais, como o de Egídio Álvaro ao

descrever a região de Gabú-Sara, pequeno entreposto comercial no interior da colônia.115

Abordando aproximações e afastamentos em relação a sociedade tão hierarquizada quanto

diversa, encimada pela presença militar, Egídio Álvaro acompanha cipaios116

, que contam

com a parceria de povos Fula e Mandinga:

Na Administração (da vila) os cipaios aguardam nem eles sabem o quê, sentados na

escadaria. Fulas e mandingas esperam também, acocorados [...] Cipaios, felizes

nas suas atribuições, impedem a entrada à multidão [...] Um mar de gente corre já

para o celeiro. [...] Comerciantes avançam, proa branca rompendo entre as ondas

negras. [...] Soldados sorridentes em pequenos grupos discutem [...] Com cadeiras

114

Clara Carvalho (2004a, 2004b) faz uma importante análise do corpus fotográfico do Boletim Cultural.

Contabilizou 3170 imagens ou 3351 considerando o número especial dedicado à comemoração do V Centenário

da Descoberta da Guiné. 115

Pequena vila do interior da Guiné, sem divertimentos, sem variações, eternamente entregue ao mesmo ciclo

de compra e venda, de mancarra e panos, de fartura e fome, de batuques e trabalho. Limite entre o Sul

luxuriante e a fronteira leste ameaçando as secas e o deserto, meio termo entre a floresta de dois andares e

lamaçais constantes e as extensões áridas, a lama gretada, as árvores retorcidas e secas pelo Sol e pelas

queimadas, pequena, laboriosa vila, sentinela vigilante num posto avançado, ignorando se para trás ainda se

encontra alguém. Ver: ÁLVARO, Egídio. O calor, o abandono e um olhar meigo. Bissau, BCGP, v.19, n.73,

1964, p.64. 116

O cipaio (sipaio,sipai ou sipal) era uma espécie de polícia e tropa auxiliar que obedecia às ordens de um seu

superior europeu. É um termo que deriva do Persa, sipahi. Crê-se que foi uma categoria militar criada pelos

ingleses na Índia, que podia ter um subchefe não europeu. Na Guiné, auxiliavam a administração colonial, mas,

além disso, era a mão repressora utilizada pelas autoridades.

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e bancos, os fulas tomam lugar. O espetáculo é uma festa, e eles vestem os fatos de

fazer vista. Comerciantes e militares ocupam os lugares. O comerciante é a

aristocracia da terra, o militar, é, quase, o poder e, pelo menos a força. Benévola,

sem dúvida.117

O Centro de Estudos, através de Boletim Cultural, traz informações e

impressões das quais, possivelmente, não se teria conhecimento por outros meios. Os

caminhos traçados por Avelino Teixeira da Mota, apesar de perpassados pelo dever colonial,

oferecem oportunidades sem equivalência. Segundo ele, os resultados produzidos no âmbito

desse projeto estão

sujeitos a futuras rectificações e melhor esclarecimento. Cada trabalho ou estudo é

sempre um novo passo, nunca a obra final [...]. Os trabalhos que cada um faz são

apresentados não só para esclarecer os outros, mas para que estes os completem e

corrijam quando para isso disponham de elementos [...] julgamos desenvolver a

noção da responsabilidade por parte dos autores [...] Somos poucos e, em muitos

ramos de conhecimento possuímos preparação deficiente [...] No que respeita à

técnica de estudo tem sido nossa preocupação declarada o melhorá-la. Procuramos

continuamente arejar os conhecimentos de todos, pondo-os a par dos trabalhos de

outros que se dedicam aos mesmos problemas, em qualquer parte que seja.118

Carlos Valentim conclui:

A dinamização do Centro de Estudos da Guiné, a proliferação de edições de

temática ultramarina, o incentivo ao trabalho prático, de investigação, junto das

populações da Guiné, inscreve-se, assim, num movimento cultural e científico vasto,

englobando o intercâmbio e a troca de experiências com os espaços coloniais

dominados por outras potências europeias (ingleses e franceses) na costa Ocidental

de África.119

1.3 Individualizar é preciso: fiscalizar e administrar

Até meados do século XX, a Guiné era uma colônia desconhecida, mesmo após

séculos de presença europeia. Por essa razão, em resposta às pressões do pós-guerra, o

governo português lançou mão de instrumentos para reverter tal situação. Entre eles

destacam-se os Inquéritos Etnográficos e os Recenseamentos. Dos primeiros, apenas se tem

notícia daquele aplicado em 1946, cujas informações foram, em grande parte, transformadas

em artigos do Boletim Cultural. Uma das prioridades do Centro de Estudos, quando criado,

era que fossem elaboradas etnografias locais pelos funcionários administrativos. As primeiras

117

ÁLVARO, Egídio. O calor, o abandono e um olhar meigo. Bissau, BCGP, v.19, n.73, 1964, p.67-8. 118

MOTA, Avelino Teixeira da. No limiar do 3º ano. BCGP, Bissau, v.3, 1948, n.9, p.4-6. 119

VALENTIM, Carlos Manuel. O Trabalho de uma vida. Bibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-

1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007, p.33.

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monografias publicadas “consistem, aliás, num desenvolvimento das respostas aos diversos

itens que constituíam o inquérito.”120

Antes de 1940, os recenseamentos “não foram rodeados de cautelas, nem

sistematizados em condições de darem a conhecer o valor numérico da população com o

relativo rigor exigível.”121

Tinham a finalidade principal de subsidiar o governo da colônia

com informações para a cobrança de impostos. Assim, ao longo da década de 1950, houve

várias iniciativas nesse sentido, principalmente depois que da transformação do “imposto de

palhota”, cobrado por residência desde 1903, em uma “taxa per capita”. Nesse período,

o agente recenseador (preocupou-se) principal e essencialmente com a massa

suscptível de pagar imposto com o objectivo de não deixar baixar os réditos [...]

pelo facto de não ter havido o cuidado de adoptar um mínimo de precauções, os

dados apurados de 1953 em diante acusam desvios consideráveis ou anomalias

flagrantes.122

Na verdade, procuraram “individualizar”, invadindo a manutenção do sentido

comunitário de viveres concebidos por povos guineenses. Além de contabilizar a população,

era importante mantê-la sob registro. Para António Carreira

o valor educativo do registo civil e dos censos é enorme. Além do mais, concorre, de

certo modo para ir desfazendo da mente do indígena a ideia colectivista enraizada

nele pela educação do grupo. Ele passa assim a ter um pouco de personalidade

própria, e a possuir um elemento útil às suas relações com os civilizados. Esta

ideia, esta maneira de encarar o problema, parece, de certa forma incompatível ou

inconciliável com a existência de uma sociedade assente em base do colectivismo,

tal como a dos negros africanos. Entre estes o individualismo não é, pelo menos na

pura acepção do termo, conhecido. O indivíduo fica preso, da nascença à morte,

aos elementos da respectiva “classe de idades”, ao seu grupo restricto, à

comunidade familiar ou geral. Não lhe é possível repudiar a situação ou modificá-

la, das condições específicas da sua orgânica social e, principalmente, porque dela

usufrui enormes vantagens.123

Este autor conseguiu, em poucas palavras, evidenciar as diferenças, ficando explícito o

choque cultural que, já instituído, agravava-se. Era um embate de forças opostas: de um lado a

necessidade urgente de obtenção de recursos e aumento da receita portuguesa, de outro, a

manutenção de práticas e costumes ancestrais. Como era de se esperar, os mundos guineenses

caminhavam para momentos agudos e difíceis que redundaram no longo período da guerra de

libertação124

e das instabilidades, em moldes eurocentrados, no pós-“independência”.

120

CARVALHO, Clara. O olhar colonial: antropologia e fotografia no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

In:______; CABRAL, João de Pina. (Orgs.) A persistência da História: passado e contemporaneidade em

África. Lisboa: ICS, 2004b, p.124. 121

CARREIRA, António, O Censo Geral da População de 1960. BCGP, Bissau, v.16, 1961, n.61, p.125. 122

Id. População autóctone segundo os recenseamentos para fins fiscais. BCGP, Bissau, v.15, 1960, n.57, p.54-

5. 123

Id. A educação dos indígenas africanos pela administração local. BCGP, Bissau, v.8, 1953, n.29, p.100. 124

Não é escopo de o presente trabalho adentrar sobre o tema da guerra de libertação. Sugere-se o recém-

publicado trabalho do guineense Leopoldo Amado (2012).

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O registro civil da população foi realizado, basicamente, entre aqueles que tinham

a intenção de tornarem-se assimilados. Mais do que classificados e individualizados, aqueles

tiveram seus nomes modificados através de um aportuguesamento forçado. Alguns Josés e

Marias devem ter “nascido” nessa ocasião, porém grande parte dos povos guineenses

encontrou meios de resistir.

Por estas razões e por ter sido executado em período próximo ao Inquérito

Etnográfico de 1946, os dados obtidos no Censo de 1950 guardam relação com os artigos

iniciais do Boletim Cultural, valendo a pena serem vistos mais de perto.

1.3.1 O Recenseamento de 1950: a Guiné em números

A divisão administrativa implantada na Guiné guardou as mesmas características

da metrópole, ou seja, o território foi dividido em concelhos125

e circunscrições. Essa

“divisão” não levou em consideração que as populações autóctones não possuíam “massas

nem espaço para elas"126

, ou seja, não havia a compreensão sobre tais apropriações divisórias,

tal como presente no mundo moderno.

Divisão administrativa da Guiné Portuguesa:

3 concelhos: Bissau, Bafatá e Bolama;

8 circunscrições: Cacheu, São Domingos, Farim, Mansoa, Gabu, Fulacunda, Bubaque e Catió

BCGP n.24, 1951, p.931.

125

Concelho, em Portugal, é uma circunscrição administrativa resultante da subdivisão de um distrito. 126

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

2001, v.1, p.31.

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A lógica colonial portuguesa da época precisava “tornar compreensível o

desconhecido, de modo a criar um controle efetivo sobre as comunidades.”127

Esse tipo de

organização buscava certo controle e construía uma malha de comunicação entre os vários

pontos do território.

O recenseamento de 1950128

, organizado por António Carreira, traduziu em

números o que Pélissier chamou de “funil de poeiras étnicas”, ou seja, a existência de mundos

plurais que conviviam, de forma diferenciada, num pequeno espaço territorial. Os números

revelados, embora não muito precisos, oferecem uma dimensão que passou ao largo das

muitas histórias escritas até hoje. Além disso, apresentam, possivelmente, o primeiro “retrato”

de uma colônia praticamente abandonada por séculos. O mérito

desta apresentação de números reside no facto de ser a primeira vez que a Guiné dá

à publicidade um trabalho do género embora, ainda, limitado na extensão. E se

outra valia não tiver, servirá para que, de futuro, os organismos internacionais não

a incluam na lista de “países, cujas estimativas e recenseamentos da população, o

referido anuário (o da Sociedade das Nações de 1939-1940) marca como incertos e

por vezes hipotéticos”. 129

Os dados obtidos em 1950, bem como respectivos comentários feitos por Carreira,

foram publicados no Boletim Cultural em vários números. Por razões não muito claras, os

primeiros informes foram divulgados entre 1951 e 1953 e os demais apenas entre 1959 e

1962, quando já se misturam a outros de anos posteriores a 1950. Para António Carreira

(1959) o descaso com os resultados era incompreensível, uma vez que, não obstante as

possíveis imprecisões, deveriam embasar as ações do governo. Considerava

indispensável fazer inquéritos sobre os movimentos migratórios da principal

riqueza da [...] Guiné (o seu nativo); do êxodo das populações rurais sobre as

concentrações urbanas de tipo civilizado; da falta de trabalho ou de ocupação ou

actividades dos destribalizados; das condições de vida dos aglomerados

populacionais das zonas suburbanas; da prostituição; da influência do islamismo

sobre as populações animistas; sobre as dietas e orçamentos domésticos das

populações rurais e suas condições de habitação; sobre as possíveis influências das

tributações na vida económica e social, etc., etc.130

Ao que parece estes problemas perduraram na Guiné, porém a política

assimilacionista do Estado Novo em Portugal, certamente somou “outros” aos já existentes.

127

FRANCO, Paulo Fernando Campbell. Amílcar Cabral: a palavra falada e a palavra vivida. 2009. 178f.

Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo, São Paulo. 2009, p.17. 128

CARREIRA, António. População autóctone segundo os recenseamentos para fins fiscais. BCGP, Bissau

1960, n.58 (divisões administrativas de Bafatá, Bissau e Farim); 1961, n.61 (Fulacunda); 1961, n.62 (Mansoa);

1965, n.65 (Bolama, Bijagós e Cacheu); 1952, n.66 (Catió e Gabu); 1962, n.67 (São Domingos). 129

Id. Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não-civilizada de 1950 da Guiné

Portuguesa. BCGP, Bissau, v.6, 1951, n.21, p.162. 130

Id. A população civilizada da Guiné Portuguesa em 1950. BCGP, Bissau, v.14, 1959, n.56, p.548-549.

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Os novos “cidadãos”, agora “destribalizados”, estavam, em grande maioria, alijados de suas

referências de vida e sem inserção no mundo colonial.

Quantificar e conhecer a população era importante para avaliar possíveis

contingentes com os quais o governo poderia contar nas futuras necessidades militares. Muito

mais importante do que isso, foi buscar a melhoria da arrecadação fiscal. Por essa razão

atingiu num mesmo período, todo o território até os mais insignificantes povoados.

[...] Pretendeu-se - e em parte isso foi conseguido - imprimir à notação uma ordem

condizente com a divisão regional dos territórios de forma a facilitar os

apuramentos, na sua especialidade, para os fenómenos locais.131

A população da Guiné, em 1950, contava com 508.970 negros “não civilizados”.

Destes, os grupos mais numerosos eram os Balanta, Fula, Manjaco, Mandinga e Papel,

conforme detalhado na tabela a seguir

População “não civilizada” - 1950132

* Balanta e Balanta-Mané **Fula do Boé (Boenca), Fula do Futa ou Futa-Fula, Fula do Toro (Toranca)

e Fula-forro e Fula preto

Desse total, 500.676 eram negros e 8.291 “mistos”, assim considerados os

de ligações matrimoniais regulares ou ilegítimas de brancos ou mistos de África

com negros puros ou já mestiçados entre si; ou do cruzamento dos homens europeus

ou asiáticos (de cor branca) ou mistos de coloração menos acentuada, em ligações

ilegítimas ou simplesmente transitórias com mulheres nativas (de cor negra ou

mista), estes em muito pequena percentagem. Como aos produtos destas últimas

ligações falta quase regra geral, o reconhecimento e adopção por parte do pai,

131

CARREIRA, António. Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não-

civilizada de 1950 da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.6, 1951, n.21, p.131. 132

Ibid., p.143. (com adaptações). Consta a existência de “estrangeiros não civilizados”, oriundos,

majoritariamente, das colônias francesas fronteiriças. Segundo Carreira (1951), havia egressos da Costa do Ouro,

Gâmbia, Guiné Francesa, Marrocos Espanhol, Mauritânia, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Sudão Francês.

grupo total grupo total

1 Balanta* 152.243 14 Sosso 1.685

2 Fula** 108.402 15 Pajadinca 1.101

3 Manjaco 71.712 16 Jacanca 885

4 Mandinga 63.750 17 Cassanga 420

5 Papel 36.341 18 Banhum 267

6 Brame ou Mancanha 16.300 19 Jalofo 213

7 Beafada 11.581 20 Taná 185

8 Bijagó 10.332 21 Bambará 170

9 Felupe 8.167 22 Suruá 157

10 Cunante ou Mansoanca 6.050 23 Landumá 116

11 Baiote 4.373 24 Baga 97

12 Nalú 3.009 25 Téméné 8

13 Saracolé 2.049 26 outros 841

sub-total 502.457

ausentes 6.513

total geral 508.970

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conservam o status jurídico e social da mãe e por isso entram no censo dos não

civilizados133

Note-se que os “mistos” eram pensados como “produtos”resultantes de ligações “ilegítimas e

transitórias”. Em grande maioria, não eram reconhecidos como filhos, deslindando um

comportamento racista próprio do homem português branco da época. A mulher da Guiné,

negra e “não civilizada”, com seus filhos “mistos”, foi, assim, usada de acordo com as

necessidades do colonizador.

Dentre a população autóctone, 1807 foram classificados como “civilizados”,

número que, ao que tudo indica, refere-se àqueles que alçaram o “direito à cidadania” e

portavam respectivos diplomas. Não obstante possíveis divergências, fica claro que, mesmo

sob fortes e contínuas pressões, os povos da Guiné não renunciaram a seus modos de vida e

práticas ancestrais.

Comparando os dados apurados em 1950 e 1991, conforme o gráfico adiante,

observa-se o expressivo crescimento numérico dos grupos islamizados, especialmente dos

Fula. Esse aumento alterou, nesse período, a composição sócio-religiosa da antiga colônia.

Em 1950, 63,5% da população “não civilizada” era adepta de religiões de matrizes africanas,

chamadas, eurocentricamente, de animistas134

, 35,6% era muçulmana e menos de 1% era

católica ou pertencente a outras religiões cristãs. Atualmente, na República da Guiné-Bissau,

cerca de 45% das pessoas são muçulmanas, os cristãos representam 5 a 8% e o resto da

população, 47 a 50%, são adeptos das religiões tradicionais135

.

Gráfico comparativo: Recenseamentos de

1950 e 1991 (Introdução a geografia

económica da Guiné-Bissau, 1991)

133

CARREIRA, António. Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não-

civilizada de 1950 da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.6, 1951, n.21, p.141. 134

Animismo é a crença ou sistema de pensamento que atribui alma própria a seres vivos, objetos inanimados e

fenômenos da natureza. Tal conceito foi desenvolvido ao final do século XIX pelo antropólogo Edward B.Tylor.

Ele considerava esse tipo de crença (a totalidade da natureza como essencialmente viva através de espíritos e

divindades que habitam árvores, rios, montanhas, ferramentas, armas, etc.) o estágio mais antigo da “evolução”

religiosa. Entre outros princípios, o animismo prevê a continuidade da vida dos ancestrais após sua morte, a

interação direta com tais espíritos através da mediação de pessoas preparadas para esse fim e, principalmente, a

existência da força vital que permeia todo o universo. Assim, justifica-se a padronização utilizada por António

Carreira, porém há que se ter em conta que o termo deve ser empregado com certa reserva, pois os grupos sociais

da Guiné, retratados pelo Boletim Cultural, são bem mais complexos e ricos do que o termo permite apreender. 135

Cf. http://ec.europa.eu/delegations/delgnb/guia/6.htm. Acesso em: 15 ago. 2011.

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A população “civilizada” de 1950 somava 8320 pessoas. Desse total, 95,6% eram

portugueses, aí incluídos os assimilados e os nascidos em colônias não abrangidas pelo

indigenato. O restante, 4,4%, eram estrangeiros vindos, principalmente do Líbano. Houve,

nos anos seguintes, uma mudança significativa em relação à nacionalidade dos estrangeiros

estabelecidos na Guiné. Segundo António Carreira, em 1959 restavam poucos alemães,

franceses, ingleses e suíços. Por outro lado, ele previa um aumento da população norte-

americana, “ainda que temporàriamente, dada a circunstância de (existirem) empresas de

prospecção de petróleos.”136

Do total da população autóctone, 309.065 foram contabilizados e classificados

segundo suas atividades, porém é preciso destacar que os elementos considerados seguiam a

ótica europeia e os resultados, provavelmente, apresentam equívocos por conta de

interpretações eurocêntricas. Os números obtidos, conforme a tabela abaixo, certamente,

contêm inconsistências, porém traçam um perfil dos ofícios e afazeres a que se dedicavam os

povos da Guiné em meados do século XX:

Atividades praticadas pela população “não-civilizada”, por gênero - Censo de 1950137

Profissões total homens mulheres

309.065 147.672 161.423

Manuais ou mecânicas da agricultura:

Pecuária e Pesca:

1-Agricultores isolados 133.913 133.913 -

2-Caçadores 21 21 -

3- Hortelões 16 16 -

4- Jardineiros 6 6 -

5- Lenhadores/preparadores de carvão 7 7 -

6-Pastores/guardadores de gado 218 210 8

7-Pescadores 303 303 -

8-Trabalhadores agrícolas não discriminados 3.122 3.122 -

Manuais ou mecânicas de caráter industrial:

Próprias dos trabalhos em metais:

9-Aprendizes de ferreiro 12 12 -

10-Aprendizes de ourives 7 7 -

11-Aprendizes de serralheiro 11 11 -

12-Caldeireiros 3 3 -

13-Ferreiros 668 668 -

14-Ourives 26 26 -

15-Serralheiros 19 19 -

Trabalho em minerais não metálicos:

16-Oleiros 39 4 35

136

CARREIRA, António. A população civilizada da Guiné Portuguesa em 1950. BCGP, Bissau, v.14, 1959,

n.56, p.551. Este dado é significativo, considerando que, atualmente, há indícios de que a Guiné-Bissau possua

reservas de bauxita, fosfato e petróleo, em alto mar, ainda não exploradas. 137

Ibid., p.748-751.

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67

Trabalho em madeira:

17-Aprendizes de carpinteiro 149 149 -

18-Carpinteiros 777 777 -

19-Manufatores de canoas gentílicas 19 19 -

20-Serradores de madeira 77 77 -

Próprias das indústrias têxteis:

21-Tecelões 305 305 -

Próprias do fabrico de produtos alimentícios:

22-Magarefes 15 15 -

23-Manipuladores de pão 24 24 -

Próprias do fabrico de roupas e calçados:

24-Alfaiates 568 568 -

25-Aprendizes de Alfaiate 41 41 -

26-Costureiras 106 - 106

27-Sapateiros 315 315 -

Próprias das Indústrias Gráficas

28-Compositores tipográficos 10 10 -

Trabalho de Construção e das Obras Públicas:

29-Aprendizes de pedreiro 94 94 -

30-Pedreiros 542 542 -

31-Pintores 26 26 -

Transportes e Comunicações:

32-Ajudantes de motorista 207 207 -

33-Estivadores marítimos 116 116 -

34-Guarda-fios 28 28 -

35-Marinheiros mercantes 270 270 -

36-Marítimos não discriminados 76 76 -

37-Mecânicos 12 12 -

38-Motoristas ou condutores de automóveis 226 226 -

Outras profissões de caráter industrial:

39-Cesteiros 13 8 5

40-Eletricistas 4 4 -

41-Fogueiros 15 15 -

42-Maquinistas 9 9 -

43-Tintureiros 449 219 230

Comerciantes, Vendedores, Agentes comerciais:

44-Caixeiros de balcão 507 507 -

45-Marçanos 20 20 -

46-Vendedores e compradores ambulantes 328 328 -

Empregados de Escritório, Secretaria/Tesouraria:

47-Empregados de repartições 11 11 -

Profissões de caráter intelectual:

48-Professores não discriminados 22 22 -

49-Sacerdotes muçulmanos 14 14 -

Profissões de caráter subalterno:

50-Capatazes 16 16 -

51-Encarregados de diversos serviços 6 6 -

52-Mestres de embarcações de cabotagem 14 14 -

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68

Das Forças Armadas ou Guarda e Fiscalização:

53-Cantoneiros 19 19 -

54-Cabos e marinheiros da armada 36 36 -

55-Cabos e soldados do exército 346 346 -

56-Cipaios 179 179 -

57-Guardas de estabelecimentos e serviços 15 15 -

58-Guardas de locais públicos 19 19 -

59-Guardas fiscais 6 6 -

60-Guardas florestais 51 51 -

61-Guardas noturnos 216 216 -

62-Guardas de polícia de segurança pública 107 107 -

Profissões não especializadas(auxiliares):

63-Ajudantes de tecelão 44 44 -

64-Carregadores e descarregadores 726 726 -

65-Contínuos e serventes de repartição/escritório 330 330 -

66-Cozinheiros 411 388 23

67-Criados 1.017 854 163

68-Lavadores e engomadores de roupa 658 18 640

69-Moços de recados 38 38 -

70-Pessoal de limpeza urbana 19 19 -

Outras profissões:

71-Enfermeiros 12 12 -

72-Outras profissões 41 32 9

Profissões mal definidas 187 145 42

Profissões ignoradas 1.075 603 472

Condições não Profissionais:

73-Chefes gentílicos 31 31 -

74-Domésticas 5.827 - 5.827

75-Domésticas rurais 153.863 - 153.863

Dos números apresentados nota-se que grande parte da população autóctone

desenvolvia atividades agrícolas ou pastoris. Um número expressivo de homens,

provavelmente pertencentes a grupos estabelecidos próximos aos centros urbanos de Bissau e

Cacheu, executavam atividades voltadas ao mar ou à navegação. Curiosamente, havia um

contingente nas forças armadas (marinha e exército), além de outro que compunha milícias

(cipaios). Havia apenas 22 professores, porém quase 7.000 criados e domésticas. Muitos

homens trabalhavam no comércio e na construção de obras públicas. O número expressivo de

“profissões indeterminadas” leva a crer que recenseados e recenseadores não conseguiram

chegar a um denominador comum. Talvez o desconhecimento de várias línguas locais possa

ter contribuído para tais inconsistências.

Encontram-se representadas, também, as atividades de caráter sagrado ou oculto,

isto é, aquelas cujo produto final resultava da transformação da natureza. Aí estão incluídas as

atividades dos carpinteiros (777), ferreiros (668), tecelões (305), ourives (26), serralheiros

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(19), todas executadas exclusivamente por homens. A única exceção ocorre no caso da olaria

que é uma atividade das mulheres, notadamente entre os Manjaco, especialistas nesta arte.

Torna-se muito importante ter em conta que o trabalho dos artesãos tradicionais

tem um sentido diverso daquele entendido e pelo viés econômico eurocêntrico. Para além da

produção de um bem, esse trabalho, segundo Hampâté Bâ (1982),exerce uma função sagrada

na medida em que emprega as “forças fundamentais da vida” e se aplica a todo o ser do

próprio artesão.138

O mapa a seguir, elaborado por René Pélissier139

, oferece uma ideia aproximada

da ocupação do espaço guineense no início da década de 1950 e revela, entre outras

informações, uma interpenetração entre os diferentes grupos de modo singular:

Esse emaranhado de povos, com suas diversas línguas, cores, profissões, religiões,

aproximações e resistências, foram investigados pelos funcionários do Centro Cultural

quando da aplicação do Inquérito Etnográfico de 1946. Além dos números, era preciso

conhecer, também, os costumes.

1.3.2 O Inquérito Etnográfico de 1946

Sarmento Rodrigues levou para a Guiné os instrumentos da política colonial

“científica” articulada pelo governo do Estado Novo. Sendo grande aliado de Salazar, causa

estranheza que este o tenha nomeado para uma colônia sem grandes atrativos e considerada

138

Esse assunto tornará a ser abordado no capítulo 3. 139

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

2001, v. 1, p.27.

Ocupação do espaço pelos povos da Guiné,

1950 (mapa simplificado)

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problemática. De qualquer forma, a par das diretrizes políticas, Sarmento Rodrigues apoiou o

desenvolvimento de uma investigação sem similar no império ultramarino português, a partir

da criação do Centro de Estudos e de seu veículo informativo, o Boletim Cultural da Guiné

Portuguesa.

Os primeiros artigos publicados foram, em grande parte, fruto do Inquérito

Etnográfico de 1946 organizado por Avelino Teixeira da Mota. Como grande entusiasta da

etnografia, ele acompanhou tudo o que foi “escrito e publicado nesta área do conhecimento,

tornando-se autor de sucessivas recensões (de obras que são editadas no estrangeiro e em

Portugal) que vão aparecer nos primeiros números do Boletim Cultural da Guiné

Portuguesa”.140

A “institucionalização da pesquisa etnográfica (na Guiné fez-se) no contexto da

instauração de uma nova política colonial, e (correspondeu) à instalação efectiva da

organização administrativa e militar na colônia, bem como ao desenvolvimento de estruturas

produtivas.” 141

Assim, o Inquérito Etnográfico surgiu para concretizar e dar suporte a muitas

das ações políticas pensadas numa vertente dita “científica”.

Este não foi o primeiro inquérito etnográfico aplicado na Guiné. Em 1918, 1927 e

1934 foram realizados outros com a finalidade de ser elaborado um código de justiça

“indígena”. Pouco ou quase nada se sabe acerca desses trabalhos, sendo o inquérito de 1946 o

único a ter divulgação e “muitos dos seus dados continuam a constituir uma fonte da

etnografia local.” 142

Os primeiros trabalhos publicados no Boletim Cultural foram resultado

do desenvolvimento das respostas a esse inquérito, daí a importância de conhecer como ele foi

elaborado e colocado em prática.

Ao invés do modelo de perguntas e respostas, tal como os inquéritos eram feitos

na época, “preferiu-se a enumeração dos tópicos, a citação abundante dos casos que se

podem dar, a fim de facilitar a escolha e determinação dos verdadeiramente existentes.” 143

Como o conhecimento das línguas locais foi considerado fundamental para que informações

fossem precisas e confiáveis - nem todos os intérpretes tinham disposição para colaborar com

os arguidores - o estudo da gramática foi incluído no inquérito. Utilizando 1200 palavras

básicas tentaram “garantir a uniformidade da escrita mediante a adopção de regras fixas,

140

VALENTIM, Carlos Manuel. O Trabalho de uma vida. Bibliografia de Avelino Teixeira da Mota (1920-

1982). Lisboa: Edições Culturais da Marinha, 2007, p.155. 141

CARVALHO, Clara. O saber e o olhar colonial: política e iconografia no Centro de Estudos da Guiné

Portuguesa. Soronda. Bissau, 2004a, n.8 - Nova Série, p.57. 142

Ibid., p.60. 143

MOTA, Avelino Teixeira da. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946c, n.2, p.380.

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tudo tendente a assegurar a maior utilidade dos resultados colhidos e empregá-los em futuros

desenvolvimentos.” 144

Além do estudo dos falares locais, foi dada grande importância à “literatura

indígena”. Isto também ocorreu entre outros países colonizadores, especialmente na vizinha

África Ocidental Francesa, onde os inquéritos pretenderam registrar “de forma duradoura os

produtos da observação e imaginação indígena.”145

No entanto, a maior dificuldade de

realizar um inquérito sobre a literatura oral da Guiné, naquela época, foi a barreira linguística.

Por essa razão, existem poucos trabalhos sobre o tema publicados pelo Boletim Cultural.

O filólogo português Edmundo Correia Lopes foi contratado pelo Centro de

Estudos, em fevereiro de 1948, para iniciar estudos sobre a língua bijagó. Porém, em junho

do mesmo ano, faleceu em Bubaque e seu trabalho ficou praticamente perdido. Restaram

“notas, apontamentos e relatórios que dificilmente serão interpretados, atendendo a que

muitos dos escritos que deixou, focam os intrincados problemas da linguística”146

. Num de

seus relatórios ele destaca:

Na Guiné há problemas linguísticos que excedem em quantidade e dificuldade os de

todas as outras Colónias juntas e a fertilidade é grande também em problemas

etnográficos; e isto, com vantagem da concentração em um pequeno território sob

uma administração única. Seria simplicidade afirmar que estes problemas são

apenas de curiosidade científica. Isso seria negar a influência dos factores étnicos,

tão poderosamente diferenciados nesta Colónia.147

Depois que Teixeira da Mota estruturou a abrangência do inquérito e o modelo do

questionário, enviou uma cópia para apreciação do professor António de Almeida148

, da

Escola Superior Colonial. Após alguns ajustes, o modelo foi distribuído entre os secretários e

chefes de postos que o aplicaram nas várias regiões administrativas. O questionário possuía a

seguinte estrutura:

Parte I - Caracteres linguísticos

Cap.1 - Comunicação de ideias a curta distância

a) Gestos

b) Palavras

- classificação, afinidades e evolução

- gramática

- vocabulário

144

MOTA, Avelino Teixeira da. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946c, n.2, p.380. 145

Id. Etnografia. BCGP, Bissau, v.1, 1946b, n.3, p.623. 146

À MEMÓRIA de Edmundo Correia Lopes. BCGP, Bissau, v.3, 1948, n.12, p. 1.037. 147

Ibid., p. 1048. 148

António de Almeida (1900-1994) era membro da “Escola do Porto” organizada por Mendes Correia. Era

médico e, em 1954, efetuou pesquisas junto aos angolares de São Tomé. Para o Boletim Cultural da Guiné

Portuguesa escreveu apenas 1 artigo; suas maiores contribuições foram publicadas no Boletim Geral das

Colônias, órgão de informação metropolitano. Foi professor de Etnologia e Etnografia Coloniais na Escola

Superior Colonial

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Cap.2 - Meios de comunicação a distâncias relativamente grandes

a) Sinais Ópticos

b) Sinais Sonoros

Cap.3 - Meios de comunicar a qualquer distância, no espaço e no tempo

Parte II - Caracteres Sociológicos

Cap.1 - Vida Material

a) Alimentação

- alimentos

- preparação dos alimentos; cerâmica; moagem; conservação

- excitantes

b) Habitação

c) Higiene

d) Vestuário e adornos

- enfeites com modificação no próprio corpo

- enfeites com objetos ligados ao corpo

- fabricação de tecidos e confecção do vestuários

e) Meios de Existência

- instrumentos, ferramentas e armas

- caça, pesca, agricultura, animais domésticos

Cap.2 - Vida psíquica

a) Jogos e entreténs

b) Manifestações artísticas

- artes plásticas

- dança, música, canto, literatura e poesia

c) Religião

- tipos de religião; religião e moral

- ritos, cerimônias, sacrifícios

- sacerdócio

- influência das religiões internacionais

d) Mitos

e) Ciências

- conhecimento dos números

- geometria, cômputo do tempo, calendário, relógios,

astronomia, meteorologia, geografia, cartografia

- medicina, cirurgia

- história e cronologia

Cap.3 - Vida familiar

a) Relações sexuais e posição social da mulher

b) Casamento e família

- formas de casamento; divórcio

- filhos

- parentesco, domicílio, ausência, incapacidade, sorte dos

anciãos, morte, ritos funerários, testamento, heranças,

- sucessão

Cap. 4 - Vida social

a) Vida interna

- organização econômica e social

b) Vida Internacional

- relações simpatizantes, hostis e neutra

- transportes e vias de comunicação

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Teixeira da Mota elencou tópicos importantes na preparação do questionário, além

de seu universo cultural. A abrangência da investigação, bem como a metodologia proposta,

demonstra, diferentemente de outros estudos coloniais, um interesse para além do aumento da

arrecadação fiscal e dos aspectos somáticos. Apesar de seu olhar eurocentrado, Mota foi

capaz de destacar que na Guiné, entre outras diferenças, havia uma gestualidade

particularmente significativa, corpos “contavam” sobre a vida de pessoas, os meios de

comunicação utilizados fugiam ao padrão do mundo “evoluído”, existia uma organização

social e familiar fora dos padrões europeus. Tudo isso precisava ser conhecido, razão pela

qual procurou mobilizar os investigadores locais para “traduzir” estas e outras diferenças para

suas formas de compreensão escritas.

O inquérito foi encarado como uma “contribuição do pessoal administrativo para

as comemorações culturais do Centenário [...] (e representava) uma base para futuros

desenvolvimentos do estudo da Etnografia da Colónia.”149

Isto não quer dizer que todos

corresponderam integralmente ao que era esperado, ou seja, muitos dos chefes de posto e

funcionários não enviaram suas repostas ou, quando o fizeram, apenas preencheram os

quesitos mais evidentes, sem grandes apreciações. Isto pode ser expressão de um

funcionalismo desmotivado e mal remunerado. Por outro lado, pode denotar as dificuldades

havidas com as populações locais, quer pela diferença das línguas, quer pela resistência dos

povos em revelar seus modos de vida.

A qualidade dos relatórios finais não foi homogênea em razão do “diferente grau

de conhecimentos gerais, conhecimentos locais, tempo de permanência na região e tempo

disponível, entre todos os funcionários.”150

Aqueles melhor elaborados foram publicados ao

longo das primeiras edições do Boletim Cultural, os mais simples e lacônicos na Seção Notas

e Informações. Algumas respostas ao inquérito transformaram-se em monografias, as quais

deram início à série “Memórias”151

, também organizada e publicada pelo Centro de Estudos,

conforme detalhado no quadro a seguir:

149

MOTA, Avelino Teixeira da. Inquérito Etnográfico: organizado pelo governo da colónia no ano de 1946.

Lisboa: Soc. Industrial de Tipografia Ltda., 1947, p.22. 150

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.22, 1967, n.85-86, p.7. 151

Dentre essas publicações, merece destaque o trabalho de António Carreira que, na ocasião do inquérito, era

administrador na região de Cacheu, além de também ter exercido funções subalternas na região durante os

períodos de 1931/2, 1935/36, 1940/41. Carreira também deixou várias colaborações junto à imprensa colonial,

bem como junto a diversas revistas: Revista do Centro de Estudos de Cabo Verde - Série de Ciências Humanas,

Raízes, Ponto & Vírgula,, Revista Geográfica, Revista Ultramar, Revista do Centro de Estudo Demográfico do

Instituto Nacional de Estatística, Revista de História Económica e Social, Cadernos de Antropologia, etc.

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Série "Memórias" do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP)

*a partir do Inquérito Etnográfico de 1946

O Boletim Cultural publicou as respostas ao Inquérito até 1950, porém tudo

indica que muitas informações ainda estejam por revelar, principalmente pelo fato de Teixeira

da Mota, o organizador por trás desse trabalho, ter deixado suas funções administrativas para

juntar-se à Missão Geo-Hidrográfica da Guiné, em 1947. Esta impressão se confirma através

da introdução aOs Povos da Guiné. Nela, Fernando Rogado Quintino (1967, p.8) informou

que “grande parte (das respostas) - mesmo a maior parte - ficou por receber a luz da

publicidade. Donde resultou manterem-se ainda desconhecidos do público importantíssimos

elementos reunidos no inquérito.”

Por volta de 1961, Fernando Quintino, que na época da aplicação do inquérito era

chefe da circunscrição de Mansoa, recebeu de Teixeira da Mota uma cópia das respostas que

ainda estavam em seu poder152

. Esse material que serviu de fonte para Os Povos da Guiné

teve seus dois primeiros capítulos (Ambiente Físico e Biológico e Estrutura Social)

publicados no Boletim Cultural153

, juntamente com o mapa das regiões abrangidas pelo

inquérito:

152

Segundo Quintino (1967, p.8) “foram quatro as vias entregues por cada investigador. Uma é aquela que nos

veio parar às mãos. As outras três ficaram arquivadas, uma na Repartição de Gabinete, outra na Repartição

Central dos Serviços de Administração Civil e a terceira no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.” 153

Os demais capítulos estruturados por Quintino não foram publicados no Boletim Cultural. Também não há

notícias acerca de sua publicação por outros veículos.

Série “Memórias” nº /autor título ano

1-António Carreira Vida social dos Manjacos* 1947

2-Augusto J. Santos Lima Organização económica e social dos Bijagós* 1947

3-António Carreira e J. Basso Marques Subsídios para o estudo da língua manjaca 1947

4-António Carreira Mandingas da Guiné Portuguesa* 1947

5-Jaime Walter Honório Pereira Barreto 1947

6-José Mendes Moreira Fulas do Gabu* 1948

7-Vários A habitação indígena 1948

8-J. Velez Caroço Monjur-o Gabu e sua história 1948

9-Fernando S. Cruz Ferreira As tripanosomíases nos territórios africanos

portugueses 1948

10-João Tendeiro Tripanosomíases animais da Guiné Portuguesa 1949

11-Théodore Monod, A.Teixeira da Mota

e Raymond Mauny

Description de la Côte Occidentale d’Afrique por

Valentim Fernandes (1506-1510) 1951

12-António Carreira Mutilações corporais e pinturas cutâneas rituais dos

negros (questionário de inquérito) 1950

13-João Tendeiro Estudos sobre o tipo murino na Guiné Portuguesa 1950

14-Avelino Teixeira da Mota

Topónimos de origem portuguesa na Costa Ocidental

de África, desde o Cabo Bojador ao Cabo de Santa

Catarina

1950

15-João Tendeiro Actualidade veterinária da Guiné Portuguesa s.d.

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Regiões (assinaladas manualmente

em letra de forma) onde foi aplicado o Inquérito

Etnográfico de 1946,

BCGP n.85-86, 1967, p..8

Faz-se jus aos funcionários-investigadores que aplicaram o Inquérito de 1946 e cujas

respostas transformaram-se em artigos do Boletim Cultural e/ou serviram de fonte para os

Povos da Guiné de Fernando Quintino:

CIRCUNSCRIÇÃO

Posto grupo funcionário

1 - S. DOMINGOS (sede) Baiote

Banhum

Caetano Pessoa P. de Borja

Alberto F. Pereira da Silva

Suzana Felupe

Baiote

António da Cunha Taborda

*

Sedengal Cassanga Amadeu Nogueira e

Antero da Costa Taveira

FARIM (Sede) Mandinga Antero de C. M. Duarte

Augusto do S. Monteiro

Bigene Mandinga Manuel Lopes dos Santos

Mansabá Mandinga *

2 - CANCHUNGO (sede) Manjaco António B. Carreira

Cacheu Papel

Manjaco

*

João Bernardo Viana

Calequisse Felupe

Manjaco

*

Joaquim Estevam dos Reis

Caió Manjaco *

Pecixe Manjaco *

Bula Brame ou Mancanha *

3 - MANSOA (sede) Balanta Fernando Rogado Quintino e

James Pinto Bull

Binar Balanta *

Bissorã Balanta Eugênio da Silva Levy

Nhacra Balanta *

Enchalé Balanta *

4 - BAFATÁ (sede) Fula (fôrros e pretos)

Mandinga

Luís Amilcar Pires

*

Contubo Fula (fôrros e pretos) António Campos Gramaxo

Bambadinca Fula (fôrros e pretos) Augusto de Barros

Chitole Fula (fôrros e pretos) *

5 - GABÚ (sede) Padjadinca

Fula (fôrros e pretos)

Luís Correia Garcia

José Mendes Moreira

Sonaco Fula (fôrros e pretos) *

Piche Mandinga (Padjadinca)

Futa-fula

José Queiroz de A. Pinto

*

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Inquérito Etnográfico de 1946 - distribuição dos grupos e funcionários, p/região administrativa * não respondido ou não divulgado

A importância do inquérito constituiu-se, principalmente, pelo fato de reunir uma

documentação valiosa sobre as últimas décadas da colônia da Guiné. Através dele

abriram-se muitas linhas de investigação e colocaram-se muitos problemas que

ainda não havia sido postos. De um momento para o outro os horizontes da

investigação alargaram-se extraordinariamente. Neste aspecto pode dizer-se com

propriedade que o inquérito marca uma data no estudo os povos da Guiné

Portuguesa e vem abrir um novo e fecundo período na investigação etnográfica.154

Este trabalho coletivo, embora montado nas bases do cientificismo colonial, contribuinte da

“desmontagem” de modos de vida tradicionais, oferece pistas e abre frestas para viveres e

imaginários de povos da Guiné.

154

MOTA, Avelino Teixeira da. Inquérito Etnográfico: organizado pelo governo da colónia no ano de 1946.

Lisboa: Soc. Industrial de Tipografia Ltda., 1947, p.15-6.

Pirada Fula (fôrros e pretos) Francisco Grandão

6 - BOLAMA (sede) Brame ou Mancanha Francisco Artur Mendes e

Jorge Varela T. de Sousa

7 - FULACUNDA (sede) Beafada Camilo J. Soares Montenegro e

Octávio Gomes Barbosa

Enchudé Balanta *

S. João Brame ou Mancanha Virgínio Agostinho Júnior

Buba Fula (fôrros e pretos) António Tiago P. da Rocha

Empada Beafada *

8 - CATIÓ (sede) Balanta – Nalú *

Bedanda Sôsso

Nalú

*

Joaquim Garcia de Carvalho

Cacine Nalú António B. Morais Trigo

9 - BUBAQUE (sede) Bijagó Augusto de J. Santos Lima e

Veríssimo Fernandes

Uno Bijagó Adolfo Gomes Ramos

Caravela Bijagó Carlos Alberto da Silva

Formosa Bijagó João Faria Leitão

Canhabaque Bijagó Domingos António G. Alves

Ilha das Galinhas Bijagó Paulo José P. Guimarães

Ilha Roxa Bijagó Carlos Alberto da Silva

Caraxe e Unhocomo Bijagó Domingos A. Gomes Alves

10 - BISSAU (sede) Papel *

Safim Papel João Eleutério Conduto

Biombo Papel *

Prábis Papel Adriano Rodrigues Pires

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CAPÍTULO 2

DESCOBRINDO A GUINÉ-BISSAU

A Guiné Portuguesa pode considerar-se um dos pontos de convergência,

segundo uns, de irradiação segundo outros, do mundo animal e vegetal da

África. Homens, plantas e bichos, raças, religiões e costumes, tudo ali se

apresenta como um mostruário maravilhoso do continente africano.

Um pouco de tudo, desde o árabe, o berbere, o sudanês – do lado setentrional –

ao banto feiticista das partes equatoriais e do Sul: os pássaros e as plantas,

vindos dos extremos dessa África portentosa, marcam na nossa

Guiné as suas fronteiras expansionistas ou o seu berço donde dispersam.1

Sarmento Rodrigues, governador da Guiné, 1948

2.1 Os tempos coloniais

A região onde está localizada a atual Guiné-Bissau foi uma das primeiras

“conquistas portuguesas” e, segundo A. Silva (1997), a mais antiga colônia estabelecida pelas

potências modernas em qualquer continente. Como possessão colonial, e por isso, designada

Guiné Portuguesa, estava inscrita no império colonial português do século XX a partir de um

conjunto de atos oficiais2, que classificava como “indígenas os indivíduos de raça negra ou

dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes se não distingam do comum daquela

raça” 3.

Por volta do século XV, diferentes povos estavam ali estabelecidos em locais

definidos e havia algumas animosidades entre eles. Basicamente decorriam de ofensas ou

desrespeito às tradições entre um grupo e outro por rivalidades surgidas ao longo do tempo. É

importante destacar que desde o século VII a região da Senegâmbia vinha passando por

pequenas e constantes mudanças. Estas ocorreram por conta da difusão do Islã, consequência

da expansão árabe que alcançou todo o norte africano.

1 RODRIGUES, Manuel Maria Sarmento. Os maometanos no futuro da Guiné. BCGP, Bissau, v.3, 1948, n.9,

p.221-2. 2 No conjunto do Império Colonial Português a Guiné era uma colônia - artigos 1º e 2º da Constituição

Política da República, 3º do Acto Colonial e 1º da Carta Orgânica do Império - de indigenato - artigo 246º,

§único da Carta Orgânica do Império. Seus naturais estavam sujeitos à designação legal de “indígena” e,

consequentemente, a um regime jurídico especial - artigos 22º do Acto Colonial e 246º da Carta Orgânica do

Império. 3 BARBOSA, Honório. Os indígenas da Guiné perante a Lei Portuguesa. BCGP, Bissau, v.2, 1947, n.6, p.343.

(artigo 2º do decreto 16.473, de 6 de fevereiro de 1929).

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Segundo Mamadou Mané (1989), soberanos locais do antigo Sudão Ocidental4,

em especial grandes líderes dos Impérios do Mali e Songhai, foram convertidos ao Islã de

forma pacífica. Dessa conversão surgiu uma camada de seguidores responsáveis por difundir

a crença muçulmana através das rotas comerciais existentes. Estes povos islamizados

possuíam uma organização social estratificada: nobres e aristocratas, artesãos, donos de gado

e artífices especializados, tais como ferreiros, tecelões, ourives, músicos, além dos

responsáveis pela transmissão da tradição oral e pela gente comum e escravos. Entre eles o

poder político era exercido, de forma centralizada, havendo, portanto, a figura de um chefe

que contava com o auxílio de um grupo de conselheiros.

Impérios Africanos

Contrariamente à concepção eurocêntrica sobre o isolamento do continente

africano, “as comunicações entre os Berberes da orla do Mediterrâneo e os negros nunca

chegaram a cessar”.5 Essa relação fica nítida quando são consideradas as intensas rotas

comerciais existentes em várias direções. Especificamente em relação à Guiné, os

movimentos ocorriam, nos séculos XVII e XVIII, em mão dupla, quer do interior, quer do

litoral, conforme o mapa a seguir:

4 Faziam parte da região do antigo Sudão Ocidental os atuais estados do Senegal, Guiné, Mali, Burkina Faso,

Níger, Nigéria, Camarões, Chade, República Centro Africana e a Guiné-Bissau. 5 QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.893.

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Trocas comerciais na Alta Costa da Guiné -

séc. XVII e XVIII 6

Colonizada por Portugal, cujo império, forjado ao longo de cinco séculos, perdeu

poderio rapidamente após o fim do tráfico de escravos, a região da Guiné foi relegada ao

desinteresse metropolitano após esse período.

Ingleses e franceses avançaram sobre a região e Portugal, após a perda do Brasil e

sem força política e econômica para fazer frente às potências imperialistas, viu escapar o que,

na verdade, nunca tinha sido seu. Entre 1841-1844, perdeu quase metade das fronteiras

estabelecidas no século XVI, as quais alcançavam o rio Senegal ao norte até Serra Leoa ao

sul. A França arrebatou a região do Casamança (ou Casamansa) e o rio Nunes, após o acordo

de fronteiras firmado em 18867, na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885).

6 LOPES, Carlos. Kaabunké: espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais.

Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p.253. 7 Dentre os assuntos discutidos, o acordo luso-francês tratou da renúncia portuguesa em relação à bacia do rio

Casamança, incluindo o porto de Ziguinchor ao passo que a França abandonou a área de Cacine, ao sul da Guiné.

O "Império” Português - séc. XVI e séc. XIX

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Até meados do século XIX a África não atraía o interesse dos dignitários

europeus, que “não se constrangiam por ignorar sua geografia. Deixavam-na de bom grado

aos Ministros da Marinha ou das Colônias, e até a iniciativa das autoridades locais [...] não se

falava da África negra no concerto das grandes potências.”8 A descoberta de riquezas e a

possibilidade de melhor posição no cenário internacional contribuíram para que esse

desinteresse fosse transformado numa disputa diplomática sem precedentes. Essa viragem

repartiu um continente em função de propósitos unilaterais que refletiam disputas europeias

concretizadas num sem-números de tratados e acordos de ocupação e delimitação de

fronteiras.9

As ações engendradas, que desenharam uma divisão geopolítica até então

inexistente, encerraram “um processo interno de reestruturação do espaço por forças sociais e

políticas relacionadas com a história do continente no longo prazo.”10

Enquanto impérios,

reinos e comunidades autônomas eram ignorados, repartidos e redistribuídos, um quinto do

planeta passava ao domínio das potências imperialistas. Como um rolo compressor, decisões

foram colocadas em prática, sem levar em consideração costumes e tradições locais. Isto

explica, ao menos em parte, conflitos e desequilíbrios intermitentes ainda hoje presentes em

Áfricas, onde populações vivem “mal no interior das fronteiras dos Estados-Nações e colocam

com agudeza a gestão desse legado colonial que fixou fronteiras tanto artificiais como

arbitrárias.”11

Sob o novo “desenho”, a colônia da Guiné ficou encravada em meio a possessões

francesas. Os ingleses abandonaram suas pretensões sobre a Ilha de Bolama12

, porém vetaram

o projeto lusitano em relação ao mapa cor-de-rosa, o qual traduzia suas pretensões em relação

aos territórios limítrofes às colônias de Angola e Moçambique, que uniriam os oceanos Índico

e Atlântico encurtando, dessa maneira, os caminhos comerciais. Essa pretensão portuguesa

vinha de encontro à estratégia inglesa de ligar o Cairo à Cidade do Cabo, numa extensa rota

entre o Mediterrâneo e o Atlântico Sul.

8 BRUNSCHWIG, Henri. A partilha da África Negra. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 16.

9 Ibid., p.58. A Inglaterra, por exemplo, firmou 30 tratados de delimitação com Portugal; na África Ocidental,

a França firmou mais de 240. 10

BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Sephis. Rio de Janeiro: Centro de Estudos

Afro-Asiáticos, 2001, p.66. (meu grifo) 11

Ibid., p.65. 12

Os ingleses fundaram uma feitoria na Ilha de Bolama no final do séc. XVII (Bolama e a Ilha das Galinhas são

as mais próximas da parte continental da Guiné). Ao reclamar sua posse, Portugal apelou para a intermediação

do presidente norte-americano Ulisses S. Grant (1869-1877) que concordou com a reivindicação portuguesa. Por

conta disso, um dos poucos monumentos erigidos na Guiné-Bissau é uma estátua em sua homenagem, a qual, no

entanto, desapareceu de seu pedestal na ilha de Bolama provavelmente após a independência da Guiné-Bissau

em 1974. A denúncia sobre o desaparecimento foi efetivada em 2007 e o processo foi arquivado sem solução.

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Em janeiro de 1890, os portugueses receberam um memorando exigindo sua

retirada da região do Chire (atual Zâmbia, Zimbábue e Maláui). Conhecido como o Ultimatum

inglês, repercutiu de tal maneira junto à monarquia de D. Carlos I que abalou a estabilidade

do regime. Para os portugueses, foi considerado como um momento de humilhação, pois nada

era possível fazer a não ser acatar as ordens britânicas. Foi o estopim que acendeu a chama

política e desencadeou a revolta republicana do Porto no ano seguinte. A crise que sobreveio

revelou que a continuidade do colonialismo português em África necessitava de um projeto

radical onde o nacionalismo deveria retomar “a forma imperial perdida com a independência

do Brasil.”13

Era o início do fim da monarquia.

A situação no ultramar, que nunca tinha sido efetivamente controlada agravou-se.

A desorganização da metrópole espelhava-se em todas as direções. A Guiné, governada à

distância, a partir de Cabo Verde14

, estava entregue nas mãos de comerciantes e grumetes, os

quais conviviam com as populações locais dentro de um mundo paralelo. Honório Pereira

Barreto15

desabafa:

Desgraçadamente só pode dizer que nestas Possessões há um Governador, e

Commandantes: mas que não há Governo. O paiz está inteiramente desorganisado.

Todos os Empregados, desde o primeiro até o último, ignoram quaes são as suas

atribuições, e por consequência, quaes são os seus deveres: só tratam de seus

negócios, pois são negociantes. (BARRETO, 1843, apud HAVIK, 1996, p. 164)16

Na verdade, a Guiné de Cabo Verde sempre fora “um agregado muito frouxo de

feitorias” onde a escravidão e o tráfico, ora ilícitos e tolerados, a partir das proibições de

1810, 1815, 1817, 183617

, mantinham o interesse especulativo “de um governador-geral não

residente”18

, sem maiores propósitos a não ser enriquecer. No início do XIX, a situação era e

13

TRAJANO FILHO, Wilson. Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na metrópole e nas colônias.

Série Antropologia. Brasília, n. 339, 2003, p.7. 14

Até 18 de março de 1879 a administração da Guiné era feita a partir da Colônia de Cabo Verde, razão pela

qual era conhecida por Guiné de Cabo Verde. Há autores que sugerem que a Guiné era “colônia da colônia” de

Cabo Verde. Após essa reorganização passou a ter autonomia e um governador próprio. Bolama foi instituída

capital colonial e Agostinho Coelho (1879-1881) foi o primeiro governador. 15

Honório Pereira Barreto (1813-1859) foi capitão-mor de Bissau e administrador da Guiné por quatro

períodos, não consecutivos, entre os anos de 1836 até 1859. Nessa época a Guiné era governada a partir da

colônia de Cabo Verde. 16

BARRETO, Honório Pereira. Memoria sobre o Estado Actual de Senegambia Portugueza, Causas de sua

Decadência e Meios de a Fazer Prosperar [1843]. In Walter, J. (dir.), Honório Pereira Barreto. Bissau: Centro

de Estudos da Guiné Portuguesa, 1947. 17

Em 19/2/1810 foi assinado o tratado luso-britânico, o qual proibia o tráfico na Guiné; em 08/6/1815 o

Tratado do Rio proibia o tráfico ao norte da linha do Equador; em 18/7/1817 Portugal assinou a convenção

adicional ao tratado de 1810 tornando crime o transporte de escravos em navios portugueses; em 10/12/1836 foi

proibido o comércio de escravos em todas as colônias portuguesas. 18

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936. Lisboa: Estampa

2001, v.1, p.43-44.

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precária, assim como em todo império, que passou a ser “administrado” desde o Brasil, após a

ocupação de Lisboa pelo exército de Napoleão19

.

Os portugueses estavam confinados “a uns quantos fortes e aldeias, como Bissau,

Bolama, Cacheu, Zinguichor, Geba, Farim e outros poucos, quase só ligados entre si por

navegação de cabotagem”20

. O número reduzido de colonos ficou concentrado nos

aglomerados onde acontecia a grande e lucrativa atividade da colônia: o tráfico de escravos.

Na Senegâmbia, durante o século XVI, existiu o que hoje se conhece como o

primeiro ciclo da escravidão21

, que teve um papel econômico significativo, porém de curta

duração. A Guiné fornecia escravos para Cabo Verde, assim como Angola fornecia para São

Tomé e todos, por fim, atendiam às demandas do Brasil. (MARQUES, 2006). Isto não

significa que o comércio escravista teve início nesse período, pois desde 1441 já eram

transportados negros da Senegâmbia e da Alta Guiné para Lisboa e ilhas atlânticas.

Segundo James Sweet (2007), a partir de 1518, até aproximadamente 1580,

chegaram ao Brasil escravos de origem Beafada, Fula e Mandinga. Estes grupos estavam

localizados em regiões do interior da Guiné e, provavelmente, foram alvo de pombeiros22

, vez

que os portugueses não se arriscavam a irem muito longe do litoral e das feitorias fortificadas.

Maria Celeste Gomes da Silva (2009) aponta que, durante a segunda metade do

século XVIII, a maioria dos escravos chegados ao Maranhão era oriunda dos portos

guineenses de Cacheu e Bissau. Esse comércio, realizado quase exclusivamente pela

Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (CGGPM)23

, visava suprir as regiões produtoras

brasileiras com mão de obra escrava africana24

, trazendo

para o Brasil produtos manufacturados, ferramentas, utensílios, alguns géneros

alimentícios, medicamentos e escravos, trazendo açúcar, café, cacau, especiarias,

madeiras, algodão, matérias corantes, tabaco, atanados e couro. Os postos mais

importantes de abastecimentos e trocas eram Bissau, Cacheu, Cabo Verde, Costa da

Mina, Angola, Pará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, ilhas da Madeira e dos

19

Nessa ocasião D. João VI, sua corte e a maior parte de seus governo refugiou-se no Brasil, transferindo,

assim, a metrópole da Europa para a América do Sul. O Brasil, então, passou a ser o centro do império lusitano.

D. João VI retornou a Portugal em julho de 1821, deixando no Brasil seu filho Pedro como príncipe regente. 20

MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. 6 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p.522. 21

Segundo o etnólogo Pierre Verger (1987), a escravidão pode ser compreendida em quatro momentos, sendo

que o primeiro deles é conhecido como ciclo de Guiné. Este aconteceu a partir da Senegâmbia durante a segunda

metade do século XVI. Os ciclos subsequentes são: de Angola e do Congo(séc.XVII), da Costa da Mina (até

meados do séc. XVIII) e da Baía de Benim (1770-1850). 22

Pombeiros eram mercadores africanos de escravos, que se embrenhavam pelo continente, em verdadeiras

razias, e capturavam nativos para comercializá-los com os traficantes. Geralmente mestiçados, tinham

facilidades no contato com os povos locais e conheciam bem a região. 23

A CGGPM foi criada em 1755. 24

O estado do Grão-Pará e Maranhão abrangia as regiões atuais do Maranhão, Pará, Amazonas, Piauí, parte do

Ceará e os territórios do Acre, Rondônia, Rio Branco e Amapá. A sede dos governadores e capitães-generais

ficava na cidade de São Luís. Segundo Maria Celeste G. da Silva (2009) esta configuração manteve-se até o

início da segunda metade do séc. XVIII.

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Açores.25

Apesar de figurarem outros produtos, a pauta de exportações a partir da Guiné

Portuguesa, era, basicamente, de escravos. De 1756 a 1777 saíram 20338 cativos dos portos

de Cacheu e Bissau. Outros 1920 negros apresados, dos quais 710 em Cacheu e 1210 em

Bissau, morreram nos “barracões dos portos de carga em consequência de doenças diversas,

de fugas (ou) abatidos durante a repressão de rebeliões”.26

A partir de 1775 e até 1799, a CGGPM “exportou” cerca de 910 cativos da Guiné

anualmente27

, muitos dos quais chegaram indiretamente ao porto de São Luís, redirecionados

de outros portos brasileiros. Segundo Gomes da Silva (2009), esse comércio era fruto de

acordos entre traficantes de escravos e chefes tradicionais africanos da Alta Guiné. A estes

cabia a organização dos pontos de venda - as feiras - ou a indicação de locais de concentração

dos negros resgatados para o tráfico. Entre os grupos “vendedores”, participantes ativos desse

comércio, destacavam-se os Fula28

, Jalofo, Banion e Geba. Os negros apresados, pertencentes

aos grupos Banhum, Cassanga, Felupe, Baiote, Balanta e Brame, foram transportados através

dos rios Casamansa e Cacheu, ao norte, enquanto os Balanta, Papel, Manjaco, Bijagó,

Beafada, Nalu, Mandinga e Padjadinca através do porto de Bissau.

João Fragoso (2002) apontou que as relações entre colonizadores e africanos, ao

contrário do que anteriormente se explicava, não ocorreram a partir de mera subordinação,

pois travaram parcerias em negócios altamente rentáveis e de interesse recíproco. Desde os

primeiros contatos, no século XV, os exploradores europeus encontraram, por toda a

Senegâmbia, dinâmicas internas bem estruturadas, que controlavam o espaço administrativo,

político, econômico e cultural. As elites locais acolheram os europeus como parceiros

comerciais e deles exigiam o pagamento de taxas e impostos, inclusive sobre o comércio de

escravos. Os primeiros navegadores portugueses

ficaram surpreendidos pelo grande número de espaços territorializados na

Senegâmbia (reinos, impérios, etc.) que aí existiam desde há muito e que tinham

dado à zona uma fisionomia uniforme. Do rio Senegal, ao Norte, ao Rio Grande, ao

Sul, passando pelos rios Gâmbia, Casamança e Cacheu, tinham-se afirmado como

entidades políticas autônomas os espaços Peul-Denianke, Wolof-Serer, Kaabunke

(Kaabu), Kassanga (Kasa), Papel-Brame, Biafad, etc. [...] (havia) três principais

focos motores políticos: o conjunto Folof-Salum (entre os rios Senegal e Gâmbia); o

25

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (catálogo). Cia Geral do Grão-Pará e Maranhão. 26

CARREIRA, António. Os portugueses nos rios da Guiné (1500-1900). Lisboa: s.n., 1984, p.66. 27

Id. As companhias pombalinas de navegação, comércio e tráfico de escravos entre a costa africana e o

nordeste brasileiro. Lisboa: Ed. Presença, 1983, p.20-21. 28

Conforme apontou James Sweet (2007), alguns Fula foram vendidos como escravos e trazidos para o Brasil

no século XVI. No séc. XVIII, após sua penetração maciça no interior da colônia da Guiné, passaram à condição

de vendedores.

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Kaabu, controlando a Gâmbia, o Alto Casamança e o rio Geba; o Kasa, que deu o

nome ao rio Casamança.29

A partir do século XVIII o continente africano passou a ser alvo de disputas pelas

potências europeias. Portugal ficou à margem desse movimento, na dependência do capital

estrangeiro, especialmente o inglês30

, que aniquilava o controle nacional de parte da pequena

indústria existente no país. Lisboa contava com seus espaços ultramarinos e nas

oportunidades de negócio que ofereciam ou poderiam oferecer. Entretanto, as demais

potências europeias vislumbravam as mesmas oportunidades e buscavam avançar ainda mais

sobre essa fonte de riquezas por desbravar.

Perdendo a primazia do autoatribuído “direito histórico” de ocupação31

sobre os

espaços alcançados ao longo dos séculos, os portugueses foram impelidos a traçar estratégias

para transformar suas possessões em território, efetivamente, português. Em decorrência,

“várias comissões de cartografia, missões geográficas e operações militares complementaram

as tarefas básicas iniciadas pelos exploradores dos Oitocentos”32

. Na verdade, uma “nova”

política colonial começava a ser aplicada pelos portugueses, pois

gostando ou não, entendendo ou não, para que as nações colonizadoras se

estabelecessem, o respeito aos usos e costumes dos naturais da terra tinha de ser

observado para que o mínimo de organização fosse alcançado, porquanto era

necessária a colaboração dos naturais da terra para que os objectivos dos

colonizadores, seja de povoação, seja de exploração das colónias, fossem

atingidos.33

Assim, por volta de 1880, os portugueses intensificaram as Campanhas de

Ocupação e Pacificação34

na Guiné, embora já ocorriam desde o início do século XIX. Várias

operações militares investiram contra os Balanta, Papel, Felupe, Manjaco e Bijagó, refratários

à colonização. Uma das figuras de destaque desse movimento foi o capitão Teixeira Pinto.

29 MANÉ, Mamadou. Algumas Observações sobre s Presença Portuguesa na Senegâmbia até ao séc. XVII.

Revista Icalp, Lisboa, v. 18, dez.1989, p.6. 30

No início do séc. XX a Inglaterra absorvia 70% das exportações portuguesas tornando, assim, a dependência

econômica um peso insustentável para Portugal. 31

Entre outras deliberações, na Conferência de Berlim ficou definido o “princípio de ocupação” de territórios

coloniais em detrimento do “princípio do direito histórico”, ou seja, era preciso ocupar para definir a

“propriedade” e manter o direito à possessão colonial. Além disso, as nações colonizadoras deveriam envidar

esforços no sentido de levar “civilização” e proporcionar melhorias à vida dos povos colonizados. 32

MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. 6 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p.522. 33

MARTINEZ, Esmeralda Simões. Legislação portuguesa para o ultramar. África e Africanidades, São Paulo,

n.11, nov. 2010, sem paginação. 34

Os portugueses empregam o termo “pacificação” em alusão às campanhas militares levadas a efeito na Guiné

desde o século XIX. Considerando que o termo transmite a ideia de conciliação, concluir que alguns grupos

tenham sido pacificados, nesse momento, é um tanto equivocado. Muitos lutaram pelo direito de não serem

civilizados e não pagar impostos, pois estes, na verdade, não geravam qualquer espécie de benefício. À custa de

muitos confrontos e mortes, os portugueses, ladeados por parceiros locais, mantiveram um frágil controle sobre

grupos mais resistentes. Somente em 1936 os Bijagó assinaram um acordo “paz”, após terem sofrido muitas

perdas. As campanhas militares portuguesas no território da Guiné são ricamente detalhadas nos dois volumes da

obra de René Pélissier História da Guiné - Portugueses e Africanos na Senegâmbia (1841-1936).

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Nascido na colônia de Angola, em 1876, liderou a “pacificação” entre os anos 1913-1915 e,

com a prática adquirida nos dez anos em que conduziu a “política indígena” angolana, agiu

“na Guiné com a brutalidade de um condottiere e o encarniçamento de um administra-

cobrador de impostos que andou na dura escola do Sul de Angola, a mais severa do Ultramar

do seu tempo.”35

Teixeira Pinto atuou na Guiné com o apoio de um exército de mercenários

liderados por Abdul Indjai. Nascido no povo Wolof (Senegal), Injai, que fora nomeado

tenente de 2ª linha do exército português em 1914, era muçulmano e liderava muitos

combatentes. Após as vitórias ao lado de Teixeira Pinto, recebeu, em 1916, do governador

colonial, como prova de reconhecimento por seus serviços, o regulado de Oio.

Posteriormente, recusou a submeter-se à autoridade colonial e ao pagamento de impostos, o

que motivou ações militares contra ele e seus seguidores. Abdul Injai entregou-se, foi

destituído de seu regulado e de sua patente em 1919. Foi condenado à deportação em

Moçambique, porém morreu em Cabo Verde. A aliança entre Teixeira Pinto e Abdul Indjai

conjugou

os interesses do Estado português na dominação efectiva do território e os interesses

dos grupos fula do interior na conquista e submissão das populações locais, iniciada

no século XIX [...] Esta aliança permitiu ao pequeno exército português submeter a

maioria das populações do território entre 1913 e 1915, embora tenham continuado a

existir focos de resistência, originando sublevações pontuais, até 1936.36

Ao longo do período colonial ocorreram diversos movimentos de resistência e

insubmissão por parte das populações locais, como, também, ações de apoio e cooperação. Na

verdade, “desde os primeiros tempos houve ambos os lados da medalha, a hostilidade e a

hospitalidade, a reação e a submissão, o compromisso e a revolta”37

.

Os portugueses conviveram com mundos plurais, cuja diversidade cultural era

praticamente desconhecida e aquém de sua compreensão. A maioria dos povos estava

estabelecida naquela região desde tempos imemoriais, dividiam-se em vários grupos

linguísticos, com características marcadamente diferenciadas, conforme mapas a seguir:

35

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

v2, 1997, p.45. 36

CARVALHO, Clara. O olhar colonial: antropologia e fotografia no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

In: ______; CABRAL, João de Pina. (Orgs.) A persistência da História: passado e contemporaneidade em

África. Lisboa: ICS, 2004b, p.121. 37 AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da

Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p.57.

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Povos da Guiné-Bissau, por região. (simplificado)

Guiné-Bissau e Guinée: mapa linguístico

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Embora diferentes, os povos guineenses possuíam alguns aspectos em comum:

falavam línguas aparentadas, utilizavam, em geral, instrumentos de ferro e possuíam uma

cosmogonia singular. Não se achavam organizados “segundo formas tradicionais de realeza,

constituindo antes clãs independentes ou tributários”38

. Tal miríade de estruturas e de

transgressões foram, certamente, obstáculos à ocupação e à exploração dos espaços,

notadamente para um “império” decadente e despreparado. Compreender como esses grupos

estruturaram-se no espaço guineense explica, ao menos em parte, o panorama da Guiné de

meados do século XX.

2.2 A ocupação do chão guineense

Classificar os povos guineenses é um desafio, pois qualquer critério utilizado

corre o risco de deixar escapar algum aspecto importante. No entanto, considerando o estágio

atual dos estudos sobre a Guiné-Bissau, os quais ainda são incipientes, há classificações que

podem ser utilizadas para melhor compreensão acerca desse espaço e de seus habitantes.

Leila Hernandez (2005), por exemplo, aponta que na Guiné-Bissau há quatro

grandes grupos etnoculturais na região litorânea:

os Felupe (Diola ou Diula) e os Balanta (mais numerosos),

os Manjaco (incluindo Papel39

) e os Banhum,

os Beafada e Nalu e

os Bijagó, Cocoli e Padjadinca (habitantes do arquipélago dos Bijagó).

A característica comum a estes povos, segundo a autora, é a centralidade da família como

unidade política e econômica tornando-as, assim, sociedades horizontalizadas. Na região do

interior há dois outros grandes grupos:

os Mandinga (guerreiros, comerciantes, agricultores, convertidos ao Islã

desde o século XII) e

os Fula (islamizados).

Campbell Franco (2009) também caracteriza os povos guineenses de acordo com

sua localização. Do litoral relaciona aqueles citados por Leila Hernandez, à exceção dos

Cocoli e Padjadinca acrescentando, porém, os Mancanha (ou Brame), Baiote e Sôsso.

Estabelecidos no interior, também menciona os Fula e Mandinga.

38

MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. 6 ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p.525. 39

Segundo Pélissier (2001), os portugueses chamavam de Papel o povo que se estabelecera mais ao interior,

entre os rios Cacheu e Mansoa, e de Manjaco aquele localizado mais para o litoral. Para aquele autor, as

diferenças existentes entre esses dois grupos eram difíceis de serem detectadas e o “verdadeiro” grupo Papel

estaria concentrado na ilha de Bissau.

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Outro tipo de diferenciação40

, mais detalhada, distingue-os de acordo com sua

região de origem:

Sahelianos: Boença ou Fula Burué; Futa Fula (Fula do Quebo ou

Quebunca; Fula do Futa Toro ou Toranca); Fula Forro ou Fulacunda e

Fula Preto,

Sahelo-Sudaneses: Mandinga; Oinca; Jãcanca; Saracolé; Bambarã;

Sarna e Jalofo,

Sudaneses Meridionais: Padjadinga ou Badjaranca e Tanda,

Recalcados Subguineenses: Felupe; Baiote; Balanta de Naga; Balanta

Mané; Balanta de Xá ou de Canja; Banhum; Cassanga; Cabiana;

Manjaco; Papel; Brame; Beafada; Nalú; Sôsso; Jalonca; Bijagó; Baga;

Landumã e Temene.

Cabe salientar que os povos da Guiné não tinham concepções de fronteira, ou

seja, marcos ou divisas imaginárias que os apartassem uns dos outros. As divisões espaciais

foram concebidas pela administração portuguesa, que nomeou e “dividiu” a colônia em

regiões administrativas. A tentativa de utilizar os mesmos padrões da metrópole esbarrou

numa ocupação de território que fugia à lógica colonial. Pequenos espaços, especialmente na

região costeira, eram, por vezes, ocupados por mais de um grupo, muito em razão de

movimentos populacionais importantes ocorridos ao longo dos séculos. Isto fica evidenciado

pelo mapa elaborado, em 1954, por Avelino Teixeira da Mota:

“Carta étnica das densidades da população”, por Avelino Teixeira da Mota, 195441

A interpenetração das várias culturas é facilmente percebida, cabendo realçar que o grupo

Bijagó é o único exclusivamente estabelecido na região insular, não sendo observada sua

presença, ao menos em quantidade significativa, fora do arquipélago.

40

Cf. www.forumafrica.com.br/pais%20guine.pdf. 41

BALDÉ, Saico. BUBA-QUEBO: corredor de desenvolvimento no sul da Guiné-Bissau. 2008, 122f.

Dissertação (Mestrado em Estudos Africanos) - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa,

Lisboa, 2008, p.66.

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Assim como a “divisão” territorial, os nomes atribuídos pelos portugueses aos

diversos grupos da Guiné foram arbitrários, ou seja, a lógica colonial arvorava-se o direito de

desconsiderar o que estivesse posto. Quanto a isto, Fernando Rogado Quintino concorda que

nenhum dos grupos sociais tinha “a noção do que (era) etnia, ou etnónimo, ou mesmo

raça.”42

e, em geral, “aceitavam” as designações dadas pelos europeus, porém mantinham as

suas próprias designações nas relações entre si, de certa forma, também desconsiderando o

que lhes era imposto.

António Carreira considerava que os nomes aportuguesados atribuídos aos

diversos grupos autóctones prevaleceram sobre as designações tradicionais “porque estas

fossem mais difíceis de pronunciar ou porque a sua diversidade e o desconhecimento

pormenorizado da região por parte de elementos estranhos dificultariam a pronta

identificação de cada povo.”43

O fato é que a complexidade das línguas faladas na Guiné não

permitiu que os portugueses, apesar de esforços esporádicos, mantivessem uma comunicação

em níveis razoáveis com seus “colonizados”. Até meados do século XX, nos primeiros anos

da publicação do Boletim Cultural, muitos artigos veiculavam esse fato e clamavam por ações

da metrópole a fim de revertê-lo.

Não obstante as concepções pretensamente superiores do colonizador, conclui-se

que não foram suficientes para alcançar as estruturas mais profundas presentes na maioria dos

povos guineenses. Os termos classificatórios utilizados, em qualquer nível, não puderam

encobrir, mesmo nas tentativas mais esforçadas, o universo rico e diferenciado com o qual se

defrontaram. Ao contrário, apesar do esforço em suprimir formas diversas de vida e

mundividências culturalmente diferenciadas, os povos da Guiné resistiram de várias maneiras

e mantiveram presentes, de forma mais ou menos velada, seus costumes, valores e tradições.

Fernando Quintino (1969) oferece alguns exemplos sobre a designação que certos

grupos atribuíam a si próprios. Os Felupe, por exemplo, referiam a si mesmos como

Kadjamát. Nos documentos mais antigos o etnônimo44

aparece grafado como Falupe, Flupe,

Fulupe, Halupe, entre outras formas e também há referências a um Mansa (rei) Falupe.

Os Baiote designavam-se Kassikenei e, na época do Inquérito Etnográfico de

1946, havia a ideia de que eram culturalmente próximos aos Felupe, embora falassem línguas

muito diferentes o que torna tal aproximação arriscada. Os Banhum eram os Iagar e os

42

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.873. 43

CARREIRA, António. A etnonímia dos povos de entre o Gâmbia e o estuário do Geba. BCGP, Bissau, v.19,

1964, n.75, p.262. 44

Etnônimo é a “palavra que designa o nome de tribo, casta, etnia, nação etc.”, cf. Dicionário Aulete Digital

disponível em http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital.

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Cassanga, Ilhadja. Os primeiros referiam-se a estes como Eguechá, assim com os últimos

referiam-se aos primeiros como Eaer ou Uaer.

Sobre o etnônimo Manjaco (Mandjaco), Fernando Quintino o traduziu como eu

disse (Man=eu + Dja=disse + Co= partícula reforçativa da afirmação). Afirmou, também, que

a “expressão (era) frequentemente usada pelo grupo, no decorrer da conversação, à maneira

de estribilho. Passou a funcionar como alcunha e, com o rodar dos tempos, como

etnónimo.”45

É interessante considerar que as repetições são recursos linguísticos da

oralidade, que as utilizam no processo de memorização e transmissão. Segundo Anete Di

Gregório

O reuso (duas ou mais vezes) dos mesmos ou de parecidos segmentos linguísticos na

cadeia discursiva contribui para a leveza textual, criando condições facilitadoras

que, por um lado, permitem ao ouvinte ter tempo de assimilar melhor as

informações, por outro, propiciam ao falante as circunstâncias precisas não só para

(re)organizar o seu discurso, mas também para acompanhar e avaliar a coerência

textual. [...]a repetição não é apenas uma simples característica da língua falada. Ela

assume diversas funções, tornando-se, por conseguinte, essencial em uma gramática

da textualização nessa modalidade de língua.46

O grupo Brame (ou Mancanha) designa-se e é conhecido como Bau-lé ou Ba-

hula. Os Beafada são conhecidos e também se autodenominam Djola (Bedjola no plural). Nos

documentos mais antigos, são apontados como os Beafar (Beafares, no plural). No apogeu da

dominação dos Mandinga, estes os denominavam Djola, assim como a todos os povos

subjugados, pagadores de impostos, como os Felupe e Balanta. Após o declínio da hegemonia

Mandinga, o termo passou a qualificar indivíduos considerados culturalmente “inferiores”, ou

seja, que não foram influenciados por aquele grupo.

Fernando Quintino destacou que a tradição local afirmava que

os Beafadas vieram do Oriente, da região chamada Mândè, região que

abandonaram quando a propaganda do islamismo assumiu ali forma violenta. Na

caminhada para o litoral, estabeleceram-se primeiro no Firdú, que englobava as

terras de Patchana e Patchisse, rumando depois para Oio. Aqui se repartiram - diz

ainda a tradição - dirigindo-se num, núcleo para o Corubal (para a região de

Binala) atravessando o estuário de Geba. Binala traduz-se por isto é nosso.O grupo

que se dirigiu para Corubal foi mais tarde dali desalojado por fulas, estabelecendo-

se em Cubisseco. 47

45

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.873. 46

DI GREGÓRIO, Anete Mariza Torres. A Repetição-marca da oralidade no discurso literário de Adriana

Falcão. In: CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA, 9., 2005, Rio de Janeiro.

Anais...Rio de Janeiro: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, 2005. s/paginação. 47

QUINTINO, op.cit, p.884.

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Os Nalu designavam-se Bunale e, segundo a tradição local, teriam saído do Futa

abandonando a região do Mande sob o comando de Sundjata48

. Entre várias regiões fixaram-

se, por fim, em Bigine, que pode ser traduzido por viemos. Com relação ao etnônimo Bijagó a

hipótese mais aceitável em relação à sua origem, segundo Rogado Quintino (1969), aponta

para o vocábulo odjogô, cuja tradução é pessoa inteira. Assim, Be-odjogô, na forma plural,

significaria pessoas inteiras. Bidjogô e Bijagó representam “variantes, a primeira forma

crioula e a segunda portuguesa” do vocábulo original.49

Nas relações entre si e com outros grupos, os Balanta denominam-se Beraça ou

Braça. Em português são designados, geralmente, de acordo com sua localização: Balanta de

dentro ou Balanta Bravo (interior) e Balanta de fora (litoral). Estes tiveram maior contato

com os Beafada e julgavam-se deles aparentados. Aqueles que sofreram maior influência

mandinga são conhecidos como Balanta-Mané. Segundo Quintino, “com esse apelido (Mané)

pretenderam os balantas submetidos passar por nobres junto dos restantes do grupo.”50

Há,

também, referências aos Balanta-Mané como sendo os Tilidjinca, designação mandinga que

significa gente que fica do lado poente.

António Carreira (1961a) atribui certa afinidade entre os Balanta, Felupe e Baiote,

os quais acreditavam descender de um mesmo tronco, embora bastante mestiçados. Tendo

permanecido por muito tempo no mesmo território, possuíam, segundo este articulista, certa

unidade de crenças, usos e costumes, além de interesses comuns. Fernando Quintino também

aponta afinidades entre os Manjaco, Papel e Brame concluindo, a partir delas, que no passado

constituíram um só grupo. “Estruturados em reinos distintos, passaram a olhar-se

sobranceiramente, o que não impedia que a gente dum grupo, sobretudo mulheres e crianças,

frequentassem as feiras realizadas no chão do grupo diferente.”51

Apesar das similaridades apontadas, é bastante imprudente aproximar os povos

apontados sem um estudo mais apurado. No entanto, os portugueses não dispunham de

referencial teórico que permitisse a construção de análises mais aprofundadas. Cabe, apenas,

destacar suas observações decorrentes da convivência com os diversos grupos, fazendo,

portanto, as ressalvas devidas.

Apesar da proximidade física em que viviam, os autóctones constituíam grupos

mais ou menos fechados, mas não isolados. Possuíam organização sociopolítica própria, além

48

Sundjata Keita (c.1217-c.1255), heroi Mandinga, imperador do Mali, “seguia a palavra de Deus

rigorosamente; protegia o fraco contra o forte; as pessoas consumiam vários dias de marcha para vir pedir-lhe

justiça. Sob seu sol, o justo foi recompensado, o perverso foi punido”. (NIANE, 1982, p.119). 49

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.887. 50

Ibid., p.881. 51

Ibid., p.874.

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de uma economia de subsistência que lhes proporcionava relativa autonomia. Cada qual era

dono do seu chão (tchon, em crioulo), território cuja “propriedade” era atribuída ao grupo que

primeiro ali se estabelecesse. Por conta dessa prioridade, o nome do chão era definido pela

geração52

primeira ocupante.

O povo dono do chão (dunu di tchon) assumia “certo poder sobre todos os

indivíduos e grupos que sucessivamente vie(ssem) morar neste tchon, mesmo os de outras

etnias”53

. A relação entre os ocupantes e seu chão guardava um sentido sagrado, ou seja, o

homem e a terra mantinham uma interação algo incompreensível para outras culturas. Aos

portugueses, isto soava desafiador, tal como relatou, indignado, o comandante Teixeira Pinto:

O atrevimento dos Papeis era tal nas ruas de Bissau, que se cruzavam com algum

europeu na rua, em lugar de se afastarem, pelo contrário esbarravam com o europeu

e, com um encontrão, afastavam-no. Quando algum branco ia passear para fora da

vila, logo a cem metros, era frequente encontrar um Papel que lhe dizia para voltar

para a vila, porque aquele chão não era do Governo – era deles.54

Um grupo pode estar constituído por diferentes gerações, conforme Quintino

(1969) exemplificando os sete clãs55

do povo Papel, cada um guardando relação com um

animal: Intchassu (onça), Intsutu (urso formigueiro), Intsáfintê (lebre), Intsó (sapo),

Indjókomô (hiena), Iga (cabrito do mato) e o Intsátê (macaco). Da mesma forma, os Beafada

reuniam três “gerações”: Málobal (onça), Mássene (jiboia) e Mabadje (gundugu, ave-de-

rapina). A família Intchassu era a detentora do poder e possuía o apelido de Nanke - onça -

símbolo da força. Da mesma forma, é possível inferir que o mesmo ocorria com o clã Málobal

dos Beafada.

O grupo Papel, também conhecido por Pepel, possui uma lenda de origem que

fala de um caçador chamado Mecau, da família Buduque, filho de um poderoso régulo de

Quinara, região próxima à ilha de Bissau. Quando Mecau esteve nesta ilha ficou fascinado

pela região. Ali se estabeleceu com sua irmã mais velha, Punguenhum, e suas seis mulheres e,

a partir delas, constituiu-se aquele clã. Essas representações revelam as estreitas interações

que os povos da Guiné, e os africanos de modo geral, mantêm com o mundo animal, vegetal

52

Geração (gerasson, geraçom, dgèracom ou djorson) é a designação do grupo social ao qual cada um dos

componentes está vinculado, entendendo serem descendentes de um ancestral comum através de laços de

parentesco. 53

BICARI, Lino. Reorganização das Comunidades Rurais: base e ponto de partida para o desenvolvimento

moderno da Guiné-Bissau. Soronda Revista de Estudos Guineenses, Bissau, n.8 Nova Série, jul.2004, p. 135. 54

PINTO, João Teixeira. A ocupação Militar da Guiné. Lisboa, Agência Geral das Colónias, Divisão de

Publicações e Biblioteca, 1936, p. 183. (meu grifo) 55

De acordo com Hoebl e Frost (2006, p.227), a diferença entre linhagem e clã é que os membros daquela

“podem realmente remontar as suas genealogias de descendência comum até um passado conhecido, enquanto

que os membros do clã não o podem”. Os membros de um clã acreditam em uma descendência comum, a qual

assume uma explicação mítica que dá fidedignidade à sua origem.

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e mineral, onde o humano não está à parte desses mundos, ao contrário, juntamente com eles,

conforme Hampâté Bâ (1982), compõe um só mundo.

Árvore genealógica da tribo papel.

De Mecau, caçador oriundo de Quinara, casado com seis mulheres,

e da sua irmã Punguenhum, procede toda a tribo.

Cada uma das suas sete ‘gerações’ possui um totem, que lhe serve de apelido.

(Desenho e legenda reproduzidos de F. Rogado Quintino, BCGP, n.66, 1962, p. 343)

2.2.1 O continente

O interior da Guiné é o chão natal de muitos grupos que migraram para a região

litorânea que, em 1950, era a mais populosa da Guiné, notadamente em razão de ser a mais

rica do ponto de vista agrário. No interior, as culturas eram do tipo itinerante, isto é, o cultivo

dependia do desmatamento de áreas que, com o passar do tempo, provocavam o esgotamento

do solo e, consequentemente, obrigavam a repetição do método em novas áreas. Os povos da

Guiné são essencialmente ligados à terra, “e a agricultura não é apenas a base da economia

guineense: é a própria economia da Guiné. Sem ela, nem alimento, nem comércio, nem

indústria.”56

56

CABRAL, Amílcar. Acerca da contribuição dos “povos” guineenses para a produção agrícola da Guiné.

BCGP, Bissau, v.9, 1954, n.25, p.772.

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Segundo Fernando Quintino (1969), os portugueses encontraram, de início, a

região entre os rios Gâmbia e Geba dominada pelos

Mandinga57

(Mandinka, Mandingo, Malinké),

organizados em vários reinos: Cantor, Niani, Uli,

Cabu e Brasso. O povo Mandinga faz parte de uma

grande família que se estabeleceu na região do

Mande58

, no Sudão Ocidental, ao longo do rio

Níger, onde floresceu o Império do Mali (cerca do

séc. XIII). Ao chegarem à região da Guiné, o povo

Mandinga ocupou “uma parte do Oio, desalojando

núcleos Balanta que ali se encontravam, os quais

tinham já antes dali expulsado os Banhuns ou

Banhulos”59

.

Sobre a presença Mandinga e Soninqué60

na Guiné, António Carreira aponta a

possibilidade de terem ocupado os espaços com o consentimento dos “donos do chão”, pois

a organização política de Mandingas e Soninqués era fraca, de pouca coesão,

limitada a règulados e chefados de pequena área e de escassa população [... e]

nunca tiveram organização militar eficiente para dominar e converter os

animistas61

. Por essa razão a par de pequenas lutas sem relevo, usaram mais

métodos pacíficos de dominação cultural, pelo comércio, pelo casamento com

mulheres de etnias diferentes e pela boa convivência.62

57

O termo Mandinga também se refere a um grande grupo linguístico do oeste africano pertencente à família

Níger - Congo. Segundo Carlos Lopes (2005, p.11, nota 6) nessas línguas os “sufixos ‘nké’ (‘nquê’ na

transcrição para o português) ou ‘nka’ representam a ideia de integração e território (‘o país de’ ou ‘o povo de’),

como, por exemplo, ‘mandenka’ que, obviamente, está na origem da terminologia ‘mandinga’.” Assim, para

outros povos oriundos da região do Mande ou influenciados pela cultura mandinga, o sufixo está presente, como

em Soninquê ou Kaabunquê, entre outros. 58

O Mande é uma região do Sudão Ocidental, no entorno do alto curso do rio Níger. Ali surgiu o Império do

Mali e muitos grupos dali expandiram-se para outras regiões do continente africano. 59

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.888. 60

O grupo Soninqué (Soninké, Sarakolé, Saracolé, Saraxole, Serhuli, Serakhulle), também é da família

Mande. Segundo Olson (1996), foram islamizados a partir do século XI sob as missões Almorávidas. São

considerados fundadores do Império de Ghana (cerca do séc. IV ao séc. XI) e, segundo sua própria tradição oral,

seriam descendentes dos Berbere do norte da África. 61

O termo animismo/animista foi desenvolvido ao final do século XIX pelo antropólogo inglês Edward

B.Tylor. Ele considerava esse tipo de crença (a totalidade da natureza como essencialmente viva através de

espíritos e divindades que habitam árvores, rios, montanhas, ferramentas, armas, etc.) o estágio mais antigo da

“evolução religiosa”. Entre outros princípios, o animismo prevê a continuidade da vida dos ancestrais após sua

morte, a interação direta com tais espíritos através da mediação de pessoas preparadas para esse fim e,

principalmente, a existência da força vital que permeia todo o universo. Este conceito, muito utilizado pelos

autores do Boletim Cultural, guarda um sentido eurocêntrico, razão pela qual sua utilização deve ser

compreendida naquele contexto. Hoje é sabido que as religiões de matriz africana são bem mais complexas e

ricas do que o termo pretendeu explicar. 62

CARREIRA, António. Evolução do islamismo na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.21, 1966, n.84, p. 408-

412.

Mande (Império do Mali)

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Os grupos que ocupavam a região que acolheu a presença Mandinga e Soninqué -

Balanta e Beafada entre outros - sofreram maior ou menor influência, inclusive em relação à

adoção da religião muçulmana. É importante deixar claro que tal “conversão” ocorreu entre os

membros mais elevados dos grupos, sendo que os demais mantiveram suas práticas e

costumes tradicionais. Seria, portanto, um equívoco supor que os negros “convertidos” da

Guiné o foram de fato, pois as práticas tradicionais sempre conviveram com a “nova” religião

adotada.63

A religião muçulmana foi adaptada segundo cada grupo. Entre os Banhum,

Cassanga e Balanta-Mané, por exemplo, o consumo de carne de porco e a ingestão de álcool

não eram proibidos. A influência mandinga ocorreu, especialmente, em relação à língua, à

maneira de obter o cônjuge, nos trajes, nos adornos, nas marcas corporais e nos tipos de

habitação.

Conforme Hampâté Bâ esclarece, o encontro do Islã com os costumes africanos

proporcionou uma simbiose que, por vezes, fica difícil perceber o que pertence a um ou ao

outro. Nas escolas muçulmanas, por exemplo, os princípios tradicionais africanos não eram

repudiados, mas “utilizados e explicados à luz da revelação corânica.”64

. Isto pode ser

compreendido em razão dos pontos convergentes entre as duas culturas: a visão sagrada do

universo, a mesma concepção do homem e da família, a preocupação em citar as fontes e não

alterar as palavras do mestre nas transmissões orais e o mesmo sistema de caminhos

iniciatórios “que tornam possível aprofundar, através da experiência, aquilo que se conhece

pela fé.”65

Os marabus, letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica, e os xeques,

chefes/soberanos de grupos árabes, juntaram-se aos “conhecedores” tradicionais africanos.

Mantiveram preservadas as estruturas sociais dos grupos locais, inclusive nos meios mais

fortemente influenciados, e continuaram a proceder às iniciações particulares.

A influência Mandinga/Soninqué foi declinando a partir das sucessivas fases

expansionistas dos Fula66

, iniciadas entre os séculos XII e XIII, desde a região onde

atualmente é o Senegal. Chegaram, a princípio, em quantidades reduzidas, conviveram

63

Atualmente, na Guiné-Bissau celebram-se datas católicas, muçulmanas, tradicionais e políticas, como por

exemplo, o Dia dos Herois Nacionais/Dia Amílcar Cabral (20/1), Dia dos trabalhadores da Guiné-Bissau/Dia dos

Mártires do Colonialismo/Dia de Pidjiguiti (03/8), Dia da Independência (24/9), Dia di Difuntos (01/11), Dia do

Movimento Reajustador (14/11), Natal (25/12), além do Tabaski, Ramadã, Carnaval, Páscoa, em datas

variáveis. 64

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (Coord.). História Geral da África. v.1.

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.205. 65

Ibid., p.205. 66

A designação Fula é a forma usual em português (em inglês, Fulani; em francês, Peul).

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pacificamente com os Mandinga chegando, até mesmo, a pagar-lhes tributos. Durante algum

tempo, foram “hóspedes dos Mandingas, considerados donos do chão [...] progressivamente,

tiveram necessidade de conquistar novos territórios mais a Sul, porque (vieram) com muito

gado e família”.67

A partir do século XVIII, os Fula “vieram em massas compactas, provocando

perturbações em todo o leste (da Guiné). Uns procederam de Tekrur, outros de Massiná - dos

prados de Massiná, região situada nas fraldas do Futa-Djalom”68

. No leste da Guiné

estavam estabelecidos os Mandinga, Padjadinca, Conhagui, Tanda, Tiapi e Cocoli, os quais, à

exceção dos dois primeiros, deslocaram-se para territórios vizinhos. Permanecendo na região,

os Mandinga passaram a ser vassalos de Mussa Molo69

, líder do movimento expansionista

Fula. Cabe destacar que nessa época havia de 70 a 80 “diferentes reis e chefes tradicionais que

reinavam simultaneamente no que outrora correspondia ao actual território da Guiné-Bissau,

mas todos estavam submetidos, de uma maneira ou doutra, ao reino mandinga.”70

Sarmento Rodrigues (1948) destacou que os Fula ocuparam os espaços do interior

“catequizando os [...] Mandingas – que por sua vez já tinham fugido a um ataque semelhante

feito na sua própria pátria de origem, - e outras raças, ‘virando’ os Beafadas, seduzindo os

Nalus e empurrando para o mar os mais impenitentes”.71

67

CARDOSO, Carlos. As tendências actuais do Islão na Guiné-Bissau. In: GONÇALVES, António Custódio

(Org.). O Islão na África Subsariana. Porto: Tipografia Nunes Ltda., 2004a, p.47. 68

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v. 22, 1967, n. 85-86, p.36. 69

Mussa Molo, atuando por ordem de seu tio e soberano Bakari Demba, “conduziu os seus homens (Fulas-

Pretos do Casamansa e do Gabu) contra os Biafadas de Bijine (sul de Geba) e os Mandingas do Cossé.[...]

Amigo dos portugueses de Geba que vieram a Ndorna em Abril de 1883, Mussa Molo teve a caridade de os

avisar de sua intenção de vir combater Biafadas e Mandingas meridionais com 3000 cavaleiros e infantes.”

(Pélissier, 2001, p.222 et seq. 70

CARDOSO, Carlos. A formação da elite política na Guiné-Bissau. Lisboa: ISCTE, Centro de Estudos

Africanos, 2002, p.11. 71

RODRIGUES, Manual M. Sarmento. Os maometanos no futuro da Guiné. BCGP, Bissau, v.3, 1948, n.9,

p.224.

Reinos Mandinga, Fula, e outros reinos.

Senegâmbia, séc. XVIII.

Guillaume Delisle, 1707

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A centralização do poder entre os Fula propiciou a organização de movimentos

que redundaram em importantes conquistas na Guiné. Isto teria relação direta com o

islamismo característico desse povo, pois, segundo Paula Pinto (2009, p.39), “o Islão favorece

a criação de estruturas políticas, por influência de uma estrutura religiosa fortemente marcada

e hierarquizada”. Por outro lado, há que se considerar a incapacidade portuguesa em rechaçar

invasões ao território, razão pela qual, em meados do século XX, o governador Sarmento

Rodrigues (1948, p.225) concluiu: “assistimos, quase indiferentes, à instalação em nossa

casa, da maior barreira à nossa expansão.” Tal fragilidade conduziu a acordos com Mussa

Molo e, assim, as autoridades coloniais eram colocadas “de lado” nas questões entre os

grupos estabelecidos no território da Guiné e o expansionismo Fula.

Alguns autores designam os Fula, que

ocuparam a Guiné, conforme sua região de origem,

ou seja, os Fula-Forro72

, vindos de Maciná (Masina)

são os membros do primeiro grupo a chegar e que por

isso consideram-se mais “puros”; os Futa-Fula73

, são

os mestiços dos primeiros com povos locais, tais

como Sossos e Jaloncas, e os Fula-Preto74

ou Fula-

Cativo, antigos escravos de guerra de forros e futas,

“uns e outros cruzados com muitas etnias:

Mandingas, Beafadas, Conhadjis, Tandas, Ladúmás,

etc.”75

.

Tanto os Mandinga quanto os Fula jamais tiveram preconceito em relação à

mestiçagem com os povos estabelecidos no espaço guineense. Ao contrário, tal mistura veio

ao encontro de seus propósitos, principalmente ao se ter em conta que os filhos havidos dessas

relações estariam integrados ao clã do pai e, consequentemente, à religião muçulmana.

Acerca dos Fula, Fernando Rogado Quintino acrescenta que subdividiam-se em

quatro grandes famílias:

Djal-djaldó, Ururó, Djaêdjô e Perêdjô. E os membros de cada família usavam

apelido próprio - respectivamente Djaló, Jah, Bari e Soh. As famílias eram de feição

acentuadamente clânica. Desarticularam-se com o tempo, mas no espírito de todos

72

O termo “forro” é empregado para designar os Fula que ficaram inicialmente submetidos aos Mandinga e

Beafada. 73

Segundo Carlos Lopes (1999, p.69), os Futa-Fula seriam os Toranka, do Senegal, estes oriundos da região do

Futa-Toro. Entretanto, este autor considera, a partir dos conhecimentos mais atualizados sobre os Fula, que

qualquer designação é, “no mínimo, fantasiosa”. 74

De acordo com Paula Pinto (2009), os portugueses atribuíram a designação Fula-Preto para distingui-los dos

Fula “genuínos”, os quais tinham a cor da pela mais clara e cabelos mais lisos. 75

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.890.

Regiões de origem dos Fula da Guiné

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os elementos subsiste ainda o sentimento duma ascendência comum. Dizem-se

parentes - lênhol, cujo significado é parente de sangue. 76

Todo o processo histórico que permeou o movimento expansionista Mandinga,

Soninqué e Fula sobre a região da Guiné merece destaque em razão das significativas

mudanças que proporcionaram. Para além do muito que há para ser apreendido, um dos

aspectos relevantes, que decorreu de forma indireta a partir desses movimentos, especialmente

em se tratando dos Fula, foi a “sobrevivência” do colonialismo português. Vale lembrar que

somente a partir do final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX Portugal

buscou a efetiva ocupação do território da Guiné, bem como exercer a autoridade colonial.

Em virtude da insuficiência de quadros militares que amparassem tais ações, firmou acordos e

ignorou conflitos entre os grupos, usando-os uns contra os outros. Estrategicamente, os

portugueses integraram autoridades tradicionais à “nova” estrutura política e administrativa,

instituindo, para tanto, os regulados e a nomeação dos chefes (régulos) passou a ser de

competência da autoridade colonial.

Segundo Moema Parente Augel (2007), o termo régulo é oriundo do léxico

português, diminutivo de rei (reizinho, pequeno rei). Sua utilização pelo colonizador para se

referir aos líderes autóctones demonstra, segundo essa autora, uma forma eurocentrada de

apequenar autoridades muitas vezes donas de grande riqueza, poder e respeito77

. Ciente de

que essas lideranças eram um elo nas relações com as populações locais, os régulos que não

cumprissem com os propósitos coloniais eram substituídos. Entretanto, este sistema não

demonstrou eficácia, pois colocavam em conflito dois poderes políticos divergentes,

culturalmente estranhos e, certamente, de difícil convivência.

As autoridades fula estiveram ao lado dos portugueses nas campanhas

“pacificadoras” movidas contra os povos resistentes à ocupação, notadamente os Bijagó e

Papel. Pelos serviços prestados receberam benefícios comerciais e puderam reforçar sua

influência cultural, denominada por alguns autores como “mandinguização” e “fulanização”78

.

Para os portugueses, no entanto, essa parceria revelou-se prejudicial, considerando que a

76

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.895. 77

Maurício Waldman (2000, p.10, nota 14) acrescenta que o termo régulo foi utilizado, também, para “nominar

ampla gama de chefarias tribais asiáticas, africanas, latino-americanas e da Oceania, com as quais os navegantes

portugueses travaram contato. Em Antropologia, o termo continuou a frequentar os textos com o mesmo

significado original, qual seja, de referir-se a um pequeno potentado, a um governador de província, preposto

local de um imperador, um chefe de aldeia ou grupo tribal, situações que em comum, referem-se a formas locais

e/ou autárquicas de exercício do poder”. 78

Há discussões em torno da propriedade dessas designações, porém não é objetivo do presente trabalho

discuti-las. Apenas cabe, por ora, seu registro.

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islamização dos povos tradicionais tornou-se outra “arma” com a qual as missões católicas

eram incapazes de lutar.

Em 1950 existiam, na Guiné, 43 cristãos, 4400 católicos, 317.000 adeptos das

religiões tradicionais e 180.000 muçulmanos. Os “chefes das confrarias Qadiriya (Mandinga)

e Tidjaniya (Fula) viviam na África francesa e a acção cultural portuguesa na Guiné era muito

insuficiente”79

para fazer face às suas influências. Cabe ressaltar que às confrarias cabe a

função, ainda hoje, de “conservar, transmitir e difundir os ensinamentos do seu fundador,

nomeadamente, a sua experiência mística e os seus métodos.”80

Nessa medida, a islamização

na Guiné era um movimento praticamente irreversível, alimentado tanto interna quanto

externamente e pode explicar as mudanças expressivas no percentual de adeptos à religião

muçulmana, em torno de 45%, na Guiné-Bissau dos dias atuais.

O trabalho empreendido por muçulmanos e católicos, durante o período colonial,

pode ser avaliado em função da quantidade de escolas existentes à época. Enquanto que

existiam 450 escolas corânicas, além de 50 centros de cultura islâmica para adultos, as escolas

católicas não eram mais do que cem. Havia poucos cristãos não católicos e uma missão

evangélica anglo-americana estabelecida em Bissau. A quase totalidade da população branca

e mestiça da Guiné era constituída por católicos, assim como poucos negros “assimilados”.

Estavam concentrados nas áreas urbanas de Bissau, Cacheu e Bafatá, porém representavam

muito pouco em relação ao total da população guineense da época.

Muitas foram as transformações decorrentes dos processos expansionistas dos

grupos Mandinga e Fula. Dentre elas destacam-se aquelas que impactaram as estruturas

tradicionais alterando, significativamente, os quadros demográficos dos grupos autóctones. Os

deslocamentos decorrentes das guerras e das migrações, forçadas ou espontâneas, bem como

as consequentes mestiçagens, provocaram a quase extinção de alguns grupos, os quais se

integraram a outros mais numerosos. Essa integração ocorreu, por vezes, a partir da iniciativa

dos próprios agrupamentos locais “por se considerarem, assim, em melhor posição no seio de

vizinhos ou de dominadores mais poderosos.”81

. Em outros casos, como dos Futa-Fula e

Fulas-Forro sobre os Beafada, por exemplo, a integração se deu sob a violência de armas ou

estratégia militar. Povos tais como os Arriata, Jabundo, Sacalate e Chão, praticamente

79

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936. Lisboa: Estampa

2001, v.1, p.32, nota 2. 80

GARCIA, Francisco Proença. O Islão, as confrarias e o poder na Guiné (1963-1974). O Islão na África

Subsariana : actas do 6º Colóquio Internacional Estados, Poderes e Identidades na África Subsariana . Porto,

Universidade do Porto. Faculdade de Letras. Centro de Estudos Africanos, 2004, p.100. 81

CARREIRA, António. A etnonímia dos povos de entre o Gâmbia e o estuário do Geba. BCGP, Bissau, v.19,

1964, n.19, p.235.

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desapareceram ao passo que ocorreu o efetivo crescimento dos Balanta-Mané, Caboiana e

Mansoanca.

Considerando as influências mandinga e fula, também é possível caracterizar os

povos da Guiné de acordo com sua maior ou menor islamização. Segundo José Júlio

Gonçalves82

, em meados do século XX, o perfil religioso dos povos guineenses poderia ser

descrito de quatro maneiras: os que praticavam as religiões tradicionais (Felupe, Baiote,

Banhum, Papel, Brame, Balanta - Berasé e Benaga - e Bijagó), outros pouco islamizados

(Manjaco e alguns subgrupos Balanta - Betxá e Cunante), alguns bastante islamizados

(Cassanga, Nalú, Beafada, Bajaranca ou Pajadinca) e os quase totalmente islamizados

(Mandinga, Fula e Sôsso). À exceção dos Bijagó, praticamente isolados no arquipélago, os

demais, enquadrados nos dois primeiros perfis, sempre foram alvo das ações de conversão à

religião muçulmana, porém as tentativas de islamização, bem como de cristianização,

encontraram forte resistência.

2.2.2 O arquipélago

Em 1946, quando o

Boletim Cultural da Guiné Portuguesa

(BCGP) foi criado, o arquipélago

contava com mais de 9 mil habitantes

espalhados “por uma quinzena de ilhas”,

vivendo num moderado isolamento

geográfico. Apesar dessa pulverização de

habitantes, foi a população mais

resistente à colonização portuguesa, a

qual, segundo René Pélissier (2001),

historicamente, sempre iniciava sua

dominação pelas regiões insulares.

Não obstante a escassez de informações é possível afirmar que o povo Bijagó ali

se estabeleceu, pelo menos, desde o século XV, conforme relatos de exploradores e

comerciantes da época. Consta que no século XVI costumavam assaltar o “continente

fronteiro, fazendo presa nos bens e pessoas de Buramos (Brames, Papéis e Manjacos) e

82

GONÇALVES, José Júlio. O Islamismo na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.13, 1958, n.52, p. 412-3.

Arquipélago dos Bijagó - principais ilhas.

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Beafadas. Nas suas correrias chegavam mesmo a Cacheu”83

e promoviam o apresamento de

negros Beafada comercializados pelos habitantes das ilhas de Sogá, Bubaque e Rubane.

Considerados pelos portugueses, em meados do século XIX, como “inimigos de toda a gente

e amigos de ninguém”. (VALDEZ, 1864 apud MOTA, 1947, Prefácio, p.24)84

, os Bijagó

demonstravam, dessa maneira, sua preponderância no arquipélago e resistência à colonização.

A maioria dos habitantes das ilhas considera-se aparentada dos Nalu, Beafada,

Felupe e Papel. O povoamento pode ter ocorrido em diferentes épocas: algumas das ilhas, tais

como Enu, Rubane, João Vieira, por exemplo, só são habitadas de forma sazonal, ou seja, de

acordo com os períodos de semeadura e colheita. Outras se destinam a práticas religiosas e

existem, em alguns casos, restrições sobre a permanência de vida humana.

Há ilheus e/ou parte de ilhas onde não é permitido ter relações sexuais, caso da ilha

de Cute, do ilheu de Manassa, da ilha de Poilão, da Ponta de Amessoo na ilha de

Onhucomo, das ilhas de Papagaio e Maramba, etc. Há outras em que não pode haver

derramamento nem de sangue humano nem de animal, por exemplo, no ilhéu de

Quai e na ilha de Angurrna, Há ainda algumas que são vedadas às pessoas não

iniciadas, como é o caso dos ilhéus de Amepata e Ebenuga. Na ilha de Rubane, onde

actualmente foram construídos dois acampamentos turísticos, não pode haver

moradias bijagós permanentes. Os mortos não podem aqui ser enterrados. 85

Apesar da presença de outros povos, estes se encontravam de tal forma espalhados

e em quantidade reduzida de forma a não influenciar culturalmente o meio bijagó. De acordo

com o recenseamento realizado em 1950, as ilhas eram habitadas pelos seguintes grupos:

População do arquipélago dos Bijagó - Censo 195086

Como se pode notar, a presença de islamizados era pequena e havia

predominância de grupos tradicionais além do próprio Bijagó, como o Papel e o Manjaco.

83

MOTA, Avelino Teixeira da. Prefácio. In: LIMA, Augusto J.Santos. Organização Económica e Social dos

Bijagós.Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia, 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série

“Memórias” n.2. No prefácio aqui referido há um excelente levantamento historiográfico feito por Teixeira da

Mota sobre os Bijagó. 84

VALDEZ, Francisco Travassos. África Ocidenta - notícias e considerações. Lisboa: Imp.Nacional, 1864. 85

PEREIRA, Honório; CARDOSO, Filipe. Os Bijagós: Estrutura e Funcionamento do Poder. Dakar:

CODESRIA, 2009, p.14. 86

CARREIRA, António. População autóctone segundo os recenseamentos para fins fiscais. BCGP, Bissau,

v.17, 1962, n. 65, p. 81.

grupos Quantidade

Bijagó 8.252

Papel 470

Manjaco 137

Mandinga 92

Beafada 86

Outros 163

Total 9.200

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Embora o arquipélago possua mais de 80 ilhas e ilhotas, o recenseamento apurou que apenas

16 delas eram habitadas, conforme detalhado na tabela a seguir:

Distribuição da população no arquipélago dos Bijagós, por ilha - Censo 195087

Embora abrigasse, majoritariamente, habitantes Bijagó, não havia homogeneidade

entre as ilhas. Os portugueses observaram que não havia “uma sociedade Bijagó, mas sim

várias sociedades distintas de ilha para ilha, e até de povoação para povoação”.88

Talvez isto

possa ser explicado pelo mito fundador que norteia a existência dos Bijagó, que se considera

descendentes de uma entre quatro gerações dona do chão. Apesar de possíveis

impropriedades decorrentes da tradução para o português, para o povo Bijagó existia um

“criador” e, no início, a ilha de Orango, uma das maiores do arquipélago e primeira a existir,

era o “mundo”. Depois

chegou um homem com a sua mulher Akapakama. Tiveram quatro filhas: Orakuma,

Ominka, Ogubane e Oraga. A seguir vieram os animais e as plantas. Cada uma das

filhas teve várias crianças que, por sua vez, receberam um direito especial do avô.

Orakuma recebeu a terra e fez a primeira estátua do Irã conforme a imagem do

Deus. Ela era responsável pelas cerimónias a realizar na terra. Deu também às suas

irmãs o direito de fazer o Irã. Ominka recebeu o mar e os seus descendentes

ocuparam-se da pesca. Oraga recebeu a natureza com as bolanhas89

e as palmeiras

que a tornaram rica. Ogubane recebeu o poder da chuva, do vento e o controle do

tempo da chuva. As quatro faziam seu trabalho; cada uma da sua maneira. Elas eram

diferentes e ao mesmo tempo iguais. 90

87

CARREIRA, António. População autóctone segundo os recenseamentos para fins fiscais. BCGP, Bissau,

v.17, 1962, n. 65, p. 74. 88

MOTA, Avelino Teixeira da. Prefácio. In: LIMA, Augusto José Santos. Organização Económica e Social

dos Bijagós.Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia, 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série

“Memórias” n.2, p.44. 89

Bolanhas são terrenos baixos, alagados ou alagáveis sazonalmente por água dos rios e chuvas, ou por água

salgada. Os povos da Guiné utilizam as bolanhas para o cultivo do arroz. 90

KIPP, Eva. A arte da Guiné-Bissau. Bissau: Editora Gráfica Nimba, 1990, p.6.

Ilhas nº de povoados população

Canhabaque 13 762

Bubaque e Rubane 13 1.060

Sogá 5 375

Formosa 17 1.371

Ponta 4 508

Caravela 12 738

Caraxe e Unhocomo 9 555

Uracane e Eguba 6 594

Uno 30 1.362

Orango, Canogo, Orangozinho e Meneque 31 1.875

Totais 140 9.200

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As quatro irmãs equiparam-se em importância, desempenham funções diferentes,

porém complementares. Nenhuma recebeu um privilégio especial, a não ser tornar-se dona do

chão em que primeiro teria chegado. Fica evidenciado que as incumbências atribuídas a cada

uma delas estavam estreitamente ligadas à natureza e à forma como o povo Bijagó com ela se

relacionava.

Arquipélago dos Bijagó e as gerações donas do chão (elaborado por Augusto José Santos Lima, 1947)

Todos os cargos de autoridade, como os reis, chefes, sacerdotes e sacerdotisas, por

exemplo, eram sempre ocupados por membros da geração dona do chão. A coexistência de

membros de gerações diferentes numa mesma ilha, não motivava desentendimentos, pois

sempre era respeitada a prevalência da geração primeira ocupante. Dessa forma, não havia

restrições quanto ao deslocamento e fixação de homens ou mulheres provenientes de outras

gerações.

Nas ilhas de Bubaque e Rubane, por exemplo, havia 12 povoados em 1947, todos

submetidos à autoridade do rei Djam-Djam. Como seus antecessores, ele chegou ao poder

pela hereditariedade, visto pertencer à primeira geração ocupante - Orácuma. Em Bubaque

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conviviam todas as demais gerações, em povoados chefiados por um representante da geração

correspondente, como mostra o esquema elaborado por Augusto Santos Lima91

:

BUBAQUE/RUBANE (12 - tabancas/ povoados)

Djam-Djam - Rei de Bubaque/Rubane.

“ Na cabeça, a cartola, que só ele pode usar no seu reino; no braço

esquerdo uma espécie de abanador, na mão um pequeno bastão,

símbolo do seu poder, rematado por 3 hastes de gazela”. 93

Os “chefados da realeza” eram atribuídos pelo Rei aos seus “filhos e parentes

mais próximos. Tais filhos e parentes desse Rei eram de ‘Gerações’ diferentes, conforme as

das suas mães.”94

Essa forma de distribuição do poder, porém, não era comum a todo o

arquipélago. Além de Bubaque e Rubane era apenas observada nas ilhas Roxa e Orango

Grande, porém nestas a geração reinante era Oraga.

Na mesma época havia os reinos de Canhabaque, com 20 povoados, liderado pelo

rei Joaquim da geração Oraga e o reino de Orango, com 14 povoados, representado pelo rei

Papo-Seco, também da geração Oraga. Nas demais ilhas (Sogá, Orangozinho, Canogo,

91

LIMA, Augusto José Santos. Organização Económica e Social dos Bijagós. Lisboa: Soc.Industrial de

Tipografia Ltda., 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série “Memórias”, n. 2, p.59. 92

Além destas povoações havia também Etimbato e Ameta, criadas a partir da instalação da Companhia

Agrícola Fabril, que lá acomodou seus “funcionários” oriundos, na maioria, dos vários grupos da região

continental. 93

Ibid., encarte. 94

Ibid., p.54.

autoridade tabancas92

geração

Rei:

Djam-Djam

Bijante, Bijana, Agumpa, Brusse (Bubaque)

Ilha de Rubane

Orácuma

Chefados da realeza Ancadona, Ancamona, Ancabaxe Oraga

Chefados da realeza Charo, Ambanhe Ogubane

Chefados da realeza Anhimango Ominca

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Meneque, Formosa com Ponta e Maio, Uno, Uracane, Caravela, Carache, Unhocomo) não

havia reis, mas figuras de autoridade oriundas da geração dona do chão respectivo.95

Apesar de as ilhas de Bolama e das Galinhas pertencerem ao arquipélago, sempre

tiveram movimentos diferentes das demais. Na década de 30 do século XIX, por exemplo,

serviram de ponto de partida para um tráfico comandado por “armadores e comerciantes cabo-

verdianos metidos de permeio, servindo-se a fundo das suas redes de parentes ou aliados

continentais [...] com o conhecimento, como é evidente, das autoridades portuguesas,

impotentes ou cúmplices.”96

Uma figura singular dessa época foi Ña97

Aurélia Correia, bijagó

da Ilha de Orango, foi uma hábil comerciante da Guiné entre os anos 1820 e 1840. Dona de

embarcações com muitos marinheiros e artesãos experientes, possuía muitos escravos, era

influente junto aos portugueses e figura eminente na hierarquia de sua geração. Casou-se com

capitão-mor da Guiné, o também comerciante cabo-verdiano Caetano José Nozolini. Em

virtude dessa união Nozolini gozava de prestígio entre os Bijagó, pois associou suas

habilidades de liderança ao talento comercial de Mãe Aurélia para, juntos, dominarem o

comércio de escravos e gêneros alimentícios ao longo dos rios Geba e Grande, além das ilhas

vizinhas.98

Em 1856, Honório Pereira Barreto, na qualidade de administrador da Guiné,

visitou pela primeira vez a ilha de Canhabaque, provavelmente temendo que um régulo

hasteasse uma bandeira estrangeira naquelas paragens99

. Na oportunidade ele firmou um

tratado de amizade e cessão de território com as autoridades locais, pois a metrópole dependia

de acordos dessa natureza para poder exercer algum controle sobre aquela região. Além das

questões locais, os portugueses conviveram com as constantes incursões francesas e inglesas

sobre a costa ocidental africana, praticamente desguarnecida100

. Canhabaque, entretanto, foi o

maior foco de resistência tanto em relação aos franceses, que partiam do Senegal em suas

95

Segundo Santos Lima (1947, p.67), a diferença entre essas “chefias” e os reis é que “se não vai buscar o

parente mais próximo e mais velho para o substituir, mas se faz a nomeação por escolha dos Grandes”. 96

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936. Lisboa: Estampa,

v.1, 2001, p.42-3. 97

Ña , senhora em crioulo da Guiné. 98

Sobre Mãe Aurélia e Nozolini ver: HAVIK, Philp J. Silences and soundbytes: The gendered dynamics of

trade and brokerage in the pre-colonial Guinea-Bissau region. Zugl.: Leiden, Univ., Diss, 2004. 99

Em 28/11/1854 os franceses assinaram um tratado de paz e amizade com Canhabaque e, no ano seguinte, o

governador da Gâmbia, colônia inglesa, foi à ilha com o mesmo intuito encontrando ali uma comunidade de

gambianos e um comércio expressivo com Inglaterra. A Viagem de Honório Pereira Barreto ocorreu entre 11 e

27 de janeiro de 1856. 100

Segundo René Pélissier (2001), em meados do séc. XIX encontravam-se estabelecidos na Guiné 7 oficiais e

149 soldados. A ilha de Bolama contava com apenas 4 soldados e o maior contingente estava em Cacheu: 2

oficiais e 43 soldados.

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investidas pelo arquipélago, quanto aos portugueses, os quais só alcançaram algum resultado -

se é que assim se pode considerar - nas primeiras décadas do século XX.

Do arquipélago sempre surgiam empecilhos à pretendida unidade administrativa e

política da Guiné, pois a maioria da população relutou “ao convívio do colono, (foi)

refractária à civilização e preguiçosamente rebelde à auto-integração na vida progressiva da

Colónia”101

. A incômoda “preguiça rebelde”, para além da adjetivação eurocêntrica, revela

um posicionamento eloquente por parte dos insulares, pois apesar das ações “civilizatórias”

propostas pelos portugueses, ao longo do período colonial, mantiveram firmemente sua forma

de viver. Por essa razão, assim como os Felupe e Papel, por exemplo, causaram espanto e

indignação àqueles que pretendiam, através do discurso e da cobrança de impostos, subjugá-

los e suprimir sua cultura.

Durante as ações “pacificadoras”, o arquipélago dos Bijagó, rico em palmeiras de

onde obter os produtos comercialmente viáveis, foi bastante visado, especialmente no início

do século XX. Nas ilhas de Canhabaque e Formosa os habitantes relutavam, principalmente,

quanto ao pagamento de impostos e quando o faziam era de forma irregular. As autoridades

da ilha de Canhabaque recebiam refugiados de outras ilhas que ali encontravam um modo de

escapar ao pagamento e ao trabalho na ilha de Bubaque, por exemplo. Era uma estratégia de

resistência que funcionava contra o arbítrio da cobrança, pois, afinal, estavam sendo cobrados

por algo que lhes pertencia, e contra o trabalho compulsório, na verdade, um “novo” tipo de

escravização: a colonial.

A resistência dos ilheus de Canhabaque

é um símbolo: o último bastião, na África Ocidental “lusófona”, onde o Africano

não quer conhecer o seu “colonizador”[...]. Fisicamente, demograficamente e

financeiramente, Canhabaque é uma insignificância inteiramente suportável para as

autoridades coloniais, pois que limitaram, há algum tempo, a sua agressividade, à

pilhagem de algumas pirogas naufragadas ou extraviadas entre os bancos de areia da

ilha[...]. O aborrecimento para os Portugueses [...] é que esta poeira de

independência segredista tem uma individualidade demasiado marcada, num

arquipélago que muito tem feito falar de si.102

O papel dos feiticeiros103

de Canhabaque foi bastante significativo nas ações de

resistência, notadamente durante a campanha militar dos anos 1935-36 comandada pelo

101

MOREIRA, José Mendes. Breve Ensaio Etnográfico Acerca dos Bijagós. BCGP, Bissau, v.1, 1946, n. 1,

p.70. (meu grifo) 102

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

v.2, 1997, p.251-2. 103

É preciso esclarecer que o termo feiticeiro/feitiçaria não guarda relação com a conotação ocidental de

maldade ou pecado. Segundo James Sweet (2007, p.191), os feiticeiros africanos são dotados de poderes, entre

outros de adivinhar, curar, ou seja, buscam dominar as forças da natureza com o intuito de restaurar o equilíbrio

dos indivíduos e das comunidades. Ver capítulo 3.

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107

governador Carvalho Viegas104

. Mais eficazes do que as armas, os feiticeiros envenenavam as

fontes de água, com exceção daquelas fortemente guardadas dos povoados de Bine e Inorei.

Este artifício movimentou tropas de outras regiões e levou à evacuação de velhos, mulheres e

crianças para as ilhas de Orango, Orangozinho e Enu.

Nenhuma tática militar estava preparada para fazer frente às estratégias utilizadas

pelos ilheus. Tampouco era imaginável que os Bijagó de Canhabaque suportariam, com

tranquilidade, qualquer estado de sítio adotado, uma vez que era no meio da mata, escondidos

e à espreita, que provinham o sustento e articulavam ações contra a presença portuguesa.

Aplicavam, a partir dessa trincheira natural, verdadeiras táticas de guerrilha minando,

constantemente, o pequeno contingente do exército colonial. Quando as disputas tornaram-se

mais aguda, o auxílio dos Fula, Mandinga e Beafada, grupos islamizados que habitavam a

hinterlândia guineense, somou forças às portuguesas em troca de benefícios comerciais105

.

Curioso notar que esse auxílio só chegou ao final do Ramadã de 1936106

, apesar da urgência

da situação. O próprio governador, fato inédito até então, tomou a frente das ações militares e

comandou um grupo paradoxalmente formado por brancos e mestiços católicos e negros

muçulmanos.

Caracteristicamente um povo das savanas, os Fula, não se sentiam à vontade em

meio à floresta. À espreita, os ilhéus de Canhabaque impingiram muitas perdas, motivo pelo

qual todo o contingente disponível na Guiné foi convocado para contra-atacar. Foi

estabelecido um estado de sítio que só se extinguiu em maio de 1936. Porém, “conhecendo as

suas florestas, árvore por árvore, os Canhabaques reconstituíram as suas aldeias escondidas e

(mantiveram) as ligações com as outras ilhas e o continente. Enfim, (viviam) um pouco pior

que antes, mas inteiramente livres”.107

Durante todo o primeiro período republicano português (1910-1926) até a

instalação da ditadura do Estado Novo, em 1933, a Guiné, e em especial a ilha de

Canhabaque, sempre foi um palco de tensões. Entre períodos de ofensivas armadas e paz

efêmera, os portugueses não conseguiram fazer, nem à custa das armas, com que os insulares

104

Nascido em Lisboa, no ano de 1887, Luís António de Carvalho Viegas foi governador da Guiné de 1933 a

1941. 105

Por conta da absoluta falta de recursos, os “auxiliares” recebiam apenas alimentação em troca de sua

participação nas ações contra os Bijagó, porém os benefícios comerciais compensavam a falta de pagamento. 106

O Ramadã é um feriado não fixo que se movimenta a cada ano e ocorre no nono mês do calendário

muçulmano. Acredita-se que no mês do Ramadã o Alcorão sagrado foi enviado do céu como uma orientação aos

homens e como um meio de sua salvação. É durante este mês que os muçulmanos jejuam. Este mês é chamado

de Jejum do Ramadã e dura um mês inteiro. Cf. http://www.business-with-turkey.com. 107

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

v.2, 1997, p.259.

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108

trabalhassem de acordo com suas expectativas, tanto na extração do óleo de palma quanto na

recolha do coco108

. Além disso, nunca conseguiram arrecadar os impostos com a regularidade

pretendida e no montante necessário, mesmo após os recenseamentos realizados para maior

controle da arrecadação fiscal.

Nessa medida, o modo particular de viver do Bijagó era considerado uma afronta

à “missão civilizadora” portuguesa, pois estava longe de contribuir com as necessidades

econômico-financeiras de uma metrópole carente de recursos e sem forças ante as demais

potências europeias. A recusa ao trabalho, em particular, era motivo de censura, mas, para

além da questão econômica, denotava um abismo cultural difícil de transpor, notadamente

como explicitado num dos primeiros artigos publicados no Boletim Cultural. Num pequeno

trecho estabelece-se, nitidamente, o confronto entre a expansão europeia e povos alheios ao

seu universo mercadológico:

Rodeado por uma natureza generosamente pródiga que nada lhe regateia nem lhe

exige esforços musculares violentos, mas, apenas o natural esfôrço de estender a

mão ou dar alguns passos para obter o que lhe é preciso para o seu sustento e

satisfação das suas necessidades, não admira que o Bijagó seja a expressão

material autêntica da “Lei do menor esfôrço”.

É a personificação viva da preguiça e da indolência, resumindo-se a sua actividade

ao exercício da pesca, apanha do coconote e à sementeira do arroz necessário ao

seu sustento e ao pagamento dos impostos políticos devidos aos nossos direitos de

soberania. Só o indispensável para não morrer de fome. Trabalho organizado, luta

pela vida, propensão ao esfôrço produtivo - condição do melhoramento da sua vida

material - tudo isso desconhece o Bijagó, ou melhor, nada disso lhe interessa [...]

Tudo quanto se tem tentado para criar necessidades ao Bijagó, insuflar-lhe o

instituto do progresso, interessá-lo na melhoria do seu nível de vida, tudo

absolutamente tem esbarrado de contra à sua indiferença, à resistência passiva ao

trabalho, à sua predilecção pela vida livre em plena natureza, na espessura dos

seus palmares. E quanta vez não tem ele defendido de armas na mão esse direito de

viver livre, ocioso e despreocupado?! 109

Muitos perderam a vida durante os últimos tempos da “pacificação”: foram dois

meses e meio de combates e 14 de negociações para que os portugueses considerassem a

Guiné sob controle. Em janeiro de 1936 vários dignitários de Canhabaque foram mortos

durante negociações estabelecidas com certo tenente Luis das Dôres Santos.

Segundo René Pelissier (1997, p.276), os povos da Guiné não se uniram na

resistência ao colonialismo português, pois nenhum “chefe ou notável africano, na Guiné,

(falou) em nome de outra coisa que não (fosse) dos interesses do seu clã, da sua etnia, da sua

classe ou da sua religião (Islão).” Ao contrário de interesses individualizantes que esse autor

108

O arquipélago dos Bijagó é rico em palmeiras de onde se obtém produtos considerados economicamente

viáveis, tais como o óleo de palma e o coconote. 109

MOREIRA, José Mendes. Breve ensaio etnográfico acerca dos Bijagós. BCGP, Bissau, v.1, 1946, n.1-4,

p.74.

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109

pode sugerir, tais posicionamentos denotam, mais uma vez, a distância dos povos locais em

relação ao mundo colonial europeu.

Entretanto, a maioria deles lutou com outras armas, tais como aquelas descritas

por James Sweet (2007) ao estudar os escravos centro-africanos no Brasil do século XVII.

Segundo ele, os africanos usaram “as armas mais poderosas que tinham ao seu dispor - não a

força física e a coragem, mas a religião e a espiritualidade.”110

Nessa medida podemos afirmar

que a Guiné esteve longe de ser “pacificada”.

2.3 A política colonial: os povos da Guiné sob a “tutela” do Estado moderno

ao chegar à Guiné tudo ruía ao redor de mim. Era uma impressão em parte exacta

- porque os prédios caíam ou exigiam demolição: as secretarias de Canchungo e S.

Domingos, a igreja de Farim, a ponte de Bubaque etc., etc [...] um grande número

de obras inacabadas, umas pela sequência natural dos trabalhos e pelas

dificuldades da guerra, outras abandonadas, não se sabe porquê.

Sarmento Rodrigues, governador da Guiné, 1946111

No discurso proferido, em novembro de 1946, durante a primeira reunião com os

funcionários administrativos da colônia, o governador Sarmento Rodrigues descreveu o

estado de abandono que encontrou quando chegou à colônia da Guiné. Os resquícios das lutas

travadas durante a “pacificação” e os sucessivos governos descoordenados e sem recursos,

faziam da colônia um lugar difícil de viver: para os portugueses. Não havia água, luz elétrica

ou comunicação entre os postos da administração espalhados pelo território colonial,

comodidades do mundo europeu, porém dispensáveis pelos povos autóctones.

Por conta da celebração do V Centenário da “descoberta” da Guiné, nesse mesmo

ano, multiplicaram-se obras e benfeitorias pela colônia. Sarmento Rodrigues tinha, entre

outras, a missão de tornar aquele espaço colonial algo semelhante ao seu mundo, com uma

infraestrutura que pudesse lembrar sua concepção de “civilização”. Além disso, deveria

transformar a colônia da Guiné de forma a rentabilizar sua produção, com ganhos financeiros

que somassem aos demais auferidos pelas outras colônias do império, uma vez que a

metrópole pouco contribuía para sua própria sobrevivência. Em grande medida, a liberalidade

existente na colônia, por conta, principalmente, do abandono à qual esteve relegada por

séculos, estava com seus dias contados.

110

SWEET, James. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007, p.21. 111

RODRIGUES, Manuel M. Sarmento. Discurso de abertura da 1ª Reunião da 2ª Conferência de

Administradores do ano de 1946. BCGP, Crónica da Colónia, Bissau, v.2, 1947, n.5, p 211-3.

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110

Por essas razões, o combate à “vadiagem” e a “moralização dos costumes dos

indígenas” foram fruto da ação de um governo que se configurava firme e ao mesmo tempo

paternal. A autoridade passou a ser exercida, principalmente, em relação à produção e à mão

de obra local. As negociações diretas com os comerciantes, inclusive estrangeiros, foram

proibidas e a mão de obra disponível foi, de maneira geral, direcionada para o projeto de

“modernização” da Guiné e para o aumento das áreas de cultivo. A relação com os povos da

colônia mudou de tom, pois passou a ser necessário aproximar-se deles, conhecê-los, registrá-

los, distanciá-los de suas práticas ancestrais para torná-los “cidadãos” participantes do esforço

conjunto (dos povos colonizados) para o “progresso” do império.

Durante séculos a Guiné Portuguesa viveu sem o controle efetivo da metrópole e

os poucos representantes que ali se estabeleciam enredavam-se no cotidiano, pouco

interferindo, ou com condições de interferir, a bem da verdade, nas dinâmicas locais. Em

1844, o conselheiro real Lopes de Lima112

relatou que havia, junto aos aglomerados urbanos,

três grupos distintos: negociantes brancos, pretos e mulatos que viviam à europeia, moldados,

entretanto, às exigências das populações nativas; soldados mal nutridos, sem pagamento,

alguns doentes e outros indisciplinados, na maioria formada por um contingente “descartável”

de Cabo Verde, e grumetes, negros cristianizados estabelecidos junto às fortalezas e sujeitos

às autoridades coloniais, porém em constantes escaramuças com elas. Os grumetes não

encontravam repressão às suas insurgências, em razão da fragilidade da autoridade colonial, e

sempre que necessário contavam com o apoio dos negros “do mato”.

Enquanto a Guiné era governada a partir de Cabo Verde e, portanto, sem

autonomia administrativa, o que ocorreu em 1879, recebia de lá, e não da metrópole, pessoal

para atuar na administração e nas forças armadas. Em geral, os governadores da Guiné de

Cabo Verde113

livravam-se de funcionários indesejáveis e de condenados por delitos diversos,

despachando-os para o continente. Nessa época, o poder na Guiné era compartilhado entre

traficantes, mestiços ou negros “aculturados”, oriundos, em grande maioria, de Cabo Verde, e

“acessoriamente de famílias alargadas114

crioulas locais, tendo os mais destacados deles

tecido redes de aliança e de clientelas comerciais, e mesmo políticas com Cabo Verde e os

povos locais.”115

Havia, portanto, uma dinâmica própria e funcional, que atendia a vários

112

Lopes de Lima (c.1797-1852) foi governador da Índia e do Timor portugueses; viveu por alguns meses na

colônia da Guiné. 113

A designação Guiné de Cabo Verde é utilizada, por alguns autores, para distinguir o período anterior à

autonomia administrativa ocorrida em 1879. 114

Sobre a concepção das famílias alargadas, ver cap.3. 115

CARDOSO, Carlos. A formação da elite política na Guiné-Bissau. Lisboa: ISCTE, Centro de Estudos

Africanos, 2002, p.12.

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111

interesses particulares. Fora das áreas fortificadas, os povos autóctones não reconheciam a

autoridade portuguesa, assim como outras potências imperialistas ignoravam a “posse”

lusitana.

De seu lado, os luso-africanos nascidos na Guiné tinham pouco ou quase nenhuma

influência. Exceção era feita em relação a algumas famílias comercialmente influentes, como

a de Honório Pereira Barreto. Nascido na Guiné em 1813 era filho de Rosa Alvarenga,

nascida na Guiné, de influente família da região de Ziguinchor, e do cabo-verdiano João

Pereira Barreto.

Embora tratado por um cronista como “preto de raça fina”, não era Honório de todo

preto mas mulato escuro. Seu pai fora o sargento-mor de Cachéu. Sua mãe uma

Dona Rosa de Carvalho Alvarenga, senhora de cor, famosa pelo seu prestígio tanto

entre brancos como entre africanos. [...] O filho, mandaram-no os Alvarengas

estudar em colégio de Portugal, de onde voltou rapaz em 1829, por morte do pai,

para dirigir a casa comercial da família. Começou então Honório a desenvolver uma

ação pró-lusitana que cedo o colocou entre os indivíduos que mais concorreram para

a resistência portuguesa à usurpação de terras de Portugal por franceses e ingleses.116

Após a separação administrativa de Cabo Verde, Bolama foi escolhida como a

primeira capital. Uma escolha um tanto arriscada, considerando-se tratar de uma das ilhas,

embora próxima ao continente, dos Bijagó, povo dos mais resistentes à presença colonial.

Assim como eles, o povo Papel resistia tenazmente, recusava-se a pagar um imposto que não

lhe dizia respeito, mesmo após os portugueses, acompanhados de inéditos reforços117

mandados da metrópole, terem arrasado os povoados de Intim e Bandim, este último

“santuário do grande sacerdote de todos os Papéis.”118

Segundo Pélissier, com a instauração da República, em 1910, emerge na Guiné,

em Bissau e Bolama, uma pequena elite de convicções republicanas. Insatisfeita, esperando

que o novo regime oferecesse certa ascensão social, essa elite agregava, além de poucos luso-

guineenses, alguns egressos de São Tome e Cabo Verde, majoritariamente. Todos apostaram

“na República e, para o fazerem, procurarão apoiar-se numa camada popular que conhecem

bem, a dos grumetes.”119

Os luso-guineenses e os cabo-verdianos, cada vez mais numerosos e em grande

maioria letrados, desempenharam um papel econômico e político significativo, mesmo após a

presença mais efetiva de colonos vindos da metrópole. Segundo Carlos Cardoso (2002, p.16),

116

FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. Rio de Janeiro: Topbooks: UniverCidade, 2001, p.225. 117

Junto ao contingente da Guiné, somaram-se 3 companhias: uma de Angola, outra de Cabo Verde e uma

companhia de fuzileiros navais de Lisboa. 118

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

v.2, 1997, p.36. 119

Ibid., p. 129.

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112

A consolidação da estrutura administrativa colonial de 1920 a 1950 reforçou, assim,

a proeminência política de um pequeno número de africanos relativamente

privilegiados. Esta elite era largamente constituída por caboverdianos obrigados a

emigrar de Cabo Verde para a Guiné, descendentes destes e mestiços e,

progressivamente, passou a envolver alguns destacados elementos da comunidade

local. Assim, alguns guineenses de côr escura também faziam parte desta elite. O

facto de o colonialismo lhes ter concedido determinados privilégios permitiu-lhes

beneficiar de vantagens ou regalias em termos de educação, fluência na língua

portuguesa e familiarização com vários aspectos da cultura ocidental. Estes factores

permitiram, por sua vez, que os membros desta elite pudessem ser designados como

funcionários da administração colonial.

Com vistas a minimizar os efeitos negativos da política colonial metropolitana, ou

melhor, da ausência dela, a elite crioula fundou a Liga Guineense120

(1910) e o Centro Escolar

Republicano (1911). Entre seus objetivos, cabia-lhes “promover a instrução de seus membros

e familiares e trabalhar para o desenvolvimento da Guiné e seus associados.”121

Como a

alfabetização e o letramento eram imprescindíveis, dentro da lógica civilizacional europeia, e

a oferta de escolas, por parte do governo português, era precária, o investimento nesse sentido

partiu dos maiores interessados em “mudar de status” dentro da incipiente sociedade colonial.

Aos povos tradicionais a alfabetização era oferecida pelas escolas religiosas,

porém há que se ter em conta que a maioria não via sentido nesse aprendizado. Constituídos,

majoritariamente, dentro da tradição oral, com sua forma particular de transmissão de

conhecimento, ler e escrever era desprovido de significado para a maioria dos povos

guineenses e, portanto, dispensável. A imposição cultural do “civilizador” português

encontrava na oralidade uma barreira difícil de transpor. Pode-se entender, a partir desse

confronto, que a recusa ao letramento e a manutenção dos falares locais, bem como a

existência de uma língua crioula, denotaram formas de resistência dos povos autóctones, para

além do uso das armas.

Em relação aos grumetes, estabelecidos no entorno das praças122

, a situação era

semelhante, pois “falavam mal o português porque [...] não lhes era ensinado nas poucas e

precaríssimas escolas da colônia.”123

Também neste caso o colonizador português não se

mostrou capacitado para a tarefa e, assim, o débil processo “civilizador” lusitano produziu um

cenário de contrastes na colônia da Guiné, onde conviviam

120

Segundo Carlos Cardoso (2004), a Liga Guineense era composta, basicamente, por pequenos comerciantes,

artífices e trabalhadores marítimos, na maioria residente em Bissau e Bolama. 121

TRAJANO FILHO, Wilson. Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na metrópole e nas colônias.

Série Antropologia. Brasília, n. 339, 2003a, p.22. 122

Segundo Trajano Filho (2004a), praça e um termo crioulo que designa os centros urbanos em geral e, no

interior deles, a parte mais urbanizada, o centro. 123

Id. A constituição de um olhar fragilizado: notas sobre o colonialismo português em África. In:

CARVALHO, Clara; CABRAL, João de Pina (Orgs.). A persistência da História: Passado e contemporaneidade

em África. Lisboa: ICS, 2004b, p.44.

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113

pobres, remediados e negociantes; letrados e analfabetos, funcionários coloniais com

habilitações literárias e trabalhadores do cais. Pequenos e respeitosos, todos

esperavam do governo uma proteção para as mazelas individuais e coletivas. (O

governo colonial) também se considerava frágil perante as colônias vizinhas das

outras potências europeias e perante a alta administração de Lisboa, que se

considerava apequenada frente à colossal força das grandes nações do norte. 124

Em torno da Liga Guineense e do Centro Escolar congregava-se uma parcela da

população que, simpatizante dos preceitos republicanos, defendia maior autonomia na Guiné.

Procurava, também, afirmar sua identidade portuguesa e, por conta disso, indispunha-se com

as populações autóctones. Curiosamente, crioulos e grumetes da Liga Guineense, unidos por

seus interesses, protagonizaram ações inéditas. Uma delas, articulada com o povo Papel, um

dos mais transgressores ao colonialismo, apoiou a resistência deste contra a ocupação da Ilha

de Bissau. A resistência ao “pacificador” Teixeira Pinto, considerado um aficionado por

soluções através das armas, foi fortemente rechaçada e, ao final, o povo Papel submeteu-se e

os grumetes dispersaram-se pelas regiões vizinhas. “Lá onde duas expedições europeias

tinham fracassado, este obscuro capitão, os seus Cuanhamas deportados em 1912, de Angola,

por dez anos, e os seus auxiliares nortistas, recitando o Corão125

, fizeram com que a ilha de

Bissau entrasse definitivamente na Guiné.”126

Sobre o episódio, Teixeira Pinto escreveu:

Todos os Grumetes, mesmo os melhores colocados, apoiados pela Liga Guineense,

empregaram todas as suas influências e conjugaram todos os seus esforços para

impedir a guerra.[...] Dizia-se que eu que incitava a guerra. Mandaram um

comissionado a Lisboa para enganar o Ministro, para lhe arrancar ordem para que a

campanha se não fizesse, alegando que os pobrezinhos não tinham armas e eram

muito obedientes. Digo enganar, porque a presente campanha provou que os Papéis

e Grumetes estavam muito bem armados e municiados. (PINTO, 1936 apud

SANTOS, 2011)127

Desse massacre poucos números foram divulgados. O régulo Cassande de Biombo informou

ter perdido cerca de 1300 homens. Também “houve massacres de não combatentes papéis,

pelos auxiliares. Durante a campanha e mesmo depois. Nem uma palavra se (disse) sobre os

grumetes mortos.”128

A associação da Liga Guineense à resistência do povo Papel na ilha de Bissau, fez

com que ela tivesse vida curta. Foi extinta em 1915 quando governador José Oliveira Duque

chegou “à conclusão de que a sua actividade se tornara nociva para os interesses da colónia

124

TRAJANO FILHO, Wilson. Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na metrópole e nas colônias.

Série Antropologia. Brasília, n. 339, 2003a, p.21. 125

A referência ao Corão explica-se pela colaboração prestada pelo povo islamizado Fula. 126

PÉLISSIER, René. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia 1841 -1936. Lisboa: Estampa,

v.2, 1997, p.178. 127

PINTO, João Teixeira. A ocupação militar da Guiné. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca-Agência

Geral das Colónias, 1936. A campanha de Teixeira Pinto contra o grupo Papel e os grumetes ocorreu entre 29/5 e

17/8/ 1915. 128

PÉLISSIER, op.cit., p.177, meu grifo.

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114

sendo grande responsável pela insubordinação dos grumetes e Papéis.”129

Causa estranheza,

conforme apontou René Pélissier (1997, p.178), a mudança de norte da Liga Guineense, que,

em 1911, oferecia seus serviços para “punir o gentio e em 1915 era acusada de conluio com o

inimigo”. O que pode ter levado a tal mudança?

A população crioula da Guiné sempre esteve entre o universo cultural europeu e o

africano e não elaborou um perfil próprio. Na verdade, incorporou práticas e valores de

ambos, construindo um discurso externo a ela, permeado por uma imagem à maneira lusitana,

esta caracterizada pela humildade, pessimismo e fraqueza. Talvez isto possa explicar a falta

de coesão desse grupo em torno de suas próprias necessidades. Essa fraqueza, importada da

metrópole, não permitiu que fosse levado adiante um projeto, considerado por alguns autores,

como o embrião do nacionalismo guineense.

No início do século XX, grande parte das transações comerciais, em Bissau e

Cacheu, eram restritas às “casas comerciais francesas que abasteciam, financiavam e

mantinham sob extrema dependência os pequenos comerciantes portugueses e luso-

africanos.”130

Por conta dessa concorrência desigual, estabelecida por séculos pelos franceses

e também por ingleses, as iniciativas locais sucumbiam. A situação tornou-se ainda mais

difícil quando da onda de migração libanesa.131

A elite comercial crioula, então, pressionava

os governadores no intuito de “recuperar” a colônia da mão dos estrangeiros, reivindicando

ações efetivas no sentido de levantar o prestígio da nacionalidade portuguesa. É importante

observar que, mesmo sendo considerados, na metrópole, cidadãos de segunda linha em razão

de sua cor, essa parcela da população da Guiné sentia-se e designava-se portuguesa.

Atentando para esses reclamos e, principalmente, para o domínio estrangeiro na

região, o governador da Guiné, Velez Caroço132

, redigiu seu Relatório Anual -1921/1922 nos

seguintes termos:

É realmente deprimente para nós portugueses que há séculos regamos com o nosso

sangue a Guiné, que, desembarcando aqui, tenhamos a impressão de nos

encontrarmos em território estrangeiro [...] É preciso que a metrópole saiba [...] que

se amanhã esta colónia deixasse por qualquer motivo de estar debaixo do domínio

português, em meia dúzia de anos se apagariam os vestígios de nossa passagem por

aqui, pois nem a nossa língua por cá seria conhecida. Hoje é vulgar ouvir na Guiné,

129

CARDOSO, Carlos. Formação e Recomposição da Elite Política Moderna na Guiné-Bissau: continuidades e

rupturas (1910-1999). In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 8., 2004,

Coimbra, Anais, p.6. 130

TRAJANO FILHO, Wilson. Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na metrópole e nas colônias.

Série Antropologia. Brasília, n. 339, 2003a, p.16. 131

De acordo com René Pélissier (1997, p.250), dos estabelecimentos comerciais existentes na Guiné ao final da

década de 1920, 549 pertenciam a portugueses e colonos, 16 a alemães, 26 a franceses e 172 a libaneses. Em

1933, do total da população branca, 1/3 era composta por sírio-libaneses. 132

Jorge Frederico Velez Caroço foi governador da Guiné de 1921 a 1926.

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115

entre o elemento caboverdeano, que nós somos estrangeiros; o que seria amanhã?

(CAROÇO, apud PÉLISSIER, 1997, p.122) 133

O que Velez Caroço apontou era reflexo da política adotada para o ultramar durante o período

da primeira experiência republicana em Portugal. A descentralização administrativa e a maior

autonomia aos governos locais, a maioria deles encabeçados por militares despreparados para

a função, quase provocou a perda da Guiné. Por outro lado, o conteúdo do relatório também

dá pistas de que os estrangeiros não afrontavam os povos guineenses e suas culturas, com eles

tendo travado parcerias comerciais por séculos.

Outras tensões rodeavam as praças da Guiné. Enquanto esteve vinculada a Cabo

Verde, o fluxo de pessoas entre as duas regiões era frequente, porém, após a Conferência de

Berlim e a consequente obrigatoriedade de povoar a Guiné, os cabo-verdianos foram

incentivados a emigrar. O relacionamento entre os egressos de Cabo Verde e os colonos

portugueses tornou-se conflituoso, pois estes os tinham como usurpadores. Os primeiros, por

vezes mais instruídos, consideravam-se “superiores aos Portugueses e por estes travados por

preconceitos de cor na sua ascensão social.” 134

Essa intelectualidade crioula cabo-verdiana,

dominava os cargos médios da administração colonial e provocava disputas em meio à

sociedade “civilizada”. Embora não tivessem o status de “indígenas”, nunca foram

considerados cidadãos portugueses plenos - afinal, não eram brancos - e, por conta dessa

subalternidade, aproximaram-se dos povos locais, porém estes não viam “com bons olhos a

identificação e, em alguns casos, colaboração que os cabo-verdianos, na verdade, prestaram

ao aparelho administrativo na Guiné.”135

A Carta Constitucional de 1917 reforçou a diferença social, política e jurídica

entre africanos e portugueses. Segundo Marques (2006), o direito da população nativa era

“reconhecido”, não se comparando, no entanto, ao direito do indivíduo metropolitano. Para os

portugueses, a legislação podia ser considerada importante e suficiente, porém, para os povos

guineenses, que não viviam sob leis escritas ou elaboradas em gabinetes, significou o arbítrio

e a interferência em seus modos de vida ancestralmente constituídos.

Na metrópole, militares, antiliberais e opositores ao Partido Democrático

derrubaram o governo. A liberalidade republicana deu lugar ao governo ditatorial suportado

por ideias nacionalistas. A unidade política dos territórios foi restabelecida cessando, dessa

forma, o processo de descentralização iniciado poucos anos antes. Nesse mesmo ano foi

criado o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, que,

133

CAROÇO, Jorge Frederico Velez. Relatório anual do governador da Guiné (1921-1922). Coimbra, 1923. 134

Ibid., p.250. 135

AMADO. Leopoldo. A literatura colonial guineense. Icalp, v.20-21, jul.-out.1990, p.6.

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116

poucos anos depois, se estendeu à Guiné136

. Ao tempo em que se promovia a unidade política,

aprofundavam-se as diferenças e a sociedade guineense foi dividida entre “indígenas” e “não

indígenas”.

O golpe militar de 1926 produziu agitações significativas na metrópole e,

decorrente disso, chegaram à Bolama, capital da Guiné nessa época, os desafetos do novo

regime. Cerca de uma centena de opositores políticos, muitos deles profissionais liberais,

além de 40 ou 50 condenados comuns, estes, destinados a trabalhos forçados no arquipélago

dos Bijagó e, sob a supervisão de militares, abriram estradas e esperaram a morte, quer por

doenças tropicais, quer por esgotamento

Até 1928, quando da reforma do Código do Trabalho dos Indígenas nas Colónias

Portuguesas em África, o trabalho forçado era uma prática comum no ultramar137

. Essa

reforma aconteceu em reposta às denúncias de trabalho “escravo” na África portuguesa,

apresentadas por Edward Ross138

, junto à Comissão Temporária sobre a Escravidão da

Sociedade das Nações. O novo código não modificou muita coisa, pois “nas décadas de 30 e

40 era comum afirmar-se que não existia escravatura em Portugal, embora essa prática ainda

se verificasse em algumas colónias e protectorados estrangeiros.”139

Entre outras premissas, as novas regras enfatizavam que os autóctones “tinham a

obrigação moral e legal de trabalhar como forma de melhorar a sua condição material e moral,

obrigação que, não cumprida, voluntariamente, seria imposta pelo Estado”140

, já que o

incentivo ao trabalho fazia parte do processo de “civilização” implementado na colônia.

Assim, o Estado assumia para si o direito de exigir que povos não integrados ao mundo

capitalista, assim o fizessem por força de lei. Civilizar, então, passou a significar a formação

de trabalhadores dóceis, submissos e produtivos, mas nem por isso, passivos.

A ideia de trabalho, atrelada à melhoria de condições de vida, não encontrava

sentido junto à maioria das populações locais. Estas adotavam outras formas de produzir, em

136

O Estatuto Social Político e Criminal dos Indígenas, de 1929, é uma versão atualizada do Estatuto Político,

Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, de 1926, inicialmente aplicado nestas colônias e

estendido à Guiné em 1927. Também no ano de 1927 o estatuto alcança as companhias de Moçambique e Niassa

e apenas em 1946 chega a São Tomé e Príncipe e ao Timor. Em 1953 foi retirada a condição de “indígena” aos

nativos destas duas colônias. Os naturais de Cabo Verde, Estado da Índia Portuguesa e de Macau nunca foram

submetidos ao Indigenato, embora também fossem designados “indígenas”. 137

Existiram várias leis anteriores: o Código do Trabalho de 1899, o Regulamento do Trabalho dos Indígenas,

de 1911, revogado em 1914 quando foi substituído pelo Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas

Colónias Portuguesas até a criação, em 1928, do Código do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas

em África (Decreto-Lei nº 16.199 de 6/12/1928). 138

Edward Ross (1866-1951) era professor de sociologia da Universidade de Wisconsin, EUA. 139

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.67. 140

MARTINEZ, Esmeralda Simões. Legislação portuguesa para o ultramar. Revista África e Africanidades. São

Paulo, n.11, nov. 2010, sem paginação.

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117

outras palavras, suas necessidades eram supridas a partir da própria produção e pela troca de

produtos, existindo, subsidiariamente, conhecimentos técnicos apropriados e milenares, os

quais nunca foram compartilhados com o colonizador.

Porém, para a metrópole, as razões de ordem econômica falavam mais alto, pois

era preciso

que os seus domínios prosperassem e, a par disso, tinha de trazer o indígena para o

mundo civilizado através do esforço físico (trabalho). A fórmula, ou seja, a

civilização pelo trabalho, que não era uma novidade portuguesa, dado que todas as

nações civilizadoras, sob o mesmo argumento, cumprir o fardo que lhe era imposto

[...] utilizavam-na. O ineditismo de Portugal é exatamente a criação deste novo

direito do Estado de exigir, compelir o indivíduo a trabalhar, porque este tinha o

dever moral de fazê-lo e sem direito de recusa.141

Para o industrial da região de Bafatá, Francisco Quadros, estava claro que a interferência do

Estado era imprescindível, pois, para ele, o “indígena” era improdutivo e limitava-se,

na sua indolência, a pedir ao seu esforço o estritamente indispensável para

satisfazer, e mal, as suas parcas necessidades. Se, porém (fosse) orientado, e, em

acção constante persuadido a trabalhar mais, já então, de certeza, (colheria) o

suficiente para viver com abastança e rodear-se de relativo conforto, melhorando,

assim, o seu nível de vida.142

Um “novo” tipo de trabalho compulsório foi, portanto, escamoteado pelas leis e pelo discurso

da emancipação. Por outro lado, atendia aos interesses das fábricas, companhias, fazendas e

até mesmo particulares, todos carentes de mão de obra para tocar suas atividades.

As leis e os discursos davam suporte à “civilização pelo trabalho”, que encobria,

na verdade, a apropriação da mão de obra do negro “indígena”, numa forma repaginada de

escravização. A montagem jurídica articulada na metrópole proporcionou contradições, na

medida em que passaram a coexistir, na Guiné e nas demais colônias portuguesas alcançadas

pelo indigenato, dois regimes legais: a lei dos brancos-colonos-civilizados, e o direito

consuetudinário das populações autóctones.

Legalmente, não sendo cidadão nem sendo aceite como civilizado, o africano não

possuía direitos civis, sendo obrigado a laborar em actividades pouco remuneradas e

em profissões menores, relegado a escolas inferiores e separadas e sujeito a

espancamentos, violência física, banimentos em colónias penais e ao trabalho

forçado em plantações, estradas, caminhos-de-ferro e em portos, reflexo da

centralidade da questão do trabalho indígena para as políticas coloniais. Nos espaços

coloniais, a nacionalidade surgia ‘desnaturalizada’ para os indígenas, obrigando-os

aos mesmos deveres dos cidadãos – a obrigação/direito ao trabalho –, sem lhes

garantir a igualdade de direitos.143

141

MARTINEZ, Esmeralda Simões. O trabalho forçado na legislação colonial portuguesa - o caso de

Moçambique (1899-1926). 2008. 344f. Dissertação(Mestrado em História da África) - Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008, p.101. 142

RODRIGUES, Manuel M. Sarmento. Discurso proferido na inauguração da passagem sobre submersível de

Contuboel. BCGP, Crónica da Colónia, Bissau, v.2, 1947, n.7, p.799-800. 143

MENESES, Maria Paula G. O “indígena” africano e o colono “europeu”: a construção da diferença por

processos legais. E-Cadernos do CES, Coimbra, n.7, 2010, p.82.

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As leis produzidas para o ultramar foram um grande equívoco, embora tenham

existido para amparar propósitos impublicáveis. Os legisladores, a quilômetros de distância

dos legislados, possuíam vidas, trabalhos e modos de pensar que seguiam em direções opostas

e desqualificavam as dinâmicas culturais existentes na Guiné. Provavelmente, imaginaram

que o direito de propriedade, de família, do trabalho, perante o Estado seriam compreendidos

e incorporados por povos que tinham formas diferentes de vivenciar a propriedade, a família,

o trabalho e que não conheciam o Estado moderno.

É difícil, hoje, imaginar como os portugueses supuseram que os povos africanos,

possuidores de mundividências tão particulares, dotadas de um sentido comunitário de viver e

de uma ligação inquebrantável com o mundo invisível, pudessem se submeter,

tranquilamente, ao mundo moderno, apenas pelo fato de serem negros. Provavelmente, a

urgente necessidade de sobreviver e continuar existindo dentro do mundo capitalista europeu

possa explicar construções portuguesas tão enredadas quanto ineficazes.

Outra missão do governador Sarmento Rodrigues dizia respeito à comercialização

dos produtos da Guiné. Os comerciantes, estrangeiros e coloniais, reivindicavam maior

liberdade após a implementação de medidas de controle e fiscalização sobre as transações

diretas com as populações locais. Estava estabelecido o início de um controle que jamais

havia existido nos espaços ultramarinos, que provocou a insatisfação daqueles que

conheceram o “antigo” comércio livre. Para aumentar o descontentamento, desde o final da

década de 1930, a metrópole abriu espaço nas colônias para “novos” parceiros.

O que antes era de domínio quase exclusivo de estrangeiros, assumiu um caráter

“nacional”. Desse processo destaca-se a Companhia União Fabril (CUF), controladora de

quase toda a Guiné até o momento anterior à sua independência política. Numa atuação

monopolista e com mão de obra local a custo baixo, ou praticamente sem custo, a CUF

dominou a produção e o comércio de madeira, amendoim, arroz, óleo de palma, etc. O

controle, de fato, era bastante rígido e em 1959, por exemplo, quando os carregadores do

porto de Pidjiguiti entraram em greve por melhores condições de trabalho, foram reprimidos

com tamanha violência que gerou 50 mortes. Também têm destaque a Sociedade Agrícola de

Gambiel, no rio Geba e a Cia. Agrícola e Fabril da Guiné-AGRIFA, inicialmente britânica e

depois luso-alemã, que explorava as palmeiras de óleo e a mão de obra dos Bijagó.

Coube, também, a Sarmento Rodrigues e seus funcionários, oferecer aos povos

guineenses a “oportunidade” de deixarem a condição de “indígena” e obter o “Diploma dos

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119

Cidadãos”144

. Mesmo os islamizados, que dominavam a escrita árabe e a leitura do Corão

(Fula, Mandinga, Beafada e Nalú), deveriam cumprir as seguintes exigências:

a) Falar, ler e escrever a língua portuguesa;

b) Possuir bens de que se mantenham ou exercer profissão, arte ou ofício de que

aufiram o rendimento necessário para o sustento próprio (alimentação, vestuário e

habitação) e, sendo casados, para suas famílias;

c) Ter bom comportamento e não praticar os usos e costumes do comum da sua

raça;

d) Haver cumprido os deveres militares que, nos termos das leis sobre

recrutamento, lhes tenham cabido.145

Foram, assim, lançadas as estruturas para que os negros da Guiné deixassem de

ser indígenas e se tornassem cidadãos assimilados. Provavelmente os portugueses

imaginavam estar cumprindo sua missão “civilizadora” junto às sociedades consideradas

“atrasadas” e, por conta disso, consideravam sua missão de “chamar os nativos de raça negra

ou dela descendentes ao grémio dos cidadãos portugueses.”146

Porém, essa estratégia atingia algo bem mais importante do que o discurso poderia

deixar transparecer. Para os portugueses era preciso despojar o “indígena” de sua própria

forma de vida e, para tanto, reiterar e incutir as ideias sobre “cidadania portuguesa” e

“civilização”, além de defender que o

o único testemunho dessa emancipação só poder(ia) resultar do repúdio dos usos e

costumes indígenas, e só este pode(ria) condicionar a sua integração num meio

social civilizado. Quer dizer, só a assimilação da massa populacional dos povos

indígenas que se procura, aliás, acentuar, poder(ia) autorizar a supressão do

indigenato. 147

Certamente, não pensavam em transformar africanos em cidadãos portugueses, mas

formalizar a diferença entre ambos. Longe de agregar o negro da Guiné à nação portuguesa, a

intenção da cidadania encobria a submissão que se pretendia impor-lhe. Era preciso

quebrar-lhe a vontade, “coisificá-lo”, surrupiar-lhe a língua, as crenças, as tradições

engabelá-lo com mistificações e roubar-lhe a capacidade de escolha própria.

Desprestigiar, desconsiderar a cultura autóctone em detrimento da cultura imposta,

embriagando o colonizado com o elixir da civilização.148

Foi a face mais perversa do colonialismo: ficava estabelecido o que Aníbal

Quijano conceituou como “colonialidade do poder”, em que a Europa Ocidental toma para si

o “controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do

144

Diploma Legislativo nº 1.364 de 07/10/1946, conhecido como “Diploma dos Cidadãos”. 145

TAVARES, Álvaro. Do Indigenato à Cidadania: o Diploma Legislativo nº 1.364, de 07 de outubro de 1946.

BCGP, Bissau, v.2, 1947, n.8, p. 855-6. 146

BARBOSA, Honório. Os indígenas da Guiné perante a Lei Portuguesa. BCGP, Bissau, v.2, 1947, n.6, p.345. 147

TAVARES, op.cit., p.861. 148

AUGEL, Moema P. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-

Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p.133.

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120

conhecimento, da produção do conhecimento”149

. A colonialidade do poder é uma forma bem

articulada de dominação onde o

colonizador destrói o imaginário (do “outro”), invisibilizando-o e subalternizando-o,

enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os

modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do

colonizado e impõe novos. Opera-se então, a naturalização do imaginário do invasor

europeu, a subalternização epistêmica do outro não europeu e a própria negação e

esquecimento de processos históricos não europeus.150

A oferta de “civilização” buscava seduzir, principalmente, os naturais da terra

que habitavam regiões mais distantes das cidades, pois nessas regiões, por conta da distância e

da falta de comunicação, assuntos como esse provocavam certa “curiosidade”. Apesar disso, a

quantidade de adesões ao programa português ficou muito aquém do esperado. Segundo os

dados apurados no recenseamento de 1950, apenas 1807 negros da Guiné eram considerados

“civilizados” e 510.777 eram classificados como “não civilizados”.

Ocorreram muitos casos em que, após a obtenção da “cidadania”, os “novos

portugueses” retomavam suas práticas ancestrais. Por essa razão, o legislador colonial dispôs

sobre a perda da condição, ou seja,

Os indivíduos de raça negra ou delas descendentes naturais das colónias onde haja

indigenato incorrem na perda de qualidade de cidadãos quando se verifique que

praticam os usos e costumes dos indígenas, competindo às autoridades

administrativas organizar os respectivos processos para a anulação desses direitos, a

qual será feita por despacho do Governador sob proposta da Repartição Central dos

Serviços de Administração Civil. 151

Os portugueses, certamente acreditavam que a concessão ou suspensão da

“cidadania” poderia afetar a relação do negro da Guiné e suas práticas e costumes, razão pela

qual Álvaro Tavares152

concordava com a revogabilidade da medida:

a atracção que certos indivíduos da raça negra sentem pelo meio em que nasceram

ou que os rodeia e que os leva a abandonarem a civilização europeia e a

reintegrarem-se na sociedade indígena (determina) a necessidade de tornar

revogável o despacho governamental que lhe reconheceu a qualidade de cidadão ,

pois só a revogabilidade garante que o abandono dos usos e costumes indígenas

não seja mera fraude ao mesmo tempo que reforça a determinação do ex-indígena,

pelo receio da sanção, em se manter emancipado desses usos e costumes.

149

QUIJANO, Aníbal. Quijano, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:

LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-

americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. set.2005, não

paginado. 150

OLIVEIRA, Luiz Fernandes. História, epistemologia e interculturalidade. In: História da África e dos

africanos na escola: as perspectivas para a formação dos professores de História quando a diferença se torna

obrigatoriedade curricular. 2010. f.37-73. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010, p.46. 151

Artigo 5º do Diploma Legislativo nº 1.364 de 07/10/1946 (Diploma dos Cidadãos). 152

TAVARES, Álvaro. Do Indigenato à Cidadania: o Diploma Legislativo nº 1.364, de 07 de outubro de 1946.

BCGP, Bissau, v.2, 1947, n.8, p.858.

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121

Os dois primeiros negros da Guiné que receberam o diploma de cidadãos tiveram

seus retratos publicados nas páginas do Boletim Cultural. O auxiliar de enfermagem Tomaz

Gomes, “solteiro, filho de José Gomes e de Maria Olímpia da Silva, natural da freguesia de

S. José de Bolama, (foi) elevado à categoria de cidadão nos termos do Diploma Legislativo nº

1364 de outubro de 1946”153

, conforme despacho do governador datado de 31/12/1947. Da

mesma forma, Halime Abdulai Said, de 16 anos, natural de Chitole, circunscrição de Bafatá,

“filha de Abdulai Said - natural da Síria - e de Gedere Embaló, também passou a ser

“cidadã”154

na mesma época.

Os assimilados, vivendo nas cidades, estavam longe de se sentirem integrados ao

mundo português e, ao mesmo tempo, desenraizavam-se do único mundo ao qual haviam

pertencido. Eram, invariavelmente, discriminados, mantinham-se numa espécie de “limbo

social”, como

arremedos de europeus que, também por isso, eram objeto de ironia, do sarcasmo,

patrocinado pelo racismo velado, mas identificado dos portugueses o que, aliás,

perdura hoje em dia e é facilmente visível, quando observamos os olhares, dos de

pele clara, que são lançados aos de pele escura, que insistem em povoar o Rossio e

adjacências”.155

Portugal articulou mecanismos que julgou capazes de modificar o modo de ser

das populações autóctones. Incentivou o abandono dos costumes tradicionais para que

pudessem adentrar ao mundo “civilizado” dos brancos. Em contrapartida, tiveram que tolerar

alguns costumes, mesmo após construírem um arcabouço jurídico-administrativo específico

para as populações locais. Apesar de todo o aparato arquitetado, é significativo que, em 1961,

quando da revogação do Estatuto dos Indígenas, apenas 0,3% da população pertencente aos

grupos tradicionais, não mais do que 2000 pessoas, tinha pleiteado a cidadania portuguesa.

153

CORREIA, A. A. Peixoto. BCGP, Crónica da Colônia, Bissau, v.3, 1948, n.9, p.285. 154

Ibid., p.286. 155

MARTINEZ, Esmeralda Simões. Legislação portuguesa para o ultramar. Revista África e Africanidades. São

Paulo, n.11, nov. 2010, sem paginação.

Primeiros "cidadãos diplomados”

BCGP, n.9, 1948, Secção Crónica da

Colónia, p. 285-6

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122

Isso leva à conclusão que a cultura dos povos guineenses não fora seduzida pela cultura

europeia, bem como as tradições não poderiam ser modificadas por atos e decretos.

A política colonialista portuguesa, em grande medida, optou por um modelo de

colonização que previa assimilar e integrar os povos colonizados.

Este paradigma traduzia-se, em termos práticos, numa política que por um lado

advogava a manutenção das “tradicionais” formas de organização social e política,

próprias das sociedades autóctones, o que implicava a manutenção dos líderes

tradicionais e, por outro, numa tentativa de constituição de uma classe de

intermediários entre o poder colonial e as populações locais para facilitar os

contactos entre as estruturas implantadas pelo Estado colonial e as estruturas ditas

tradicionais.156

Embora na metrópole poucos soubessem sobre as populações da Guiné, as

representações sobre elas eram muitas. Um dos veículos nos quais essas representações

tornavam-se explícitas eram as exposições coloniais, muito comuns nas primeiras décadas do

século XX. Eram locais “onde se encenava a lógica dos modelos coloniais, se reproduziam as

supostas tribos e os seus denominados ‘usos e costumes’[...] e europeus e americanos foram

convidados a ver ‘em casa’ os povos nativos (colonizados ou não)”157

.

Portugal aproveitava esse espaço de propaganda para melhorar sua imagem

enquanto império colonial, principalmente após as denúncias do relatório Ross. Também

serviu para divulgar de forma positiva o regime autoritário instalado em 1926 e propagandear

o Estado Novo. Por essa razão, após a participação na Exposição Colonial de Paris de 1931,

Portugal promoveu a primeira de suas grandes exposições: a Exposição Colonial do Porto de

1934.

Exposições coloniais:

Paris, 1931; Porto, 1934.

156

CARDOSO, Carlos. A formação da elite política na Guiné-Bissau. Lisboa: ISCTE, Centro de Estudos

Africanos, 2002, p.16. 157

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.162.

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123

A ideia de um Império Colonial consolidado, ativo, grande e indivisível foi, também,

divulgada nas exposições de Bruxelas (1935), Paris (1937) e Nova Iorque (1939), onde as

“peças de exposição” - “espécimes” de povos africanos - foram cuidadosamente

selecionadas.

Armando Augusto Gonçalves de Moraes Castro, funcionário do Ministério das

Colônias, viveu na Guiné durante os anos mais conturbados da “pacificação”. Representou

Portugal na Exposição Colonial de Paris e foi incumbido de elaborar a Memória da Província

da Guiné destinada à Exposição Colonial Inter-Aliada de Paris (1925), expondo, assim, suas

impressões sobre as populações locais, sintetizadas no quadro a seguir:

Ideias portuguesas associadas aos povos guineenses158

As classificações apresentadas por Castro apontam para a diferença que permeava

as relações entre portugueses e os povos da Guiné. Aqueles mais próximos, como Fula e

Mandinga, eram tidos como de boa “índole”, os Felupe e Balanta eram considerados

“preguiçosos”, pois não se adequavam ao esquema de trabalho imposto pelas autoridades

coloniais. A beleza, para Castro, era praticamente inexistente na Guiné e as resistências ao

colonialismo foram traduzidas como uma tendência inata a guerrear. Tais impressões,

próprias da época, denotam como os povos guineenses, assim como todos os povos negros

africanos em geral, tiveram sua imagem construída a partir do olhar eurocêntrico racista e

excludente.

158

MATOS, Patrícia Ferraz de. As “côres” do império: representações raciais no Império Colonial Português.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p.169.

nome do grupo

homem mulher

Comportamento índole boa Fula, Mandinga

índole má Banhum, Nalu, Balanta

trabalhadores Manjaco, Banhum, Balanta Banhum, Beafada

preguiçosos Felupe, Balanta

desonestos Mandinga, Banhum, Balanta

guerreiros Todo em geral, sobretudo os Balanta

lascividade/poligamia Todos são polígamos Bijagó

costumes incompreensíveis Fula, Papel, Manjaco, Balanta, Nalu, Bijagó Fula, Manjaco

carácter concentrado Fula, Papel

expansivos Mandinga

espertos Papel

Fisionomia pouco robustos Fula

robustos Felupe, Papel, Manjaco

beleza Manjaco

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124

Sarmento Rodrigues, ao discursar para seus funcionários, numa reunião realizada

em 1947, deixa pistas de como o racismo e a violência permeava as relações na Guiné.

Discursou o governador:

os senhores chefes de posto são os protectores dos indígenas. Nada de permitir ou

exercer violências. O indígena é um homem como nós, digno da mesma

consideração que nos atribuímos. É preciso tratá-los com firmeza, mas com

bondade. Reprimir os seus abusos, mas não permitir que sejam maltratados ou

enxovalhados [...] Ser chefe de posto é ter o mais invejável lugar no Ultramar. Não

há outro que se lhe compare em importância. Da sua actuação resulta o bem e todo

o mal na vida de uma colónia. Só verdadeiramente pessoas de escol mereceriam

estas funções supremas [...] me regozijo por dispor de um grupo de funcionários

como os senhores [...] reconheço que muitos vieram para cá desanimados

compreenderam a sua missão e se sentem entusiasmados, mas pressinto que além

do que fizeram está a minha esperança naquilo que de hoje em diante irão

empreender. Uma idéia os norteará: levar aos povos que lhes estão confiados

saúde, abundância e paz. Um sentimento os dominará: para se governar um povo é

preciso amá-lo. Assim apetrechados, creiam, meus senhores, que o futuro da Guiné

estará e muito bem, nas suas mãos. 159

Ao assumir o governo estava imbuído de vários propósitos, inclusive o de reorganizar as

relações entre seus representantes e os povos autóctones, os quais passavam para a “tutela”

colonial. Dentre as ferramentas que utilizou estava o Boletim Cultural, cuja gênese aconteceu

num momento em que os imperialismos eram postos em xeque. Nesse sentido, o Estado Novo

salazarista, o colonialismo “científico” e o novo periódico estavam intimamente imbricados.

Havia uma história sendo construída pelos povos guineenses. Contudo, os liames

do colonialismo, a “colonialidade do poder”, além de usurpar vidas e culturas, surrupiaram

suas histórias de uma forma tal que passaram a fazer parte

da própria história portuguesa, que, insistentemente, tentava negativá-la, como

forma de confirmar a sua própria, aquela dos grandes descobrimentos e do

pioneirismo, da própria missão civilizadora, que encontrando “selvagens”,

transformava-os, através do evangelho, cumprindo a missão secular e que lhe foi

confiada por Deus. A preocupação era retirar a história do “Outro”, e fazê-lo aceitar

a do “Mesmo”.160

Para corrigir estas apropriações, cabe acompanhar o que sugere Carlos Lopes, ou

seja, “perceber os fenómenos socio-políticos da Guiné-Bissau e da região em que está inserida

a partir de uma historicidade endógene que minimiza a relação com o exterior.”161

É um

trabalho que demandará um esforço conjunto entre estudiosos de várias áreas do

conhecimento e, provavelmente, dependerá da atenção das gerações futuras.

159

RODRIGUES, Manuel M.Sarmento. Discurso proferido na abertura da 3ª Sessão da 1ª Conferência de

Administradores de 1947. BCGP, Crónica da Colónia, Bissau, v.2, 1947, n.8, p.1.070. 160

MARTINEZ, Esmeralda Simões. Legislação portuguesa para o ultramar. Revista África e Africanidades. São

Paulo, n.11, nov. 2010, sem paginação. 161

LOPES, Carlos. Os limites históricos de uma fronteira territorial: Guiné “Portuguesa” ou Guiné-Bissau.

Lusotopie, Paris, 1994, p. 137.

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125

CAPÍTULO 3

POVOS DA GUINÉ-BISSAU E O BOLETIM CULTURAL DA GUINÉ PORTUGUESA

3.1 Aspectos das comunidades em meados do século XX

Percorri o território em diversos sentidos, a pé

ao executar o arrolamento de palhotas; assisti de perto ao desenrolar

das cerimónias do “fanado, dos “choros”

(numa época em que ainda “descascavam” os cadáveres),

das mutilações pigmentares, dos casamentos

(em que a mulher se sujeitava ao que chamam “pisar o risco”)

e das consultas ao “irã”. António Carreira, Chefe da Circunscrição de Cacheu

1

António Carreira e Fernando Rogado Quintino são os autores mais publicados no

Boletim Cultural2, seus artigos, especialmente de cunho etnográfico, estão presentes ao longo

da existência daquele periódico. Carreira é cabo-verdiano e Rogado Quintino, assim como a

maioria dos funcionários da administração colonial, possivelmente fosse. Ambos viveram

durante muitos anos na da Guiné exercendo funções administrativas, porém dedicaram-se,

especialmente, ao estudo das comunidades de povos da Guiné, bem como à observação de

seus costumes. Além do convívio muito próximo com vários grupos e estudiosos de suas

culturas, apresentaram trabalhos diferenciados, isto é,

não são mais expressivos do entusiasmo ingênuo dos primeiros anos do Boletim, em

que se apresentava a Babel linguística e cultural de que os jovens administradores

eram guardiões titulares, ou das preocupações do administrador colonial em

implementar políticas de controlo político e produtivo.3

Por essa razão, seus artigos permeiam grande parte do presente capítulo.

A maioria dos colaboradores do Boletim Cultural compreendia os povos

guineenses a partir de debates teóricos das primeiras décadas do século XX, ou seja,

1 CARREIRA, António. Região dos Manjacos e dos Brâmes: alguns aspectos da sua economia. BCGP, Bissau,

v.15, 1960, n.60, p.735-6. 2 A relação dos artigos publicados no BCGP, bem como outras obras de António Carreira e Fernando Rogado

Quintino está disponível através de consulta à biblioteca digital do Projeto Memória de África e Oriente. 3 CARVALHO, Clara. O olhar colonial: antropologia e fotografia no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.

In: ______; CABRAL, João de Pina. (Orgs.) A persistência da História: passado e contemporaneidade em

África. Lisboa: ICS, 2004b, p.129.

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pensavam sobre eles tendo em conta o conceito de etnia4, partindo de comparações com

normas e perfis etnocêntricos. Eram classificados, em grande medida, a partir daquilo que não

eram ou não possuíam, ou seja: não eram brancos, não eram alfabetizados, não eram cristãos,

não tinham luz elétrica, não se vestiam adequadamente, entre outras negações.

Partindo desses pressupostos, António Carreira atentou para a existência de povos

que não contavam com uma autoridade política centralizada e, em alguns casos, como os

Balanta, por exemplo, nunca terem ficado sob controle de um chefe político comum.

Observou, também, que, apesar disso, “as relações entre as famílias eram reguladas

eficientemente entre os patriarcas dentro da respectiva esfera de acção, reunidos em

conselho de poderes deliberativos.”5 Não obstante tais relações de poder, opostas àquelas

consideradas “superiores”, as relações sociais eram reguladas de forma adequada, atendendo

as necessidades de cada um dos povos em suas gerações.

Cabe salientar que na África pré-colonial existiam organizações políticas de

variadas formas e dinâmicas e não entidades culturais, linguísticas ou étnicas, tais como se

concebe atualmente. Como aponta Wolfgang Dopcke (1999, p.81), Estados ou Impérios

“eram máquinas de integração de grupos, sociedade, chefias de diversas origens, tradições,

línguas, etc.” Nesse sentido, qualquer recorrência a parâmetros eurocêntricos torna-se

temerária, não sendo possível pensar sobre povos guineenses como entidades fechadas ou

isoladas. Há algo mais complexo, como em todo o no mundo africano, para ser compreendido

do que os debates teóricos acerca de conceitos tais como etnicidade, Estado-nação ou

nacionalismo, por exemplo, podem revelar.

As estruturas tradicionais da Guiné sofreram mudanças importantes, notadamente

a partir das primeiras décadas do século XX. Nos aglomerados circunvizinhos às cidades, por

exemplo, alguns costumes estavam bastante modificados, quer pela influência europeia, quer

pela ascendência de povos islamizados. Para os portugueses, as mudanças eram

compreendidas como parte do processo “civilizatório” decorrente do próprio colonialismo. É,

no entanto, mais aceitável compreender tais mudanças a partir da perspectiva de zonas de

contato, proposta por Mary Louise Pratt, em que

culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra,

frequentemente em relações extremamente assimétricas de dominação e

4 Segundo Carreira (1961a, p.663), o termo etnia compreendia “grupos de indivíduos aparentados, ou não, uns

com os outros; fixação destes grupos e destes indivíduos num mesmo território; relativa unidade de língua, de

crenças religiosas e de estrutura social; certa consciência de grupo; comunidade de interesses e autoridade

política, ou não.” 5 CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau. v.16, 1961a,

n.64, p.663.

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subordinação – como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora

praticados em todo o mundo. 6

Os grupos estabelecidos no entorno das praças mantinham um relacionamento

mais aproximado com a cultura portuguesa e boa parte dessa população já estava

“assimilada”. Em razão da precária comunicação na Guiné durante todo o período colonial,

pode-se supor que as comunidades rurais foram alcançadas em menor proporção. Alguns

artigos do Boletim Cultural apontaram que em algumas comunidades rurais as práticas

culturais foram mantidas de forma mais consistente.

O poder político português na Guiné de meados do século XX era exercido de

duas maneiras. Uma, de forma centralizada, caracterizando-se pela presença de um régulo que

assumia o poder coadjuvado por um conselho de anciãos e por uma estrutura social

verticalizada. Isto se observava entre os Fula, Mandinga, Manjaco, Mancanha e Papel. Os

chefes das moranças e das tabancas submetiam-se à autoridade do régulo, a qual só era

referendada após o cumprimento de algumas formalidades, dentre elas a comprovação da

propriedade de bens de reinança.

Os bens de reinança eram constituídos por bens móveis e imóveis, concedidos em

usufruto, que ficavam na posse do chefe enquanto este permanecesse no exercício do cargo.

No grupo Papel e Manjaco, por exemplo, a fruição desses bens cessava quando de sua

destituição ou morte, porém, neste caso, “a família (conservava) o direito de colheita na

época própria de todas as espécies que à data da morte (estivessem) cultivadas.”7 Pode-se

afirmar, assim, que o prestígio político dos régulos estava relacionado com o valor e a

quantidade de bens atribuídos ao cargo. Através da exploração desses bens, o sustento era

garantido para eles, seus familiares e aproximados.

Os imóveis especiais de reinança eram destinados a três atividades principais: à

exploração direta por parte do régulo, para seu consumo, ao arrendamento por parte de outros

membros do grupo e à exploração destinada ao amparo de velhos e crianças órfãs. As

propriedades assim caracterizadas eram bem delimitadas e os direitos sobre elas

rigorosamente respeitados, “não se conhecendo casos de usurpação por supressão ou

deslocação de marcos ou sinais destinados a estabelecer os limites.”8

6 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999, p.27.

As transformações pelas quais passaram os diversos povos da Guiné carecem de investigações mais apuradas.

Não foi, entretanto, objetivo do presente trabalho analisar os processos que desencadearam tais mudanças, porém

assinalar que eram perceptíveis, porém não generalizadas. 7 CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.712. 8 Id. Alguns aspectos do regime jurídico da propriedade imobiliária dos Manjacos. BCGP. Bissau, v.1, 1946,

n.4, p.711.

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Dos bens móveis de reinança destacam-se os tambores utilizados nos ritos

funerários e os Irãs9, designação crioula para as representações antropomórficas ou abstratas

que estão presentes em locais e momentos de importância na vida da maioria dos grupos

étnicos. Portanto, a manutenção dos régulos e chefes de tabanca (povoados) era, em grande

medida,

assegurada pelos rendimentos provenientes do arrendamento dos imóveis, do

aluguer dos tambores, da presidência nos irãs aos ritos relacionados com o início

do ano agrícola e outros, e, também através da tributação paga pelos súbditos,

especialmente aqueles que emigram para os territórios vizinhos, ao regressarem às

terras.10

Segundo Santos Lima, o Bijagó trabalha “sempre e em toda a parte para consumir

[...] A quantidade produzida é consumida num instante, às vezes no próprio local de

trabalho”.11

A relação entre trabalho e consumo era bastante peculiar ao Bijagó, causando

irritação e espanto aos portugueses. Adotavam práticas opostas às capitalistas - o que, aliás,

era comum aos povos africanos em geral - e o pouco excedente de produtos não fazia face ao

pagamento dos impostos cobrados. O que os colonizadores não conseguiam compreender, era

que a terra e o africano mantinham uma relação de interação e não de exploração. Para o

Bijagó o desenvolvimento não era

um requisito pertinente ao grupo, uma vez que as crenças e rituais agem como

substituto à pesquisa e à busca de supostas melhorias técnicas. Na medida em que a

produção supõe uma relação fundamental com o sagrado - a terra é entidade sagrada

cuja utilização pede atos propiciatórios, oferendas - há um limite à extensão e

alcance de sua exploração. O ritmo do processo produtivo regula-se por um total

respeito à natureza. 12

A percepção africana da terra, como um legado divino, vai de encontro à ideia da

propriedade privada, individualizada. Não existindo a propriedade da terra, existe, por outro

lado, sua posse, a qual assume um perfil de usufruto comunitário. A posse é concedida pela

entidade detentora do poder, que varia de acordo com a natureza da organização social,

política ou religiosa do grupo. Essa autoridade “tanto pode ser real como abstracta, régulo,

entidade religiosa com graduação ou, simplesmente, um ente imaginário que, pela crença

9 Nas moradas, plantações, ritos fúnebres, nascimentos, etc., os Irãs estão sempre presentes. Representam uma

força espiritual, um espírito ancestral e, em grande medida, a força vital, que está presente em toda a parte e deve

ser cultuada, consultada, e apaziguada. O assunto será retomado mais adiante. 10

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.713. 11

LIMA, Augusto José Santos. Organização Económica e Social dos Bijagós. Lisboa: Soc. Industrial de

Tipografia Ltda., 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série “Memórias” n.2, p.56. 12

SILVA, Dilma de Melo. Por entre as Dórcades Encantadas: Os Bijagó da Guiné-Bissau. São Paulo: Terceira

Margem, 2000, p.94-5.

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129

própria, foi consultado, via de regra, por intermédio dos espíritos dos antepassados.”13

De

qualquer forma, o direito à terra, a partir dessa orientação, se mantém enquanto perdurar a

representatividade do usufrutuário em relação à comunidade familiar.

Embora as questões relativas ao direito sobre a terra tenham sofrido mudanças ao

longo do tempo, em meados do século XX ainda mantinha-se viva a convicção, entre alguns

povos guineenses, particularmente entre os não islamizadas, de que as terras lhes teriam sido

legadas por seus antepassados. Dessa maneira, deveriam ser, da mesma forma, deixadas às

gerações futuras tais como foram recebidas.

Na estrutura social dos Balanta, Felupe, Baiote e Bijagó, a família é a unidade

básica da organização e quaisquer questões são resolvidas pelo conselho de chefes de

moranças (moransa em crioulo da Guiné-Bissau). É, pois, uma sociedade horizontalizada e o

poder político é descentralizado, ou seja, distribuído entre a comunidade. As moranças

reúnem várias famílias extensas ou alargadas, que são

caracterizadas pela existência do grupo constituído por homem, mulher (ou

mulheres), filhos, sobrinhos e outros parentes em linha recta - e em alguns casos até

em linha colateral - os quais ficam rigidamente vinculados à obrigação de cooperar

perfeita e lealmente na manutenção e perpetuação dessa unidade social.14

A família alargada está presente não apenas na Guiné-Bissau, mas, em grande

medida, por toda a África do Oeste. Possui um significado para além dos laços sanguíneos,

pois funciona, também, como “elemento mítico-espiritual, social e até juridicamente

solidário”15

. Para Fernando Quintino, a natureza clânica da família guineense é representada

pelo culto prestado aos antepassados tornando-a, assim, “uma comunidade social e uma

corporação religiosa.”16

Em síntese, a família é constituída pelos parentes diretos, colaterais

e afins, tanto vivos quanto mortos.

Família do tipo clânico do grupo Balanta-Mané.

BCGP, n.96,1969, p.895.

13

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.693. 14

Ibid., p.642. 15

GARCIA, Francisco Proença de. Guiné 1963-1974: Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder

Português. Disponível em: http://www.triplov.com/miguel_garcia/guine/index.htm, sem paginação. 16

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1967, n.96, p.896.

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Nestas sociedades horizontalizadas prevalece o tipo de família patriarcal. O

“indivíduo” cede lugar ao grupo familiar - “coletivo” - em que todos os membros mantêm

íntima ligação entre si e as tradições são mantidas, principalmente, o culto aos antepassados.

Na Guiné, tanto nos povos islamizados quanto tradicionais, a figura paterna exerce grande

autoridade perante o núcleo familiar, orientando-o nos diversos aspectos da vida social,

política e religiosa. Entre os grupos islamizados, e particularmente, nos ajustes quanto a

casamentos, os sobrinhos e sobrinhas são orientados pelo tio paterno mais velho, na falta

deste, pelo tio materno.

No recenseamento de 1950 foram computadas 55.700 famílias e cada qual

procurava bastar-se. Não havia, dentro da estrutura familiar tradicional da Guiné, pessoas

desamparadas, vivendo de assistência pública, pois eram “todos sustentados pelo agregado

familiar a que (pertenciam)”17

. Essa forma abrangente de viver, que tornava a presença do

Estado desnecessária, possivelmente incomodou (e incomoda até hoje) aqueles que

pretendiam levar a “civilização” a povos considerados “atrasados”.

A reunião de moranças, que podem agregar de 400 a 500 pessoas, forma as

tabancas (tabanka, em crioulo da Guiné-Bissau), que são as povoações, as aldeias. Cada

morança possui um representante que exerce autoridade sobre todos os membros e os

representa nas relações fora dela. Entre todos os representantes está aquele que pertence à

geração do fundador da tabanca e, por isso, assume o papel de chefe da tabanca, coordenando

as moranças de sua jurisdição, bem como representando a tabanca nas relações com outras.

Esta autoridade não representa interferência nos assuntos internos de cada morança, isto

ocorrendo apenas quando solicitado.

Morança - conjunto de palhotas dum agregado familiar do litoral.

BCGP, 1967, n.85-86, p.35

17

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.22, 1967, n.85-86, p.40.

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131

Segundo Lino Bicari, “antigamente a tabanka era formada por moransas da

mesma etnia, embora de djorson (gerações) diferentes. Actualmente há muitas tabankas em

todos os tchon com moransas de diferentes etnias e de diferentes djorson.”18

Como unidade

residencial da família alargada, a morança tem fundamental importância, pois também é

a primeira célula da vida social organizada em que se geram e se harmonizam as

relações económicas (produção, transformação, distribuição, consumo, troca,

“dívidas” e “créditos”), sociais (família, linhagem, etnia, género, educação, saúde),

políticas (direitos, deveres, encargos, hierarquias, heranças) e cosmológicas

(religião, magia, tempos e espaços sagrados e profanos) da sociedade étnica.19

Assim, a morança tem uma importância que vai além da reunião de pessoas que

assumem uma ancestralidade comum ou um conjunto de regras de relacionamento entre si e

entre as próprias moranças. Nessa célula principal das sociedades tradicionais africanas estão

especificados os papeis de cada membro, de acordo com a idade, gênero, geração e, também,

em relação à produção e aos serviços comunitários. Tais especificidades garantem, segundo

Bicari (2004), a segurança de todos os membros da morança e, consequentemente, o

equilíbrio e a estabilidade daí decorre.

Cabe ainda destacar que na morança o sistema econômico possui características

próprias, tais como

a reciprocidade, o intercâmbio, a entreajuda, o dom, a ‘propriedade’ e usufruto

comunitários da terra (tchon), o controle comunitário dos excedentes da produção

individual, etc. Estes aspectos específicos podem garantir a estabilidade social e um

mínimo de segurança económica quer aos membros mais fracos como crianças,

velhos, viúvas e deficientes, que a todos os outros nos tempos de emergência por

causa de guerras, secas, inundações, migrações, etc.20

Entre os Bijagó, a tabanca (emgba, na língua bijagó) constitui a unidade-base do

sistema político e cada uma delas é propriedade de uma geração (kuduba), cujo poder se

estende a outras tabancas. Isto quer dizer que uma determinada geração pode ser a dona do

chão (uam-moto) de várias tabancas em ilhas diferentes. As tabancas bijagós são, de maneira

geral, autossuficientes, tanto em relação a suas atividades econômicas, quanto sociais e

religiosas. Mesmo as ilhas desabitadas têm seus donos tradicionais, como por exemplo, as

ilhas de Cavalos, Polão, Meio, Maju Inorei, Maju Anchorupe, Bane e Egumbane pertencentes

às diferentes tabancas de Canhabaque.

18

BICARI, Lino. Reorganização das Comunidades Rurais: base e ponto de partida para o desenvolvimento

moderno da Guiné-Bissau. Soronda Revista de Estudos Guineenses, Bissau, n.8 Nova Série, jul.2004, p.136. 19

Ibid.,p.136. 20

Ibid.,p.137.

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Conforme observou António Carreira (1961), nos grupos estabelecidos no litoral

as moranças eram separadas por espaços longos (Manjaco, Brame) e, por vezes, estavam mais

concentradas (Papel, Felupe, Bijagó, Balanta, Banhun, Cassanga). De forma oposta, naqueles

estabelecidos no interior (Mandinga, Fula), o povoamento era, geralmente, caracterizado por

moranças concentradas, raramente encontrando-se grandes espaços entre elas.

Tipos de tabanca - dispersa (litoral, grupos tradicionais), concentrada (interior, grupos islamizadas) desenhos elaborados por Avelino Teixeira da Mota e ilustrativos do artigo de António Careira (1961)

Tabanca em Ambeno, Ilha Roxa,

Arquipélago dos Bijagó Foto de

Hélio & Van Ingen

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António Carreira (1961) ainda observou que tanto na região costeira quanto no

interior predominavam as palhotas redondas21

, cobertas com colmo e paredes entrelaçadas de

bambu preenchidas com lama. No litoral, as moradias possuíam um ou vários compartimentos

que serviam, simultaneamente, à habitação, celeiro e guarda de animais domésticos durante a

noite. No interior, ao contrário, as moradias não possuíam divisórias internas e serviam

apenas para habitação, ou seja, estábulos e celeiros eram construídos de forma independente.

Havia uma habitação exclusiva para o homem pernoitar com uma de suas mulheres, outra

para as mulheres casadas ou solteiras da mesma morança e outra para os rapazes solteiros.

Segundo José Mendes Moreira (1962), os Bijagó utilizavam as palhotas apenas para dormir

ou abrigar-se das intempéries vivendo, assim, a maior parte do tempo ao ar livre.

Vista aérea de uma morada em construção ainda sem cobertura.

A maioria dos povos do litoral dedicava-se à cultura do arroz, extração do sal,

pesca e coleta de mariscos e à extração do azeite e do vinho de palma, utilizado especialmente

nas festas, práticas rituais, funerais, etc.

Os grupos do interior praticavam uma agricultura do tipo itinerante e as funções

estavam bem especificadas para homens e mulheres. Aqueles que trabalhavam para os chefes

e régulos cuidavam do desbaste do mato e da preparação dos campos para o cultivo,

especialmente da mancarra (amendoim), mandioca, milho, etc. Além disso, eram responsáveis

pela colheita das produções de maior porte. Às mulheres e adolescentes de ambos os sexos

cabiam tarefas mais leves, como o cuidado com as sementeiras, limpeza das terras altas e

21

Entre os Felupe, Baiote, Balanta e Papel as palhotas têm formado redondo ou retangular, com predomínio do

primeiro. Ente os Banhun e Cassanga há predominância do formato retangular, ao contrário dos Manjaco onde as

palhotas são redondas. Os Nalu e Beafada constroem palhotas de ambos os formatos. Os mais velhos do grupo

Brame as fazem no formato redondo e os mais novos, na forma retangular. (CARREIRA, 1952).

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134

campos de cultura, manutenção da horta próxima às palhotas, ordenha das vacas e preparo da

manteiga, criação de animais domésticos e transporte da produção destinada à venda. Os

rapazes entre 6 e 15 anos eram responsáveis por apascentar o gado. Cabe destacar a

importância que o gado bovino tinha entre esses grupos, pois simbolizava riqueza e compunha

o dote nos contratos de casamento arranjados pelas famílias.

Os “excedentes da produção” dos povos guineenses, como “o vinho de palma dos

Mandjaco, o arroz dos Balanta, os artesanatos dos Fula, os tecidos dos Mandinga”22

, eram

trocados por outros produtos. Merece destaque a longa tradição que os Fula e Mandinga

possuíam no que tange ao comércio. Em alguns casos amealharam riquezas que, certamente,

conseguiram atrair muitas parcerias e muitos interesses portugueses.

As trocas eram realizadas nas feiras e a diversidade de produtos oferecidos supria

muitas das necessidades locais:

Reúnem-se homens e mulheres (talvez na proporção de 1 homem para 10 mulheres)

e crianças e adolescentes, à sombra de poilões frondosos e aí fazem a exposição, em

cestos ou em grandes balaios, de géneros alimentícios (feijão, milhinhos, fundo,

inhame, manfafa, mandioca, palmito, malagueta, chabéu, arroz descascado a pilão

ou em casca, mampataz, fole, manganaz, etc.), sabão da terra, cestos em folha de

cibe, objectos de barro (da cerâmica tradicional: potes, moringues, panelas, etc.),

animais domésticos (cabritos, leitões, porcos, cabras, cães, gatos, galinhas), ovos,

azeite de palma, azeite de cola amarga, banha de jibóia, esteiras (em tara e em

cibe), panos de fabrico local ou simplesmente bandas, cabaços, arados e ferros do

arado, enxadas (aqueles e estas de fabrico local), bolas de terra extraída dos

morros de baga-baga (cupinzeiro) e que as mulheres grávidas comem com muito

agrado (o hábito da geomania23

ou geofagia), e um sem número de outros géneros e

objectos indispensáveis à vida destas gentes. 24

Após um longo período de escaramuças, os Manjaco e os Brame passaram a

realizar as feiras todos os dias da semana, em regime rotativo, no chão manjaco de Canhobe,

Tame, Bugulha, Baboque, Pelundo e no chão brame de Có e Bula. Em tempos anteriores, as

feiras também aconteciam, porém apenas as mulheres e as crianças podiam pisar no chão

rival. Aos homens isto era impensável. As feiras aconteciam sob o poilão, árvore de grande

porte, muito comum no litoral da Guiné, considerada sagrada, razão pela qual os homens

grandes de algumas tabancas reuniam-se sob sua sombra.

Além das trocas, as feiras ofereciam um espaço de sociabilidade e comunicação.

Ali eram transmitidas notícias de familiares, falava-se sobre política de chefias, do preço dos

produtos nos centros de comércio, entre outros assuntos de interesse coletivo. Também eram

22

AUGEL, Moema P. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura da Guiné-

Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p.77. 23

Geomania (geomancia) é um tipo de adivinhação onde um punhado de terra é jogado sobre uma superfície e,

posteriormente, faz-se uma interpretação. 24

CARREIRA, António. Região dos Manjacos e dos Brâmes: alguns aspectos da sua economia. BCGP, Bissau,

v.15, 1960, n.60, p.752.

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comentados casamentos, festas, rituais de iniciação, e exaravam-se críticas “aos actos dos

agentes de autoridade, com verdade e com falsidade, às vezes.”25

Lino Bicari (2004) assinalou que em todos os momentos, inclusive na execução

dos trabalhos mais pesados ou nas dificuldades do dia a dia, a fruição do convívio

comunitário estava sempre presente. Tal acontecia, invariavelmente, com o acompanhamento

da música, do canto e da dança, partes indissociáveis do modo do viver do africano em geral.

Essa música envolvente levou Fernando Quintino, mesmo a contragosto, a admitir sua

qualidade e discordar

que o negro não tinha cultura nenhuma. (que) era um pagão, um selvagem, um

inculto [...] Na música e na dança, está marcando uma posição de vincante

superioridade, que chega a causar pasmo às gerações que entraram na fase da

maturidade. O homem branco das camadas juvenis, mesmo aquele que teima em

manter o negro afastado de si, não consegue resistir ao impacto da cultura deste.

Imita-o a cada passo.26

Quintino percebeu, também, que a dança na Guiné era mais do que o movimento de pés e

corpos. Vislumbrou a existência, mesmo sem compreender, de algo a ser respeitado. Tentou

explicar, sob sua concepção religiosa, que a música e a dança estavam

imbuídas de formalismos e de conceitos próprios dum mundo povoado de espíritos,

de feitiços, de Irãs - anjos e demônios. São estes anjos que governam o mundo e

desencadeiam, segundo sua crença, os eventos na Terra e no Céu. A música e a

dança, como as oferendas e as imolações de animais, constituem meros actos

propiciatórios, processos mágicos de se entrar em comunicação com os espíritos,

como as preces são, para outras crenças mais evoluídas, quando os crentes querem

entrar em comunicação com as divindades.27

A música, que impregna o cotidiano dos povos da Guiné, através da dança e do

canto, representa mais do que uma expressão artística ou estética: é considerada sagrada. Isto

decorre da ideia de que, baseada nos sons e estes relacionados a movimento, são possuidores

de espíritos. Nessa medida, os instrumentistas gozavam de prestígio e eram muito respeitados.

Com seus instrumentos de percussão, convocavam a tabanca para reuniões, chamavam para

os batuques ou notificavam a comunidade sobre o falecimento de algum membro, entre outras

funções. Também lhes cumpria cantar em festas organizadas em homenagem aos homens

mais velhos e aos chefes e autoridades, os quais podiam ouvir improvisações sobre seus feitos

e qualidades. Isto acontecia, porém, desde que fosse pago o lava-remos, isto é, mediante

gorjeta.

25

CARREIRA, António. Região dos Manjacos e dos Brâmes: alguns aspectos da sua economia. BCGP, Bissau,

v.15, 1960, n.60, p. 752. 26

QUINTINO, Fernando Rogado. Música e dança na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.18, 1963, n72, p.553. 27

Ibid., p.554.

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Dentre outros sentidos, a música exerce uma função preponderante entre grupos

constituídos sob a oralidade. Neles, a Palavra vai além da comunicação, pois a herança de

conhecimentos da sociedade é por ela transmitida. A ligação do homem com a Palavra não é

muito compreendida fora do contexto da oralidade africana, pois a Palavra define o homem

em si, e não os bens e riquezas que possui, além de outras exterioridades.

Na tradição africana, segundo Hampâté Bâ (1982, p.172), a Palavra é concebida

“como um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no

sentido ascendente.” O falar e o escutar tomam uma importância da qual não apreendemos

totalmente, pois no universo tudo fala, tem força e gera um movimento “de vaivém” o qual,

por sua vez, “gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação.” Daí a importância dos sons,

da fala, da música, do rimo, da dança, do corpo:

Enraizadas em confluências palavra/som/ritmo, culturas de tradições orais africanas

acumulam memórias em timbres da voz, deixando ecos em sons e rastros em

caracteres rítmicos e artefatos musicais produzidos com técnicas e formas de

emissões sonoras apropriadas a rituais e outros meios de transmissão e

comunicação.28

Em sua grande maioria, os músicos eram homens; no entanto as mulheres também

atuavam nas festas em honra aos homens grandes (omis garandis). Acompanhando o canto

tocavam um instrumento que consistia “numa meia cabaça esférica, tendo previamente

metido nas falangetas de todos os dedos (excepto os polegares), uns aneis de metal com os

quais tamborilam no flanco da cabaça”.29

O canto e a dança sugerem representações através do corpo, voz e gesto, de

formas e cores. Os dançarinos em geral usam máscaras na cabeça (antropomórficas,

zoomórficas ou polimórficas), além de ostentarem pinturas e enfeites pelo corpo. Os adereços

tomam o formato daquilo que se pretende lembrar, apaziguar, reverenciar, consultar, etc. Em

certo momento ocorre a consubstanciação total e o dançarino entra em estado de transe

tornando-se o próprio espírito, “alma ancestral reencarnada num descendente[...](ao) incauto

pode representar um comportamento ‘burlesco’, uma atitude disparatada, uma coreografia

sem sentido, mas não a um etnólogo circunspecto, ou mesmo a um amador estudioso”.30

Mais

do que uma simples incorporação, quem veste a máscara traz para si as forças do mundo

visível e invisível numa síntese que abrange toda a vida em movimento.

28

ANTONACCI, Maria Antonieta M. África/Brasil: corpos, tempos e histórias silenciadas. Tempo e

Argumento, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 46 – 67, jan./jun. 2009, p.55. 29

GOMES, Abílio. Notas sobre a música indígena da Guiné. BCGP, Bissau, v.5, 1950, n.19, p.415. 30

QUINTINO, Fernando Rogado. Música e dança na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.18, 1963, n72, p.555.

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As danças do povo Bijagó, por exemplo, remetem a animais, como na dança da

vaca-bruto, do búfalo, do hipopótamo, do peixe-verga (tubarão martelo). Nelas os

movimentos do corpo, os sons emitidos, ritmados pelos tambores, palmas e coros, as

máscaras e adereços utilizados, têm função específica dentro do que se pretende.31

Enquanto

dança, o Bijagó “pode” voar como

a garça, rastejar como a serpente,

nadar como o peixe, investir como

um touro, demonstrar a força do

hipopótamo ou usar do ardil do

crocodilo e das várias faces do

camaleão, numa relação que

agrega mundos paralelos e,

também, imbricados.

Bijagó- Dança do peixe-verga

detalhes das máscaras e adornos dos

dançarinos. Músicos ao fundo.

BCGP n.72, 1963, p.557

Nas danças fúnebres dos Felupe,

as figurantes percorrem o perímetro do terreiro em filas de quatro. Os homens da

geração do defunto procedem da mesma maneira, mas em sentido contrário,

enquanto os escaramuçadores, num vaivém constante munidos de espadas e de

terçados simulam lutas com entes invisíveis, supostos espíritos que tentam arrebatar

a alma do defunto e levá-la por maus caminhos.32

31

Tais significados estão além das possibilidades do presente trabalho, pois carecem de análises apuradas, as

quais seriam mais abrangentes se realizadas por pesquisadores iniciados nas tradições do grupo estudado. 32

QUINTINO, Fernando Rogado. Música e dança na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.18, 1963, n72, p.562.

Bijagó - Dança do vaca-bruto

BCGP, n.110, 1973, p.345.

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Dança fúnebre dos Felupe. Os tambores, imprescindíveis, acompanham.

Sentado no “trono”, o morto. BCGP n.72, 1963, p.559

Dançarinos Bijagó

BCGP, n.18, 1950, p.159. Dançarinos Balanta BCGP n.5, 1947, p.222

B

BCGP,

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Nestes exemplos percebe-se a interação entre os povos guineenses e o seu meio.

As manifestações culturais apontam para coisas da natureza e dos antepassados refletindo, em

grande medida, sociedades que transitavam entre dois mundos: o visível e o invisível.

Os portugueses diferenciavam a música

dos Fula e Mandinga das demais. Apontavam o

predomínio da influência árabe que, para eles,

reproduzia sons melodiosos e familiares. Quanto aos

demais grupos, em que preponderava a percussão dos

tambores, consideravam que o ritmo era

“impressionante, difícil e complicado.”33

Apreciavam

a música dos Balanta e equiparavam seus músicos aos

islamizados, pois sua arte estava “fora do domínio do

barulho e do estrondo, do ruído ensurdecedor de

tambores e ‘bombolons’.”34

Embora não

compreendessem o diferente, percebiam a existência

de uma relação indissociável entre a música, a dança e

a vida.

Os instrumentos assumiam um aspecto muito significativo no contexto da

expressão musical da Guiné. Eram construídos por seus próprios tocadores e guardavam uma

relação única e inquebrantável que partia do individual para integrar-se, posteriormente, ao

coletivo. O mais importante dos instrumentos é conhecido pelo nome crioulo de bombolon.

Construído a partir de um tronco de árvore, escavado em seu interior de modo a formar uma

caixa de ressonância, possui comprimento variável (1 a 2 metros) e uma abertura longitudinal

pouco menor que seu comprimento. Tocado por um ou mais instrumentistas, transmitia

notícias importantes ou era utilizado em cerimônias de grande transcendência.

33

GOMES, Abílio. Notas sobre a música indígena da Guiné. BCGP, Bissau, v.5, 1950, n.19, p.415. 34

QUINTINO, Fernando Rogado. Música e dança na Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau, v.18, 1963, n72, p.569.

Dança de mulheres Fula;

região de Dandum, Bafatá.

BCGP n.72, 1963, p.561

Bombolon, Arquipélago dos Bijagó.

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Por toda a África os tambores também são utilizados para a comunicação à

distância: são os “tambores falantes”. Muitos destes instrumentos emitem sons que imitam

algumas línguas africanas tonais, ou seja, cuja compreensão está baseada na altura em que o

som é reproduzido. A linguagem tamborilada, assim chamada, reproduz, portanto, os tons

naturais presentes na linguagem falada, ou seja, a melodia presente nas palavras e frases.

Nem todos os eventos são comunicados através dos tambores, porém, quando isso

ocorre, há pessoas habilitadas tanto para transmiti-los como para recebê-los. Os tambores

devem ser tocados por membro do próprio clã, pois se tocado por outra pessoa a linguagem

transmitida torna-se incompreensível. Muitas das frases são repetitivas e podem ser

aprendidas de geração para geração.

Segundo António Carreira, os “tambores servem para anunciar morte à grande

distância, convocar os parentes e amigos, transmitir aos espíritos dos antepassados os

desejos do morto e as preces da família.”35

Fica claro perceber que nas sociedades

constituídas pela tradição oral a linguagem tamborilada, assim como o canto e a dança,

assume um papel preponderante. Nesse sentido, a importância do instrumentista, responsável

por “falar” através do instrumento, também evidencia-se.

O bombolon, o cumurá e o gilá36

, instrumentos de percussão, e a flauta, feita de

cana, eram tocados por toda a Guiné. Na maioria dos grupos o bombolon também possuía a

função de “chamar o vento”. Abílio Gomes (1950) revela que todos os barcos possuíam um

bombolon, pois na falta do vento, os marinheiros tocavam-no para chamá-lo. Entre os Fula e

os Balanta há o balafon, espécie de xilofone feito de madeira e executado com dois martelos,

constituído por cabaças de tamanhos diversos que são afinadas de

acordo com cada tecla,as quais possuem pequenos furos de onde são

estendidas teias obtidas do casulo de um determinado tipo de aranha,

produzindo uma ressonância rara [...] amplificada pelas pulseiras de

metal que o músico usa no pulso. A afinação do instrumento é

relacionada com o dialeto peculiar a cada grupo étnico ou às escalas de

suas canções originando múltiplas variações.[...] O balafon Balante é

característico da Guiné-Bissau e é heptatônico, medindo até 1,60

metros de comprimento, normalmente constituído por 27 notas.37

Balafon

35

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.713. 36

Fernando Quintino (1963, p.569) assinala que entre os grupos tradicionais há “três qualidades de tambores,

além do ‘bombolom’: um comprido, denominado entre papeis ‘ondame’, outro médio, denominado ‘tchânguere’

e um muito pequeno, denominado ‘peruto’. E todos os tambores participam de virtudes mágicas”. 37

ePORTUGUESe. Fale com o Balafon. Disponível em: http://eportuguese.blogspot.com/2011/05/fale-com-o-

balafon.html . Acesso: 14 nov.2011.

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O calande e a viola, instrumentos de corda, eram exclusivos dos Fula. O

primeiro, de apenas uma corda feita de tripa, friccionada por um arco do mesmo material,

produzia um som singular. A viola, ou toncron, na linguagem fula, era construída com três a

cinco cordas.

Entre os Mandinga destaca-se o korá, instrumento de corda construído a partir de

uma meia cabaça de tamanho grande, coberta por pele de cabra e uma haste que se encaixa

como um braço onde cordas de nylon são esticadas. O número de cordas varia de acordo com

a habilidade do executor podendo chegar a 21. Este instrumento é dedilhado com ambas as

mãos e o instrumentista o executa sentado ao chão, além de confeccioná-lo e adorná-lo a seu

gosto.

A cada aproximação fica evidente que há muito mais por apreender sobre a

Guiné-Bissau. Não obstante os esforços da política assimilacionista do Estado Novo

português, havia algo inalcançável à manipulação política e à compreensão dos intelectuais e

pensadores da época. É possível imaginar o quanto incomodava aos pregadores da

“civilização” que a maioria dos “indígenas” daquele tempo declinassem da “cidadania”

portuguesa. De acordo com Álvaro Tavares (1946), muitos negros sentiam forte “atracção

[...] pelo meio em que nasceram ou que os rodeia e que os levam a abandonarem a

civilização europeia e a reintegrarem-se a sociedade indígena”.38

Estas e outras ponderações

38

TAVARES, Álvaro. Do Indigenato à Cidadania: o Diploma Legislativo nº 1.364, de 7 de Outubro de 1946.

BCGP, Bissau, v.22, 1947, n.8, p.858.

Mandinga, tocador de korá.

BCGP n.72, 1963, p.568.

Instrumentistas Felupe

BCGP n.61, 1961, p.158

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superficiais conduziram a um novo período do colonialismo que substituiu o “indígena

africano” pelo “negro não-civilizado”. De qualquer maneira, os portugueses colonizadores

estavam longe de compreender tamanho “retrocesso”, preferindo creditar a um primitivismo

evolucionista formas de viver diferentes, porém desafiadoras.

3.2 A magia dos povos da Guiné

Têm os povos da Guiné a sua mística própria,

que resulta da sua maneira de sentir, reflectir e actuar.

Essa mística não a podemos nós compreender em toda a

sua profundidade, porque sentimos, reflectimos e actuamos

duma maneira completamente diferente.

Os negros têm uma concepção especial do Universo

e reagem de acordo com essa concepção.

Fernando Rogado Quintino, Chefe da Circunscrição de Mansoa.39

Numa leitura apressada seria possível supor que o autor das frases em epígrafe

teria compreendido a diferença entre sua cultura e aquela que conheceu enquanto funcionário

administrativo na colônia da Guiné Portuguesa. Porém, adiante ele complementa: “nós temos

a nossa cultura, incomparàvelmente superior à cultura dos negros, e observamos a Natureza

e os seus fenômenos, com mais ciência e consciência.”40

Em demonstração inequívoca da

concepção europeia de sua superioridade cultural e adiantado estado civilizacional. Apesar

disso, Rogado Quintino capturou algo singular que, no entanto, passou por seu viés

classificatório, o qual, para ele e para a maioria da intelectualidade colonial portuguesa, era o

único possível naquela época.

A partir de estudiosos africanos como Hampâté Bâ (1982), as tradições africanas

foram sendo deslindadas. Diferentemente do que se entendia como civilizado ou evoluído, nos

mundos africanos predomina uma particular visão religiosa do mundo. Nela o visível é a parte

concreta de um universo invisível e este é composto de forças em constante movimento.

Nesse contexto o homem se insere e interage através de regras rituais precisas, as quais

variam conforme as regiões e os diferentes povos.

A cultura africana revela uma mundividência em que tudo interage e é indivisível.

A natureza é considerada como algo cheio de vida e, nessa medida, quaisquer desequilíbrios

das forças nela existentes acarretam vários tipos de distúrbios. A manipulação dessas forças -

39

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças: das instituições religiosas na Guiné Portuguesa.

BCGP, Bissau, v.4, 1949b, n.16, p.687. 40

Ibid., p.687.

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a magia - é a ferramenta disponível que os africanos possuem para restaurar o equilíbrio e

recuperar a harmonia em qualquer nível da estrutura social.

O Homem é o guardião dessa magia, função que lhe foi atribuída por seu Criador.

Para qualquer perturbação que ocorra à sua volta ele deve promover um comportamento ritual

destinado a recuperar a estabilidade, uma vez que tudo está intrinsecamente ligado. Assim, é

imprescindível, para o bem estar das pessoas e da comunidade, que as forças do universo

sejam utilizadas adequadamente. É preciso ter em conta que a manipulação das forças da

natureza - a magia - não guarda relação com o perigo ou a destruição, pois elas são

intrinsecamente neutras. Podem, todavia, assumir orientação “benéfica ou maléfica conforme

a direção que se lhe dê.”41

Segundo James Sweet (2003), há uma aproximação entre a religiosidade africana

e a ciência ocidental. A forma como a maioria dos africanos assume suas crenças religiosas -

como uma forma de explicar, prever e controlar os acontecimentos - é o ponto de partida para

essa aproximação. As crenças africanas e seus rituais foram concebidos com a intenção de

“lidar directamente com as coisas boas e com as ameaças do mundo temporal - doenças, seca,

fome, esterilidade, e muitas outras. Como tal, a religião fornecia muitas das explicações para

o que os ocidentais chamam ‘ciência’ ”42

No ocidente, ciência e religião seguiram caminhos diferentes e, em grande

medida, incompatíveis. A primeira passou a ter prioridade nas explicações sobre os

fenômenos do mundo, ao passo que a segunda tornou-se algo metafísico, até mesmo

incompreensível. Por essa razão, é difícil entender a íntima ligação existente entre religião e

ciência em África. Muitos estudos sobre o continente ainda descambam para a superstição e o

oculto e, nesse sentido, Sweet adverte que para compreender suas cosmologias é preciso

analisar as “crenças e práticas africanas nos seus próprios termos”.43

Cada grupo e cada região da Guiné possuem diferenciações significativas, mas

suas religiões tradicionais demonstram alguns aspectos comuns, como, por exemplo, a crença

num ser supremo e criador (Balanta, Manjaco, Papel). Na medida em que esse ser está

distante dos homens, o Irã promove a intermediação entre eles. A concepção do Irã varia em

cada grupo, mas, em todos eles, regula e dirige os atos individuais e coletivos, além de

intervir em todos os aspectos do cotidiano, tais como a semeadura, a colheita, o nascimento, o

41

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. v.1 .

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.186. 42

SWEET, James. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007, p. 133. 43

Ibid., p. 134.

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casamento, os ritos fúnebres, etc. De qualquer maneira, sempre representa um espírito

ancestral e deve ser lembrado e cultuado por seus familiares sob pena de mover-lhes castigos.

Pode ser considerado um espírito liberto após a morte, que preserva seus laços e suas

características enquanto vivo.

Para os povos da Guiné, como para o africano em geral, a força vital é o maior

valor existente. Os espíritos dos mortos, por sua vez, ocupam lugar de destaque entre as

divindades. “Os antepassados são hierarquicamente concebidos, tendo por centro a linhagem

unilinear que regula as relações entre os membros do grupo, também escalonados. O nativo

guineense, para se proteger da perda ou diminuição da força vital, recorre ao culto do Irã dos

antepassados.”44

Essa maneira de estar no mundo era considerada pelos portugueses como

primitiva e, por essa razão, em vários dos artigos publicados no Boletim Cultural, o tom

desqualificador está presente. Para Fernando Rogado Quintino, por exemplo,

O indígena da Guiné, tal como o Neanderthal, supõe-se rodeado e ameaçado por

uma legião de espíritos, que sentem e agem como ele [...] O negro da Guiné

submete-se inteiramente à vontade dos espíritos ancestrais. Consulta-os a cada

passo, nada fazendo sem a sua concordância, o seu prévio e valioso beneplácito.

[...] Na sua opinião, nenhum homem consegue triunfar na vida, sem a protecção dos

manes45

da família. Simbolizam estes manes determinados feitiços, que na Guiné

tomam a designação genérica de “Irãs”.46

Embora revele um discurso estritamente eurocêntrico, também mostra que os costumes

mantiveram-se apesar da presença europeia ao longo dos séculos. Ressignificados ou

adaptados, o fato é que os ancestrais jamais deixaram de ser cultuados e a magia esteve

sempre presente, independentemente da subjugação imposta.

Alguns povos da Guiné mantinham vínculos com animais, tais como a vaca, a

hiena, a onça, alguns répteis como o jacaré ou a jiboia. Algumas plantas e a árvore do poilão

em especial, podiam assumir atributos de divindades protetoras e, assim como os animais,

mereciam respeito e proteção. Por isso, algumas espécies de plantas e animais não eram

consumidas, machucadas, abatidas ou mortas. A planta, animal ou objeto ligado à natureza

por vezes assumia uma representação ancestral ou símbolo do grupo, protegendo-o e

determinando proibições, tabus e deveres particulares. Para Hoebl e Frost (2006), mantinha-se

44

GARCIA, Francisco Proença. Guiné 1963-1974: Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder

Português. Porto e Lisboa: Universidade Portucalense e Comissão Portuguesa de História Militar, 2000, sem

paginação. 45

Entre os antigos romanos, manes eram as almas dos mortos consideradas como divindades. 46

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.454.

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com estes totens um vínculo de “identidade emocional (que poderia) estender-se de um mero

sentimento de parentesco, à reverência real e à adoração.”47

A árvore do poilão (ceiba pentandra

var. guineensis), uma das maiores existentes na

África, pode ser comparada a um grande local de

expressão de crenças. Em quase toda a povoação

há o “Irã grande do mato”, um ser do mundo

invisível geralmente representado pelo maior

exemplar dessa árvore existente nas redondezas.

Durante as tempestades exerce a função de

pararraios e, por esta razão, as palhotas são

erguidas a certa distância. Fornecem, também, a

madeira para a construção das portas das

moradias, pois, assim, toda palhota ficaria

resguardada de espíritos malignos.

A comunicação entre o mundo visível e o invisível era feita através de símbolos -

os Irãs - os quais substituíam os corpos sepultados. Eram suportes concretos constituídos a

partir de vários elementos, tais como “pedra, estaca, pedaço de madeira, despojo de seres

(unhas, dentes, ossos), estátua, estatueta, escultura polimórfica”48

, entre outros.

O termo crioulo Irã (Irâm, Irân ou Hirâm)49

era utilizado para designar tanto o

espírito ancestral, a força vital, o local das cerimônias ou, até mesmo, o objeto representativo

da magia, do feitiço. Como explica António Carreira, essa designação

entrou no uso corrente mais com o significado de local da efectivação das

cerimónias mágicas e, simultâneamente, do próprio objecto, natural ou artificial,

sobre o qual ou junto do qual, se realiza o ritualismo, ou seja, o símbolo. No

consenso geral, mesmo que este símbolo seja artificial - confeccionado ou adaptado

para identificar o feitiço, o irã - ele incarna os espíritos de antepassados ou de entes

sobrenaturais. Quer dizer, símbolo e local confundem-se num mesmo significado.

Seja pela facilidade de exprimir e de grafar, seja pela decisiva influência do

crioulo, o certo é que o termo irã teve franco acolhimento e hoje substitui nos

falares correntes as designações de China, Chinabú, ídolo, feitiço ou qualquer outra

47

HOEBL, E.Adamson; FROST, Everett L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultrix, 2006, p.232. 48

QUINTINO, Fernando Rogado. Sobrevivências da Cultura Etiópica no Ocidente Africano. BCGP, Bissau,

v.19, 1964a, n.73, p.9. 49

Cada grupo possui, na própria língua, um termo para designar o Irã. Assim temos Utchái, Ussai ou Ossâl em

Papel; Ussâi, Ussâl ou Utchái em Manjaco e em Brame; Chinabú em Felupe; Êrandé ou Êramindé dos Bijagó;

Djanhui ou Djânhur em Banhum e Cassanga; Djânhui em Caboiana; Aulé, Ulé ou Uli na maioria dos Balanta;

Nénême ou Benibêm em Nalu; Djalã entre os Fula-Preto. Os nomes aqui apontados foram “traduzidos”

conforme compreendidos pelos portugueses em sua forma fonética, por vezes difícil de diferenciar.

Moça Papel aos pés do poilão, região de Biombo,

BCGP n.73, 1964.

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com idêntica ou similar equivalência, sobrepondo-se às próprias designações

vernáculas nas línguas nativas. 50

Entre os islamizados Mandinga e Beafada também existiam Irãs, os quais eram

designados Bulom, Blom ou Bolom. Isto demonstra que a religião muçulmana e as práticas de

matrizes africanas não entraram em choque, ao contrário, conviveram de forma simultânea ou,

provavelmente, adaptada aos dois mundos.

Os símbolos dos Irãs dos Manjaco, também conhecidos como forquilhas da alma,

são constituídos por estacas de madeira ou forquilhas com ou sem desenhos, estes em formato

geométrico. São esculpidos, geralmente, à faca e encontrados por todo chão. António

Carreira (1961b) aponta que, a partir das primeiras décadas do século XX, os Manjaco

passaram a utilizar figuras antropomórficas nos “Irãs” dos régulos. Em qualquer dos casos,

são fixados ao solo e feitos em pau-carvão (Prosopis oblonga) ou pau-sangue (Croton

celtidifolius), resistentes ao tempo e à térmite (cupim).

Os Irãs do grupo Papel são esculpidos de forma semelhante aos do Manjaco, com

adornos de tiras de pano vermelho, pedaços de corda, fios de contas e outros objetos. São

colocados dentro das baloubas (ou balôbas), pequenas palhotas circulares destinadas aos ritos

e construídas exclusivamente para esse fim. Próximos de cada símbolo são colocados

uma panela de barro emborcada sobre a qual o ritualista (o Baloubeiro) executa o

sacrifício de animais e o dârmar51

de bebidas e comidas, durante a invocação ou a

evocação; e um pote com água para as almas se dessedentarem. Estes Irãs situados

nas Balôbas incarnam os espíritos bons, ou seja, os dos antepassados (mais

50

CARREIRA, António. Símbolos, Ritualistas e Ritualismos. BCGP, Bissau, v.16, 1961b, n.63, p. 508. (grifo

do autor) 51

Dârmar ou Dârma, no crioulo da Guiné, deriva do verbo português derramar, entornar, no sentido de

oferenda. Pode referir-se ao ato de imolar animais ou ao derrame de bebidas ou comidas. Segundo Fernando

Rogado Quintino (1949b, p.695), “nunca comem, nem bebem, sem deitar primeiro uma pirada ao chão, ciciando

baixinho Eis a tua parte Irã”. Certamente, no Brasil há prática similar, notadamente quando se consomem

bebidas alcoólicas e deita-se “um gole para o santo”.

Irãs dos Manjaco de Bassarel, região de

Cacheu.

BCGP n.74, 1964, p.127

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conhecidos por espíritos de defuntos), aos quais compete a protecção, contra todos

os males, das sete gerações que a tradição regista como sendo a origem dos

Papeis.52

Entre os Bijagó também é costume manter os Irãs nas baloubas, sob a guarda dos

ritualistas (baloubeiros), de onde são retirados por ocasião das cerimônias. Segundo Santos

Lima (1947), as invocações dos espíritos ancestrais são feitas exclusivamente pela Oquinca

ou Iaquinca53

; outros rituais podem ser presididos por homens - Oamcandjam-ô - e ambos são

nomeados pelo rei da geração dona do chão. A mulher possui uma importância significativa

entre os Bijagó em razão de o sistema de parentesco obedecer a matrilinearidade, ou seja, os

descendentes pertencem ao clã materno. É ela quem escolhe o marido, embora isto não

signifique a prática da poligamia, exclusividade do homem. As Oquincas, os régulos e os

ferreiros, representam a estrutura social mais importante desse grupo.

Interior de uma balouba bijagó; destaque para o Érâmindê (feito em madeira).

BCGP n. 73, 1964, s.p.

Os portugueses diferenciavam os ritualistas dos feiticeiros. O primeiro era o

executor de cerimônias de qualquer tipo e possuía uma função social protegida. O feiticeiro

correspondia a uma figura nociva, temida, e que em tempos anteriores, quando descobertos,

eram condenados à morte Entre os Bijagó, por exemplo, os feiticeiros eram condenados a

morrer jogados ao mar ou por enforcamento. Quando os antigos régulos das ilhas queriam

52

CARREIRA, António. Símbolos, Ritualistas e Ritualismos. BCGP, Bissau, v.16, 1961b, n.63, p.521. (grifo

do autor) 53

O grupo Bijagó possui mulheres ritualistas - Oquinca ou Iaquinca - as quais são, geralmente, escolhidas pelo

régulo local. Quando este falece, ela o substitui até a nomeação de outro régulo. No arquipélago a mulher possui

uma importância diferente dos demais povos guineenses, pois entre os Bijagó o sistema de parentesco é

matrilinear, ou seja, os descendentes pertencem ao clã materno. Além disso, a mulher escolhe o marido, embora

não pratique a poligamia, exclusividade do homem. Por essa razão pode-se compreender o porquê de a oquinca,

junto aos régulos e ferreiros, compõe a estrutura social mais importante daquele grupo.

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demonstrar benevolência podiam condená-los à escravidão sendo, então, vendidos ao grupo

dos Sôsso estabelecidos no delta do rio Uno. Em outros grupos os feiticeiros descobertos

eram embrulhados numa esteira com uma corda ao pescoço e enforcados.

As cerimônias mais solenes junto aos Irãs deveriam ser presididas pelo régulo,

outras pelos ritualistas, cuja presença era sempre imprescindível em qualquer ocasião. O

régulo dirigia, especialmente, “os ritos relacionados com a apropriação da terra, com o

desbravamento do mato, com o corte do colmo para a cobertura de casas, com as

sementeiras e colheitas”54

. Também eram responsáveis pelos pedidos de chuva após os

períodos de estiagem. Tanto os Fula quanto os Mandinga, grupos islamizados, executavam

cerimônias semelhantes aos demais, principalmente “para a posse ou cultivo da terra,

sortilégios e imolação de animais.”55

Os rituais junto às áreas de cultivo visavam obter dos espíritos a fertilidade do

solo, chuvas suficientes e boas colheitas. Em geral eram feitos sacrifícios de sangue através de

imolação de animais domésticos como, por exemplo, o cão (Manjaco, Papel, Brame e

Felupe). O sangue era depositado na própria terra ou nos Irãs atribuídos ao campo de cultura e

a carne era consumida pelos participantes do ritual.56

As práticas rituais de povos guineenses, diferentemente de outras religiões,

realizavam-se sem horário definido, ou seja, ocorriam de acordo com a necessidade individual

ou coletiva do momento. Também os templos não possuíam qualquer ostentação ou destaque,

assim como os ritualistas, função exclusiva dos homens, à exceção das oquincas bijagós. Eles

não usavam trajes que os distinguisse dos membros da comunidade, pois “as vestes e as

relíquias simbólicas do ritual só aparecem no momento em que o oficiam.”57

Os chefes de

família também podiam oficiar cerimônias junto aos Irãs familiares mesmo sem terem

cumprido rituais de iniciação.

Na Guiné os ritualistas eram designados pelos nomes crioulos Jambacosse ou

Djambacós - para os homens - Jambacá ou Djambacá - para as mulheres - e Baloubeiro ou

Balôbeiro, sem distinção de sexo. Os nomes Jambacosse e Jambacá eram utilizados pelos

Manjaco, Brame, Felupe, Baiote, Cassanga e Banhum. Baloubeiro é a designação do ritualista

entre os Papel e Bijagó. Qualquer que seja, porém, a denominação, os ritualistas são os

evocadores e invocadores de espíritos de antepassados, de deuses e de génios (os

ritualistas ou sacerdotes dos Irãs); os adivinhos, botadores ou deitadores de sortes,

54

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.713. 55

Ibid., p.696. 56

Segundo António Carreira (1961a), entre os Manjaco e Papel a carne de cachorro era comumente consumida. 57

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949b, n.16, p.693

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dizedores ou profetizadores do futuro, curandeiros, bruxos, confeccionadores de

amuletos (ou guardas, na expressão crioula) e de poções que têm a finalidade de

defender os indivíduos do mau-olhado, da acção invisível dos inimigos vivos,

conhecidos e ignorados, e dos animais que incarnam a alma de inimigos já

falecidos e também de feiticeiros; e os curadores de males físicos (os mezinheiros

ou homens-medicina). 58

Os ritualistas assumiam a função, geralmente, através da hereditariedade, porém

nunca antes do cumprimento de várias etapas de preparação. Em alguns grupos os rituais

podiam ser presididos por homens ou mulheres, porém há alguns ritos executados

exclusivamente por homens, como a circuncisão, por exemplo. Pode-se dizer que há uma

hierarquia entre os ritualistas, porém apenas uma categoria é responsável pela comunicação

com os antepassados. Dependendo da complexidade do rito, é necessária a presença de vários

ritualistas, aí incluídos assistentes, como os tocadores do bombolon, entre outros.

Na Guiné, os Irãs (feitiços) eram multiplicados em tantos quantos necessários

para interceder por seus invocadores, preservando-os de males e dificuldades, respondendo-

lhes as dúvidas e orientando-os na vida. Por conta disso, estavam por toda a parte: “nas casas,

nos quintais, nas árvores, nos campos, nas fontes, etc.”59

Antes mesmo da construção das

palhotas, a consulta aos Irãs era imprescindível a fim de determinar o local mais apropriado.

Não “há morança nem chão que não tenha os seus Irãs.”60

Em geral pode-se distinguir 3 tipos de Irãs: os coletivos, os familiares e os

individuais. Os primeiros são comuns a uma ou mais tabancas e só podem ser consultados ou

invocados pelos habitantes agregados. Representam os antepassados mais longínquos do

grupo e são considerados protetores genéricos da coletividade. Também atuam em situações

específicas, tais como na escolha e posse de autoridades (régulos, chefes de tabanca e

ritualistas), na solução de litígios, nos ritos funerários, especialmente quando da escavação de

galerias tumulares, na confecção das sementeiras, para proteger a tabanca contra espíritos

nocivos ou a mortandade do gado, para forçar o regresso de membros obrigados a trabalhar

com os brancos, etc. Em geral, os Irãs coletivos têm nomes próprios e são colocados fora das

tabancas. Só são consultados e invocados por ritualistas preparados especialmente para a

função.

Os Irãs familiares, das gerações, ficam repousados nas palhotas, que são

consideradas parte integrante do imóvel. Podem ficar, por vezes, em locais sagrados, variando

de acordo com cada povo. Representam os espíritos de antepassados, dos quais acreditam

58

CARREIRA, António. Símbolos, Ritualistas e Ritualismos. BCGP, Bissau, v.16, 1961b, n.63, p. 510. 59

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.446. 60

CARREIRA, António. Manjacos, Brames e Balantas. BCGP, Bissau, v.22, 1967, n. 85-86, p.51.

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advir a ancestralidade comum do grupo. São cultuados exclusivamente pelos seus membros,

sendo vedados a estranhos. Alguns grupos costumam colocar os Irãs fixados ao chão, por

vezes dentro das palhotas ou nas varandas ou, por outras, dentro das moranças em locais

apropriados com ou sem cobertura.

Entre os povos cujo culto aos antepassados está vinculado, essencialmente, às

gerações das quais entendem descender, como os Bijagó, Papel e Balanta, os “Irãs” coletivos

são preteridos aos “Irãs” familiares, isto é, nas invocações de qualquer natureza é dada a

preferência aos espíritos mais próximos e conhecidos.

Dentre os símbolos bijagós mais importantes destaca-se o Oniká ou Onikâ,

imagem com características antropomórficas representa a geração dona do chão. O Tchiramã

ou Txiramã, protetor do mato em geral, principalmente do local onde ocorrem as cerimônias

de iniciação (manratche, em bijagó) também possui características antropomórficas, porém,

ao contrário do anterior, não apresenta o pescoço. A este espírito são atribuídas as precauções

e vigilância durante as cerimônias de defuntos.

Entre os Bijagó há duas representações distintas e igualmente importantes:

Orebuk e Erâminde. O primeiro

não tem forma humana porque simboliza apenas uma forma imaterial - um fluir de

essência divina - almas julgadas boas, vivendo a vida de anjos, sob protecção do

Supremo Ianhu; (o outro), Erâminde, ídolo de madeira, tem forma humana, porque

simboliza almas condenadas, no julgamento diante de Deus, traduzindo-se a

condenação no retorno à Terra para viver uma vida de tormentos, de privações, de

miséria, em sucessivas e infinitas incarnações. Daí vem a natureza irrascível da sua

índole e os males provocados à humanidade. Metem-se no corpo das pessoas,

fazendo-as adoecer (só saem por meio de exorcismos), ou tornando-as feiticeiras,

para melhor e mais disfarçadamente poder comer as almas incautas. [...] O orebuk

Oniká

ornamentados com diferentes panos e chapeus,

portam cabaças e chifres de bois, entre outros

objetos. BCGP, n.63, 1961, p.526.

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atende a consultas dos descendentes familiares e pauta as normas de conduta a

seguir em cada caso ou revés surgido; dita as leis - é o deus legislador. Erâminde

cura os males, porque manda nos espíritos demoníacos responsáveis por esses

males.61

Tomando como parâmetro as divindades bijagó, é possível apreender que no

mundo espiritual as forças também se encontram em constante disputa. Na Guiné, e

possivelmente por toda a África, o mundo visível é, também, resultado de um embate de

forças. Assim se desenrolam os dois mundos - o visível e o invisível - e suas respectivas

disputas e os consequentes esforços, de um lado e do outro, na busca pelo equilíbrio.

O Irã individual - o amuleto - tinha a função de proteger seu portador quando

longe da casa e, portanto, dos Irãs familiares. Nessa medida, eles “transferiam parte de seu

poder para um objeto - um búzio, um ossinho, um pausito, uma garra, etc.”.62

Todos, sem

exceção, utilizavam amuletos espalhados pelo corpo a fim de obter proteção contra os

espíritos maus, responsáveis, acreditavam, por todos os males orgânicos. Os amuletos, “nas

suas mil formas e tamanhos, nada mais são do que simples desdobramentos de feitiços.”63

James Sweet (2007) revela que os centro-africanos, assim como os povos da

Guiné, entendiam que os problemas físicos eram consequência das forças espirituais

destrutivas. Estas poderiam ser oriundas tanto do mundo dos vivos quanto dos mortos e

representavam um indício de que algo rompera a estabilidade da relação da pessoas com sua

comunidade, ou dela com seus ancestrais. Para reequilibrar tal situação lançavam mão de

adivinhos e curandeiros, os quais definiam a “causa da doença e prescreviam o remédio

adequado.”64

As mulheres da Guiné, não islamizadas, garantiam sua fertilidade usando

amuletos de ossos amarrados às costas. Caso quisessem conceber um menino, utilizavam

ossos da pata de um boi, caso quisessem uma menina, ossos da pata de uma vaca. Para

assegurar um aleitamento farto, penduravam colares no pescoço feitos de raízes das plantas de

seiva leitosa. Os amuletos eram, assim, confeccionados com elementos que guardavam

relação com as necessidades de seu portador. Esses elementos eram, geralmente, obtidos na

natureza, tais como ossos, dentes, raízes e plantas, pelos e peles.

61

QUINTINO, Fernando Rogado. Sobrevivências da Cultura Etiópica no Ocidente Africano - conceitos

superiores na mística Bijagó. BCGP, Bissau, v.19, 1964a, n.73, p.29-30. (grifos do autor). Não raras vezes os

autores portugueses valiam-se de suas concepções católicas (anjos, Deus) para relacioná-las com as crenças

africanas. 62

Id. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.455. 63

Id., Ibid., p. 446. 64

SWEET, James. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007, p.167.

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Os amuletos utilizados pelos islamizados traziam, também, materiais colhidos na

natureza. A eles eram acrescentados versos do Alcorão e eram, geralmente,

constituídos por pequenos rectângulos, quadrados ou triângulos de couro,

pendendo dum encordoado do mesmo material; ou ainda por pequenos discos de

alumínio, de prata ou outro material, pendurados em correntes de alumínio ou de

prata. E todos, mais ou menos, desempenham o duplo papel de embelezar e proteger

o organismo contra males imprevisíveis.65

Na descrição da Costa da Guiné feita em 1606 pelo padre jesuíta Balthazar

Barreira66

, consta que os Mandinga utilizavam um amuleto em forma de bolsa, com rezas e

orações retiradas do Alcorão e, por conta disso, afirmavam que nenhum mal os atingiria.

Além de proteger seu portador, as “bolsas dos Mandinga”67

faziam um grande efeito

persuasivo na conversão dos grupos não muçulmanos. (SWEET, 2007)

A “bolsa de Mandinga” de Abdul Injai

No final do século XVII e durante o século XVIII o amuleto mais popular na

diáspora luso-africana era a “bolsa de mandinga”.68

Em geral, continha “várias substâncias

incluindo pedaços de papel dobrados com orações cristãs escritas, pedras, paus, raízes, ossos,

cabelos, pêlos de animal, penas, pós, pequenos objectos abençoados, entre outros [...] a bolsa

65

QUINTINO, Fernando Rogado. Como se trajam e se adornam os povos da Guiné Portuguesa. BCGP, Bissau,

v.19, 1964b, n.73, p.43. 66

O padre jesuíta Balthazar Barreira nasceu em Portugal (1538) e morreu em Cabo Verde (1612). Consta ter

sido o primeiro evangelizador no oeste da África, tendo cumprido missões em Angola, Serra Leoa, Guiné

Portuguesa e Cabo Verde. 67

Sobre as bolsas de Mandinga ver: SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico:

século XVIII. 2008. 256 p. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. 68

Segundo James Sweet (2007), entre o final da década de 20 e início da década seguinte do século XVIII,

alguns escravos foram denunciados por utilizarem as bolsas de mandinga tanto no Brasil quanto em Portugal.

Excertos do Alcorão compondo um

amuleto.

Foto: Eva Kipp, 1994

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mais comum era a que protegia os escravos nas lutas.”69

A inclusão de orações cristãs nos

amuletos utilizados não significava,

necessariamente que os portadores das bolsas estavam a tentar integrar a teologia

muçulmana ou cristã no seu mundo espiritual [...] a maioria dos não muçulmanos em

África e dos escravos no mundo português era analfabeta. Se aqueles que levavam

as bolsas de mandinga se apercebiam sequer que os rabiscos no papel eram palavras

para serem lidas, é muito provável que o poder das orações não estivesse no sentido

literal das mesmas. Pelo contrário, o poder estaria na magia das próprias palavras. 70

Apesar de os Beafada terem por muito tempo sofrido forte influência da cultura

mandinga e adotado a religião muçulmana, mantiveram suas práticas tradicionais, ou seja,

adoravam Alá e também invocavam os espíritos ancestrais. Em cada povoação havia

o seu Nari protector, o bom, que reside numa árvore de grande porte, quase sempre

um poilão. De todos os naris, o mais popular é o Sacalá, espírito dirigente da

circuncisão, que não sendo visto pelos iniciados, no entanto lhes transmite ordens,

vigia-os e castiga-os. As mulheres aterrorizam-se com os seus gritos, quando à noite

ele sai a visitar as povoações, e fogem a esconder-se para que não o vejam, pois

mulher que veja o sacalá morre. O sacalá é um manipanço de pau enfeitado com

bandas de pano, tendo campainhas e chocalhos pendurados e dentro do qual se

mete um homem. Os biafadas muçulmanos, em vez do sacalá, têm o Gam-corã que

é, afinal, a mesma coisa com nome mandinga. O intermediário entre o sacalá e os

homens chama-se udjague. 71

Entre os Nalú, grupo fortemente mestiçado e influenciado pelos Fula, também convivia a

religião muçulmana e o culto aos antepassados. O ritualista responsável pela comunicação

com os espíritos ancestrais era denominado Lêté e o sacrifício de animais junto ao Irã era

feito por um auxiliar, o Sindêta.

A propagação da religião muçulmana na Guiné Portuguesa coube àqueles que

sabiam ler e escrever, pois somente eles eram capazes de compreender e recitar o Alcorão. Os

marabus foram responsáveis, ao longo do tempo, pela expansão dos costumes e da religião

apresentando-se como discípulos do profeta Maomé. Aqueles que não liam o árabe sabiam de

cor as orações obrigatórias e, por isso, podiam conduzir as preces diárias. Havia, também, a

figura do mouro, que não se deve confundir com o africano da região da Mauritânia. Na

Guiné, ele professava a religião muçulmana ao mesmo tempo em que oficiava rezas e

cerimônias, além de fazer remédios caseiros e amuletos utilizando versículos do Alcorão.

Na descrição de Gomes Pereira, o “mouro é um indivíduo astuto que vive da

crendice indígena, fornecedor de papelinhos escritos com dizeres mágicos, um oráculo vivo,

69

SWEET, James. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007, p.212. 70

Ibid., p.218. 71

BARBOSA, Octávio C. Gomes. Breve notícia dos caracteres étnicos dos indígenas da tribo Biafada. BCGP,

Bissau, v.1, 1946, n.2, p.235.

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astrólogo eminente, o consultor permanente dos indígenas”72

. Na verdade, os mouros eram

temidos pelos portugueses, uma vez que ao mesmo tempo em que mantinham negócios em

várias partes da colônia, também tinham livre trânsito além das fronteiras. Personificavam a

convivência entre a religião muçulmana e as práticas tradicionais.

Atualmente, a população da Guiné-Bissau é composta de maioria muçulmana. O

avanço do islamismo foi bastante acentuado na região, assim como tem sido em muitas partes

do mundo. A islamização dos povos guineenses foi amplamente debatida nas páginas do

Boletim Cultural e Fernando Rogado Quintino assim explicou:

Um fenômeno curioso se evidencia na Guiné, mais do que em todas as outras

possessões portuguesas: o triunfo insofismável do islamismo sobre o cristianismo. O

islamismo, sem propaganda organizada, sem clero estipendiado, sem auxílios

financeiros, nem protecção oficial, tem conseguido, só nestes últimos cinquenta

anos, o que o cristianismo não conseguiu, após cinco séculos do nosso domínio,

sendo, aliás, incontestável a superioridade doutrinal cristã e abnegada e esforçada

a acção missionária espalhada pela Colónia.73

Embora não admitissem, os portugueses também viviam situações para as quais

não encontravam resposta ou conforto dentro de sua concepção religiosa. Assim como os

negros com seus feitiços e amuletos, os brancos também lançavam mão de imagens e

medalhas, além de outros objetos menos “ortodoxos”, como chifres, garras, pés de coelho ou

ferraduras. Via-se pela Guiné

alguns brancos com amuletos iguais aos dos negros, disfarçados debaixo da

camisa, sobretudo nas crianças, nelas colocados pelos próprios pais, a instâncias

da gente da terra, para as livrar das maleitas próprias da idade. Também [...]

muitos brancos adultos que, em situações aflitivas, se socorrem de mouros e

feiticeiros, sacrificando, como qualquer preto, galinhas e cabritos aos feitiços

locais. [...] E a fé de uns e outros oscila entre os mistérios dogmáticos do

monoteísmo cristão e os ocultismos mágicos do politeísmo anímico, sendo possível,

ainda, que daí resulte uma nova doutrina complexa, que só com o tempo virá a

definir-se. 74

A magia e os feitiços desempenharam um papel significativo no contexto colonial

da África e da América portuguesa. Para Michael Taussig (1987, apud SWEET, 2007,

p.221)75

, funcionaram como “um ponto de concentração da Alteridade, numa série de

diferenciações raciais e de classe, bem presentes na distinção efectuada entre Igreja e magia e

entre ciência e magia [...] (uma) Alteridade na qual a selvajaria e o racismo (estavam)

intimamente ligados”. Por outro lado, também espalharam por todos os cantos, mesmo a

contragosto e poucas vezes admitido, uma atração irresistível.

72

PEREIRA, A. Gomes. Os Oincas. BCGP, Bissau, v. 1, 1946, n.3, p.437. 73

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949b, n.16, p. 706. 74

Ibid., p.718. 75

TAUSSIG, Michael T. Shamanism, Colonialism, and tha Wild Man: a study in terror and healing. Chicago:

University of Chicago Press, 1987, p.465.

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Na Guiné de meados do século XX o “inimigo” português estava por todos os

lados. Entre a dependência política e econômica da metrópole e os “vinte séculos de fé cristã

(que) não bastaram [...] para libertar a população branca da Europa, aliás tão progressiva e

civilizada, das algemas feiticistas.”76

, havia, também, o avanço muçulmano e um mundo

invisível imbatível.

3.3 Viver a magia

3.3.1 O cotidiano

Para que o Irã da tabanca ofereça ao chão o benefício da chuva... de um conto Balanta

As estruturas sociais dos povos da Guiné eram regidas por dinâmicas complexas e

acompanhadas de ritos específicos. Os grupos organizados de acordo com as práticas de

matrizes africanas observavam as “classes de idade” e os grupos que tiveram maior influência

ou eram islamizados organizavam-se de acordo com a prática de determinados ofícios.

Segundo António Carreira,

os elementos das classes de idade e das corporações de ofícios estão colocados em

grupos devidamente hierarquizados, com diferenciação de certos direitos, embora,

por vezes se lhes note a hereditariedade de funções e uma endogamia em relação ao

próprio grupo, mas sem, todavia, haver a repulsa de convivência, separação ou

distinção de qualquer natureza nas suas relações.77

Os grupos islamizados, especialmente os Mandinga e Fula, apresentavam uma

estrutura social com dois segmentos importantes: o dos ofícios, com suas hierarquias internas,

e as famílias consideradas nobres,

das quais fazem parte os indivíduos descendestes de famílias que, no período áureo

do poderio de grupos, se elevaram à categoria de governantes e de dirigentes

políticos, guerreiros, senhores de terras e de gado e de escravos. Das corporações

de ofícios fazem parte os profissionais de cada ramo de actividade. Existia a

transmissão hereditária de funções, ainda que observada sem grande rigor. 78

Os régulos Fula e Mandinga eram oriundos dessas famílias nobres e dividiam as regiões sob

sua influência em outras menores, confiando-as a pessoas de mesma origem. Entre os

Mandinga existiam três categorias de ofícios: os sapateiros, os ferreiros, que incluiam

cultivadores de terra, e os negociantes ambulantes. Dos Fula, António Carreira (1961a)

distinguiu duas categorias distintas: os chefes políticos ou régulos e os trabalhadores da terra.

76

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949b, n.16, p.706. 77

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.664. 78

Ibid.,p.671.

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As “corporações de ofício” dos Fula agrupavam os tecelões, pastores, pescadores,

sapateiros, profissionais da madeira (confecção de canoas, pilões, portas para as casas,

bancos, utensílios domésticos, etc.), ferreiros (confecção de utensílios para a lavoura,

pulseiras, aneis, brincos, objetos de adorno em geral, etc.), ourives (agregados ao grupo dos

ferreiros), os djideus (judeus, em crioulo, referindo-se aos cantadores ou tocadores de

instrumentos), alfaiates, bordadores de cabaia (túnicas masculinas), caçadores, auxiliares de

régulos e tocadores de cavalos dos régulos. Das profissões exercidas provinham alguns nomes

como o dos régulos, Baldé ou Embalo; dos cultivadores, Candé; dos tecelões, Ganó e Kassé;

dos pescadores, Si, etc.

Dentro dessas categorias de ofícios havia uma rígida endogamia79

. Sobre esta

prática, Hâmpátê Bá (1982) explica que os conhecimentos esotéricos, bem como os poderes

mágicos deles decorrentes, assim eram preservados, ou seja, não eram alcançados por pessoas

estranhas ao grupo social. Tal prática visava mais a manutenção dos “segredos” dentro do

próprio grupo do que um aparente isolamento. Esses grupos eram, portanto, especializados e

cumpridores das atividades sagradas de forma harmoniosa a ponto de formarem “castas”80

,

porém estas não se baseavam na concepção sociologicamente tradicional com castas

“superiores ou inferiores”.

É importante ressaltar que certos ofícios assumiram um caráter sagrado-religioso,

assim como as ferramentas utilizadas para executá-los. Entre os ferreiros, ourives, sapateiros e

tecelões, por exemplo, “as ferramentas pertencem ao artesão e respectivos aprendizes ou

ajudantes, sejam ou não eles membros da própria família daquele.” Nos outros ofícios, tais

como caçadores, pescadores, tintureiros, etc., os instrumentos utilizados na prática do fazer-se

eram transmissíveis mediante certos rituais. Além disso, seus sucessores, “do mesmo modo

que lhes herdam as profissões e as ferramentas, assim assumem a obrigação de solver, antes

do enterro ou depois, consoante se decidir, as dívidas deixadas.”81

Os rendimentos auferidos pelos artesãos (ferreiros, tecelões, sapateiros, ourives,

tintureiros) dos povos islamizados lhes pertencem totalmente, cabendo-lhes dar a destinação

que lhes aprouver. Isto não se aplica aos caçadores e pescadores, cujo produto do trabalho

sofre a fiscalização do régulo. A este é paga uma espécie de tributo, ou seja, quando se

captura um animal de determinado porte, por exemplo, o régulo separa, previamente, a parte

79

O termo endogamia descreve o matrimônio exclusivo entre os membros de um grupo específico de um povo

(casta, nobreza ou outra camada), exigido por lei ou costume. 80

Casta é a classe rigidamente fechada, que pode estar baseada em uma identidade de profissão. Seus membros

são determinados por nascimento e proibidos de casar-se fora dela. 81

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.705-6.

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que lhe cabe, isto é, a melhor parte. “Se for hipopótamos, crocodilo, búfalo, sim-sim, elefante,

leopardo ou algum antílope corpulento, além da parte pertencente ao régulo, o profissional

executa uma cerimónia antes de esfolar as peças abatidas”82

. O sangue dos animais deve ser

vertido no mesmo local onde caíram, pois o sangue pertence a terra.

Aos caçadores é vedado o abate de animais venerados pelo grupo a que pertença,

tais como certas aves, jiboias e crocodilos. Aos pescadores é proibido utilizar certas ervas que

possam envenenar as águas das lagoas, charcos ou pequenas correntes de água das quais os

demais possam fazer uso.

Os povos islamizados possuem duas categorias de funções destacadas. Uma delas

é constituída pelos dirigentes ou ritualistas dos Irãs e dos cemitérios, além dos coveiros; a

outra, em que os ofícios definem grupos mais ou menos importantes socialmente, compreende

os tecelões, manufatores de tambores, especialistas em escarificações, caçadores, pescadores e

ceramistas. Os ritualistas dos Irãs e dos cemitérios utilizam símbolos que os acompanham por

toda a vida e com eles são enterrados quando morrem.

Os coveiros utilizam ferramentas próprias, as quais podem ser de uso comum de

seus auxiliares. No ofício de tecelão e manufator de tambores os artesãos facultam as

ferramentas e utensílios aos aprendizes e ajudantes. Junto a outros artífices, os aprendizes

devem providenciar ferramentas próprias para ingressar no ofício. “As ferramentas e

instrumentos de uso transmitem-se aos legítimos herdeiros, quando estes sejam profissionais

da arte ou ofício”83

. Inexistindo um herdeiro que preencha tal condição, as ferramentas são

herdadas pelo auxiliar mais antigo do falecido artífice.

Entre os Manjaco, Papel, Brame e Felupe é proibido o abate de certas aves como

o martelo e o grou coroado, por exemplo. Répteis como o camaleão ou o crocodilo e

mamíferos, como o porco formigueiro, o leopardo, a onça e a hiena, também são preservados.

Os crocodilos podem ser abatidos quando tiverem atacado qualquer pessoa, pois, nesse caso,

ele é considerado a encarnação de um feiticeiro. Nos matos sagrados só podem ser abatidos

animais ferozes e o caçador deve efetuar um rito ao Irã do local pedindo-lhe perdão. O

produto da caça e da pesca pertence aos profissionais, porém quando se tratar de animais de

grande porte, tal como ocorre entre os povos islamizados, não os podem remover do local sem

antes o régulo separar sua parte.

82

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.707. 83

Ibid., p.719.

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158

É importante retomar Hampâté Bâ (1982) para melhor compreender o significado

dos ofícios nas sociedades tradicionais africanas. De início deve-se ter em conta que as

atividades humanas tinham, frequentemente, um caráter sagrado ou oculto. Isto ocorria,

principalmente, junto àquelas cujo produto resultava de uma transformação da matéria, pois

esta, como tudo o mais na natureza, era considerada viva. O conhecimento artesanal era

esotérico, transmitido de geração a geração, e possuía uma revelação inicial.

O trabalho dos artesãos tradicionais tinha um sentido diferente daquele esperado

pelas práticas do capitalismo. Representava, em princípio, uma função sagrada que envolvia

“as forças fundamentais da vida”84

e se aplicava a todo o seu ser. Especificamente em se

tratando do ferreiro, este devia possuir um conhecimento vasto da vida. “Renomado ocultista,

a mestria dos segredos do fogo e do ferro faz dele a única pessoa habilitada a praticar a

circuncisão”85

tornando-se o grande mestre da faca. O ferreiro e o tecelão estão no topo da

hierarquia dos ofícios porque denotam o “mais alto grau de iniciação.” Nesse sentido, toda

atividade tradicional “constitui uma grande escola iniciatória ou mágico-religiosa, uma via de

acesso à unidade, da qual, para os iniciados, é um reflexo ou uma expressão peculiar.”86

Entre os Bijagó, o ferreiro (odjiqui) representa mais do que um artesão do metal.

Sua função e respeitabilidade extrapolam suas funções básicas:

É um advogado profissional, senhor da palavra, mestre na

argumentação [...] A sua real importância não provém do cargo

inerente de advogado e sim do principal, de ele ser Ferreiro: mas

também não é por acaso ou por capricho que esta figura desempenha

aquela inerência de funções. As razões envolvem, como sempre,

sutileza e engenho [...] Ele, diante da sua forja, domina ao mesmo

tempo o lume e o ferro. Sendo este um metal tão duro, nem por isso

essa dureza resiste à sua vontade, que o domina, verga, corta, reduz a

limalha. [...] Esta figura, Ferreiro da Tabanca, aparece nas

sociedades de todos os indígenas da Guiné, numas com mais poderes

que noutras, mas sempre com poderes.87

Um Ferreiro -Odjiqui - da Ilha Formosa

Foto do aldeamento montado por ocasião da Exposição do V

Centenário da Descoberta da Guiné. Bissau, 194688

.

84

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. v.1 .

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.188. 85

Ibid., p. 198. 86

Ibid., p.199-200. 87

LIMA, Augusto José Santos. Organização Económica e Social dos Bijagós. Lisboa: Soc. Industrial de

Tipografia Ltda., 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série “Memórias” n.2, p.80-1. 88

Ibid., encarte.

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159

Esse poder do ferreiro está inscrito na magia. Assim como outros ofícios, depende

de uma longa aprendizagem junto de profissional consagrado e, também, de cerimônias

pertinentes diante dos Irãs próprios, os quais, no momento oportuno, “dizem” quando o

aprendiz pode considerar-se pronto para o ofício. (LIMA, 1947) A figura do artesão

profissional demonstra “como o conhecimento pode se incorporar não somente aos gestos e

ações, mas também à totalidade da vida”89

. Uma vez que deve seguir um conjunto de regras

ligadas à sua atividade, possui uma maneira de se relacionar com a natureza e com seus

semelhantes. Nessa medida, todo o conhecimento é mais do que sabido, é vivido em toda a

dimensão do aprendiz e do artesão.

Ferreiro fabricando adornos com seu ajudante acionando o fole90

À exceção da olaria, majoritariamente executada por mulheres, os demais ofícios

eram exercidos apenas por homens. As funções de coveiro e ritualista também exigiam

cerimônias especiais e um longo período de formação.

Essa forma de transmitir conhecimento, que a maioria dos povos da Guiné

possuía, provavelmente incomodou bastante àqueles que pretendiam tirar o negro da barbárie.

Procuraram, sem muito sucesso, colocá-lo nos bancos escolares para “aprenderem” sobre

coisas que não lhes traziam significado. A oralidade e a mundividência africana eram, em

ultima instância, empecilhos às investidas de “civilizar”.

Os grupos formados em razão da idade tinham por objetivo, além de cumprir os

preceitos inerentes a cada um dos povos que assim estavam constituídos, promover a

89

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. v.1 .

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.199. 90

QUINTINO, Fernando Rogado. Prática e Utensilagem agrícolas na Guiné. Lisboa: Junta de Investigações

do Ultramar, 1971, não paginado.

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sociabilidade. Em toda a faixa etária havia um conjunto de orientações e ritos a serem

cumpridos, tanto de iniciação quanto de passagem.91

Ao final, obtinha-se

a definição dos direitos e obrigações dos indivíduos em relação ao agregado; o

estabelecimento da posição que ocupa; a orientação e ensino quanto a praxes, usos

e costumes, morais e sociais, e tradições, com vista a imprimir, no interior de cada

parcela do agregado, um forte sentimento de solidariedade e de coesão. 92

Cada faixa de idade, agregando homens e mulheres, compunha a manjoandade (da mesma

idade, da mesma geração). Esta variava em cada um dos povos da Guiné de acordo com o

número de escalões instituídos: os Brame possuíam três; nos Balanta havia cinco; entre os

Manjaco eram seis; os Baiote, Felupe e Papel possuíam sete; entre os Bijagó há diferenças em

cada uma das ilhas do arquipélago, variando de quatro a nove, segundo levantamento efetuado

pelo Inquérito Etnográfico de 1946. Apenas entre os Felupe e Bijagó existem grupos etários

exclusivamente femininos.

As classes de idade e divisão por sexo definem a hierarquia e o trabalho a ser

executado pelos membros das diferentes manjoandade. Isto pode ser melhor compreendido

observando-se o exemplo bijagó esquematizado a seguir:

Idade Fase da vida Nome bijagó Características principais/responsabilidades

HOMENS

1 Bebê Neea Acompanha a mãe em todas as suas atividades,

inclusive em cerimônias das quais ela participa.

2-6 Criança pequena Ongbá Idem

7 - 11 Crianças Cadene ou

Cadena

Guarda do gado; auxílio na caça; em cerimônias

com a presença de todos da tabanca, participa

dançando e tocando pequenos tambores.

12-17 Adolescentes Canhocám

Participação nas atividades produtivas; subir nas

palmeiras, artesanato e iniciação às regras sociais,

iniciação ao segredo das plantas, guarda da aldeia;

participa das cerimônias tocando instrumentos

próprios à sua faixa etária.

18-27 Jovens Cabaro, Cabido

Período de liberdade: festas, danças e conquistas

amorosas. Trabalho regular: limpar os caminhos da

aldeia e participar de atividades que exijam boa

condição física; apoio às atividades agrícolas e à

produção do óleo de palma. Cerimônia de iniciação

mais importante: o Fanado

28-35 Jovens adultos Camabi

Após o Fanado, execução de trabalhos mais

pesados; pagamento da “grandeza” aos mais velhos

que lhes transmitem os “segredos da vida”.

Administram os palmares e florestas.

91

Segundo Arnold Van Gennep (2011, p.29-30), os ritos de passagem determinam a mudança de um status

social a outro. Existe “uma categoria especial de Ritos de passagem, que se decompõem, quando submetidos à

análise, em Ritos de separação, Ritos de margem e Ritos de agregação [...] os ritos de separação são mais

desenvolvidos nas cerimônias dos funerais; os ritos de agregação, nas do casamento”. Os ritos de margem

deixam o indivíduo em situações opostas de status, como o noivado, por exemplo. 92

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.665.

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161

36-55 Adultos Odôdo ou Caxuca

Passam de iniciados a iniciadores. Podem possuir

casa e terras; têm direito a casas e ter filhos, como

também podem fazer parte do conselho dos mais

velhos, servindo-lhe de porta-voz de suas decisões.

+ de 55 Homens Grandes Cabongha ou

Ocoto

Guardiões dos conhecimentos e das regras sócio-

culturais tradicionais. Recebem ofertas (grandeza)

dos mais jovens.

MULHERES 1 Bebê Neea Acompanha a mãe em todas as suas atividades,

inclusive em cerimônias das quais ela participa.

2-6 Criança pequena Ongbá Idem

7-11 Crianças Numpune ou

Cadena

Execução de trabalhos domésticos, transporte de

água, apanha de pequenos moluscos, vigilância dos

arrozais

12-20 Adolescentes Campuni ou

Canhocam

Cerimônia de iniciação mais importante: Fanado.

Aprendem os saberes para viver na floresta;

responsáveis pelas “cerimônias de defunto”93

21-50 Mulheres casadas Ocanto Educação das crianças

+ 50 Mulher Grande Ocoto Depois da menopausa controlam as cerimônias das

mulheres

Repartição das responsabilidades e funções nas diferentes fases da vida dos Bijagó94

Os adolescentes aprendem as regras de vida tanto em relação aos mais velhos

quanto aos mais jovens. Com seus companheiros de idade estabelecem fortes vínculos, os

quais “se estenderão por toda a vida, uma vez que formam como que associações, que são

verdadeiros centros de aprendizado social”95

. Para se tornar um homem grande, submetem-se

a várias cerimônias de iniciação e fazem pagamentos aos mais velhos por meio de bens ou

prestação de serviços. Já a partir dos sete anos efetuam esse pagamento ao escalão superior e a

partir dos 18 anos passam a efetuar o pagamento da grandeza. Através destas práticas

alimentavam “a circulação dos produtos dentro do grupo; os mais velhos como que gerenciam

a produção, se apropriam de parte dela e, depois efetuam sua redistribuição [...] (e) existem

punições severas para os que se negam a efetuar esse pagamento.”96

Era difícil precisar “o tempo de permanência em cada grau ou escalão (de idade)

e a respectiva designação, por grupos étnicos.”97

Na verdade, a contagem do tempo era algo

bastante diverso da cultura europeia, pois os povos da Guiné não utilizavam o calendário

gregoriano, como a maioria dos países ocidentais, inclusive Portugal. É possível afirmar, no

93

Nestas cerimônias, as adolescentes “se transfiguram nos rapazes que morreram antes de realizarem a sua

iniciação”(SILVA, 2000, p.77, nota19), ou seja, “recebem nomes masculinos, usam roupas e armas masculinas

e se portam como os jovens mortos aos quais estão emprestando seus corpos.” (SILVA, 2000, p.79) 94

Adaptação dos quadros disponíveis em SILVA, Dilma de Melo. Por entre as Dórcades Encantadas: Os

Bijagó da Guiné-Bissau. São Paulo: Terceira Margem, 2000, p.70 e http://www.rituais.com/Downloads/Guine-

Bissau-Bijagos/Guine-Bissau-Bijagos.pdf. Certamente as informações foram sintetizadas apenas para oferecer

uma ideia geral sobre as “classes de idade”. 95

SILVA, Dilma de Melo. Por entre as Dórcades Encantadas: Os Bijagó da Guiné-Bissau. São Paulo: Terceira

Margem, 2000, p.74. (grifos da autora) 96

Ibid., p.70, nota 15. 97

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.671.

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entanto, que todos os povos da Guiné observavam a passagem do tempo em função das

chuvas, das luas e dos dias, dos acontecimentos importantes da vida social e do trabalho98

. A

maior parte do quotidiano girava em torno das atividades agrícolas e o tempo de semear,

colher e descansar baseava-se nos sinais da natureza. Assim, a contagem dos anos da vida de

uma pessoa corria de forma paralela, acrescentando-se os sinais que se evidenciavam em seu

próprio corpo.

3.3.2 Do nascimento à outra vida

Dentre os grupos que cultuam os antepassados e mantêm as práticas tradicionais,

viver a magia ocorre desde que o indivíduo é gerado. Ainda no ventre de sua mãe são

realizadas cerimônias para que o feto se desenvolva sem problemas. Enquanto a mãe estiver

próxima do Irã familiar, o bebê não corre riscos, porém, nas atividades que ela realiza fora

dos limites da palhota o perigo é considerado iminente. Para resolver essa dificuldade e

continuar executando suas tarefas longe de casa, tais como buscar água, cuidar da horta, fazer

compras, etc., as mães em geral usam amuletos, receptáculos do poder do Irã assentado na

morança.

Durante o parto, o Irã familiar é colocado de “sobreaviso” para manter vigilância

contra os maus espíritos que porventura estejam por perto. Assim, oferecem-lhe um galo e “se

os testículos deste se apresentam claros, é bom sinal: o ‘Irã’ está satisfeito. No caso

contrário, mais cerimónias se têm de celebrar e mais galos abater.”99

O espírito que animará o novo membro da comunidade é introduzido em seu

corpo pelo Irã através de seu umbigo. Nem sempre este processo ocorre sem problemas, pois

outros espíritos “lutam” para ocupar o corpo, ou seja, tentam reencarnar. Cabe, então, ao Irã

intervir para que, ao final de sete dias, quando a cicatrização do umbigo geralmente ocorre, o

espírito destinado ao novo corpo finalmente esteja a ele adaptado. O amuleto carregado pela

mãe até o momento do parto passa, então, para o filho que deve portá-lo até o desmame, ou

seja, por volta dos dois anos de idade.

98

Segundo António de Almeida (1947), os Fula dividiam a época das chuvas (tchudo) do tempo da seca (dungo).

As “estações do ano” estavam compreendidas entre a época da lavoura, da colheita (começo do tempo seco), do

descanso dos trabalhos agrícolas e a época anterior às chuvas. A época das chuvas era prevista por sinais da

natureza, tais como o canto do pássaro tchopé-uonhe. Os Manjaco e os Brame previam o início das chuvas

observando a queda das folhas de certas árvores e pela floração de outras, como a calabaceira e o embondeiro.

Para os Nalú, o ano Nalú tem 8 meses, correspondentes aos meses de junho a janeiro, pois os outros 4, quando

não se realizam trabalhos agrícolas, não são considerados. 99

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.455.

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Do nascimento até o desmame a criança não recebe um nome. É designada pelo

sexo - menino ou menina (impá ou umpóte em manjaco, brame e papel) - acrescentando-se o

nome do pai, da mãe ou da morança destes. Ao passar para a “nova fase”, a criança tem seus

cabelos raspados e recebe um nome. Até a puberdade sua preparação fica a cargo da família,

em casa, no campo ou no mato. Se é rapaz, aprende a vigiar o gado e as

sementeiras; entretém-se por vezes nos trabalhos leves de lavoura, com

instrumentos adequados à sua idade; aprende a subir às árvores, sempre na

presença do pai, com que anda. Interessa-se não raramente pela confecção de

alfaias - arcos, flechas, etc. Se é rapariga, ajuda a mãe em casa; pila e limpa o

arroz, cozinha uma ou outra coisa, varre a casa, o pátio adjacente - ou vai buscar

água na fonte. Quando calha, vai também com a mãe apanhar mariscos.100

Nota-se o quão diferente do “modelo” ocidental é a convivência de pais e filhos na educação

tradicional africana. Baseada no conhecimento sensível, nas experiências do cotidiano, onde a

toda a família assume a tarefa inalienável de conduzir as novas gerações, compartilhando com

elas suas próprias vivências e conhecimentos. A educação tradicional

começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas mais

idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira célula dos

tradicionalistas. São eles que ministram as primeiras lições da vida, não somente

através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas,

adágios, etc. Os provérbios são as missivas legadas à posteridade pelos ancestrais.

[...] o ensinamento não é sistemático, mas ligado às circunstâncias da vida.101

Entre os Mandinga, a criança chega à comunidade através do mouro102

, que lhe dá

o nome após considerar, entre outras informações, o dia e a hora de seu nascimento.

Pegando na criança pela cabeça, com ambas as mãos, trá-la para fora da palhota,

onde é aguardada pelos “Quebás”103

, sentados no chão, e mais parentes. Na

presença de todos o mouro diz, por três vezes, o nome do novo “denanon” (ser).

Seguidamente o “mouro” pega numa navalha e rapa o cabelo à criança, dando

assim por findo o primeiro baptismo mandinga.104

Durante toda a infância a criança resiste aos maus espíritos através de cerimônias

e remédios caseiros, até que, na adolescência, os rapazes passam a usar amuletos na forma de

aros de ráfia, colocados nos braços e pernas para torná-las mais fortes. As moças, preocupadas

com sua fecundidade, amarram pequenos ossos às costas, sinal visível de sua intenção para

constituir família e ter filhos.

De todas as fases da vida do membro das comunidades tradicionais, a chegada à

“maioridade” é das mais importantes. É o momento em que a pessoa adquire direitos e

100

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.905. 101

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). História Geral da África. v.1 .

São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p.194-5. 102

Lembrando que o mouro aqui se refere àquele que professava a religião muçulmana ao mesmo tempo em que

oficiava rezas e presidia cerimônias, além de fazer remédios caseiros e amuletos utilizando versículos do

Alcorão. 103

Chefes de morança. 104

PEREIRA, A. Gomes. Os Oincas. BCGP, Bissau, v. 1-4, 1946, n.3, p. 427.

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164

assume obrigações específicas, as quais definem sua posição dentro do grupo social. Homens

e mulheres dos grupos islamizados e não islamizados passam por um rito iniciatório

específico praticamente na mesma idade. As diferenças mais evidentes ocorrem por conta do

ritual, porém é conhecido por todos pelo termo crioulo fanado.

Entre os islamizados o fanado ocorre em duas etapas. Na primeira, homens e

mulheres sujeitam-se a provas de iniciação que os preparam para a próxima etapa,

considerada das mais importantes, que ocorre entre os 7 e 15 anos de idade: a circuncisão,

para os rapazes, e a excisão parcial ou total do clitóris, para as moças.

Os actos operatórios, em ambos os sexos, são seguidos de provas de resistência

física prestadas em acampamentos, no mato, com prazos de duração que vão de três

meses a um ano para os homens e de semanas para as raparigas, durante as quais

se ministram aos iniciados todos os preceitos e normas de conduta social. 105

As mulheres Manjaco, Papel, Brame, Balanta, Felupe e Bijagó, ao invés da

excisão recebiam, e até hoje isto acontece, escarificações (marcas feitas com objeto

pontiagudo e cortante) na pele. As escarificações são, geralmente, constituídas por desenhos

geométricos. Tal como uma tatuagem, os desenhos são feitos por um mestre que se utiliza de

uma faca para marcar o corpo. Sobre os cortes são colocados ingredientes, tais como óleo de

palma, pasta de plantas maceradas, visgo de castanha de caju, entre outros. Quanto maior o

relevo, maior o resultado.

Assim como a circuncisão dos rapazes, a escarificação tegumentar representa

uma prova da capacidade de resistência das iniciadas. Somente a partir desses procedimentos

é que ambos, rapazes e moças, adquirem o direito de se casar.

As escarificações tegumentares, a circuncisão e a afiação dos dentes constituíram (e

ainda constituem) entre os animistas (Manjacos, Brames ou Mancanhas, Paspeis)

em épocas não muito recuadas, um conjunto indivisível de regras de significado

sócio-religioso ligadas à entrada ou à promoção nas diferentes “classes de idade”.

[...] nunca praticaram a excisão do clitóris nem dos lábios da vagina (grande ou

pequenos), conjunta ou separadamente, e por isso mesmo enquanto o homem

abandonou, ou vai abandonando, a prática da escarificação tegumentar,

conservando a da perfuração das orelhas, a da afiação dos dentes e a da

circuncisão, a mulher, em certos aspectos mais conservadora do que aquele,

mantém-se fiel ao costume de fazer escarificações à faca nas regiões abdominal,

peitoral e dor-lomnbar.106

105

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.678. 106

Id. Mutilações étnicas dos Manjacos. BCGP, Bissau, v.16, 1961c, n.61, p.85.

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165

Pode-se dizer que há o fanado dos rapazes e o fanado das moças, rituais que, em

grande maioria, são realizados “em clareiras abertas no meio de denso matagal, recheado de

pontos onde é defeso abater árvores e fazer queimadas.”107

Durante o período em que os

jovens ficam afastados da comunidade, cumprindo os compromissos iniciatórios, recebem os

segredos da vida sexual, social, religiosa e política.

Ao final da cerimônia do fanado dos rapazes o ritualista manjaco orienta:

Circuncisos! Sois agora adultos!

Até aqui fostes rapazes irresponsáveis. Ides agora saber o que é a vida e como vos

deveis comportar nesta terra, que é nossa.

Da terra vem tudo quanto precisamos para viver.

Tratai-a bem - para que haja paz e fartura entre nós. É preciso lavrá-la; mas depois

de a lavrar, é preciso também cuidar da sementeira - para que o trabalho se não

perca e não venha a fome, a desgraça.

Se construirdes um “ourique”108

, procurai fazê-lo bem sólido, pedindo, se for

necessário, a ajuda dos outros.

O Irã, que aqui vedes, velará por vós, se vos comportardes bem, se respeitardes a

gente mais velha, as mulheres e os doentes; se não roubardes, se não mentirdes e

não caluniardes.

Se fordes pacatos, sereis felizes. Vivereis em paz com todos.

Circuncisos, acabei”109

Por estas palavras, é possível apreender a importância das cerimônias iniciatórias, bem como

o alcance desse momento na vida do iniciado. Revelam um código de conduto que ele deverá

cumprir durante toda sua vida para que haja equilíbrio para si e para a comunidade. No

período de recolhimento, imposto pelo fanado, os jovens constituem a manjoandade e

107

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.906. 108

Ouriques são construções que impedem que a água invada os campos cultivados; diques. 109

Ibid., p.908.

Mestre escarificador.

BCGP n. 68, 1962, p.538 Moça Manjaca com

escarificações.

BCGP n.61, 1961, s/p.

Rapaz Manjaco e seus

dentes afiados.

BCGP n.61, 1961, s/p.

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166

estabelecem fortes laços de solidariedade e, ao mesmo tempo, respeito e deferência para com

as mais antigas.

Não há muitos detalhes sobre o fanado das moças. Os rituais são cobertos por

absoluto segredo e “o local sagrado onde se realizam as cerimônias femininas é interditado

aos homens”110

. Como no dos rapazes, é realizado no mato e também ocorre um período de

recolhimento, porém de menor duração.

Ao retornarem do mato do fanado, rapazes e moças ostentam trajes enfeitados. Os

rapazes dos grupos não islamizados, por exemplo, podem usar máscaras, partes de roupas

confeccionadas com fibras vegetais, entre outros adornos. As moças usam roupas especiais,

enfeitam os cabelos e ostentam penteados apropriados.

Fotos do Centro de Estudos

Os Fula e Mandinga executavam a circuncisão até o oitavo ano dos meninos,

conforme os preceitos do Alcorão, porém não raro a prática ocorria em rapazes mais velhos.

Nos demais grupos não islamizados a idade não era observada à risca, pois a cerimônia

dependia da consulta aos Irãs correspondentes, portanto, não possuía periodicidade constante.

Os Bijagó, por exemplo, realizavam o fanado de dez em dez anos e a festa podia

durar até cinco anos. Era o único grupo em que os jovens mudam de nome durante o retiro e

este nome perduraria na maioria dos casos. Para os rapazes, os momentos no mato do fanado

eram mais que um desafio., pois experimentavam a natureza de forma plena, numa vivência

singular:

o último nome é-lhe imposto quando deixa de ser “cabaro”, para ser “cabido”,

condição em que permanece dois anos, vivendo isolado no mato em barraca

110

SILVA. Dilma de Melo. Por entre as Dórcades Encantadas: Os Bijagó da Guiné-Bissau. São Paulo: Terceira

Margem, 2000, p.78.

Rapazes Balanta regressando do fanado.

BCGP n.96, 1969, s/p.

Meninas Balanta em dança ritual por ocasião do

fanado. BCGP n.96, 1969, s/p.

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improvisada, completamente nu, sem amuleto, sem símbolo algum e sem auxílio de

ninguém Durante esses dois anos, alimenta-se só daquilo que ele próprio consegue

obter [...] De “cabido” passa a “cassucai”. Pode ser, então, levado por qualquer

mulher que queira com ele constituir família. 111

Cumprida esta etapa, os jovens dos grupos islamizados encontravam-se em

condições de serem iniciados em outra. Os rapazes escolhiam seus futuros ofícios e passavam

ao período de aprendizagem, inclusive sobre o direito costumeiro de seu próprio grupo.

Geralmente, são os tios paternos que assumem um papel importante na vida dos jovens neste

momento. Eles são responsáveis por declarar rapazes e moças aptos para assumir a nova

“posição social” e promovem, também, ajustes para futuros casamentos. Isto ocorre por volta

dos 20 a 25 anos, entre os rapazes, e após a menstruação e desenvolvimento das mamas, entre

as moças. Apenas após constituírem família é que os homens podem, por exemplo, requerer

direitos sobre terras a cultivar.

Há um lapso de tempo que pode mediar entre a declaração de maioridade e as

conversações para o ajuste por parte do tio, e o casamento - às vezes anos seguidos.

Nesse período o pretendente torna-se um servo do pai da pretendida, pelo facto dos

costumes lhe imporem a prestação de determinados serviços em benefício deste, e

dos quais só se desobrigará, relativamente, após o enlace.112

Os ajustes de casamento entre os grupos islamizados113

ocorriam, de forma geral, a

partir de contrato ou acordos entre as famílias interessadas, ou entre o pretendente e a família

da mulher pretendida114

. Esses ajustes envolviam pagamento, em espécie ou produtos, por

parte do pretendente e eram negociados pelo tio paterno dos envolvidos. Em alguns casos, ao

irmão mais velho do pretendente também cabia presentear a família da futura esposa de seu

irmão. Isto acontecia porque era observado o levirato, ou seja, o costume no qual o cunhado

“herda” a viúva como parte dos bens do falecido irmão. Nesse caso, ele deve tomá-la como

esposa, prática esta que, segundo Carreira (1961a) era mais fielmente seguida pelos Fula e

Mandinga. Nos demais grupos, as viúvas eram consultadas previamente.

Entre os grupos não islamizados os arranjos para o casamento ocorriam de forma

direta, entre o homem e a mulher, ou, mais comumente, entre as famílias. A exceção é

observada nos Bijagó, pois ali é a mulher que escolhe o futuro marido, no entanto isto só lhe é

111

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.910. 112

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.678. 113

Vale lembrar que os Fula e Mandinga, influenciaram outros grupos, tais como Beafada, Nalu, Banhum,

Cassanga, Balanta-Mané. Estes, embora bebedores de álcool e comedores de carne de porco consideravam-se

islamizados por terem aderido a muitos costumes, tais como a obtenção do cônjuge, tipo de vestuário, de

habitação e de lavoura, adornos, etc. Seguiam os preceitos do Alcorão, todavia mantiveram o culto aos ancestrais

e as práticas daí correspondentes. Também a língua foi fortemente influenciada pelos Mandinga. 114

A futura esposa poderia ser uma mulher adulta, adolescente, criança, ou até mesmo ainda por nascer. De

qualquer forma, em nenhum momento era necessária sua aquiescência.

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permitido após ter construído uma moradia para ambos e, também, ter-lhe oferecido uma

comida apropriada para a ocasião.

O casamento (Bijagó) constitui um acordo essencialmente voluntário, assim como a

sua dissolução resulta da vontade de qualquer das partes. No entanto, o acto

matrimonial só se considera ajustado e legalizado quando o escolhido aceita a

refeição oferecida pela mulher e as famílias efectuam certas cerimônias,

acompanhadas de festas e danças.115

Em todos os povos da Guiné os acordos de casamento são acompanhados por

cerimônias específicas, acompanhadas ou não de oferendas e sacrifícios. Vale transcrever a

cerimônia manjaca descrita por Fernando Rogado Quintino:

No dia do casamento, os noivos são acompanhados pelos parentes mais idosos até à

palhota que lhes vai servir de morada. Ali há um cerimonial qualquer, em

obediência à crença correlativa. [...] O parente mais velho traça no chão, à entrada

da palhota, um risco, dividindo o que podemos chamar “hall” em duas partes. O

noivo degola um galo branco, que cabriola em arrancos arquejantes de morte, ao

longo do risco de um e de outro lado dele, esparrinhando sangue. Quando cessam

os movimentos do galo, a noiva entre na palhota, pisando as gotas de sangue que

caíram sobre o risco, em atitude correcta e firme, prometendo ao mesmo tempo aos

espíritos familiares, idêntica atitude ou comportamento na vida conjugal;

Depois, noivo e noiva, vão ambos sacrificar uma vaca, um porco ou um cabrito,

conforme as posses, junto ao “Irã” da morança.

Convém lembrar que este cerimonial segue a dois outros, um realizado em casa dos

pais do noivo e outro em casa dos pais da noiva. Assim, o “Irã”, consubstanciando

os espíritos dos antepassados, acompanha a cada passo, nas mais pequenas

particularidades, os negócios da vida familiar. 116

Geralmente, após a união o novo casal passa a residir no tabanca do homem. A

poligamia é uma prática comum, entretanto, apenas o homem tem o direito de se casar com

mais de uma mulher117

. As negociações em torno do primeiro casamento são feitas pelas

famílias enquanto que as subsequentes partem de acordos entre o casal.

Conforme o costume dos grupos, o marido deve, a cada noite, dormir na moradia

de uma de suas esposas, obedecendo a uma ordem determinada. Ali ele faz suas refeições e

dirige os negócios familiares. Esta regra só é quebrada em casos excepcionais, tais como o

período de no mínimo 8 dias que o homem desfruta de um novo casamento.

A primeira mulher tem posição destacada dentro da estrutura familiar. Ela, em

geral, dispõe de uma palhota privativa e possui certa autoridade sobre as demais esposas,

inclusive atribuindo-lhes as tarefas diárias. Todas as mulheres, no entanto, têm importância

na medida em que produzem e geram filhos. Cada mulher trabalha num pedaço de terra

dentro da propriedade familiar. A produção é recolhida dentro da parte que lhe cabe no

115

CARREIRA, António. Organização social e econômica dos povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.16, 1961a,

n.64, p.652. 116

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.465. 117

Embora entre os Bijagó a escolha do marido seja prerrogativa das mulheres, não lhe é permitido ter mais de

um marido.

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celeiro. Isto não significa que as outras mulheres estejam desobrigadas de concorrerem

igualmente para que o lar seja próspero.

A família é uma instituição muito importante na vida do africano. Na Guiné, todo

o obstáculo que impedisse sua constituição era combatido. O celibato era condenado porque,

em última instância, colocava em risco a “vida” dos antepassados, além de lançar ao

abandono o espírito do próprio celibatário. A esterilidade, por sua vez, era considerada uma

maldição, principalmente entre as mulheres. Era, também, uma das razões para a dissolução

do casamento.

Entre outros motivos o casamento podia ser desfeito por conta de maus tratos,

impotência, falta de assistência e renúncia total de relações sexuais, no caso dos homens;

adultério contumaz, infanticídio, recusa em aceitar outras esposas do homem, urinar de noite

na cama, no caso das mulheres. Assim, os impedimentos à continuidade da família eram

intoleráveis, pois uma família completa compreendia tanto os vivos, capazes de dar

continuidade a ela, quanto os mortos, “desde o primeiro antepassado longínquo até ao último

descendente vivo.”118

A construção da morada da nova família também previa a realização de ritos. De

início, apelavam à orientação dos espíritos familiares, que indicavam o melhor local para

estabelecê-la, em geral, próximo a um poilão.

Nesse local, traçados os riscos indicativos da posição das paredes exteriores,

procede-se a várias formalidades místicas, como o enterramento de frutos de

plantas de longa duração (para que a palhota tenha uma vida tão longa como elas),

esparzimento de sangue de animais imolados, de bagos de arroz cozido com azeite

de palma, de aguardente, etc. (para que os espíritos se dessedentem neles) e outras

formalidades do mesmo género. 119

118

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.904. 119

Id.. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.464.

Homem Grande Beafada, mulheres e filhos. Segura o Alcorão e o Rosário à frente das palhotas.

BCGP, n.96, 1969, s/p.

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Fica evidente que os povos da Guiné possuíam modos de viver e se organizar bem

estruturados, baseados nas relações particulares de parentesco. Em todas as ocasiões,

nas cerimônias, nas atividades econômicas, nas disputas legais, nos litígios, nas

heranças e no casamento, como tudo isso está relacionado com parentesco, o lugar e

as funções dos membros dos grupos unilineares são definidos e nítidos120

.

Quer nas manjoandade (manjuandade), quer junto aos que exerciam um mesmo ofício, cada

um cumpria seu papel para a manutenção e equilíbrio das moranças e das tabancas.

O sistema de parentesco na Guiné é unilinear: patrilinear ou matrilinear. Nos

grupos islamizados os filhos são considerados descendentes da linhagem paterna. Nos demais

são observadas ambas as situações. O parentesco define os direitos sucessórios. No caso dos

Fula, por exemplo, os cargos políticos e os bens materiais são transferidos de irmão para

irmão, a começar pelo mais velho. A transmissão de bens entre os grupos tradicionais

geralmente ocorre através dos irmãos uterinos (da mesma mãe) ou germanos (da mesma mãe

e mesmo pai). A exceção fica por conta dos Bijagó, pois ali ocorre uma distribuição

proporcional de bens tanto entre filhos quanto entre irmãos.

Na vida adulta, homens e mulheres estão voltados para o bem estar da família, da

comunidade e dos antepassados. Em síntese, “os deveres de pais para filhos, de filhos para

pais e dos membros da família entre si, e, ainda, os de grupos de famílias, nas suas relações

sociais, andam sempre cativos a determinadas práticas religiosas”121

. Estas significavam, na

verdade, a própria forma de viver de cada povo na Guiné.

A velhice, ao contrário do que se percebe no mundo ocidental, é um período de

abastança e respeitabilidade. Os homens grandes recebem o conforto da família e produtos

oriundos do trabalho dos seus parentes (mulheres, filhos ou pessoas da morança). Em geral,

participam do Conselho dos Anciãos ou Tribunal da Grandeza, organismo que, geralmente,

tem a última palavra sobre assuntos de interesse coletivo ou litígios particulares.

120

HOEBL, E.Adamson; FROST, Everett L. Antropologia Cultural e Social. São Paulo: Cultrix, 2006,p.226. 121

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.471.

Conselho de Anciãos Balanta.

Região de Mansoa. BCGP n.96, 1969, s/p.

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Considerando a estreita interação entre o mundo dos vivos e dos mortos, a maioria

dos povos da Guiné atribuía grande importância às cerimônias fúnebres. Segundo António

Carreira, acreditavam que ninguém morria naturalmente, pois a morte seria resultado da ação

de espíritos. No caso de “crianças e de adolescentes, o caso tem menor gravidade; se de

adultos, há que determinar as causas para poder adoptar precauções contra os maus

espíritos.”122

Uma das funções mais importantes dos ritualistas era dirigir as cerimônias

fúnebres. Velavam o cadáver e orientavam as ações dos participantes, como a lamentação das

mulheres, o toque dos tambores, a imolação de animais, etc. Em geral, contavam com o

auxílio dos coveiros, os quais, assim como os ritualistas, passavam por um longo processo de

iniciação até poderem assumir a tarefa. Nos “funerais de indivíduos sem direito a sepultura

em galeria tumular, são eles simultaneamente coveiros e ritualistas.”123

Considerando-se que a morte era ação de um comedor de almas, da ação de um

espírito maléfico que se incorporava na pessoa viva, durante as cerimônias fúnebres eram

realizado o “interrogatório do defunto”. Esta prática, realizada pelos Felupe, Manjaco, Papel e

Bijagó, consistia em descobrir de quem era o espírito responsável pela morte. O

“interrogatório” era uma prática observada já no século XVI e relatada por Álvares Almada:

Nesta terra se enterrão os defuntos com grande apparato, cousa que se póde ver,

porque vão accompanhando aquelle morto ao som de huns tambores muita gente e

vai diante grão copia de soldados, que vão escaramuçando ao som dos tambores que

vão tocando, e os que levão o morto caminhão apressados até o logar onde lhe fazem

a pergunta que diga quem o matou, - que he da maneira que se faz no Reino de

Casamança.124

Era prática antiga na Guiné e disseminada por toda a África. Era imprescindível quando o

falecido era um régulo, um ritualista (homem ou mulher) ou um homem grande. Também o

ritual do “interrogatório” era acionado em caso de morte suspeita ou a conselho do ritualista

responsável. “Outrora, todos os adultos de ambos os sexos, logo que falecessem eram

submetidos a perguntas.”125

O ritualista ao conduzir a cerimônia fúnebre colocava sobre o

morto panos vermelhos e azuis.

Em presença de numerosa assistência, fazendo círculo, ao som do Bombolon, o

ritualista inicia as perguntas em voz alta: que Irã te matou? quem se serviu dele

(Irã) para te matar? qual foi o comedor de almas que te matou? de que meio se

serviu? virou cobra? virou lobo (hiena)? virou lagarto (crocodilo)? virou onça?

Responde. Todos precisam ser elucidados.

122

CARREIRA, António. Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-feiticistas na Guiné Portuguesa. BCGP,

Bissau, v.16, 1961b, n.63, p.535-6. 123

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.475. 124

ALMADA, André Álvares. Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde: desde o Rio Sanagá até os

Baixos de Sant’Anna.Porto: Typographia Commercial Portuense, 1841, p.58. 125

CARREIRA, op.cit., p.534.

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A resposta às perguntas é obtida através dos movimentos dos transportadores da

tumba, que ora caminham para a frente, ora para trás, ora para um lado, ora para

outro, inclinando-se sobre algum dos circunstantes ou em direcção ao Irã, quando

determinam (?) o causador da morte! Cada movimento tem um significado, que só o

ritualista sabe decifrar. 126

"Cansarés" ("macho" e "fêmea") em

Amortalhamento de um cadáver cerimônia realizada em Bulom, regulado de Safim.

em panos de fabrico tradicional. O “cansaré” imita a tumba mortuária e é também

Blim Blim, regulado de Biombo127

usado em certas cerimônias correlacionadas, como

o interrogatório dos defuntos.128

O ritual descrito nas páginas do Boletim Cultural guarda estreita relação com o

que relatou, no século XVIII, o missionário da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos,

Padre Giovanni António Cavazzi (17--, apud SWEET, 2007, p.210)129

. Sobre a cerimônia

fúnebre em Angola ele descreveu que,

entre os delirantes estava um xinguila eleito, este é o padre ou ministro do funeral,

que se aproxima da cara do morto e lhe pergunta repetidamente qual foi a causa da

sua morte. Mas porque o morto não pode falar, o xinguila responde em nome do

morto, e com uma voz alterada.

Não é de surpreender que James Sweet (2007) tenha localizado registro de prática

ritual semelhante no Brasil dos séculos XVII e XVIII. Segundo esse autor, os angolanos

mantiveram suas crenças através das gerações, comprovando, dessa maneira, a resistência das

crenças centro-africanas na diáspora. Em Pernambuco, na década de 30 do século XVII, há

126

CARREIRA, António. Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-feiticistas na Guiné Portuguesa. BCGP,

Bissau, v.16, 1961b, n.63, p.535. (grifo do autor) 127

MOTA, Avelino Teixeira da. As viagens do bispo D.Frei Vitoriano Portuense à Guiné e a cristianização dos

reis de Bissau.. Lisboa: Publicações Alfa S/A, 1989, s/p. 128

Ibid., s/p. 129

CAVAZZI, Padre Giovanni António. Descrição histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola.

Editado e traduzido pelo Padre Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965.

(grifos do autor)

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relatos do tambo, cerimônia fúnebre que visava uma “transição confortável da alma da pessoa

morta para o outro mundo”130

. Da mesma maneira que na Guiné, o falecido era indagado

sobre a causa de sua morte. Há evidências de que no Rio de Janeiro, no início do século

XVIII, praticava-se o tambe de forma semelhante àquela descrita pelo padre Cavazzi.

Nessa medida, é possível relacionar práticas culturais compartilhadas pelos povos

da África Central na diáspora, com aquelas presentes na Guiné do século XX e,

possivelmente, em muitos outros tempos e espaços, razão pela qual seria muito importante

empreender análises sistemáticas sobre essa peculiar cerimônia.

O final do interrogatório redunda na descoberta de um “culpado”. Caso o

responsável seja um entre os vivos, é banido do grupo. Entre os Bijagó, por exemplo, ele é

considerado “feiticeiro” e, como consequência, comete suicídio “atirando-se no mar, com

uma pedra ao pescoço.”131

Cumprir o ritual no momento da morte era imprescindível, pois o espírito do

falecido passaria para o mundo do sagrado. No descumprimento desse ritual, os parentes

vivos seriam alvo de represálias. Vale destacar que “as crianças em geral (constituíam)

divindades ínfimas; (eram), por isso, enterradas no mato, sem ritos dignos de menção.”132

A

preservação do cadáver era fundamental, pois não eram prestadas homenagens às pessoas cujo

corpo não tivesse sido recuperado, como nos casos de afogamentos ou ataque de animais

selvagens.

Na maioria dos povos, os ritos fúnebres somente tinham início quando era

oferecido, ao Irã da família enlutada, ao menos um animal de grande porte em sacrifício. A

quantidade de animais ofertada dependia, em grande medida, da importância do falecido, bem

como das posses de seus familiares. O sangue e as vísceras dos animais (coração, fígado, rins,

etc.) eram “as partes quase sempre exclusivamente destinadas a oferendas.”133

O ritualista responsável pela cerimônia fúnebre convocava o instrumentista-

assistente que iria fazer soar o bombolon para anunciar o falecimento. Só após o início do

“toque do choro” é que a família podia prantear o morto e faziam “depois de revestirem o

130

SWEET, James. H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770).

Lisboa: Edições 70, 2007, p.209. 131

QUINTINO, Fernando Rogado. Os Povos da Guiné. BCGP, Bissau, v.24, 1969, n.96, p.915. 132

Id. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949b, n.16, p.693. Talvez essa atitude decorresse do fato

de que as crianças não teriam cumprido o rito do fanado. 133

Id. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.472.

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corpo (peito, costas e cabeça) de lama, em sinal de pesar [...] as viúvas (raspavam o) cabelo

da cabeça, à faca, em sinal de luto.” 134

Independentemente da hora da morte, o “toque do choro” era sempre iniciado de

madrugada. Isto ocorria para que o bombolon fosse ouvido a grande distância. Desse

momento em diante os lamentos poderiam ser exteriorizados, assim como era iniciado o abate

dos animais oferecidos em sacrifício. O corpo do falecido ficava, geralmente, exposto e os

assistentes postavam-se “diante dele, com uma moca (clava) ou uma espada na mão, e

(dirigiam-lhe) algumas palavras prometendo combater com valentia e denodo os espíritos

que (ousassem) apoderar-se do corpo.”135

A duração dos ritos fúnebres variava conforme o grupo a que pertencia o morto,

bem como sua posição hierárquica. Mas a partir do toque do choro, seguiam-se vários outros

rituais, como o do ritualista dos Irãs, o dos “cemitérios e o dos amortalhadores-coveiros

(quando estejam previstos na organização social), cada um na sua função, mas em estreito

entendimento.”136

Havia, portanto, três figuras principais na condução da maioria dos ritos

fúnebres: o orientador do rito e responsável pela escolha das galerias tumulares (Nangurã, em

manjaco), o responsável por envolver o cadáver em mortalhas, além de exercer as funções de

coveiro (Nadjêpe, em manjaco) e o tocador de bombolon.

Entre os Bijagó, o ritual era, inicialmente, conduzido pela oquinca e pelo rei (ou

chefe). Acompanhada pelas mulheres da tabanca, a oquinca levava o corpo até a praia onde

era banhado com a água do mar. Regressando ao povoado, o corpo era, então, untado com

134

CARREIRA, António. Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-feiticistas na Guiné Portuguesa. BCGP,

Bissau, v.16, 1961b, n.63, p.533-4. 135

QUINTINO, Fernando Rogado. No Segredo das Crenças. BCGP, Bissau, v.4, 1949a, n.15, p.473. 136

Ibid., p.534.

Funeral manjaco- BCGP n.68, 1962, p.705.

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óleo de palma e enfeitado com fios de contas ou conchas, entre outros adornos. O corpo era

colocado sobre um “canapé ornamentado com panos diversos e (transportavam-nos) ao

bosque [...] onde o rei e (ou chefe) e o oamcandjam-ô (ritualista), celebra(vam) uma

cerimônia misteriosa a que só (assistiam) os Grandes.”137

Ao retornar, o corpo era exposto

em frente a casa onde habitava e, sob a supervisão de toda a assistência, o rei (ou chefe) e o

ritualista perguntavam-lhe a causa da sua morte.

Os Fula também cumpriam o ritual do choro, mas este consistia na “reunião da

família e dos amigos, orações na mesquita local, abate de uma ou mais reses, cujo sangue

não se aproveita, sendo repartido por todos.”138

Eram lidas orações apropriadas à

cerimônia e, não existindo cemitérios, o corpo, envolto em panos e numa esteira, era

enterrado no local julgado mais apropriado, porém com a cabeça voltada para o oriente. Só as

mulheres guardavam o luto usando trajes brancos, sem qualquer enfeite, apenas um lenço

branco na cabeça.

Entre grupos não islamizados, a posição do cadáver dependia da categoria social

ocupada pelo morto:

Os régulos, chefes e dirigentes do culto, são conservados sentados como se

estivessem a dirigir os actos solenes a que presidem em vida. Os outros indivíduos

enterram-se em decúbito, sobre o lado direito, com o rosto voltado para nascente,

os homens e, para poente, as mulheres. 139

Os corpos não eram inumados. Eram apenas embrulhados com vários panos - de 1 a 100,

conforme sua posição social e posses individuais ou familiares - e depositados na terra,

formando como que uma “galeria tumular[...] de modo que a cobertura nunca afecte o

cadáver.”140

O cadáver não tinha, portanto, contato direto com a terra.

Cobertura da cova tumular

de um régulo de Biombo141

137

LIMA, Augusto José Santos. Organização Económica e Social dos Bijagós. Lisboa: Soc. Industrial de

Tipografia Ltda., 1947. Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, Série “Memórias” n.2, p.99. 138

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A construção das galerias tumulares, consideradas bens de família, era

responsabilidade do coveiro e só podia receber o corpo de 4 adultos. Quando a ocupação

estivesse completa, as famílias deviam procurar outros locais com antecedência, visto que os

ritos de construção eram complexos e demorados, além do fato de que envolvem um gasto

nem sempre ao alcance de todos. Entre os Manjaco, a construção da galeria era encaminhada

pelo Nangurã, que conduzia uma cabra presa à corda que deve caminhar livremente pelas

terras acompanhando-o. Onde ela parasse e urinasse era o local apropriado para ser abrir uma

nova galeria tumular.

As galerias eram construídas a partir de um orifício circular no solo, de diâmetro

suficiente para a passagem de um homem, que serviria como porta de entrada. A certa

profundidade, a cova inicial era alargada para permitir nova escavação, em sentido horizontal,

das 4 galerias necessárias. O espaço destinado a cada corpo deveria contemplar a colocação

de alguns utensílios pertencentes ao falecido, tais como símbolos de autoridade, comidas e

bebidas. Segundo António Carreira (1961a), em época anterior um rapaz e uma moça eram

enterrados vivos junto com um régulo falecido, para servi-lo na outra vida.

São controversas as ideias sobre o destino dos espíritos após a morte. Para alguns,

eles permaneciam próximos ao lugar onde viveram e próximos àqueles que conheceram.

Quando essa condição deixava de existir, afastavam-se para local desconhecido ou viviam

errantes. A continuidade da família era, por isso, imprescindível para que os espíritos dos

antepassados sempre se sentissem acolhidos. Há grupos que entendiam que os espíritos jamais

se afastavam e aguardavam as homenagens que lhes eram devidas. Por esta razão, jamais

deixavam de receber a atenção necessária e esperada.

Irã Manjaco assinalando galerias

tumulares - tabanca de Utiá

Melique, região de Caió.

BCGP n. 11, 1948, p.634.

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177

Através dos registros etnográficos publicados no Boletim Cultural, foram sendo

relevados costumes de povos que abarcavam modos de viver e formas de estar no mundo que,

ao longo do período colonial, foram confrontadas e diminuídas. Mesmo assim, suas práticas

estavam presentes e, por isso, puderam ser “transcritas” e “impressas” ao longo das páginas

desse periódico.

Do nascimento à “outra vida” - afinal não acreditavam na morte do espírito - das

relações com a terra e o repeito à natureza, fica evidenciada a distância cultural que existia

entre os povos das Guinés e seus pretensos colonizadores. O relacionamento interpessoal e a

família alargada, em oposição aos núcleos de parentesco consanguíneo da maioria das

sociedades ocidentais, assim como a interação com o mundo invisível, desqualificada, porém

não descartada das cotidianidades lusitanas, traduziram oposições contundentes que tornaram

a convivência entre colonizadores e povos guineenses um constante cenário de disputas.

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painel de Augusto Trigo

sem título

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A escolha da Guiné-Bissau como tema para o presente trabalho ocorreu, em certa

medida, de forma acidental. Sua quase imperceptível inserção na historiografia disponível no

Brasil demandou pesquisas através do meio virtual, sendo que pela internet conheci o Projeto

Memória de África e Oriente e o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Passei a dialogar

com este periódico, cuja origem foi planejada num contexto político especial, em que Portugal

agarrava-se ao cientificismo de sua política imperial.

Desde as primeiras aproximações foi possível perceber que esse corpus

documental oferece muitas possibilidades. Dentre elas, a oportunidade de conhecer culturas

quase apagadas de suas próprias histórias, encapsuladas que foram pela história portuguesa e

eurocêntrica. Por terem sido constituídos, em grande maioria, em culturas de matrizes orais,

tema que também abre grande espaço para reflexão, conhecer os povos que compõem a atual

Guiné-Bissau representa um desafio a estudiosos de diferentes áreas do conhecimento.

Na impossibilidade de efetuar pesquisas in loco, a disponibilização de registros

em meio digital tem demonstrado ser grande avanço para a pesquisa de modo geral. Várias

instituições, inclusive no Brasil, estão chamando para si a responsabilidade de viabilizar

condições à bem da construção contínua de campos de questionamento em torno de

conhecimentos instituídos. Assim, a partir do trabalho feito em Portugal, pela equipe do

Memória de África, foi possível “ter em mãos” o Boletim Cultural e, a partir disso, aproximar

continentes e culturas.

Por séculos a Guiné Portuguesa foi um apêndice desconhecido no mundo

ultramarino português. Sem grande importância econômica, foi ali, onde a expansão europeia

praticamente teve seu início e que, paradoxalmente, engendraram-se esforços para o fim do

colonialismo.. Ainda hoje, a Guiné-Bissau, como muitos outros países africanos, não tem

atraído a atenção de estudiosos. São várias razões, de toda ordem, que podem explicar esse

descaso.

Nas últimas décadas a Guiné-Bissau vem enfrentando situações adversas que têm

inviabilizado estudos a partir de seus próprios filhos, os quais, por questões políticas ou

financeiras, deixam o país em diásporas contemporâneas. Essa migração não possibilita que a

Guiné-Bissau seja estudada pelos conhecedores vivos de suas riquezas e desafios.

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A Guiné, enquanto colônia, província ou estado independente, não tem

despertado a atenção de historiadores. Talvez isso decorra de questões conjunturais que

inferiorizaram sua relação com o mundo ao longo do tempo ou, quem sabe, sua contínua

instabilidade político-institucional dificulte pesquisas de campo na região. A pouca

visibilidade estratégica que sempre a acompanhou, desde o início de sua ocupação pelos

portugueses, persiste de modo a não estimular dinâmicas de pesquisas acadêmicas. A Guiné-

Bissau e a Guiné “Portuguesa” foram praticamente apagadas dos discursos históricos do

passado e continuam pouco lembradas pelos historiadores no presente.

Certamente, muitas respostas e caminhos podem ser encontrados a partir da

apreensão das histórias que ainda estão por emergir. Compreender o universo de “poeiras

independentes”, estabelecidas por todo o chão guineense, pode ser o norte que congregue

povos tão diferentes, mas tão unidos em seus processos culturais e históricos. E essa

responsabilidade pode ser compartilhada com os filhos do chão, apesar das distâncias tanto

geográficas quanto culturais.

O momento é bastante oportuno para somar contribuições aos debates sobre temas

africanos, que vêm ganhando espaço em diferentes circuitos brasileiros. E o Boletim Cultural

da Guiné Portuguesa, apesar de sua concepção colonialista, contribui sobremaneira no

sentido de viabilizar elos com mundos pouco acessíveis. A pretensão “científica”

acompanhou a escrita dos colaboradores desse periódico colonial, muitos deles autodidatas,

que, orientados por Teixeira da Mota, na contramão da “ciência metropolitana”, retrataram, à

semelhança dos etnógrafos da época, dinâmicas de povos guineenses, muitas delas ainda

presentes. Deixaram trabalhos que aguardam outros estudiosos para outras releituras, pois

deixaram frestas que permitem acessar culturas “vivas”, registradas num discurso permeado

pela diferença, mas cheio de potencialidades.

Garimpando por entre os diversos registros etnográficos publicados através das

páginas do Boletim, surgiram desafios para manter-me à escuta a fim de dialogar com sujeitos

que processam outras formas de “estar no mundo”. Após esse “convívio”, emergiram

reflexões inquietantes acerca de modos de viver do homem contemporâneo e quanto às

perspectivas de futuro que ele tem construído. Advieram questionamentos incômodos em

relação à sociedade global e ao crescente isolamento do homem, mergulhado em

individualidades e competitividades de seu cotidiano. Por conta disso, meus valores e certezas

encontram-se, atualmente, sub judice.

Os povos da Guiné possuíam, e em alguns casos arrisca-se afirmar que ainda

possuem modos de vida locais, os quais ainda podem estar repletos da “tradição viva” e ainda

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se encontrem homens grandes e griôs, depositários da sabedoria e do conhecimento de seus

povos, aguardando para serem compartilhados. Há incríveis conexões entre griôs, ferreiros,

ourives, agricultores, tecelões, músicos e instrumentistas, entre outros, no lado de lá e de cá

do Atlântico. Estudiosos das diásporas vêm construindo pontes que ligam as Américas,

inclusive o Brasil, às Áfricas e, certamente, há ainda muitas outras por construir.

A pretensa superioridade portuguesa tentou desqualificar costumes de povos da

Guiné. Era ideia recorrente, em Lisboa e Bissau, que a cultura luso-europeia os sobrepujaria.

Apesar da política assimilacionista e dos arranjos para aportuguesar o negro da Guiné, os

resultados ficaram aquém do esperado. Após anos, a oferta de “civilização” tinha sido pouco

aceita. O pequeno contingente de “assimilados estava longe de integrar o mundo português.

Tornaram-se arremedos de cidadãos, desenraizados e com poucas oportunidades. Raras foram

as experiências de “sucesso” entre eles, as quais poderiam ser diversificadas, para além

daquela do líder revolucionário Amílcar Cabral.

As formas de ocupação dos territórios na Guiné constituem assuntos complexos e

envolventes, porém pouco estudados. Aprofundamentos desses temas, possivelmente, podem

“iluminar” conflitos entre poderes em ação, hoje, na Guiné-Bissau. As estruturas que ali se

estabeleceram ao longo dos séculos da expansão do Islã, modificaram, sobremaneira, o perfil

dos povos da região. Não se sabe, com clareza, as consequências efetivas desse longo e

conflituoso processo. Sabe-se que alguns se deslocaram para outras regiões, inclusive para

além das “fronteiras” da Guiné, constituindo outros chãos. Outros se integraram, mantendo

seus costumes ou diluíram-se de tal forma que estão, até o momento, “perdidos”.

Poucos compreendem a magia tal como apresentada por Hampâté Bâ. Ter isso em

conta é fundamental para perceber o sentido que as forças vitais têm nas vidas de africanos

em geral. Apreender a oralidade torna-se imprescindível para efetuar leituras menos

equivocadas acerca de mundividências tão “diferentes”. A relação que se estabelece entre o

homem e a natureza, esta integrante do mundo africano e não algo a lhe servir, conduz a

questões relevantes e muito debatidas, atualmente, acerca do esgotamento do planeta.

Creio que viver a magia significa estar em equilíbrio. Essa vivência, esse

conhecimento esotérico dos povos guineenses só é revelado para “iniciados”, porém, apesar

disso, páginas do Boletim Cultural estão repletas de magias, mesmo que tocadas levemente.

Oferecem, mesmo aos não iniciados, os primeiros passos dentro desse universo repleto de

vivências e imaginários a serem sondados.

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Os traços da vida dos povos guineenses, surpreendidos nas páginas do Boletim

Cultural, ressaltam sua profunda ligação com a natureza e seus antepassados, a compreensão

de um mundo indivisível, onde o que é mineral, vegetal, animal, humano ou espiritual é

entendido com uno. Além disso, o viver comunitário, a constituição da família alargada, o

respeito á sapiência dos grandes, entre outras formas particulares de viver, são o eixo por

onde eles trilham, com segurança, desde o nascimento.

Lendo, hoje, notícias sobre a Guiné-Bissau consegui perceber que as convicções

eurocêntricas quanto à sua superioridade - branca,cristã,letrada,masculina - eram de tal ordem

que não foi permitido condescender com as multiplicidades africanas, uma vez que as

sociedades “civilizadas” arvoraram-se em modelos perfeitos para o “resto do mundo”. Mesmo

“descolonizados”, países como a Guiné-Bissau, convivem com os resquícios perversos da

“colonialidade do poder”, na busca de uma ocidentalização distante de suas raízes.

Ter arriscado enveredar pelo continente africano, e à grande distância, trouxe

incontáveis desafios, vários tropeços, mas um enlaçamento que não posso romper. Muito há

que ser apreendido, talvez as ferramentas ainda sejam impróprias, faltem metodologias

específicas para abordagens mais seguras, mas alguns passos foram dados. A contribuição

deste trabalho caminhou nesse sentido e, principalmente, na intenção de instigar outros

estudiosos para que um dia seja possível compreender, um pouco mais, a Guiné-Bissau e os

povos guineenses, bem como as Áfricas e os africanos.

Preciso confessar que, por muitas vezes, fui pega reproduzindo os discursos

habituais, numa demonstração de que a colonialidade está presente: há que se ter cuidado com

elocuções rápidas. Porém, é algo difícil de romper - e, principalmente, perceber -, pois, ao

longo de minha escrita, empreguei (e posso ter deixado escapar) termos totalmente

inadequados em se tratando das Áfricas. Isto acontece, também, no dia a dia das pessoas que,

ao olharem para o outro lado do Atlântico, pensam o continente africano como uma massa

amorfa, um bloco único, ressaltando o que ele não é ou não tem. Utiliza-se uma tabela

classificatória difícil de ser posta de lado, de onde emergem termos como civilização,

progresso, evolução, escolarização, letramento, lucro, individualidade, entre outras, que

carregam em seu bojo marcas racistas quase imperceptíveis.

Os povos da Guiné contrariaram a lógica colonial e colocaram por terra

procedimentos bem articulados e teorias academicamente elaboradas. Declinaram propostas

de “melhorias” que não tinham sido solicitadas, rejeitaram “evoluir”, dispensaram a

alfabetização e os “diplomas”, continuaram cultuando os Irãs e falando suas línguas, numa

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atitude silenciosa de confronto, baseada na simples recusa em “ser civilizado”. Talvez, por

essas razões, foram julgados presas fáceis no jogo do poder.

Puro engano!

Mulheres Felupe (juntas) ceifando arroz

BCGP nº 68, 1962, p.553.

Homens Balanta (juntos) arando a terra QUINTINO, Fernando R., 1971, não paginado

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Page 205: UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU: o Boletim Cultural da ... Cristina... · Divisão administrativa da Guiné Portuguesa 62 Ocupação do espaço pelos povos da Guiné, 1950 69

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Page 206: UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU: o Boletim Cultural da ... Cristina... · Divisão administrativa da Guiné Portuguesa 62 Ocupação do espaço pelos povos da Guiné, 1950 69

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Page 207: UM PREFÁCIO A POVOS DA GUINÉ-BISSAU: o Boletim Cultural da ... Cristina... · Divisão administrativa da Guiné Portuguesa 62 Ocupação do espaço pelos povos da Guiné, 1950 69

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APÊNDICE B

Boletim Cultural da Guiné Portuguesa: regras para publicação de monografias

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