as crises político-militares na guiné-bissau

8
Guiné-Bissau Especial Este caderno é parte integrante do Jornal Expresso das Ilha Nº 546 e não pode ser vendido separadamente Por Armindo Ferreira As crises político-militares na Guiné-Bissau: causas, problemas e soluções As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e Soluções [i] Amílcar Cabral O golpe de Estado na Guiné-Bissau do passado dia 12 de Abril (mais um), não surpreendeu verdadeiramente ninguém minimamente avisado porque fora anunciado (insinuado) na véspera, por Kumba Yalá à cabeça dos Cinco – os que contestaram os resultados das eleições presidenciais – na sua conferência de imprensa então realizada. Ao reiterar o que antes afirmara da sua não partici- pação na 2ª volta (eleições presidenciais) Kumba Yalá disse expressamente que não haveria a 2ª volta, deixando entender que o processo eleitoral seria interrompido. Na sequência desse golpe, as reacções não se fizeram esperar. Registe-se o forte e contundente comunicado da CPLP que deu o mote às demais organizações in- ternacionais, para a condenação inequívoca do golpe ao mesmo tempo que exigiam todas – organizações internacionais – o regresso imediato à ordem constitu- cional. No mesmo sentido, e com a mesma veemência, antecipando as próprias resoluções do Conselho de Segurança, foi a voz do Secretário-Geral das Nações Unidas Ban-Ki Moon. A CEDEAO, com a ambiguidade e a inconsequência que se lhe conhecem, “condena” o golpe mas presta-se de seguida a legitimá-la através de negociações generosas sempre em benefício e im- punidade dos golpistas sustentadas com o argumento de que é preciso evitar “banhos de sangue”. No fundo a CEDEAO não tem moral para condenar quaisquer golpes porque com mais ou menos “nuances” ela se edifica sob fundações golpistas. De entre as inúmeras reacções populares e dispersas por todos os cantos em que exista um guineense, e não só, pois até a longínqua e poderosa China se manifestou por mais de uma vez, destaco uma que se realizou no Centro de Estudos e Estratégia do Ministério dos Negó- cios Estrangeiros sob a forma de um debate subordinado ao tema “As Crises Político-Militares na Guiné- Bissau: Causas, problemas e Soluções” para o qual fui convidado como “Animador do Debate”. Levei à letra o meu papel e propus-me apresentar à audiência o quadro em que se desenrolava toda a espiral de vio- lência que grassa a Guiné-Bissau desde os primórdios da ocupação do seu território, até os nossos dias, com especial ênfase para estes últimos anos, pretendendo desta forma descrever o cenário em que se deveria processar o debate. Da cronologia dos acontecimentos que tem início com a chegada dos portugueses – meados do século XV - salientei os marcos mais relevantes da História recente da Guiné-Bissau no quadro da violência, detendo-me para uma análise mais cuidada naqueles que, em meu entender, são mais representativos para a compreensão do fenómeno. Da resistência “armada” à ocupação colonial, de carácter étnico (papeis, balantas, beafadas, felupes e outras) e circunscrito ao chão de cada etnia que termina nos finas dos anos 30 do século passado passando pela resistência política em que foram precursores a Liga Guineense (1910 – 1915), o Partido Socialista (1948) e o MING (1955) mas também protagonizada por um enxame de partidos políticos nacionais: (FLING (Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné Portuguesa) FNLG (Frente de Libertação da Guiné) MLG (Movimento de Libertação da Guiné) PDG (Partido Democrático da Guiné-Bissau) PELUNDENSE (formado apenas por manjacos de Pelundo) PLG (Partido de Libertação da Guiné) UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa) UPG (União Popular da Guiné) UPLG (União Popular de Libertação da Guiné Portuguesa) e supranacionais: FGICV (Federação da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde) FLGC (Frente de Libertação da Guiné e Cabo Ver- de) FUL (Frente Unida de Libertação da Guiné e Cabo Verde) MLGC (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde) MLGCV (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde) PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) a maior parte de vida muito efémera, mas todos afastados da luta para a inde- pendência pelo génio diplomático de Amílcar de Cabral que acaba por fazer reconhecer pela co- munidade internacional o PAIGC como o único e legítimo representante dos povos da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC torna-se deste modo no alfa e no ómega da questão. É no PAIGC que nascem as causas e estou convencido de que é com o PAIGC que se encontrará a solução. Se não, vejamos: 1. Em 1963, o PAIGC dá início à luta armada. E, pela primeira vez na história da Guiné, um balanta, um papel, um mandinga, um fula, um Entre 12 de Abril e 16 Maio passou mais de um mês e a Guiné-Bissau continua sem ver a luz no fundo do túnel. Este novo golpe militar mergulhou o país no caos e deixou em estilhaços a legitimidade democrática que se esperava fosse cumprida com a segunda volta das eleições presidenciais. Armindo Ferreira e Nelson Herbert conhecem bem a realidade guineense e ajudam a perceber as teias que urdiram uma nação.

Upload: cantacunda

Post on 20-Jun-2015

8.807 views

Category:

Documents


12 download

TRANSCRIPT

Page 1: As crises político-militares na Guiné-Bissau

17

Entrevista

Guiné-BissauEspecialEste caderno é parte integrante do Jornal Expresso das Ilha Nº 546 e não pode ser vendido separadamente

Por Armindo Ferreira

As crises político-militares na Guiné-Bissau: causas, problemas e soluções

As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e Soluções [i]

Amílcar Cabral

O golpe de Estado na Guiné-Bissau do passado dia 12 de Abril (mais um), não surpreendeu verdadeiramente ninguém minimamente avisado porque fora anunciado (insinuado)

na véspera, por Kumba Yalá à cabeça dos Cinco – os que contestaram os resultados das eleições presidenciais – na sua conferência de imprensa então realizada.

Ao reiterar o que antes afirmara da sua não partici-pação na 2ª volta (eleições presidenciais) Kumba Yalá disse expressamente que não haveria a 2ª volta, deixando entender que o processo eleitoral seria interrompido.

Na sequência desse golpe, as reacções não se fizeram esperar. Registe-se o forte e contundente comunicado da CPLP que deu o mote às demais organizações in-ternacionais, para a condenação inequívoca do golpe ao mesmo tempo que exigiam todas – organizações internacionais – o regresso imediato à ordem constitu-cional. No mesmo sentido, e com a mesma veemência, antecipando as próprias resoluções do Conselho de Segurança, foi a voz do Secretário-Geral das Nações Unidas Ban-Ki Moon. A CEDEAO, com a ambiguidade e a inconsequência que se lhe conhecem, “condena” o golpe mas presta-se de seguida a legitimá-la através de negociações generosas sempre em benefício e im-punidade dos golpistas sustentadas com o argumento de que é preciso evitar “banhos de sangue”. No fundo a CEDEAO não tem moral para condenar quaisquer golpes porque com mais ou menos “nuances” ela se edifica sob fundações golpistas.

De entre as inúmeras reacções populares e dispersas por todos os cantos em que exista um guineense, e não só, pois até a longínqua e poderosa China se manifestou

por mais de uma vez, destaco uma que se realizou no Centro de Estudos e Estratégia do Ministério dos Negó-cios Estrangeiros sob a forma de um debate subordinado ao tema “As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e Soluções” para o qual fui convidado como “Animador do Debate”. Levei à letra o meu papel e propus-me apresentar à audiência o quadro em que se desenrolava toda a espiral de vio-lência que grassa a Guiné-Bissau desde os primórdios da ocupação do seu território, até os nossos dias, com especial ênfase para estes últimos anos, pretendendo desta forma descrever o cenário em que se deveria processar o debate.

Da cronologia dos acontecimentos que tem início com a chegada dos portugueses – meados do século XV - salientei os marcos mais relevantes da História recente da Guiné-Bissau no quadro da violência, detendo-me para uma análise mais cuidada naqueles que, em meu entender, são mais representativos para a compreensão do fenómeno.

Da resistência “armada” à ocupação colonial, de carácter étnico (papeis, balantas, beafadas, felupes e outras) e circunscrito ao chão de cada etnia que termina nos finas dos anos 30 do século passado passando pela resistência política em que foram precursores a Liga Guineense (1910 – 1915), o Partido Socialista (1948) e o MING (1955) mas também protagonizada por um enxame de partidos políticos nacionais:• (FLING (Frente de Libertação para a Independência

Nacional da Guiné Portuguesa)• FNLG (Frente de Libertação da Guiné)• MLG (Movimento de Libertação da Guiné)• PDG (Partido Democrático da Guiné-Bissau)• PELUNDENSE (formado apenas por manjacos de

Pelundo)• PLG (Partido de Libertação da Guiné)• UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa)• UPG (União Popular da Guiné)• UPLG (União Popular de Libertação da Guiné

Portuguesa) e supranacionais:• FGICV (Federação da Guiné e das Ilhas de Cabo

Verde)• FLGC (Frente de Libertação da Guiné e Cabo Ver-

de)• FUL (Frente Unida de Libertação da Guiné e Cabo

Verde)• MLGC (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo

Verde)• MLGCV (Movimento de Libertação da Guiné e

Cabo Verde)• PAIGC (Partido Africano da Independência da

Guiné e Cabo Verde) a maior parte de vida muito efémera, mas todos afastados da luta para a inde-pendência pelo génio diplomático de Amílcar de Cabral que acaba por fazer reconhecer pela co-munidade internacional o PAIGC como o único e legítimo representante dos povos da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC torna-se deste modo no alfa e no ómega da questão. É no PAIGC que nascem as causas e estou convencido de que é com o PAIGC que se encontrará a solução. Se não, vejamos:1. Em 1963, o PAIGC dá início à luta armada.

E, pela primeira vez na história da Guiné, um balanta, um papel, um mandinga, um fula, um

Entre 12 de Abril e 16 Maio passou mais de um mês e a Guiné-Bissau continua sem ver a luz no fundo do túnel. Este novo golpe militar mergulhou o país no caos e deixou em estilhaços a legitimidade democrática que se esperava

fosse cumprida com a segunda volta das eleições presidenciais. Armindo Ferreira e Nelson Herbert conhecem bem a realidade guineense e ajudam a perceber as teias que urdiram uma nação.

Page 2: As crises político-militares na Guiné-Bissau

u

02 Nº 546 • 16 de Maio de 2012

felupe ou um anónimo qualquer de qualquer outra etnia está disposto a lutar e a morrer não especificamente pelo seu “chão” mas por toda a Guiné, pelo “chão” do outro, pelo chão comum.

2. A luta armada conduzida pelo PAIGC ao pôr em mãos impreparadas e mentes pouco escla-recidas um instrumento de matar permitiu que o terror, o abuso de autoridade, o desrespeito e mesmo o barbarismo se espalhassem de forma tão epidémica que Amílcar Cabral teve necessidade urgente de convocar uma reunião de quadros conhecida por “Congresso de Cas-sacá”, para pôr cobro aos desmandos dos então senhores da guerra que se apresentaram nessa reunião fortemente armados e escoltados. Teve AC de fazer apelo à toda a sua diplomacia para evitar que ali mesmo se operasse um banho de sangue. Dessa reunião, para além da criação das FARP, uma forma de controlar, disciplinar e balizar a violência, saíram importantes orien-tações que determinaram o rumo do PAIGC. O pós-congresso gerou ajustes de contas e um banho de sangue, até então sem precedentes.

3. A violência não terminou porque a luta armada é, de per se, uma violência. Processos sumários continuaram e condenações à morte por fuzi-lamento não eram raras.

4. O PAIGC era minado por intrigas e conspira-çõezitas internas, é bom reafirmá-lo, que cul-minaram com o assassínio de Amílcar Cabral em 1973.

5. O assassínio de Amílcar Cabral espoletou uma vaga de execuções sumárias de carácter sangren-to e generalizado com denúncias seguidas logo de execuções, sem julgamentos, para evitar, ao que se diz, o seu (das denúncias) efeito boome-rang. O envolvimento de dirigentes de topo, da Guiné, era de tal forma abrangente que, falam rumores sustentados, que foi preciso a inter-venção do arguto e atento Presidente Samora Machel que tinha na comissão de inquérito, o seu braço direito Aquino Bragança, a alertar que se se continuasse com as execuções ficar-se-ia sem gente para continuar a luta tal era a abran-gência dos implicados. Isto fez com que muitos dos eventuais “implicados” fossem ignorados para não decepar a estrutura da luta armada.

6. Ainda no ano de 1973, mais propriamente a 24 de Setembro, a Guiné-Bissau declara a sua in-dependência que será reconhecida de jure pela

potência colonizadora em Setembro de 1974 depois de dezenas de outros países já o terem o feito. Foi a 1ª vez em África, pelo menos na ao Sul de Sahara, que uma independência não é “concedida” mas sim reconhecida pela potência colonizadora.

7. Em 25 de Abril de 1974 acontece o Golpe de Estado em Portugal que ficou conhecido pela Revolução dos Cravos pondo fim a uma dita-dura que durava quase 50 anos.

8. Pouco tempo depois do Golpe de 25 de Abril, o PAIGC instala-se oficiosamente em Bissau, e assiste-se a uma onda de “raptos” seguidos de fuzilamentos no mato de indivíduos que haviam abandonado o PAIGC, e se encontra-vam em Bissau, e de outros que eram acusados de colaborar com o “colon”. Nem sequer havia julgamentos. Uma “brigada” composta por uma suposta gente na clandestinidade ávida de mostrar serviço apontava-os e localizava-os não se sabe com que critério. Eram levados e fuzilados. Quando se perguntava por um fulano, que se supunha nessa situação, a res-posta era: Partido lêba’l! (O Partido levou-o!) As coisas passavam-se à calada da noite e sob a cumplicidade silenciosa de todos. Tudo era permitido ao PAIGC, inclusive tirar vida aos seus concidadãos, por simples decisão dos seus dirigentes e sem que tenha de prestar quaisquer justificações públicas.

9. A entrada do PAIGC após o reconhecimento de jure fora deveras triunfal. O mundo inteiro ren-dia-se à gesta dos obreiros da independência. E os guineenses orgulhosos dos seus combatentes reverenciavam-se humilde e generosamente perante eles. Entregaram-se de alma lavada

cimento, como arrogantemente dispensaram a sua participação como cidadãos de pleno direito no processo da (re)construção nacional. Um amigo meu, a este propósito, e comentando um artigo que eu escrevera, disse:

“Para o cúmulo disso tudo, o que está a atrasar o país é que introduziram na vida social guineense um elemento perturbador que é a divisão entre os que fizeram a luta, «os melhores filhos», que a si arrogam tudo, e os que já cá estavam que lhes devem prestar vassalagem e a nada têm direito.”

11. O governo instalou-se em Bissau após o reco-nhecimento de jure por parte de Portugal. Os ministros eram chamados “comissários” e ao primeiro-ministro “comissário principal”. Logo nos primeiros sinais verificamos que estávamos perante gente incapaz e incompetente para gerir um país. Arrogantes e com tiques autistas para esconder as enormes insuficiências e total impre-paração; e a culminar uma moral muito duvidosa dado o comportamento perante a sociedade.

12. O período desse governo foi de seis anos (1974 – 1980). Teve o privilégio e o benefício de ter sido o governo que maior ajuda per capita rece-beu no mundo inteiro. Desbaratou-a completa-mente em projectos megalómanos decididos de forma acéfala e autocrática. Sobre este período escrevi num artigo de opinião:

“O novo poder que se instalou em Bissau (1974), não escondia o seu carácter repressivo, autoritarista, intimidatório e revanchista. O medo e a intolerância instalaram-se. O ajuste de contas havia já substituído a reconciliação mesmo antes da sua instalação (do poder) com desaparecimentos misteriosos e execuções sumá-rias. Algumas ocorrências e mortes, designadamente a do Primeiro-Ministro Francisco Mendes (Chico Té) encontram-se até hoje envoltas em profundos enigmas e mistérios. A debandada dos quadros e de toda uma administração com o seu “know how“ processava-se de forma assustadora criando um negligenciado vazio real na Administração do Estado, de efeitos não devidamente dimensionados e sopesados e, por isso, arrogantemente desprezados pelas novas autoridades. Os projectos me-galómanos pontificavam-se como verdadeiros elefantes brancos desbaratando a eito toda a ajuda da cooperação internacional; sinais exteriores de riqueza exibiam-se de-nunciando na mesma medida um certo novo-riquismo e o despontar despudorado da corrupção; os bens essenciais escasseavam; o peso, moeda nacional, depreciava-se a um ritmo acelerado agravando o já muito débil poder de compra; e a economia degradava-se a uma taxa ga-lopante. A insatisfação era total.”

13. Perante o cenário descrito, que talvez peque por defeito, pois funções de director-geral de importantes empresas públicas chegaram a ser exercidas por autênticos analfabetos cujo único curriculum era ter participado na luta para a independência, rumores permanentes percorriam toda a cidade de Bissau sobre a iminência de um golpe de estado. O que variava era apenas a identidade do seu eventual autor que oscilava entre 2 a 3 nomes;

14. A 14 de Novembro de 1980, Nino Vieira con-suma aquilo que todos esperavam pondo fim a esse governo, do qual ele era primeiro-ministro, através daquilo a que chamou “Movimento

e de corpo inteiro ao anunciado projecto da (re)construção nacional. Acreditaram todos, com raríssimas excepções, que aqueles que foram capazes de levar de vencida, com todo o brilhantismo que se lhes reconhece, um exército europeu, também poderiam ser competentes para gerir o País. Tanto mais que anunciavam em grandes parangonas a chegada do “Homem Novo forjado na luta” prenhe de virtudes e convicções nacionalistas.

10. O sucesso da luta embriagou o PAIGC e cegou os seus dirigentes. Declaram guerra à uma in-defesa e descuidada (politicamente) sociedade de “civis” e não só decretaram o seu desapare-

Especial Guiné-Bissau

Kumba Yalá, ex-presidente da Guiné-Bissau

Francisco Fadul, antigo primeiro ministro da GB

Page 3: As crises político-militares na Guiné-Bissau

03

Reajustador”. Suspende a Assembleia Nacional e cria o “Conselho da Revolução”.

15. Foi na sequência desse golpe que aparecem as valas comuns com algumas centenas de cadáveres, pondo a descoberto a máscara hu-manística do PAIGC e que pela sua gravidade e dimensão humana e no quadro do sistema de funcionamento do PAIGC – estrutura marxista-leninista – não se podem alhear, como bem o tentaram, os seus dirigentes de topo (ainda em Unidade) em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Todos “sabiam” e foram igualmente responsá-veis. A este respeito um outro articulista depois de confirmar o quadro descrito no ponto 12, acrescentava:

“O que não sabíamos (nem podíamos imaginar) era que nessa altura o regime já tinha embarcado num pro-jecto criminoso para o qual não havia volta. Nesse preciso momento Guineenses estavam a matar Guineenses e a en-terrá-los em valas comuns em Jugudul,Cumeré, e outros sítios, num genocídio que nem os colonialistas nos seus mais criminosos sonhos ousaram apenas imaginar.”(Fim de transcrição)

16. Com o golpe de 14 de Novembro na Guiné, Cabo Verde apressou-se, num gesto pleno de oportunismo e imediatismo, a romper com o processo de Unidade que tantas vítimas gerara na Guiné e em Cabo Verde tendo até estado nas especulações quanto às causas próximas do assassínio de Amílcar Cabral. De ambos os lados, as congratulações superaram de longe as lamentações que não passaram, na maior parte dos casos, de algum decoro e de puras formalidades.

17. O chamado “Movimento Reajustador” mostrou logo a sua verdadeira face e fez desvanecer toda a esperança que nele se havia depositado de pro-mover a concórdia nacional e “reajustar” aquilo que se considerava desvio da linha orientadora do PAIGC. Liberto da ala cabo-verdiana do PAIGC, o que foi fortemente aclamado pelos quadros “lutistas” ávidos de afirmação num ambiente de vazio, nasce um corpo de “nacio-nalistas guineístas” que se apressa a depurar a já muito débil administração do estado através de autêntica caça às bruxas com o beneplácito do poder instituído e dos seus acólitos. O aparelho repressivo é aperfeiçoado e a debandada dos quadros técnicos, sobretudo, de origem cabo-verdiana é praticamente geral. A incompetência e a iliteracia tomam conta do próprio governo; a desilusão e a decepção regressam com o mesmo fulgor dos primórdios da independência.

18. Nino Vieira tendo enveredado pelo mesmo caminho do seu antecessor, e temendo que lhe acontecesse o que ele próprio havia feito, engendrou a sua eternização no poder, com a eliminação de todos aqueles que com o prestígio também de antigos combatentes, fonte da sua legitimação, lhe podiam fazer frente. Uma figu-ra despontava e impunha-se pela sua postura de discrição, honestidade, fino trato, sensatez e clarividência, tanto entre aqueles que de perto trabalharam e trabalhavam com ele, como em toda a sociedade guineense – Paulo Correia.

19. É assim, que:

i. A 17 de Outubro de 1985, uma alegada intentona “balanta” para derrubar Nino Vieira foi atribuída a Paulo Correia que no seu seguimento foi “julgado” e condenado à morte com mais 5 (Binhanquerem na Tchuda, Braima Bangura, N’Baná Sambú, Pedro Ramos, e Viriato Pam) de entre mais de meia cen-tena de acusados. Outros 5 terão perdido a vida na prisão (Agostinho Gomes, B’nhate na Biate, Foré na ‘Mbitna, João da Silva e Zacarias António Perei-ra). Processa-se a partir desta data uma autêntica antropofagia entre os dirigentes do PAIGC que se

e humilhante para os protagonistas processou de forma arrogante a retirada, pelas suas próprias mãos, das patentes que tinham sido conferidas a esses militares.

vii. A 30 de Novembro de 2000 é assassinado Ansumane Mané, de forma bárbara, ao que parece depois de ele se ter entregado, estando ainda por desvendar os autores e as verdadeiras razões do seu assassínio.

viii. A 14 de Setembro de 2003, Kumba Yalá, através de um golpe comandado por Veríssimo Seabra, então CEMGFA, à frente de um “Comité Militar”, é de-posto. Renuncia formalmente 3 dias depois, tendo sido substituído pelo empresário Henrique Pereira Rosa.

ix. A 6 de Outubro de 2004, Veríssimo Seabra, CE-MGFA, é assassinado supostamente por um levan-tamento dos militares que tinham estado na Libéria como força de interposição, aparentemente, por corrupção ligada à questão salarial.

x. A 24 de Julho de 2005 Nino Vieira volta ao poder através de eleições, demite o governo de Carlos Gomes, Jr. (discricionariedade que gera polémica constitucional) e nomeia em seu lugar Aristides Go-mes (1 de Novembro de 2005) que é deposto através de uma moção de censura em 19 de Março de 2007. Carlos Gomes regressa ao poder em Dezembro de 2008 através de eleições ganhas pelo PAIGC com larga maioria.

xi. A 1 de Março de 2009, Tagma na Waié, CEMGFA, é assassinado através de um atentado bombista que, dadas a sofisticação, técnica e precisão utilizadas, dizem uns, ter a assinatura dos narcotraficantes estrangeiros não obstante também ele, Tagma, ser acusado de controlar uma das várias redes mili-tares de narcotráfico; dizem outros, que é obra de especialistas militares estrangeiros. Acontece que Tagma na Waié previa o seu assassínio e apontava o seu futuro autor, pelo menos moral. Tinha deixado uma mensagem aos seus camaradas de armas: “Se ele me matar de manhã, matem-no à noite”. A este propósito um amigo meu escreveu: “Talvez tenha sido a primeira vez que um morto mata um vivo.”

xii. A 2 de Março de 2009, cumpria-se rigorosamente as ordens de ex-CEMGFA, com o assassínio de Nino Vieira que se diz ter sido uma mistura de tiros e catanadas da forma mais selvagem e bárbara que se possa imaginar. Dizem uns, por gente ligada a Zamora Induta a mando do PM Carlos Gomes, Jr. e outros que a operação fora levado a cabo por membros do Batalhão de Mansôa que se encontrava sob o comando de António Injai que:

“Uma semana antes Indjai assinara em Bissau, perante uma comissão composta pelo Primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, CEMGFA, Zamora Induta, Procurador-Ge-ral da República e o Presidente, um documento onde reco-nhecia estar envolvido numa operação de narcotráfico que ocorrera no aeródromo de Cufar, sul da Guiné, desmante-lada «in extremis» pelos militares de Zamora Induta. Na mesma ocasião ficou estabelecido que António Indjai seria automaticamente exonerado do cargo de número dois das forças armadas e partiria para Cuba, oficialmente, em «tratamentos médicos».” (Fim de transcrição)xiii. A 5 de Junho de 2009 são assassinados Baciro

Dabó, candidato às presidenciais e Helder Proença

Tagma na Waié, antigo CEMGFA, morto num ataque à bomba contra o Estado-Maior guineense em 2009

vêem privados por eliminação física dos seus mais proeminentes quadros da luta armada.

ii. A 7 de Junho de 1997 uma tentativa de golpe de es-tado levada a cabo por uma “Junta Militar” chefiada por Ansumane Mané, ex-CEMGFA, deposto uma semana antes por alegado envolvimento no tráfico de armas com os rebeldes de Casamança, gera uma guerra civil.

iii. A 7 de Maio de 1999 Nino Vieira é deposto. Parte para o exílio depois de obrigado a renunciar o cargo de PR que é assumido interinamente, nos termos da Constituição, pelo Presidente da ANP, Malam Bacai Sanhá pondo fim a uma guerra civil de 11 meses.

iv. Em Julho de 1999, processam-se importantes emen-das na Constituição: Abolição da pena de morte; limitação de mandatos de presidente da república a dois; estabelecimento de que os principais titulares de cargos de estado têm que ser guineenses, filhos de pais guineenses. [ii]

v. A 16 de Janeiro de 2000, Kumba Yalá, do PRS, vence as eleições presidenciais contra o candidato do PAIGC, Malam Bacai Sanhá. Com a eleição de Kumbá Yalá as funções presidenciais perderam dignidade e respeito devido a postura histriónica do presidente potenciada com actos caricatos e indignos para a imagem interna e externa do País. Mas o mais grave é a tentativa de “balantização” do exército com a elevação a patentes de comando de muitos militares.

vi. O acto de promoção por parte do PR desagradou o então CEMGFA, Ansumane Mané, que numa atitude pública e mediática provocatória, insensata u

Page 4: As crises político-militares na Guiné-Bissau

u

04 Nº 546 • 16 de Maio de 2012

(Político dinâmico, ex-Ministro da Defesa de Nino Vieira). Sobre o assassínio de Baciro Dabó, escreve um analista num artigo intitulado “Figuras de Nar-cotráfico na Guiné-Bissau:

“Pedra basilar de todo o fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau foi Baciro Dabó, assassinado na madruga-da de 5 de Junho de 2009 em mais uma alegada tentativa de Golpe de Estado a assolar a ex-colónia portuguesa. Baciro Dabó ocupou entre 2006 e 2008 as pastas de Se-cretário de Estado da Ordem Pública e posteriormente de Ministro da Administração Interna. Em final de 2008, e não obstante o avolumar de suspeitas internacionais de envolvimento no narcotráfico, Baciro foi nomeado Ministro da Administração Territorial.”

Mais adiante, continua o mesmo articulista:“Mas a transformação da Guiné – Bissau em Nar-

co-Estado não foi trabalho exclusivo de Baciro Dabó. Apesar do lugar central que desempenhou, Baciro teve a conivência e o apoio das principais figuras do Estado Guineense, desde políticos, militares a empresários e deputados, alguns deles ainda em funções.

Nino Vieira, o ex- Presidente da República Guineense assassinado a 2 de Março de 2009, ocupou um lugar central em todo este processo.”xiv. Bacai Sanhá é eleito Presidente da República a 28

de Junho de 2009 vencendo Kumba Yalá numa 2ª volta.

xv. A 1 de Abril de 2010, uma tentativa de golpe de estado conduzida pelo vice-CEMGFA, Gen. An-tónio Injai e pelo Alm. Bubo na Tchuto, detém o PM Carlos Gomes, Jr. com ameaça de morte, caso houvesse reacção popular de apoio bem como o seu CEMGFA, Alm. Zamora Induta. O silêncio inicial do então-Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, foi notória e a sua condenação tímida e tar-dia foi grave, sobretudo ao classificar a ocorrência como um “pequeno problema entre militares”. Mas mais grave ainda foi o facto do autor do atentado ter sido, por ele, nomeado no seguimento do seu acto a CEMGFA tal como reivindicava apesar do aviso americano através de um comunicado transmitido da sua embaixada em Dakar:

“É impossível para os EUA contribuir para o processo de reforma da segurança e da defesa se essas pessoas, ou outros implicados no tráfico de estupefacientes, forem no-meados ou permanecerem em postos de responsabilidade nas forças armadas”, acrescentando em outro passo:

É “imperativo” que o chefe das Forças Armadas – que deve ser nomeado em breve pelo Presidente da Repú-blica, Malam Bacai Sanhá – não esteja “implicado nos acontecimentos de 01 de Abril”, evocando implicitamente o major-general António Indjai.

Mais tarde, num despacho da Lusa lê-se:“O governo americano espera trabalhar com as auto-

ridades guineenses para desalojar as pessoas que ocupam funções oficiais e que se servem do seu poder para facilitar o tráfico de estupefacientes”.

Ainda no decorrer deste caso e sobre o Alm. Bubo na Tchuto, seu cúmplice, escreve um analista:

“No dia 1 de Abril, soldados leais a Bubo Na Tchuto entraram no edifício da ONU e resgataram-no[iii], enquanto detinham o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e o Chefe do Estado-Maior General, almirante Zamora Induta.

“Bubo Na Tchuto é a força por trás de todas as outras forças”, disse à reportagem o director político da Co-

munidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Abdel Fatau Musah. “O facto de ele estar a controlar as coisas é muito desagradável”. xvi. Malam Bacai Sanhá morre em França a 9 de Ja-

neiro de 2012 e as eleições presidenciais para a sua substituição têm lugar a 18 de Março de 2012, data que buscava o cumprimento de um preceito constitucional e tinha a concordância de todos os partidos e de todos os putativos candidatos avisados da desactualização dos Cadernos Eleitorais e da impossibilidade de os regularizar nesse lapso de tempo.

xvii. O decorrer das eleições e os resultados da 1ª volta não deixaram qualquer dúvida aos observadores internacionais que se pronunciaram e a diferença de votos entre os candidatos também não deixava espaço para a reclamação posteriormente engen-drada. O peso das eventuais irregularidades, seria insignificante para alterar o curso normal das elei-ções. E a existirem seria mais fácil encontrarem-se entre o 2º e o 3º classificados do que entre o 1º e os outros. (vide quadro)

xviii. A iminência de uma derrota anunciada na 2ª volta por parte da oposição levou que o seu mais bem classificado candidato, por coincidência da etnia balanta, um ex-presidente, eterno contestatário e pertencente ao maior partido da oposição “mani-pulasse” – só assim se compreende – os outros que se lhe seguiam e os levasse de forma absolutamente inconsequente a se lhe juntarem no coro de protes-tos.

xix. No dia 11 de Abril os 5 candidatos mais votados depois de Carlos Gomes, Jr, encabeçados por Kumba Yalá, seu porta-voz, dão uma conferência de imprensa, em que o porta-voz afirma que não só ele não compareceria à 2ª volta, como ela, a 2ª volta, não se iria realizar, num anúncio claro de interrupção do processo eleitoral.

xx. No dia 12 de Abril, dá-se o golpe de estado, com a detenção de PR interino, Raimundo Pereira, e do candidato Carlos Gomes, Jr. (PM com funções suspensas e destacado 1º classificado na 1ª volta) de entre outros importantes membros do Governo. 20. Registe-se que esta onda de violência que vem

desde o início da luta armada, não pode ser atribuída a este ou aquele actor político-militar em especial, mas a uma cultura de violência interiorizada e que se manifestou na luta pelo poder.

21. O mais estranho é que os que matam são do PAIGC e os que morrem também o são num ritual de antropofagia sem precedentes. O PAIGC ontem, um partido de heróis; o PAIGC

hoje um partido de assassinos. É uma triste e deprimente constatação.

22. O sonho de Cabral do seu PAIGC gerar um “homem novo forjado na luta” com princípios e valores bem sintonizados com o respeito pela dignidade do Homem e defesa do humanismo e da humanidade foi completamente defraudado pela metamorfose que esse homem sonhado e idealizado terá sofrido, surgindo como o mais acabado homo belicus, perito na arte de ma-tar.

23. E Amílcar Cabral, homem inteligente e arguto, tinha plena consciência da limitação e inca-pacidade dos seus homens para o exercício de tarefas fora do contexto “militarista”. E ad-vertiu-os, embora sem sucesso, que a luta não

Especial Guiné-Bissau

Henrique Rosa foi presidente da Guiné-Bissau, ainda que de forma interina

era um investimento em proveito próprio, ao preconizar o encontro de Ensalmá da forma como o faz:

“A Luta que levamos a cabo com a arma na mão para tirar os tugas do nosso chão, para a nossa Independência, é o programa mínimo que estamos a cumprir. Não pensem que vamos todos mandar em Bissau. Para aquele que era mecânico, electricista, pescador, agricultor quando entrou na Luta, irão ser criadas condições para ele continuar a sua actividade e viver o seu estatuto de combatente da liberdade da pátria. A nossa Independência termina em Ensalmá. Ela vai ser entregue à gente que virá ao nosso encontro para a assumir. Essa gente é que irá começar a cumprir o Programa Maior que é compor a terra, tarefa maior e mais complicada.” (O negrito é meu)

24. Cabral falhou redondamente na formação do “Homem Novo”. E tinha a consciência do “monstro” que estava a criar. Os seus sucessores mostraram-se medíocres, mesquinhos, estreitos de espírito (narrow mind) e algo oportunista tirando proveito da parte mais superficial da sua filosofia que era a incitação ao cumprimento de um programa mínimo – Independência dos territórios da Guiné e de Cabo Verde – que exi-gia sobretudo engenho militar e mais não era do que uma etapa mínima da luta de libertação no qual ainda continuamos fortemente empe-nhados e como ele diz, não podia ser feita nem liderada só pelos participantes da 1ª etapa que para tal faltava-lhes o “know how”.

Page 5: As crises político-militares na Guiné-Bissau

05

25. A ganância, a arrogância e um certo autismo apoiados apenas e tão-somente no poder das armas falaram mais alto.

26. E enquanto o Encontro de Ensalmá não acon-tecer para que interiorização da força do saber e da razão suceda à força das armas, os golpes não pararão. E só o PAIGC pode operar esta inversão porque foi ele que o criou. Todos os principais protagonistas, em todos os golpes ou tentativas, são do PAIGC. Um outro impor-tante denominador comum é a encorajadora IMPUNIDADE de que os autores dos golpes e das tentativas sempre se beneficiaram. E é sobre este aspecto que alguém num longo trabalho tipo ensaio deixa as seguintes inter-rogações:

“Quem foram os assassinos de Robalo, Nicandro Perei-ra Barreto, Ansumane Mané, Veríssimo Correia Seabra, Domingos Barros, Lamine Sanha e outros? Quem foram os responsáveis pela vala comum descoberta após golpe de 1980 que derrubou Luis Cabral? Quem foram os traficantes de armas que deram origem à guerra civil na Guiné-Bissau? Quando é que serão julgados os políticos e militares suspeitos de Narcotráfico? Porque Bubo na Tchuto não foi julgado pela acusação de tráfico de droga e pela acusação da tentativa de golpe de estado? Porque é que Intchami Yalá não foi julgado pela tentativa de golpe? Quem foi o responsável pelo desaparecimento de 500 quilos de cocaína apreendidos e guardados no tesouro Público? Quem foram os assassinos de Tagma na Waié e João Bernardo Vieira? (fim de trancrição).

27. O último golpe, o de 12 de Abril, merece uma atenção mais cuidada, embora não caiba nesta minha tarefa – animar o debate – analisá-lo em pormenor. Vamos retomá-lo – o golpe de 12 de Abril – para continuar o que no início dissemos:

i. Os autores do golpe, não conseguem justificá-lo. Atribuem-no à presença das forças angolanas – um pequeno contingente de cerca de 200 homens – no território, como ameaça para as forças armadas (mais de 4.000 homens) e a uma carta da qual só apresentam uma eventual minuta, do PM para o Secretário-Geral das Nações Unidas solicitando uma força de interposição (estabilização).

ii. A 1ª justificação visava obter o apoio popular atra-vés do apelo ao sentimento nacionalista contra um “invasor” estrangeiro (funcionou outrora) e a 2ª que se tratava de “agressão” contra as FA, ameaçadas de controlo e extinção, feita nas suas costas e contra a sua vontade porque, justificam, a Guiné não está em guerra.

iii. As verdadeiras motivações continuam por “desven-dar” uma vez que as apresentadas não colheram. E um dado imediato é o impedimento da realização da 2ª volta das eleições presidenciais na data apra-zada.

iv. Reivindicam para o “regresso” aos quartéis, a criação de um Conselho Nacional de Transição; nomeação de um novo Presidente da República e de um novo Primeiro-Ministro; Eleições legislati-vas e presidenciais, em simultâneo, num prazo de dois anos; manutenção, obviamente, das chefias militares; recusa de qualquer solução que inclua o regresso de Raimundo Pereira e Carlos Gomes, Jr. às suas funções de Presidente da República interino

e Primeiro-Ministro, respectivamente. Regresso dos militares às casernas.

v. Pergunta-se: Que legitimidade têm os militares para interromper a ordem constitucional democratica-mente instalada e impor a sua vontade?

vi. As reacções internas e externas não se fizeram es-perar.

vii. Tiveram, os golpistas, um tímido mas declarado apoio inicial da parte dos cinco candidatos que contestavam os resultados eleitorais de que falamos atrás – depois deram o dito por não dito – bem como de algumas forças políticas da oposição e condenação de toda a população e das organizações internacionais e de todo o mundo, destacando-se a veemência e contundência da CPLP, da União africana, do Secretário-Geral das Nações Unidas, do Conselho de Segurança, da União Europeia que exi-giram o retorno imediato e incondicional à ordem constitucional e sanções aos golpistas. A CEDEAO condenou-o ao mesmo tempo que se apressava em pactuar ao propor negociar uma solução.

viii. O Governo da Guiné-Bissau falava em todos os fóruns com a legitimidade e a autoridade que a legalidade internacional lhe conferia, através do seu representante para política externa – Ministro das Relações Externas. Um erro que os golpistas cometeram e que lhes custou a veemência, a firmeza e a constância do discurso de condenação em todas as frentes bem como a inquestionável solidariedade internacional.

terinos não poderiam candidatar-se às eleições que ela (CEDEAO) preconizava. Em conclusão: Não há memória da CEDEAO ter resolvido um golpe de estado em que os golpistas não fiquem incólumes e o golpe, de forma directa ou encoberta, legitimado.

x. Como era de esperar, o PAIGC, uma vez mais firme nas suas posições de reposição da ordem constitu-cional, rejeitou liminarmente a recomendação pro-posta pela CEDEAO, pois representava na realidade legitimação do golpe e um pacto com os golpistas para os quais não havia sanções.

xi. Os interesses que gravitam à volta da CEDEAO são vários e de vária índole. Por comodidade e algum decoro apenas os caracterizamos como sendo uns de carácter endógeno, outros exógenos em relação à própria região. Quer uns quer outros, todos à volta daquilo que podemos sintetizar como interesses hegemónicos na região e de passagem algum res-sabiamento.

xii. A UA e UE tomaram medidas concretas. A pri-meira suspendendo de imediato a Guiné-Bissau da Organização enquanto a segunda fechava as suas fronteiras aos golpistas, ambas exigindo o retorno à ordem constitucional.

xiii. A firmeza do PAIGC tem sido nota dominan-te. Não abdicar minimamente dos seus direitos constitucionais. A procissão ainda vai no adro e é nesta firmeza e defesa de princípios que, a meu ver, estará a solução política, não direi definitiva mas duradoura, dos golpes de estado. Deverão ser procurados procedimentos complementares. A luta armada terminou há 40 anos. Uns poucos, muito poucos, são os militares ainda vivos, com verda-deiro e legítimo estatuto de antigos combatentes para a independência nacional, isto é, oriundos da luta armada. E é para eles, só para eles, que se deve procurar afincadamente uma saída militar, diria, humanista, condigna.

xiv. A questão do narcotráfico deve ser vista e tratada numa óptica global. Só a Guiné-Bissau por si só, não tem meios, nem humanos, nem materiais nem financeiros para resolver o problema.

xv. Feita esta panorâmica da espiral de violência na Guiné-Bissau, que vem desde os tempos da luta armada, penso que estão criadas condições mini-malistas para um debate sobre As Crises Polí-tico-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e Soluções, tema proposto pelo Centro de Estudo e Estratégias do MNE. Não se trata, obviamente, de uma palestra que exigiria uma outra abordagem, mas sim de uma nota introdutó-ria, de um auxiliar de memória, dos parâmetros que devem nortear o debate. Não há posições acabadas, mas apenas tópicos para reflexão.

[i] Tema do debate para o qual fui convidado para “Animador”[ii] Amilcar não poderia exercer nenhum cargo do poder de estado na Guiné-Bissau sendo filho de pais cabo-verdianos.[iii] Bubo na Tchuto encontrava-se escondido nas instalações da Representação das NU em Bissau depois de ter regressado da Gâmbia para onde fugira para não ser preso por acusação de narcotráfico.

ix. A solução encontrada pela CEDEAO, que se tem mostrado incapaz de todo, de resolver este tipo de problema, não representava nem de perto nem de longe, a tolerância zero estipulada pela organiza-ção, pois contemplava os interesses dos golpistas ignorando o governo legítimo, democraticamente eleito e indo mais longe ao cercear, para agradar os golpistas, o acesso ao poder de alguns dirigentes do PAIGC ao invocar que o presidente e o PM in-

Combate ao narcotráfico terá impulsionado o golpe na Guiné-Bissau

Notas:

Page 6: As crises político-militares na Guiné-Bissau

Do passado do relacionamento entre a Guiné-Bissau e Angola são iden-tificados dois períodos imediatos, diametralmente distintos e uma

terceira fase, esta em estado embrionário que tem como seu ponto alto, a presença da MIS-SANG e os interesses económicos angolanos na Guiné-Bissau.

Foi pois durante a presidência de Luís Cabral, nos primórdios da independência da Guiné-Bissau, que o estado das relações entre Luanda e Bissau vive os seus momentos áureos.

Na gesta da solidariedade e da luta anti-imperialista da ocasião, Bissau despacha, para Angola efectivos do seu comando “Abel Djassi”, municiadores de famosos mísseis “Strela” que na fase derradeira da luta pela libertação tinham contido a supremacia aérea do exército colo-nial, desequilibrando o conflito, para o lado da guerrilha independentista.

O MPLA estaria prestes a proclamar uni-lateralmente a independência do país a 11 de Novembro de 1975, em Luanda. E impunha-se garantir o mínimo de segurança ao acto ante as ameaças de incursões aéreas da forca aérea sul-africana e zairense.

São pois os tempos da “ponte aérea” de soli-dariedade à Angola, com as forças do MPLA, a fazerem frente a uma invasão externa movida pelo Zaire de Mobutu e pela África de Sul de Pik Botha.

MISSANG: Crónica de um Fracasso Anunciado

Ao envolver-se no processo de re-forma do sector da defesa e da se-

gurança, na Guiné-Bissau, no âmbito de um acordo de cooperação técnico-militar, Angola fê-lo em parte, evo-cando as históricas relações entre o MPLA e o PAIGC.

Relações de afecto e de cumplicidade entre elites partidárias, que remontam aos tempos da Casa dos Es-tudantes do império, em Lis-boa, sedimentadas nos anos de exílio em Conacri e de luta contra o domínio colonial comum.

Um argumento que entre-tanto foi resistindo aos ventos da história e das conjunturas, graças a carolice de uns tantos dirigentes históricos dos dois partidos, mas que provavel-mente hoje jaz inerte algures no pante ao de um cemitério qualquer de ideais pan-afri-canistas!

A geografia, os conflitos, as purgas internas e as guerras civis presentes no passado histórico recente de ambos os países, isto sem se perder de vista a importância da nova geração de dirigentes políticos na renovação das referenciadas simbologias comuns, trataram de relegar para as calendas

Os Altos e Baixos de uma Relação Estado a Estado

Ramalho Eanes (esq.), Luís Cabral (cen.) e Agostinho Neto (esq.)

A capital guineense acolhe em Junho de 1978 a Cimeira de Bissau, que sob a égide do então presidente guineense, Luís Cabral, ensaia a reaproximação Agostinho Neto a Ramalho Eanes.

Sobre esse encontro entre Luanda e Lisboa, o investigador António Duarte identifica entre outros aspectos da estratégia de Neto, a necessidade de «criar condições para se gerar uma aproximação com os EUA, fa-zendo cessar o apoio deste país aos movimentos da FLNA e da UNITA».

Mas o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, que depôs Luís Cabral, acaba por as-

sinalar o início de uma era distinta, nas relações entre os dois estados.

Luanda não vê na altura com bons olhos o “movimento reajustador” de Nino Vieira, por razões de solidariedade a Luís Cabral e não menos determinante, o 27 de Maio de 1977 de Nito Alves , três anos antes, condicionava a condescendência e a tolerância de Angola para com movimentos “putschistas” do género!

Dai ao esfriamento das relações entre os dois países e o extremar de posições, foi apenas um compasso de espera.

No auge da guerra civil angolana, Luanda ex-perimenta na década 90 e na frente diplomática internacional, os primeiros sinais da quebra de solidariedade no relacionamento com Guiné-Bissau.

Como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas (1996/97) Bissau destoa dos demais poderes estabelecidos nos Palop’s no apoio e na solidariedade ao MPLA no poder em Angola enquanto paralelamente ensaia uma aproximação as posições da UNITA.

Com a rebelião militar de 1998/99 liderado por Ansumane Mané e que culmina no der-rube de Nino Vieira, do poder, o presidente angolano vale-se da oportunidade para se res-sarcir dos prejuízos que a postura do regime de Bissau, trouxera a diplomacia angolana.

Crítica na sua intervenção na cimeira dos chefes de estado da CPLP, de Julho de 1998 na

Por Nelson Herbert, Jornalista

gregas, as ditas referências históricas.

O esvaziamento do factor colonização comum, como ele-mento simbólico aglutinador, de que os PALOPs inclusive se valeram enquanto grupo, para manter avivada os tais laços históricos e de cumplicidade mútua, incumbiu-se de soltar as rédeas dos rumos das duas capitais africanas.

E Luanda e Bissau de tempo em tempo foram-se reencon-trando no quadro de uma comunidade linguística, a CPLP, que tem por sinal na sua génese um factor também ele exógeno, de “aproximação” dos dois estados e povos.

Por conseguinte, de um panorâmico e crítico olhar sobre o historial das relações MPLA–PAIGC ressalta esta insofismável constatação.

Sem prejuízo da cumplici-dade gerada pela luta comum, travada em frentes distintas, afinal os outrora laços de afec-to entre os dois partidos dos “camaradas” circunscreviam-se muito mais ao nível pessoal e da elite dirigente de ambos os movimentos de libertação do que entre as bases da mili-tância activa.

No caso do PAIGC, na sua maioria, mestiça ou cabo-ver-diana, que a independência de Cabo Verde e mais tarde, o golpe da ruptura do projecto de união entre os dois estados a 14 de Novembro de 1980 na Gui-né, liderado por Nino Vieira, se encarregou de fixar, nas ilhas atlânticas cabo-verdianas.

Convenhamos, um factor a explicar em parte a cordialida-de das relações entre Luanda e Praia enraizada por certo nos tais laços históricos entre nacionalistas contemporâneos que conduziram os destinos dos dois países, no dealbar das respectivas independências e em termos comparativos, a frouxa impetuosidade que marca as relações entre Luanda e Bissau.

06 Nº 546 • 16 de Maio de 2012

Especial Guiné-Bissau

Page 7: As crises político-militares na Guiné-Bissau

MISSANG: Crónica de um Fracasso Anunciadocapital cabo-verdiana, Praia, que tem a guerra civil guineense no topo da agenda, a governação de Nino Vieira, a quem inclusive assaca responsabilidades pelo envolvimento de forças estrangeiras, nomeadamente do Senegal no conflito.

João Bernardo Vieira “Nino”, assassinado em 2009

O anúncio da intenção de Nino Vieira de regressar ao país para se candidatar as eleições presidenciais em 2005 foi um outro aspecto a não passar despercebido ao líder angolano.

Dos Santos alerta na altura para o impacto de uma tal “aventura”, na frágil estabilidade guineense, que assente sob os escombros de uma recente guerra civil, carecia de consolidação.

Entretanto, ao fim de seis anos de um exílio forçado em Portugal, Nino Vieira consuma o regresso, carim-bando assim o seu próprio passaporte para a morte.

Mas ironicamente foi com o regresso daquele antigo chefe guerrilheiro ao poder em 2005, que Lu-anda relança os contactos e ensaia a reaproximação a Guiné-Bissau.

No auge da guerra civil na Costa do Marfim, o envolvimento de Angola numa alegada violação do embargo internacional de armas decretado em 2004 contra aquele pais oeste africano, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, é referenciad0 pela imprensa marfinense.

No centro da controvérsia, o apoio declarado de Luanda ao presidente Laurent Gbagbo com a Guiné-Bissau a servir-se de placa giratória de um alegado fluxo ilícito de armamentos e munições destinados às então forças governamentais marfinenses. Mas Bissau e Luanda preferem remeter-se ao silêncio!

Em 2009, as jazidas de bauxite de Madina de Boé,

no leste do país, com um potencial de mineração calculado em 110 milhões de toneladas despertam o interesse de investidores angolanos. Um mega-investimento orçado em cerca de 400 milhões de dólares americanos que prevê ainda construção de um porto de águas profundas na região de Quina-rá, no sul da Guiné-Bissau e uma via rodoviária e ferroviária que ligará a região mineira de Boé ao porto de Buba.

Mas, seria entretanto o sector militar a merecer a maior acuidade por parte das autoridades angolanas. Afinal, sem a pronta reforma do sector da defesa e da

segurança, na origem das cíclicas e violentas convul-sões vividas no país, de nada valeriam os avultados investimentos preconizados.

Dos acordos de cooperação militar celebrados com o governo guineense, Luanda dificilmente consegue disfarçar a associação lógica destes, com os seus inte-resses estratégicos e económicos no país.

E é pois neste contexto que a missão de cooperação militar angolana, MISSANG avança para a Guiné-Bissau de mãos dadas com os indisfarçáveis interesses económicos de Luanda, tacteando um terreno que sob a ilusão de familiar, se lhe impunha entretanto inóspito.

O país acabava de sair de mais uma das cíclicas e turbulentas convulsões políticas e militares, com a tropa e a classe política no centro de um jogo de intrigas palacianas que invariavelmente desemboca nos tais ajustes de contas.

A vítima desta vez seria Zamora Induta, o chefe de estado-maior das forças armadas. Um episódio que leva ainda a detenção do primeiro-ministro Carlos Gomes júnior, pelos militares, revoltosos.

Carlos Gomes Júnior, primeiro-ministro deposto da Guiné-Bissau

Mas contrariando a pressão internacional, seria o próprio Carlos Gomes Júnior a premiar a cúpula golpista, liderada por António Indjai e Bubo Natchu-to, que são reconduzidos na liderança da estrutura castrense.

Washington denuncia o gesto de Bissau e parte para a adopção de sanções contra as novas chefias militares guineenses que acusa de envolvimento numa rede de trafico internacional de droga que afecta a África Ocidental. A Comissão da ONU para a Consolidação

Missão de Paz, em Terreno Movediçoda Paz no país levanta em Nova Iorque as suas dúvidas quanto à independência do governo face ao poder mili-tar. A União Europeia une a sua voz ao coro de protestos internacionais e desaconselha as nomeações. Bissau assobia pró lado e justifica a decisão à “uma tentativa do poder legítimo, do Governo e da Presidência da Repú-blica, de criar um clima propício para a implementação da reforma do sector de defesa e segurança”.

Os europeus debandam e decidem não renovar a missão de apoio a reforma do sector da defesa e da segurança.

Confrontado com este cenário de desmobilização da comunidade internacional e de descrédito do poder em Bissau, que Angola sem a cobertura de um “man-dato internacional, avança como a “solução africana” para um problema que ciclicamente está na origem dos conflitos de contornos violentos e sangrentos que assolam a Guiné-Bissau.

José Eduardo dos Santos, Presidente de Angola

No terreno a presença militar angolana faz face às primeiras resistências de sectores de umas forças armadas, de uma forte acentuação ideológica que

07

Page 8: As crises político-militares na Guiné-Bissau

reclama uma simbólica legitimidade que se chega a confundir com a própria génese da formação do estado independente da Guiné-Bissau.

Convenhamos “símbolos de legitimidade” para cujo reavivamento, o próprio PAIGC, em muito contribui particularmente sempre e quando para fins eleitoralis-tas esteja em causa a revigoração da memória colectiva nacional e a evocação da importância histórica deste partido na construção do estado independente da Guiné-Bissau.

Aliás a associação tácita do PAIGC aos símbolos do estado e da nação em construção, pela primeira vez criticada de forma aberta na recente campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 18 de Março último, nomeadamente a bandeira nacional que se confunde com símbolos partidários, expõe as conve-niências daquele partido, na evocação de um legado histórico, da qual insiste entretanto em deserdar as actuais forças armadas, que dela contínua sendo uma espécie de apêndice.

Um coro de vozes da oposição guineense, opõem-se à presença da MISSANG, que chegam inclusive a compa-rar a uma força de ocupação, enquanto a vida política do pais, continuava sendo animada pelo cortejo de intrigas políticas no seio do PAIGC e do governo.

Malam Bacai Sanhá, falecido em Janeiro de 2012

De um lado o núcleo de Malam Bacai Sanhá, que conta com a circunstanciada aliança da outrora ala partidária afecta a Nino Vieira. Do outro, a de Carlos Gomes Júnior, que a despeito dos históricos do PAIGC, via entretanto galvanizar a sua meteórica ascensão na liderança do partido dos “camaradas”.

E natural seria que a resistência a presença militar angolana, encarada desde o início entre sectores do PAIGC, como a “guarda pretoriana” do executivo governamental de Carlos Gomes Júnior, emergisse na surdina, no seio do próprio partido e da facção de veteranos da guerra pela independência.

Basta recordar que durante a campanha para as presidenciais que o elege em 2008, Malam Bacai Sa-nhá chega inclusive a defender “que o envio de forças estrangeiras para a Guiné-Bissau seria o mesmo que declarar falência do Estado e um gesto de subestimar do patriotismo das actuais forças armadas guineen-ses”.

Afinal, de facções e de rupturas se faz a história do PAIGC, uma maldição que remonta aos primórdios da luta pela independência daquele antigo território

Um rápido olhar sobre a história deste partido da independência da Guiné-Bissau remete-

nos a certeza de que, dos partidos da independências das antigas colónias portuguesas em África, tem sido aquele que mais momentos de tur-bulência interna tem enfrentantado — sempre e quando em causa estiver a realização das suas reuniões magnas ou conferências nacionais para a in-digitação de candidatos presidênciais ou para a liderança do partido.

A permeabilidade das casernas mi-litares as divergências e contradições intestinas daquele partido histórico guineense, apenas se incumbe do resto.

PAIGC

Em 1973, o II congresso Amílcar Cabral de Boé, o da sucessão de Amílcar Cabral na liderança do partido, acentuam-se as divergências entre a ala cabo-verdiana e guineense do partido. Uma ruptura que seria entre-tanto adiada até Bissau.

O seu III Congresso de 1977, o primeiro do pôs independência, por sinal o congresso da controvérsia da nova constituição da república e das desavenças em redor da atribuição das patentes militares, acaba por precipitar o golpe de estado de 14 de Novembro de 1980, que destituiu Luís Cabral.

Em 1991, no seu V conclave, o da abertura política do país ao multipartidarismo, o PAIGC experimenta a primeira grande cisão da sua história. Um grupo de 121 militantes, entre intelectuais e quadros, abandonam aquele partido histórico.

Facto curioso desta cisão é que nas eleições legis-lativas meses depois, as primeiras multipartidárias da história do país, dos 13 partidos concorrentes, incluin-do o PRS do controverso Kumba Yalá, apenas a Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), partido rival do PAIGC cuja existência remonta ao período colonial e a Resistência da Guiné-Bissau-Movimento Bafatá, são firmações que não resultam de cisões ou dissidências do PAIGC.

Particularidade que em parte explica a facilidade com que as contradições internas do PAIGC acabam invariavelmente por permear estes siameses partidos políticos na oposição, trespassando o clima de confli-tualidade para dentro das guarnições militares.

Com a polémica do tráfico de armas para os rebeldes do Casamance na agenda do debate nacional, o partido reúne-se em 1998 no seu VI Congresso, qual prólogo da rebelião militar liderada pelo brigadeiro Ansumane

colonial de Portugal e que tem porventura, os assas-sinatos de Amílcar Cabral e de Nino Vieira, entre os seus mais mediáticos episódios.

PAIGC: um percurso de conflitos internos

Mané com todo um cortejo de consequências e impli-cações a espraiar-se aos tempos actuais.

A expulsão de dirigentes próximos do então pre-sidente Nino Vieira, no congresso de 2008 seria pois, invariavelmente o prelúdio de mais um dramático episódio, entretanto consumado a 2 de Abril de 2009 com assassinato daquele chefe de estado.

Um episódio que entre outras eventuais conexões, nomeadamente o factor ajuste de contas, em parte de-vido a “mão de ferro” com que Nino Vieira lidou com o caso 17 de Outubro de 1987, a do fuzilamentos dos oficias e militantes do partido, de etnia Balanta, contou com a cumplicidade de sectores do PAIGC.

Nas eleições presidenciais de Junho de 2008, Baciro Dabó, um antigo chefe da secreta guineense destoa-se da decisão partidária e resolve — à revelia do PAIGC — avançar como independente e à revelia do PAIGC, na corrida para a presidência guineense. Uma ambição que de resto custa-lhe a vida, em circunstâncias ainda por esclarecer.

A crispação gerada pelas primárias internas do PAIGC, para a escolha do candidato do partido às presidenciais de 18 de Março último que, recorde-se, colocaram Carlos Gomes Júnior, o líder do PAIGC e chefe do governo e Serifo Nhamadjo, vice-presiden-te da Assembleia Nacional Popular em trincheiras desavindas, não deixa por outro lado de se constituir em mais um episódio cúmplice da perturbação da frágil estabilidade política guineense, de novo com os militares no centro da polémica.

E pois neste labirinto de intrigas palacianas e de guerras de facções com as casernas militares, a fun-cionarem tal qual um depositário fiel das contradições internas do PAIGC, com indícios do narcotráfico a nível de sectores da instituição militar, que Luanda e a MISSANG se vêem perdidos na Guiné-Bissau.

Quiça “verdades” que o partido dos “camaradas” da Guiné entendeu, sonegar aos “camaradas” de Angola.

08 Nº 546 • 16 de Maio de 2012

u

Especial Guiné-Bissau