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Sem Opção Veículo: Correio Braziliense - Caderno: Poder - Seção: Nas entrelinhas - Assunto: Política - Página: 2 - Publicação: 05/04/20 URL Original: Um paciente chamado Brasil Um paciente chamado Brasil Prever o futuro não é tarefa realizável. Preparar-se para as mudanças, por outro lado, é atividade possível e recomendável. Principalmente na adversidade. E diante da pandemia, que está mudando as relações sociais e econômicas, especialistas projetam possíveis cenários para que governo e sociedade construam caminhos para sobreviver ao trauma. Uns são mais pessimistas do que outros. Existe a bifurcação entre sociedades mais e menos fraternas. Mas prevalece, para muitos estudiosos, o reposicionamento da China na economia global, em detrimento dos Estados Unidos. Do outro lado da tempestade, o paciente chamado Brasil, para utilizar as palavras do ministro Luiz Henrique Mandetta, encontrará um mundo mais fechado e menos democrático após se recuperar da Covid-19. A revista americana bimestral Foreign Policy publicou um conjunto de artigos, com vários especialistas, intitulado “Como o mundo se parecerá após a pandemia de coronavírus”. Nele, o professor de relações internacionais de Harvard, Stephen M. Walt, afirma que a pandemia criará um mundo “menos aberto, menos próspero e menos livre”. “Não precisava ser desse jeito, mas a combinação de um vírus mortal, falta de planejamento e lideranças incompetentes colocou a humanidade em um caminho preocupante”, afirma. Diretor e chefe-executivo da Chatham House, organização britânica de estudo e análise de política internacional, Robin Niblett, por sua vez, diz ser pouco provável que o mundo retorne ao conceito de globalização de benefícios mútuos construídos no início do século XXI. “Sem incentivos para proteger o partilhamento de ganhos de uma economia global integrada, a arquitetura da governança econômica globalizada estabelecida no século XX vai rapidamente atrofiar. Será necessária uma grand autodisciplina de líderes políticos para sustentar a cooperação internacional e não retrair em uma competição geopolítica aberta”, alerta. Liberalismo radical A disputa internacional por ventiladores e equipamentos de proteção individual para médicos e enfermeiros é um peso a mais no lado pessimista da balança. Na corrida pelos produtos, ganha quem paga mais e manda seus aviões buscarem os produtos, como fizeram os Estados Unidos com a China. No Brasil, especialistas em relações internacionais, cientistas sociais, analistas e experts políticos também alertam para as bifurcações na estrada. As luzes amarelas sinalizam à sociedade e às lideranças políticas os riscos e os problemas pela frente, em nome de um país que saia maior da crise. O primeiro desafio, no entanto, será superar a crise dentro da crise. Com postura negacionista, o presidenrte Jair Bolsonaro é um obstáculo, pois se isola e dissemina desinformação. O analista político Melillo Dinis destaca o aspecto político-econômico da crise no Brasil. Segundo ele, havia a tentativa do governo Bolsonaro de instituir uma política extremanente liberal, com redução de direitos sociais e “Estado ínfimo”, que “dava voos de galinha” e já sofria solavancos internos e externos. Isso acabou desmontado pela chegada do vírus. O analista fala sobre a possibilidade de uma radicalização do liberalismo econômico aprofundar um “apartheid social”, com 10% da população vivendo dentro dos marcos sociais e políticos existentes, e os 90% mais pobres, incluindo a classe média, vivendo na exclusão e na miséria. “O cenário mais provável é de um país ainda mais conflagrado, todo mundo se acusando. Bolsonaro acusando governadores, governadores dizendo que o presidente demorou a agir. Uma economia pífia, com dívida pública multiplicada por muitos fatores, e que vai transformar o país em um estado mais desestruturado, sem rumo que não seja o conflito e a desagregação social”, avaliou. O segundo cenário é de a crise possibilitar a reconstrução de um pacto social com fortalecimento das instituições democráticas. Nesse mundo pós-coronavírus, não haveria espaço para populistas de qualquer espectro político. “Vamos precisar de um pacto social pela defesa do Brasil democrático com sindicatos, organizações da sociedade civil, partidos políticos, poderes, imprensa. E

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    Veículo: Correio Braziliense - Caderno: Poder - Seção: Nas entrelinhas - Assunto:Política - Página: 2 - Publicação: 05/04/20URL Original:

    Um paciente chamado BrasilUm paciente chamado Brasil Prever o futuro não é tarefa realizável. Preparar-se para as mudanças, por outro lado, é atividade possível e recomendável.Principalmente na adversidade. E diante da pandemia, que está mudando as relações sociais e econômicas, especialistasprojetam possíveis cenários para que governo e sociedade construam caminhos para sobreviver ao trauma. Uns são maispessimistas do que outros. Existe a bifurcação entre sociedades mais e menos fraternas. Mas prevalece, para muitos estudiosos,o reposicionamento da China na economia global, em detrimento dos Estados Unidos. Do outro lado da tempestade, o pacientechamado Brasil, para utilizar as palavras do ministro Luiz Henrique Mandetta, encontrará um mundo mais fechado e menosdemocrático após se recuperar da Covid-19. A revista americana bimestral Foreign Policy publicou um conjunto de artigos, com vários especialistas, intitulado “Como omundo se parecerá após a pandemia de coronavírus”. Nele, o professor de relações internacionais de Harvard, Stephen M. Walt,afirma que a pandemia criará um mundo “menos aberto, menos próspero e menos livre”. “Não precisava ser desse jeito, mas acombinação de um vírus mortal, falta de planejamento e lideranças incompetentes colocou a humanidade em um caminhopreocupante”, afirma. Diretor e chefe-executivo da Chatham House, organização britânica de estudo e análise de política internacional, Robin Niblett,por sua vez, diz ser pouco provável que o mundo retorne ao conceito de globalização de benefícios mútuos construídos no iníciodo século XXI. “Sem incentivos para proteger o partilhamento de ganhos de uma economia global integrada, a arquitetura dagovernança econômica globalizada estabelecida no século XX vai rapidamente atrofiar. Será necessária uma grandeautodisciplina de líderes políticos para sustentar a cooperação internacional e não retrair em uma competição geopolíticaaberta”, alerta. Liberalismo radicalA disputa internacional por ventiladores e equipamentos de proteção individual para médicos e enfermeiros é um peso a maisno lado pessimista da balança. Na corrida pelos produtos, ganha quem paga mais e manda seus aviões buscarem os produtos,como fizeram os Estados Unidos com a China. No Brasil, especialistas em relações internacionais, cientistas sociais, analistas eexperts políticos também alertam para as bifurcações na estrada. As luzes amarelas sinalizam à sociedade e às lideranças políticas os riscos e os problemas pela frente, em nome de um país quesaia maior da crise. O primeiro desafio, no entanto, será superar a crise dentro da crise. Com postura negacionista, o presidenrteJair Bolsonaro é um obstáculo, pois se isola e dissemina desinformação. O analista político Melillo Dinis destaca o aspecto político-econômico da crise no Brasil. Segundo ele, havia a tentativa dogoverno Bolsonaro de instituir uma política extremanente liberal, com redução de direitos sociais e “Estado ínfimo”, que “davavoos de galinha” e já sofria solavancos internos e externos. Isso acabou desmontado pela chegada do vírus. O analista fala sobre a possibilidade de uma radicalização do liberalismo econômico aprofundar um “apartheid social”, com 10%da população vivendo dentro dos marcos sociais e políticos existentes, e os 90% mais pobres, incluindo a classe média, vivendona exclusão e na miséria. “O cenário mais provável é de um país ainda mais conflagrado, todo mundo se acusando. Bolsonaro acusando governadores,governadores dizendo que o presidente demorou a agir. Uma economia pífia, com dívida pública multiplicada por muitos fatores,e que vai transformar o país em um estado mais desestruturado, sem rumo que não seja o conflito e a desagregação social”,avaliou. O segundo cenário é de a crise possibilitar a reconstrução de um pacto social com fortalecimento das instituiçõesdemocráticas. Nesse mundo pós-coronavírus, não haveria espaço para populistas de qualquer espectro político. “Vamos precisar de um pactosocial pela defesa do Brasil democrático com sindicatos, organizações da sociedade civil, partidos políticos, poderes, imprensa. E

  • com uma economia mais solidária e menos consumista”, pondera o especialista. “Na minha visão, a crise é profunda. O pós serágravíssimo se construirmos pela gravidade, ou um país mais justo, se encontrarmos o caminho certo. Eu torço pelo segundocenário, mas acredito que haja mais probabilidade do primeiro”, lastimou. Polarização profundaO cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu tem uma visão ainda maispessimista: o isolamento de Bolsonaro, contrário ao Congresso, a ministros e governadores, o crescimento do Poder Legislativocomo protagonista e o entendimento que a gravidade do cenário supera a briga entre direita e esquerda. Apesar disso, oespecialista admite que, nos últimos tempos, a polarização se inflamou. “Podemos ver, de um lado, um movimento cada vez mais autoritário, porém mais localizado; e de outro, uma reconfiguraçãodos institucionalistas, democratas, que têm uma visão mais institucional da vida política. Isso tem se configurado também emalianças que deslocam o eixo da governança”, afirma. Para Geraldo Tadeu, a reconfiguração é o meio republicano encontrado para manter a governança do Brasil, a despeito dascrises e confusões que o presidente possa deflagrar. “É uma maneira de encontrar uma solução institucional, nos limites dalegalidade, para um problema que é muito sério: um presidente que se comporta de maneira estranha aos deveres do cargo.Victor Orban, presidente da Hungria, líder do movimento ultradireitista no mundo, é o exemplo mais claro do radicalismo aoobter poderes quase absolutos em meio à atual crise. Esse é um comportamento personalista e irresponsável. Os atuaismovimentos são uma forma de isolar o presidente, torná-lo menos efetivo”, salienta. Disputa de poderSeguindo a lógica da divisão da sociedade pós-coronavírus em um grupo menor e detentor do poder financeiro e um grupomajoritário mais pobre, porém ativo, o coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica deMinas Gerais, Robson Sávio Reis Souza, diz enxergar uma realidade dramática para além da crise. Ele destaca que, a despeitode serem minoria, os detentores do poder financeiro também são detentores do poder político. “Não podemos desconhecer que, depois da Segunda Guerra Mundial para cá, tirando as décadas de 1950 e 1960, a tendênciado poder econômico sempre foi suplantar a política e dar as cartas. E a profunda crise atual afetou fundamentalmente essegrupo poderosíssimo”, destaca. “Temos forças que, a partir de uma visão pessoal de mundo, tentarão se colocar em um momento pós-caos. Uma delas tem aver com movimentos sociais, comunitário, menos vocalizado na mídia, mas muito potente. Mas não posso desconhecer que, doponto de vista da grande engenharia global, o grupo do poder econômico, associado ao poder bélico e militar, está ferido e vailutar para se sobrepor. É um cenário preocupante, com relações de força desiguais. Pois o poder está concentrado nas mãos degrupos com domínio econômico bélico e político”, alerta o cientista social. Robson Sávio lembra, ainda, que figuras políticas como Bolsonaro e Donald Trump aproveitam momentos como esse para terganho político e que, mesmo no caso do presidente americano, a mudança de postura em relação ao coronavírus tem maisrelação com as eleições do que com o bom senso. “Isso é claro no caso de Bolsonaro, que atua no esgarçamento das instituições democráticas. Ele sabe que vai ser caótico etentará sair ileso. Vai dizer que agiram daquela forma, e não do jeito que ele propôs. Não podemos desprezar as políticas deultradireita”, analisa.Aumenta o risco da irrelevância No cenário internacional, as perspectivas para o Brasil no contexto pós-pandemia também são preocupantes. Analistas ouvidospelo Correio avaliam que a pior das saídas será manter o Itamaraty com uma política pouco pragmática, comandada pelochanceler Ernesto Araújo. “Se olharmos para 100 anos atrás, quando houve a pandemia de Gripe Espanhola, foi em meio a um momento, no fim daPrimeira Guerra Mundial, de espalhar um grande nacionalismo e chauvinismo. Esse quadro não se alterou com a pandemia”,observa Günther Richter Mros, professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal deSanta Maria (UFSM). Mros vê um quadro parecido no século XXI. “Países mais poderosos, com mais dinheiro, pagam mais e levam seus aviões paraencher de mercadorias. Isso não é cooperação. É quase um salve-se quem puder. Tenho uma visão bastante pessimista”, diz.

  • O professor afirma que o novo desenho internacional dependerá da postura dos países com poder de veto no Conselho deSegurança das Nações Unidas — composto por Estados Unidos, China, Rússia, França e Reino Unido. “Esses cinco estão sendo muito atingidos pelo vírus. A única solução seria criar um protocolo de crises enquanto são epidemias,antes que se tornem pandemias. Esse protocolo de crises teria que socorrer países que estão passando pela epidemia epandemia. Novamente, o Brasil é coadjuvante. Continuará tendo o papel que tem, de provedor de alguns produtos, pífiaparticipação no mercado internacional e pouco a contribuir enquanto tivermos uma degradação da imagem da nossadiplomacia”, lamenta.