um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA UM OLHAR PARA O ABRIGO: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO EDUCADOR E MÃE SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA VIDA DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS MARIA LACOMBE PIRES SÃO PAULO 2006

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Page 1: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA

UM OLHAR PARA O ABRIGO: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO

EDUCADOR E MÃE SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA VIDA DAS

CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS

MARIA LACOMBE PIRES

SÃO PAULO

2006

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA

UM OLHAR PARA O ABRIGO: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO

EDUCADOR E MÃE SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA VIDA DAS

CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS

MARIA LACOMBE PIRES

Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para a graduação

no curso de Psicologia, sob orientação da Profa. Dra. Ana Mercês Bahia Bock

SÃO PAULO

2006

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Às crianças e aos adolescentes abrigados por terem sobrevivido ao abandono e às

condições tão adversas de vida, lutando diariamente por uma nova história.

Aos educadores e mães sociais de abrigo que têm a difícil tarefa de acolher e dar

suporte às crianças e adolescentes auxiliando-as na construção de um presente

decente e um futuro mais digno.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe e ao meu pai por terem permitido e incentivado que eu me tornasse eu

mesma; por serem um apoio para que eu pudesse aprender sozinha com as minhas

experiências; por eu olhar nos seus olhos e sentir que eu posso ir em frente, atrás dos

meus sonhos.

À minha irmã por me mostrar um outro jeito de olhar a vida; pelo companheirismo,

sempre; por me ensinar a arte; por me ensinar a levar a vida com os ombros relaxados.

Às minhas avós, mulheres com coragem, força, determinação e esperança. À minha

avó Natalia por um dia ter vindo ao Brasil em busca de uma vida melhor e a minha avó

Stella por me mostrar como a paixão é o alimento da vida.

Ao Gabriel pela compreensão, companhia e interesse pelo meu trabalho; por ouvir tão

atentamente e emocionado meus desejos e sonhos futuros; por estar ao meu lado

sempre que precisei.

À Chu, minha grande mestra. Por ter me ensinado a olhar o essencial e fundamental da

psicanálise: as relações humanas. Por ter me ensinado a encarar o trabalho com

seriedade e compromisso com o outro.

À Ana Bock por ter me acompanhado e incentivado durante todo esse trabalho; pelo

respeito às minhas idéias e apoio à elas; pela tranqüilidade, segurança e calma

transmitidas à mim em nossos encontros.

À Lurdinha por ter sido minha inspiração. Por ter me apresentado de maneira

apaixonada seu trabalho junto à infância e adolescência; por ter me mostrado a

possibilidade de transformar em ações concretas a realidade desigual do Brasil.

Page 5: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

À Bel Kahn pela escuta atenta e acolhedora das minhas tantas indagações e

inseguranças; por ter me incentivado a seguir meu próprio caminho e confiar nas

minhas descobertas; pelo trabalho que realiza, tão inspirador para mim.

À Renate por ter me ensinado um olhar clínico para além da prática clínica; por ter me

ensinado a enxergar nas experiências cotidianas o significado e o sentido da

criatividade e da transicionalidade.

À Maria Claudia por ter me incentivado e apoiado a descobrir o meu jeito de atuar; por

me apresentar uma prática profissional que leva em conta a subjetividade do analista.

Ao Hemir Baricão por ter me mostrado que o bom humor deve ser intrínseco ao

trabalho do analista e que o sorriso pode levar a cura tanto quanto o pranto.

Às minhas grandes amigas e companheiras desses 5 anos de PUC: Kika, Táta, Cris,

Dre, Fê e Clau pela companhia fiel nesses anos de faculdade; pelas gargalhadas sem

fôlego, pelas festas, cervejas, dúvidas, medos e choros. À Debora por ter divido comigo

as ansiedades desse trabalho; à Roberta, minha grande amiga, alma gêmea “psi”, pelas

nossas risadas, por me ouvir sempre. À Felícia por termos dividido durante todo esse

ano a experiência do estágio em um abrigo com nossas angústias e gargalhadas fora

de hora. Às minhas amigas Bia e Marcela pela eterna companhia e por terem me

ensinado que o silêncio não e sinônimo de solidão, mas sim de comunhão.

Ao Biel pela sua sensibilidade e por se encantar com o humano. Por estar sempre ao

meu lado, torcendo e me apoiando desde minha primeira conquista.

Ao Projeto Fazendo Minha História por me mostrar como é possível sonhar e tornar o

sonho realidade.

Às educadoras e mães sociais por terem dividido comigo suas práticas e vivências, de

maneira sincera e emocionada.

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“É na soma do seu olhar / Que vou me conhecer inteiro / Se nasci pra enfrentar o mar /

ou faroleiro.”

Chico Buarque

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MARIA LACOMBE PIRES: Um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e mãe social e sua influência na vida das crianças e dos adolescentes

abrigados. 2006

Orientadora: Profa. Dra. Ana Mercês Bahia Bock

Palavras chaves: Educador e mãe social; abrigo; infância e adolescência.

Resumo

Esta pesquisa buscou, por meio da leitura da psicanálise social, apresentar um

olhar sobre o trabalho do educador e da mãe social de abrigo e sua influência na vida

das crianças e adolescentes institucionalizados. Tendo como referência a teoria

psicanalítica, na qual o ambiente, representado pelo outro, tem extrema importância na

vida da criança e considerando-se o fato de, na dinâmica institucional do abrigo, serem

os educadores e mães sociais os responsáveis pela educação e cuidado das crianças,

pesquisou-se as marcas deixadas e as percepções que estes têm sobre a vida desses

sujeitos afastados do convívio diário com seus familiares. O objetivo é, portanto,

compreender as teorizações que os profissionais que atuam nos abrigos formulam

sobre esta inserção e sobre a contribuição para o desenvolvimento das crianças e

adolescentes com os quais trabalham. Como procedimento de coleta de dados

realizamos entrevistas individuais com uma educadora e uma mãe social de abrigos

que atendem crianças de zero a 18 anos na cidade de São Paulo. As entrevistas foram

definidas dentro de um processo de conversação e seguiam um roteiro com questões

que visavam garantir a obtenção de informações importantes para o objetivo da

pesquisa. Buscou-se depois da coleta, analisar o discurso de cada sujeito para

compreender a teorização que têm da sua prática e a influência sobre o

desenvolvimento psicológico das crianças e adolescentes; possibilitou ainda a análise

das funções de mãe social e de educadora.

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Sumário

Introdução: Meu percurso pessoal nesse trabalho.................................. 8

I. Um resgate da história do abandono no Brasil............................. 12

II. ECA – A criança e o adolescente como sujeitos de direitos........ 18 II. a. Quem são as crianças e adolescentes acolhidos nos abrigos da cidade de São Paulo?......................................................................... 19 II. b. A instituição abrigo...................................................................20 II. c. O educador social de abrigo ................................................... 23

III. Paulo Freire e o educador social...................................................26

IV. A instituição e os afetos possíveis................................................ 30

V. O lugar do ambiente na constituição da subjetividade................. 33

VI. Metodologia.................................................................................. 47 VI. a. Os abrigos............................................................................... 51 VI. b. Os sujeitos............................................................................... 53 VI. c. Procedimento de coleta de dados........................................... 55 VI. d. Procedimento de análise dos dados....................................... 57 VII. Apresentação dos dados e análise............................................... 59 VII. a. Sujeito 1 – Luciana.................................................................. 59 VII. b. Sujeito 2 – Sueli....................................................................... 83 VIII. Discussão dos dados.................................................................... 111

Conclusão................................................................................................ 123 Referências Bibliográficas Anexo 1 – Termo de consentimento Anexo 2 – Entrevistas na íntegra

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Introdução: Meu percurso pessoal nesse trabalho

O interesse para a realização desse trabalho surgiu a partir da eletiva teórica

“Criança e adolescente em situação de vulnerabilidade” ministrada pela Profa. Maria de

Lourdes Trassi Teixeira, no curso de Psicologia da PUC – SP. Com essa experiência,

algumas questões se colocaram para serem pesquisadas referentes às crianças e

adolescentes abandonados e as instituições que os acolhem, mais especificamente o

abrigo. Questionava-me a respeito das possibilidades de subjetivação e construção de

identidade das crianças e adolescentes abrigados afastados do convívio familiar. A partir dessa experiência, senti a necessidade de uma vivência prática nessa

área e comecei a fazer parte de um Projeto Social – “Fazendo Minha História” –, que

atende crianças de 0 a 12 anos vivendo em situação de abrigo, com a proposta de

resgatar e registrar as histórias dessas crianças. Acho válido acrescentar nesse ponto

algo interessante que me ocorreu durante uma tarde num abrigo da cidade de São

Paulo: logo após um encontro desse projeto realizado junto a duas crianças, uma

educadora interpelou-me se não iria existir um dia alguém também responsável em

escutar suas histórias, seus medos e fantasias e quem sabe, ter um projeto similar para

os educadores. Essa situação me mobilizou para a questão desses profissionais, a qual

acabei por aprofundar mais adiante.

No quinto ano do curso de Psicologia, participei do Núcleo intitulado

“Psicoprofilaxia da Infância e da Adolescência” e realizei um estágio de duração de um

ano em um abrigo voltado para o atendimento de adolescentes grávidas e seus bebês.

Nessa experiência, depois de realizado o diagnóstico institucional, tracei, junto com

minha dupla e a supervisora o projeto de intervenção, um trabalho direto com as

educadoras sociais do abrigo, pois pensávamos ser este mais profilático já que são

esses profissionais que convivem diariamente com o público atendido.

Foi então a partir dessas experiências que me aproximei da realidade dos

abrigos, dos educadores, das crianças e adolescentes acolhidos nessas instituições.

Deparei-me com angústias e medos pessoais muito intensos, o que me levou a refletir

sobre o trabalho dos educadores, que suportam e acolhem vivências tão intensas e

histórias de vida tão difíceis dos sujeitos abrigados e ao realizarem essa tarefa tão

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árdua, na maioria das vezes, não são acolhidos e ouvidos e isso, com certeza, lhes

dificulta enormemente a realização do trabalho. Segundo Marin (1999):

Essas pessoas (que acolheram o abandonado) se defrontam com a angustia de

conter essa história de déficits e perdas, muitas vezes se sentem responsáveis e

culpadas por essa questão social e muito facilmente se desesperam frente a impotência

de suprir uma carência tão grande. É comum ouvir de trabalhadores das instituições

“somos uma instituição carente e abandonada”. (pg. 6)

Assim, a questão do abrigo sempre esteve presente para mim como

preocupação de estudo. É um lugar diferente da família, não é uma creche e tão pouco

uma escola. Na tentativa de definir-se, propõem-se como sua função acolher e educar

crianças e adolescentes afastadas do convívio cotidiano com seus familiares. Nessas

condições, os profissionais a esta vinculados também se vêem com dificuldade de

definir suas funções e papeis junto às crianças e adolescentes. A existência de

diferentes denominações para esses profissionais, tais como educador, mãe e pai

social, cuidadora, “tia” dentre outros talvez seja sinal desta dificuldade.

A característica fundamental do abrigo, de ser uma medida provisória de

proteção e acolhimento, também me instigava quando pensava nas relações e vínculos

estabelecidos nessa instituição. Há o fato de muitas crianças manterem vivos e fortes

os vínculos afetivos com seus familiares, outras estão no aguardo de serem adotadas

por novas famílias e ainda há aquelas afastadas definitivamente do convívio com suas

famílias que precisarão viver no abrigo durante anos. O desafio de transformar esse

momento da vida não em uma espera, mas em um momento que lhes possibilite pensar

no futuro e elaborar sua própria história era algo instigante para mim. Diante dessas

reflexões, pensar no papel, nas funções, no lugar de quem está mais próximo dessas

crianças e adolescentes no cotidiano, os educadores sociais, foi inevitável.

A partir desses questionamentos, defini os educadores sociais de abrigo como

sujeitos desse estudo, buscando entender o ambiente no qual as crianças de abrigo

estão inseridas. Durante o levantamento bibliográfico, me deparei com uma lacuna

presente na questão da formação profissional dos educadores; não existia nada

publicado que dissesse respeito a uma formação especifica para o desempenho dessa

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função. Diante disso, resgatei na teoria de educação de Paulo Freire e na teoria do

cuidado de Winnicott, além de outros autores, uma base teórica que pudesse dar conta

das questões propostas por esta pesquisa.

São os educadores os responsáveis, na cotidiano institucional, pela educação e

cuidado das crianças e adolescentes; são eles que participam de suas rotinas e se

relacionam diretamente com elas. Este trabalho buscou investigar justamente a

influência e o papel desses profissionais na vida dos sujeitos abrigados, representantes

nessas condições do ambiente aonde irão se constituir as subjetividades dessas

crianças e adolescentes.

Optei por trabalhar diretamente com eles, buscando compreender como

significam e vivenciam o seu trabalho, apresentando como justificativa inclusive o fato

de que, a grande maioria de material produzido sobre a criança e o adolescente em

situação de vulnerabilidade e sobre abrigos, refere-se a casos particulares de sujeitos

abrigados ou à especificidade de seu funcionamento psíquico ou aos aspectos

institucionais do abrigo.

O procedimento de coleta de dados baseou-se em entrevistas individuais

realizadas com 1 educadora social de um abrigo que atende crianças de 0 a 18 anos na

cidade de São Paulo e com 1 mãe social também de um abrigo na cidade de São

Paulo, dirigida à mesma população. Foi importante realizar entrevistas tanto com a

educadora quanto com a mãe social pois o modelo do abrigo é diferente nos dois

casos. A mãe social trabalha em um abrigo que busca reproduzir o modelo familiar,

atendendo no máximo 12 crianças e adolescentes. Elas vivem na casa / abrigo junto

com seu marido, que passa a ter a função de pai social e também com seus filhos

biológicos. No caso das educadoras sociais, trabalham em um modelo de abrigo mais

profissional, com uma proposta educacional mais evidente.

Optou-se em realizar essas entrevistas dentro de um processo de conversação,

no qual a entrevistadora se utilizaria de um roteiro orientador de perguntas com o

objetivo de estimular a conversação, buscando dessa forma implicar o sujeito e a si

mesmo na pesquisa da maneira mais espontânea possível. Essa escolha justifica-se

pela tentativa de se adentrar mais profundamente nas vivências e na prática desses

profissionais, compreendendo-se nesse caminho o papel dos educadores e das mães

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sociais na vida desses sujeitos em situação de abrigo. A análise baseou-se em trechos

dos discursos dessas profissionais e por meio destes pude pensar em caminhos e

respostas possíveis para minhas indagações. Estas tiveram como base as teorias de

Paulo Freire e Winnicott e outros autores preocupados com a questão dos afetos

envolvidos e possíveis no ambiente institucional.

O primeiro capítulo apresenta um resgate da história da criança abandonada no

Brasil e dos atendimentos fornecidos à primeira infância e juventude nessas condições.

Em seguida, busquei compreender o contexto institucional no qual as crianças,

adolescentes e os profissionais que os assistem estão inseridos, até abordar alguns

autores com a preocupação de definir um ambiente saudável para a criança. Com isso,

buscamos aproximar- nos do que poderia ser função e papel do educador e da mãe

social de abrigo, tendo em vista a carência de material produzido em relação à

formação especifica desses profissionais. Na metodologia defini os sujeitos envolvidos

nesse estudo, as instituições as quais estão vinculados e o processo de coleta e análise

de dados. Os trechos contendo os discursos e conseqüente análise dos mesmos se

encontram no capitulo “Apresentação e análise dos dados”. Sintetizamos os dados da

análise na busca de promover um diálogo entre a mãe e a educadora social. Foi

possível no último capitulo denominado “Conclusão” visualizar de uma maneira mais

ampla o ambiente proporcionado pela educadora e pela mãe social às crianças e

adolescentes em situação de abrigo.

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I – Um resgate da história do abandono no Brasil

Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga, tal qual tenho o direito de

amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História

como tempo de possibilidade e não de determinação. Paulo Freire1

Para iniciar, é fundamental traçarmos o caminho da história do abandono e do

atendimento social oferecido às crianças e adolescentes, nesta situação, no Brasil.

Segundo Del Priore (1991), a história do abandono inicia-se já no século XVI,

com a chegada dos portugueses colonizadores ao Brasil. A Companhia de Jesus chega

com a missão de civilizar os indígenas. Em suas palavras:

Aos olhos dos Jesuítas recém chegados às Índias então descobertas, não só o

cenário carecia de ordem que exprimisse a marca civilizatória da metrópole na colônia,

mediante a instalação de vilas, erecção de capelas e a semeadura dos campos, mas as

almas indígenas deviam ser ordenadas e adestradas para receber a semeadura da

palavra de Deus. Transformação da paisagem natural e também transformação dos

nativos em cristãos: esta era a missão. (1991, pg. 10-11)

Era descoberta na Europa ocidental nessa época, século XVI, a infância e assim

criados os primeiros modelos ideológicos sobre a criança. (Áries, apud Del Priore,

1991). Características dessas crianças, tais como, doçura, inocência, gestos delicados,

o olhar e a meiguice passaram a ser valorizados. Os Jesuítas chegam imbuídos dessa

valorização da infância e talvez por isso escolhem as crianças indígenas como alvo

para realizarem sua missão, que era conquistar a alma dos índios. Para isso, trazem

junto com eles ao Brasil os órfãos e crianças abandonadas portuguesas para serem

usadas como “iscas” para atrair os indígenas crianças e posteriormente, atingir os

adultos.

1 Trecho retirado do livro “Pedagogia da Autonomia”. São Paulo: Paz e Terra, 1996. pg. 75

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Desse encontro de duas culturas, nascem os “órfãos da terra”, filhos de pai

português e mãe brasileira, que “cedidos pelos genitores, (...), reuniam-se sob cuidados

jesuíticos nas chamadas ‘casas de muchachos’” (Del Priore, 1991, pg. 17). As casas de

muchachos são consideradas os primeiros abrigos do Brasil, que além de abrigarem os

órfãos da terra, também tinham a responsabilidade cuidar dos órfãos e enjeitados de

Portugal.

O que acontecia por fim era que os pequenos indígenas faziam a passagem pela

educação religiosa cristã, porém diferentemente do que os colonizadores pensavam,

não eram “papéis em branco” e já tinham tradições e valores indígenas. Com isso, ou

porque fugiam ou por já serem adolescentes e precisarem sair da casa dos muchachos,

essas crianças índias e mestiças rompiam com os jesuítas e também não eram mais

aceitas pelas tribos. Não tendo para onde ir, “(...) os mamelucos, mestiços e índios

estavam livres para escrever por sua vez e de forma definitivamente sincrética, outra

história em um outro papel.” (Del Priore, 1991, pg. 25).

No século XVIII, a questão do abandono começou a incomodar muito a

sociedade da época, que se mobilizou para resolver esse problema. Segundo Guará:

Muitas crianças e adolescentes que sobrevivem nos espaços urbanos, marcados

pela exclusão e pela violência, espelham o abandono, a fome, a exploração e a

negligência de uma realidade incômoda para a sociedade brasileira. (...) Os registros

históricos demonstram que já no final de século XVIII, a questão do abandono começara

a incomodar a sociedade da época, o que exigiu investimentos para o atendimento de

“menores” (1998, pg. 15)

No Brasil, até o começo do século XVIII, a assistência às crianças abandonadas

era informal. As crianças que sobreviviam eram acolhidas em casas de família, que

assim agiam ou por caridade, ou por pretender transformá-las em serviçais da casa.

Portanto, o acolhimento tinha um caráter assistencialista e caritativo, não visando

mudanças sociais.

Nesse cenário, foi trazida pelos colonizadores uma instituição de acolhimento

dessas crianças abandonadas, a “roda de expostos”, primeiramente para Salvador em

1726. Depois de depositada na Roda em sigilo, para que a identidade da mãe da

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criança não fosse revelada, a criança era batizada e uma ama de leite tornava-se

responsável por ela por aproximadamente três anos. As amas de leite eram mulheres

muito pobres que faziam dessa atividade um meio de sobrevivência. A situação das

crianças abandonadas nas Rodas era freqüentemente precária, faltando berço,

vestuário, etc para as crianças. Nessas condições, muitas crianças acabavam não

sobrevivendo.

Terminado o período de criação, no qual permaneciam com a ama- de- leite,

iniciava-se o período de educação, quando as crianças permaneciam na Casa de

Expostos até os sete anos. Terminada essa fase, tentava-se encaminhar as crianças

para casas de família, onde os meninos pudessem aprender algum ofício e as meninas

trabalhar como empregadas domésticas. Quando isto não dava certo, as crianças

acabavam perambulando pelas ruas. Além das crianças abandonadas por suas mães,

também havia as crianças filhas da pobreza e o aumento crescente do número de

enjeitados levou à criação dos Orfanatos e Patronatos, locais de acolhimento em massa

e espaços coletivos por excelência. Nesses locais as crianças eram atendidas

coletivamente.

Ao longo do século XIX, o espírito caritativo da época colonial foi sendo

substituído pela filantropia, que representou a tentativa de adequar o modelo

assistencial às novas exigências políticas, sociais e econômicas. Assim, o Estado

assumiu as responsabilidades de atendimento dessa população de crianças e

adolescentes abandonados mais tarde, primeiramente atendendo as “delinqüentes” –

crianças e adolescentes que não se enquadravam nos padrões vigentes e precisavam,

portanto, ser corrigidos e disciplinados – e delegou para as entidades filantrópicas o

cuidado com os “menores abandonados” (Guará, 1998). O objetivo dessa transição

para a filantropia, influenciado pelos avanços tecnológicos e pelo poder

médicohigienista, era formar um homem capaz de viver saudavelmente, em boa forma,

nas grandes cidades, ser um trabalhador correto e competente, disciplinado e dentro

dos padrões da normalidade (Marcílio, apud Cunha, 2003).

Nessa época, a exploração de crianças pobres no interior das fábricas começou

a ser denunciada. As crianças pobres representavam mão-de-obra barata e expressiva

margem de lucro, sendo assim razões suficientes para que a exploração não só

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aumentasse, como fosse mantida. Diante desse problema, as primeiras políticas sociais

de defesa da criança foram elaboradas: regulamento de proteção aos menores

abandonados e delinqüentes (1923), Código de Menores (em 1927, para regulamentar

o trabalho infantil) e a proibição do trabalho dos menores de quatorze anos sem

permissão judicial (em 1934).

A internação proposta através do Código dos Menores, que tinha como objetivo

a correção de comportamentos delinqüenciais, ocorreu pela primeira vez em 1927. O

termo “menor” passou a ser referido às crianças pobres e abandonadas, vistas

preconceituosamente como delinqüentes em potencial. Grandes internatos foram

construídos a partir da década de 30 e se expandem como principal modelo

institucional, visando isolar socialmente essas crianças e adolescentes para que após a

internação pudessem ser reinseridas na sociedade de maneira mais adaptada e em

condições de alcançar o padrão de comportamento moral e social em vigor. A

internação tinha portanto duas funções: proteger as crianças do mundo e proteger a

sociedade do convívio com elas. (Guará, 1998)

Esse modelo foi muito criticado por muito tempo e as criticas ganharam

fundamentos teóricos com o avanço da pesquisa cientifica e com as denúncias da

imprensa. Nesse contexto surge a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do

Menor), em 1964, com o objetivo de ser uma política inovadora, incumbida de fiscalizar

e de oferecer referências e modelos para as entidades através de programas

interdisciplinares de reeducação, que levavam em conta dimensões psíquicas, sociais e

biológicas das crianças. Infelizmente, o modelo de internação continuou sendo o mais

utilizado nos casos de atendimento à órfãos, delinqüentes, carentes, etc. Os internatos

ligados à FUNABEM mantiveram as mesmas concepções, isolando os internos do

convívio social. (Guará, 1998).

Os internatos eram comparados às prisões, onde as crianças e adolescentes não

podiam se expressar e se desenvolver saudavelmente. Desde o momento da entrada

deles nas instituições, sua identidade já era violada através do despojamento de seus

bens, identificação por numeração, hierarquia bastante rígida e distante dos internos,

funcionários repressores, falta de liberdade, etc.

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O isolamento social resultava numa alienação dos internos e a massificação do

atendimento tinha como conseqüências a despersonalização da criança ou adolescente

bem como implicava em maior dificuldade para o estabelecimento de uma auto-imagem

positiva e formação de identidade muito comprometida, dificultando o caminho para a

socialidade e interferindo nas relações das crianças com o mundo. O isolamento é

responsável ainda pelo aumento e manutenção dos estigmas socias de abandonado e

delinqüente.

Movimentos a partir da década de 70 começam a surgir mais fortemente pedindo

uma nova forma de atenção aos adolescentes e crianças em situação de risco. O

modelo assistencial e repressivo precisava ser substituído por um outro muito diferente

dessa concepção. O primeiro passo foi a abertura das instituições para a comunidade.

Crianças carentes da comunidade eram atendidas em regime de semi-internato, onde

eram realizadas atividades sócio-educativas fora do horário escolar. Essa também era

uma demanda dos movimentos sociais dos bairros mais populares, que além dessa

conquista, conseguiram aumentar significativamente os serviços de creches.

Outro movimento que se iniciou foi a flexibilização das regras dos internatos

quanto às visitas e saídas nos fins de semana com os pais e parentes e uma maior

integração com a comunidade iniciou-se lentamente através da participação dos

internos nos centros de saúde, escolas, etc. (Guará, 1998)

Algumas alternativas de atendimento em meio aberto tanto para aqueles que

estavam sendo desinternados, quanto para aqueles que necessitavam de serviços

“preventivos” ao abandono foram experienciadas, como por exemplo as “Casas da

Juventude”, os “Centros de Convivência Infantil”, dentre outras. Porém, esses projetos

ainda eram minoria.

Um movimento diferente de todos que havia existido até então surge quando as

crianças e os adolescentes tomam consciência de suas próprias condições. Surge o

Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e a Pastoral do Menor que

lutavam principalmente pela desinstitucionalização. Como conseqüência, muitas

desinternações foram acontecendo e muitas instituições foram fechadas. Buscava-se,

inclusive, transformar as condições sociais e econômicas que geravam o abandono e

mudar radicalmente a qualidade do atendimento. (Guará, 1998)

Page 18: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Com a abertura política nos anos 80, a luta pelos direitos humanos tomou fôlego

e ganhou força e soluções para as causas do abandono foram buscadas, através de

um olhar mais exigente e critico sobre as crianças e adolescentes. Movimentos sociais

ganham apoio de entidades não governamentais, agentes públicos, comunidade, etc.

Esses movimentos resultaram na elaboração de uma legislação de defesa dos direitos

da infância e juventude, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990,

elaborado por uma equipe multidisciplinar composta por pedagogos, psicólogos,

assistentes sociais, advogados, dentre outros profissionais, contendo concepções e

princípios baseados em conhecimentos de diferentes campos teóricos e inovações

cientificas.

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II - ECA – A criança e o adolescente como sujeitos de direitos

Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é

fim, o lugar onde todo adulto deve chegar.

Rubem Alves2

A Lei Federal número 8.069 que define os direitos da criança e do adolescente,

denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) representa uma legislação de

defesa dos direitos da infância e juventude. A novidade trazida pelo ECA é no sentido

de considerar as crianças e adolescentes dessa faixa etária como sujeitos de direitos,

além de estabelecer o Estado, a sociedade e a família como os responsáveis em

garantir-lhes educação, saúde e bem estar.

O ECA rompe com a relação pobreza = delinqüência, com o uso do termo

“menor” e com a obrigatoriedade da internação das crianças abandonadas. As novas

indicações da lei colocam que “o atendimento deve ser realizado de forma

personalizada, em pequenas unidades e pequenos grupos, privilegiando-se as ações

descentralizadas e municipalizadas.” (Guará, 1998. pg.21)

Coloca também uma nova modalidade de filantropia: incentivos fiscais àqueles

que prestarem serviços à comunidade e conseqüentemente diminuição das despesas

do Estado com a manutenção dos projetos sociais. Coloca-se, portanto, a participação

da sociedade civil frente aos problemas socias e a responsabilidade do Estado com a

assistência social.

Essa descentralização no cuidado com as crianças e os adolescentes em

situação de abandono cria outras possibilidades de procedimento além da internação,

como por exemplo, o abrigo, orientação e apoio sócio familiar, colocação familiar, etc

(ECA, p. 88). Todas essas modalidades de acolhimento / intervenção privilegiam o

sistema aberto de reintegração social.

O ECA desenha alguns princípios importantes, rompendo com a política de

assistência às crianças e adolescentes vigente até então. O primeiro princípio a ser

comentado é a proposta de substituição de uma tendência e modelo assistencialistas 2 Trecho retirado do livro “Conversas sobre educação”. Campinas: Verus editora, 2003. pg. 38

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de atendimento a essa população por outras propostas de caráter socioeducativo e

emancipatório. Mais adiante se discutirá como isso se realiza na prática dos

atendimentos nos abrigos. Outro princípio refere-se ao estabelecimento de práticas

embasadas em uma proposta educacional mais evidente no atendimento às crianças e

aos adolescentes em condição de vulnerabilidade social. Um terceiro ponto levantado

pelo Estatuto diz respeito à prevenção do abandono de crianças e adolescentes. Para

isso, apresenta como uma das principais medidas de proteção a manutenção da

criança e do adolescente na família e na comunidade, visando a garantia dos seus

direitos sociais básicos. Por fim, O ECA apresenta como proposta assegurar às

crianças e adolescentes o pleno desenvolvimento físico, mental, espiritual e social e isto

só pode ser conseguido se estão em condições de liberdade e dignidade. (Guará,

1998).

Estes princípios nos quais o ECA está baseado têm por objetivo romper

completamente com um modelo assistencialista de atendimento à criança e ao

adolescente em situação de risco pessoal, trazendo, em vez disso, uma nova

concepção de educação. A partir do ECA, a criança e o adolescente são sujeitos de

direitos e isso relaciona-se e implica de modo inequívoco na inserção e na garantia do

direito que passam a ter no que tange à educação e não alvos de um modelo

assistencial.

II. a – Quem são as crianças e adolescentes acolhidos nos abrigos da cidade de São Paulo? São encaminhadas para o abrigo, através do Conselho Tutelar ou da Vara da

Infância, as crianças e adolescentes que se encontram desprotegidos e em estado de

Page 21: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

abandono social. Somente na cidade de São Paulo,3 há 4.847 crianças e adolescentes

vivendo em abrigos, sendo a maioria desses do sexo masculino e negros.

Os bebês e crianças de pouca idade são minoria, sendo que a maior

concentração dos sujeitos vivendo em abrigos é na faixa etária de seis a 16 anos.

Quanto ao vínculo com a família biológica, a maioria das crianças e adolescentes não

são órfãos (tem sua família de origem) e recebem visitas no abrigo de seus familiares.

Ainda assim, é grande o número de crianças e adolescentes com família desconhecida

e também é significativo a quantidade de crianças e adolescentes que não recebem

visitas de seus parentes consangüíneos. Em relação aos motivos de abrigamento, o

principal deles é abandono e negligência; depois, refere-se a problemas relacionados à

saúde e às condições sociais; depois segue o motivo dos maus tratos; por uso de

drogas ou alcoolismo por parte do pai ou da mãe. Outros motivos de abrigamento de

menor ocorrência são: falecimento do pai ou da mãe, criança em situação de rua,

problemas mentais do pai e/ou da mãe, cumprimento de pena pelo pai ou pela mãe,

falta de condições familiares para cuidar da criança, devolução por guardiões, dentre

outros. Quanto à permanência dessas crianças e adolescentes no abrigo, este tempo é

longo, sendo a maior parte de três a quatro anos. Em relação à perspectiva de

desabrigamento, a maioria dos sujeitos abrigados tem como perspectiva futura retornar

a conviverem com sua família biológica, depois vem aqueles que serão inseridos em

famílias substitutas e por fim, há crianças e adolescentes, em sua minoria, que irão ser

desabrigados com a maioridade.

II. b – A instituição Abrigo 3 Dados retirados no relatório da pesquisa Por uma política em defesa dos direitos das crianças

e dos adolescentes na cidade de São Paulo realizada pela SAS, Fundação ORSA, NCA-PUC-

SP e AASPTJ-SP. 2004

Page 22: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

As medidas de proteção recomendadas pelo ECA se aplicam à criança e ao

adolescente violados ou ameaçados em seus direitos básicos, seja por omissão do

Estado ou pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (Artigo 98 do ECA). As

principais medidas de proteção priorizam a manutenção da criança na família e na

comunidade, buscando garantir à criança e ao adolescente que seus direitos básicos

sejam respeitados, bem como busca protegê-los do abandono.

Porém, mesmo buscando garantir a permanência da criança junto a sua família

de origem, em muitos casos a família não está em condições de cuidar da criança e ser

para ela um ambiente favorável a seu desenvolvimento. Nesses casos, existem outras

medidas de proteção antes do encaminhamento ao abrigo que buscam manter a

criança na família, por exemplo, articulação em rede junto com a comunidade,

atendimentos ambulatoriais e assistenciais, etc. Quando os esforços dos Conselhos

Tutelares e do Poder Judiciário para que as medidas de inserção familiar sejam

cumpridas fracassam, o ECA recomenda o abrigo como medida provisória até que a

família recupere sua capacidade de proteção e cuidado da criança e do adolescente.

Porém, se a autoridade judiciária verificar que a família biológica está temporária ou

definitivamente impossibilitada de fornecer educação e cuidado para seus filhos, ela

poderá indicar a última medida, qual seja, colocação em família substituta na forma e

guarda, tutela ou adoção.

O abrigo é uma medida de proteção, caracterizado pela provisoriedade; tem

como objetivo colocar as crianças e adolescentes em família substituta ou promover o

retorno às suas famílias de origem. Mesmo provisório, o abrigo – sendo um lugar de

proteção e uma alternativa de moradia – deve oferecer um clima residencial, possibilitar

um atendimento individualizado e ajudar na reinserção das crianças e adolescentes na

comunidade através de escolas, áreas de lazer, médicos, dentre outros e por isso,

devem funcionar “dentro de uma rede de atendimento municipal, numa perspectiva

integrada das políticas sociais locais e em parceria com a sociedade civil.” (Guará,

1998. pg. 9)

O tempo de permanência de cada criança e adolescente no abrigo depende de

suas histórias de vida particulares. Assim, existem crianças que precisarão permanecer

na instituição por pouco tempo até poderem retornar a família e em outros casos, terão

Page 23: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

que permanecer abrigadas por anos, muitas até serem emancipadas. Portanto, o abrigo

deve considerar, apesar de ser provisório, que esse tempo será relativo e a criança tem

o direito e por isso o abrigo necessita lhe garantir permanecer abrigada pelo tempo que

precisar.

Segundo o ECA, o abrigo é uma medida de proteção, provisória e excepcional,

utilizada como forma de transição para posterior retorno à família de origem ou para a

criança e o adolescente ser encaminhado para família substituta, não implicando em

privação de liberdade (Artigo 101- Parágrafo Único do ECA). Portanto, o abrigo deve

ser claramente discernido de um internato, pois não priva a criança e o adolescente de

sua liberdade. Opostamente, deve garantir o direito a esses indivíduos a conviver e

participar da cultura, da comunidade através de cursos, eventos culturais, escola,

centros de saúde, etc. O abrigo também é diferente de um albergue, pois tem como um

de seus principais objetivos proporcionar uma proteção e guarda integral ao sujeito.

(Guará, 1998)

Importante ressaltar o Artigo 92 do ECA referente a princípios e critérios que

devem orientar o abrigo:

I – preservação dos vínculos familiares;

II – integração em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção na

família de origem;

III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;

IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;

V – não – desmembramento de grupos de irmãos;

VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e

adolescentes abrigados;

VII – participação na vida da comunidade local;

VIII – preparação gradativa para o desligamento;

IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo.

A fiscalização do abrigo é realizada pelos Conselhos Tutelares, Vara da Infância

e da Juventude e do Ministério Público. O bom funcionamento do abrigo depende das

relações estabelecidas com esses órgãos públicos. Por exemplo, a parceria entre o

Page 24: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

abrigo e o Conselho Tutelar é muito importante no processo de intervenção e apoio,

para que a criança e o adolescente possam retornar à sua família de origem; e, entre a

Vara da Infância e da Juventude, é fundamental já que quando a criança é abrigada fica

sob a intervenção desse órgão, e em qualquer caso, a última palavra é sempre do juiz.

Importante ressaltar que o atendimento no abrigo só será eficiente se estiver

integrado à rede local de atendimento à criança e ao adolescente. Essa rede diz

respeito aos programas de proteção, de auxilio à família, de educação, saúde, esporte,

lazer, etc.

O ECA não recomenda qualquer tipo de atendimento realizado em grandes

instituições, já que determina que este deva privilegiar pequenos grupos de crianças e

em pequenas unidades, visando acabar com a massificação do atendimento. As

alternativas sugerem que sejam “casas” comuns, localizadas nos bairros da cidade,

com capacidade para o número de crianças abrigadas e que possua banheiros,

cozinha, dormitórios, quintal, salas de estudo em boas condições de higiene, saúde e

segurança. Essas casas-abrigo podem ser pequenas (abrigar até 20 crianças e

adolescentes) ou de porte médio (abrigar no máximo 35). É importante que isso seja

respeitado, pois só assim se torna possível que um atendimento personalizado ocorra,

que as crianças possam utilizar os recursos do bairro e que possam se integrar com a

comunidade.

Importante ressaltar ainda que o abrigo representa uma guarda

institucionalizada, diferentemente de colocação de crianças e adolescentes em famílias

substitutas, nesse caso representando a guarda domiciliar. Famílias são cadastradas e

quando o retorno à família de origem não é mais viável, essas são acionadas e

recebem apoio financeiro para assumir a guarda provisória da criança e do

adolescente.

II c – O educador social de abrigo

Page 25: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Pode-se pensar, a partir dessa contextualização dos abrigos, que o ECA –

trazendo uma mudança na concepção dos atendimentos à criança e ao adolescente –

amplia o lugar do educador social, diferentemente do que ocorria quando a função

desempenhada pelos “cuidadores” das crianças e adolescentes não tinha o caráter

educativo. Nas palavras de Guará (1998):

Analisando a história do atendimento social às crianças e adolescentes em

abandono social, verifica-se que esta atenção era desenvolvida predominantemente por

agentes voluntários – religiosos ou leigos. Dessa forma, eram poucos os trabalhadores

remunerados, pois a lógica que tradicionalmente orientou essa ação, inspirava-se num

ideário baseado num compromisso missionário. (Pg. 43)

A equipe profissional que trabalha nas casas-abrigos diretamente com as

crianças é composta por dirigentes, educadores e as pessoas de apoio operacional

(cozinheira, faxineira, porteiro, etc). Os educadores sociais “...são encarregados da

educação global das crianças e jovens em atividades de orientação individual e grupal,

cuidados de higiene e alimentação, apoio escolar, atividades de lazer e recreação e

acompanhamento externo quando necessário.” (Guará, 1998, Pg. 45) Dessa maneira,

fica claro a mudança da função do educador social depois do ECA. O educador de

abrigo deve proporcionar à criança e ao adolescente uma formação que vá além de

educar; ele necessariamente acaba envolvendo-se emocionalmente com os abrigados

e isso precisa ser levado em conta no seu trabalho, pois se constitui num diferencial.

Alguns autores ressaltam também outros elementos fundamentais presentes

nesse trabalho. No contato direto com os sujeitos abrigados, muitas fantasias e

fantasmas universais são revividos. Não há quem não tenha vivido em algum momento

de sua vida o temor e o medo de ser abandonado, esquecido. O que muitos

experienciam como fantasia, é vivido como realidade pelas crianças e adolescentes

abrigados, e no momento da escuta das histórias deles, esses fantasmas são trazidos à

tona e precisam ser resignificados (Sanches, Parente e Moraes, 2005).

Intrínseco a reviver fantasmas e fantasias primitivas de abandono, as histórias

de vida dos abandonados trazem também à luz a questão da desigualdade social, “uma

desigualdade que tem criado indivíduos cada vez mais desamparados e carentes de

Page 26: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

condições mínimas de sobrevivência física e psíquica” (Temer, pg. 87, 2005). Muitas

vezes é mais fácil ignorarmos essa desigualdade fechando os vidros de nossos carros

aos meninos no farol, mudando o canal da televisão quando a noticia é da miséria de

muitas famílias brasileiras, quando mostra o trabalho infantil escravo, a luta dos sem-

terra, entre tantas outras situações. Reagimos na maioria das vezes como se essa

realidade desigual não tivesse nada a ver conosco, como se fosse responsabilidade

apenas de um governo corrupto.

A relação direta e íntima com as crianças e adolescentes abandonados torna

impossível ignorar essa realidade, pois traz a história de uma família que não pode, por

diversos motivos, permanecer com a guarda do filho e também a realidade da miséria

do Brasil, esta possibilitando cada vez menos condições básicas, materiais e

econômicas para as famílias criarem seus filhos (Temer, 2005). Assim, a realidade

social em que vivemos, faz com que milhares de famílias não tenham condições

básicas de sobrevivência, abandonando-as; essas famílias, vendo-se abandonadas

pela sociedade, abandonam seus filhos levando-os para uma instituição, que também

se vê abandonada pelas políticas publicas. É essa realidade social que se torna muito

viva aos trabalhadores do abrigo. O que muitos ignoram, é preciso ser encarado de

frente pelos educadores sociais e aí se vê mais uma das grandes dificuldades de seu

trabalho.

O abandono presente em todas as histórias dos sujeitos abrigados, segundo

Sanches e Peloso (2005) “é uma situação potencialmente traumática” (p.149). O trauma

define-se como uma situação difícil vivenciada pelo sujeito, na qual ele ainda não

possui recursos suficientes para entendê-la ou significá-la, vendo-se dessa forma

impossibilitado de nomeá-la. A necessidade desse trauma, no caso o abandono, ser

nomeado por alguém que seja importante, que faça sentido na vida da criança

possibilitando uma elaboração do mesmo, é ressaltado por Dolto (1989 apud Sanches

2005). Para Sanches e Peloso (2005), “este saber tão doloroso é tarefa árdua demais

para um sujeito só. O encontro com um outro, que dá um nome à dor, e compartilha do

sofrimento, é o caminho para que essa experiência possa ser integrada ao self” (p.150).

A mudança na função do educador social de abrigo, portanto, evoca a questão

de como a formação desses profissionais vem se realizando atualmente, já que se

Page 27: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

espera, a partir do ECA, um novo lugar para os educadores. Guará (1998) aponta que

um espaço para a colocação de conflitos, dificuldades, supervisão, discussões,

seminários seria fundamental para a capacitação desses profissionais tendo em vista o

grande envolvimento emocional exigido no desempenho dessa função. Além disso, se

entendermos que um sofrimento quando dividido com outra pessoa importante nas

nossas vidas se torna mais fácil de ser vivido, um espaço para que o educador social

exponha suas angústias é bastante fundamental.

Page 28: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

III - Paulo Freire e o educador social

Quando se tira da criança a possibilidade de conhecer este

ou aquele aspecto da realidade, na verdade se está

alienando-a da sua capacidade de construir seu

conhecimento. Porque o ato de conhecer é tão vital como

comer e dormir, e eu não posso comer ou dormir por

alguém.

Madalena Freire4

O abrigo se apresenta como uma alternativa de moradia e acolhimento substituto

da família de origem. Propõe que o atendimento seja personalizado, o que implica na

garantia da individualidade e da singularidade da criança e do adolescente abrigado. É

função do educador social, nesse sentido, fazer um planejamento individualizado,

garantir e respeitar a singularidade e a história pessoal de cada criança e adolescente.

A expectativa depositada no educador social, de que ele possa reconhecer e

respeitar o outro no seu contexto particular de experiências e vivências, revela a

concepção de educação que embasa o ECA. Quando o Estatuto coloca a necessidade

dos educadores sociais garantirem para as crianças e adolescentes uma formação mais

ampla do que educar; quando diz da importância fundamental de respeitar e considerar

as histórias de vida das crianças e, assim, que a relação a ser estabelecida com elas e

as atividades programadas precisam fazer sentido para ela a partir de seu contexto

social, pode-se pensar que a concepção de educação e com isso, o que o ECA espera

que seja um educador social, se aproxima da concepção do educador Paulo Freire.

Para Paulo Freire, a tarefa do educador é antes de tudo a tarefa de criar uma

outra educação (Brandão, 1981). Ele construiu uma nova proposta de alfabetização no

Brasil denominada “O Método Paulo Freire de alfabetização de adultos”, na qual a

atividade de trabalho, a realidade social das pessoas eram fundamentalmente levadas

em consideração e intrínsecas ao processo. Os educadores deveriam realizar um

estudo da realidade de trabalho dessas pessoas e com isso, fazer um levantamento

4 Trecho retirado do livro “A paixão de conhecer o mundo”. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1983. pg. 15

Page 29: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

das palavras especificas ligadas à essa realidade para serem utilizadas no processo de

aprendizagem. Brandão (1981), no livro “O que é método Paulo Freire” apresenta um

exemplo do que foi essa nova proposta de alfabetização no Brasil: “Assim, as palavras

geradoras escolhidas para uma campanha de alfabetização nos morros e favelas do

Rio de Janeiro foram estas: favela, chuva, arado, terreno, comida, batuque, poço,

bicicleta, trabalho, salário, profissão, governo, mangue (...).” (p. 33).

O principal para Paulo Freire era que a aprendizagem fizesse sentido para o

educando e para o educador, por isso a realidade social de ambos era intrínseca ao

processo. Segundo Brandão (1981),

A educação que Paulo Freire vislumbra não é apenas politicamente utilitária. Ela

não objetiva somente criar novos quadros para um novo tipo de sociedade. Há uma

proposta politicamente mais humana, a de criar, com o poder do saber do homem

libertado, um homem novo, livre também de dentro para fora. (p. 87)

Esse homem novo e liberto a que o autor se refere só é alcançado através de

uma prática libertadora de educação que se opõe a uma prática domesticadora. Numa

prática libertadora, há uma unidade entre ação e reflexão sobre a realidade. O

educando participa do processo, sendo este dialógico, diferentemente do que ocorre

numa prática domesticadora, em que os educadores possuem o conhecimento e devem

transferi-lo para aqueles que não o possuem, os educandos.

Paulo Freire critica o fato das escolas terem, em geral, um programa universal

que deve ser ensinado; uma cultura única e universal que necessita ser transmitida

para os educandos. Assim, nessa prática, o cotidiano dos alunos não é levado em

conta e a escola distancia-se das experiências vividas pelos alunos, tornando-se dessa

forma desinteressante. Ao fazer essa critica, Paulo Freire enfatiza e sublinha o aspecto

fundamental da concepção de educação que parte da a importância da aprendizagem

fazer sentido para quem aprende. Se as experiências de vida do educando estão

excluídas do processo de aprendizagem, esse se torna tanto desinteressante como

alienante.

Sobre isso, Brandão (1981) diz do método Paulo Freire: “Tudo o que é da vida e

da cultura da comunidade, da região, é trazido para dentro do círculo (...) Tudo é

Page 30: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

material sobre o qual o grupo pensa e cria. Tudo se incorpora ao trabalho de aprender a

ler e escrever.” (p.51)

Pensando nesses elementos da teoria de Paulo Freire, é possível traçar um

paralelo entre esses conceitos e a prática dos educadores sociais de abrigo. O contexto

de vida das crianças e adolescentes precisa ser necessariamente implícito na relação

estabelecida entre o educador e esses sujeitos. A realidade dessas crianças precisa ser

considerada e assim, um espaço na instituição para se discutir o abandono, a violência,

a falta de mãe e pai é fundamental caso se proponha possibilitar-lhes condições de

resignificar as histórias particulares de cada um, dando-lhes a condição de se situarem

em seu contexto de vida, não sendo dessa maneira alienados a esta.

Da mesma forma como Paulo Freire aponta para o equívoco de um programa

universal nas escolas que serviria para todos os alunos, nos abrigos isto pode ser

pensando na presença da ideologia baseada no modelo familiar como ideal, o que

impede os educadores de escutarem as crianças e adolescentes a partir de seus

contextos de vida. Tendo em vista o fato de estarem afastados do convívio diário com

seus familiares, as crianças e adolescentes de abrigo são vistos muitas vezes como

coitados, passivos, à espera de que algo de bom lhes aconteça, opondo-se a proposta

de um sujeito ativo, liberto como aposta Paulo Freire. Sobre esse aspecto doa abrigos,

nos diz Marin (1990):

Nota-se, nesse sentido, que quase todas as tentativas de projeto que se

estruturam tendem a reproduzir o modelo conhecido da organização de vida das famílias

burguesas, procurando encontrar substitutos de mães nas atendentes ou voluntárias

que assistem às crianças, garantindo-se assim relações individuais exclusivas, adulto/

criança.(...) (pg.46)

Outro de destaque no método Paulo Freire é a importância que ele dá ao diálogo

entre educando e educador. Segundo Brandão (1981),

Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas

no mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento do amor tornado ação. (...). Do mesmo

modo como o homem depende da natureza para sobreviver e a natureza depende do

Page 31: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

homem para ter sentido, os homens dependem uns dos outros para sobreviverem e

darem sentido ao mundo e a si mesmos. Por isso mesmo, o diálogo não é só uma

qualidade do modo humano de existir e agir. Ele é a condição deste modo e é o que

torna humano o homem que o vive. (Brandão, 1981, p. 103-104)

A importância do diálogo entre educador e educando postulada por Paulo Freire

também pode ser tomada na relação entre os educadores e as crianças e adolescentes

dos abrigos. É na conversa presente nas experiências cotidianas desses sujeitos que

ambos irão se transformar. As crianças e adolescentes precisam de alguém se

importando com elas, acolhendo suas histórias por mais difíceis e sofridas que possam

ser para darem sentido às suas existências. O outro se coloca como fundamental,

ajudando a criança e adolescente e traçar novos projetos e elaborar dores passadas.

(Marin, 1990).

Portanto, a educação para Paulo Freire é um processo que envolve

necessariamente trocas entre as pessoas. Há sempre partes de um no outro e a

relação que irá se estabelecer entre as pessoas não é hierarquizada. Nas palavras de

Brandão (1981):

Um dos pressupostos do método é a idéia de que ninguém educa ninguém e

ninguém se educa sozinho. A educação, que deve ser um ato coletivo, solidário – um

ato de amor, dá pra pensar sem susto - , não pode ser imposta. Porque educar é uma

tarefa de trocas entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um sujeito isolado (...)

não pode ser também o resultado do despejo de quem supõe que possui todo o saber,

sobre aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum. (p. 22)

Page 32: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

IV – A Instituição e os afetos possíveis

Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos

dos outros fizeram de mim

Álvaro de Campos5

A institucionalização de crianças e adolescentes em situação de risco social

instiga muitas questões e diversas pesquisas são realizadas nesse campo. Há o

reconhecimento da necessidade desse tipo de medida quando se considera a condição

social de muitas famílias as quais não tem recursos e condições materiais e emocionais

de cuidarem de seus filhos no ambiente familiar. Por outro lado, também existe a

percepção de que esse tipo de medida – acolhimento em instituições – acarreta em

prejuízos ao desenvolvimento da criança, principalmente em relação aos vínculos e

afetividade.

A psicologia nesse contexto apresenta como preocupação fundamental os

prejuízos causados pela separação mãe – bebê e as conseqüências desta ao

desenvolvimento das crianças que passarão aos cuidados de uma instituição. A

concepção presente na psicologia para entender os efeitos dessa separação tem como

pressuposto a afetividade e a carência afetiva como elementos intimamente

relacionados com o impedimento das crianças de viverem cotidianamente com as

figuras familiares. Foca o problema na criança e, portanto, a metodologia das pesquisas

realizadas a partir desse referencial teórico baseia-se na observação dos

comportamentos das crianças e das condições materiais da instituição.

A Segunda Guerra Mundial na Europa foi a época em que se intensificaram os

estudos da Psicologia a cerca dos efeitos da institucionalização das crianças pelo fato

de nesse período ter sido intensamente necessário proteger e acolher as crianças

separadas de suas famílias destruídas pela guerra. Também surgiu a necessidade das

mulheres trabalharem fora do lar devida a grande crise social e econômica que se

5 Trecho citado por Rubem Alves no livro “Conversas sobre educação”. Campinas: Verus editora, 2003. pg. 14.

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instaurou na época, aumentando mais ainda o cuidado institucional dado à primeira

infância. (Guirado, 1986)

Alguns autores da psicologia preocupados com os efeitos da institucionalização

destacaram-se, dentre eles John Bowlby, contratado pela OMS para pensar nessas

questões. Esse autor afirmava ser a criança a priori prejudicada no seu

desenvolvimento quando internada pois seria privada de uma condição naturalmente

saudável e fonte segura de afeto: a presença e convivência com a mãe. A carência

afetiva é vista por Bowlby como uma conseqüência direta e inevitável dessa separação.

A mãe é, portanto, vista como figura decisiva para a saúde mental da criança. Em suas

palavras: “O pior dos lares é sempre melhor do que a melhor das instituições” (citado

por Rutter, M in Maternal Deprivation Reassessed, 1972, p.25 apud Guirado, M., 1986,

p.21).

Outros autores confirmam a teoria e visão de Bowlby, como foi o caso de Tizard

e Rutter. Essa primeira autora acreditava que as crianças internadas apresentavam

uma “afetividade atípica” (pg. 21), já que sua sociabilidade e investimentos afetivos

acontecem de maneira diferente da que ocorre com as outras crianças, tendo em vista

o fato de serem cuidadas por “múltiplas mães” (pg. 22) na instituição. Já Rutter,

relativiza as idéias e conceitos de Bowlby quando, por exemplo, não considera a

separação da criança e da mãe um fator necessariamente impeditivo de seu

desenvolvimento, apontando sim como fator decisivo para se tornar um sujeito saudável

precisar encontrar um substituto da figura materna.

Entretanto, mesmo com essas diferenças, esses três autores apresentam a

mesma metodologia, qual seja, observação do comportamento da criança e posterior

avaliação do mesmo a partir de escalas e testes e observação das condições materiais

do ambiente institucional. Segundo Guirado (1986), “A instituição pensada então

enquanto um feixe de condições materiais, como a criança, deve ser observada e

quantificada.” (pg. 23) Portanto, nas observações baseadas nesse metodologia,

entendia-se a carência afetiva ou como conseqüência da separação da mãe-criança ou

a partir de condições ambientais físicas da instituição não favoráveis ao

desenvolvimento da criança.

Page 34: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Spitz foi um autor da psicologia que se diferenciou da concepção desses autores

citados a cima, trazendo uma nova visão a respeito da condição de institucionalização.

Segundo esse autor, a afetividade e a carência afetiva devem ser pensados a partir das

relações estabelecidas com os outros sujeitos e de elementos inconscientes presentes

necessariamente nessas relações. Com as contribuições desse autor, “Abria-se (...) a

perspectiva de pensar a afetividade a partir da análise das representações e não mais

da observação e da medição do comportamento.” (Guirado, 1986, p.28)

O desenvolvimento emocional saudável das crianças e adolescentes acolhidos

em uma instituição total é pensado nessa perspectiva a partir dos estímulos afetivos

que encontrará nesse ambiente, ou seja, a possibilidade de ser acolhida, contida e

investida por um outro. A carência afetiva, dessa maneira, não está vinculada à

ausência da mãe e do pai, mas sim a falta de investimento afetivo de um outro em sua

vida.

Guirado (1986) propôs em seu trabalho na FEBEM ter como foco a afetividade,

considerando as relações que se estabelecem entre crianças e adolescentes e as

práticas institucionais. Busca situar essas relações a partir das representações que o

discurso dos internos e dos profissionais trazem, entendendo por representações os

conteúdos dos pensamentos, estes sendo o meio de organizar o mundo e nós

mesmos. Assim, nas palavras da autora: “Do comportamento ao discurso, da

polarização na criança (...) às relações instituídas e vividas imaginária e

simbolicamente.” (p. 20) A afetividade da criança passa a ser compreendida a partir de

sua história de vida e do lugar ocupado pelo abandono nesta e também no sentido das

relações que estabelecerá na sua nova realidade institucional.

Nesse estudo, tendo como pressuposto essa concepção trazida por Guirado,

que não considera a instituição como uma fatalidade na vida da criança e adolescente,

ao contrário, busca entender a sua afetividade no sentido que as perdas e as relações

atuais tem em sua vida, buscarei compreender as concepções presentes no discurso

do educador e da mãe social; com isso, busco entender o ambiente no qual as crianças

e adolescentes de abrigo estão se constituindo. A condição para um desenvolvimento

saudável se dá, portanto, segundo Marin (1990),

Page 35: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

(...) desde que esteja num ambiente suficientemente seguro, que lhe ofereça

condições de que viva suas necessidades infantis, encontre suporte emocional para

viver suas angústias, raivas e frustrações, além de ter oportunidade onde possa

explorar, buscar, transformar, aprender e criar. (1990, p. 36)

Page 36: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

V – O Lugar do ambiente na constituição da subjetividade

Alienação no olhar e separação desse mesmo olhar – é

nesse,delicado e perigoso, interjogo que cada ser humano

inventa a sua própria existência.

Maria Laurinda Ribeiro de Souza6

Além dos aspectos trazidos pelo ECA e a maneira como as instituições se

organizam para colocar em prática um processo educacional para o sujeito, é

necessário interrogarmos nesse momento o que postulam algumas linhas teóricas

dentro da psicanálise a respeito da importância do outro e do ambiente na constituição

da subjetividade do sujeito a partir da premissa de que o processo educacional se

constitui também do desenvolvimento emocional, de condições que possibilitem ao

sujeito relações de aprendizagem.

Inicialmente, utilizaremos como base para essa discussão os postulados de

Donald Woods Winnicott (1896 – 1971), pediatra e psicanalista inglês. Esse autor

desenvolveu uma teoria psicológica do cuidar, com conceitos pensados e

desenvolvidos durante quarenta anos de experiência na clínica com crianças e

adolescentes. A maior parte de suas observações, nas quais a teoria foi elaborada,

baseou-se no seu trabalho durante a Segunda Guerra Mundial, com crianças

separadas de suas famílias.

Winnicott introduz em sua teoria uma nova noção de ambiente, qual seja, de

ambiente facilitador. Essa idéia de ambiente traz à luz um sujeito impossível de ser

isolado de seu meio, relacionando-se o tempo todo com o ambiente, de maneira que o

sujeito e o meio se tornam interdependentes (Winnicott, 2005).

6 Trecho extraído do poema: Eu me vejo nos teus olhos: o amor dos começos. In: Mais além do sonhar.

São Paulo: Marco Zero, 2003.

Page 37: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Existe inicialmente uma condição inata para o desenvolvimento e para o

amadurecimento, para a saúde. Desenvolvimento entendido tanto como físico

(crescimento do corpo e maturação de todas suas funções) quanto emocional. Essa

condição inata ao individuo, o que lhe é herdado, só poderá se concretizar e se tornar

capacidade de fato se encontrar certas condições possibilitadas pelo ambiente. Nesse

ponto, destaca-se o papel fundamental do ambiente como estruturante da subjetividade

do sujeito desde o inicio da vida.

O desenvolvimento emocional ocorre na criança se se provêem condições

suficientemente boas, vindo o impulso para o desenvolvimento de dentro da própria

criança. As forças no sentido da vida, da integração da personalidade e da

independência são tremendamente fortes, e com condições suficientemente boas a

criança progride (...) (Winnicott, 1983, pg. 63)

As crianças são concebidas dentro de um contexto histórico, de uma família, de

uma história particular e a noção de ambiente facilitador postulada por Winnicott

considera essa condição humana. Na relação interdependente com o meio “os

lactentes vêm a ser de modo diferente conforme as condições sejam favoráveis ou

desfavoráveis” (1983, pg 43).

A condição inata do sujeito de desenvolver-se no caminho da saúde somando-se

com as condições ambientais necessárias para a sua efetivação, introduzem o sujeito

em uma singular jornada de vida. Essa jornada pode ser descrita também como o

crescimento emocional do sujeito e se refere ao caminho da dependência até a

independência. O individuo atravessará de forma única algumas etapas importantes,

acompanhado sempre do ambiente, tendo este um papel estruturante nas passagens

desses momentos vitais do desenvolvimento. Winnicott (1983) justifica compreender o

crescimento pessoal através do caminho da dependência à independência pois dessa

maneira é possível se pensar tanto nos fatores ambientais quanto nos pessoais.

Winnicott postula como início de vida psíquica, a vida intra – uterina. Um aspecto

fundamental de sua teoria é a importância da continuidade do ambiente para um

desenvolvimento psíquico adequado. O feto no útero materno já experiência uma

continuidade de ser, ou seja, a temperatura é a mesma, o ambiente é o mesmo durante

Page 38: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

a gestação, etc. Mesmo assim, algumas mudanças ocorrem, proporcionando vivências

de descontinuidade e essas são também extremamente importantes para a vida do

bebê. Para se adequar a essas mudanças, o feto já desenvolve algumas defesas.

Porém, essas experiências de descontinuidade não podem ser muito abruptas e

freqüentes, pois dessa maneira o feto não seria capaz de desenvolver defesas e a

situação se tornaria traumática, favorecendo ao invés da integração, uma cisão devido

à insipiência do ego. De fato o ego carece de experiência. Winnicott compreendia que a

memória corporal do feto poderia ser reativada depois do nascimento, apoiando-se na

idéia de que dentro do útero ele já constrói os primórdios de uma vida psíquica.

A primeira fase, portanto, refere-se aos estágios iniciais do desenvolvimento

emocional do sujeito iniciado desde sua vida intra – uterina. Essa etapa é caracterizada

por uma dependência absoluta, na qual o feto é completamente dependente da mãe ou

de um outro que desempenhe essa função. É uma fase de completa indiscriminação

marcada pela simbiose, onde para a criança não é possível distinguir ela do mundo,ou

melhor, eu e não eu.

Winnicott (1975) ressalta como função da mãe e da família nessa fase de

indiferenciação o papel de espelho para a criança. Vivenciando o mundo como pedaços

não integrados e não diferenciados, a mãe se apresenta como o primeiro espelho que

ajuda a criança a integrar o mundo. A mãe na função de espelho devolve na sua

imagem o próprio Self do bebê. É como se ele enxergasse a si mesmo quando olha

para o rosto da mãe. A psicanálise postula o fato do bebê não nascer num vazio; ao

contrário disso, a criança nasce a partir do narcisismo dos pais, ela tem um lugar no

imaginário dos progenitores. No espelho do olhar da mãe o bebê vai encontrar a

história transgeracional da família, que uma vez refletida no olhar da mãe, irá influenciar

a constituição do Self do indivíduo.

Apesar dessa completa dependência do bebê em relação ao ambiente, Winnicott

apresenta um importante paradoxo referindo-se ao que é herdado na criança, sendo

assim independente do ambiente, e o que depende efetivamente deste:

Page 39: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o progresso continuado

dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das

hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial. (1983, pg 81).

Na teoria Winnicottiana esse ambiente que vai de encontro com as necessidades

do bebê possibilitando o desenvolvimento das capacidades da criança é descrito como

Suficientemente Bom ou Saudavelmente Bom. Esse ambiente não deve ser caótico

demais; ao contrário, deve fornecer principalmente segurança básica e a experiência da

continuidade de ser, fundamental para a integração e fortalecimento do ego do sujeito,

através de um ambiente confiável, onde as tranqüilas experiências tenham lugar.

Nascendo em um estado de completa indiferenciação com o ambiente,

dependendo absolutamente deste nas fases iniciais e estando num estado de não –

integração, o ego da criança é inicialmente fraco e forte ao mesmo tempo. O seu

desenvolvimento está intimamente relacionado à capacidade da mãe / ambiente em

dar suporte ou não à ele. Se houver uma mãe suficientemente boa (ou então, um

ambiente suficientemente bom), o ego da criança se torna forte.

Somente se há uma mãe suficientemente boa é que a criança inicia um processo

de desenvolvimento que seja pessoal e real. Se a maternagem não é suficientemente

boa, então a criança torna-se uma coleção de reações à imposição, e a verdadeira

identidade da criança falha em se formar ou se torna escondida atrás de uma falsa

identidade (...) (Winnicott, 1960, pg. 29).

Supondo que haja as condições favoráveis ao desenvolvimento de um ego forte,

este pode criar as defesas necessárias para sua sobrevivência no contato com o

mundo externo e interno e, principalmente, desenvolver padrões pessoais de

comportamento, uma maneira única e individual de se colocar no mundo. Quando a

criança não encontra apoio no ambiente para se desenvolver a partir de suas próprias

capacidades e individualidade, seu ego permanece fraco, pois acaba crescendo a partir

de reações aos fracassos do ambiente e não através de necessidades pessoais.

(Winnicott, 1960).

Page 40: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

No início, o ambiente é a mãe ou então na ausência desta, uma outra pessoa

desempenhando essa função na vida do bebê. A possibilidade da mãe ser

Suficientemente Boa irá depender da sua capacidade de se identificar com o bebê.

No início, ocorre dois tipos distintos de identificação: a identificação da mãe com o

filho e a identificação do bebê com a mãe. (Winnicott, 1960). No caso da mãe, essa

identificação recebe o nome na teoria Winnicottiana de Preocupação Materna

Primária. A mãe identificada e assim, sintônica com o filho, é capaz de suprir suas

necessidades a contento e no momento propício. A mãe regride a um estado onde o

bebê se encontra. Seria, em outras palavras, uma doença saudável da mãe, quando

ela tem “especial habilidade para fazer a coisa certa” (Winnicott, 1960, pg.27).

Importante ressaltar o fato de não ser a mãe a responsável por criar a simbiose e a

indiferenciação, mas sim existe a incapacidade do bebê de um ego que exerça a

discriminação. Já a identificação do bebê com o ambiente acontece, justamente a

partir desse estado de preocupação primária da mãe que vai possibilitando ao bebê

o desenvolvimento de seu próprio ego.

Algumas falhas ambientais podem ocorrer e a mãe fica impossibilitada de se

identificar com o filho. Em um primeiro caso, pode acontecer uma falha na integração

do ego da própria mãe e essa passa a enxergar a regressão e identificação com o filho

como uma ameaça. O desamparo do bebê a assusta demais e se se identificar com ele,

acabará ficando muito desamparada também. Nesse caso, não há uma confiança

básica estabelecida possibilitando uma regressão para atender às necessidades do

bebê. Outra situação possível é a mãe estar muito voltada para si mesma e não

abandonando esse interesse excessivo por si, não consegue se identificar com o bebê.

A mãe deprimida também não consegue realizar essa identificação pois apesar de estar

presente fisicamente, não está psiquicamente.

Page 41: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

As situações de falha ambiental também estão intimamente ligadas com a função

de espelho da mãe. A impossibilidade de identificação com o filho se traduz na

ausência de um espelho para o bebê; usando uma imagem, é como se este estivesse

“coberto”, impossibilitando que seja refletido. Há um outro caso possível de falha

ambiental. O ambiente pode ser muito intrusivo e não permitir o gesto espontâneo, ou

seja, o surgimento de capacidades pessoais e próprias do bebê; este se apresenta

com expectativas em excesso e não há espaço para a subjetividade do individuo.

Nesse caso, é como se o espelho estivesse completo de imagens e expectativas que

nada tenham a ver com o próprio bebê e este vê então refletido no olhar da mãe algo

que não é ele e para se adaptar ao ambiente, esconde o seu verdadeiro Self e

desenvolve um falso Self, mais adaptado ao meio. Para isso, nos diz Macedo: “A vida,

para aquele em que o self falsificado vem ocupar o lugar do ego, é uma vida reativa,

puramente agressiva, sempre em busca de algo ou alguém a quem se opor (...)” (1999,

pág.112)

Em todos esses casos, há uma saída saudável para o sujeito desde que

encontre um outro capaz de lhe garantir essa segurança emocional; que a mãe-

ambiente possa ser capaz de “permitir a experiência”, de interpretar e prontamente

corretamente as suas necessidades, lhe dando aconchego físico. Somente assim

poderia ter condições de se desenvolver saudavelmente. (Marin, 1990) Como já mencionado anteriormente, o crescimento e fortalecimento do ego da

criança depende de condições ambientais favoráveis ou de respostas ambientais para

se concretizar. É conhecida a importância da ambiência bem como de seu manejo em

toda a obra de Winnicott: “(...) o que importa ressaltar é a idéia de que a saúde psíquica

depende de um ambiente capaz de adaptar-se às necessidades do lactente, ou seja, de

uma mãe passavelmente boa.” (Macedo, 1999, pg. 16)

Aos processos iniciais do desenvolvimento ou necessidades primeiras, tarefas

de todo ser humano: a integração, a personalização e a realização alinham-se formas

de garanti-los – o amparo: o holding, a sustentação e permanência do cuidado

(handling), e por último a apresentação dos objetos, este se constituindo na apreciação

do tempo e do espaço e de outras propriedades da realidade. A preocupação de

Winnicott é assinalar a importância de uma harmonia entre os processos de maturação

Page 42: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

fisiológica e sua correspondente tradução psíquica. Não cumpre obediência a uma

teoria evolucionista; ao contrário, tenta estabelecer uma lógica de proposições para o

início da vida.

Para que estes processos iniciais sejam uma realidade, para que o ego se firme

e tome, para si, as técnicas do cuidado materno, a criança precisa de tempo para ver

assegurada cada uma de suas conquistas e a inscrição de cada conquista implica a

tradução psíquica de um momento do processo maturacional. O Holding (amparo) é

uma dessas funções do ambiente suficientemente bom abarcando além do segurar

físico do bebê por um adulto, o enquadre a partir do qual o bebê negocia seu encontro

com o real do ambiente que o cerca. Então todo o investimento ambiental anterior ao

estabelecimento da possibilidade do sujeito de estabelecer relações com outros, ou em

outras palavras, relações objetais. O Holding possibilita ao bebê sair de um estado de

fusão com a mãe e passar a perceber os objetos como externos a ele e nesse caminho,

poder investir no mundo e nos objetos do mundo. (Winnicott, 1983).

O Handling, a segunda função do ambiente, é uma forma especifica de holding e

se refere basicamente aos cuidados corporais dispensados ao bebê, significando uma

maneira de demonstrar amor à ele, “possivelmente a única forma em que uma mãe

pode demonstrar ao lactente o seu amor” (1983, pg. 48). A vivência do bebê

inicialmente é de não–integração; experiencia seu corpo como se este fossem partes

separadas entre si e não como um sujeito inteiro. A mãe ou o outro desempenhando

essa função precisa enxergá-lo com um todo, um corpo inteiro a isso denominamos

integração. Cuidados como protegê-lo das agressões do meio ambiente, segurá-lo no

colo envolvendo-os nos braços afetivamente, cuidados que levem em conta a sua

sensibilidade da pele (tato, temperatura, sensibilidade visual, etc), atenção à rotina e

cuidados diários com o bebê, alimentação modificada conforme o seu crescimento,

dentre inúmeros outros, fazem parte do Holding e do Handling. (Winnicott, 1983). Esse

manejo (cuidado) no inicio deve ser satisfatório para que haja uma vivência de

continuidade, necessária para o futuro sentimento de confiança e além disso, é

necessário para o estabelecimento de uma relação integrativa psique/soma, para que o

bebê possa experimentar habitar o próprio corpo.

Page 43: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

A continuidade desses cuidados maternos consistentes, o tocar e o segurar da

mãe, favorece a integração, ou seja promove e integra as partes antes desintegradas

do bebê, levando–o de um estado de não – integração a um estado de integração,

nomeado por Winnicott como um “estado unitário”, quando finalmente o bebê se torna

uma pessoa. Associado a esse processo e intrínseco a ele, ocorre a personalização do

sujeito, ou seja, integração da psique e no corpo. Passando a existir gradativamente

uma realidade psíquica interna, vai se separando do externo e estabelecendo-se um

esquema corporal. A dissociação mente – corpo é algo realizado historicamente pelo

homem e a criança não vive essa dissociação. Para ela, “é importante que uma pessoa

veja o corpo e a psicologia como uma coisa só” (2005, pg. 47).

Fica claro na abordagem winnicottiana o crescimento físico se dando

concomitantemente ao crescimento emocional. O Holding leva à integração do ego e o

Handling à personalização, ou seja, o sujeito se torna único e com uma individualidade

própria ao mesmo tempo em que sua psique se integra ao seu corpo. Nos diz Winnicott:

(...) criança estar sentindo que mora em seu corpo por causa da existência

dessas duas coisas: a criança ter experiências em que todo o corpo está envolvido,

chutar, correr, comer, vir a conhecer-se como o lugar em que ela mora, e também o

manejo que provém do exterior. Não tomem como certo que as pessoas vivem em seus

corpos muito facilmente. (2005, pg. 49)

Esse trecho citado indica-nos mais um conceito desenvolvido na teoria

winnicottiana, qual seja, algo iniciado na infância continua por toda a vida do sujeito. O

exemplo do banho do bebê parece ser propício nesse caso: o prazer pelo banho

verificado no bebê é algo que mais tarde poderá ser identificado no gosto por tomar

banho de mar na criança.

A mudança de um estado de fusão com a mãe, passando então a se ver como

separado dela e também, a se relacionar com ela a partir dessa diferenciação, coexiste

com o surgimento das primeiras relações objetais do bebê e essa nova condição de

existência tem com base “a manipulação e a condução geral no cuidado do lactente,

que é facilmente tido como certo quando tudo vai bem”. (1983, pg. 49).

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Além do Holding e do Handling, também é função do ambiente suficientemente

bom, a apresentação de objetos. Fica evidente o funcionamento dessas três funções

ambientais acontecendo concomitantemente e a divisão entre elas é apenas para fins

didáticos. Dessa maneira, o Holding leva a integração do ego, favorecendo futuramente

o estabelecimento das primeiras relações objetais do bebê. Porém, essas relações

somente se tornarão viáveis se for iniciado no bebê a sua capacidade para se

relacionar posteriormente com os objetos e isso se dá pela apresentação de objetos

para o sujeito “feito de um modo que seja o bebê quem crie o objeto” (1983, pg. 60).

Essa necessidade do objeto ser criado pelo próprio sujeito desde bebê é um conceito

fundamental na teoria Winnicottiana e irá refletir na capacidade criativa desse sujeito

quando adulto. A criatividade é um ponto central para Winnicott significando para o

autor saúde.

Qual o manejo necessário realizado pelo ambiente para que o bebê se sinta

criador do objeto é uma questão que surge no momento. A importância da mãe estar

identificada e sintônica com seu filho e assim compreender suas necessidades é muito

importante. O bebê sente um incômodo, uma insatisfação, por exemplo, fome e se a

mãe estiver identificada com ele e lhe apresentar o seio no exato momento da fome, o

bebê terá a ilusão de ter sido o criador daquele objeto. Ou seja, a mãe apresenta um

objeto ou realiza um manejo para o filho que corresponde às necessidades dele. É

fundamental para o desenvolvimento psíquico do ser humano, como se o sujeito

pudesse se sentir confiante em criar os objetos e percebesse a existência de um mundo

que deve ser criado por ele e sustentado pelo ambiente. É um momento de onipotência

saudável e necessário. Ainda são pré – condições para o estabelecimento de relações

objetais, pois o sujeito ainda é onipotente e indiferenciado do meio.

Conforme a criança se desenvolve, seu amadurecimento se torna mais complexo

e ampliam-se suas identificações com figuras além da mãe, do pai e da família mais

ampla. Torna-se menos dependente do olhar dos pais definirem seu Self.

(Winnicott,1960, apud 1975).

O enunciado puro é este: nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do

bebê humano, um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente, que, de fato, o bebê

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ainda não separou de si mesmo. Gradativamente, a separação entre o não – eu e o eu

se efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o bebê e com o meio ambiente. (Winnicott,

1975, pg. 153).

Chegamos então na fase da dependência relativa. A superação dessa

Preocupação Materna Primária e conseqüentemente desse estado de identificação

acontece gradativamente por meio de falhas ambientais. O sujeito vive na dependência

absoluta com uma ilusão e onipotência necessárias numa fase inicial de

desenvolvimento, mas estas precisam ser frustradas pelo ambiente através das falhas

para que ocorra a desilusão. A teoria Winnicottiana postula, porém, a necessidade

dessas falhas ocorrerem de maneira gradativa na vida do sujeito, favorecendo a

integração do ego. Se acontecerem de forma brusca, podem se tornar traumas e a

criança criará defesas para não entrar em contato com a difícil realidade.

A desilusão e perda da onipotência possibilitam a emergência de novos

processos psíquicos. As falhas e a falta do ambiente darão lugar para o surgimento da

frustração e se criará na criança o sentimento da incompletude, base esta para a

separação Eu – Mundo. Winnicott (1983) define este estágio da dependência relativa:

“(...) vem a ser um estágio de adaptação a uma falha gradual dessa mesma

adaptação”. (pg.83)

A mãe vai aos poucos desadaptando e desiludindo o bebê e isso juntamente

com a maturação dos processos físicos apresentados pelo bebê, por exemplo, já há o

inicio de uma compreensão intelectual por parte dele, o desenvolvimento do aparelho

motor lhe permite explorar o meio, diferentes espaços, etc. Existe uma integração

suficiente do ego para perceber a existência de um Eu e um outro (Não – Eu), porém

ainda sendo uma pré – noção e totalmente a partir de seus próprios referenciais e

vontades (egocentrismo).

A idéia de um crescimento emocional iniciado num estado de indiferenciação

com o ambiente e que prossegue até nos enxergarmos como sujeitos únicos e

individuais no campo social traz implícita a idéia da apresentação continua do mundo

ao sujeito. Winnicott (1983) ressalta a importância do mundo ser apresentado a criança

de uma maneira continua e não confusa. Diz ele: “isso é algo que não pode ser feito por

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pensamento, nem pode ser manejado mecanicamente. Só pode ser feito pelo manejo

continuo por um ser humano que se revele continuamente ele mesmo, não há questão

de perfeição aqui.” (pg. 83).

Para se inserir nesse mundo, necessita ser um Eu único e por isso, se separar

da mãe. Essa separação inicia-se nessa fase e traz muita angustia para a criança. Essa

angustia é expressa plenamente no conto “Menino a bico de pena” de Clarice

Lispector7:

E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que

ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo,

transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com

urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele

ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá,

senão ninguém irá para o seu silencio ninguém o conhece se ele não disser e contar,

farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus,

pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular,

faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.

(1998, pg. 138 – 139).

Diante dessa angústia da separação, da passagem da indiferenciação para o Eu,

o sujeito pode entrar então na transicionalidade. Esta se caracteriza pela criação de um

objeto dito transicional realizado pela criança. São geralmente objetos macios

(travesseiros, paninhos, ursinhos) que lembram algo do corpo da mãe, como a sua pele

por exemplo e que tem marcas suas, como o cheiro do bebê. Por esse motivo, “a mãe

permite que fique sujo e até mal – cheiroso, sabendo que, se lavá-lo, introduzirá uma

ruptura de continuidade na experiência do bebê (...)” (Winnicott, 1975, pg. 17). Esses

objetos têm a função de auxiliar a criança no momento da angústia, da perda do objeto;

sem ele, a separação se tornaria muito angustiante. É algo que lhe lembra o seguro e o

conhecido, mas que é diferente da mãe em si, dando-lhe a segurança de que existe

uma continuidade entre ela e a figura amada.

7 Conto retirado do livro Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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O espaço da transicionalidade traz novamente o conceito de criatividade

postulado na teoria de Winnicott. O objeto transicional é algo criado pela própria

criança, possibilitando-a se sentir participante do processo de criação; sente-se capaz

em transformar algo de fora em uma coisa nova e nesse processo, além de criar o

mundo, vai se criando também. Isso se torna possível pois há um espaço que sustenta

e valoriza essa criação.

Pensar no conceito de transicionalidade de Winnicott nos remete ao conceito de

falta fundamental da teoria psicanalítica. O sujeito necessita se sentir completo,

onipotente em relação ao ambiente no inicio do seu desenvolvimento. Depois, necessita

se sentir incompleto, separado do mundo para que se constitua como um sujeito

desejante, ou seja, para poder investir no mundo e nos objetos externos. Só poderá

investir nos outros se algo lhe faltar; do contrário, se o sujeito se sentir completo, nada

precisaria buscar e em nada externo investiria sua libido. Winnicott (1975) coloca como

função da mãe suficientemente boa frustrar gradativamente seu filho e iniciá-lo na

transicionalidade:

A mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é

aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que

diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso

da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. (pg. 25).

Na medida em que ocorrem as frustrações gradativas e a criança vai se dando

conta da separação dela (Eu) em relação ao outro (Não – Eu), ela passa a atacar o

ambiente, agora visto como diferente dela. A agressividade é entendida na teoria

winnicottiana como fazendo parte, junto com a sexualidade, da energia vital do

individuo. É um recurso de vida fundamental para o sujeito na sua relação com o

mundo.

Essa agressividade que passa a ser direcionada intencionalmente ao outro já

existia desde a vida intra – uterina, porém antes é entendida como atividades do bebê.

Dessa maneira, Winnicott postula que “antes da integração da personalidade, já lá está

a agressividade.” (2000, pg. 289). Quando o bebê dá chutes dentro da barriga da mãe,

quando mexe os braços e acaba batendo na mãe, no momento em que aperta os

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mamilos com a gengiva, não se pode dizer ainda que esteja atacando a mãe e,

portanto, que tenha intencionalidade nesses atos. Porém são essas atividades

realizadas pelo bebê que concomitantemente ao processo de integração da

personalidade, se juntam resultando na agressividade do sujeito. Essa agressividade

levará o sujeito a perceber o mundo como separado dele, tendo portanto para Winnicott

papel fundamental na estruturação do objeto.

Quando o bebê ataca o objeto externo intencionalmente, é imprescindível a

sobrevivência do objeto a esse ataque. No momento em que o objeto sobrevive, por

exemplo, a mãe não revida ou não abandona a criança pelo fato de ter se sentido

atacada, dá-se a possibilidade do bebê reconhecer que não é onipotente (mesmo tendo

a vontade de atacar, o objeto sobrevive contrariando sua intenção) e pode então

integrar sua agressividade de uma forma positiva para o seu desenvolvimento. Caso o

objeto não sobreviva ou acabe revidando, o sujeito perde a capacidade de usar a sua

agressividade na relação com o mundo externo, entendo ser esta destrutiva,

comprometendo seu desenvolvimento emocional e cognitivo.

A função do ambiente coloca-se, portanto, como auxiliar o sujeito na estruturação

de sua própria agressividade e fornecer possibilidades para a canalização da mesma,

por exemplo, artes, brincar, esportes, etc.

Quando o indivíduo já alcançou um grau mais elevado de integração do ego

podendo se reconhecer como separado do outro, pode sentir a culpa e preocupar-se

com os outros, desde que houve alguém a quem atos agressivos e impulsivos foi lhe

dirigido e que pode ser capaz de receber reparações. Se não há uma figura externa

confiável a quem o sujeito possa fazer um gesto de reparação, perde-se a capacidade

de se preocupar com o outro. A agressividade pode se transformar, pelo sentimento de

culpa, em sofrimento e necessidade de reparação e essa é uma função social do ato

agressivo postulado por Winnicott (2000).

No caminho da diferenciação Eu – Não Eu, o sujeito prossegue na sua jornada

de vida rumo à independência. Nessa passagem, da dependência para a

independência, a relação dual mãe – criança é rompida por um terceiro, que convoca a

dupla para uma exterioridade. É a fase do Édipo postulada pela teoria psicanalítica.

Esse terceiro que passa a ser significado e compreendido pela criança, é o responsável

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direto pela introjeção das leis, dos valores, da moral, da cultura no sujeito. O pai

colocando limites na relação do filho com a mãe e juntamente com a capacidade da

mãe de ir aos poucos frustrando o bebê, permite ao sujeito vivenciar sua incompletude

e nessas condições, pode investir no mundo, buscar conhecimento de forma mais ativa

e individual. Esse processo não deixa de ser bastante doloroso e trabalhoso, mas o que

a criança terá em troca – o amor dos outros e um lugar na sociedade – impulsiona-a a

realizá-lo.

Essa passagem da dependência para a independência, dos amores do começo

da vida para outros amores, não se faz sem sofrimento. E, em verdade, só abdicamos

desses lugares porque a cultura nos oferece algo em troca – um lugar no mundo dos

homens. (Ribeiro de Souza, 2003, pg. 86).

Essa passagem também significa o ambiente internalizado por parte da criança,

ou seja, tem a lembrança dos cuidados dispensados a ela no início da vida, introjetou

esses cuidados e desenvolveu confiança no ambiente, podendo desenvolver maneiras

próprias de estar no mundo sem a necessidade de um cuidado real por parte de outra

pessoa.

Então vem ‘eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma

interação introjetiva e projetiva com o não – eu, o mundo real da realidade

compartilhada’. Acrescente-se a isso: ‘Meu existir é visto e compreendido por alguém’; e

ainda mais: ‘É me devolvida (como uma face refletida em um espelho) a evidência de

que necessito de ter sido percebido como existente’. (Winnicott, 1983, pg. 60).

O aparelho psíquico do individuo está formado quando o sujeito sai da fase

edipiana, mas apesar disso, segundo Winnicott, ele nunca alcançará uma

independência total. Não é possível o sujeito isolar-se do meio, mas ao contrário disso

relaciona-se com o ambiente de maneira que se tornam dependentes um do outro: o

ambiente modifica o sujeito, que por sua vez se vê transformado por este. O conceito

de maturidade como um processo no qual tanto o desenvolvimento pessoal, quanto a

socialização estão implícitos, revela essa idéia de interdependência entre sujeito e

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ambiente. Um adulto saudável, à luz da teoria winnicottiana, seria capaz de se

relacionar com a sua cultura sem sacrificar demais seus desejos ao mesmo tempo em

que teria um compromisso social com esta. Seria inserido de forma a manter sua

espontaneidade, dando espaço para a criatividade, pensando no fato de sempre haver

um descompasso entre o desejo do indivíduo e o que é possível de ser realizado da

realidade compartilhada.

A questão da impossibilidade do individuo alcançar a independência total remete

ao conceito de Winnicott de que “(...) aquilo que começa no período inicial da infância,

nunca está terminado” (2005, pg. 46). As conquistas e aquisições das crianças na tenra

infância são sempre posições que podem ser perdidas e recuperadas. O

desenvolvimento continua ao longo da vida e nesse sentido também o papel daqueles

que não são nem pai nem mãe é fundamental; a identificação se dá com essas outras

figuras além das parentais. O essencial desses “outros” na vida dos sujeitos, segundo

Winnicott, é que possam ser importantes em suas vidas. São pessoas com quem as

crianças podem experienciar sentimentos de amor e ódio, culpa e reparação. O

importante, assim, é continuar a existir na vida delas e ser lhes confiável, sobrevivendo

aos seus ataques e acolhendo os sentimentos de amor.

Portanto, pensando ainda nessa etapa de independência, poderia se colocar

como papel do ambiente viabilizar esse intervalo entre o desejo do sujeito e o social,

promover espaços de formação da subjetividade das crianças e adolescentes, criar

situações nas quais os sujeitos tenham espaço de se colocar subjetivamente, onde

possam ser olhados a partir de suas próprias potências, possibilitar formas efetivas de

participação na cultura. O ambiente deve se colocar como uma segurança, um apoio

para onde o sujeito possa sempre se voltar e ao mesmo tempo lançá-lo no mundo, nas

muitas relações que se estabelecem na rede social.

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VI – Metodologia

De acordo com a teoria do Winnicott, o ambiente representado pelo outro tem

extrema importância na vida da criança. Marin (1990) também revela a importância

que o outro tem na constituição de identidade do sujeito, quando coloca que para se

definir como sujeito, necessita se diferenciar e separar de outro e nesse sentido, o

outro sempre é a referência. A autora afirma:

(...) Ao ter lugares meus, coisas minhas, vou descobrindo que nem tudo é meu,

pois, existe o lugar do outro, coisas do outro. (...) Ao se definir esse espaço, esse lugar,

delimita-se o espaço do outro: ou ao descobrir o lugar e os limites do outro, define-se o

próprio. (1990, p.19 – 20)

Apoiando-me na importância do outro para a constituição de identidade do

sujeito postulada por Winnicott, questionava-me sobre o lugar desse outro na vida da

criança e adolescente abrigados. Neste estudo, busquei entender qual era a influência

dos educadores sociais na vida desses sujeitos, já que eles “...são encarregados da

educação global das crianças e jovens (...).” (Guará, 1998. Pg. 45). As crianças e

adolescentes em situação de abrigo estão afastadas por diversos motivos do convívio

com suas famílias e vivem cotidianamente com os educadores sociais e todos os outros

funcionários e coordenadores da instituição. Buscando investigar a influência do

trabalho na vida das crianças de quem está mais próximos delas no dia – a – dia, os

educadores sociais, optei por trabalhar diretamente com eles.

Os educadores são quem efetivamente põem em prática a proposta educacional

do abrigo e por isso a importância da realização de um trabalho diretamente com eles.

Para que eles possam ouvir a história das crianças e adolescentes, escutá-los dentro

de seu contexto social e histórico específicos, ajudá-los a significar as faltas e poder

ouvir as suas tristezas, dores, sofrimentos, os educadores sociais também precisam ser

ouvidos e acolhidos.

Page 52: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

O meu questionamento de qual seriam as marcas do trabalho dos educadores

sociais nas crianças e adolescentes abrigados, levou-me na necessidade de ouvir a

prática desses educadores, como eles significam e vivenciam o seu trabalho.

Com intuito de refletirmos nesse momento sobre a prática desses educadores,

irei me apoiar nas idéias trazidas por Charlot (2002). Esse autor discute a distância

entre a pesquisa educacional e a situação concreta em sala de aula e acredito ser

possível traçar um paralelo dessa situação com a prática dos educadores nos abrigos.

Charlot (2002) coloca uma diferença básica entre esses dois pontos citados

acima: a pesquisa busca realizar uma análise e o ensino na sala de aula visa objetivos

e finalidades mais concretas. A seguinte citação aponta tal idéia:

“(...) o docente está se defrontando com uma urgência, a de ser professor (...) Ser

professor é defrontar-se incessantemente com a necessidade de decidir imediatamente

no dia-a-dia da sala de aula.” (pg. 91).

Da mesma forma como o professor se depara cotidianamente com a urgência, o

educador social precisa tomar decisões referentes à vida das crianças no dia-a-dia.

Charlot (2002) diz que o pesquisador, não participando das condições reais de trabalho

do professor, não deveria dizer o que ele deve ou não fazer; ao contrário disso, “o papel

da pesquisa é forjar instrumentos, ferramentas para melhor entender o que está

acontecendo na sala de aula” (pg. 91). É neste sentido que meu estudo tem como

objetivo investigar por meio da análise do discurso do educador social a sua prática e

como ele significa o seu trabalho.

Uma outra discussão realizada por Charlot (2002) sobre teoria e prática nos

interessa mais ainda para a reflexão dessa pesquisa, pois justifica porque buscarei a

teorização do educador social em relação a sua prática. A seguinte citação do autor

introduz essa discussão:

Não penso que exista um problema de diálogo entre teoria e prática. O que

existe é um problema de diálogo entre dois tipos de teoria: uma teoria enraizada nas práticas e uma teoria que está se desenvolvendo na área da pesquisa e das próprias idéias entre os pesquisadores. (pg. 94)

Segundo Charlot, não existe uma prática sem uma teoria por trás e a questão é

que na maioria das vezes os pesquisadores não escutam as teorias dos profissionais. É

Page 53: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

como se os pesquisadores fossem portadores da teoria e os professores, da prática. A

teoria dos professores está presente na conversa entre os profissionais, nas idéias e

conceitos que tem de algo, mesmo estes não sendo expressos. O problema, segundo o

autor, é o fato deles dizerem essas teorias através do relato das experiências e

práticas, usando palavras do senso comum o que dificulta o diálogo deles com

pesquisadores e com a Academia. Da mesma forma, muitas vezes os pesquisadores

apóiam-se em uma teoria “que está falando só a outros pesquisadores e a outras

teorias.” (pg. 95)

A proposta de Charlot refere-se a promover um diálogo entre esses dois tipos de

teorias, uma fundamentada na experiência prática e outra apoiada em uma ou várias

Ciências. Nas palavras do autor:

Portanto, não se trata de diálogo entre uma prática e uma teoria. Falar de diálogo

entre teoria e prática é abrir duas possibilidades de teorismo ideológico: o teorismo do pesquisador que está dizendo: ‘Eu sei, eu conheço a verdade, tenho uma prova’ e o teorismo da prática, o teorismo do professor que diz ‘Eu sei porque tenho a minha experiência em sala de aula’. E, para sair do teorismo, temos que organizar esse diálogo entre os dois tipos de teoria. (pg.95)

A busca por compreender a teoria do educador social, construída a partir de seu

trabalho e como vê as marcas deste na vida das crianças e adolescentes

institucionalizados com base nos referenciais psicanalíticos, representa uma tentativa

desta pesquisa de promover um diálogo entre alguns conceitos desenvolvidos pela

psicanálise e a teorização do educador.

A prática do aluno também é ressaltada por Charlot (2002). Trazendo a

referência para esta pesquisa, pode-se pensar nas crianças e adolescentes quando o

autor fala de “aluno”. Ele nos chama a atenção para o engano passível de ser cometido

entre um discurso “pedagogicamente correto” do professor e as idéias que de fato

direcionam a sua experiência. Traçando novamente um paralelo entre a idéia de

Charlot e a situação do abrigo, o perigo que pode ocorrer é a instituição e os

trabalhadores apresentarem uma fala baseada no que o ECA propõe, ou seja, uma

concepção de educação ao invés de um modelo assistencialista e olharem para as

crianças como coitadas, carentes de tudo, precisando ter todas suas “vontades”

satisfeitas, etc.

Page 54: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Para o autor, o sucesso da atuação do professor depende das conseqüências

desta na prática do aluno e não somente no discurso que profere. Charlot (2002)

esclarece esse ponto dizendo:

Não me importa saber se o professor é tradicional, se não é tradicional, se é da

pedagogia nova, da pedagogia antiga, e todo esse debate. Importante é saber o que vai permitir ao aluno aprender a desenvolver sua próprias práticas intelectuais. (pg. 98).

Mais adiante no texto, Charlot aponta a importância dos professores terem

consciente quais as representações que têm das crianças dos meios populares, pois se

pensa ser a criança incapaz ou inferior devido a sua condição social, “ele não vai

permitir à criança entrar em atividade intelectual” (pg. 98).

Trazendo essa questão para a presente pesquisa, buscar qual é a compreensão

e representação a respeito da criança e adolescente abandonados para o educador é

um aspecto importante a ser investigado no discurso deles. Busca-se entender qual o

lugar ocupado pelos indivíduos na instituição, se é uma prática voltada à educação ou

ao assistencialismo, etc.

Optamos pela realização de um trabalho de campo e não teórico baseando-se

na tentativa de promover o diálogo entre as duas teorias. Buscou-se uma aproximação

das vivências dos trabalhadores do abrigo de maneira mais real possível. O método

escolhido, qual seja, entrevistas individuais com os educadores, também revela a

tentativa de aprofundar-se nas experiências e compreensão da própria prática tão

singular de cada sujeito. A análise se fundamentou, dessa forma, nos discursos

proferidos pelos educadores entrevistados. Através das falas escutou-se o manifesto, o

discurso consciente do sujeito e o não manifesto, fundamental também para responder

meus questionamentos a as indagações desse estudo.

Page 55: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

VI. a – Os Abrigos

A Associação Maria Helen Drexel:

A primeira instituição, na qual as mães sociais são responsáveis pelo cuidado

das crianças e adolescentes abrigados, chama-se Associação Maria Helen Drexel.

Fundada em 1973 por um padre norte americano chamado João Drexel e um grupo de

casais de amigos, define-se como uma sociedade civil de caráter assistencial sem fins

lucrativos. Essa instituição de abrigamento define seus objetivos como dar amparo,

proteção, promoção e educação às crianças abandonadas através de ensinamentos

éticos que os capacite a viver em sociedade. A ponte entre as crianças e adolescentes

abrigados com a sociedade se dá pela freqüência nas escolas, acesso ao lazer e

cultura da cidade, participação em oficinas de informática, musica, etc.

A Associação Maria Helen Drexel mantém oito lares definidos como “lares

substitutos”. Um casal social (pai e mãe social) é responsável pelo lar e contam com o

auxílio de uma ajudante. Cada um dos lares abriga no máximo 12 crianças e

adolescentes de 1 a 18 anos; dessas 12 crianças e adolescentes, 10 são

encaminhadas do Fórum e as outras duas podem ser os filhos biológicos do casal

social. A equipe técnica da Associação é composta, dentre outros funcionários, por uma

assistente social e uma pedagoga.

A Associação busca reproduzir em cada um dos lares o ambiente familiar.

Acreditam que através da convivência com a família, composta segunda a Instituição,

pela mãe social, pai social e irmãos, as crianças e adolescentes abandonados possam

resgatar o equilíbrio afetivo necessário para seu desenvolvimento. A mãe social tem

como papel definido pela Instituição ser a responsável pela sustentação da estrutura do

abrigo, cuidar da casa e auxiliar na educação das crianças apoiada sempre pela equipe

técnica. As crianças e adolescentes permanecem abrigadas até terem condições de

retornarem a família biológica. Caso isto não seja possível, poderão ser adotadas ou

permanecer no abrigo até completarem 18 anos.

Nesse trabalho foi entrevistada a mãe social de um dos lares localizado na Zona

Sul da cidade de São Paulo, no bairro de Santo Amaro.

Page 56: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

O Abrigo Butantã:

A segunda instituição, na qual educadores sociais têm a responsabilidade pela

educação e cuidado das crianças chama-se Abrigo Butantã. Essa instituição representa

um dos programas da Cruzada Pró-Infância, entidade fundada em 12 de agosto de

1930 por Pérola Byington e Maria Antonietta de Castro e apresenta como proposta

dedicar-se ao atendimento das crianças, jovens e famílias de baixa renda da cidade de

São Paulo. Define-se como uma instituição de caráter beneficente, social e científico,

tem por finalidade promover a defesa e execução dos direitos da criança, adolescente,

da gestante e da mulher. Atualmente a Cruzada Pró-Infância beneficia diretamente

aproximadamente 1.800 crianças e adolescentes e suas famílias, através das suas 10

creches e de 1 Abrigo (o abrigo Butantã).

A Cruzada Pró-Infância foi responsável por realizar, dentre outras coisas, a

primeira Campanha Pública Brasileira sobre a importância do Leite Materno; criou a

semana e o dia da Criança (12 de outubro, adotados nacionalmente por Decreto

Presidencial 1939); criou uma rede de 14 creches, as quais foram posteriormente

transferidas para a Rede Municipal de Ensino e inaugurou em 1959 o Hospital “Pérola

Byington”, direcionado ao atendimento da mãe e da criança, depois passando a ser

administrado pelo governo do Estado de São Paulo.

O Abrigo Butantã é um serviço da rede pública com capacidade máxima para

vinte crianças e adolescentes, destinado ao atendimento de crianças e jovens de 0 a

17 anos e 11 meses, de ambos os sexos. Define-se tendo a transitoriedade como

princípio norteador do seu atendimento, este garantido à criança ou ao adolescente

até o quanto precisar ser acolhida na instituição. Garantirá acolhimento, portanto, até

que a criança ou o adolescente seja encaminhado para a família de origem ou

substituta. As crianças e adolescentes são encaminhadas através do Conselho Tutelar

do Butantã, Vara da Infância e Juventude de Pinheiros e demais serviços

contemplados no artigo 93 do ECA, desde que o serviço possua vaga.

Trabalham nesse abrigo quatorze funcionários: um coordenador e um auxiliar da

coordenação com nível de ensino universitário; seis educadores com nível superior e

quatro com ensino médio completos; uma cozinheira também com ensino médio

Page 57: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

completo e um auxiliar de serviços gerais com ensino fundamental completo. Os

educadores tem uma carga diária de 12 horas de trabalho e 36 horas semanais.

VI. b – Os sujeitos

A opção por uma pesquisa qualitativa se justifica na intenção de analisar os

discursos dos sujeitos de maneira mais aprofundada, buscando compreender a

dimensão subjetiva do fenômeno estudado. Tendo como objetivo compreender qual a

teoria que o educador social constrói a partir de sua prática, acredito estar lidando com

o conhecimento de forma construtiva – interpretativa. A relação direta do pesquisador

com o sujeito através das entrevistas implica levar em conta a subjetividade do

entrevistador. Essa postura não busca encontrar uma verdade absoluta e restrita dos

dados, mas sim através da própria escuta do pesquisador, construir junto com os

sujeitos os conhecimentos. Para isso nos diz González Rey: “(...) A significação dos

trechos de informação não é um processo arbitrário do pesquisador, mas sim um

processo relacionado as suas possibilidades de articulação quanto ao modelo teórico

em construção (...)” (2005, pg. 112)

Escolhemos trabalhar com um número mais restrito de sujeitos para que as

análises dos seus discursos fossem mais aprofundadas e menos superficiais. Para

tanto, um educador social e uma mãe social foram entrevistados. A relevância da

pesquisa com um número menor de sujeitos permite avaliar a subjetividade dos

indivíduos e é apresentada por González Rey (2005): “Essa consciência crescente

acerca da significação do singular para o conhecimento do social nos apresenta um

individuo socialmente constituído que, conforme assinala Ferrarotti, não é um reflexo do

social, mas que permite seu conhecimento. (...)” (Pg. 25)

Como já apontado em capítulo anterior desse estudo, fiz a opção por trabalhar

tanto com um educador social quanto com a mãe social pois o modelo de abrigo no

qual trabalham é diferente nos dois casos, elemento este investigado mais adiante

Page 58: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

buscando compreender uma possível diferença no desempenho dessas duas funções e

conseqüente influência na vida dos sujeitos abrigados.

A atividade de mãe social é regularizada pela Lei Federal de número 7.6448 e

dentro do que se pode apurar não há uma lei que prevê a regulamentação da profissão

de educador social. A Lei de Diretrizes e Bases regulariza a atividade do professor e

não do educador social. Destaco a seguir a três artigos da Lei 7.644 citada a cima:

• Art. 1º As instituições sem finalidade lucrativa, ou de utilidade pública de

assistência ao menor abandonado, e que funcionem pelo sistema de casas-lares,

utilizarão mães sociais visando a propiciar ao menor, as condições familiares ideais ao

seu desenvolvimento e reintegração social.

• Art. 2º Considera-se mãe social, para efeito desta lei, aquela que,

dedicando-se à assistência ao menor abandonado, exerça o encargo em nível social,

dentro do sistema de casas-lares.

• Art. 4º São atribuições da mãe social:

I - propiciar o surgimento de condições próprias de uma família, orientando e assistindo

os menores colocados sob seus cuidados;

II - administrar o lar, realizando e organizando as tarefas a ele pertinentes;

III - dedicar-se, com exclusividade, aos menores e à casa-lar que lhes forem confiados.

A escolha dos dois sujeitos nas instituições teve como critério os profissionais

que tivessem mais tempo de experiência na área. A educadora social entrevistada

trabalha nessa profissão há 15 anos e a mãe social há 3 anos e meio. Os nomes

apresentados nos relatos são fictícios para que os sujeitos não possam ser

identificados.

8 Versão integral da Lei 7.644 disponível no site www.senado.gov.br

Page 59: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

VI. c – Procedimento de coleta de dados O instrumento utilizado nessa pesquisa consistiu-se em uma entrevista individual

realizada com cada um dos dois sujeitos: uma mãe social e uma educadora social de

abrigo. O trabalho busca investigar a vivência e a significação desses profissionais em

relação ao próprio trabalho e a concepção que tem da criança e por isso justifica-se a

utilização das entrevistas individuais como instrumentos para a coleta dos dados. As

entrevistas serão realizadas dentro de um processo denominado de dinâmica

conversacional. González Rey (2005) justifica a relevância de se utilizar esse processo

na pesquisa qualitativa:

O modo mais extenso de expressão do sujeito em sua vida cotidiana são as

conversações, as quais representam o melhor exemplo de uma comunicação interativa

que se desenvolve de forma gradual e que permite a inclusão constante de novas ‘zonas

de intercambio’ entre os participantes, as quais os envolvem cada vez mais, facilitando

assim a expressão de sentidos subjetivos. (pg 47-48)

Definido então as entrevistas dentro de um processo de conversação, estas não

terão perguntas que deverão ser respondidas “rigidamente” pelo entrevistado. O

entrevistador se utilizará de um orientador de perguntas com o objetivo de estimular a

conversação buscando dessa forma implicar o sujeito e a si mesmo na pesquisa de

maneira mais espontânea possível.

Vê-se, portanto, que a postura do entrevistador deve ser objeto de reflexão. Ele é

responsável pelo andamento da conversação junto com o sujeito entrevistado,

estabelecendo uma relação direta com este, implicando assim numa produção conjunta

dos dados. Segundo Rey (2005):

As conversações geram uma co-responsabilidade devido a cada um dos

participantes se sentiram sujeitos do processo, facilitando a expressão de cada um por

meio de suas necessidades e interesses. (...). Nesse processo, tanto os sujeitos

pesquisados como o pesquisador integram suas experiências, suas dúvidas, e suas

Page 60: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

tensões, em um processo que facilita o emergir de sentidos subjetivos no curso das

conversações. (pg 45 – 46)

- Roteiro da Entrevista:

Duas questões introduzem a conversação e têm como objetivo garantir

informações mais objetivas do sujeito (tempo de trabalho no abrigo) e introduzir a

educadora / mãe social na conversação com a entrevistadora. Tendo o inconsciente

como conceito básico para se pensar a relação educador – criança, buscou-se entender

também quais foram as motivações dos sujeitos que os levaram a trabalhar tão

diretamente e vividamente com o abandono. O estabelecimento ou não de uma relação

entre a história de vida do sujeito e a escolha por esse trabalho poderá ser feita nessas

condições.

• Desde quando você trabalha em abrigo como educadora / mãe social?

• Fale um pouco sobre quais foram as motivações que a levaram a esse

trabalho.

Em seguida, busca-se introduzir o sujeito no tema principal desse trabalho, qual

seja, a teorização que o educador social e mãe social tem do seu trabalho. Através das

facilidades e dificuldades, pode-se começar compreender qual a teoria que o sujeito

tem da sua prática.

• Quais as maiores facilidades e dificuldades desse trabalho?

Através das questões a respeito da visão da educadora / mãe social sobre uma

criança busca-se compreender efetivamente qual a teorização do próprio trabalho

desses profissionais. Contando sobre a vida e como enxerga determinada criança, o

profissional poderá revelar qual a teoria que tem dessa criança, como enxerga a

influência do seu trabalho e qual a sua teoria em questão. Provavelmente, se

questionado mais diretamente sobre esse tema, poderia responder mais

defensivamente ou com um discurso teórico não condizente com a sua prática.

Page 61: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Portanto, acredita-se que através do discurso da vida de uma criança, o educador / mãe

social revele a sua teoria indissociada da prática.

• Conte-me sobre uma criança:

- Como e quando chegou no abrigo?

- Qual a história dela?

- Como é para você ouvir essa história?

- Como a enxerga?

- Quais são suas maiores facilidades e dificuldades?

- O seu trabalho interfere na vida dessa criança?

- Como percebe a influência do seu trabalho na vida dela?

- Essa criança e seu trabalho com ela modificam a sua vida? De que forma?

Portanto, através dessas questões buscou-se compreender qual o ambiente

proporcionado pela educadora social e pela mãe social às crianças e adolescentes de

abrigo. Acredita-se que buscando investigar como significam sua prática e a teoria que

tem das crianças aproximaria-se do ambiente possibilitado por esses profissionais.

VI. d – Procedimento de análise dos dados

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, garantindo assim

integridade do discurso dos sujeitos, os quais assinaram o termo de compromisso (vide

anexo) autorizando o procedimento. Para garantir o sigilo dos sujeitos e assim a ética

da pesquisa, seus nomes foram alterados.

Primeiramente foi feita uma leitura flutuante de cada entrevista buscando uma

aproximação com o discurso do sujeito. O roteiro elaborado com base em minhas

indagações e questionamentos desse estudo citado no “Procedimento de coleta de

dados” possibilitou a criação de núcleos dos diálogos dos sujeitos. Portanto, esses

núcleos tiveram como base a fala do sujeito e as minhas intenções. São quatro núcleos:

Page 62: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

I) História de vida e história profissional; 2) O trabalho da mãe e da educadora social; 3)

Histórias de algumas crianças com quem trabalham e 4) Influência do trabalho na vida

pessoal. Dessa maneira, após uma primeira leitura, os trechos foram marcados

buscando organizar os discursos dos sujeitos nos quatro núcleos. Segundo Rey (2005),

esses núcleos não devem ser tomados como “entidades rígidas e fragmentadas”

(pg.139); ao contrário, devem ser compreendidos como uma forma de organização e

maior visibilidade. Os núcleos são entendidos em constante movimento dentro de suas

articulações que se relacionam entre si. Nesse processo, os discursos foram sendo

reconstruídos no intuito de captar o sentido manifesto e o não manifesto, inconsciente

presente nesses relatos. Para isso, nos diz Rubem Alves: “É um ouvir atento de uma

canção que só ouve no intervalo do silêncio do coaxar dos sapos, e que nos chega

como pequenos e fugazes fragmentos desconexos”9 Através de uma leitura e

interpretação psicanalítica das falas, buscou-se compreender a vivência, a significação

do trabalho desses profissionais e a concepção que têm das crianças e adolescentes

institucionalizados.

9 Trecho retirado da crônica “Sobre Príncipes e sapos” presente no livro “O Retorno e terno”, Papirus: São Paulo, 2003

Page 63: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

VII – Apresentação dos dados e análise

VII a. SUJEITO 1 MÃE SOCIAL LUCIANA

Quando marquei a reunião com a coordenadora da Associação Maria Helen

Drexel, ela achou interessante eu realizar a entrevista com a mãe social que tivesse

mais experiência de trabalho. Indicou-me Luciana, a mãe social com quem realizei a

entrevista de um dos lares da Associação.

Luciana foi o primeiro sujeito entrevistado no meu trabalho. Relatou trabalhar

como mãe social há três anos e meio. Mostrou-se desde o inicio bastante disponível em

participar da entrevista e no dia em que nos encontramos, ofereceu uma sala separada

da área social para podermos ficar mais à vontade e garantir uma privacidade

necessária em nossa conversa.

I – HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA PROFISSIONAL “Eu nem sabia que existia esse trabalho de mãe social. Eu vi, meu marido viu um

anúncio num jornal e eu achei interessante. Aí nós fomos ver como é que funcionava isso. Eu

me interessei bastante pelo trabalho; e entramos no processo de seleção, e ficamos aqui. Eu

achei bem interessante. Eu acho que é a minha cara, eu me encontrei.”

“(...) eu trabalhava numa escola, era ajudante geral na escola. Mas eu sentia muita

falta de estar mais perto dos meus filhos biológicos. Aí, quando eu vi esse anúncio, eu

pensei: olha, de repente eu posso estar com eles - quando eu fui ver o trabalho, como

funcionava, porque me foi falado tudo isso. E eu achei interessante isso. Como eu não conhecia

antes, eu não imaginava como era. Porque, no caso, quando a gente chega aqui, é

totalmente diferente, porque você, cria-se um vínculo muito forte.”

Page 64: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“(...) A minha mãe teve 9 filhos, então não fica muito diferente. Hoje eu estou com

11 crianças, então eu já vivi isso antes. Pra mim fica mais fácil. E, hoje, eu sei muitas coisas

do que a minha mãe passava lá atrás. Porque, na época, quando a gente está, a gente não

entende; então eu acho que foi um crescimento pessoal muito grande também.”

“(Eu gosto) Bastante. Eu me encontrei aqui. Eu acho que, as pessoas falam: ‘ah, você

tem... ah, meu dom é cantar, o meu dom é escrever (...)’. E eu ficava pensando: 'caramba, mas

e o meu dom, qual é?' Porque eu gostava de muitas coisas, mas hoje eu sei que o meu dom

é ser mãe. O meu dom é estar alí, é estar indo junto com a criança (...) O meu dom é trabalhar

pelas crianças.”

“(...) Eu também tive uma família complicada, eu também sofri pra caramba. Então,

eu acho que mostrando a minha história também...., e eu estou aqui, eu estou feliz, eu guiei a

minha vida pra onde eu queria que fosse. Hoje eu estou aqui com vocês por que? Porque eu

quero. Porque eu estou feliz.”

O relato de Luciana indica não haver uma formação necessária para o

desempenho da função de mãe social, já que não conhecia a profissão e descobriu-a

num anúncio no jornal. A sua experiência pessoal de vida, revelada na entrevista,

serviu de referência e de base no desempenho da função de mãe social. Luciana diz já

ter vivido anteriormente na sua família a situação vivida por ela no abrigo. Portanto,

pelo fato de não existir uma formação específica profissional de mãe social, ela acaba

trazendo para a prática suas próprias referências. Além disso, relata não haver uma

diferença entre o seu trabalho como mãe social e o papel de mãe desempenhado por

sua mãe; a única diferença seria o fato dela ter dois “filhos” a mais que sua progenitora.

Ela se vê motivada por poder conviver mais proximamente com seus filhos

biológicos, não revelando, inicialmente, uma motivação mais próxima do que seria o

desempenho da função de mãe social – responsabilizar-se pela educação das crianças

e adolescentes abrigados. O valor da família já se vê claramente apontado nesse

aspecto, quando estar junto com a sua família diariamente é algo bastante importante.

No início do trabalho, apresenta uma expectativa do que poderia ser o trabalho e afirma

Page 65: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

ter sido surpreendida pelo que acontece de fato: um grande envolvimento emocional

com as crianças e adolescentes abrigados. Uma hipótese possível seria o fato de sua

expectativa inicial estar muito centrada na possibilidade de conviver com a sua família

(filhos e marido), como se isso bastasse para sua função. Talvez não estivesse

contando inicialmente com o contexto que de fato entraria em contato, qual seja,

crianças e adolescentes em situação de abandono.

Nesse relato, Luciana diz ter descoberto o seu dom trabalhando como mãe

social. Quando lhe foi proposto o trabalho, “ser mãe” foi a única exigência feita e ela

confirma a descoberta desse dom durante a experiência de trabalho. Para Luciana ser

mãe e trabalhar pelas crianças são a mesma coisa.

Luciana revela mais alguns dados de sua história pessoal – “eu também tive uma

família complicada, eu também sofri pra caramba”. Acredita que isto facilite seu trabalho

com crianças e adolescentes que tem também uma história difícil de vida. Além disso,

pode-se tomar este aspecto como indicador de uma outra motivação para esse

trabalho. Talvez exercendo o papel de mãe social poderia elaborar essa história

pessoal marcada pela dor e mostrar para os abrigados “como é possível ter um final

feliz”. Penso Luciana poder ter vislumbrado no trabalho de mãe social uma

possibilidade de significar a própria filiação, buscando compreender sua mãe e

resignificar sua história.

II – O TRABALHO DE MÃE SOCIAL

“(...) Isso aqui não é um trabalho normal como outro. Você conhece as crianças,

conhece a personalidade de cada um, sabe das necessidades de cada um, da história de cada

um; então, chega um dia que vira mesmo uma família, porque você quer mais (...) fazer com

que a criança consiga ser feliz, mesmo com as experiências anteriores, mesmo com a história. E é um trabalho muito complexo, você está mexendo com reeducação, na verdade.

Educar já é difícil, eu acho que reeducar é um pouquinho mais ainda (...)”

Page 66: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Luciana busca caracterizar a atividade de mãe social como um trabalho. Sempre

se refere a ele dessa maneira, mas o reconhece como um trabalho diferente pelo

vínculo forte que se estabelece entre ela e o público atendido. Compara sua expectativa

inicial com o que aconteceu na sua experiência diária no desempenho desse papel,

quando diz: “quando a gente chega aqui, é totalmente diferente”. Luciana relata ter

trabalhado anteriormente como ajudante geral em uma escola, provavelmente também

convivendo com crianças. Porém, aponta que como mãe social o vínculo estabelecido é

muito maior do que acontecia na escola. Este vínculo se torna mais forte provavelmente

porque exige muita proximidade, conhecimento da personalidade, aproximação da

história de cada criança e adolescente, vínculo este provavelmente não exigido nem

característicos de outros trabalhos exercidos por Luciana.

Um vínculo tão forte e intenso como ela descreve nesse trabalho faz com que,

em sua vivência, o abrigo se torne um dia uma família, como se uma vinculação intensa

entre as pessoas e um investimento amoroso no outro caracterizasse uma família.

O grande objetivo da mãe social é descrito por Luciana como fazer a criança ser

feliz apesar da sua história, da sua experiência de vida. Vê, portanto, a possibilidade de

atingir sua meta mesmo as crianças tendo histórias de vida tão difíceis. Pelo fato das

crianças chegarem no abrigo já com uma bagagem de experiências, com uma história

de vida, ela aponta como característica do seu trabalho reeducar as crianças, diferente

de educá-las, como se a educação já tivesse sido dada pelas famílias anteriormente e a

função dela fosse modificar essa educação, segundo Luciana, tarefa mais complicada

ainda.

“Facilidades? (...) Fácil.... Eu acho que tudo o que você faz com vontade, você faz

com amor, fica fácil. (...) Eu acho que eu tenho facilidade pra comunicação. Eu tenho um

sexto sentido forte. (...) (Saber) aprender a respeitar o tempo certo, a hora certa. (...) Hoje,

aqui, eu olho pra cada criança, eu sei mais ou menos o que ela está sentindo, o que é a

necessidade dela. E isso você vai com a experiência, mesmo com filhos biológicos, você

vai conhecendo mesmo, sabendo como é o coração, como ela se comporta, quais os

Page 67: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

sentimentos reais dessa criança. (...) Eu sei no olhar da criança - pelo menos nos daqui,

né. Não sei os outros. E eu sei o que ela está precisando da vida naquele momento.”

Prontamente, Luciana aponta o amor e a vontade como atributos fundamentais

para tornar o seu trabalho fácil. Se a pessoa realmente gosta do que faz e investe

nisso, então terá grandes chances de encontrar facilidades no meio do caminho.

No papel de mãe social, a comunicação é um aspecto importante do trabalho e

Luciana acredita ter facilidade em se comunicar. Para ela faz parte da comunicação

olhar nos olhos do outro e através disso, ser capaz de expressar os seus sentimentos

verdadeiros e também poder compreender as necessidades e vontades do outro. Essa

comunicação, segundo ela, facilita ir ao encontro do que o outro necessita no momento.

Aponta também ter um sexto sentido desenvolvido e isso ajuda no seu papel de mãe

social das crianças e adolescentes.

Luciana aponta na experiência diária com as crianças e adolescentes um

aspecto fundamental para o estabelecimento desse manejo e comunicação com elas,

além de perceber diferentes necessidades em cada uma. Com isso indica acreditar ser

importante compreender cada criança como sendo única, individual com necessidades

e vontades próprias. Segundo ela, essa comunicação “olhos nos olhos” que a faz

compreender os sentimentos e comportamentos das crianças não é algo dado a priori,

mas sim conquistado na experiência. Acredita ser necessário não enxergar as crianças

como sujeitos iguais, tendo todas as mesmas necessidades; dessa maneira, segundo

ela, não precisaria da prática, já saberia a priori as necessidades de cada um. O olhar

aparece como um aspecto muito importante na relação estabelecida entre ela e as

crianças; elas não precisam nem verbalizar o que sentem, bastam olhar. Na verdade,

capta o olhar como um meio de comunicação fundamental na criança, tendo em vista o

fato do sujeito nessa fase do desenvolvimento não saber verbalizar ainda o que sente,

dependendo do outro para nomear suas necessidades e vontades.

Page 68: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Luciana compara a relação estabelecida entre ela e os seus filhos biológicos e

entre ela e as crianças e adolescentes do abrigo quando diz: “E isso você vai com a

experiência, mesmo com filhos biológicos, você vai conhecendo mesmo, sabendo como

é o coração, como ela se comporta, quais os sentimentos reais dessa criança”. Da

mesma forma como acontece com as crianças e adolescentes abrigados, com seus

filhos também precisou da experiência para conhecê-los. O fato de ser mãe biológica

deles não fez com que a relação se estabelecesse mais facilmente ou que o vínculo

amoroso e a identificação existisse automaticamente. Em ambos os casos, a

convivência e a experiência foram fundamentais. Dito em outras palavras, a mãe

biológica também, segundo Luciana, precisa aprender a amar os filhos; esse amor não

é dado a priori, mas sim conquistado diariamente.

“Não é que é difícil, assim, é... É o que eu acabei de falar, de repente você conhece a

criança - porque aqui tem adolescente também. (...) Eu tenho 2 de 17.(...) Então, você olha

assim, mesmo com adolescentes, mesmo com as dificuldades... Difícil? O que é difícil?

Meio complicado, não é.” (emocionada)

“Eu acho que nada se torna difícil mesmo (ênfase). Eu acho que é um meio termo,

não é uma coisa que você fala ‘ai é uma coisa difícil.’ (...) É claro que tem criança que fica

mais difícil, porque você está entrando mesmo no coração, (...) conseguindo com que ela

coloque pra fora os sentimentos reais (...). Mas, ainda assim, com jeitinho você vai, você vai

conseguindo, com carinho, com amor. (...) Quer dizer, eu não acho que tem difícil. Eu

acho que tudo é o trabalho que você vai realizando e, de repente, vai obtendo resultado,

vai obtendo sucesso da sua parte, da outra demora um pouquinho, isso que é o difícil, né, demorar mais um pouquinho. Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê que deu

resultados.(...)”

Fica visível um conflito maior em falar das dificuldades do que das facilidades.

Começa negando as dificuldades, dizendo: “Não é que é difícil, assim, é...” e termina a

fala visivelmente emocionada e refletindo: “Difícil? O que é difícil? Meio complicado, não

é.” Parece ser complicado, como ela mesma diz, pensar no difícil, não sabendo

Page 69: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

inclusive definir esse “difícil”. Inicialmente, bastante confusa em responder o que lhe

pergunto, ela diz: “porque aqui tem adolescente também, tem duas adolescentes”,

parecendo buscar uma referência no senso comum, onde adolescência é sinônimo de

dificuldade. Mas mesmo essa possível dificuldade não se sustenta e acaba negando-a.

Existem para Luciana, portanto, muito mais facilidades do que dificuldades no

desempenho dessa função.

Em seguida, depois de ficar pensativa e reflexiva, Luciana responde

enfaticamente que não há nada no trabalho que realmente possa ser considerado

difícil. Penso poder ser essa ênfase um reflexo direto de uma tentativa de Luciana em

acreditar na inexistência de dificuldades. Alguns obstáculos existem no trabalho, mas

segundo ela, são situações que não apresentam dificuldade e também não são fáceis.

Entrar no coração (sic) de algumas crianças parece ser a primeira dificuldade

revelada por Luciana no seu trabalho; com algumas delas, a relação demora mais

tempo para se estabelecer. O fato desse trabalho exigir, segundo ela, um grande

envolvimento emocional, pode ser em alguns momentos difícil. Entretanto, segundo

Luciana, esses obstáculos são sempre vencidos quando a aproximação com a criança

é feita com jeitinho, carinho e amor (sic), três aspectos fundamentais na sua experiência

para se aproximar de uma criança. A confiança entre ela e a criança é conquistada a

partir dessa relação imbuída de carinho e amor. A partir do estabelecimento do laço de

confiança onde a conversa é importante, é possível mostrar para a criança e para o

adolescente que elas podem confiar seus sentimentos, emoções e histórias.

Depois de apontar essas possíveis dificuldades no seu trabalho, nega

novamente a existência destas, quando diz: “Eu acho que também não é difícil. Quer

dizer, eu não acho que tem difícil.” Não são dificuldades em si, para Luciana, pois

conhece o jeito de superá-las com o seu trabalho – através da conversa, amor, jeitinho

e carinho, por exemplo.

Page 70: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

O trabalho é avaliado a partir das marcas deixadas na vida das crianças e

adolescentes. Quando o resultado esperado por ela é obtido, considera um “sucesso da

sua parte”. Entretanto, quando o resultado e o sucesso levam mais a tempo a serem

alcançados, penso que se sente frustrada e isso é, no relato de Luciana, uma situação

difícil para ela no papel de mãe social. Lidar com o tempo de cada criança elaborar

suas vivências e de talvez, não ter um resultado que corresponda às suas expectativas

de sucesso, pode ser que seja uma das maiores dificuldades percebidas por Luciana.

Penso ser tão difícil para ela essas possíveis situações de “fracasso”, que ela diz em

seguida: “Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê que deu resultados.” A

possibilidade de não enxergar os resultados esperados por ela não é vislumbrada e

assim, mesmo sendo no futuro, os resultados deverão aparecer.

“Eu gosto desta instituição (...). Eu acho que eles dão condições pras crianças, pra

mãe social, pra gente estar realmente guiando pra um futuro legal (...) Tem cursos, aula de

música, informática (...) recreação pras crianças, tem um projeto cultural que tem um

passeio todo mês pras crianças. (...) Tem a pedagoga, tem a assistente social, uma equipe

técnica pra estar auxiliando nas dificuldades maiores da mãe social. (...) Eu acho que eles

sabem disso, eles têm consciência do que eles estão vivendo, e eles gostam, eles se sentem

seguros, é isso que eu acho legal. (...) Eu posso hoje falar: é uma família de verdade. Uma

família como todas as outras famílias, com dificuldades, com experiências marcantes, com felicidades plenas. Eu acho que toda família tem a sua deficiência em algum sentido,

independente que seja biológica ou não. Eu acho que isso a gente consegue passar pra eles,

isso é legal, essa coisa de família mesmo. (...)”

Luciana caracteriza também seu trabalho a partir das referências da instituição

na qual trabalha. Demonstra estar de acordo com a proposta, acreditando ser possível

possibilitar um bom futuro para as crianças através dos pressupostos desta. Uma das

condições apontadas por Luciana possível de lhes possibilitar um bom futuro é a

existência de atividades além dos muros da instituição. A convivência com a sociedade,

participar da cultura, garantir o direito às crianças de se experimentarem em diversas

áreas do conhecimento é tido como um aspecto importante por Luciana no

Page 71: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

desenvolvimento infantil e fundamental para que se possa pensar em um futuro para

eles. Contrapondo-se a essa visão de Luciana estaria a idéia de um isolamento desses

sujeitos, idéia esta característica dos grandes internatos. Luciana reconhece também

um apoio ao trabalho da mãe social fornecido pela instituição através da presença de

uma equipe multidisciplinar.

Essas oportunidades dadas pela instituição são reconhecidas pelas crianças e

adolescentes, segundo Luciana, que parecem gostar e se sentirem seguros. Quando

diz: “eles têm consciência do que eles estão vivendo”, parece nos dar a idéia de que

antes do abrigamento, vivendo ainda com as famílias, não tinham provavelmente essas

condições e agora, no abrigo, sabem o quanto isso é importante para suas vidas. Pode

demonstrar, com isso, uma crença positiva no papel da instituição na vida deles. Talvez

ainda necessite opor as duas instituições de uma maneira maniqueísta: uma sendo a

boa e a outra a má, no caso a família da criança desvalorizada pois não fornece essas

condições e o abrigo representando um ambiente seguro, que eles gostam e valorizam.

Diante dessas condições possibilitadas pelo abrigo, o conflito na criança parece não

existir, pois o fato de gostar e se sentir segura na instituição anularia qualquer tensão.

No relato, pode ser que Luciana nos forneça o principal aspecto relacionado ao

seu trabalho e ao da instituição para ela possibilitadores de um bom futuro para as

crianças: transformar o abrigo em uma família. O fato de conseguirem ser uma família,

para Luciana, garante para as crianças um desenvolvimento saudável, a possibilidade

de sonharem com um futuro, as condições básicas para seu processo de subjetivação.

“ (...) A minha família veio toda pra cá. (...) Isso que também é muito bom. Porque

você está com a sua família, você está bem, né. E aqui se forma mesmo, chega muito

próximo de uma família (...)”

“(...) Daí eu falo: ‘eu sou sua mãe, pô, eu tenho direito. Eu sou mãe.(...)’”

Page 72: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“(...) Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o

que tirar”.

No discurso de Luciana, foram observados diversos trechos nos quais a família é

tida como o elemento fundamental da construção de identidade dos sujeitos. Diante do

fato das crianças abrigadas estarem afastadas do convívio familiar por diferentes

motivos, Luciana tenta reproduzir no abrigo a família acreditando com isso resgatar o

desenvolvimento desses sujeitos. É como se o processo de subjetivação das crianças

tivesse sido interrompido quando afastadas do convívio familiar e ela buscasse

recuperá-lo garantindo para as crianças novamente esse ambiente. Ela revela sua

experiência pessoal e a importância do valor da família quando fala: “Porque você está

com a sua família, você está bem, né.” Estar no ambiente familiar é garantia de bem

estar e segurança.

Luciana afirma ser a mãe das crianças e lhes diz isso concretamente,

autorizando-se inclusive a ter direitos sobre elas, justificáveis pelo papel que ocupa em

suas vidas. Diante disso, pode-se pensar numa super valorização do papel de mãe, no

qual estar no desempenho desse papel significa ser detentora de direitos,

provavelmente não fornecidos à outras funções sociais, como o de educadora e

professora.

Luciana também nota uma igualdade entre o ambiente familiar construído e

conquistado no abrigo com a instituição família. As duas realidades são idênticas, não

reconhece nenhuma diferença, apenas as semelhanças.

“(...) também (tem a) questão de estar colocando limite, de ser mãe, de estar

educando mesmo. 'Olha, é falta de respeito isso, cara, não é legal (...) ’”.

A colocação de limites e a educação são descritas como responsabilidades a

serem cumpridas pela figura materna. A mãe pode e é responsável, portanto, pelo

desempenho tanto das funções maternas quanto das paternas.

Page 73: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“(...) Quando ele foi, parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo. Eu

tinha 8 meses de trabalho quando ele foi embora com a mãe dele, e (...) eu me senti assim

perdendo um pedaço de mim naquele dia. É muito triste. (...) Eu trabalhei isso em terapia

porque eu não aceitava isso. Eu achava que eram todos meus filhos, era toda uma família, que não poderia estar tirando. E, hoje, eu estou mais calma em relação a isso. Eu

acho que é porque eu sei que eles vão estar bem com a família também. Eu acho que eu

consegui.”

Na medida em que busca substituir concretamente a mãe das crianças e

adolescentes do abrigo, ela sente-se a mãe deles e quando são desabrigados, sente-se

perdendo um filho (sic). Descreve o desabrigamento como um processo muito doloroso

para ela, no qual parece perder um pedaço de si. O abrigo é transformado

concretamente também em uma família, diferente de ser um ambiente familiar, e assim

o desabrigamento é vivenciado por ela como algo que lhe é arrancado, tirado, dando a

idéia de um processo que acontece à força, contrário a sua vontade e consentimento.

Penso que seu real desejo seria manter a “família unida”, com todos presentes. A mãe

da criança parece não ter mais nenhum direito sobre ela a partir do momento em que a

“abandonou”. Desde quando formou uma nova família para as crianças, ela é a nova

“mãe” delas o que lhe garante direitos sobre elas (como descrito em trecho anterior). A

experiência profissional de desabrigamento é misturada com uma vivência pessoal de

tristeza, mutilamento. Ela não aceita o fato de uma criança ser desabrigada e trabalha

essa vivência na terapia individual, ou seja, leva para a análise pessoal uma questão

institucional. Essa situação revela uma característica desse trabalho descrita por

Luciana anteriormente e exemplificada nesse caso, qual seja, um envolvimento afetivo

muito intenso entre ela e as crianças. O afeto está implícito no desempenho desse

papel e acaba sendo muito difícil, talvez impossível, diferenciar o que seria do âmbito

profissional e o que é pessoal.

Page 74: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“É muito complicado. Eu estou com duas crianças que, talvez, no final do ano vão

embora com a mãe e eu já estou me preparando desde já pra não sofrer tanto, pra não

sentir um vazio. Eu aprendi muito quando o G. foi embora, (...) eu trabalhei como lidar com

essa perda dentro de mim. Hoje eu já estou mais calma. No dia-a-dia eu já me policio... (...)

Tem que ficar com a consciência tranqüila, está tudo certo, a vida está seguindo o seu curso, e é bom que siga.”

“(...) Elas vão, vai ficar um vazio muito grande, mas elas vão ficar com a família

delas. E eu vou estar sempre por perto, andei armando o meu esquema pra estar conversando

com as meninas, pra estar falando um oi de vez em quando, pra não perder esse contato (...).”

Esse processo, por mais elaborado, experienciado, preparado antecipadamente,

parece ser algo sempre difícil e doloroso para a mãe social, segundo relato de Luciana.

A experiência com G. descrita como uma “perda” foi um aprendizado, segundo Luciana,

porém não foi suficiente para resolver essa questão dentro de si. O medo de sofrer e de

ficar novamente um vazio dentro de si quando as duas meninas deixarem o abrigo faz

com que ela tente se preparar para essa situação. Pensar na realidade concreta, ou

seja, no fato de não serem suas filhas, de estarem com a família biológica, de ter feito

tudo o que estava ao seu alcance tranqüiliza-a de certa forma, mas não resolve o

conflito. Pensar racionalmente na situação é bastante diferente de senti-la

emocionalmente, já que mesmo racionalizando a situação, sabe que “vai ficar um vazio

muito grande”.

“(...) No Natal do ano passado eu estava um pouco chateada dia 24 porque a casa

estava vazia, e eu não estou acostumada com casa vazia (...) foram 6 crianças passar as

férias, o Natal e Ano Novo na casa da mãe, e eu andava nessa casa e falava: ‘gente, como

pode a casa vazia.(...)’”

No Natal, data que simboliza na tradição cristã o nascimento de Cristo, é

importante para essa cultura estar com a família, pensando no valor fundamental dado

a essa instituição nos ensinamentos cristãos. Muitas crianças do abrigo são autorizadas

Page 75: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

a estarem com suas famílias de origem tanto nessa data, quanto no Ano Novo e nas

férias. A mãe social, buscando garantir no abrigo uma nova família para as crianças, se

vê chateada e em conflito pelo fato das crianças passarem essa data junto com seus

pais biológicos. Quando o abrigo cumpre com seu objetivo e autoriza os sujeitos com

condições para passarem o Natal com a família, a mãe social se frustra; seu desejo,

revelado na sua fala, seria que nenhuma criança saísse de perto dela e que pudessem

estar todos juntos comemorando esses momentos valorosos e importantes para a união

da família.

“(...) Ela tem a sua família. Ela me chama de mãe desde que ela chegou: ‘ah, minha

mãe, minha mãe, minha mãe!’ E é engraçado, quando a gente vai visitar a mãe biológica, aí ela fala: ‘mãe, olha, a minha mãe falou...’. A gente fica meio assim. Mas eu já estou

acostumada e a mãe dela também. Pra mãe dela eu precisei provar que eu queria ajudar.

Porque muitas mães acham que a mãe social quer pegar os filhos dela. Eu cheguei várias

vezes pra conversar com a própria mãe dela e falar: ‘eu estou ajudando a sua filha pra quando

você pegar ela. Pra mim é legal você pegar ela, você levar ela pra casa, porque pra mim o

importante é estar com a família, é estar com o pai, a mãe, uma família estruturada. Isso que é

o legal.’ Depois de um tempo a mãe dela começou a entender. (...) você vê que a mãe

biológica está feliz por a criança estar com a mãe social, e sabe que a criança está sendo bem tratada, sabe que a criança está feliz. (...) E sabia que é uma parceria. Porque a gente

está ajudando também pra que vá, mas vá com uma formação melhor (...).”

“(...) Hoje ela fala: ‘ainda bem que tem você. Ainda bem que você é a mãe social

das crianças. Ainda bem que você está aqui. Ainda bem. (...)”

O estabelecimento de uma relação conflituosa marcada pela ambigüidade com a

mãe biológica das crianças e adolescentes vivendo no abrigo parece ser uma

característica implícita do papel de mãe social. Afirmando o fato da criança ter a sua

família e chamá-la de mãe desde que chegou no abrigo, Luciana já aponta a

contradição inevitável. A confusão de papéis fica evidente também para a criança,

quando diz: “mãe, olha, a minha mãe falou”. Luciana comenta ser uma situação cômica

Page 76: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

e depois, contrariando o aspecto hilário, diz: “A gente fica meio assim.” Pode-se pensar

em uma dificuldade da mãe social em entrar em contato com essa contradição,

inclusive quando afirma já ter se acostumado com essa situação. É um conflito

intrínseco desde o momento em que se afirma ser a mãe das crianças e nesse sentido,

não é uma situação da qual se acostuma com facilidade.

Segundo Luciana, as mães biológicas apresentam uma idéia erroneamente

concebida de seu papel; sentem-se roubadas pela mãe social. Da mesma forma como

a mãe biológica se sente roubada pela mãe social, esta também demonstrou ter o

mesmo sentimento em outras situações.

Na tentativa de esclarecer a idéia equivocada na qual a mãe social deseja roubar

os filhos da mãe biológica, Luciana busca resgatar no diálogo a resolução do conflito. É

inegável nessa fala da mãe social a ausência da ambivalência sentida por ela nas

ocasiões de desabrigamento. Acreditando ser o mais importante para a criança estar

com a sua família de origem, isso não elimina a ambivalência presente no processo de

desabrigamento.

Para Luciana, dialogar e esclarecer os fatos com a mãe biológica é suficiente

para eliminar qualquer conflito possível. Entendendo a situação, a mãe biológica deixa

de se sentir roubada e passa a se sentir de uma forma bastante diferente, satisfeita e

feliz, segundo relato da mãe social, por ver seu filho feliz e bem cuidado.

A relação estabelecida entre as duas “mães” é descrita como sendo uma

parceria: a mãe biológica fica satisfeita com os cuidados dispensados à seu filho pela

mãe social e esta por sua vez faz o possível para que a criança possa voltar a viver

com sua família de origem, porém transformado, com uma formação melhor. Nessa

parceria descrita por Luciana, ela relata o reconhecimento da mãe biológica em relação

ao seu trabalho; a relação é descrita com uma ausência de conflitos e uma total

cumplicidade entre as duas. (“Ainda bem que você está aqui. Ainda bem”).

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“(...) Eu tenho 2 filhos biológicos aqui, e você olha assim, você não sabe quem

são os meus filhos. Você fica tão junto que você mesma não sabe. Chega uma hora que nem

eu sei. É muito louco... (...) ”

O envolvimento com as crianças e adolescentes abrigados é tão intenso e há

uma tentativa tão presente em fazer do abrigo uma grande família, que a questão da

consangüinidade passa a ser irrelevante. Não há uma diferença entre a relação

estabelecida com as crianças e adolescentes do abrigo e com seus filhos biológicos.

Todos são igualmente seus filhos e fica tão próxima de todos, que ela mesma se vê

incapaz de fazer essa diferenciação.

“(...) Isso é um aprendizado diário. É uma sementinha que você vai colocando hoje e de

repente, amanhã ou depois, você vê o resultado. (...) Nesse trabalho você não pode desanimar

nunca, eu acho que sempre tem que acreditar e estar explorando as capacidades de cada

um.”

O trabalho de mãe social é descrito como uma experiência conquistada

cotidianamente. Precisa estar presente dia-a-dia junto com as crianças; Luciana já

apontou anteriormente a importância de morar junto com eles na casa. O resultado do

seu trabalho não é algo percebido de imediato. Ao contrário, as marcas deixadas por

este são conquistadas no futuro. A esperança e a crença são qualidades indispensáveis

no desempenho dessa função, para Luciana, sempre acreditando e buscando

desenvolver junto com os sujeitos suas potencialidades e capacidades.

“(...) às vezes a história dela te pega tanto, de repente vem uma pessoinha

pequena, totalmente desestruturada, que você vai formar, que você vai ajudar a criança a se estruturar de novo. Cada passo que você vai dando, cada vitória que a criança vai tendo, é

uma vitória sua. Isso dá uma satisfação muito grande (...)”

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Lidar com as histórias de vida das crianças é visto como um desafio no trabalho

de mãe social. Convivendo diariamente com as crianças e estabelecendo um vínculo

intenso com elas, se vê algumas vezes bastante tocada e envolvida por estas histórias,

marcadas pelo abandono, medo, violência. Chegando no abrigo desamparada, é seu

papel formá-la e ajudá-la a se estruturar novamente e essa tarefa também é descrita

como um desafio por ela. É um trabalho conquistado passo a passo cotidianamente e

as transformações alcançadas pelas crianças também são vitórias da mãe social.

Sente-se muito satisfeita diante dessas vitórias e conquistas das crianças, estas vistas

como um sucesso de seu trabalho.

III – HISTÓRIAS DE ALGUMAS CRIANÇAS COM QUEM TRABALHA

Pedi para Luciana escolher uma criança do abrigo e me contar sobre a história

dela. Escolheu um garoto de 12 anos que chamarei de Marcelo. Segue a seguir os

principais trechos do relato de Luciana a seu respeito:

“O Marcelo teve uma vivência complicada, desde que a mãe dele tinha problemas

psicológicos. Ela saía e retornava grávida pra casa. (...) Ele veio com problemas psicológicos

fortíssimos também. A mãe morreu faz 5 anos, morreu com AIDS. Eu acho que é uma história

bem triste a do Marcelo, mas é alegre também ao mesmo tempo. Hoje, né! Ele tinha

problema, tomava remédio controlado pra agressividade, pra pensar. (...) Ele está estudando

numa escola da Prefeitura - coisa que eu achava que um dia fosse acontecer, mas muita gente olhando pra ele não acreditava.(...) Quase 4 anos atrás a psiquiatra falou pra mim que

ele nunca iria conseguir escrever o nome dele. Hoje ele escreve o nome dele. Então, é uma

vitória pra caramba! Isso é uma realização; pra mim e pra ele ao mesmo tempo. Hoje ele é

um rapazinho muito legal, todo mundo gosta dele, você vê no olhar dele que ele é feliz. É

isso que apóia e completa a mãe social. (...)”

“(...) Gosta de computador, gosta de consertar as coisas, brinquedos que ele

mesmo quebra, ele vai lá e conserta; quer dizer, essa é uma capacidade que ele tem. De

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repente, ele pode ser um mecânico, né?! A gente não sabe. Mas a gente trabalha pra isso,

pra mostrar pra ele que ele pode. E eu acredito mesmo que ele vai conseguir sim, se

sustentar um dia, ele vai conseguir casar, vai conseguir ter uma família.”

“(...) A gente se uniu; pedagoga, psicóloga, a mãe, a psicopedagoga, a professora

da escola (...) pra estar ajudando ele, cada um fazendo um pouquinho. O clima familiar

ajuda muito, a segurança – isso é parte minha, né – ajudar nesse sentido, de harmonia, união,

respeito, de participação mesmo. O meu marido, como pai, também. ‘Não, vamos cara, você

consegue!’ Eu acho que a família, o ambiente familiar nesse caso ajudou muito. Eu acho

que faz crescer intelectualmente. (...)”

A história de Marcelo, segundo Luciana, passou a se complicar a partir de

problemas psicológicos de sua mãe, dando portanto, uma importância grande para a

mãe na vida da criança. O ambiente materno é visto por ela como fundamental, já que a

vida e experiência da criança dependem intensamente das condições psíquicas da

mãe; no momento em que a mãe apresenta problemas psicológicos, a vivência da

criança se complica e como conseqüência dessa relação, o filho passa a apresentar

também “problemas psicológicos fortíssimos”. Luciana não faz menção ao pai,

possíveis irmãos, ou à família mais extensa. A história gira em torno de Marcelo e sua

mãe.

Luciana enxerga muitas mudanças e transformações na vida dele desde que foi

abrigado. Marcelo teve uma história triste com sua mãe, e vivendo no abrigo teve a

oportunidade de superá-la, tanto que hoje em dia Luciana o considera um garoto feliz,

construindo uma nova história. A crença e a esperança na possibilidade de mudança da

criança é muito importante para Luciana. A esperança dela é, segundo Luciana, tão

forte, capaz inclusive de duvidar de um diagnóstico psiquiátrico, que dizia não ser

possível para Marcelo escrever sequer seu nome. Hoje em dia ele é capaz de escrevê-

lo e Luciana enxerga nessa vitória de Marcelo uma influência de seu trabalho. Na teoria

dessa mãe social, o investimento amoroso de um outro na vida da criança é

fundamental para que possa viver; se não tivesse investido em Marcelo e acreditado na

sua capacidade de superação ele poderia ter um destino profético auto realizador,

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quando provavelmente não iria escrever, nem ir para a escola como outras pessoas

acreditavam.

A transformação de Marcelo é uma vitória tanto para ele quanto para ela, pois

participou de suas conquistas, acreditando sempre em suas capacidades. É

fundamental no desempenho desse papel enxergar um sentido no trabalho e perceber

as marcas deixadas nas crianças; os destinos das crianças e adolescentes é o que a

completa e dá sentido em sua vida.

Mostrar para eles a possibilidade de transformarem sua história, reconhecendo

as dificuldades e indo atrás das facilidades, é função do outro, portanto, papel da mãe

social. Para Luciana, essa consciência do que gosta de fazer, das coisas que tem maior

facilidade, aquelas que são mais difíceis, etc é importante para a auto-estima da criança

e para conseguir traçar novos projetos futuros, situando-se assim na sua história e

resgatando sua subjetividade. Um exemplo poderia ser o dom de mecânico percebido

por ela no Marcelo.

Uma rede social articulada foi no caso de Marcelo responsável por suas

mudanças, entendendo nesse sentido que a subjetividade se constitui nas relações

com o mundo. São esses outros na vida de Marcelo que lhe deram a possibilidade de

transformar uma experiência de dor e trauma, resignificando-a. Segundo a mãe social,

sua contribuição para as mudanças de Marcelo foi, dentre outras, lhe possibilitar um

clima familiar no abrigo. Segurança, respeito, união, harmonia, participação são

atributos conseguidos, nos valores culturais ocidentais, prioritariamente na família e por

isso, buscando garantir no abrigo um clima familiar, tenta possibilitar aos sujeitos essas

vivências. Se não fosse o ambiente familiar possibilitado por ela e pelo marido, talvez

para Luciana, Marcelo não teria alcançado tantas vitórias.

“(...) No caso da mãe da Elaine e da Viviane, as meninas vieram pra cá porque ela

tinha surtos psicológicos (...) Muitas coisas ela não entendia, não se conformava das

crianças terem vindo pra uma instituição (...) e não fazia nada pra melhorar essa situação. Simplesmente queria. (...) Ela começou a passar no psicólogo, a tomar os remédios

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direitinho (...) e hoje o psicólogo deu o parecer pra ela (...) que ela está apta a cuidar dos

filhos dela, e que ela tem condições. Isso também é uma vitória. Você vê isso, você vê a

família se unindo de novo, você vê essa possibilidade de novo.(...) ”

Problemas psicológicos da mãe também nesse caso foram responsáveis pelo

abrigamento dos filhos, mostrando novamente a importância da mãe nas experiências

dos sujeitos. O pai e membros da família mais extensa não foram mencionados no

relato dessa história, como ocorreu no relato de Marcelo. Luciana revela nesse trecho a

dificuldade da mãe em entregar as filhas para o abrigo. O desejo de reaver a guarda

das meninas fez com que investisse em tratamentos psiquiátrico e psicológico. Os

sentimentos da mãe social frente a essa situação demonstram serem ambíguos: por um

lado sentirá um vazio imenso quando elas deixarem o abrigo e por outro, fica feliz e

sente-se vitoriosa vendo a família poder se reconstituir novamente.

“(...) No dia das mães vieram 8 presentes pra mim. E o que foi engraçado, que eles

ficam com dificuldade: ‘pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe

biológica, mas eu não queria dar pra ela.’ Ou: ‘ai mãe, o que você acha, dou pra minha mãe biológica?’. Eu falo: ‘cada um tem que fazer o que está no coração. Se você quer dar pra

sua mãe, dá pra sua mãe’. ‘Ah, mas você não vai ficar chateada?’ ‘Não, não vou ficar chateada,

pode ir lá e dar pra sua mãe.’ Aí chega na escola e dizem: ‘Eu quero fazer dois presentes

porque eu tenho duas mães.’ Eles falam isso e é engraçado, porque a professora diz: ‘Mas

como têm duas mães?’ Realmente, como eu estou com eles 24 horas, os professores só

me conhecem como mãe. Não sabem da história deles. Porque eles não se sentem muito à vontade pra estar falando muito da história deles pra qualquer um. Eu acho também que

isso não tem nada a ver, ele estar falando. Se eles se sentem preparados pra estar

comentando, tudo bem, aí é uma coisa dele, se não, a gente respeita. ‘Ah, mas a sua mãe não

é a Luciana?’ É engraçado isso. (...) Nove presentes, todos igualzinhos. Eu falo: ‘quê legal!’

Tudo eu mimo, tudo eu dou risada! (...)’”

Na comemoração do dia das mães, o fato das crianças terem provisoriamente,

enquanto estão abrigadas, duas mães – a mãe biológica e a mãe social – parecem ficar

confusas. Há um conflito para as crianças que se vêem na necessidade de escolher

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entre suas duas “mães”; existe um presente para ser dado e precisam decidir quem irá

ganhá-lo. Os professores não conhecem a história de vida das crianças e pensam ser

Luciana a mãe biológica deles. Segundo Luciana, essa não apropriação da história de

vida das crianças por parte da escola se deve a um direito das crianças: somente

contarem para quem desejarem suas histórias. Para Luciana, é importante respeitar

essa vontade das crianças.

“(...) Já me deu um frio na barriga, eu falei, pô não escrevi o da Elaine e aí eu fui

olhar e o nome dela estava lá. (...). A gente vai vendo nos pequenos detalhes a

importância de você estar mesmo... Eu acho que eu iria me sentir muito mal naquele dia se eu não estivesse escrito o nome da Elaine (...)”

Luciana descreve mais um elemento importante de sua relação com as crianças:

preocupa-se e sente um mal estar quando vislumbra a possibilidade de esquecer de

alguma criança. Reconhece também na criança o medo de não ser lembrada e

esquecida. Essas crianças viveram concretamente o abandono e Luciana tem medo de

ser mais alguém a “esquecê-las”. Há uma preocupação grande em não esquecer de

nenhuma criança, revelando por outro lado também uma possível ambivalência sua em

relação aos afetos sentidos. Luciana acredita ser importante para as crianças a

presença de um outro lembrando dela, mostrando como ela é importante, valorizá-la,

etc. e o fato de conviver com eles 24 horas, segundo ela, é uma condição que favorece

o estabelecimento dessa relação mais íntima e pessoal.

“(...) A criança é mais fácil de você estar, a criança não mente, a criança é natural.

Às vezes pega na parte psicológica, às vezes você sente uma criança triste. Esses dias a

Viviane chegou pra mim e falou: ‘Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu

queria ter nascido da sua barriga, o que é que eu faço?’. (...) Eu falei pra ela: (...) ‘Não

importa se você nasceu de dentro de mim ou não. O que importa é que a gente está

junto, que você pode contar comigo, e que eu tenho você hoje, e que a gente está sendo feliz. (...) Daí eu falo: ‘Viviane, você é tão feliz! Você é uma criança, não tem

Page 83: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

responsabilidade nenhuma. Quando a gente cresce, é ruim por isso, a gente fica com muita

responsabilidade, a gente tem muita coisa pra fazer. Hoje mesmo, só penso em brincar e eu

não posso parar e brincar. Eu tenho que lavar a roupa, porque se eu não lavar a roupa, como é

que você vai brincar?! (...)’”

Luciana conta de uma criança que lhe diz não querer ter nascido onde nasceu:

“Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu queria ter nascido da sua

barriga, o que é que eu faço?’” A história de vida aparece inicialmente como algo a ser

negado, modificado (desejava uma outra mãe). Viviane estava triste, segundo Luciana,

pois queria ser a sua filha biológica, ou seja, desejava uma outra história. As histórias

vivenciadas pelas crianças e adolescentes abrigados são sempre marcada pelo

abandono, perda, sofrimento, violência. Entrar em contato com essa realidade, nesse

sentido, é algo bastante difícil.

Seu entendimento do universo infantil e adulto também é explicitado quando diz

que se relacionar com crianças é mais fácil do que lidar com adultos e essa maior

facilidade se justifica no fato de considerar as crianças mais naturais e porque não

mentem (sic). Em algumas situações, percebe a criança chateada, relacionando

“psicológico” com aspectos tristes para o sujeito. Luciana apresenta uma concepção na

qual a felicidade está intimamente ligada à infância; por não ter responsabilidades,

depender totalmente de um outro cuidador, a criança é nessas condições

necessariamente feliz. Ou em outras palavras, a ausência de responsabilidades lhe

garante a felicidade. O adulto é diferenciado da criança nesse aspecto, tem

responsabilidades e deveres a serem cumpridos, inclusive estes ligados a necessidade

de cuidar da criança: “Eu tenho que lavar a roupa, porque se eu não lavar a roupa,

como é que você vai brincar?! (...)’” O adulto é aquele responsável pelos cuidados da

criança e esta está autorizada e não ter preocupações, podendo passar seus dias

brincando, se desejar. A infância é associada a idéia de felicidade plena e absoluta,

seria o objeto de desejo dos adultos, para onde eles sempre gostariam de retornar.

Page 84: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“(...) A gente vai mostrando: ‘olha aproveita as oportunidades, vê o que em aí à sua

frente. É legal, aqui você tem o seu armário, a sua parte - porque é tudo separadinho -,

você tem a sua cama, é sua a cama! (...)”

No relato de Luciana, as crianças falam de suas histórias de vida quando estão

tristes e mostram seu desejo por uma origem e vida diferente da que tiveram, por

exemplo, nascer de outra mãe. Aparecem, portanto, no sentido de negação da própria

história. Diante disso, Luciana considera importante ajudar a criança a vislumbrar novas

oportunidades presentes e futuras, apostar no futuro e não se prender no passado. Há

a tentativa de mostrar-lhes como é importante o lugar delas no abrigo, lugar este que

busca garantir a subjetividade, individualidade de cada um. Dando-se conta das

oportunidades existentes nesse novo momento de vida, as crianças poderão elaborar

as suas histórias de vida.

“Limite. Regras. É uma família e toda família tem a sua regra. Toda família tem que impor limites. E criança pede limites – ‘não, não pode’. Até porque a gente está criando eles

pro mundo, e o mundo tem limites. Eu acho que tem isso.(...)”

As regras e os limites são aspectos fundamentais na educação das crianças,

segundo Luciana. Há uma relação de igualdade entre o abrigo e a família; da mesma

maneira como existem regras nas famílias, no abrigo também estas serão

fundamentais. Não há nada que diferencie essas duas instituições. Além da questão da

família, Luciana acredita no fato das crianças mesmas pedirem limites, necessitam de

um outro que lhes apresente o mundo da forma como este se apresenta para todos:

repleto de regras. É função da mãe e do pai social, responsáveis pela educação das

crianças, a imposição dos limites e introdução deles no mundo compartilhado.

“(...) Aqui, eu bato muito na tecla da escola (...) porque o futuro deles é a escola; eles

aprenderem e tal. Eles sabem que o mais importante, pra mim, é que eles vão bem na escola.

Tenha respeito, tenha nota tudo. (...) Isso é pra você. Olha que legal!’ É a família isso.(...)”

Page 85: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

A escola aparece como o meio primordial para alcançarem um bom futuro. O

desejo dela como mãe social é vê-los indo bem na escola, com boas notas, respeitando

os amigos. É um sonho similar ao projeto originário familiar que não pode se sustentar.

“(...) adolescente está se descobrindo, está conhecendo o mundo, eu acho que

tem mesmo que sair, se divertir, mas eu acho que tem que merecer. Eu acho que

qualquer mãe, com qualquer filho, sendo biológica ou não, vai querer saber onde o filho está. (...) pra eu ter certeza (...) de que você vai voltar inteira, vai voltar bem, realizada,

feliz, é só pra isso. Imagina que eu estou pegando no seu pé. Eu estou até soltando, eu

estou até deixando você ir, olha que legal.’ (...)”

É direito do adolescente, para Luciana, poder explorar o mundo e novas coisas;

entretanto, é um direito lhe concedido a partir de um merecimento. Se se comportar

adequadamente, terá os seus direitos garantidos; do contrário, não. Coloca-se

claramente como mãe substituta e nesse papel, tem vontades e necessidades iguais a

qualquer mãe biológica. Os direitos, nesse sentido, são dados a partir de um vinculo

afetivo e não consangüíneo. Incentiva a saída dos adolescentes e ao mesmo tempo

mostra-se preocupada com eles, cumprindo com a função de mãe social deles.

Entende ser importantes para os sujeitos sentirem-se realizados, plenos, completos e

satisfeitos.

“Aqui também eu sou realista com eles. Cada um conhece a sua história, eu acho

que tem que ser assim, cada um sabe o por quê de estar aqui. Se eles vêm perguntar, eu

respondo. Eu também não gosto de mentira. (...) Às vezes você omite alguma coisa, eu me

preocupo muito com isso, em omitir, porque eu acho que eu estou dando o exemplo pra eles;

então, se eu fizer, eles vão se achar no direito de fazer também. Eu me corrijo sempre pra

estar passando pra eles uma imagem (...) Olha que legal!’ (...) Aí é que está o psicológico,

porque tem coisas que marcam mesmo, não tem jeito. O que eu tento fazer é amenizar essas histórias, mostrando que eles podem mudar a história deles. (...)”

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Luciana conta para as crianças suas histórias de vida quando é indagada por

elas. No seu relato, não parece tomar essa iniciativa espontaneamente. Agiu de

maneira semelhante quando considerou direito da criança contar ou não sua história

para os professores de sua escola. Justifica essa sua atitude a partir de uma postura

que julga necessária frente às crianças, qual seja, de não mentir e omitir as coisas.

Portanto, contar-lhes sobre suas vidas aparece não no sentido de ser um direito deles e

uma garantia para um desenvolvimento saudável, mas sim como uma forma de dar um

bom exemplo para eles.

Para ela, é possível e desejável abrandar as histórias de vida das crianças e

adolescentes mostrando-lhes ser viável construírem uma nova história, apesar do

passado que tiveram. A possibilidade de vislumbrar um futuro melhor se dá, segundo

Sueli, quando a criança deixa seu passado para trás suavizando-o o quanto for

possível. As histórias são impossíveis de serem esquecidas e marcam intensamente a

vivência do sujeito; diante desse fato, Luciana considera importante “amenizar” as

histórias.

IV – INFLUÊNCIA DO TRABALHO NA VIDA PESSOAL

“Eu acho que tudo isso são experiências muito grandes na vida. (...) A mãe social

passa a se conhecer mais também. Quando você está mostrando pra alguém a

capacidade que ele tem, você está pensando, caramba, eu também tenho! Isso daí é uma troca, é recíproco. (...) Eu não sabia, antes de vir pra cá, que eu tinha tanta paciência. (...) E

eu falo pra eles até mesmo a minha história, de eu não saber que eu era assim, então (...) eles

também podem não saber. (...) Eu cresci muito também como pessoa. É o que eu falo, hoje

eu me sinto realizada. Porque hoje eu me conheço melhor, eu sei das minhas

capacidades, eu sei o que eu quero. Antes eu sabia também, mas eu não tinha essa

certeza.”

Page 87: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

As experiências proporcionadas nesse trabalho transbordam do campo

profissional e invadem a vida pessoal de Luciana. “Estar mais próximo, mais perto” das

crianças e adolescentes com histórias de vida difíceis e sofridas, toca-a em muitas

questões pessoais, modificando sua vida pessoal. Ela se conhece mais, se dá conta de

qualidades pessoais antes desconhecidas em seu ser. Quando reconhece e dá luz a

alguma capacidade do outro, isso se reflete em si mesma e volta-se para suas próprias

capacidades e potencialidades. Nesse sentido, é uma troca que ocorre nas duas

direções. Sente-se uma mulher realizada a partir da vivência dessas experiências;

apesar de antes conhecer esses aspectos pessoais, foi a experiência de mãe social

que tornou esse conhecimento mais sólido, mais certo para ela.

“‘(...) Eu aprendi muito com você e você aprendeu muito comigo.’ ‘Mas eu não ensino

nada, eu sou criança.’ ‘Você é uma criança, mas você é uma criança inteligente, você me

ensina a mostrar esse meu lado criança também que eu tenho.’ E eu acho que isso é saudável.

(...) ‘Olha, que legal, mãe, eu não sabia. Quer dizer, então, que eu faço você ser criança?’

‘Você me faz entender como é ser criança.(...)’”

Coloca-se numa posição de igualdade com as crianças e adolescentes, onde a

aprendizagem acontece na relação de maneira recíproca. O encontro com a criança lhe

possibilita resgatar o seu infantil, podendo compreendê-las melhor e também se

conhecer mais profundamente.

“Quer dizer, são coisas que você, é único isso, não tem como você descrever.. (...)

Eu acho que essas coisas simples fazem com que você cresça mais e faz com que você se realize. Eu acho isso. É muito bom, muito bom!”

É uma experiência única, intensa ainda não possível de ser verbalizada. Refere-

se a algo de outra ordem, em que qualquer palavra parece ser insuficiente para

significá-la. Aproxima-se de uma nomeação quando diz ser maravilhoso, marcante,

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muito bom; entretanto, há algo que escapa. Penso ser possível comparar essa

impossibilidade de nomear o trabalho da mãe social com o que Rubem Alves nos conta

a respeito dos pintores. Segundo esse autor, há algo também em relação ao trabalho

desses artistas que eles não conseguem dizer. Cito um trecho dele: “O essencial é

invisível aos olhos. O que se vê nada é comparado ao que se imagina”.10

Luciana traz na simplicidade do cotidiano a possibilidade da pessoa crescer e se

realizar. São nas pequenas coisas, na rotina aparentemente igual do dia-a-dia, onde as

mudanças acontecem e se concretizam. O crescimento, portanto, se dá na simplicidade

complexa das relações humanas e experiências cotidianas.

“(...) Eu falo pra eles: ‘mesmo se vocês forem, um dia, se vocês forem com a mãe de

vocês, mais cedo ou mais tarde, eu fiz parte da vida de vocês também. Cada um cada fez parte da minha vida, da minha história.(...)’”

Para Luciana é importante assegurar para as crianças e adolescentes o fato de

ter feito parte da vida deles e deles terem marcado sua história. Num possível

desabrigamento, ter a certeza e garantir o lugar dela na vida deles é fundamental para

ela. Da mesma forma, busca mostrar-lhes como são importantes na vida dela e quão

importante foi, tanto para ela como para eles, as

vivências que compartilharam juntos enquanto estavam no abrigo. Portanto, demonstra

ser fundamental ser lembrada e amada por eles.

10 Trecho retirado do livro “Retratos de amor” 2002, pg.96

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VII b. SUJEITO 2 EDUCADORA SOCIAL SUELI Sueli foi a educadora social indicada pela coordenadora do Abrigo Butantã para

realizar a entrevista dessa pesquisa. Um critério importante para essa escolha foi o

tempo de trabalho e a experiência dos educadores do abrigo.

Sueli trabalha em abrigos há 15 anos. No dia da entrevista, era o meu primeiro

contato com ela, já que havia conversado anteriormente apenas com a coordenadora

do abrigo. Apresentei-me e comentei que tínhamos uma entrevista marcada. Disse-me

estar cansada naquele dia, que eu a havia pegado num dia não muito bom para ela

(sic). Receosa de que essa sua condição pudesse interferir na entrevista, perguntei se

não seria melhor marcarmos outro dia, um outro horário. Contou-me que essa opção

seria mais complicada ainda, que era melhor fazermos a entrevista naquele dia mesmo.

Ofereci mais uma vez a alternativa de pensarmos em um outro dia, mas ela insistiu e

decidimos então fazer a entrevista naquele dia mesmo. Conversamos na sala dos

educadores, localizada próxima a entrada da casa e ao lado da sala.

I – HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA PROFISSIONAL

“(Trabalho em abrigos) Desde 1991. Eu iniciei no abrigo que chamava abrigão. (...)

Quando a gente iniciou (...) tava abrindo os abrigos e ficava na Mooca então era um abrigo

grande com cento e poucas crianças, unidade mista, então foi ali que eu iniciei o trabalho,

cheguei de pára - quedas fechado e cai ali. Eu vinha de uma área totalmente oposta. (...)

Eu trabalhava em empresa de metalúrgica, (...) em uma multinacional e aconteceram uns

problemas e eu acabei saindo e entrei na área social. Coisa casual e foi assim. (...) quem tava

entrando não tinha experiência nenhuma. (...) e era uma unidade mista que tava vindo de

situação de Febem. Então era complicado. (...) A gente vinha totalmente cru, e as crianças

naquela época não tinham referência, então o que acontecia: pegava meninos de ruas,

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drogados, abandonados, então era meio assim que... não vamos usar o termo mas era... era meio assim, meio lixão. (...) Então era complicado porque era um número grande de

educador também, todo mundo se atropelando, a gente queria acertar, às vezes não dava, uma

dificuldade que com o passar do tempo a gente foi conhecendo melhor o trabalho... E se

adaptando porque no meu caso era uma questão de ficar ou ficar. Tinha que encarar aquilo

ali de frente porque eu (...) tinha pedido demissão e eu tava caindo ali e eu tinha um monte de

compromisso, então foi legal que deu pra eu ir descobrindo que eu dava pro trabalho.”

“(...) A gente chorava. Era tão difícil que tinha momento que a gente entrava em

crise. Cada um com as suas motivações, com as suas razões para estar ali. (...) Teve uma vez

que - até isso ficou bem marcado pra gente e pro grupo – (...) eu falei: ‘(...) eu acho que eu cai

aqui de pára-quedas e foi fechado.’ Então, ficou. Toda vida que a gente se encontrava, ele

falava: ‘e aí, já abriu o pára-quedas?’ (...) Porque era uma situação assustadora, tudo, Febem,

tinha muito atrito entre eles; então, tinha mesmo muita rivalidade, até mesmo entre funcionário,

e isso impedia o nosso trabalho. Eu acredito que aquilo valeu pra cada um (dos

profissionais) que saiu de lá, ter uma experiência. (...) E dos abrigados, em si; pra seguir. Porque fortalecia. (...) O menino saiu da Febem, aqui era abrigo... às vezes, a gente sabia que

os crimes eram bárbaros, estupros, algumas coisas assim, e estavam convivendo com os

outros e com a gente. Então, tinham momentos, principalmente nós educadoras, nós

andávamos mais em dupla, mais duas ou três, porque tinha medo mesmo. A questão era essa,

medo mesmo. (...) A maioria (dos educadores) não está mais na área, são poucos que

estão. (...) Quando nós entramos, o sonho - o Estatuto da Criança previa abrigos

pequenos com no máximo 20 crianças; então, é o que tem hoje -, e então (minha amiga)

falou: ‘só você realizou o sonho de trabalhar num abrigo pequeno, o que pedia o Estatuto.’ E eu

falei assim: ‘é um sonho ainda meio frustrante.’ A gente tinha sonhos de progresso dentro

do trabalho em si, do trabalho aparecer, de surgir efeito mesmo. (...) De tirar criança de

rua, de dar uma vida melhor, de socializar mesmo. São poucos que funcionam como aqui, um

abrigo mesmo. (...) Desde abrigo grande, eu já trabalhei em abrigos pequenos, com menos

crianças - até menos que aqui. Mas, tem umas situações também complicadas. (...) Mas, eu

acho que a gente não tem mais fôlego. (...) Apesar de agora até algumas coisas fluírem

melhor. Mas, eu acho que vai cansando.”

Inicialmente, pergunto-lhe de sua experiência como educadora social de abrigos.

Sueli trabalha há 15 anos nessa área. Relata ter se aproximado dessa área que atende

Page 91: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade casualmente, chegando “de

pára – quedas fechado”. Pode-se pensar no fato de não haver uma formação

profissional exigida de educador social para exercer esse papel. Sueli tinha uma

experiência profissional distante da área de educação e sua falta de experiência na

época não impediu que fosse contratada para trabalhar nos abrigos. Essa falta de

experiência é relatada por ela: “quem tava entrando não tinha experiência nenhuma”. A

descrição de sua chegada de “pára – quedas fechado” pode ser também um indicativo

dessa falta de formação profissional. Além desse aspecto, pode-se pensar também no

fato de ter se aproximado inicialmente da área mais por uma necessidade (estava

desempregada) do que por um desejo em si.

A relação com essas crianças e adolescentes era difícil de ser estabelecida no

inicio; vinham de uma situação de vida muito difícil. Diante disso, Sueli caracteriza seu

trabalho nessa época como sendo apavorante e assustador. Um outro aspecto

complicador para a Sueli nesse inicio era o grande número de educadores; a falta de

experiência e formação poderia ser um fator que dificultava nesse aspecto. A

experiência é, segundo ela, conquistada no dia-a-dia do trabalho e assim, as

dificuldades são mais facilmente entendidas e superadas.

Sua motivação inicial está relacionada inicialmente com a questão da

sobrevivência; estava naquele trabalho mais porque precisava do emprego do que por

uma escolha pessoal. Sentia-se constrangida, apavorada, sem experiência na área.

Com o passar do tempo, essa situação modificou-se pois ela descobriu uma motivação

diferente da que tinha inicialmente: “então foi legal que deu pra eu ir descobrindo que

eu dava pro trabalho”.

O fato das crianças terem vindo da Febem era um aspecto assustador para os

educadores, já que tinham conhecimento de crimes cometidos por alguns deles. Apesar

de muito sofrida e difícil essa experiência por qual os educadores e crianças ex-internas

da Febem passaram teve também o seu lado positivo, segundo Sueli. Para ela, essa

experiência serviu para fortalecê-los a lidar com essas situações, ajudou as crianças a

Page 92: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

seguirem a diante em suas vidas, ensinou os educadores a lidarem com o trabalho.

Pode-se pensar na hipótese do sonho de concretizar o que previa o ECA ser uma

possível motivação para o trabalho, que a fazia insistir e não desistir saindo a procura

de outro emprego. Foi uma das poucas a suportar as condições difíceis do trabalho no

inicio, demonstrando estar envolvida e esperançosa em tornar os sonhos realidade.

II – O TRABALHO DE EDUCADORA SOCIAL

“Eu acho que é uma questão de dedicação, primeiramente eu acho que tem que

existir amor, se você não tiver amor assim sabe pra oferecer pra lidar com a situação você se afoga, é estressante, é dolorido (...) porque são muitos problemas e que você tem

que estar... não sei se preparada mas pelo menos você tem que estar (...) disposto. Ceder

algumas coisas, brigar por algumas coisas. (...) São histórias difíceis, né? E ao mesmo tempo

muito complicado, muito abandono, muita revolta e isso é uma coisa que se mistura. (...)

ou você se depara com aquilo ali que começa trabalhar você e todo o trabalho ou então você

foge. (...) Eu tive casos de companheiro de trabalho de equipe que chutou mesmo literalmente,

teve que sair (...) teve gente que pediu demissão (...) e ai foi o tempo passando e eu ainda

me encontro aqui.”

Depois de afirmar a descoberta que “dava para o trabalho” de educadora social,

pergunto-lhe sobre esse seu dom. Associa primeiramente seu dom com a dedicação.

Aponta, assim, o primeiro aspecto considerado por ela como fundamental no trabalho

da educadora social: é necessário que ela se dedique a essa função para conseguir

realizar de maneira satisfatória o seu trabalho. Para Sueli, dedicação e amor estão

intimamente relacionados; o amor está implícito na dedicação e da mesma forma, em

todo ato de amor, existe a dedicação.

Page 93: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

O amor é entendido por Sueli como atributo necessário para suportar as

situações difíceis do abrigo, que envolve muitos problemas e muitas histórias de vida

complicadas. Investir no trabalho com amor lhe garante não se perder em meio a

situações que são estressantes e causam muita dor. No encontro com histórias de vida

tão sofridas e difíceis precisa haver o amor e a dedicação para suportá-las. Amor

pressupõe um afeto mais individualizado, um investimento afetivo fundamental na

relação dela com as crianças.

Diante de muitos problemas presentes nas histórias complicadas das crianças e

adolescentes abrigados, estar disposto para enfrentar essa condição é mais importante

para Sueli do que estar preparado. Precisa haver uma abertura e uma disposição no

encontro com essas histórias, mais do que uma preparação em si (“pelo menos você

tem que estar assim, como que fala... tem que estar disposto né?”). Preparar-se,

instrumentalizar-se é algo que pode acontecer posteriormente, caso haja uma

disposição.

O abandono e a revolta presentes nas vivências das crianças e adolescentes do

abrigo tornam a situação complicada para Sueli. Os educadores sociais, relacionando-

se diretamente com as crianças e adolescentes, acabam marcados pelas vivências

deles e se misturando na relação; nessa condição, tendo que lidar com questões tão

angustiantes e difíceis, existem duas alternativas possíveis: encarar o trabalho e todas

essas questões intrínsecas à ele ou então o educador não suporta e acaba abrindo

mão do trabalho, afastando-se dessa função. Sueli apostou na primeira possibilidade,

quando diz: “E eu ainda me encontro aqui.”

“Marca, não tem como não marcar. (...) isso não acontece (...) não há assim uma

forma mágica, apertei o botão aqui fui embora, não, claro, eu procuro não trazer a minha

vida pra cá, o que também é meio impossível e também não levar, mas não tem como, não se mistura enfim (...), mas não tem como você realmente isolar. (...)”

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O trabalho de educadora social é vivido como uma experiência marcante na vida

pessoal do sujeito, segundo Sueli, não existindo, inclusive, outra possibilidade. Separar

completamente sua vida íntima do seu trabalho de educadora social é visto como uma

mágica, portanto, não fazendo parte da realidade. Não é possível separar as

experiências pessoais das profissionais, no caso da educadora social, com tanta

facilidade, como ocorre em outras atividades. Há uma tentativa de Sueli de evitar, o

quanto for possível, a influência da vida pessoal na profissional e vice-versa, entretanto,

só é possível em certa medida; separá-las completamente é inviável para ela. Sueli

relata existir possivelmente um meio termo, quando afirma que as experiências não se

misturam completamente e por outro lado, também é impossível de isolá-las por

completo.

“Eu acho que eu gosto. (...) Se não gostar, não tiver uma afinidade você vai

embora, porque é difícil e assim, não tem muito retorno. Não há uma... por exemplo, (...) o

que a gente faz não aparece, é um ou outro que reconhece, isso desde de o local onde você trabalha até mesmo na sociedade, isso não aparece, então assim, se a gente fosse

fazer uma coisa para aparecer, seria frustrante (...) no meu caso, eu sinto gratificação no

trabalho, eu venho aqui, como trabalhei em outros abrigos (...) encaro meu dia de trabalho

numa boa, é claro que tem momentos que você fica sufocada mas, quanto a isso não.”

Para Sueli, investir afetivamente no trabalho de educadora social e ter uma

afinidade com este é condição básica para conseguir realizá-lo. Se não houver esse

investimento afetivo, uma identificação com o desempenho da função, o educador não

sustenta e não suporta o emprego. Segundo Sueli isso acontece, no caso do educador

social, pois este deve lidar com situações de vida muito complicadas marcadas pelo

abandono e violência e além disso, sente não haver um retorno e valorização do seu

trabalho.

Sueli percebe uma falta de reconhecimento social do trabalho do educador

social. O trabalho realizado por eles cotidianamente não tem um lugar de

reconhecimento tanto nos abrigos, local do trabalho, quanto na sociedade. No momento

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em que o educador espera do social e dos outros um lugar mais valorizado, sente-se

frustrado. A gratificação e a motivação para continuarem desempenhando essa função

devem vir de um outro lugar. Sueli relata sentir gratificação no trabalho, apesar dessas

condições, e também gostar deste, encarando o cotidiano “numa boa”. Porém, sentir-se

gratificada não a impede de se sentir muitas vezes também sufocada, demonstrando

haver espaço para a ambivalência de sentimentos.

“Acho que facilidade é pouco. É bem pouco, seria bem uma coisa assim... meio que

né...a facilidade...acho que é assim, o tempo fez com que eu me... tivesse uma coisa assim

mais... uma experiência que é difícil mas tem momento que você acaba meio que dando

uns toques e vai, então há dificuldades sim, isso é normal. Independente do tempo, é

difícil porque cada dia você tem uma experiência nova então, não é uma coisa que você

tem ai um... vamos ler, vamos reler e vamos fazer, não, nós lidamos com humanos (...) e

com muitos problemas, então isso é uma dificuldade que cabe a cada um de nós, no dia a dia procurar sair bem... então eu não acho que é fácil não. É difícil mesmo, e a dificuldade

eu acho (...) por exemplo, como é uma área que é rotativa, entra e sai criança (...) mas é uma

das coisas mais difíceis, a mudança em si. A adaptação pra gente, pra quem chega (...) Sim, é o momento mais difícil, porque requer muito da gente.”

Sueli reconhece poucas facilidades no trabalho do educador social, ficando

confusa e pensativa quando reflete nestas. A experiência adquirida em anos de

trabalho fez com que, apesar de serem situações difíceis as que vive no dia-a-dia,

percebesse alguns momentos em que realiza algo mais facilmente. Entretanto, apesar

de reconhecer algumas facilidades, em conseqüência de anos de trabalho, a

experiência no cotidiano do abrigo é, segundo Sueli, sempre nova, única e por isso

difícil. Cada dia é visto por ela como diferente e único e cada situação que se depara é

uma novidade, pois traz elementos novos; por isso a dificuldade está sempre presente

e a experiência de anos se relativiza. Não é um trabalho no qual se possam antever as

situações e estudá-las previamente (“não é uma coisa que você tem ai um...vamos ler,

vamos reler e vamos fazer”) e lidar com os problemas das crianças e adolescentes é

algo que precisa ser realizado cotidianamente por cada um dos educadores. Dessa

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maneira, a conduta e a interpretação são muito particulares a cada profissional, dando

um caráter de improvisação, falta de instrumentos, de base e sustentação para o

trabalho do educador.

A existência de dificuldades é vista por Sueli como algo intrínseco ao trabalho de

educadora social. O momento do abrigamento e do desabrigamento é um aspecto do

trabalho difícil para o educador social, segundo relato de Sueli. Ela se refere à

característica de provisoriedade do abrigo quando diz que é uma “área rotativa”, onde

crianças são abrigadas e desabrigadas; a mudança implícita nesse processo é algo

difícil de lidar. A adaptação de crianças novas na instituição é um momento delicado

tanto para os educadores, quanto para a criança e exige muito da presença desses

profissionais.

“Os dois momentos são difíceis. Chegar, é uma pessoa nova que nós vamos ter

que nos adaptar com ele e ele com a gente, e a rotina, e o dia-a-dia é difícil - pra ambas as

partes. E a saída também. Porque, a saída, tem o vínculo - a gente tem aquele vínculo, não

tem como não ter - e você fica com receio dali pra frente. Porque, se ele valorizou o tempo

aqui, o que aprendeu, beleza. Ele vai se estruturar, ele vai cair, mas vai estar sempre se

levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal. Mas, se não, ele pode voltar a ser pior do que era antes. Aqui, quase nós não temos, por exemplo - é até meio complicado – (...)

o retorno familiar; são poucos; tem outros que se emanciparam. Tem uns casos de uns meninos

que casaram. (...) Então, de alguma forma, o abrigo deu uma estrutura, deu um suporte. E

dá até hoje”.

“Porque é aquela questão, ao receber é a questão da adaptação e, quando sai, você

fica com aquela sensação de perda. Será que o que a gente fez foi forte a ponto de segurar o que vem pela frente? Porque a vida não se resume aqui. (...)”

Sueli explicita mais claramente as dificuldades envolvidas nas chegadas e nas

saídas das crianças e adolescentes do abrigo. Quando a criança é abrigada, uma nova

configuração se estabelece tanto para ela, quanto para os educadores e outras

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crianças do abrigo. É um momento de adaptação para todos, de estabelecimento de

novos vínculos e relações. O cotidiano e a rotina precisam ser readaptados na chegada

de uma nova criança e isso é difícil para os educadores também.

Já em relação à saída, o vínculo afetivo estabelecido entre a criança e os

educadores é o principal aspecto dificultador do desabrigamento. Na relação das

crianças com os educadores é impossível, segundo Sueli, não se estabelecer um

vínculo entre eles e por isso a separação é difícil para todos e deixa para Sueli um

sentimento de “perda”. Além do vínculo, o futuro daqueles que deixam o abrigo é uma

incerteza que deixa os educadores receosos e preocupados – “Será que o que a gente

fez foi forte, forte a ponto de segurar o que vem pela frente?”. O quanto as crianças e

os adolescentes puderam aproveitar ou não das experiências no abrigo, segundo Sueli,

é um indicador importante para os educadores imaginarem e fantasiarem como estão

enfrentando o mundo. Frustrações e obstáculos são, para ela, inerentes ao processo de

crescimento e de encontro com o mundo. O abrigo tem a função, segundo Sueli, de dar

estrutura e suporte para que o sujeito possa enfrentar a realidade tal qual ela se

apresenta, repleta de desafios. Estruturar-se não tem a ver com não cair e não se

frustrar mais, mas sim com a capacidade de cair e poder superar. Os tombos e

deslizes, dessa maneira, são vistos não como fracassos, mas sim como condições

normais do sujeito estar no mundo – adquirindo novas descobertas e conquistas, ora

frustrando-se e se deparando com a falta.

O abrigo é visto como uma experiência positiva na vida do sujeito, que lhe

possibilita recursos para enfrentar o mundo de uma forma mais saudável, mais

estruturada. É também entendido por Sueli como uma passagem na vida das crianças e

adolescentes, tendo a função de auxiliar os sujeitos a restabelecerem os laços sociais

com o mundo que os cerca. A maneira como o sujeito irá prosseguir em sua jornada e

como irá se adaptar à nova realidade é um parâmetro importante para Sueli pensar se

ele pôde ou não aproveitar a experiência na instituição. Na maioria das vezes, os

educadores sociais não têm noticias das crianças e adolescentes desabrigados, o que

para ela é um aspecto complicado do seu trabalho. Esta questão do reconhecimento do

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seu trabalho parece ser um parâmetro e motivação fundamentais para Sueli. Dessa

maneira, acaba por depender imensamente dos destinos das crianças e adolescentes.

“(...) Não tem como apagar (as histórias de vida das crianças). É super complicado

você querer apagar e vem né? E ai o que acontece? Aquela coisa, eles começam a se

misturar, as histórias se misturam, os problemas aparecem. Então tem isso, os conflitos

que você tem que administrar no decorrer do dia, do tempo (...)”

As histórias de vida das crianças e adolescentes não podem e não devem ser

negadas, segundo Sueli, no convívio diário com eles no abrigo. São marcas e vivências

impossíveis de serem modificadas e deixadas de lado; ao contrário, Sueli afirma que

estas surgem no dia-a-dia do abrigo, as crianças entram em contato com as histórias

dos outros e assim, os problemas aparecem, junto com conflitos que devem ser

administrados pelos educadores sociais. É função do educador, portanto, lidar com os

conflitos despertados por estas histórias de vida cotidianamente e não as negar. “(Um momento difícil) Com ela? Acho que quando ela rejeita. (...) eu penso: ‘o que

eu to fazendo aqui?’ (...) Com o tempo a gente percebe que tem efeito. Porque assim a gente,

eu acho que a gente tem receio de perder o seu trabalho, o seu... enfim... Você está mexendo

comigo hoje (ela se emociona). (...) (gagueja) Num trabalho desse o que você faz?... Você só

lucra no que você vê. Financeiramente... (...) Não, não é...”

A rejeição de alguma criança é uma situação bastante difícil para Sueli. Quando

não se sente retribuída por alguma criança questiona-se sobre a sua função e o seu

trabalho. A gratificação e o reconhecimento pelo seu trabalho são de uma ordem

diferente da retribuição financeira; sente-se reconhecida e gratificada quando a criança

demonstra retribuir o seu investimento e quando pode perceber mudanças significativas

em sua vida. O “pagamento” ocorre quando pode ver resultados do seu trabalho, por

exemplo, quando a criança vincula-se com ela de uma maneira positiva, já que o

retorno financeiro é pouco. Ao sentir-se rejeitada por alguma criança não se sente

retribuída e seu trabalho perde o sentido, não cumpre com a sua função. Nesse

momento da entrevista, Sueli se emociona, chora e diz que estou mexendo com ela

Page 99: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

naquela conversa. Creio que essa emoção, demonstrada por ela quando conversamos

destas questões, seja um reflexo direto da dificuldade encontrada por ela em lidar com

a falta de reconhecimento do seu trabalho, seja eventualmente por alguma criança

específica, seja um reconhecimento social (pouco retorno financeiro).

“A gente acaba não dando conta mesmo porque apesar de ser 12 horas, às vezes o

tempo é curto, pensando no que você tem que fazer. (...) E a gente sai, né? Tem as saídas,

(...) são vários casos que você tem que... (...) A gente fica dois dias de folga durante o mês

(...).”

A jornada diária de trabalho da educadora social Sueli é de 12 horas, metade de

um dia. Além das tarefas da casa atribuídas aos educadores, eles são responsáveis

pelas saídas com as crianças e os adolescentes. Segundo Sueli, apesar de serem

muitas horas de trabalho, as suas funções são muitas e fazem parecer esse tempo

pouco, não sendo capaz de realizar em um dia o que deveria ser feito.

“A gente acaba sendo um referencial, (...) Bom ou ruim somos nós o referencial. É

porque a gente tem nossas atitudes... É que às vezes eles falam “o educador é chato” (...)

Claro, somos chatos, mas por que? Porque a gente pega no pé, porque a gente está ali

querendo mostrar que aquilo é importante pra ele, que é pra ele tudo que é feito, não pra nós, porque nós já temos uma bagagem seja ela de trabalho ou seja ela de experiência de vida,

a gente está aqui e por mais que queremos não ser, nós somos de passagem aqui né? A

gente vem porque é nosso trabalho depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente

vem e faz o mesmo papel, claro que como eu te falei não tem como não barrar isso, apagar (...) Eu não creio, pode até ser que alguém fale “olha, eu faço assim”. Da minha parte

eu não consigo. Talvez eu tenha que trabalhar isso (...) eu falo daqui pros meus filhos, pro

pessoal que eu tenho mais contato, então a gente tem uma troca. (...) Você vive aqui 12 horas (...) Tem (um envolvimento), não tem como (...) Se não tivesse o envolvimento como

seria? Me fala, como seria? Ficaria uma coisa vaga, né? Você vem aqui olha todo o espaço,

todas as crianças, vê o teu horário e vai embora? Não sei... O abrigo em si, ele é uma coisa

que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura mesmo; aquela coisa. Então, você

Page 100: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

está aqui, você participa no almoço, (...) você participa até no fazer (...). Você vai lá e está

junto: ‘ah, vamos fazer isso’. Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...”

Sueli caracteriza o educador social como uma referência na vida da criança e do

adolescente. Representando uma influência positiva ou negativa na vida deles, são os

educadores quem convivem mais proximamente deles durante o período do

abrigamento e por isso são uma referência importante para eles. Segundo Sueli, o

educador social é quem garante as ações, quem efetivamente toma decisões junto às

crianças no dia-a-dia. Uma de suas funções é a colocação de limites, mesmo que essa

deixe as crianças incomodadas com eles. Estabelecer a ligação da criança com sua

nova condição de vida, qual seja, viver em um abrigo, é também papel a ser

desempenhado pelo educador social.

Para o educador social o abrigo é lugar de trabalho; emprego. Não dormem no

abrigo, têm uma vida intima e particular além dos muros da instituição. Para os

educadores o abrigo é o local de trabalho e o lar é em outro lugar. Uma ambigüidade

quanto ao desejo do educador parece estar presente na fala de Sueli quando diz: “... e

por mais que queremos não ser, nós somos de passagem aqui.” Eles têm uma

experiência de conviver diariamente com as crianças, cuidam e são responsáveis por

elas, mas não moram e dormem no mesmo local. Esta separação diária com as

crianças concomitante a um envolvimento afetivo intenso, talvez a deixe confusa quanto

aos sentimentos e desejos sentidos por ela.

É um trabalho aparentemente descrito como qualquer outro: “A gente vem

porque é nosso trabalho, depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente vem e faz o

mesmo papel”. Entretanto, há algo que o diferencia: gostaria algumas vezes que essa

separação não ocorresse, que como as crianças, não fosse de passagem no abrigo e

além disso, é impossível não levar para a vida pessoal a experiência compartilhada com

as crianças diariamente e da mesma maneira, traz para o abrigo vivências de seu

mundo intimo. Há uma troca continua entre a experiência profissional e a vida pessoal.

Page 101: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

O envolvimento intenso com as crianças é tão intrínseco ao trabalho do educador

social, ficando impossível de pensá-lo sem esse vinculo; o trabalho do educador social

existe e tem um sentido quando há essa vinculação. O contrário dessa situação é

descrita como uma vivência fria, com ausência de afetos e sentimentos, não condizente

com o que sugere a instituição abrigo. Este é descrito por Sueli como uma instituição

onde os afetos e sentimentos estão implicados: as histórias das crianças têm um

espaço de expressão e acabam tocando as crianças entre si e os educadores também.

No abrigo, é impossível não se envolver e ser marcada pelas histórias e afetos dos

outros; os sentimentos são todos postos a prova e as relações se estabelecem meio a

esta mistura de emoções.

É função do educador de abrigo além de preparar as refeições, compartilhar

desses momentos e tantos outros com as crianças, estando o elemento afetivo

claramente presente. Ele não é apenas alguém a auxiliar as crianças e ajudá-las

naquilo que ainda precisam de outro para fazer por elas; ao contrário, participam e

compartilham junto com elas de momentos importantes de suas vidas. As funções não

são descritas apenas no âmbito do fazer, mas sim do compartilhar.

O abrigo é comparado por Sueli com uma família: “É meio que família, por mais

que o querer...”. Toda uma fantasia afetiva é projetada nas relações familiares. Sueli

aponta um grande envolvimento afetivo com as crianças e um compartilhamento de

suas vidas; entretanto, quando reconhece esses elementos no abrigo, compara-o com

a família, como se relações afetivas intensas fossem particulares a essa instituição ou

quando há uma aproximação com esta. Quando Sueli relata desejar que sua estada no

abrigo não fosse de passagem, pode também indicar esta idealização do modelo

familiar. Por mais que busquem uma diferenciação com esse modelo, a comparação

parece ser inevitável.

“É uma dificuldade dele e nossa. (...) Pra gente, como eu te falei, é o nosso trabalho

também. Então, a gente não quer perder. A gente quer que alguém saia daqui bem, melhor

do que veio. Porque senão não teria sentido o nosso trabalho.”

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“(...) Isso acaba transferindo pra gente também. Porque, como eu te falei, nós também

temos as nossas emoções. O fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na mesma

situação. É uma coisa que também nos irrita (a não melhora de uma criança). Pelo menos no

meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa... ‘Veja que você pode viver,

você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola”. Mas eu ainda não descobri a fórmula. Então, é isso.”

Há um compartilhamento entre os educadores e as crianças e adolescentes

tanto de momentos rotineiros como as refeições, quanto dos problemas; a dificuldade

de uma criança é percebida também como do educador social. O trabalho do educador

social é entendido por Sueli, dentre outras coisas, como o de auxiliar a criança e o

adolescente a encontrarem novos caminhos e alternativas em suas vidas,

possibilitando-lhes recursos para vencerem problemas. Nesse sentido, o que é

complicado para um, torna-se para o outro também. A função do educador social é não

só acompanhar o sujeito em sua história, como também ser protagonista de

transformações positivas ocorridas em suas vidas. A não mudança de uma criança, ou

seja, quando Sueli não nota mudanças no período em que morou no abrigo para

quando chegou, é vivido como um fracasso, um insucesso, sentindo-se uma perdedora.

Encontra sentido no trabalho e assim se vê motivada quando pode perceber

transformações positivas nos sujeitos.

A angústia e a dificuldade de uma criança marca bastante a experiência do

educador social. O fato de os educadores relacionarem-se com o abrigo

profissionalmente e as crianças o terem como uma alternativa de acolhimento, parece

se diluir na vivência de Sueli: “O fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na

mesma situação”. Penso haver uma identificação com as crianças, onde as emoções e

sentimentos dos educadores e das crianças passam a se misturar, não sendo mais

possível diferenciar o que é de um e o que pertence ao outro; o lugar e papel do

educador e o da criança, apesar de estarem institucionalmente evidentemente

diferenciados, se confundem no campo dos afetos e nas experiências cotidianas.

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“(...) Na maioria das vezes têm vindo pelo lado positivo. (...) É muito gratificante você

saber, por exemplo, quando eu trabalhava no outro abrigo, nós tivemos um caso de um garoto,

que a situação dele era delicada. (...) antes de eu sair de lá (...) ele conseguiu um emprego

de boy no Banco do Brasil. Depois, ele prestou concurso, e ele é funcionário do Banco do Brasil. Foi bom. E a gente entende que aquilo foi parte do trabalho.”

Sueli nota em sua experiência profissional a existência de mais casos onde a

influência do educador social favoreceu o sujeito ao invés de prejudicá-lo. Nas

conquistas futuras desses jovens, ela claramente reconhece marcas do seu trabalho,

da mesma forma como diante de uma ausência de mudanças positivas nos

comportamentos deles, oscila entre considerar um fracasso de sua atuação como

educadora e perceber um limite no desejo de transformação por parte do outro.

“(...)Se você é procurada, de alguma forma você está, é positivo. Se você é isolada,

aquilo é negativo. Então, isso é uma parte que você enxerga que o seu trabalho serviu. Bom

seria se todos saíssem assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente. Mas, não é

porque eu acho que o povo não acredita. Os governos não acreditam, a maioria da

população não acredita. Às vezes, a gente está no dia-a-dia ali com alguém que também não acredita. (...)

A avaliação da educadora social quanto à eficiência ou não de seu trabalho é

percebida na freqüência com que as crianças e adolescentes a procuram. Parece ser

função do educador incentivar, conversar com eles sobre as diversas possibilidades de

ser e estar no mundo; quando os sujeitos a procuram para um conselho ou para

ouvirem algo, Sueli considera que conseqüentemente estão avaliando seu trabalho

como bom e do contrário, se não a requisitam, diante dessa situação entende que seu

trabalho não está adiantando, alcançando seus objetivos.

Sueli revela seu desejo como educadora social: “Bom seria se todos saíssem

assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente.” Nesse desejo, penso estar

implícito a vontade de não existir mais conflitos, buracos e faltas na existência das

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crianças e adolescentes desabrigados; a função do educador social poderia ser, para

Sueli, tapar e suprir todas as faltas anteriores do sujeito, a partir de suas histórias de

vida marcadas pelo abandono, dor, violência, etc. O desejo que se apresenta seria do

abrigo como a instituição responsável por resgatar o sujeito e não deixá-lo mais com

faltas. Entretanto, se não há o reconhecimento social, se a sociedade não garante um

espaço no qual esses profissionais e jovens possam se sentir pertencentes e se os

próprios funcionários do abrigo não acreditam no seu trabalho e na possibilidade de

transformação das crianças, então o trabalho do educador social se vê limitado. Sueli

considera a importância de uma rede social articulada para dar conta das crianças e

adolescentes abrigados; nesse sentido, o abrigo não faz o seu trabalho sozinho,

necessitando do apoio de uma proposta política eficaz e das pessoas da sociedade.

“(...) dependendo da equipe, ela dá um suporte muito bom e é o que garante. Mas,

não tenha dúvida que o educador é quem dá as cartas no trabalho. (...) Porque, a chefia,

ela está aí sim, mas quem está no dia-a-dia, no corpo - como a gente, às vezes, usa o termo, 'dar cara à tapa' - somos nós. (...) às vezes você trabalha em determinado lugar que

não flui. Por que? Porque a equipe de educador (...) não funcionar, não se preocupe que o

resto não vai também. Pode ser a melhor coordenação, o melhor presidente, não funciona. (...) Tanto é que eu te falo, se você não acreditar, não adianta. (...) eu faço

porque eu tenho a minha espontaneidade de fazer. Mesma coisa na minha casa, se eu não

estiver no pique de fazer arroz, eu não faço, porque não vai dar certo. (...) Não adianta nem

você querer lavar a roupa com o melhor sabão, se você não estiver a fim, não vai funcionar. E assim é o trabalho no profissional.”

Sueli caracteriza o educador social como aquele responsável por garantir na

prática o projeto educacional da instituição. Percebe, nesse sentido, uma importância

fundamental do seu trabalho. Se o educador social, que é quem está no cotidiano junto

com as crianças e adolescentes, não realizar um bom trabalho e efetivar a teoria na

experiência prática do dia-a-dia, nada adianta existir um projeto; este depende

completamente da prática dos educadores. A equipe e a coordenação, segundo Sueli,

são importantes pois sustentam e apóiam o trabalho do educador social; entretanto,

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sem a atuação deste toda a teoria e um projeto não se concretizam e permanecem

somente no papel.

Para ela, é importante a pessoa gostar do que faz e trabalhar envolvida e

investindo no trabalho. O desejo e o investimento afetivo são o que garante um bom

trabalho; sem esses dois elementos, nenhuma ação se torna satisfatória, mesmo a

pessoa possuindo os melhores instrumentos em mãos. A paixão e o prazer são

considerados importantes em qualquer ação do sujeito para que esta se torne boa e

eficiente.

“Dedicação. Eu acho que é o ponto 'X', você se dedicar. (...) Porque, o educador em si,

ele não é só uma pessoa que vem aqui – (...) a função do educador vem debaixo, desde a

criança acordar: você acorda, você orienta no banho, você troca - (...) desde disso até a

questão de ajudar em alguma tarefa escolar, uma busca de emprego, uma entrevista. (...)

Nós temos uma participação que eu acho que 99% é nossa. Não estou dizendo, me

sentindo a 'bã, bã, bã'. Não. Mas, eu acho que sim. (...)”

Diferentemente de alguém que vai trabalhar sem se envolver com o trabalho e

com as pessoas, o educador social participa e compartilha da vida das crianças e

adolescentes em diversos momentos de suas vidas e por isso é importante dedicar-se

ao trabalho. O cuidado aparece como elemento básico no desempenho das funções do

educador social. Ele tem como tarefa suprir os cuidados básicos das crianças, estes

englobando desde cuidados físicos (dar banho, trocar a fralda, dar comida) até

cuidados mais relacionados ao ambiente externo (ajudar na tarefa escolar, buscar

emprego, etc). Para Sueli só fica viável cuidar de alguém se gostar, se existir um

investimento afetivo daquele quem cuida naquele que recebe os cuidados.

“(...) Temos que ter a teoria sim. Mas, eu acho que ela é bem menos. É uma coisa

assim, claro que é importante você relatar a história da criança; isso, a teoria aprende. (...) Eu

não conheço, nós temos já não sei quantos educadores espalhados por aí em abrigos e

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(...) não temos uma faculdade que ensine a ser educador. Então, eu acho que é uma coisa

que vem de você. Eu conheci pessoas com nível superior, com várias faculdades (...) e como educador, pelo menos na minha opinião, era um zero ali do meu lado. Por que? Não

sei. Talvez, eu acho que cada um tem um perfil. (...) Eu acho que teoria é importante, mas

não basta eu chegar aqui e relatar, e mostrar pra você uma cartilha de 'o que é que é ser educador', se quando eu for lidar na situação em si, sai todo o tiro pela culatra. (...) Eu

acho que não basta (...) ser pai, tem que participar -, então, não basta ser educador, você tem que atuar. Mesmo que você erre. A gente aprende nos erros. (...) agora não sei a

definição, enfim, qual que seria, educador aqui. Eu acho que a gente está na espera de

alguém que defina o educador. Claro que a gente participa de algumas coisas aí, de alguns

cursos, que vai cada dia aparecendo alguma coisa a mais que vai identificando que a gente

realmente... (O nosso trabalho).”

No trabalho do educador social a prática na experiência diária com as crianças e

adolescentes é considerada mais importante do que a teoria em si. Esta teria a função

de auxiliar no entendimento das histórias de vida das crianças e como lidar com elas,

porém não é garantia de uma boa prática. Sueli percebe a inexistência de uma

formação profissional para o trabalho do educador social e a maneira como lidam com

essa ausência é trazer referências pessoais para a prática do trabalho.

O trabalho do educador é mais relacionado com um “dom” do que com algo que

se aprende no campo da teoria; nesse sentido, está mais próximo da idéia de existir um

perfil de educador do que da necessidade de aprender na faculdade a função desse

profissional. O saber teórico é entendido, em certa medida, desvinculado e

independente do saber prático: há aqueles que sabem muito, mas fracassam na

atuação prática e de outro lado, há aqueles que não tem formação profissional alguma

e atuam adequadamente na experiência diária nos abrigos. Entretanto, apesar de

relativizar a importância da teoria no trabalho do educador, Sueli não descarta

totalmente sua importância; ao contrário, reconhece sua função mas ressalta o fato de

não ser suficiente, não garantir uma boa prática. As funções não se sustentam

naturalmente, ou seja, o educador para ser bom precisa agir, fazer, concretizar mesmo

que erre nos seus atos.

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Sueli fica confusa ao tentar definir o educador social e acredito que essa

confusão seja um reflexo direto da falta de identidade social apontada inclusive por ela

em sua fala. Ela mesma diz: “Eu acho que a gente está na espera de alguém que

defina o educador”. Essa identidade é construída, portanto, por toda uma sociedade e

dentro de uma política, não sendo uma tarefa exclusiva dos educadores. Talvez,

quando Sueli se refere à falta de identidade social esteja se referindo a uma ausência

de reconhecimento social do próprio trabalho.

“(...) Como eu te falei, não trabalhamos com máquina: você vai lá aperta o botão e

ela faz a quantidade, a produção que tem que ser feita (...) Eu trabalhei por 8 anos na Ford;

era uma empresa que nós tínhamos que dar conta de toda a produção. Então, um pouco

diferente, não é. (...) O chefe chega e: ‘olha tem que, tem tanto, você tem que fazer tanto 'X' de

produção’. Chegava no final do meu expediente, a minha cota de produção estava pronta.

Também não tem; como é que eu vou dar produção num trabalho desse? Aqui eu não tenho que dar produção, eu tenho que dar qualidade... O nosso trabalho é esse.”

O trabalho desenvolvido pelo educador social nos abrigos é claramente

diferenciado de outros. Opondo-se a um trabalho no qual as quantidades são

fundamentais, no desempenho da função de educador social a qualidade é o mais

importante. Relacionando-se diretamente e intensamente com seres humanos, não fica

possível quantificar o trabalho e nem garantir resultados objetivamente definidos; ao

contrário, o educador lida com o imprevisto e com afetos, elementos estes implícitos

nas relações humanas. Não há um dia igual ao outro e a segurança de se atingir uma

meta previamente definida. O trabalho do educador deveria ser justamente suportar o

desconhecido e aceitar o fato de cada dia, cada criança e cada experiência ser

diferente da outra. Isso já foi inclusive apontado por Sueli quando ela considera sua

experiência de 15 anos de trabalho relativa na medida em que acredita cada encontro

com as crianças ser único e singular.

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“É como um quebra-cabeça, falta uma peça. Mas é isso.”

O educador tem como função unir fragmentos dissociados, buscar um sentido

junto com as crianças e adolescentes para partes de suas vidas separadas,

fragmentadas. Precisa juntá-las para que algo de novo surja e para que o sujeito possa

se colocar frente a sua história e ao mundo de forma mais organizada e inteira. Deve

poder trabalhar com as peças que o sujeito possui para a partir dessas, construir um

novo caminho. A mudança, objetivo almejado pela educadora social Sueli, se dá,

portanto, a partir da reconstrução e resignificação de uma história já vivida pela criança

– essa é a possibilidade do novo, recriar a própria vida e encontrar um novo sentido

para ela a partir do posicionamento frente a própria história. Sueli também ressalta um

aspecto importante dessa tarefa do educador: há algo que lhe escapa, que falta,

impossibilitando a completude. Não tem como garantir tudo, prometer a felicidade e

conquistas plenas para aqueles a quem seu trabalho é dirigido.

III – HISTÓRIAS DE ALGUMAS CRIANÇAS COM QUEM TRABALHA

Peço para me contar de alguma criança específica que esteja vivendo no abrigo

no momento. Pergunta-me qual o critério de escolha dessa criança, já que consegue

pensar em vários exemplos. Questiona-me se deve ser a criança que é mais apegada

ou a que lhe dá mais trabalho. Respondo à Sueli que poderemos então falar de duas

crianças a partir desses critérios apontados por ela. Começa com a história da Ana,

uma menina do abrigo que julga ter uma grande proximidade:

“Quanto a questão da proximidade eu tenho essa facilidade né, de me aproximar, é

muito raro eu não ter um contato legal (...) com relação a proximidade (...) por exemplo, eu

tenho a Ana, ela entrou (...) e era (...) agitadinha, não aceitava muito o que a gente falava,

as vezes sumia, você procurava ela tava dormindo com o dedo na boca, então era uma coisa que me chamava atenção. (...) aqui a gente tem a questão da pasta individual que cada

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educador é quem cuida do caso (...) Então ela é uma criança que é bem ativa, já tem um

desenvolvimento super bom com relação a aprendizagem (...) ela gosta de fazer

cambalhota (...) então é uma criança que eu tenho muita afinidade, que tem um pouco de mim. A questão da agressividade, de às vezes bater o pé com algumas coisas. Então eu fui

isso, então tem uma afinidade maior (...) Assim, a gente se identifica. (...) A Ana até onde

eu sei a mãe morava aqui no João XXIII, era uma família constituída acho que por 5 ou 6

filhos, que teve problemas com drogas ou alguma coisa, uma das irmãs foi pra Febem a outra saiu pra rua, então era uma família bem difícil. E veio a irmã mais velha a Suzana, que

ficou aqui com a gente, então era uma menina adolescente explosiva mas de um bom coração.

(...) E a Ana vivia num outro abrigo acho que era aqui em Osasco e ela queria porque queria e

ela lutou até conseguir trazer a irmã pra cá. (...) aquela coisa de garra mesmo, mesmo com as

dificuldades dela. A Ana chegou de cantinho, cabelinho bem curto, meio que raspado

parecendo com um homem e vinha com você parecia um bichinho, num queria... se isolava de

você, e como eu fiquei com a pasta dela eu começava a bisbilhotar, querer saber alguma

coisa, e ela sempre saia que nem um peixinho, escorregava. É aquela coisa que a gente

conquista no dia a dia, vem aqui, (...) vamos cortar a unha, vamos lavar o cabelo (...)

tinha umas feridinhas então ficava aquela coisa do cuidado e hoje eu vejo a Ana cresceu, já se cuida melhor, não gostava de tomar banho (...) Ela tinha umas assaduras debaixo do

braço, que era questão de higiene mesmo. (...) Eu acho que conquistei na questão do

cuidado. (...)”

“(...) Você pode falar, ela sai batendo porta. Eu acho assim que é uma coisa que...

não é uma coisa agressiva, mas é uma coisa que mostra que a pessoa está reagindo, então eu acho que nesse ponto ela reagiu, porque no inicio ela ficava ali acuada. (...)”

Há uma importância dada a um atendimento mais pessoal e individualizado às

crianças e adolescentes no relato de Sueli, por exemplo, quando diz do fato de cada

educador social ficar responsável pelas pastas de determinadas crianças. Organizando-

se dessa forma, é como se ficasse mais viável cada um se dedicar mais integralmente à

certas crianças. Nesse sentido, pode-se pensar numa valorização de uma relação dual,

mais íntima e pessoal entre o educador e a criança.

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Há a possibilidade de se identificar com algumas crianças e adolescentes.

Compartilhando o dia-a-dia com eles, os educadores acabam os conhecendo muito

intimamente; uma relação bastante íntima é descrita nesse sentido. Há uma maior

afinidade no momento em que se identifica com a criança e reconhecendo nela suas

próprias características, consegue entendê-la mais profundamente. Com outras, a

relação se estabelece diferentemente, revelando como a personalidade e

características individuais de ambas estão implícitas na relação.

No relato da história de vida de Ana, Sueli faz menção à mãe e aos irmãos, uma

delas inclusive moradora do mesmo abrigo que Ana. O pai não é mencionado nesse

caso. Sueli, ao descrever características da irmã de Ana, revela a possibilidade da

existência de diferentes sentimentos presentes na mesma pessoa: “era uma menina

adolescente explosiva mas de um bom coração”. Percebia algo muito saudável por trás

de uma história de vida bastante difícil, com muitas dificuldades: um desejo enorme em

unir a família novamente. A relação das duas irmãs e a vivência delas no abrigo foram

os aspectos mais ressaltados por Sueli ao contar a história da vida de Ana.

Sueli caracteriza sua aproximação com Ana por dois caminhos diversos: buscava

em sua história de vida presente na “pasta individual” um sentido para alguns

comportamentos que lhe chamavam a atenção e por outro lado, tentava conquistar sua

confiança nas experiências diárias com ela. É no encontro cotidiano com as crianças

que se dá a relação e que a aproximação e confiança acontece, segundo Sueli. Ainda

nesse sentido, aponta a atenção aos cuidados físicos (“cortar as unhas, cuidar dos

cabelos, dar banho”) das crianças como principal elemento no estabelecimento da

relação dela com a criança. Dispensando-lhes cuidados, consegue conquistar a

confiança das crianças. O cuidar revela-se como elemento fundamental da função do

educador social, cuidar este que envolve necessariamente uma dedicação,

envolvimento afetivo e identificação com a criança. Sueli nota mudanças nos

comportamentos das crianças, percebendo um retorno de seu investimento afetivo.

Cuidando das crianças, elas aprendem a se cuidar também; na medida em que valoriza

o corpo da criança, ela passa a valorizá-lo.

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Ao identificar-se com Ana e reconhecendo em atitudes dela suas próprias

características, Sueli pode entendê-la mais profundamente. A sua experiência pessoal

também a ajuda entender outros comportamentos das crianças. A agressividade, por

exemplo, de uma criança é considerada por ela como uma reação, uma maneira

saudável da criança mostrar que está viva. A apatia, opondo-se ao ato agressivo, é

caracterizada por ela como algo preocupante na criança, um desinvestimento na vida.

Nesse sentido, ela incomoda-se e se preocupa mais com uma criança quieta do que

com uma que ataca o ambiente. Quando a criança pode ser agressiva, ela demonstra

estar investindo no ambiente e assim, pode se vincular afetivamente novamente com

alguém, segundo relato de Sueli. Em sua fala, foi justamente quando deixou de estar

apática e reagiu que a possibilidade de uma relação entre as duas se deu.

“(...) com o tempo eu descobri que falar e expor algumas coisas não funciona. Ela

(Ana) é mais com as atitudes, então eu falo (...) não basta sabe, perguntar, questionar, falar, explicar, na maioria das vezes pelo menos comigo não tem funcionado. Eu acho que

foi isso que levou a uma proximidade maior.”

Na sua experiência como educadora social, Sueli relata ter aprendido que com

crianças é mais importante a ação, ou seja, demonstrar concretamente através de atos

algo considerado importante para ela. Nesse sentido, atuar opondo-se ao falar. Uma

atitude diante de uma situação, por exemplo, no relato dela, cuidar do cabelo de Ana,

pareceu-lhe ser mais efetivo e eficaz do que se tivesse conversado com ela sobre a

importância de se lavar o cabelo.

“Eu acho que a questão de lidar com a mãe (é algo muito difícil para ela). (...)

Quando ela chegou aqui, ela não gostava que falava da mãe. (...) Hoje não, ela vai com a

mãe, mas ela tem ainda uma resistência, eu não sei qual que é ainda, mas quando você

fala: ‘você vai passar férias com sua mãe.’ Ela fala: ‘não, eu não quero ir’. Teve dias que ela

saiu chorando porque ela não queria ir. Então a impressão que dá é que aqui é mais

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prazeroso ficar. Hoje mesmo ela falou pra mim ‘meu aniversário é dia nove’, agora de julho, e

eu falei assim ‘ah ta, segunda feira?’ Ela falou ‘Não, é domingo e é seu plantão’. E antes eu

havia falado pra ela que eu ia ligar pra família para ela ir passar férias, então a impressão que deu era que ela não queria sair antes do aniversário. (...)”

A relação com a mãe aparece como a dificuldade mais essencial na vida de Ana.

Resgatar o vínculo da criança com a mãe e com a família parece ser algo importante

para Sueli. Quando Ana rejeita a mãe e todas as tentativas de reaproximação com ela,

Sueli atribui a isso a importância do abrigo na vida dela; entende diante da negação de

Ana que estar com a família é menos prazeroso, mais sofrido do que estar no abrigo.

Entretanto, é importante ressaltar a incerteza na fala de Sueli quando nos fala desses

aspectos: “eu não sei qual que é ainda” e “a impressão que dá...”. Ao pensar na

relação mãe-filha, ao invés de certezas, Sueli levanta possíveis hipóteses a partir de

sua observação dos comportamentos de Ana. Não entende a dificuldade de Ana e

pensa em algumas explicações para esta, por exemplo, estar associada a uma boa

vinculação com o abrigo e com ela, parecendo desejar, inclusive, comemorar o seu

aniversário no abrigo.

“Eu acho que mesmo com pouca idade (o abrigo) representa muito (na vida dela).

Eu acho que até mais do que a família em si, porque mesmo quando a irmã saiu a gente

achou que fosse... deu uma interferidazinha na escola, mas aqui não, foi uma coisa normal,

que superou-se rápido, então eu acho que o abrigo em si é o porto seguro né, do momento.

Eu acredito nisso.”

Em meio a tantas incertezas quando reflete sobre a relação de Ana com sua

mãe, um elemento aparece como certo em seu discurso: o abrigo é uma referência

fundamental na vida da criança, uma experiência certamente marcante e significativa. A

segurança possibilitada à criança pelo abrigo pode ser um elemento decisivo em torná-

lo mais significativo em sua vida do que o ambiente familiar. A maneira como Ana

reagiu quando se separou de sua irmã no momento do desabrigamento desta também

pode refletir, segundo Sueli, a importância do abrigo na vida dessa criança

Page 113: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

contrapondo-se ao lugar ocupado pelas relações familiares: pareceu superar rápido

essa situação tendo em vista estar num abrigo, um lugar seguro para ela.

“(...) Pra alguns é importante ter (a família). Mas, por exemplo, (para) a Angélica

não... Talvez, um pouco pra frente, ela vá valorizar isso; de momento, eu não vejo. (...) Eu

me baseio pelas atitudes dela. Por exemplo, ela prefere ficar aqui. Ela fala: ‘eu não quero

ir, eu quero ficar aqui.’ Teve meses que ela foi chorando. Então eu fico pensando, eu me

pergunto por que é que ela chora pra não ir. A impressão que dá (...) é que aqui é melhor.

Aqui tem mais não sei o que, mas aqui é melhor.”

“(...) É o referencial. O abrigo acaba sendo, porque é como se a família ficou pra

trás. Na maioria das vezes eles vêm pequenos, e acabam meio que a metade do ciclo de vida ficam aqui. Eu acho que é a parte que fecunda melhor. Mas, é difícil, tanto pra receber

como pra retirar. (...) Porque, por exemplo, tem pessoas que saem e voltam pra visitar, liga.

Tem outros que não. Eu acho que vai muito do que ele colheu daqui. O que ele plantou e o

que ele colheu daqui.”

A importância para a criança de estar com a família é relativizada por Sueli:

conviver com os familiares não é sempre positivo ou negativo. A intensa valorização do

abrigo pode revelar por outro lado uma desvalorização da família biológica da criança.

Há um maniqueísmo presente em seu relato: a instituição é uma referência sempre

positiva e boa e para se manter nesse lugar, as relações familiares acabam perdendo

seu espaço de importância.

Ela percebe através de comportamentos das crianças como para algumas é

complicado estar com a família e também o desejo delas em não estar com seus

familiares. Como no caso de Ana, com outras crianças acontece situação semelhante.

Na rejeição da família, no desejo de não estar com a mãe e o pai, Sueli pensa na

hipótese do abrigo estar sendo para a criança um ambiente onde encontra mais

satisfação do que nas relações familiares. Suas observações a levam pensar na

hipótese do abrigo ser um lugar mais positivo na vida de algumas crianças, mas ainda

Page 114: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

não identifica o que poderia ser esse diferencial da instituição (“Aqui tem mais não sei o

que, mas aqui é melhor.”)

O aspecto provisório do abrigo também é relativizado por Sueli na medida em

que ressalta o fato de muitos viverem por anos na instituição e não terem mais

condições de voltar a morar com suas famílias. Nesse sentido, reconhece o abrigo

como uma etapa importante na vida do sujeito, representando uma referência para a

qual poderão recorrer sempre que precisarem.

Agora é a vez do Eduardo, uma história difícil segundo Sueli:

“(...) A questão do Eduardo é questão de saúde. Ele tem diabetes (...) Eu acho que

pro grupo, no geral, foi difícil quando a gente recebeu o Eduardo aqui. Porque, um menino de 9

anos que a gente não conhecia nada (...) da diabetes. (...) Pra mim foi difícil, porque eu não

ainda sabia lidar com aquilo - como também não sei até agora, a gente faz por uma

questão de sorte ou sei lá o que. (...) você se sente impotente, você não sabe, você não tem o que fazer; você vai procurar os recursos que você conhece. (...) Pra mim foi um

momento de medo. (...) Por mais que falem chame o Resgate, mas você fica naquela

apreensão, se não dá tempo: vai morrer na minha mão? Isso é um complicador, não é.

Porque você não entende nada de saúde, em si. (...) É o meu trabalho. Eu venho aqui, dou

o meu plantão, então, sou eu, como pessoa, que estou em jogo. Não é só a saúde dele.

Eu não tenho só que dar conta da saúde dele, eu tenho que dar conta também do meu eu. (...) Das minhas condições. Da questão ética e tudo mais (...) Porque é diferente de você

lidar com os conflitos em si. (...) É uma coisa que, não tenha dúvida, vai te deixar apavorado. (...) Eu sei que não é fácil pra uma criança ter diabetes. Mas, ao mesmo

tempo, ele é uma pessoa difícil, porque você percebe que ele não quer se ajudar. Você

percebe que ele provoca a situação, ele come obsessivamente pra que ela suba, ou ele não come pra ela desça. (...) É viver no limite. Com ele é assim. Eu tenho procurado

aprender, mas também não tenho conseguido. Então, é assim, eu estou aqui, eu faço o

meu trabalho, procuro fazer o melhor, mas é complicado. É aquela coisa de você

trabalhar, ou melhor, você dar murro em ponta de faca. Porque ele tem condições de

melhorar a situação dele, em todos os sentidos, ele tem. Mas ele não quer. Então, você

Page 115: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

fica... É frustrante até. Porque você fala: ‘poxa vida, por onde eu vou? Qual caminho eu

sigo? Qual é o momento? Onde eu mexo?’”

“(...) Todos os recursos - não estou te dizendo ‘olha o abrigo é 100%’; estou te

falando o que é real - então, tudo que é e que está ao alcance do abrigo em si, tem sido feito pro Eduardo. Ele faz terapia duas vezes por semana, terapeuta particular. (...) Eu acho

que da nossa parte não requer mais nada. (...) Por exemplo, (parece) que ele vive em

busca de alguma coisa. Eu, sinceramente falando, eu só acredito que é a mãe. Porque não

é o recurso com relação à diabetes, não é recurso com relação a estrutura do abrigo; o abrigo é

bem estruturado. Não é isso. É uma questão dele querer. Talvez, ele faça isso até pra nos

chamar a atenção, como a figura feminina, como a figura mãe ou busque ajuda com a mãe.

Não sei. (...) O Eduardo, nesse ponto ele ainda não despertou. (...)”

Opondo-se a facilidade encontrada em sua relação com Ana, uma criança

segundo Sueli muito parecida com ela, está Eduardo, um garoto de 10 anos portador de

diabetes. Para ela, é mais fácil entender Ana pois se identifica com ela e já Eduardo

apresenta uma doença – a diabetes – totalmente distante de sua experiência pessoal e

profissional. Esse desconhecido permeia a todo instante a relação dela e de outros

educadores com ele e isso dificulta muito o seu trabalho com Eduardo. A história de

vida de Eduardo, apesar de bastante difícil marcada pelo abandono, negligência, etc, é

algo mais familiar para Sueli no sentido de existirem outras crianças no abrigo com

histórias semelhantes. O diferenciador, nesse caso, era a doença e em relação a esta

que era difícil se portar.

Na falta de recursos teóricos e práticos para lidar com a diabetes, esta se

apresentando como um desconhecido tanto na sua experiência como educadora,

quanto na pessoal, Sueli caracteriza a situação como amedrontadora e apavorante. O

acaso, a “sorte” é o que sustenta suas intervenções com Eduardo diante de uma

situação na qual não conhece recursos os quais possa se utilizar. Não sabendo como

nem como fazer, se vê impotente e frustrada, buscando de alguma forma qualquer

coisa que possa auxiliá-la.

Page 116: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Apesar de reconhecer o limite real posto na sua função, ou seja, poder agir até

onde seu conhecimento permitir (“deixá-lo em pé, chamar a ambulância”), sente-se

pessoalmente e profissionalmente implicada e responsável pela vida da criança. Se

algo fatal acontecer, apesar de reconhecer seus limites, se sentirá muito provavelmente

culpada, questionando-se se mais alguma coisa não poderia ter sido feito. Preocupa-se

consigo também, com seus sentimentos pessoais e com sua ética pessoal e

profissional no momento em que se sente a necessidade de uma maior apropriação da

doença de Eduardo.

Lidar com os conflitos rotineiros das crianças é mais fácil para Sueli a partir de

sua experiência profissional quando comparada a uma possível crise da diabetes de

Eduardo. Uma comparação é possível de ser feita nesse momento: no inicio da

entrevista, quando Sueli descreveu como chegou no exercício da função de educadora

social na Febem, de “pára-quedas fechado”, também caracterizou a situação como

apavorante pois da mesma forma, estava diante de uma realidade totalmente

desconhecida e nova em sua experiência. Também naquela época descreveu ir

trabalhar na total incerteza do poderia acontecer e da mesma maneira, sente isso em

relação ao seu encontro com Eduardo.

Reconhece a dificuldade da criança em lidar com a própria doença e, por outro

lado, percebe um não desejo em melhorar suas condições de saúde. Assim, a não

melhora de uma criança é atribuída a um desejo dela: não desejar melhorar. Quando

percebe não ser capaz mais de ajudar uma criança, quando sente já ter se esgotado os

esforços para auxiliá-la e mesmo assim, não notar melhoras, Sueli levanta a hipótese

disso estar relacionado a uma vontade da criança. Percebe, portanto, o sujeito

implicado no seu processo, na sua vida já que as mudanças dependem em certa

medida de seus esforços e empenho. Entretanto, mesmo reconhecendo esse fator do

individuo, sente-se frustrada e se questiona o que mais poderia ser feito de sua parte

para ajudá-la. Por um lado, percebe a necessidade dela desejar transformações e por

Page 117: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

outro, não reconhece esse limite de sua atuação e frustra-se, buscando

incessantemente novas alternativas.

“Sim, teve (uma situação diferente com o Eduardo). Por exemplo, a questão da

escola. A saúde é que é complicada. Quando ele chegou aqui, ele não sabia ler, nem

escrever, ele dava trabalho na escola, e ficou no reforço, depois foi pra aceleração, um monte

de coisa. Hoje ele já está na 5a série, ele já escreve, ele já lê, ele já compreende melhor.

Então, ele conseguiu - claro, com a ajuda nossa, da escola e tudo - mas, esse mérito é

dele, porque foi ele quem conseguiu; se ele não quisesse, ele continuava lá paradão. Ele conseguiu sair. (...) Mas, a gente quer o que? Por exemplo, eu, como mãe, eu queria que

ele avançasse na questão dos cuidados da saúde. Só que aí ele emperra.(...)”

Apesar das dificuldades com a diabetes, Sueli reconhece melhoras e mudanças

em outros aspectos da vida de Eduardo. A escola é um deles. Ocorreram

transformações significativas em relação a escola desde quando Eduardo foi abrigado e

Sueli reconhece a influência de seu trabalho e dos profissionais da escola nessas

mudanças. Entretanto, atribui a Eduardo as transformações e o progresso, mais do que

aos esforços de seu trabalho como educadora. É como se ela fosse responsável por lhe

possibilitar recursos e ele por aproveitá-los ou não. Se ele não desejasse ler e escrever,

de nada adiantaria todos os esforços do abrigo e da escola em proporcionar a ele as

condições; há algo que cabe somente ao sujeito e Sueli reconhece nesse ponto o limite

de sua atuação.

Sueli comete um lapso e se afirma mãe de Eduardo: “Por exemplo, eu, como

mãe, eu queria...”. Penso na hipótese disso estar relacionado com a ausência de uma

identidade social do educador, assim, ela busca uma definição e um lugar para a sua

função em outras referências conhecidas e valorizadas socialmente, no caso na figura

materna,. Alem disso, esse lapso pode revelar um desejo seu: ser a mãe das crianças.

“(Para ele é difícil) Reagir. Eu acho que, por exemplo, a mãe... Ele foi abandonado.

(...) Ele chegou aqui eu acho que com 9 ou 10 anos. (...) Ele fez 13. (...) Desde que ele está

Page 118: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

aqui, a mãe nunca - ela ligou uma vez, pelo menos que eu atendesse. (...) Ela nunca veio.

Teve momento que ele procurou, fala que quer. (...) porque o pai vem, faz a visita; ele passa

o dia com o pai. (...) Não sei que pressão acontece do lado de lá que evita que essa

mulher se aproxime. (...) E, assim, a figura feminina - no caso, nós mulheres – (...) ele

quer sugar. Ele pede pra gente: ‘ah, me adota, me leva pra casa.’ Talvez, se a mãe aparecesse, alguma coisa, ele desse uma deslanchada. (...) É como se ele quisesse

alguém que substitua. (...) É complicado. (...) É uma coisa que eu ainda não elaborei. Por

exemplo: ‘me adota’. Você escuta e vai embora. (...) É uma coisa que é um compromisso

muito sério, uma coisa que requer muito - no caso dele, até recursos. Pra todo mundo ele faz

isso. (...) Às vezes você tem que sair fora, porque você não pode alimentar isso. Não tem

como. Ter como tem, mas não é viável isso. (...) porque jamais eu faria algo que não estivesse ao meu alcance. Eu acho que por aí eu vou passar a satisfazer o ego, e aí? (...)

Complicado.”

O não desejo de Eduardo em melhorar suas condições de saúde é atribuído por

Sueli a uma ausência da mãe na vida dele. Apesar da presença do pai, visitando-o no

abrigo, a mãe desde que o abandonou nunca o viu e Sueli acredita que se houvesse

um resgate do vínculo com a mãe, Eduardo passaria a se cuidar em relação a diabetes.

Sueli percebe uma vinculação diferente de Eduardo com as mulheres, buscando nelas

uma mãe substituta quando as pede para adotá-lo. Interessante notar que percebe uma

melhora dele no âmbito escolar, este mais relacionado com a função paterna e no

âmbito da saúde, relacionado aos cuidados corporais e com a alimentação (mais

relacionado a função materna), Sueli identifica um limite da instituição e do pai: é uma

carência de mãe.

No pedido de Eduardo para ela o adotar, se vê em conflitos e ambígua em

relação ao pedido. Por um lado, reconhece racionalmente seu papel de educadora e

não de mãe, mas por outro, sente-se emocionalmente tocada, como se o que soubesse

com a razão não correspondesse a seus sentimentos. Envolve-se emocionalmente com

as crianças e adolescentes e nesse sentido, um pedido de adoção a deixa confusa.

Diante disso, Sueli aponta como um possível caminho o afastamento na tentativa de

não se confundir, para ela e para ele, os papeis de ambos.

Page 119: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

IV – INFLUÊNCIA DO TRABALHO NA VIDA PESSOAL

“(...) Sou casada há vinte e poucos anos, tenho 2 filhos, na época eu já tinha um, tive

uma filha, (...) fiquei grávida no período que eu trabalhava lá, então, não interfere na minha vida

não. E é gostoso porque você aprende muito né? E isso dá um respaldo pra você também

ter tua vida lá fora, muitas coisas que você não valorizava você passa a valorizar muitas

das coisas que você não conseguia encarar você acaba encarando de uma maneira mais leve, menos sofrida. (...) Marca, não tem como não marcar.”

Durante toda a entrevista e não somente nesse trecho citado a cima é inegável a

influência do trabalho de educadora social na vida de Sueli. Relata, apesar das

dificuldades, ser uma experiência muito positiva, na qual aprende muitas coisas, não só

no âmbito profissional, como também no pessoal. A convivência diária com as crianças

e adolescentes do abrigo a ajudam a olhar para o mundo e para as coisas que a cerca

de outra maneira, encarando a realidade e sua vida mais suavemente, segundo seu

relato.

Há um encontro e uma troca entre ela e os abrigados. Ambos se influenciam

mutuamente e saem modificados do encontro. Não dá mais para ser a mesma depois

dessa experiência, pois aprendeu uma nova postura diante do mundo e de sua própria

vida.

Page 120: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

VIII – DISCUSSÃO DOS DADOS

Em relação às motivações e a história pessoal e profissional dos dois sujeitos,

pode-se ressaltar alguns elementos do conteúdo de seus discursos. O primeiro deles

refere-se a maneira como ambos aproximaram-se do trabalho com crianças e

adolescentes em situação de risco.

Luciana relata ter descoberto e se interessado pelo trabalho através de um

anúncio de jornal, pela possibilidade de conviver mais próxima de seu marido e filhos.

Já Sueli aproximou-se dessa área chegando de “pára-quedas fechado”, como ela

mesma descreveu, já que trabalhava antes numa fábrica, desempenhando uma função

que nada tinha a ver com o trabalho exigido nos abrigos. Portanto, nas duas

experiências fica evidente a falta de formação profissional para o trabalho com crianças

e adolescentes abrigados. Nenhuma das duas tinha uma experiência ou formação

anterior e isso não foi exigido pela instituição quando as contrataram. A motivação dos

dois sujeitos é no entanto diferente: para Luciana, o valor e importância da família são

evidentes, além de existir um desejo enorme de maternagem (estaria com seus filhos

biológicos e seria mãe social de mais 9 crianças) e para Sueli, foi uma falta de escolha,

pois foi a oportunidade que lhe surgiu de trabalho. Ambas tiveram ultrapassadas suas

expectativas iniciais em relação ao trabalho: Luciana não esperava um envolvimento

tão intenso com as crianças e adolescentes e Sueli não imaginava ser tão doloroso e

difícil o trabalho com os jovens ex-internos da Febem. Na ausência de uma formação

específica anterior para o trabalho de mãe e educadora, ambas relatam o uso de

referências e experiências pessoais de vida como base e suporte.

Ainda em relação à questão das referências pessoais, um exemplo de Sueli é

bastante ilustrativo. Quando fala de Ana, mostra um entendimento profundo de sua

história, conseguindo inclusive estabelecer uma confiança positiva com ela através de

Page 121: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

cuidados físicos. Fez a função do Holding e do Handling como Winnicott postulou em

sua teoria. Pôde identificar-se com ela e encontrou facilidades para isso já que se

reconhecia em suas atitudes e comportamentos: ela era igual a Ana quando criança. Já

com Eduardo a situação foi diferente. Revelou um desconhecimento total de sua

condição de saúde (diabetes) e, diante desse desconhecido, não pôde se identificar

com ele a ponto de fazer a provisão e atender suas necessidades. Portanto, é inegável

a falta de um respaldo mais profissional pois o critério não deveria ser somente as

referências pessoais de Sueli para lidar bem ou não com uma criança.

Uma outra diferença em relação à motivação aparece no discurso de ambas. No

relato de Luciana, ela iguala a experiência de sua mãe com o papel de mãe social do

abrigo; a única diferença estaria no número de filhos das duas (ela teria dois filhos a

mais que sua mãe). Tendo tido essa experiência familiar, acredita estar apta para

desempenhar o trabalho de mãe social e tendo tido uma história de vida semelhante à

das crianças e adolescentes de abrigo, bastante difícil e dolorosa, pode lhes mostrar

através de seu exemplo, a possibilidade de um “final feliz”. Diante disso, penso na

hipótese de Luciana buscar no trabalho de mãe social uma tentativa de elaboração de

sua própria história e entender a maternagem a que foi submetida. Além disso,

igualando a sua experiência no abrigo com a de sua mãe, Luciana acaba negando a

história de vida das crianças e dos adolescentes. Colocando-se como mãe deles, da

mesma forma como sua mãe é mãe dos filhos biológicos dela, Luciana nega nelas o

essencial de suas vidas: a própria história. Estão acolhidas no abrigo por terem sido

afastadas do convívio familiar por diversos motivos e esse elemento fundamental não é

considerado no momento em que Luciana iguala sua experiência com a da sua mãe.

Na experiência de Sueli, ela relata ter aceito o trabalho de educadora social pois

foi a oportunidade que lhe surgiu na época. Não foi uma escolha, portanto. Foi obrigada

a aceitar e encarar o trabalho por uma questão de sobrevivência. Envolvendo-se com o

trabalho, foi uma das poucas educadoras a permanecer na profissão e a começar

realizar o que o ECA previa para os atendimentos em abrigo: atender no máximo 20

Page 122: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

crianças. Penso ser esta uma possível motivação para seu trabalho, tendo em vista o

fato de não ter escolhido esse trabalho e depois ter se envolvido.

Em relação ao trabalho desempenhado na instituição como mãe e educadora

social, alguns elementos merecem destaque.

Quanto ao reconhecimento das facilidades e das dificuldades no desempenho

dessas funções, suas posições são opostas. Luciana percebe somente facilidades no

seu trabalho e as dificuldades são praticamente inexistentes, pois mesmo que existam,

são facilmente superadas com recursos já conhecidos por ela: “jeitinho, carinho e

amor”. Já para Sueli, no trabalho de educadora social quase não há facilidades. Lidar

com crianças e adolescentes com histórias de vida tão difíceis, implica em muitas

dificuldades ficando complicado perceber facilidades.

A negação das dificuldades por parte de Luciana penso estar diretamente

relacionada com a dificuldade em percebê-las (“Não é que é difícil assim, é...”, “Eu acho

que é um meio termo, não é uma coisa que você fala ‘ai é uma coisa difícil”.). Há uma

diferença importante entre as crianças em situação de abrigo e as crianças não

institucionalizadas e se Luciana não pode perceber essa diferença, reconhecendo as

limitações e dificuldades da instituição, no sentido de buscar garantir o desenvolvimento

psíquico de sujeitos marcados pela violência e carência, permitindo espaço para a

existência das dificuldades, ela acaba por colocar-se numa posição heróica e distante

do real. (Nogueira, 2004). Poder lidar com as dificuldades implica também em poder

aceitar as frustrações, aquilo que não se realiza exatamente da mesma forma como

imaginávamos ou de conformidade com as expectativas. Nesse sentido, é necessário

poder reconhecer as próprias dificuldades para ser capaz de enxergá-las nas crianças e

adolescentes. Eles trazem necessariamente histórias de vida difíceis referentes às

angústias básicas do humano tais como o desamparo, a necessidade de afeto e amor,

o medo da perda, etc. É fundamental reconhecer esse dado de realidade. O amor e

jeitinho como elementos suficientes para vencer qualquer dificuldade, revelam a visão

Page 123: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

assistencialista do discurso de Luciana, bem equidistante de uma proposta educacional

de maior potencial reflexivo.

Sueli considera algumas situações cotidianas relativamente fáceis, já que os

anos de experiência lhe favorecem ter um manejo para lidar com elas. Entretanto, as

situações não são sempre fáceis já que cada criança é única e cada experiência é

diferente. A dificuldade reside justamente em lidar cotidianamente, com situações

novas, já que são crianças diferentes com histórias de vida únicas. Lidando com o ser

humano, acredito não existir uma fórmula única para todos; além disso, conflitos e

problemas estão sempre presentes. Acredito estar mais próxima ao que acontece de

fato no contexto dos abrigos, ou seja, reconhecer as dificuldades existentes quando se

entra em contato com histórias de vida difíceis e além disso, parece reconhecer o fato

das crianças institucionalizadas apresentarem dificuldades e limites característicos de

uma vida no coletivo, diferentemente da vida levada na família. (Nogueira, 2004).

Apesar das diferenças há um elemento semelhante para os dois sujeitos: a

questão do vínculo. Dificuldade maior para ambas. Sueli relata dois momentos

particularmente difíceis: a chegada das crianças ao abrigo, expectativa do vínculo a se

formar e quando são desabrigadas ou momento da separação. No caso de Luciana, o

desabrigamento é uma situação geradora de muito conflito e tristeza. Penso estar esse

aspecto diretamente relacionado com a questão da provisoriedade do abrigo (moradia

provisória até que possam retornar à família de origem ou serem adotados) e com a

relação emocional intensa que se estabelece entre o educador e a mãe social e as

crianças e adolescentes. Esses profissionais trabalham no âmbito da vida pessoal,

lidam cotidianamente com a intimidade e a privacidade das crianças e apesar do

vínculo profissional estabelecido com eles, é inegável uma grande carga afetiva

envolvida nessas relações. O fato de serem relações estabelecidas a partir de um

vínculo profissional faz com que vivenciem, com ambigüidade, o desabrigamento. No

entanto, o principal objetivo da instituição abrigo é poder ser uma medida provisória de

acolhimento e nesse sentido, o desabrigamento é sua maior meta. Entretanto, quando

alcançada é vivenciada de forma ambígua.

Page 124: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

No entanto, apesar do desabrigamento ser vivenciado com bastante dificuldade

por ambos os sujeitos, ocorre de maneira diferente nos dois casos. Luciana sente uma

tristeza profunda, sente-se roubada, como que amputada, faltando um pedaço de si:

“parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo, eu me senti assim perdendo um

pedaço de mim naquele dia. É muito triste”. É algo que acontece claramente contra a

sua vontade, sentindo-se fracassada e mutilada. Nesse momento, penso estar o abrigo

fracassando pois tem dificuldade em cumprir com seu principal objetivo. Colocando-se

como mãe substituta das crianças e buscando reproduzir no abrigo a família, o

desabrigamento não poderia ser vivenciado de outra forma.

Outro aspecto dissonante é assinalado: a educadora social apresenta a chegada

da criança ao abrigo como um momento difícil do trabalho e a mãe social não vê

dificuldades no abrigamento. Vincular-se com as crianças que chegam é um processo

que necessita de presença e envolvimento intenso dos educadores. Acabaram de

passar por um momento sofrido de suas vidas e chegam ao abrigo vivendo

necessariamente um luto. Aproximar-se dessas crianças e fazê-las confiar no novo

ambiente, ajudá-las a entender a nova condição de suas vidas é difícil para Sueli. Já

para Luciana, precisa haver um jeitinho para se aproximar das crianças e se isto é feito

com amor, então o vínculo e a confiança se restabelece. Também a comunicação é um

elemento importante para o estabelecimento dessa confiança. A história de vida desses

sujeitos parece ter mais lugar no discurso da educadora social, não pelo fato dela

enxergar dificuldades, mas sim por levar em conta o luto pelo qual as crianças estão

passando. Estão deixando uma situação para se adaptarem a uma nova e precisam

confiar no ambiente para isso acontecer. Esse elemento está presente na fala de Sueli,

diferentemente do que ocorre com Luciana.

Um outro elemento importante é a maneira como os sujeitos significam o abrigo.

A dificuldade de definir essa instituição é presente nos dois sujeitos, apesar de terem

sido observadas diferenças significativas nesse sentido.

Page 125: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

A instituição na qual Luciana trabalha se caracteriza pela tentativa de reproduzir

nos lares–abrigo o modelo familiar, e na prática de Luciana esse dado foi evidente: ela

oscila entre comparar o abrigo a uma família, demonstrando existir alguma diferença

entre essas duas instituições e de outro lado, relata ter conseguido igualar o abrigo a

uma família e se coloca como mãe das crianças e adolescentes. Cito trechos onde isso

fica claro: “Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o

que tirar” e “Daí eu falo: ‘eu sou sua mãe, pô, eu tenho direito. Eu sou mãe.’”.

Igualando o abrigo à família, sem o reconhecimento das diferenças e das limitações de

ambas as instituições, coloca-se em questão aqui a possibilidade de se discutir o abrigo

como uma instituição efetivamente alternativa para a garantia do desenvolvimento da

criança. Nesse sentido, penso na hipótese do abrigo como um modelo alternativo de

socialização ser avaliado como ineficiente, falho; Luciana acredita que somente se

conseguir efetivamente ser uma nova família para a criança é que conseguirá cumprir

com seus objetivos. Porém, sabemos dessa impossibilidade e além disso, o quanto é

prejudicial e alienante para as crianças e profissionais não reconhecerem as limitações,

tanto de parte das crianças vivendo em instituições quanto dos profissionais pela

ausência de reflexão sobre a real proposta do abrigo.

Também nessa tentativa de reprodução do modelo familiar é inegável a

existência de uma idealização ao redor e de uma fantasia derramando afetos e

projetada nas relações familiares. A família é vista como o lugar primordial de uma

vinculação afetiva intensa e a condição mais favorável, talvez a única, capaz de garantir

um desenvolvimento saudável para a criança. Por isso a tentativa de reproduzi-la nos

abrigos.

A dificuldade da educadora social em definir o abrigo se apresenta de uma outra

maneira, porém com elementos bastante semelhantes aos de Luciana. Sueli diz: “O

abrigo em si, ele é uma coisa que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura

mesmo; aquela coisa. Então, você está aqui, você participa no almoço, você participa;

você participa até no fazer, às vezes. Você vai lá e está junto: "ah, vamos fazer isso".

Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...” Mais do que apenas

Page 126: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

participar da vida das crianças e adolescentes, Sueli compartilha de suas vidas e

vivencia com eles momentos importantes de sua história. Há um vínculo profissional

com esses sujeitos e ao mesmo tempo parece sentir o envolvimento com eles para

além desse vínculo. Seus sentimentos e emoções em relação às crianças ultrapassam

o âmbito profissional e esse limite acaba sendo muito tênue na sua experiência. Nesse

sentido, vê-se confusa buscando encontrar uma caracterização para o abrigo. É um

lugar onde os afetos se misturam e se confundem, como ela mesma diz, e se sente

envolvida com as crianças além de um vínculo profissional. A comparação com a

família parece ser inevitável para Sueli o que me faz pensar novamente em uma

idealização do modelo familiar. Quando reconhece um grande envolvimento afetivo

entre ela e os sujeitos abrigados, compara o abrigo com uma família demonstrando

acreditar, como também ocorre com a mãe social, ser a família o lugar primordial para

uma vinculação intensa entre pessoas. A diferença poderia estar no fato de Sueli dizer

“por mais que o querer...” e Luciana falar “Eu acho que é uma família mesmo, eu acho

que não tem o que por e nem o que tirar”. Sueli parece questionar a adoção de um

modelo familiar para o abrigo e Luciana, ao contrário, parece acreditar neste como a

melhor alternativa possível para o trabalho nessa instituição.

A dificuldade de se definir mais claramente a instituição abrigo traz também uma

confusão nos papeis desempenhados por esses dois sujeitos. No discurso de Luciana,

essa confusão é mais evidente e penso estar esse dado relacionado com a diferença

de denominação de ambas: uma é educadora e outra é mãe. Luciana colocando-se no

lugar de mãe das crianças, entra factualmente numa relação de rivalidade com a mãe

biológica, como ela mesma descreveu, tem enorme dificuldade em desabrigar uma

criança, sente-se perdendo um filho nesse processo. A criança, nessa relação, se vê

com muita dificuldade de diferenciar as figuras maternas em suas vidas, tendo em vista

o fato das mães biológicas, apesar de não terem condições de cuidar de seus filhos,

permanecerem presentes e manterem a relação e o vínculo vivos (Nogueira, 2004).

Para ilustrar essa confusão, cito trechos de Luciana: “E o que foi engraçado, que eles

ficam com dificuldade: ‘pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe

biológica, mas eu não queria dar pra ela.’”. Há um conflito e um sofrimento da criança e

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uma dificuldade de enxergar isso, Luciana diz achar engraçado algo que é sofrido para

a criança. A dificuldade de entrar em contato com esse conflito também fica evidente na

maneira como descreve sua relação com uma mãe biológica. Luciana, acredita que a

mãe biológica enxerga a mãe social como alguém que deseja roubar seus filhos. A

fantasia acaba sendo totalmente projetada na mãe biológica, tendo em vista que

também Luciana na função de mãe social se sentiu roubada quando uma criança é

desabrigada. Essa questão projetada na mãe biológica dificulta e impede a reflexão de

sua própria prática. Além disso, Luciana descreve uma relação ausente de conflitos e

tensões, oposta ao que ocorre na realidade. Em seu discurso, a mãe biológica depois

de entendida a função da mãe social, é descrita agradecendo imensamente a mãe

social por ela ter conseguido algo que foi incapaz de realizar: amar e cuidar de seu

filho. Penso não ser essa relação tão harmônica como Luciana descreve e esse conflito

precisa ficar claro para todos os envolvidos.

Nesse sentido, a mãe biológica aparece, tanto para Sueli como para Luciana,

como a responsável pelos problemas das crianças e culpada por tudo de mal que lhes

ocorreu. A relação é, portanto, de rivalidade e não de parceria. Há um valor e uma

importância muito grande projetados na função de “mãe”, diferentemente do papel do

pai, que não é citado nas histórias de nenhuma criança.

No caso de Sueli, algumas diferenças são dignas de registro. As crianças no

abrigo lhe chamam pelo nome ou por “tia” e isso acredito facilitar a confusão de papeis.

Entretanto, mesmo com o lugar aparentemente mais garantido institucionalmente, a

confusão para ela também está presente. Um exemplo poderia ser um lapso cometido

por ela, quando se afirma mãe de Eduardo: “Por exemplo, eu, como mãe, eu queria...”.

Investindo amorosamente e afetivamente na criança, se vê possivelmente em conflitos

no papel de educadora sentindo-se como a mãe da criança. A educadora é como se, no

seu imaginário, na função de educadora, estivesse mais distante emocionalmente da

criança e quando se vê bastante envolvida e implicada na relação , resgata o valor

projetado na figura da mãe. Além disso, quando uma criança pede para ela adotá-lo,

ela fica confusa e diz: “É uma coisa que eu ainda não elaborei. Por exemplo: ‘me

Page 128: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

adota’. Você escuta e vai embora”. O desejo de dar uma nova mãe e uma outra família

para a criança para quem sabe ela poder ser feliz novamente está presente no discurso

de Sueli.

Sueli relata muito pouco a respeito das mães biológicas das crianças, o que me

faz pensar no lugar que essas mães têm no abrigo. Esteve presente no seu discurso

uma visão do abrigo como o lugar ideal para a criança viver e estar naquele momento e

isso pode ser que afaste e impossibilite a relação com a família da criança, vista como

um elemento dificultador de seu trabalho. Sueli apresenta muitas incertezas na relação

da criança com sua família contrapondo-se a certeza do abrigo ser uma referência

fundamental, um porto seguro.

Alguns elementos considerados importantes no trabalho de educadora e mãe

social estiveram presentes tanto na fala de Luciana quanto na de Sueli. Amor, vontade,

dedicação. São estes os elementos apontados como fundamentais por ambas no

trabalho em abrigos. Sueli diz: “Eu acho que é uma questão de dedicação,

primeiramente eu acho que tem que existir amor”. E na fala de Luciana: “Eu acho que

tudo o que você faz com vontade, você faz com amor, fica fácil, tudo fica fácil”. A

dificuldade de reconhecer o trabalho de educadora e mãe social como uma atividade

profissional fica evidente nesse aspecto, quando gostar e amar parecem ser suficientes

no trabalho com crianças. Qualquer pessoa com esses atributos poderia desenvolver

essa atividade, não necessitando para tanto de nenhuma formação especifica.

O caminho pelo qual reconhecem as marcas de seu trabalho e sentem-se

valorizadas e satisfeitas é muito semelhante tanto para Sueli como para Luciana. Essas

duas profissionais têm expectativas em relação às crianças e adolescentes abrigados.

Esperam que eles possam melhorar suas condições, estruturar-se melhor e quando

desabrigados, possam sair de uma maneira diferente de quando entraram. Vêem o

abrigo como um lugar de ajuda para as crianças em termos de desenvolvimento e

nesse sentido, consideram a instituição como um lugar positivo e saudável para a

criança. Entretanto, quando não notam na criança uma melhora ou quando os

Page 129: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

“resultados” alcançados não correspondem às suas expectativas, tanto Sueli quanto

Luciana sentem-se frustradas e fracassadas. Dependem totalmente do “sucesso” das

crianças e adolescentes para sentirem-se valorizadas. Inclusive quando não

reconhecem transformações nas crianças, não aceitam essa condição e tentam a

qualquer custo modificá-la. Trechos de ambas ilustram esse aspecto. Sueli diz: “Pelo

menos no meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa... ‘Veja que

você pode viver, você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola” e

“Você vai se cobrando, vai se desgastando, no final, não sai o que você quer; aí, o que

você faz? Você cansa, desiste...”. Já Luciana nos fala: “Cada passo que você vai

dando, cada vitória que a criança vai tendo, é uma vitória sua. Isso dá uma satisfação

muito grande. (...) E, de repente, você conseguir, você ver que está dando resultado, é

maravilhoso”.

Fica evidente o fato de Sueli e Luciana dependerem das crianças e dos

adolescentes para se sentirem potentes, capazes, realizadas e satisfeitas. Nesse

sentido, acaba sendo um trabalho mais missionário do que educativo. Além disso, entra

em cena um funcionamento totalitário de “tudo ou nada”: ou as mudanças das crianças

correspondem às expectativas de ambas ou então o trabalho delas não surtiu efeito

nenhum e se sentem fracassadas com vontade de desistir. Ou é um sucesso por

completo ou um fracasso total. Não há um lugar garantido para as histórias de vida das

crianças e adolescentes nessas condições, já que estas são sempre vistas como algo a

ser modificado, transformado ao invés de serem acolhidas e poderem ter suas histórias

resignificadas. Quando isso não é possível, “quebram-se os elos com o passado, o que

torna mais difícil viver o presente e quase impossível representar um futuro” (Sanches e

Peloso, p. 150, 2005). Apesar de buscarem garantir um espaço individualizado para

cada um, por exemplo, garantindo-lhes um armário, e roupas individuais, não há

espaço para as necessidades individuais se pensarmos nas ações efetivas desses

profissionais. Demonstram estar mais preocupadas com a satisfação pessoal, em

sentirem-se úteis e amadas do que com as reais condições das crianças e com as suas

necessidades pessoais. Outros exemplos poderiam ser o caso do Natal, quando

Page 130: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Luciana ficou mais tranqüila e feliz no momento em que as crianças ligaram para ela e

quando Sueli sentiu-se fracassada e infeliz ao perceber a rejeição de uma criança.

Há uma diferença nos dois sujeitos em relação à questão do reconhecimento.

Sueli também aponta uma falta de reconhecimento social de seu trabalho. Não percebe

uma visibilidade do seu trabalho na sociedade e na política, como também em algumas

crianças e adolescentes. Diante dessa condição, diz estar o reconhecimento nas

mudanças das crianças, incumbindo-os assim de altas doses de expectativa e portanto

de uma enorme carga.

A dificuldade em entrar em contato com as histórias de vida das crianças e

adolescentes está presente nos dois sujeitos, porém de uma forma diferente. Para

Luciana, as histórias das crianças aparecem no sentido de serem amenizadas e

negadas. Quando as crianças lhe perguntam sobre sua história, conta-lhes a verdade

pois acredita ser importante não mentir para eles (do contrário, estaria dando um mau

exemplo) ao invés de tê-los como sujeitos de seus direitos (como definido pelo ECA).

Nessas condições, a possibilidade de resignificar a própria história fica impedida. Já

Sueli nos diz: “Não tem como apagar, né? É super complicado você querer apagar e

vem né?” Demonstra também o desejo de que as crianças tivessem uma outra história;

entretanto, mesmo com essa dificuldade busca lidar com os conflitos despertados por

estas no cotidiano do abrigo. Por outro lado, há uma grande idealização do abrigo em

seu discurso o que leva à hipótese de que não há um espaço para a família. É

marcante em seu discurso os aspectos positivos e favoráveis do abrigo e a família

apareceu na maioria das vezes em um lugar bastante desvalorizado.

Há uma diferença na maneira como enxergam as crianças e os adolescentes.

Luciana entende as crianças como seres naturalmente felizes, sem conflitos e

preocupações. Em suas palavras: “A criança é mais fácil de você estar, a criança não

mente, a criança é natural. Às vezes pega na parte psicológica, às vezes você sente

uma criança triste. (...) Daí eu falo: ‘V., você é tão feliz! Você é uma criança, não tem

responsabilidade nenhuma”. É possível pensar na hipótese de ser difícil para Luciana

lidar com a tristeza e com os conflitos das crianças. Elas não podem ficar tristes e se

Page 131: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

acabam ficando, ela busca mostrar como isso não é viável nas crianças. Se não é dada

essa possibilidade para a criança de poder ficar triste, sofrer, ter conflitos, dificuldades,

então Luciana não consegue escutá-la nas suas necessidades. A história de vida das

crianças também não têm lugar nessa dinâmica onde todos devem ser felizes e livres

de tensões.

No discurso de Sueli, parece existir mais lugar para os conflitos e dificuldades

das crianças. Ela diz: “Então tem isso, os conflitos que você tem que administrar no

decorrer do dia, do tempo, e ai vai” e “Ele vai se estruturar, ele vai se... vai cair, mas vai

estar sempre se levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal.” Existe a

possibilidade de haver deslizes na vida do sujeito bem como dificuldades. Entretanto, é

inegável também o incômodo de Sueli diante desses conflitos, quando diz que o sujeito

sempre estará superando as dificuldades. No discurso de Luciana chamou a minha

atenção a grande quantidade de vezes que proferiu a expressão “Olha que legal!”. Já

na entrevista de Sueli aparece muitas vezes a expressão: “Então eu fico pensando, eu

me pergunto...” Penso na hipótese de existir para a educadora social mais espaço para

a frustração e para a falta; no entanto, ressalto não excluir por isso a presença de um

intenso conflito quando se depara com essas questões. A idéia de uma felicidade plena

e ausente de conflitos é mais presente na fala da mãe social.

Um último aspecto é importante apontar. Sueli relata trabalhar no abrigo durante

uma carga horária de 12 horas, diferente de Luciana que trabalha 24 horas. Luciana

considera importante permanecer junto com as crianças durante o dia inteiro e Sueli

acredita muitas vezes, apesar de considerar um tempo extenso, faltar tempo para

realizar todas as tarefas necessárias. Diante disso, é evidente um desejo e vontade de

ambas em suprir todas as faltas do sujeito; o tempo não parece nunca suficiente e o

trabalho só é eficaz se realizado em tempo integral. Porém, Sueli está mais “protegida”

desse desejo pelas condições institucionais do seu emprego.

Page 132: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

CONCLUSÃO

Esse estudo indagava sobre as possibilidades de subjetivação das crianças e

adolescentes em situação de abrigo. Essas crianças institucionalizadas são afastadas

do convívio familiar e passam a viver num ambiente coletivo, com todas as implicações

e diferenças, um ambiente pouco usual à maioria das crianças. Seus vínculos e

investimento afetivo não se restringem, nessas condições, apenas às figuras parentais,

pois na instituição, passam a conviver diariamente com os educadores ou casal social

do abrigo, com todos os outros funcionários e com as outras crianças e adolescentes.

Na dinâmica do abrigo, são os educadores ou a mãe social os responsáveis pela

educação e cuidado das crianças, pelo estabelecimento e acompanhamento de sua

rotina e com quem se relacionam diretamente.

Este trabalho buscou investigar justamente a influência e o papel desses

profissionais na vida dos sujeitos abrigados por serem estes profissionais

representantes e mantenedores do ambiente onde a subjetividade será tecida. Na

tentativa de compreender o papel do educador social e da mãe social, ouvimos desses

profissionais como significam e vivenciam o seu trabalho e como compreendem

elementos importantes da vida da criança.

Os resultados, mais do que fornecerem respostas, nos levaram a muitos

questionamentos. Primeiramente, através dos discursos da educadora e da mãe social,

pudemos pensar no fato desse trabalho não se caracterizar simplesmente por uma

mera execução de tarefas; ao contrário disso, estabelece-se um vínculo muito intenso

entre os sujeitos abrigados e esses profissionais, sendo o afeto implícito na relação.

Dessa maneira, acabam representando figuras de investimento afetivo significativas e

fundamentais na vida dessas crianças e adolescentes. Por esse motivo, a maneira

como se colocam e investem é fundamental. Aqui representam o ambiente emocional.

A partir do vínculo profissional acabam envolvendo-se intensamente na relação

com as crianças o que implica experimentar o desabrigamento de forma ambígua. No

Page 133: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

entanto, é fundamental que não se perca de vista o caráter provisório do abrigo definido

pelo ECA11. Nesse sentido, deveria haver um espaço de reflexão e supervisão dentro

da instituição onde essas dificuldades, ansiedades, medos, etc da mãe social e da

educadora social pudessem ser discutidas e acolhidas. Quando um abrigo não

consegue desabrigar uma criança está fracassando no cumprimento de seu principal

objetivo definido pelo ECA.

A questão do desabrigamento e as diferenças neste processo nos levam a

pensar na diferença existente entre as funções de educadora e de mãe social. No papel

de educadora e não de mãe substituta, o lugar parece ser mais claramente definido e a

ambigüidade menos evidente, sendo o desabrigamento vivido como tal. Quando se

coloca como mãe substituta, a sensação é de perder um filho. No entanto, já vimos

como isso não garante a ausência de ambigüidade e dificuldades inerentes ao

processo; apenas torna-se mais claro e menos confuso para todos os envolvidos

(educadores, crianças e adolescentes). No caso da mãe social, a situação fica mais

complexa se levarmos em conta o fato da instituição fornecer autorização para que a

mãe social se coloque no lugar de mãe e não há depois um amparo suficiente que dê

conta dos conflitos despertados pelo desempenho desse papel.

Ainda em relação ao vínculo estabelecido entre esses profissionais e as crianças

e adolescentes do abrigo, podemos pensar na questão da definição dos papeis

desempenhados por eles. A ambigüidade presente nas relações intimas e privadas e ao

mesmo tempo profissionais entre esses sujeitos faz com que a função que estabelecem

e o lugar que ocupam sejam indefinidas. As crianças chamam a educadora social pelo

nome ou por “tia” e chamam a mãe social de “mãe”. Essas possíveis denominações

auxiliam ou dificultam a todos envolvidos na definição dos papeis; entretanto, é

11 “O acolhimento em abrigo é considerado uma medida provisória e excepcional, utilizável como forma

de transição para o posterior retorno à família de origem ou para a colocação das crianças e

adolescentes em famílias substitutas” (artigo 101 – Parágrafo Único do ECA).

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importante ressaltar que mais do que uma questão de denominação, é fundamental a

postura e a consciência do profissional diante de sua função. Nesse caso, acredito ser

menos confuso para as crianças e para o profissional se está no lugar de educadora da

criança e não no de mãe substituta. Muitas crianças mantêm relações e um vínculo

forte com sua família biológica e é importante que isso seja mantido. Colocando-se no

lugar de mãe dessas crianças, pode-se deixá-las mais confusas em relação a seus

sentimentos, além de dificultar a elaboração de suas histórias. Precisam entrar em

contato com a falta da mãe e do pai, com seu contexto atual de vida, e com sua

história. Quando a mãe social se coloca como a “mãe” deles, a possibilidade dessa

resignificação fica impedida. Como afirma Marin: “Coloca-se portanto como fundamental

para quem trabalha com o abandono se conscientizar de que as faltas vividas não

poderão e aliás não deverão ser totalmente preenchidas.(...)” (1990, p. 36)

O modelo familiar como ideal na subjetivação do indivíduo está presente no

discurso tanto da educadora, quanto da mãe social. Entretanto, é possível verificar na

mãe uma tentativa mais intensa de reproduzir esse modelo no abrigo, diferentemente

da educadora que parece questionar esse aspecto e enfatizar a importância do abrigo

como um modelo alternativo. A idéia de desempenho de funções materna e paterna

pelos educadores e casal social, ao invés de tentarem ser concretamente o pai e a mãe

da criança, parece mais apropriada ao estabelecimento de uma ambiência saudável

para as crianças e adolescentes. Há aspectos importantes do desenvolvimento infantil

que as mães podem nos ensinar e em relação a estes Winnicott nos diz:

Nós, como as mães, precisamos saber a importância: da continuidade do

ambiente humano, e do mesmo, modo, do ambiente não humano, que auxilia a

integração da personalidade do indivíduo; da confiança, que torna o comportamento da

mãe previsível; da adaptação gradativa às necessidades cambiantes em expansão da

criança, cujo processo de crescimento a impele no sentido da independência e da

aventura; da provisão para concretizar o impulso criativo da criança (1983, pg. 67 -68)

O mesmo autor (2005) dá uma contribuição fundamental para desmistificarmos

essa idéia de que a família é sempre o ideal e a instituição é um mal necessário, na

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medida em que considera que as crianças que viveram em lares insatisfatórios, viveram

a desintegração da família ou constantemente o perigo de dissolução desse lar,

necessitavam na verdade experienciar pela primeira vez um lar primário e não um

substituto para seus lares. Ou seja, não precisam necessariamente ser encaminhadas

para uma família substituta e nem retornar à família de origem, mas sim que sejam

acolhidas num ambiente que lhes dê as bases para seu desenvolvimento.

Esse ambiente suficientemente bom, postulado por Winnicott, implica nos

educadores e casal social poderem entrar em contato com o contexto real das crianças,

reconhecer as dificuldades delas e os limites da instituição e da influência que exercem

na vida das crianças. Para isso, é necessário o reconhecimento das diferenças – do

abrigo e da família – e assim, abrir-se a possibilidade da discussão e da reflexão sobre

sua prática (Nogueira, 2004). Prendendo-se ao modelo familiar como única alternativa

possível, fica muito complicado proporcionar um ambiente saudável nos abrigos.

Nos discursos da mãe e da educadora social ficou evidente a maneira como se

relacionam com a família biológica das crianças; há uma intensa rivalidade entre a mãe

social e a biológica, o que acaba criando um ambiente hostil para a criança, colocando-

a numa posição de ter que escolher e decidir a todo momento “quem ela ama mais”. No

caso da educadora social foi quase inexistente a presença da família biológica no seu

discurso, o que nos leva a pensar na hipótese de não haver um lugar para esta na

instituição. É como se a instituição entendesse que sua tarefa é outra e suprisse tudo.

Os lugares, os objetivos e as funções de todos envolvidos na vida das crianças e

adolescentes precisariam ser claros e definidos para ser possível uma relação de

parceria e não de rivalidade. A família biológica precisa ter um lugar de acolhimento na

instituição visando romper com uma visão maniqueísta onde a instituição é “boa” e a

família é “má”. Isso contribuiria para que a criança pudesse elaborar seu luto. Segundo

Winnicott (2005),

Cuidar de crianças pode ser um trabalho árduo e desgastante, pode ser sentido

como uma verdadeira tarefa de guerra. Mas ser privado dos próprios filhos é um tipo

Page 136: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

bem miserável de tarefa de guerra, que dificilmente terá algum atrativo para qualquer

mãe ou pai, e somente poderá ser tolerado se o seu aspecto infeliz for devidamente

levado em conta. Por essa razão, é necessário realmente fazer um esforço para

descobrir o que sente uma mãe destituída de seus próprios filhos. (pg.39)

É necessário um espaço de discussão e esclarecimento das funções dos

educadores e mães sociais. Segundo Nogueira, “Tal profissional tem um papel

fundamental na realidade dessas crianças e só uma definição precisa de suas funções

garantirá que elas possam se desenvolver de forma saudável e integrada”. (2004, pg.

65)

A dificuldade de escutar e acolher as histórias de vida das crianças, presente nos

discursos da mãe e da educadora social, nos leva a pensar em algumas questões

também nesse sentido. As crianças e adolescentes institucionalizados viveram

concretamente as angústias básicas humanas, ou seja, o desamparo, a necessidade de

afeto e amor, o medo da perda, angústias essas vividas por todos nós no campo da

fantasia. O contato direto com essas questões aponta para a necessidade de um

espaço de reflexão desses sujeitos quanto a sua prática tendo como problemática o

desenvolvimento infantil, o contexto social dos educadores e das crianças e

adolescentes, dentre outras. Se esse espaço de discussão não existe e nem está

previsto, a tarefa desses profissionais fica muito mais difícil no que tange por exemplo a

aceitação da frustração bem como toda sorte de dificuldades implícitas nesse trabalho.

Nesse momento, é importante retomarmos a concepção de educação de Paulo

Freire, vista em capítulo anterior desse estudo. A idéia fundamental é pensarmos numa

educação na qual educador e educando se sintam fazendo parte do processo. Para

isso, levar em conta o contexto social no qual ambos estão inseridos é condição básica

para a formação de sujeitos libertos e não alienados. Considerar, nesse sentido, o fato

de todas as crianças abrigadas estarem vivendo um luto é muito importante. Em relação

às perdas e lutos nas crianças, nos diz Winnicott (2005): “Estas coisas podem ser muito

profundas, e difíceis de curar; não obstante, é importante que não contribuamos para o

estado desconfortável da criança, recusando-nos a permitir-lhe a tristeza e

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desesperança reais, e mesmo idéias autodestrutivas que se relacionam diretamente à

grave perda que ela sofreu.” (pg. 65)

Essa dificuldade esteve presente mais intensamente na fala da mãe social do

que na fala da educadora e penso que isso pode estar diretamente relacionado com a

função que cada uma visa ocupar na vida das crianças: uma a mãe e a outra a

educadora. Inclusive deve-se considerar a questão da carga horária definida

institucionalmente para cada uma: 24 horas e 12 horas diárias de trabalho. No caso da

mãe, busca-se suprir todas as faltas, ser uma instituição completa “sem buracos”, total!

(o dia inteiro com a criança!) e garantir-lhe novamente algo muito importante que

“perdeu”: uma nova mãe. Assim, acredito haver menos espaço para a frustração,

principalmente das crianças e adolescentes. No caso da educadora, a jornada de 12

horas já ajuda a colocar o limite necessário: terá um tempo considerável com ela, mas

não é completo. O abrigo coloca-se como seu ambiente de trabalho e garante-lhe uma

vida intima e pessoal extra - instituição, contribuindo inclusive para uma concepção de

trabalho baseada na incompletude institucional (pressuposto da inserção na rede social,

levando em conta que a instituição não é capaz de dar conta de todas as necessidades

do indivíduo).

Entretanto, essa questão institucional não garante a qualidade do atendimento,

podendo ser apenas uma primeira condição importante. Cabe lembrar o lapso da

educadora quando afirmou ser a mãe de uma das crianças e no fato do trabalho ser

tomado como uma missão quase divina, tanto pela educadora quanto pela mãe social.

Winnicott coloca como função fundamental do ambiente suficientemente bom ser capaz

de depois de uma período de ilusão, gradativamente frustrar a criança concedendo-lhe

assim a possibilidade de encontro com o objeto não-eu, portanto, encontro com a

exterioridade. A boa mãe é a mãe que ilude para depois desiludir. E isso parece ser

mais possível em um modelo que não busque cobrir todas as faltas da criança.

Talvez também essa diferença entre a educadora e a mãe social se relacione

com uma questão apontada por Nogueira: “(...) ao ser colocada no lugar de mãe, que

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deve ser ‘abnegada’, a necessidade de formação e suporte para o trabalho que

desenvolve fica ainda mais distante. ‘Mães’ não são formadas para tal exercício, uma

vez que o instinto se encarrega de ajudá-las (...)” (2004, pg. 126)

A falta de um reconhecimento social do trabalho é apontada por ambas. Vêem-

se satisfeitas e motivadas a partir das mudanças e progressos observados nas crianças

e adolescentes. Se estes obtêm “sucessos”, a educadora e a mãe social sentem-se

realizadas, do contrário, sentem-se fracassadas. Na verdade não enxergar “resultados”

não é sequer vislumbrada pela mãe social. Já a educadora, enxerga essa possibilidade,

porém não sem conflitos; inclusive, atribui os resultados indesejáveis a um não

aproveitamento por parte do sujeito das condições dadas pela instituição. Nesse

sentido, acreditamos estarem mais envolvidas com a própria satisfação pessoal; as

crianças precisam corresponder às expectativas desses adultos para se sentirem

acolhidas e aceitas e acabam não sendo ouvidas em suas reais necessidades.

Inclusive, a capacidade de identificar as necessidades das crianças no momento

(identificação), postulada por Winnicott (1983), implica em um sujeito atento à realidade

e à história da criança. Ele diz:

Devemos nos organizar de modo que em cada caso haverá alguém com tempo e

inclinação para saber o que a criança precisa. Pode-se saber isso na base de alguém

conhecer a criança. A identificação com a criança não precisa ser tão profunda como a

da mãe com o recém nascido (...) (pg.68)

Portanto, mais uma vez, verificamos a importância de um outro que se importe

com a criança em sua vida e não necessariamente da mãe e do pai substituto. Para

isso, justifica-se mais uma vez a importância de um espaço de reflexão desses

profissionais para que possam trabalhar questões pessoais e profissionais evitando que

projetem tão maciçamente suas necessidades pessoais nas crianças e adolescentes.

Cabe ainda trazermos para esta conclusão a questão da falta de formação

profissional apontada pela educadora e pela mãe social e talvez essa carência seja o

elemento que permeia, no geral, as indagações desse estudo. Ambas descrevem trazer

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para a prática nos abrigos referências e experiências pessoais como base do trabalho.

E isso não poderia ser diferente tendo em vista a inexistência de uma teoria que defina

e se preocupe com essa prática. Essa falta de identidade social aponta para a

necessidade imprescindível de uma formação profissional que busque uma

instrumentação da função de educador e mãe social, garantindo uma proposta

educacional para os abrigos, opondo-se a uma postura assistencialista, onde prevalece

o amor e a vontade como norteadores do trabalho. Inclusive esses elementos

somando-se à necessidade de dedicação, foram aspectos apontados pelas

profissionais como fundamentais no exercício do trabalho em abrigos. Como aponta

Guará (1998), o atendimento antes fornecido às crianças e adolescentes em situação

de risco era baseado na missão. Verifica-se essa mentalidade ainda presente,

demonstrando com isso que além de uma mudança estrutural, como proposto no ECA,

é fundamental uma transformação ideológica. As competências profissionais só podem

se desenvolver se tiverem uma base teórica em saberes específicos da área de

atuação.

Chegamos nesse momento a uma questão crucial: quais os fatores que levam a

instituição abrigo a não exigir uma formação profissional? Qual é o imaginário projetado

nessa instituição? Uma resposta possível a essa questão é o imaginário social e cultural

que gira em torno da família. Resgato Brasiliano (2005):

O conceito de família constitui-se (...) em um desses elementos simbólicos muito

valorizados em nossa sociedade. Adquire uma importância inquestionável e é uma

estrutura intensamente presente em todos nós. (...) A família é, portanto, o primeiro

referencial que encontramos, em nossa cultura, para a formação de vínculos. (pg. 107)

Sendo a família tão valorizada socialmente, as crianças, impossibilitadas por

diversos motivos do convívio com seus familiares, têm um lugar no contexto social de

exclusão. Nossa reação imediata é sentir pena do abandonado; pensá-lo como um

coitado, impotente, incompleto e, assim, busca-se resgatar e recuperar para ele tudo

que perdeu. (Marin, 1990). Entendendo-o dessa maneira, parece ser suficiente um

atendimento baseado no amor, no cuidado e na dedicação. Uma ideologia alternativa

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valorizando outras relações humanas além das familiares poderia ser uma possibilidade

interessante no trabalho em abrigos. (Brasiliano, 2005)

Enfim, é possível pensar, nesse contexto dos abrigos, nas crianças e

adolescentes sentindo-se abandonados; na instituição e nos educadores e mães

sociais também se vendo abandonados frente a falta de recursos e técnicas

profissionais, falta de reconhecimento social, de investimento, buscando dar conta do

abandono e de tantas outras questões angustiantes para todos nós e tão presentes

nas suas vidas cotidianas. Retomemos as entrevistas, onde possibilitamos a esses

profissionais um tempo de reflexão; falaram durante horas, o que está intimamente

relacionado às necessidades de falarem e pensarem sua prática. Esse fato ressalta a

importância de um espaço de discussão.

O trabalho do psicólogo pode ser então pensado como o de possibilitar um

espaço de retaguarda institucional para o educador e casal social poderem discutir e

refletir sobre a função desempenhada por eles e como podem suportar a dor do outro.

Pensar também em uma formação especifica e profissional desse trabalho junto a

outras áreas do conhecimento, rompendo com uma ideologia assistencialista e

moralista, para que possam ser para as crianças e adolescentes em situação de abrigo

um ambiente suficientemente bom. Isso significa garantir-lhes uma continuidade;

confiança no mundo e nas relações humanas; adaptar-se gradativamente às suas

necessidades e depois ser capaz também de frustrar e acolher sua subjetividade em

construção bem como suas particularidades e fazer com que sejam reconhecidas na

rede social. Com isso, possibilitar uma escuta e um acolhimento para as histórias

particulares dos sujeitos de abrigos, que apesar de todas estarem na condição

institucional de abrigamento, essas condições não os homogeneíza. Segundo Temer

(2005),

A realidade social que se mostra tão determinante da problemática psíquica do

paciente, não pode sair do seu lugar de fundo. Caso contrário, corre-se o risco de

reduzir o paciente a um problema social e perder de vista sua singularidade. A figura

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deve se manter no sujeito – na esperança de que o paciente possa se constituir como

um sujeito apesar desta realidade (p. 88)

Garantindo no abrigo um espaço transicional uma fábrica de palavras e idéias,

uma espécie de usina de criação tanto para os educadores quanto para as crianças e

adolescentes, tornar-se-ia possível instrumentar esses profissionais a ajudarem as

crianças e adolescentes na construção de um presente decente, cuidando dos aspectos

do cotidiano considerados insignificantes por muitos mas de capital importância para

que cada um possa sonhar e alicerçar seu futuro.

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Referências Bibliográficas

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Anexos

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Anexo 1

TERMO DE CONSENTIMENTO

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Eu, ______________________________________________________, R.G. nº

________________, atesto que a minha participação no Trabalho de Conclusão de

Curso, da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

da aluna Maria Lacombe Pires, é voluntária.

Fui informado (a) e entendi com clareza que o objetivo desse trabalho é

investigar qual a representação e compreensão que o educador social ou mãe social de

abrigo tem das marcas e influências do seu trabalho na vida das crianças e

adolescentes institucionalizados. Para tanto, tenho consciência de que estou sendo

submetido (a) a uma entrevista na qual fornecerei informações a respeito de minha

experiência, assim como concordo que a mesma seja gravada e transcrita para análise

dos resultados.

Fui informado (a) e também entendi com clareza que as informações coletadas

serão utilizadas para formação cientifico – profissional desta aluna, sendo garantido

total sigilo das mesmas. Sei que meus dados de identificação não constarão no

relatório a ser produzido.

São Paulo, ___ de ___________de 2006

_______________________________________________

(assinatura)

Anexo 2 Entrevistas na íntegra

Mãe social Luciana E: Entrevistadora

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L: Luciana E - Pra começar, eu queria saber, se você puder me falar um pouco, desde de quando que você trabalha como mãe

social?

L - Há três anos e meio eu estou aqui. É... três anos e meio.

E - E o que te levou pra este trabalho?

L - Eu nem sabia que existia esse trabalho de mãe social. Eu vi, meu marido viu um anúncio num jornal e eu achei

interessante. Aí nós fomos ver como é que funcionava isso. Eu me interessei bastante pelo trabalho; e entramos no

processo de seleção, e ficamos aqui. Eu achei bem interessante. Eu acho que é a minha cara, eu me encontrei.

E - O que você acha desse trabalho, que é a sua cara? Quando você viu o anúncio, o que é que foi que te

interessou? O que você achou que pudesse ter a ver com você?

L - Porque, na época, eu trabalhava fora, eu trabalhava numa escola, e eu era ajudante geral na escola. Mas eu

sentia muita falta de estar mais perto dos meus filhos, dos meus filhos biológicos. Aí, quando eu vi esse anúncio, eu

pensei: olha, de repente eu posso estar com eles - quando eu fui ver o trabalho, como funcionava, porque me foi

falado tudo isso.

E eu achei interessante isso.

Como eu não conhecia antes, eu não imaginava como era. Porque, no caso, quando a gente chega aqui, é

totalmente diferente, porque você, cria-se um vínculo muito forte.

Isso aqui não é um trabalho normal como outro. Você conhece as crianças, conhece a personalidade de casa um,

sabe das necessidades de cada um, da história de cada um; então, chega um dia que vira mesmo uma família,

porque você quer mais melhorar o seu trabalho, melhorar a cabeça, sabe, fazer com que a criança consiga ser feliz,

mesmo com as experiências anteriores, mesmo com a história. E é um trabalho muito complexo, você está mexendo

com reeducação, na verdade. Educar já é difícil, eu acho que reeducar é um pouquinho mais ainda; você tem que

começar, tem que ter um entendimento.

Eu acho que eu cresci muito como pessoa nesse tempo todo aqui. Eu acho que eu aprendi. Eu acho que aprendi

mais com eles do que eles comigo, nesse sentido.

E - Muito bom.

E os seus filhos moram aqui junto com você?

L - É. Os meus filhos e o meu marido. A minha família veio toda pra cá.

E - Entendi.

L - Isso que também é muito bom. Porque você está com a sua família, você está bem, né. E aqui forma-se mesmo,

chega muito próximo de uma família, chega muito próximo mesmo.

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Apesar de... Eu tive uma família com, a minha mãe teve 9 filhos, então não fica muito diferente. Hoje eu estou com

11 crianças, então eu já vivi isso antes. Pra mim fica mais fácil.

E, hoje, eu sei muitas coisas do que a minha mãe passava lá atrás. Porque, na época, quando a gente está, a gente

não entende; então eu acho que foi um crescimento pessoal muito grande também.

E - Você gosta bastante, então?

L - Bastante. Eu me encontrei aqui.

Eu acho que, as pessoas falam: "ah, você tem... ah, meu dom é cantar, o meu dom é escrever, encontrei meu

dom...". E eu ficava pensando: 'caramba, mas e o meu dom, qual é?' Porque eu gostava de muitas coisas, mas hoje

eu sei que o meu dom é ser mãe. O meu dom é estar alí, é estar indo junto com a criança: "não, olha por aqui.

Vamos conversar. Olha..."

Sabe, o meu dom é esse. O meu dom é trabalhar pelas crianças.

E - E o que você acha que são as maiores facilidades nesse trabalho?

L - Facilidades?

E - É. Você está dizendo que é um dom pra você; então, não sei... Talvez, o papel de mãe seja uma facilidade pra

você exercer? O que é que você acha que é mais...?

L - Fácil... (risos)

Eu acho que tudo o que você faz com vontade, você faz com amor, fica fácil, tudo fica fácil.

De repente, você tem uma comunicação legal, você consegue olhar nos olhos, sabe, expressar o que você está

sentindo e que o outro expresse o que realmente está sentindo, pra que você poder estar ajudando naquilo

realmente.

Eu acho que eu tenho facilidade pra comunicação. Eu tenho um sexto sentido forte, então, isso eu acho que são

coisas minhas. Então, eu olho, eu já sei: "olha, você não está legal; senta aqui vamos conversar.." Ou aprender a

respeitar o tempo certo, a hora certa.

Eu acho que isso são facilidades. Eu acho que eu fui adquirindo também no decorrer do tempo, com a experiência,

errando aqui, acertando alí - porque também ninguém é perfeito. Mas você vai adquirindo experiência, adquirindo,

sabe, conhecendo mais.

Hoje, aqui, eu olho pra cada criança, eu sei mais ou menos o que ela está sentindo, o que é a necessidade dela. E

isso você vai com a experiência, mesmo com filhos biológicos, você vai conhecendo mesmo, sabendo como é o

coração, como ela se comporta, quais os sentimentos reais dessa criança. Eu acho que você descobrindo isso fica

muito mais fácil, porque você vai logo no ponto.

Tem criança que, você conversando, ela pede, ela mostra pra você no olhar: 'olha, eu estou precisando isso'. Não

precisa nem falar: 'olha, eu estou precisando de carinho. Olha, não briga comigo agora, por favor.' Ou: 'olha que

legal!'

São coisas que, com a experiência, com a experiência aqui eu fui aprendendo.

E, hoje, eu acho que eu olho e fica bem mais fácil pra mim por isso, porque eu olho e eu sei. Eu sei no olhar da

crinaça - pelo menos nos daqui, né. Não sei os outros. E eu sei o que ela está precisando da vida naquele momento.

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E - E o que você acha que é difícil nesse trabalho? Tem alguma coisa que você acha que pra você fica um pouco

mais difícil?

L - Não é que é difícil, assim, é... É o que eu acabei de falar, de repente você conhece a criança - porque aqui tem

adolescente também, tem duas adolescentes.

E - Até quantos anos?

L - Até 18 eles ficam aqui.

E - Ah, eles ficam até 18.

L - Eu tenho 2 de 17. Eu peguei elas com 13 e 14 anos.

Então, você olha assim, mesmo com adolescentes, mesmo com as dificuldades... Difícil? O que é difícil? Meio

complicado, não é. (emocionada)

E - Quando eles partem é uma coisa difícil?

L - É.

E - Posso encostar um pouquinho aqui?

L - Claro.

Eu vou pedir pra eles...

E - Não, imagina. É só porque a gravação depois a gravação fica depois...

L - Mas aí eles vão lá na frente. Posso pedir pra eles brincarem lá na frente.

(risos)

E - Não quero atrapalhar.

L - Eu acho que nada se torna difícil mesmo(ênfase). Eu acho que é um meio termo, não é uma coisa que você fala

ai é uma coisa difícil. (?) ...isso mesmo de você conhecer.

É claro que tem criança que fica mais difícil, porque você está entrando mesmo no coração, de você estar sabendo,

conseguindo com que ela coloque pra fora os sentimentos reais, aquela coisa. Mas, ainda assim, com jeitinho você

vai, você vai conseguindo, com carinho, com amor. Sabe aquela coisa de estar conversando e, de repente, você

consegue demonstrar e fazer com que a pessoa confie em você de fato, pra estar passando isso pra você, sabe.

Eu acho que também não é difícil. Quer dizer, eu não acho que tem difícil, difícil. Eu acho que tudo é o trabalho que

você vai realizando e, de repente, vai obtendo resultado, vai obtendo sucesso da sua parte, da outra demora um

pouquinho, isso que é o difícil, né, demorar mais um pouquinho. Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê

que deu resultados.

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Então eu acho que é assim.

Eu (?) nesta instituição, é uma instituição muito boa. Eu acho que eles têm, eu acho que eles têm uma preparação

pra vida, boa! (ênfase) Eu acho que aqui tem uma preparação pra vida boa, eu acho que eles dão condições pras

crianças, pra mãe social, pra gente estar realmente ajudando, realmente guiando pra um futuro legal, um futuro bom

pra eles.

Então, assim, como a instituição tem cursos aqui. É porque tem aula de música, tem informática, tem... Nossa, tem

recreação pras crianças, tem um projeto cultural que tem um passeio todo mês pras crianças. É uma instituição que

está mesmo preocupada e com condições pra estar guiando esta criança pra um futuro legal.

Tem a pedagoga, tem a assistente social, uma equipe técnica pra estar auxiliando nas dificuldades maiores da mãe

social. Eu acho que isso é bom também, isso ajuda também.

Eu acho que eles sabem disso, eles têm consciência do que eles estão vivendo, e eles gostam, eles se sentem

seguros, é isso que eu acho legal.

E é sim, é sim uma família. Eu posso hoje, eu falo, é uma família de verdade. Uma família como todas as outras

famílias, com dificuldades, com experiências marcantes, com felicidades plenas, sabe. Eu acho que toda família tem

a sua deficiência em algum sentido, independente que seja biológica ou não. Eu acho que isso a gente consegue

passar pra eles, isso é legal, essa coisa de família mesmo, dele sentir. Eu acho que isso é bom.

E - Eu ia pedir agora pra você, L, me contar um pouco de uma criança. Você pode escolher uma criança assim, não

precisa me falar o nome, nada.

L - Nossa, menina! Tem tantas. (risos)

E - Tenta escolher uma.

L - Vou pegar o Willian. O Willian era quem estava lavando a louça quando você chegou. O Willian, ele teve uma

vivência complicada, desde que a mãe dele tinha problemas psicológicos. Ela saía e, de repente, retornava grávida

pra casa. Como ela tinha problemas psicológicos, ela fugia do hospital... Foi uma história bem, bem, acho que bem

complicada. E ele veio pra instituição, ele tinha 4 anos de idade; hoje ele tem 12.

E - Olha! Já está há bastante tempo.

L - Ele veio com problemas psicológicos fortíssimos também. A mãe morreu faz 5 anos, morreu com AIDS.

Eu acho que é uma história bem triste a do Willian, mas é alegre também ao mesmo tempo. Hoje, né!

Ele tinha problema, ele tomava remédio controlado pra agressividade, pra pensar. E hoje você vê, eu vejo ele assim,

eu falo: nossa! Sabe. Ele passa com a psicopedagoga, ele está estudando numa escola da Prefeitura - coisa que, eu

achava que um dia fosse acontecer, mas muita gente olhando pra ele não acreditava.

Eu acho que é isso que eu falei pra você, de a gente conhecer mesmo as capacidades, de onde, o que que a

criança, onde ela consegue chegar, mostrar e conseguir mostrar, e conseguir tirar isso dela. Eu acho que isso é que

é o legal, o bom, de você ter essa oportunidade, quando você está no dia-a-dia, você tem a oportunidade de estar:

"olha, você pode cara! Você é inteligente sim!

Não deixa a vida fazer isso com você, é você quem vai guiar a sua vida!" E conseguir mostrar isso pra eles, e eles

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conseguirem assimilar, e dizer: "pô, eu posso ser feliz! Eu vou mudar a minha história!" Isso é que é legal, que eu

posso passar isso pra eles.

E o Willian está num processo, ele está nesse processo de descobertas: "eu posso! Eu sou inteligente sim! Eu tenho

capacidade sim! eu tenho dificuldades em algumas coisas, mas tem outras que eu tenho mais facilidade, então eu

vou atrás dessas que eu tenho mais facilidade. Não vou deixar as dificuldades vencerem." E ele está assim, nesse

processo hoje, ele está aprendendo as palavras, está aprendendo as palavras... Quando, quase 4 anos atrás, eu

cheguei aqui, a psiquiatra falou pra mim, que ele passava por uma psiquiatra, e ela falou pra mim que ele nunca iria

conseguir aprender o nome dele, escrever o nome dele. Hoje ele escreve o nome dele.

Então, é uma vitória, pra caramba. Eu participei disso, eu estou junto. São coisas que, pra mim, isso é uma

realização; pra mim e pra ele ao mesmo tempo. É bem isso.

Hoje ele está com 12 anos e sabe, é um rapazinho muito legal, é uma pessoa que você olha, todo mundo gosta dele,

você vê no olhar dele que ele é feliz. É isso que apóia e completa, eu acho. Eu, no caso, a mãe social.

Essa é a história do Willian. Eu ainda tenho, vai ter muita história pra contar dele daqui pra frente.

Mas, ele deu uma melhorada muito grande. O Willian, ele está crescendo intelectualmente, ele está surpreendendo,

eu acho. Gosta de computador, gosta de consertar as coisas, brinquedos que ele mesmo quebra, ele vai lá e

concerta; quer dizer, essa é uma capacidade que ele tem. De repente, ele pode ser uma mecânico, né! E aí?! (risos)

A gente não sabe. Mas a gente trabalha pra isso, a gente trabalha pra mostra pra ele que ele pode, que ele vai.

E eu acredito mesmo que ele vai conseguir sim, se sustentar um dia, ele vai conseguir casar, vai conseguir, sabe, ter

uma família. É isso.

Está bom?

E - Está ótimo!

Você poderia falar um pouco mais de como você enxerga o seu trabalho nessa melhora do Willian? O que você acha

que ajudou?

L - Eu acho que foi uma junção de tudo. Eu acho que foi uma junção da instituição, eu acho que... Porque, na

verdade, a gente se uniu; pedagoga, psicóloga, a mãe, a psicopedagoga, então assim, a professora da escola, a

gente, nós fizemos uma junção pra estar ajudando ele, cada um fazendo um pouquinho. Porque, é aí que eu falo, o

clima familiar, isso ajuda muito, a segurança - isso, a parte minha, né -, ajudar nesse sentido, de harmonia, união,

respeito, de participação mesmo, de estar colocando: "olha, você pode!" Essa coisa toda: - "você é inteligente! Pára

com isso!" Pra eles saberem da capacidade real. Eu acho que tudo isso ajudou.

O meu marido, como pai, sabe. "Não, vamos cara, você consegue!" Eu acho que a família, o ambiente familiar nesse

caso ajudou muito. Eu acho que faz crescer intelectualmente.

Eu acho que eu tive uma participação nesse sentido, de estar buscando, de estar falando, de estar passando

informações, de estar, eu acho que ele pode isso... (ruído) Eu acho que ele tem capacidade, vamos testar, vamos

mostrar pra ele! Sabe, de acreditar mesmo que vai. Eu acho que é isso, você acreditar, eu acho que você não pode

desanimar nunca, nunca, nunca, nunca! Nesse trabalho você não pode desanimar nunca, eu acho que sempre tem

que acreditar e estar explorando as capacidades de cada um.

Eu acho que é isso. Eu acho que isso ajudou muito, auxiliou muito.

Eu falo: "eu sou feliz, hoje, assim." Eu acho que, na verdade, eu sempre fui feliz, sempre tive... (risos) Mas, hoje, eu

me sinto realizada, que é bem a minha cara mesmo.

É o que eu falei, eu acho que eu descobri que tenho o dom de ser mãe.

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E é legal você ver, de repente assim, o retorno. Porque, quando a criança está feliz, a criança, ela vai bem na escola,

ela tem convivência com a sociedade melhor, ela consegue expressar aquilo, de expressar o que está sentindo de

uma maneira legal, ela consegue ter um respeito maior pelos outros; eu acho que tudo isso é consequência do que a

criança está passando, do que ela está vivendo, do que ela está sentindo. Você começa a ver as melhoras daí, e

isso é uma satisfação pessoal muito grande, você está vendo que o seu trabalho está fluindo, ele está indo.

E, de repente, no dia das mães aqui, passado - cada criança tem sua história aqui, e tem crianças que têm mães

biológicas, têm mães que deixaram um tempo de estar vindo e agora estão retornando, cada uma tem uma história,

tem crianças que não têm mãe mesmo, não têm família. No dia das mães - E, né? - vieram 8 presentes pra mim. E o

que foi engraçado, que eles ficam com dificuldade: "pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe

biológica, minha mãe biológica, mas eu não queria dar pra ela." Ou: "ai mãe, o que que você acha, dou pra minha

mãe biológica?". Eu falo, gente, olha cada um tem que fazer o que está no coração. Se você quer dar pra sua mãe,

dá pra sua mãe. "Ah, mas você não vai ficar chateada." "Não, não vou ficar chateada, pode ir lá e dar pra sua mãe."

Aí, ela, de repente, chega na escola: "olha, eu quero fazer dois desse aqui, porque eu tenho duas mães." (risos) Eles

falam essa coisas e é engraçado, porque a professora: "mas, como têm duas mães?" Porque, realmente, como eu

estou com eles 24 horas, os professores, tudo, só conhecem eu como mãe. Não sabem da história. Porque eles não

se sentem muito à vontade pra estar falando muito da história deles pra qualquer um. Eu acho também que isso não

tem nada a ver, ele estar falando, olha é isso, é aquilo. Se eles se sentem preparados pra estar comentando, tudo

bem, aí é uma coisa dele, se não, a gente respeita."Ah, mas a sua mãe não é a L?" Eles olham assim, ai, lá vem

outra história. (risos)

Mas, é engraçado isso, dessa coisa.

E é engraçado, porque, como eu tenho 9 crianças na mesma escola, então, são os mesmo presentes. Nove

presentes, tudo igualzinho, é... (risos) Os 9 presentes. (risos) E eu falo: "quê legal!"

Porque cada dia é um dia. Eu fico... tudo eu assim, mimo (?), tudo eu dou risada, ou eu vou e...

Assim, cada, tem 9 da mesma escola. Ontem veio um bilhete da escola, eu tenho que ler os 9. (risos) Os 9 bilhetes, a

mesma coisa: "ah, tá legal! Olha, a professora mandou esse bilhete!" (risos) Uma professora, eu já sei o que está

escrito alí.(risos) Mas, de repente, se eu não leio o de um: "mas, você não leu o meu bilhete."

E que são coisa que você vai aprendendo mesmo com a experiência.

Esses dias, eu estava brincando, e eu tenho mania, estava conversando com o meu marido e eu tenho mania de

escrever, escrever o que eu estou falando, ou alguma coisa que me chame a atenção, e eu comecei a escrever o

nome das crianças daqui, assim sem pensar, sem raciocinar, sem imaginar o que eu estava fazendo; daí eu peguei,

escrevi o nome deles todo, e escrevendo o nome de cada um, nisso veio a Efigênia, olhou todos os nomes dali, e a

minha sorte é que eu tinha escrito o delas também, porque ela procurou o nome dela e não achou, e ela falou: "mãe,

você não escreveu o meu nome aqui. Por que você escreveu o nome de todo mundo e não escreveu o meu?" Aí é

que eu fui me tocar, nossa, eu estou escrevendo o nome de todo mundo! Já me deu um frio na barriga, eu falei, pô

não escrevi o da Efigênia. E aí eu fui olhar e o nome dela estava lá. "Efigênia, o seu nome está aqui, você é que não

achou. " Aí ela olhou: "ah, é mesmo mãe."

A gente vai vendo nos pequenos detalhes a importância de você estar mesmo... Eu acho que eu iria me sentir muito

mal naquele dia se eu não estivesse escrito o nome da Efigênia.

São coisa que...

E - Porque seria um filho que não iria estar alí...

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L - Talvez, na cabeça dela ela pense assim. Eu perguntei pra ela: "mas, se eu não tivesse escrito o seu nome não

teria problema, eu estou escrevendo aleatório, uma coisa que não está vindo." "Não, mãe, é porque todos aqui você

está escrevendo porque você está pensando neles, se eu não estivesse falando, você não estaria pensando em

mim." " Mas isso poderia estar acontecendo, de eu não estar pensando em você naquele momento; ou, de repente,

saber que você está bem, que você não tem necessidade de eu estar..." Não, mãe, mas você não precisa se

preocupar comigo, só lembrar de mim sempre."

São coisas que você, a gente (?), o pequeno detalhe, uma coisa que de repente pode fazer uma diferença muito

grande - nesse caso, faria. A Efigênia é sensível, uma pessoa muito amável, gosta das coisas muito certas, cobra

muito, de estar fazendo as coisas, de estar indo bem na escola, de arrumar uma mesa direito, de estar limpo

realmente, sabe. Ela é bem assim. Ela é exigente com ela mesma. E ela, nessa exigência com ela mesma, ela exige

dos outros; e exige da mãe, exige do pai, das crianças.

Alí eu percebi, conheci mais a Efigênia, uma coisa que eu não imaginava.

Pequenos detalhes que vem vindo no dia-a-dia que você vai aprendendo como lidar, e vai descobrindo a

personalidade mesmo, você vai descobrindo a capacidade da criança. Isso é o mais importante.

E - E já aconteceu, L, de quando você estava trabalhando, de uma criança ser desabrigada?

L - Já.

E - Já aconteceu?

L - Com o Gabriel. Ele tinha 2 anos quando ele foi desabrigado.

Eu tive que trabalhar isso em terapia, porque...

E - Você (?) (risos)

L - É, eu trato.

Porque o Gabriel, quando ele foi, parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo. Foi como se... Também, eu

tinha 8 meses de trabalho, quando ele foi embora com a mãe dele, e parecia que eu estava entregando o meu filho

mesmo, eu me senti assim perdendo um pedaço de mim naquele dia. É muito triste. Porque, ao mesmo tempo que...

Depois, eu trabalhei isso em terapia, e aí a gente vai compreendendo melhor. Porque quando, compreendendo que o

melhor pra criança é realmente estar com a mãe, que aqui, de repente a criança pode ficar com a família biológica,

vai ter uma estrutura melhor, eu acho que o sangue fala também em alguns momentos, eu acho que (?), mas, nesse

caso de estar com a família.

Eu trabalhei isso em terapia porque eu não aceitava isso. Eu achava que eram todos meus filhos, era toda uma

família, que não poderia estar tirando - isso, dentro de mim, um conflito dentro de mim. E, hoje, eu estou mais calma

em relação a isso. Eu acho que é porque eu sei que eles vão estar bem com a família também. Eu acho que eu

consegui.

E - Deve ser difícil mesmo. Imagino como deve ter sido.

L - É complicado, é muito complicado.

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Eu estou com duas crianças que, talvez, no final do ano vão embora com a mãe e eu já estou me preparando desde

já pra não sofrer tanto, pra não sentir um vazio. Eu aprendi muito quando o Gabriel foi embora, o Gabrielzinho foi

embora, essa perda, e eu trabalhei como lidar com essa perda dentro de mim.

Hoje eu já estou mais calma. No dia-a-dia eu já me policio, eu já...

No caso dessas duas que vão sair, eu já estou: 'calma, L, calma. Elas não são suas filhas, elas vão estar bem com a

mãe, com o pai, vão estar com a família. Você fez a sua parte, você fez o que você pode.' Tem que ficar com a

consciência tranquila, está tudo certo, a vida está seguindo o seu curso, e é bom que siga. É isso.

E - E como é que as crianças trazem no dia-a-dia a história delas, de vida? Como é que você percebe isso?

L - Porque a criança é mais fácil de você estar, a criança não mente, a criança é natural. Às vezes pega na parte

psicológica, às vezes você sente uma criança triste. Esses dias a Valéria chegou pra mim e falou: "mãe, eu queria

que você fosse a minha mãe de verdade." E ela tem lá. "Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu

queria ter nascido da sua barriga, o que é que eu faço?"

E - E como, e o que é que você responde numa situação dessas? (risos)

L - De repente a criança pega você de saia justa. Gente, como pode, o que é que eu vou falar agora? Eu falei pra

ela: "eu acho que você já tem que agradecer pela sua vida, acho que você não nasceu de dentro de mim é porque

não era pra ser. Mas eu estou aqui, oh! É engraçado, né, eu estar aqui junto de você e não era pra você nascer de

dentro de mim. Olha que legal! Eu dei um jeito, de um jeito ou de outro, eu estou na sua vida. Não importa se você

nasceu de dentro de mim ou não. O que importa é que a gente está junto, que você pode contar comigo, e que eu

tenho você hoje, e que a gente está sendo feliz hoje, sabe. Eu aprendi muito com você e você aprendeu muito

comigo, mesmo." "Mas eu não ensino nada, eu sou criança." "Você é uma criança, mas você é uma criança

inteligente, você ensina eu a tirar, a mostrar esse meu lado criança também que eu tenho." E eu acho que isso é

saudável. Eu acho que... " Olha, que legal, mãe, eu não sabia. Quer dizer, então, que eu faço você ser criança?"

(risos) "Você me faz entender como é ser criança."

Apesar de que também eu sou uma criançona, gosto de dançar, gosto de pular, andar de bicicleta, brincar de futebol.

Eu acho que eu sou uma criançona também, mas não tanto quanto eles.

Daí eu falo: "Valéria, você é tão feliz! Você criança, você não tem responsabilidade nenhuma. Quando a gente

cresce, é ruim por isso, a gente fica com muita responsabilidade, a gente tem muita coisa pra fazer. Hoje mesmo, só

penso em brincar, brincar, brincar, e eu não posso parar e brincar, brincar, brincar. Eu tenho que lavar a roupa,

porque se eu não lavar a roupa, como é que você vai brincar, não dá pra você brincar pelada." (risos)

A gente vê como foi história deles, eles colocam nesse sentido. A gente vai mostrando que, olha aproveita as

oportunidades, vê o que em aí à sua frente. É legal, aqui você o seu armário, a sua parte - porque é tudo

separadinho -, você tem a sua cama, é sua a cama!

Ela tem a sua família. Ela me chama de mãe desde que ela chegou: "ah, minha mãe, minha mãe, minha mãe!" E é

engraçado, quando a gente vai visitar a mãe biológica, aí ela fala: "mãe, olha, a minha mãe falou..." (risos) A gente

fica meio assim. Mas eu já estou acostumada e a mãe dela também. E é tanto, porque, por exemplo, pra mãe dela

eu precisei provar, provar assim, mostrar pra mãe dela que eu queria ajudar. Porque muitas mães acham que a mãe

social quer pegar os filhos dela, entendeu. Eu cheguei várias vezes pra conversar com a própria mãe dela e falar: "eu

estou ajudando a sua filha pra quando você pegar ela. Pra mim é legal você pegar ela, você levar ela pra casa,

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porque pra mim o importante é estar com a família, é estar com o pai, a mãe, uma família estruturada. Isso que é o

legal." Depois de um tempo a mãe dela começou a entender e, hoje, ela fala: "nossa, L, ainda bem que tem você."

E isso também é gratificante. Porque você vê que a mãe biológica está feliz por a criança estar com a mãe social, e

sabe que a criança está sendo bem tratada, sabe que a criança está feliz.

Essa mãe agora, o juiz está liberando pra ela estar levando as crianças no final de semana pra casa. Então, todo o

final de semana ela está levando as crianças pra casa. As crianças vão na sexta e voltam no domingo, à tarde. As

crianças vão comentando, eu fico imaginando, elas comentam daqui pra lá e de lá pra cá; aí a mãe fala: "ai, que bom

estar com você L. A Efigênia já tem você como uma mãe mesmo."

E sabia que é uma parceria. Porque a gente está ajudando também pra que vá, mas vá com uma formação melhor,

vá bem, pra própria mãe continuar o trabalho que a gente está fazendo.

E - Mas, às vezes, você sente que fica um conflito pra criança?

L - Pra criança? A gente trabalha isso?

E - E pra mãe?

L - Não. Hoje não. Hoje não tem, não existe mais. Como no caso dessa mãe. Mas existiu. Quer dizer, a gente tem

que também fazer um trabalho com relação a isso. Mostrar que a gente está ajudando mesmo, mostrar o papel que a

gente está fazendo, sendo bem transparente. E eu acho que é isso que ajudou no caso da mãe dessas meninas.

É o que eu falo, quer dizer, eu acho que é fruto de um trabalho. É a comunicação, é você estar pensando, é você

estar alí com a sua preocupação. Hoje ela fala: "ainda bem que tem você. Ainda bem que você é a mãe social das

crianças. Ainda bem que você está aqui. Ainda bem. Eu vou levar os meus filhos e eu sei que eles vão estar bem

quando eu levá-los."

Eu acho que isso também é uma realização, quando chega a mãe biológica de uma pessoa - eu estou falando no

caso, porque tem várias histórias, no caso da Efigênia e a Valéria.

E - Elas são irmãs?

L - São.

E - Ah, tá.

L - No caso dela, no caso da mãe.

Porque tem mães, é tudo mães diferentes. Eu tenho mães biológicas que são diferentes.

No caso da mãe da Efigênia e da Valéria, as meninas vieram pra cá porque ela tinha surtos psicológicos, ela saía,

não sabia onde ia, ficava perdida; ela não queria ir no médico, tinha que tomar remédio, e ela não tomava remédio,

tinha que estar fazendo terapia e ela não fazia. Muitas coisas ela não entendia, não se conformava das crianças

terem vindo pra uma instituição, ela não se conformava de o juiz ter tirado as crianças da guarda dela, não se

conformava, e não fazia nada pra melhorar essa situação. Simplesmente queria, queria e queria. "Não vou deixar

meus filhos aqui, não vou deixar." Eu achava que, na época, até isso mexeu um pouquinho também com ela, de ter

perdido as crianças. De, de repente, chegar a assistente social e falar, de estar fazendo um trabalho de: "olha, os

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filho são seus. A gente precisa de uma família estabilizada pra criar essas crianças. Se você está sofrendo tanto

assim, vai e se cuida. Vai num psiquiatra, toma todos os remédios, faça as coisas direitinho, sempre passo a passo,

que eles vão voltar pra você. Ninguém está querendo tirar os seus filhos definitivo. A gente só está tirando por um

tempo pra estar ajudando eles e você, e ajudando a você também."

Isso é importante estar mostrando pra mãe biológica - no caso dessa mãe. Porque também tem outras que as

crianças vieram pra cá porque a mãe foi presa; então são completamente diferente os casos, cada história é uma

história.

No caso dela, de repente ela começou a fazer, passar no psicólogo, e ela começou a tomar os remédios direitinho,

como tinha que tomar; e, hoje, o psicólogo deu o parecer pra ela, que ela está boa, que ela está apta a cuidar dos

filhos dela, e que ela tem condições.

Isso também é uma vitória. Você vê isso, você vê a família se unindo de novo, você vê essa possibilidade de novo.

Mesmo eu sofrendo porque as meninas vão embora, eu sei que elas vão estar bem com a mãe, com o pai, que a

família, hoje, está mais estruturada, que, hoje, eles podem estar dando um pouquinho mais de carinho, de amor, de

consciência, aquela consciência de dever dos pais, da família em si. Elas vão, vai ficar um vazio muito grande, mas

elas vão ficar com a família delas. E eu vou estar sempre por perto, andei armando o meu esquema pra estar

conversando com as meninas, pra estar falando um oi de vez em quando, pra não perder esse contato.

O vínculo fica muito forte também. É uma coisa muito louca, essa coisa de (?). E tanto da parte deles como da

minha, da minha como da deles, eles estão, um exemplo, no Natal eles vão passar as férias na casa da mãe, e aí...

E - Todos?

L - Não todos.

E - Todos os que têm a mãe biológica?

L - É. Os que têm a mãe biológica e os que o juiz liberou pra estar passando as férias. Daí eles ligam e falam: "eu

estou com saudade, mãe!" Quer dizer, está do lado dos pais e está falando: "ai estou com saudades! Eu estou bem,

estou no parque agora. Eu pedi pra minha mãe pra ela ligar pra você."

No Natal, a mãe, a própria mãe biológica liga e fala: "as crianças estão querendo falar com você." Feliz Natal, e tal,

Feliz Ano Novo! Eu acho que tudo isso é uma coisa bem legal.

No Natal do ano passado eu estava um pouco chateada, dia 24, porque a casa estava vazia, e eu não estou

acostumada com casa vazia, sempre foi aquela bagunça, criança correndo, criança brincando, e a televisão e o

rádio, aquela coisa, de repente, foram 6 crianças passar as férias, o Natal e Ano Novo na casa da mãe, e eu andava

nessa casa e falava, gente como pode a casa vazia. Aí, de repente, me ligou os meninos, começaram a me ligar:

"oh, tia, olha, eu quero te desejar um Feliz Natal pra você. Olha, a gente está bem aqui, eu só queria falar pra você

que a gente está bem." Uma coisa que eu não lembrei de pedir, quando foram eu não pedi pra ligar, mas ligaram e

isso que é a alegria, e eu falei: "nossa, que bom, que bom!! E isso já vale, só falar um pouquinho, você já tira essa

coisa de dentro do coração. É bem forte.

E - Imagino que deve ser. (risos)

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L - Eu acho que tudo isso são experiências muito grandes na vida. É por isso que eu falo, depois que eu vim pra cá,

quando (?), de estar mais próximo, mais perto, isso faz mudar até a própria vida da mãe social mesmo. A mãe social

passa a se conhecer mais também. Quando você está mostrando pra alguém a capacidade que ele tem, você está

pensando, caramba, eu também tenho, sabe. Isso daí é uma troca, é recíproco. De repente, você aprende a se

conhecer melhor, a... Eu não sabia, antes de vir pra cá, que eu tinha tanta paciência, eu não sabia. Hoje eu olho

assim e nossa! Eu vindo pra cá, eu também me descobri. Eu tenho paciência; gente do céu!

Às vezes, eu, está aquele monte de criança tudo gritando, brincando, aquela coisa, eu olho e, vamos arrumar uma

brincadeira pra, com menos bagunça: "ai, eu estou com um pouquinho de dor de cabeça." Eles falam assim: "vamos

ajudar a mãe, vamos falar mais baixo, vamos falar mais baixo." Assim, de você saber como chegar. Eu não sabia

que eu era assim, eu não sabia que eu tinha essa paciência, que eu tinha essa capacidade.

E eu falo pra eles até mesmo a minha história, de eu não saber que eu era assim, então, a gente não se conhece, e

eu mostro pra eles a experiência que eu tive, de eu não sabia e vocês também podem não saber. De repente a gente

pode explorar outras coisas juntos. Você é um desenhista e você não sabe? E até eu aprendi isso quando eu vim pra

cá. Eu cresci muito também como pessoa.

É o que eu falo, hoje, eu me sinto realizada. Porque hoje eu me conheço melhor, eu sei das minhas capacidades, eu

sei o que eu quero. E isso já tem o que? Quatro anos. Antes eu sabia também, mas eu não tinha essa certeza.

E - Então, você enxerga também uma marca de na sua história também?

L - Também!

E - Bastante. Você estava me contando que você consegue neles também o jeito como o seu trabalho ajuda eles -

quando você estava contando do Willian também... E é legal porque também tem o outro movimento, eles deixam as

marcas deles em você também.

L - Todos. É incrível.

É o que eu falo, duvido! Cria-se mesmo, não tem como. E é uma marca mesmo, isso aqui é experiência pro resto da

vida. Eu acho que tanto na vida deles como na minha. Eu tenho 2 filhos biológicos aqui, e você olha assim, você não

sabe quem são os meus filhos. Você cria uma, uma, tão junto, fica tão junto que você mesma não sabe. Chega uma

hora que nem eu sei. (risos) É muito louco. Só você vivendo mesmo.

Igual, o pessoal fala assim - eu sou casada há 13 anos -, e aí o pessoal fala que você tem que viver o casamento pra

você saber como é; e aqui é a mesma coisa, você tem que viver, estar aqui pra você saber como é...

LADO B

continua L - ... no dia-a-dia mesmo para você saber, como é que funciona, como mexe mesmo, uma coisa de estar

mesmo no dia-a-dia, é uma coisa muito interessante. É uma experiência única, ótima!

Quando chega - tem o coral, que eles fazem parte, música e tal -, gente, e eu tenho aqui 8 crianças que participam

desse coral.

E - Nossa! Bastante, né.

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L - É maravilhoso o coral! Você vê, lá, eu fico toda vez... Lá, vai ter uma missa agora, em junho, e eles vão

comparecer, as crianças vão cantar. E você olha assim, crianças cantando, com aquela... É muito emocionante! É

uma coisa indescritível. Eu fico olhando, gente, como pode. E, depois, bater palma, sabe. Lindo! Eu sou bem assim:

"Ehhh!!". Eles olham de lá - ainda bem que estão acostumados com o meu jeito. (risos)

Mas é mesmo. De repente você olhar, assim, e ver isso, e ver a satisfação deles quando você fala: "que lindo! Estava

legal!" Eles vêem. Porque criança não é boba. Eles vêem nos seus olhos a felicidade que você está sentindo, o que

você está sentindo alí na hora, e eles retribuem automaticamente. É uma coisa incrível esse negócio, essa vida, a

vida em si. E retribuem: "Valeu!" E eles: "que bom!" E eles tentam melhorar a cada passo, a cada novo ensaio,

aquela coisa de vou melhorar. É maravilhoso!

Tem o Gabriel aqui, de 6 anos, e ele ficava, porque tem a professora quando eles estão cantando, e aí fica assim, e

o Gabriel estava com o prato na mãe e ele ficava assim... (gesto) ...olhando pra professora, olhava, e quando a

professora fazia: "tum!" Ele "tum" com a professora. Muito engraçado.

Quer dizer, são coisas que você, é único isso, não tem como você descrever. Eu acho que é isso.

Eu acho que essas coisas simples fazem com que você cresça mais e faz com que você se realize. Eu acho isso. É

muito bom, muito bom!

É claro que, às vezes, a desobediência. Ontem mesmo... Na semana passa um frio, um frio, um frio; e eu tenho dois

aqui que são viciados em futebol. Começaram a ficar, a Efigênia ficou gripada, Valéria ficou gripada, Gabriel ficou

gripado; e aí, eles chegam em casa às 5h 30 (17h 30), e estava um frio do caramba.... será que eu posso...

E - Imagina. Pode falar. (risos)

L - Eu falei com eles: "olha, gente, vocês estão ficando gripados, porque fica pegando esse vento, vai brincar alí fora.

Não é legal."

Geralmente eu dou o jantar aqui às 7 horas (19h), depois de 7h, eles vão, tomam um banho e vão assistir TV. Mas,

até então, eles ficam brincando. Eu falei: "enquanto estiver esse frio, eu não quero vocês brincando lá fora." De

repente, eu olho lá, estão o Lucas e o Edivaldo, estavam brincando lá fora; uma garotinha e eu alí, sabe: "gente do

céu, mas eu não falei pra vocês. A Valéria doente, tomando remédio, vocês querem ficar desse jeito?" "Ah, mãe,

deixa eu brincar lá, mãe." Sabe, assim, e eu: "não vai brincar." Daqui a pouco, eles foram de novo, no outro dia. Eles

entraram nesse dia, tudo bem, quando é no outro dia foram de novo, esqueceram, foram de novo. Eu falei: "ah, é,

vocês estão de castigo, pode sentar aqui, ficar pertinho de mim, eu sei que vocês me amam mesmo." E faz bico e....

"eu sei que vocês me amam, pode ficar aqui comigo, me olha enquanto estou fazendo janta."

E, isso, pra eles já é um castigo. "pô, a mãe fez isso, a mãe colocou eu pra ficar lá perto, olha..." Aí passa um e fala:

"você está de castigo, você aprontou." Eles ficam loucos. "Vocês poderiam ter se livrado dessa" - eu falo pra eles.

(risos) "Ah, mãe, não é legal." "Eu sei que não é legal, é por isso que vocês estão ai. Da próxima vez que eu falar,

ouçam o que eu estou falando, porque eu estou falando por vocês, pra vocês, eu estou protegendo vocês mesmo.

"Tá bom." Daqui a pouco passa, assim, uns 10, 20 minutos, aí eu olho e falo: "e aí, conseguiu colocar na cabeça?"

"Consegui. Você vai deixar eu brincar?" "Não, brincar não. Assistir TV." "Não, não é lá fora não mãe. Agora a gente

vai brincar aqui dentro." (risos)

Essas coisas é que você olha, é engraçado depois que passa. Na hora eu fiquei até um pouco irritada, na hora em

que eu vi lá fora de novo, um vento do caramba.

Viciados. Eles são viciados em futebol.

E - É legal porque tem um limite também. A regra.

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L - Limite. Regras. É uma família e toda família tem a sua regra. Toda família tem que impor limites. E criança pede

limites - não, não pode. Até porque a gente está criando eles pro mundo, e o mundo tem limites. Eu acho que tem

isso.

Quando eu falei que a instituição é uma ótima instituição, é também esta questão de estar colocando limite, de ser

mãe, de estar educando mesmo. 'Olha, é falta de respeito isso, cara, não é legal. Pensa bem." Eu coloco eles num

lugar, eu falo: "se coloca no lugar dela, e se fosse com você que tivesse acontecido isso, o que é que você faria?"

Eles olham assim... É difícil se colocar no lugar do outro, mas tenta, quem sabe você consegue. É muito isso. Vou

sempre mostrando, senta aqui. Eles não gostam quando eles vão lá, sentados comigo, alí, porque eu vou falando,

conversando, explico: "sabe por que é que você está aí? E aí, o que é que você acha disso?"

Outra coisa que eu faço também é: você acha que eu estou errada? Eu falo pra eles: "você acha que eu estou

errada? Então me convença de que eu estou errada. Se vocês conseguirem me convencer eu mudo de idéia. Eu

prometo." É engraçado, porque eles tentam me convencer.

E - Eles se esforçam ao máximo. (risos)

L - E às vezes conseguem.

"Eu acho que eu mereço isso por causa disso, disso e disso. Eu estou indo bem na escola, tudo bem que eu dei uma

falha..."

Aqui, eu bato muito na tecla da escola. Pode até errar em outras coisas. Eu vou, e falo, essa coisa toda. Mas a

escola eu acho que tem que ter, porque o futuro deles é a escola; eles aprenderem e tal. Então, eu bato muito nessa

tecla. Eles sabem disso. Eles sabem que o mais importante, pra mim, é que eles vão bem na escola. Tenha respeito,

tenha nota, tudo, tudo, tudo. "Tudo bem, eu falhei aqui, eu deixei a minha blusa jogada alí, isso não é legal, mas eu

estou indo bem na escola, a professora não tem reclamação."

E - Eles tentam compensar de outro lado. " Tudo bem fazer isso..." (risos)

L - Está certo. Mas, pô, será que você não consegue também colocar a sua blusa no lugar?

"Tem 11, só criança, já pensou se cada um deixa uma blusa num lugar, jogada. Não dá. A gente só vai viver pisando

em blusa, pisando nas coisas aqui. Eu acho que tudo tem que ter uma organização, uma coisa, legal. "Vamos fazer o

seguinte, pega a sua blusa, guarda no lugar; veja seu armário, se está arrumadinho, bonitinho. Isso é pra você. Olha

que legal!" Aí eles olham: "não convenci, não deu." (risos)

Mas é bem engraçado, é bem legal. Eu acho que é isso que vale. É a família isso.

Tem umas 3, tem 3 de 10 anos - você imagina, 10 anos, já estão ficando tudo mocinha -, e aí eu falo... Estão ficando

mocinhas, não querem mais que a gente entra no banheiro junto, aquela coisa. Daí eu falo: "eu sou sua mãe, pô, eu

tenho direito. Eu sou mãe." Ela fala, elas falam: "mas, mãe, quando você vai tomar banho a gente não entra no

banheiro pra ver você." Porque, às vezes, eu quero entrar no banheiro pra pegar uma escova, e não abrem. "Eu

estou tomando banho, eu já saio." Às vezes eu quero alguma coisa mais rápido, aí elas falam: "oh, mãe, mas quando

você está tomando banho a gente não entra no banheiro pra ver você." "Não entra porque não quer." "Ah, então

pode?" "Não, vamos deixar o jeito em que está." (risos) Elas me convencem, tudo bem eu vou esperar. Tá bom. Elas

me colocam e daí eu coloco elas , eu acho isso engraçado. "Mas, olha, nunca vão esquecer que a responsável aqui

sou eu. Soou eu e seu pai. Tudo bem, você está me convencendo, está certo, está legal, mas a responsável..." E

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elas "tá bom, tá bom." Eles tentam me ganhar no papo. Isso que é legal, eu tento ganhar eles no papo e eles tentam

me ganhar no papo também.

E - No fim, isso... Tem coisas que são bastante gostosas desse trabalho, bem...

L - Nossa! Com certeza. Até mesmo com os adolescentes, porque adolescente que é mais complicado de você

chegar e falar, que já vem aquela coisa de eu quero sair, eu quero isso, eu quero, eu acho que eu tenho direito. Eu,

ah, você tem mesmo, você tem os seus direitos, mas liberdade a gente conquista, a gente não vende, a gente não

compra, a gente conquista. Você acha que você tem idade e responsabilidade pra estar fazendo isso, então me

prova que você tem responsabilidade pra estar fazendo isso. Eu vou me sentir muito feliz em te dar essa liberdade

que você está querendo. "Você pega pesado." (risos)

E - Eles falam? (risos)

L - "Você pega pesado. Não vale isso." (risos)

Eu bato na mesma, mesmo com os adolescentes, a escola. Principalmente com os adolescentes. A escola, a escola,

a escola. "E aí, será que você merece mesmo sair? Qual foi a nota que você tirou em geografia no bimestre

passado? Você conseguiu recuperar?" Já vem - as duas, que tiram notas boas na escola -, já vem: "olha aqui tia,

olha aqui tia a minha nota." Eu falo: "legal. Eu estou com responsabilidade. Eu posso ir numa festa alí?" 'Claro, você

está bem, tem que ser divertir mesmo." Eu acho que adolescente é isso, adolescente está se descobrindo, está

conhecendo o mundo, aquela coisa de, eu acho que tem mesmo que sair, se divertir, mas eu acho que tem que

merecer.

Eu acho que qualquer mãe, com qualquer filho, sendo biológica ou não, vai querer saber onde o filho está. "Oh, tia,

hoje eu vou numa festa." Onde é esta festa? Com quem você vai nesta festa?

Mesmo, independente de ser daqui ou não, eu sou uma pessoa que me preocupo muito. Quê horas que você vai

voltar? Você pode voltar até 11 horas da noite?. Vai estar se divertindo mesmo? Você vai nessa festa pra se divertir?

Saber as pessoas que estão na festa, eu procuro saber tudo. É o que eu falo, tem que se divertir sim, mas tem que

se divertir com responsabilidade, você tem saber o que você está fazendo de fato. "Vai tia, vai, vai, eu vou com a

mãe de uma amiga." "Me dá o telefone da mãe da amiga, só pra eu ter certeza."

Às vezes o adolescente fala, eu não dou criança. Eu falo, imagina, isso é uma preocupação pessoal mesmo, não é

que eu estou... (risos)

E - Não tem nada a ver com você, né.

L - É só pra saber. É só pra ter certeza de que você vai voltar inteira, vai voltar bem, realizada, feliz, é só pra isso.

Imagina que eu estou pegando no seu pé. Eu estou até soltando, eu estou até deixando você ir, olha que legal.

É assim mesmo. Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o que tirar.

E - E a história da vida deles, como você acha que interfere no seu trabalho? Você acha que interfere de alguma

forma? No lugar, no papel de mãe social deles?

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L - Aqui também eu sou realista com eles. Cada um conhece a sua história, cada um, eu acho que tem que ser

assim, cada um sabe o por quê de estar aqui, cada um... Isso, cada um sabe porque está aqui. Se eles vêm

perguntar, eu respondo. Eu também, no caso, não gosto de mentira. Nossa! É muito feio isso. Mentira, mentira, não

é legal de forma nenhuma. Eu me preocupo também com isso, eles não, às vezes você omite alguma coisa, eu me

preocupo muito com isso mesmo, em omitir, porque eu acho que eu estou dando o exemplo pra eles; então, se eu

fizer, eles vão se achar no direito de fazer também. Eu me corrijo sempre, todo dia, pra estar passando pra eles uma

imagem, uma pessoa de, uma pessoa passando isso pra eles, pra eles poderem retribuir também. Eu acho que é

muito isso. Eu acho que como eu passo isso, eu sou muito realista, eu sou muito de conversar -já percebeu, eu falo

pra caramba, né... (risos)

E - Mas eu estou adorando. (risos)

L - Tô vendo...

Como eu sou muito de conversar, a gente vai, aí é que, olha, você viveu isso mesmo, e daí a gente tem como

amenizar isso. Isso daí é parte da sua história, não vai ter como apagar isso, tirar da mente aquela coisa, mas você

vai poder mudar isso se você quiser.

Eu já fico passando essa responsabilidade pra eles desde pequenos. Você pode mudar isso, a sua vida, hoje não,

hoje você está sendo cuidado porque você é criança, mas vai chegar um dia que a sua vida vai depender, única e

exclusivamente, de você. Daí você vai fazer o que você quiser. Você vai poder mudar a sua história, você vai poder

ter os seus filhos, casar, formar uma família, e você vai fazer a sua família do jeito que você quiser. Olha que legal!

Eu acho que isso vai, eu vou mostrando pra eles que eles têm condição, ou de repente você não quer casar, você

quer estudar muito, você quer, ganhar dinheiro, você não quer ser pobre. Pô, vai filho, corre atrás. Eu acho que tudo

o que você quer de verdade você consegue. Mas tudo é com luta, tudo é com determinação, você tem que estar

indo. Você não vai ultrapassar, você não vai pular etapas, você tem, cada fase tem a sua fase, então você tem que

fazer as coisas direito desde hoje, pra quando você chegar lá em cima, você olhar pra trás e falar, olha, eu tive essa

vida, mas eu mudei a minha vida porque eu quis mudar. Eu fui atrás, eu fiz isso pra mim e hoje eu consegui. É aí que

vai a parte da confiança, da capacidade que você vai mostrando: olha, você pode, se você quiser, você pode. Porque

não é só você dar responsabilidade, você tem que mostrar que pode, mostra que é capaz. Mostrar.

Isso é um aprendizado diário. É uma sementinha que você vai colocando hoje, você vai colocando, e de repente,

amanhã ou depois, você vê o resultado. Eu falo pra eles: "mesmo se vocês forem, um dia, se vocês forem com a

mãe de vocês, mais cedo ou mais tarde, eu fiz parte da vida de vocês também. Cada um cada fez parte da minha

vida, da minha história." Eu mostro pra eles que eu também sou um ser humano, igual a eles, mas com

responsabilidade, que eu sou responsável por eles, mas que eu também tenho os meus sentimentos, eu também

sofro quando a mãe sofre, eu também tenho as minhas aflições. Então, eu não sou diferente. Não é porque eu sou

mãe que eu sou a super star. Eu falo: gente, eu não sou super star, eu não sou assim, eu não sou estrela. "Ah, você

pode fazer..." Não, eu não posso fazer, eu ainda, com 36 anos, eu tenho limites na minha vida, porque senão eu vou

ferir alguém, magoar alguém, ou mesmo eu, que seja. A vida inteira tem isso. A sociedade impõe limites, o mundo

impõe limites. Então não tem como. Eu não faço o que eu quero, hoje. Porque seu quiser sair pelada no meio da

rua, o pessoal vai me prender porque eu sou louca. Eu falo isso. (risos)

É mesmo. Eu falo isso. Às vezes pros adolescentes, às vezes ela fala assim: "ah, um dia eu vou poder fazer tudo o

que eu quero." Eu falo: "engraçado, se um dia você fizer isso, então, por favor, me dê a receita, porque eu não posso

fazer o que eu quero." "Você não pode por que?" Porque eu tenho que dar satisfações pro meu marido, eu tenho

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que, quer dizer, a gente vai guiando a vida do jeito que a gente acha que é legal. Mas não é assim, pensou? Eles

olham assim: "ai tia, viu!"

Eu tento mostra isso pra eles no dia-a-dia, e tento não deixar - aí é que está o psicológico, porque tem coisas que

marcam mesmo, não tem jeito. Tem histórias que marcam mesmo, não tem jeito. O que eu tento fazer é amenizar

essas histórias, mostrando que eles podem mudar a história deles. Eu acho legal isso. Uma coisa minha, porque eu

mudei a minha história.

Eu conto os meus problemas pra eles também. Eu também tive uma família complicada, eu também sofri pra

caramba. Então, eu acho que mostrando a minha história também, muitas, muitas delas, e eu estou aqui, eu estou

feliz, eu guiei a minha vida pra onde eu queria que fosse. Hoje eu estou aqui com vocês por que? Porque eu quero.

Porque eu estou feliz.

Então, são exemplos também.

E - Muito bom, L. Adorei a entrevista.

L - Que bom.

E - Tem alguma coisa que você gostaria de...?

L - Nossa! Depois de tudo o que eu falei? (risos)

E - Pra mim foi ótimo. Mas, alguma coisa que você queria falar, acrescentar? Alguma coisa que eu não perguntei,

que você acha importante a gente falar?

L - Eu acho que não, né.

E - Foi bastante. (risos)

L - Eu te falei tudo. Falei (?) todinho pra você.

E - Foi ótimo, me ajudou muito. Muito obrigada.

L - Que bom. Que bom.

....

E - Só pra aproveitar mais um pouquinho.

L - E aquilo pra você é um desafio, você está vendo a criança, porque às vezes a história dela te pega tanto, de

repente vem uma pessoinha pequena, totalmente desestruturada, que você vai formar, que você vai ajudar a criança

a se estruturar de novo, você vai formando ela de novo. De repente, você olha assim, você consegue ou meio que

você consegue; quer dizer, cada passo que você vai dando, cada vitória que a criança vai tento, é uma vitória sua.

Isso dá uma satisfação muito grande.

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Se você quisesse, melhor, se eu pudesse também, eu te contaria histórias até amanhã, sabe.

E - Tem muita coisa.

L - É muita coisa. É muita experiência. Muito, muito. Histórias maravilhosas, história que você, caramba, de repente

você olha assim, chocantes, que é uma vida que está começando de novo alí, quando vem pra cá. É uma

reconstrução. Você, educar é difícil, reeducar é mais, é um pouquinho mais difícil ainda. Você mexer com a cabeça

de, aquele negócio que eu falei, de você estar tentando entender onde está, o que você pode fazer, qual é o seu

melhor caminho pra você chegar até alí. É fascinante! É muito... E, de repente, você conseguir, você ver que está

dando resultado, é maravilhoso.

Educadora social Sueli E: Entrevistadora S: Sueli E – Desde de quando você trabalha em abrigo como educadora social?

S – Desde 1991. Eu iniciei no abrigo que chamava abrigão.

Page 163: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

E – Abrigão?

S – É assim, quando a gente iniciou, a secretaria iniciava e ai tava abrindo os abrigos e ficava na Mooca então era

um abrigo grande com cento e poucas crianças, unidade mista, então foi ali que eu iniciei o trabalho cheguei de para

quedas fechado e cai ali ne. Eu vinha de uma área totalmente oposta.

E – de que área você vinha?

S – eu trabalhava em empresa de metalúrgica né? Trabalhava em uma multinacional aconteceram uns problemas e

eu acabei saindo e entrei na área social ne? Coisa casual e foi assim.

E – E esse abrigo é bem diferente desse outro né?

S – É muito diferente porque era o inicio, era bem no inicio dos abrigos. Então era assim, coisa que quem tava

entrando não tinha experiência nenhuma. Então tinha uma equipe de coordenação e alguns abrigos e era uma

unidade mista que tava vindo de situação de Febem ne? Então era complicado. (interrupção)

E – E o que que você achava de diferente do seu trabalho nas duas unidades, que são bem diferentes não é?

S – Como assim?

E - Da quantidade de crianças, do trabalho que era proposto?

S – Você fala no inicio?

E – É quando você trabalhava no outro abrigo

S – Era diferente porque era o inicio, então assim, a gente vinha totalmente cru, e as crianças naquela época não

tinham referência, então o que que acontecia, pegava meninos de ruas, drogados, abandonados então era meio

assim que não vamos usar o termo mas era... era meio assim meio lixão. Uma coisa assim que constrangia agente

quanto estava iniciando porque era apavorante ne você tava lidando ali com gente mas a situação que chagava pra

gente era muito difícil. então era complicado porque era um numero grande de educador também todo mundo se

atropelando a gente queria acertar, as vezes não dava, voltava, então tinha isso, uma dificuldade que com o passar

do tempo a gente foi conhecendo melhor o trabalho assim mesmo né? E se adaptando porque no meu caso era uma

questão de ficar ou ficar né? Tinha que encarar aquilo ali de frente porque eu tava saindo de uma empresa da qual

eu tinha saído, tinha pedido demissão e eu tava caindo ali e eu tinha um monte de compromisso e eu tinha então foi

legal que deu pra eu ir descobrindo que eu dava pro trabalho, e foi assim.

E - O que você acha que é esse seu “dar para o trabalho”, esse seu dom?

S – Eu acho que é uma questão de dedicação, primeiramente eu acho que tem que existir amor, se você não tiver

amor assim sabe pra oferecer pra lidar com a situação você se afoga, é estressante, é dolorido, a cima de qualquer

coisa é dolorido, porque são muitos problemas e que você tem que ta...eu acho assim que... não sei se preparada

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mas pelo menos você tem que ta assim como que fala tem que estar disposto né? ceder algumas coisas, brigar por

algumas coisas, então é isso?

E – Por que, são histórias muito difíceis, S?

S – São historias difíceis, né? E ao mesmo tempo muito complicado, muito abandono, muita revolta e isso é uma

coisa que se mistura né? Mistura e você acaba meio que... ou você se deparada com aquilo ali que começa trabalhar

você e todo o trabalha ou então você foge. a gente teve, eu tive casos de companheiro de trabalho de equipe que

chutou mesmo literalmente, teve que sair teve, que se afastar, teve gente que pediu demissão, enfim a gente foi...e ai

foi o tempo foi passando e eu ainda me encontro aqui.

E – E você acha então que é um trabalho que nesse sentido interfere bastante na sua vida?

S – Não. Não interfere, eu tento lidar da melhor maneira possível. Sou casada há vinte e poucos anos, tenho 2 filhos,

na época eu já tinha um, tive uma filha, no período que eu trabalhava lá, fiquei grávida no período que eu trabalhava

lá então, não interfere na minha vida não. E é gostoso porque você aprende muito né? E isso dá um respaldo pra

você também ter tua vida lá fora, muitas coisas que você não valorizava você passa a valorizar muitas das coisas

que você não conseguia encarar você acaba encarando de uma maneira mais leve, menos sofrida. Então a mim não

interfere, né?

E- De certa forma marca sua vida, mas não modifica assim...

S – Marca, não tem como não marcar. Né, não tem como não marcar assim, seria meio que hipócrita falar isso do

passado, (telefone toca) isso não acontece (interrupção)...Que que a gente tava falando mesmo?

E - A gente tava falando um pouco de como marca sua vida pessoal.

S – É não tem como não marcar, não há assim uma forma mágica, apertei o botão aqui fui embora, não, claro, eu

procuro não trazer a minha vida pra cá, o que também é meio impossível e também não levar, mas não tem como,

não se mistura enfim não se mistura, mas não tem como você realmente isolar. Isso não acontece.

E – E qual que você acha assim que é sua principal motivação e interesse no trabalho de educadora?

S – Eu acho que eu gosto, como eu já te falei. Se não gostar, não tiver uma afinidade você vai embora, porque é

difícil e assim, não tem muito retorno. Não há uma... por exemplo, não aparece, o que a gente faz não aparece, é um

ou outro que reconhece, isso desde de o local onde você trabalha até mesmo na sociedade, isso não aparece, então

assim, se a gente fosse fazer uma coisa para aparecer, seria frustrante, então você faz, por exemplo, no meu caso,

eu sinto gratificação no trabalho, eu venho aqui, como trabalhei em outros abrigos, numa boa, encaro meu dia de

trabalho numa boa, é claro que tem momentos que você fica né sufocada mas, quanto a isso não... (interrupção)

E – E qual assim que você acha que são as suas maiores facilidades e dificuldades no trabalho como educadora?

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S – Acho que facilidade é pouco. É bem pouco, seria bem uma coisa assim meio que né...a facilidade...acho que é

assim, o tempo fez com que eu me... tivesse uma coisa assim mais... uma experiência que é difícil mas tem momento

que você acaba meio que dando uns toques e vai, então há dificuldades sim, isso é normal. Independente do tempo,

é difícil porque cada dia você tem uma experiência nova então, não é uma coisa que você tem ai um...vamos ler,

vamos reler e vamos fazer, não, nós lidamos com humanos com pessoas, com gente e com muitos problemas, então

isso é uma dificuldade que cabe a cada um de nós, no dia a dia procurar sair né bem ou... então eu não acho que é

fácil não. É difícil mesmo, e a dificuldade eu acho assim, que o que pega mesmo é quando tem um, por exemplo,

como é uma área que é rotativa né, entra sai criança, aqui não muito, porque é uma abrigo assim, mas é uma das

coisas mais difíceis, a mudança em si, ne? A adaptação pra gente, pra quem chega né?

E – Para as crianças que chegam?

S – É, acho que a maior parte é essa.

E - A adaptação deles aqui na casa?

S – Sim, é o momento mais difícil, porque requer ne muito da gente. Que mais?

E – E eles trazem as historias deles junto com eles né?

S – Sim, não tem como apagar né? É super complicado, você querer apagar e vem né? E ai o que acontece? Aquela

coisa, eles começam a se misturar, as historias se misturam, os problemas aparecem. Então tem isso, os conflitos

que você tem que administrar no decorrer do dia, do tempo, e ai vai, é isso.

E – E agora eu queria pedir pra você me contar um pouco sobre uma criança especifica, de uma criança...

S – Você diz do momento? Ou não?

E – É um pouco sobre ela, eu vou te fazer umas perguntas no geral

S – Você fala criança do momento, por exemplo, especifica desse abrigo?

E – É. Alguma criança que está aqui abrigada agora, e não sei, só pra a gente focar em uma criança.

S – Se a gente fosse falar vários, teriam vários exemplos, mas é assim...você fala no sentido do que? Do que tem

mais apego, do que dá mais trabalho?

E - Não sei, você que pode escolher o critério. A gente pode então fazer de duas, uma que você tenha uma

proximidade maior e uma que você acha que te dá mais trabalho.

S – Quanto a questão da proximidade eu tenho essa facilidade né, de me aproximar, é muito raro eu não ter um

contato legal com ne...sempre tem um mais é muito difícil, então assim aqui não, eu acho assim que com relação a

Page 166: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

proximidade tem umas que você, por exemplo, eu tenho a Ana, que quando eu entrei aqui, ela entrou então, ela

ainda ta aqui no momento, aquela que eu te falei, então ela entrou ela era assim, agitadinha, não aceitava muito o

que a gente falava, as vezes sumia, você procurava ela tava dormindo com o dedo na boca, então era uma coisa que

me chamava atenção ne? Então assim, e fico, ficou ne ai, então como aqui a gente tem questão da pasta individual

que cada educador é quem, quem cuida no caso, ou alguma coisa assim, então a gente acaba relatando todas as

situações, todos os fatos daquela historia. Então ela é uma criança que é bem, é ativa, já tem um desenvolvimento

super bom com relação a aprendizagem, entendeu, com essa coisa de...ela gosta de fazer cambalhota, como ela

fala, então é bem ágil, e ela pega as coisas, então é uma criança que eu tenho muita afinidade, que tem um pouco

de mim ne? A questão da agressividade, de às vezes bater o pé com algumas coisas. Então eu fui isso (risos), então

tem uma afinidade maior assim que quando ela tá às vezes eu chamo, então eu puxo um pouco né? Assim a gente

se identifica. E com relação assim a problema, por exemplo, tem o Eudi.

E – Vamos falar um pouquinho mais dela. Qual que é a historia de vida dela?

S – Da Ana. Então a Ana é o seguinte, a Ana até onde eu sei a mãe morava aqui no João XXIII, era uma família

constituída acho que por 5 ou 6 filhos, que teve problemas com drogas ou alguma coisa, uma das irmãs foi pra

Febem a outra saiu pra rua, então era uma família bem difícil. E veio a irmã mais velha a Suelen, que ficou aqui com

a gente, então era uma menina adolescente explosiva mas de um bom coração ne, ela era agitada e tal, hoje ela não

se encontra mais com agente, ela tinha uma coisa de unir a família. E a Ana vivia num outro abrigo acho que era aqui

em Osasco e ela queria porque queria e ela lutou até conseguir trazer a irmã pra cá. Então foi assim uma coisa assim

né...aquela coisa de garra mesmo, mesmo com as dificuldades dela. A Ana chegou de cantinho assim ainda,

cabelinho bem curto, meio que raspado parece com homem ne e vinha (???) com você parecia um bichinho, num

queria...se isolava de você, e como eu fiquei com a pasta dela eu começava a bisbilhotar ne querer saber alguma

coisa, e ela sempre saia que nem um peixinho, escorregava ne. E como...é aquela coisa que agente conquista no dia

a dia, vem aqui, vamos e assim, eu tenho uma coisa de mexer com... vamos cortar a unha, vamos lavar o cabelo,

então ela... quando chegou quase não tinha cabelo, tinha umas feridinhas tal então ficava aquela coisa do cuidado e

então hoje eu vejo a Ana cresceu, já se cuida melhor, não gostava de tomar banho, não gostava. Ela tinha uma, essa

parte ai você pula porque eu sempre gostei de tomar banho (banho) a gente tem afinidade mas eu gosto de tomar

banho. Ela tinha umas assaduras debaixo do braço, que era questão de higiene mesmo ne? Então ela, foi através

disso né, eu acho que conquistei na questão do cuidado mesmo ne? De estar junto ali, vem aqui, olha aqui, passa

uma pomada, lava bem lavado e o cabelo foi crescendo, hoje o cabelo dela, ela tem o maior prazer em lavar o

cabelo, tanto é que ela pede “você vai lavar o meu cabelo?”, mesmo sabendo, mas ela pede e ela faz, é ondulado e

meio crespo, mas tem uns cachinhos, conseguiu crescer, então é isso.

E – Então você acha que foi mais uma aproximação pelo cuidado mesmo, tem que ter esse cuidado né?

S – Acho que foi. É preciso ne? É preciso porque talvez o que você fala às vezes, eu já vi... com o tempo eu descobri

que falar e expor algumas coisas não funciona. Ela é mais com as atitudes, então eu falo, eu posso encher a bola de

alguém, acho que tem que ter atitude, não basta sabe, perguntar, questionar, perguntar, falar, explicar, na maioria

das vezes pelo menos comigo não tem funcionado. Eu acho que foi isso que levou a uma proximidade maior.

Page 167: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

E – E quanto assim a suas atitudes, por exemplo, qual foi um momento prazeroso pra você quando você estava com

ela?

S – Ah, ver ela bem, assim ne, ver que ela estava feliz porque o cabelo estava crescendo, porque ela já conseguia, já

não existia mais aquela parte que afetava ela falava “olha como é que ta tal” então hoje ela fala, “eu não tenho mais”,

então acho que ela aprendeu, mesmo eu não estando, ela aprendeu que se cuidar é importante.

E – Aí você vê um pouco a marca dos seu trabalho nesses momento?

S – É ai que aparece. Porque não aparece de outra forma ne? Não aparece nos jornais, nem nas revistas.

E – E qual foi o momento difícil? Que você estava com ela?

S – Com ela? Ah, acho que quando ela rejeita.

E – É difícil?

S – É, tem tipo um... eu penso o que que eu to fazendo aqui ne? E é isso, então com o tempo foi, a gente percebe

que tem efeito. Porque assim a gente, eu acho que a gente tem receio de perder, o seu trabalho, o seu... enfim, você

está mexendo comigo hoje (ela se emociona).

E – Por que?

S - Não porque...

E – Quando a gente fala a gente vai revendo muitas coisas ne?

S – (gagueja) Num trabalho desse o que que você faz?... Você só lucra no que você vê. Financeiramente...

E – Não tem ne? Não é pelo financeiro o trabalho né?

S – Não, não é...

E – É, mas é difícil mesmo, acho que quando a gente tem uma oportunidade de falar, a gente vai entendendo

algumas coisas né?

S – É

E - E qual que você acha assim que é uma facilidade dela?

S – Dela? O aprender, ela tem... tudo que você explica, ela também tem uma determinação ne? Ela é determinada,

quando ela quer alguma coisa, dificilmente você consegue tirar. Então é ai onde eu acho que ela tem uma

semelhança, que eu me identifico. Porque eu vou mesmo, eu saio rasgando o caminho, batia pé, até hoje não porque

Page 168: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

a idade não permite mais, mas bater o pé de rachar mesmo, são coisas que não intimida, ela não se intimida fácil.

Você pode falar, ela sai batendo porta. Eu acho assim que é uma coisa que... não é uma coisa agressiva, mas é uma

coisa que mostra que a pessoa está reagindo, então eu acho que nesse ponto ela reagiu, porque no inicio ela ficava

ali acuada.

E – Então a agressividade também como uma forma dela estar viva?

S – É, reagiu né? Então, eu acho que é isso, você, melhor do que eu entende.

E – Vocês muito melhor que a gente.

S – Não, imagina.

E – A gente está aqui tentando aprender com vocês.

S – É, mais é isso.

E – E uma dificuldade assim dela, uma coisa que você vê que pra ela é muito difícil?

S – Eu acho que a questão de lidar com a mãe.

E – Com a mãe?

S – Quando ela chegou aqui, ela não gostava que falava da mãe. Muito pequena e acho que deixou a mãe muito

pequena e você fala “não sei o que Ana vai tal vai lá”... como se... teve uma vez que ela falou que no outro abrigo

ninguém nem falava da mãe dela. Hoje não, ela vai com a mãe, mas ela tem ainda uma resistência, eu não sei qual

que é ainda, mas quando você fala “ah você vai passar férias com sua mãe?” ela fala “não eu não quero ir”. Teve

dias que ela saiu chorando porque ela não queria ir. Então a impressão que dá é que aqui é mais prazeroso ficar.

Hoje mesmo ela falou pra mim “ah meu aniversario é dia nove” agora de julho, eu falei assim “ah tá segunda feira?”

ela falou “não, é domingo e é seu plantão”. E antes eu havia falado pra ela que eu ia ligar pra família para ela ir

passar férias, então a impressão que deu era que ela não queria sair antes do aniversario.

E – Entendi, que ela quer passar aqui. Quantos anos ela vai fazer?

S – Agora você me pegou, mas eu acho que é 10.

E – E ela chegou aqui com quantos anos?

S – Ela chegou acho que...vou ver aqui (procura na tabela). Ela chegou aqui em 2003, com 7 anos. Está na quarta

série, termina agora, amanha é a formatura dela

E – Ah a formatura dela? Ela deve estar feliz né?

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S – É, porque eu fiquei de férias o mês de maio, então eu voltei, e ai a gente trabalha e foi um mês meio que corrido

e a gente acaba não dando conta mesmo porque apesar de ser 12 horas, às vezes o tempo é curto, pensando no

que você tem que fazer.

E – É muita coisa assim?

S – É, a gente sai né? Tem as saídas, e você acaba meio que também, são vários casos que você tem que (???)

então eu sai de folga, eu tava de folga, eu voltei hoje né? A gente fica dois dias de folga durante o mês, então eu

tava no período de folga. Então meu ultimo plantão foi sábado e eu to retornando hoje, então elas vem todas

querendo, então ela já havia me perguntado se eu estava na escala no dia do aniversario dela, que por sinal é

domingo que vem ne? Ai ela falou...acho que ela espera passar o aniversario aqui.

E - Você acha que o abrigo então pra ela representa um... o que você acha que representa na vida dela?

S – Ah eu acho assim que mesmo com pouca idade no caso, representa muito. Eu acho que até mais do que a

família em si, porque mesmo quando a irmã saiu a gente achou que fosse (???)... deu uma interferidazinha na

escola, mas aqui não, foi uma coisa normal, que superou-se rápido, então eu acho que o abrigo em si é o porto

seguro ne, do momento. Eu acredito nisso.

E – E ai esse que é o papel muito importante do educador né?

S – É porque a gente acaba sendo um referencial ne? Bom ou ruim somos nós o referencial né? É porque a gente

tem nossas atitudes ne? É que às vezes eles falam “o educador é chato”, ela mesmo fala “ah você é chata”. Claro,

somos chatos por que? Porque a gente pega no pé, porque a gente está ali querendo mostrar que aquilo é

importante pra ele, que é pra ele tudo que é feito, não pra nós, porque nós já temos uma bagagem seja ela de

trabalho ou seja ela de experiência de vida, sei, a gente está aqui e por mais que queremos não ser, nós somos de

passagem aqui né? A gente vem porque é nosso trabalho depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente vem e

faz o mesmo papel, claro que como eu te falei não tem como não barrar isso, apagar, não tem como. Eu não creio,

pode até ser que alguém fale “olha, eu faço assim”. Da minha parte eu não consigo. Talvez eu tenha que trabalhar

isso, mas eu não tenho não... eu falo daqui pros meus filhos, pro pessoal que eu tenho mais contato, então a gente

tem uma troca, não tem como. Você vive aqui 12 horas, são 12 horas.

E – E você acha que tem um envolvimento também?

S – Tem, não tem como, seria um... como seria? Se não tivesse o envolvimento como seria? Fala, como seria?

Ficaria uma coisa vaga né? Você vem aqui olha todo o espaço, todas as crianças, vê o teu horário e vai embora?

Não sei...

O abrigo em si, ele é uma coisa que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura mesmo; aquela coisa. Então,

você está aqui, você participa no almoço, você participa; você participa até no fazer, às vezes. Você vai lá e está

junto: "ah, vamos fazer isso". Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...

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E - Num certo sentido. Como é que fica o lugar da família deles aqui?

S - É como eu te falei. Pra alguns é importante ter. Mas, por exemplo, a Angélica não... Talvez, um pouco pra frente,

ela vá valorizar isso; de momento, eu não vejo.

E - Pra ela é muito difícil ainda.

S - É. Assim como ela, pelas atitudes dela. Eu me baseio pelas atitudes dela. Por exemplo, ela prefere ficar aqui. Ela

fala: "eu não quero ir, eu quero ficar aqui." Teve meses que ela foi chorando.

Então, eu fico pensando, eu, me pergunto por que é que ela chora pra não ir. A impressão que dá - porque a família

está se reestruturando -, a impressão que dá é que aqui é melhor. Aqui tem mais não sei o que, mas aqui é melhor.

Então, é isso.

E - Ah... Deixa eu ver.

E daquela outra criança que você iria contar, que você acha que é mais...

S - Ah, do Eduardo (???).

A questão do Eduardo é questão de saúde. Assim, claro, ele tem diabetes - não sei se a Alaíde até á falou dele,

porque ele é uma pessoa que está em...

E - Não. A Alaíde contou de uma outra criança. Acho que era o Gustavo.

S - Ah, o Gustavo.

Porque o Eduardo é uma criança que está sempre em foco, porque ele tem diabetes. E, pra gente - eu me coloco -,

eu acho que pro grupo, no geral, foi difícil quando a gente recebeu o Eduardo, quando recebemos o Eduardo aqui.

Porque, um menino de 9 anos, na época, 9, 10 anos, portador de diabetes, que a gente não conhecia nada; nada,

nada, nada.

E - Da história?

S - Não.

E - Ah, da diabetes.

S - Da história, a gente acaba conhecendo; porque sabia que é uma questão de denúncia, que era abandono, tal e

tal.

Mas, a diabetes em si, a gente teve que, a gente apanhou. E, como a gente é obrigado a lidar com a situação, então,

teve uns casos, umas vezes que ele teve a queda - a diabetes cai, ela fica muito baixa -, e ele entra em convulsão.

Pra mim foi difícil, porque eu não ainda sabia lidar com aquilo - como também não sei até agora, a gente faz por

uma questão de sorte ou sei lá o que -, então, foi muito difícil. Porque você fica, você se sente impotente, você não

sabe, você não tem o que fazer; você vai procurar os recursos que você conhece. Ou seja, é o açúcar, é levantar, é

não deixar... Porque você não conhece nada.

Page 171: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Pra mim foi um momento de medo. Porque, por mais que eu tenha a certeza que ele tem aquela diabetes, que eu

estou aqui, que esteja respaldada pra alguma coisa que venha a acontecer - porque a gente espera que esteja; você

está aqui num lugar, você está lá com uma criança que tem um problema, mesmo não sendo (???) , você tem que

dar conta. Mas, você só da conta até onde você conhece. Por mais que falem assim, chame o Resgate, tal e tal; mas

você fica naquela apreensão, se não dá tempo: vai morrer na minha mão? Então, foram momentos assim...

Ainda existe. Menos agora. Porque a gente acabou - como fala, assim? - pegando um pouco mais das malícias que a

diabetes, em si, ela têm. Fica mais fácil.

Mas, naquele momento, era angustiante. Porque, várias vezes, no meu plantão, aconteceu aquelas coisas com

referência a ele; deu chegar, dele estar, e você ter que correr, e você ter que dar conta. Isso é um complicador, não

é. Porque você não entende, não entende nada de saúde, em si.

Mas, nós fomos, com o passar do tempo a gente acompanha - como eu já te falei - a gente saía, acompanhava no

médico; sempre que estava no médico ou alguma coisa, pelo menos no meu caso, eu procurava ouvir melhor, eu

questionava, eu perguntava. Porque, é o meu trabalho, então, que está em jogo também. É o meu trabalho. Eu

venho aqui, dou o meu plantão, então, sou eu, como pessoa, que estou em jogo. Não é só a saúde dele. Eu não

tenho só que dar conta da saúde dele, eu tenho que dar conta também do meu eu.

E - Do seu medo ali.

S - Das minhas condições. Da questão ética e tudo mais.

Isso é uma coisa que, pelo menos no meu caso, foi uma questão que eu fiquei apreensiva. Porque, cada plantão que

eu vinha, eu vinha naquela: como será hoje?

Porque é diferente de você lidar com os conflitos em si. Você está adaptada mais a aquilo. Por exemplo, até separar

uma briga, alguma coisa, lidar com aquela situação do que lidar com alguém que está ali e, num piscar de olhos,

pode ou não voltar. É uma coisa que, não tenha dúvida, vai te deixar apavorado.

E - E como que ele é? Como que você enxerga ele?

S - É difícil. Eu sei que não é fácil pra uma criança ter diabetes. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma pessoa difícil,

porque você percebe que ele não quer se ajudar. Você percebe que ele provoca a situação, ele come

obsessivamente pra que ela suba, ou ele não come pra ela desça. Então, é difícil lidar com isso, porque você não

sabe o momento em que ele está bem, que ele vai fazer ou que ele não vai fazer. É uma oscilação muito grande de

humor, de... a insulina em si, a glicemia em si é uma oscilação muito grande, e o humor dele que - também tem um

agravante -, às vezes ele mente, ele está assim e ele não está, e a gente corre faz outra coisa. É - como se diz? - é

viver no limite. Com ele é assim.

A gente tem, eu tenho procurado aprender, mas também não tenho conseguido. Então, é assim, eu estou aqui, eu

faço o meu trabalho, procuro fazer o melhor, mas é complicado. É aquela coisa de você trabalhar, ou melhor, você

dar murro em ponta de faca. Porque ele tem condições de melhorar a situação dele, em todos os sentidos, ele tem.

Mas ele não quer. Então, você fica... É frustrante até. Porque você fala: "poxa vida, por onde eu vou? Qual caminho

eu sigo? Qual é o momento? Onde eu mexo?"

E - E teve alguma coisa que você já sentiu que modificou de algum jeito? Alguma atitude que você tomou?

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S - Com ele ?

E - É. Ou não? Não sei. Alguma situação que você achou que foi diferente? Que você não se sentiu dando murro em

ponta de faca?

S - Sim, teve. Por exemplo, a questão da escola. A saúde é que é complicada.

A escola. Quando ele chegou aqui, ele não sabia ler, nem escrever, ele dava trabalho na escola, e ficou no reforço,

depois foi pra aceleração, um monte de coisa. Hoje, ele já, ele está na 5a série, ele já escreve, ele já lê, ele já

compreende melhor. Então, ele conseguiu - claro, com a ajuda nossa, da escola e tudo - mas, esse mérito é dele,

porque foi ele quem conseguiu; se ele não quisesse, ele continuava lá paradão. Ele conseguiu sair. Hoje, ele lê, ele

faz a lição (??). Quer dizer, houve avanço.

Mas, como a gente quer o que? Por exemplo, eu, como mãe, eu queria que ele avançasse na questão dos cuidados

da saúde. Tem esse lado também. Só que aí ele emperra, não é. Então, ele faz terapia, a gente acompanha. Mas,

enfim, eu acho que é alguma coisa que ainda está muito difícil, eu acho que, pra ele aceitar.

Isso acabada transferindo pra gente também. Porque, como eu te falei, nós também temos as nossas emoções. O

fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na mesma situação.

É uma coisa que também nos irrita. Pelo menos no meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa...

Veja que você pode viver, você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola. Mas eu ainda não

descobri a fórmula.

Então, é isso.

E - Tem alguma coisa ali que você sente que pra ele é difícil, não é? Que não faz ele se cuidar.

S - Reagir.

Eu acho que, por exemplo, a mãe. Ele foi abandonado.

E - Com quantos anos ele chegou aqui?

S - Ele chegou aqui eu acho que com 9 ou 10 anos.

E - E ele tem agora?

S - Ele fez 13.

E - Treze.

S - Ele deve ter, isso mesmo, de 10 pra 11 anos que ele chegou aqui.

Desde que ele está aqui, a mãe nunca - ela ligou uma vez, pelo menos que eu atendesse, ai ela meio que dizendo

que era uma pessoa que conhecia, eu quero denunciar o pai, alguma coisa assim. Eu falei, fiz meio que uma

pressão, e ela acabou confessando que ela era a mãe. Eu falei: "se a senhora quer, o seu filho está aqui, pega o

endereço, o telefone; assim como a senhora já tem o telefone, pega o endereço e vem visitar." Ela nunca veio. Teve

momento que ele procurou, fala que quer, diz que saiu - porque o pai vem, faz a visita; ele passa o dia com o pai. Eu

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não sei se o pai oculta isso, não sei. Não sei que pressão acontece do lado de lá que evita que essa mulher se

aproxime.

Eu, particularmente, acredito que, se houvesse uma, talvez isso fluísse. Eu.

E - Se ele tivesse uma relação melhor com a mãe?

S - Sim. Eu acho.

E - A questão do cuidado.

S - Porque dá a impressão que... E, assim, a figura feminina - no caso, nós mulheres - ele acaba, ele quer sugar. Ele

pede pra gente: "ah, me adota, me leva pra casa."

Talvez, se a mãe aparecesse, alguma coisa, ele desse uma deslanchada. Não sei. Essa é a minha opinião.

E - E como que é isso - escutar assim: "me adota" - na figura feminina? Que é como se ocupasse o lugar da mãe.

S - É como se ele quisesse alguém que substitua.

Às vezes bate a escorrega, às vezes bate e vai. Mas, às vezes, é um bate que fica. É complicado. Muito complicado.

Porque é assim, ele tem uma família, tem um histórico de saúde que compromete; então, você fica assim meio deixa

quieto. Não sei. É muito complicado.

É uma coisa que eu ainda não elaborei, por exemplo, isso. Por exemplo: "me adota". Você escuta e vai embora.

Porque, se você adotar em si, como eu falo - eu já falei pra ele -, adotar não é só pegar e levar pra casa, você tem

que entender o que é a adoção. É uma coisa que é um compromisso muito sério, uma coisa que requer muito - no

caso dele, até recursos.

Pra todo mundo ele faz isso. Ele pede.

Teve umas vezes que eu trouxe a minha filha aqui; ele fala assim: "ah, deixa eu ser irmão da Renatinha; me leva pra

sua casa. Eu vou passar minhas férias lá." Às vezes você tem que sair fora, porque você não pode alimentar isso.

Não tem como. Ter como tem, mas não é viável isso.

E - Não é o seu papel. S - Não. Porque jamais eu faria algo que não estivesse ao meu alcance.

Eu acho que por aí eu vou passar a satisfazer o ego, e aí? Porque o que ele quer é que apareça alguém. E, de

repente, não é isso. Mas, de momento, é o que ele tem.

Complicado.

E - E aqui, as condições aqui do abrigo, como que você, o que você sente que pode ajudar ele?

S - Tudo o que tinha que fazer, tudo que tem ao alcance já foi feito. Já - eu acredito. Porque, quando ele chegou, ele

tomava insulina de agulha; hoje, ele toma com (caneta????). Todos os recursos - não estou te dizendo numa

questão de querer dizer, olha o abrigo é 100%; estou te falando o que é real - então, tudo que é e que está ao

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alcance do abrigo em si, tem sido feito pro Eduardo. Ele faz terapia duas vezes por semana, terapeuta particular. Ele

toma insulina que a casa não tem; as fitas a casa não tem. Eu acho que da nossa parte não requer mais nada.

E - Isso é o que parece pra você, quando você diz que não entende, não é. Porque ele tem os recursos e parece não

se esforçar. É essa a sensação que você tem?

S - Tem. É, a sensação é essa.

Porque, por exemplo, que ele vive em busca de alguma coisa. Eu, sinceramente falando, eu só acredito que é a mãe.

Porque não é o recursos com relação à diabetes, não é recursos com relação a estrutura do abrigo; o abrigo é bem

estruturado. Não é isso. É uma questão dele querer. Talvez, ele faça isso até pra nos chamar a atenção, como a

figura feminina, como a figura mãe ou busque ajuda com a mãe. Não sei. Enfim, eu vejo assim. O Eduardo, nesse

ponto ele ainda não despertou.

E - Seria uma dificuldade dele, não é.

S - É uma dificuldade dele e nossa. Porque, dia após dia, as coisas se agravam em relação à diabetes se ele não se

cuidar - pelo menos é o que a gente tem de conhecimento; que com o passar do tempo, se ela fica muito alta ele

pode ter problemas renais, ele pode ter um monte de coisas, perdas de membros, essas coisas.

Pra gente, como eu te falei, é o nosso trabalho também. Então, a gente não quer perder. A gente quer que alguém

saia daqui bem, melhor do que veio. Porque senão não teria sentido o nosso trabalho.

E - É.

E você acha que é mais fácil, mais fácil ou mais difícil, quando a criança chega no abrigo ou quando ela tem que

sair?

S - Os dois momentos são difíceis. Os dois momentos são difíceis.

Chegar, é uma pessoa nova que vai, que nós vamos ter que nos adaptar com ele e ele com a gente, e a rotina, e o

dia-a-dia é difícil - pra ambas as partes.

E a saída também. Porque, a saída, tem o vínculo - a gente tem aquele vínculo, não tem como não ter - e você fica

com receio dali pra frente. Porque, se ele valorizou o tempo aqui, o que aprendeu, beleza. Ele vai se estruturar, ele

vai se; vai cair, mas vai estar sempre se levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal. Mas, se não, ele pode

voltar a ser pior do que era antes.

Aqui, quase nós não temos, por exemplo - é até meio complicado - mas, quase nós não temos o retorno familiar; são

poucos; tem outros que se emancipou. Também, é um abrigo pequeno.

Tem uns casos de uns meninos que casaram.

E - Ah, é?!

S - É. E até que, razoavelmente, bem. Então, de alguma forma, o abrigo deu uma estrutura, deu um suporte. E dá

até hoje.

E - É uma referência pra eles.

Page 175: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

S - É o referencial. O abrigo acaba sendo, porque é como se a família ficou pra trás. Na maioria das vezes eles vêm

pequenos, e acabam meio que a metade do ciclo de vida, enfim, ficam aqui. Eu acho que é a parte que fecunda

melhor.

É isso.

Mas, é difícil, tanto pra receber como pra retirar. Não sei. Porque é aquela questão, ao receber é a questão da

adaptação e, quando sai, você fica com aquela sensação de perda. Será que o que a gente fez foi forte, forte a ponto

de segurar o que vem pela frente. Porque a vida não se resume à aqui. Não se resume aqui.

O abrigo, em si, é apenas um momento que alguém teve que passar.

E - E que pra alguns é um momento que dura bastante tempo, não é.

S - É. Porque, por exemplo, tem pessoas que saem e voltam pra visitar, liga. Tem outros que não. Eu acho que vai

muito do que ele colheu daqui. O que ele plantou e o que ele colheu daqui.

E - E como que você percebe a influência particular do seu trabalho na vida da criança?

S - Como que eu percebo?

E - É. A influência do seu trabalho na vida dela? Porque você contou um pouco da Ana?

S - A Ana?

E - É.

S - Você fala em que sentido?

E - É. Não sei. Como é que você sente que você, ou se você sente que você influencia e marca de alguma forma a

vida deles, aqui, no abrigo?

S - Da forma como eles se deportam à você. A forma com que ele fala. Você chega e ele está querendo contar

alguma coisa; eu acho que é assim que você percebe até onde foi a tua importância com relação... Eu acho que é

isso.

E - No reconhecimento deles?

S - Eu acredito nisso.

E - Em algumas outras situações que você estava falando; por exemplo, quando ela fala começa a se cuidar

também, você...

S - É uma forma de que isso valeu. De que o que você fez, isso surgiu efeito.

Page 176: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Eu acho que a gente tem um papel muito importante; seja positivo ou seja negativo.

Na maioria das vezes têm vindo pelo lado positivo. É muito raro você escutar - até mesmo de outros lugares que eu

já trabalhei - escutar: "ah, fulano, foi negativo ali". Eu tenho recebido - como é que fala? - notícias de pessoas, a qual

eu já trabalhei no passado, que o tempo que a gente conviveu foi positivo. Então, isso é bom.

É muito gratificante você saber, por exemplo, quando eu trabalhava na (??), nós tivemos uma caso de um garoto lá,

que a situação dele era delicada; ele saiu de casa, era filho de uma ex-bailarina do Sargenteli, então, ele tinha uma

vida conturbada. Ele ficava com a avó, e esse mulher viajava muito, e a avó parece que passou a roubar; e aí, ele

roubava dentro de casa, e roubava até no abrigo. Era um adolescente, na época. E, antes de eu sair de lá, ele

conseguiu; ele estudava, e ele conseguiu um emprego de boy no Banco do Brasil. Depois, ele prestou concurso, e

ele é funcionário do Banco do Brasil.

Foi bom. E a gente entende que aquilo foi parte do trabalho.

E - Você vê uma marca sua ali naquela...

S - Sim. Porque, a questão do incentivo, do falar não faz assim, faz assado. Ou até mesmo vir e: "o que você acha?"

Isso é uma coisa que, se você é procurada, de alguma forma você não está, é positivo. Se você é isolada, aquilo é

negativo. Então, isso é uma parte que você enxerga que o seu trabalho serviu.

Bom seria se todos saíssem assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente.

Mas, não é porque eu acho que o povo não acredita. Os governos não acredita, a maioria da população não acredita.

Às vezes, a gente está no dia-a-dia ali com alguém que também não acredita. E isso é uma parte que...

E - Não acredita na criança?

S - Não acredita, eu acho, naquilo que faz. Porque se você está num local que você não acredita no que você...

LADO B - continuação

E - Acho que era mais ou menos isso.

S - Não sei. Você é quem sabe. (risos) Já falei por demais.

E - Não. Está ótimo.

S - Eu falo muito.

E - Imagina. Eu estou adorando.

S - Eu sou espuleta. (risos)

É. Eu sempre tive essa coisa de falar pelos cotovelos. Mas, faz parte.

E - E você percebe, então, de certa forma - não sei é a influência - mas, alguma coisa na sua história de vida também

que te trouxe pra trabalhar em abrigo? Alguma motivação...?

Page 177: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

S - Olha - você me perdoa, eu esqueci o seu nome.

E - E.

S - E, então, eu não sei. De verdade que eu não sei.

Eu acho assim, quando eu entrei pra trabalhar nessa área, era um grupo grande - como eu já te falei - e a gente, às

vezes, se pegava, como era difícil, a gente pegava um se lamentando um pro outro, o outro questionando,

choromingando; a gente chorava. Era tão difícil que tinha momento que a gente entrava em crise. Cada um com as

suas motivações, com as suas razões estava ali. Mas, eu não sei.

Teve uma vez que - até isso ficou bem marcado pra gente e pro grupo - estava eu e um educador, Carlos Bimbarte o

nome dele, e a gente estava confessando, estava um grupo (não sei se era época de Natal ou alguma coisa), e eu

falei: "quer saber, Bimbarte, eu acho que eu cai aqui de pára-quedas e foi fechado." Então, ficou. Toda vida que a

gente se encontrava, ele falava: " e aí, já abriu o pára-quedas?" A gente ficou muito tempo junto, mas no início eu via

isso, que eu acho que eu tinha caído ali de pára-quedas e fechado. Porque era uma situação assustadora, tudo,

Febem, tinha muito atrito entre eles; então, tinha mesmo muita rivalidade, até mesmo entre funcionário, e isso

impedia o nosso trabalho. Eu acredito que aquilo valeu pra cada um que saiu de lá, ter uma experiência.

E - Pra cada um dos profissionais?

S - Dos profissionais. E dos abrigados, em si; pra seguir. Porque fortalecia. Mesmo no meio daquela fraqueza,

daquele medo, daquele pavor -porque a gente, tinha momento, porque tinha respaldo da Febem (respaldo que eles

falavam, não sei a palavra certa), por exemplo, o menino que saía (??) da Febem, ele ia pra esse abrigo (era

respaldo) -, então, o que acontecia? A gente temia. O menino saiu da Febem, aqui era abrigo, mas ninguém; às

vezes, a gente sabia que os crimes eram bárbaros, estupros, algumas coisas assim, e estavam convivendo com os

outros e com a gente. Então, tinham momentos, principalmente nós, mulheres, nós educadoras, nós andávamos

mais em dupla, mais duas ou três, porque tinha medo mesmo. A questão era essa, medo mesmo.

A gente ficava meio ali. Eu acho que valeu. Isso serviu de - como fala assim - de fortaleza mesmo, da gente lidar com

o trabalho. E aprender muito pra nós mesmos.

A maioria não está mais na área, são poucos que estão. Mas, às vezes, a gente se encontra, sai, conversa. Até outro

dia, eu acho que foi no ano passado, nós "ajuntamos" uns 5 ou foi 4, que trabalhamos junto na época, e aí a minha

amiga falou assim: "poxa vida, só você que realizou o sonho." Porque, quando nós entramos, o sonho - o Estatuto da

Criança previa abrigos pequenos com, no máximo, 20 crianças; então, é o que tem hoje -, ela falou: "só você realizou

o sonho de trabalhar num abrigo pequeno, o que pedia o Estatuto." E eu falei assim: "é um sonho ainda meio

frustrante." Porque tinham outros sonhos; a gente tinha sonhos de progresso dentro do trabalho em si, do trabalho

aparecer, de surgir efeito mesmo.

E - De surgir efeito como?

S - De tirar criança de rua, de dar uma vida melhor, de socializar mesmo.

São poucos que funcionam assim, que funcionam como aqui, um abrigo mesmo.

Page 178: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

E - Um abrigo mesmo. Entendi, tem abrigos muito complicados.

S - Tem.

Eu tive o privilégio de trabalhar - não sei se isso é - de trabalhar em vários abrigos. Esse não é o único. Desde abrigo

grande, eu já trabalhei em abrigos pequenos, com outras, com menos crianças - até menos que aqui. Mas, tem umas

situações também complicadas.

Então, é isso.

E a gente, às vezes, pega falando: "só você realizou o sonho." Não tanto. Porque o sonho...

E - Ainda falta muito, você acha?

S - Falta.

Mas, eu acho que a gente não tem mais fôlego. Eu acho que a gente não tem mais aquela perspectiva. Apesar de

agora até algumas coisas fluírem melhor. Mas, eu acho que vai cansando. Eu acho que é isso.

E - Porque, parece que, pelo que você está falando, é uma relação muito junta mesmo. Parece que é o educador,

que modifica de certa forma, ajuda a transformar a história da criança ou do adolescente, que também, de certa

forma, mexe com o educador.

S - Não tenha dúvida, que quem faz o trabalho, não - deixando fora a equipe técnica -, de jeito nenhum. Porque,

dependo da equipe, ela dá um suporte muito bom e é o que garante. Mas, não tenha dúvida que o educador é quem

dá as cartas no trabalho.

Quando eu falo, dar as cartas, vir aqui, que eu que mando aqui, e você obedece - nós estamos aqui pra obedecer.

Mas, eu acredito que o bom educador, é ele quem faz o projeto. Porque, a chefia, ela está aí sim, mas quem está no

dia-a-dia, no corpo - como a gente, às vezes, usa o termo, 'dar cara à tapa' - somos nós. Se você não fizer o seu

trabalho da melhor maneira, não se preocupa que não vai em nada, vai virar água com a açúcar. Tanto é que, às

vezes, a gente tem dificuldade; às vezes você trabalha em determinado lugar que não flui. Por que? Porque a equipe

de educador, embora sejam os menos favorecidos, não funciona. Se não funcionar, não se preocupe que o resto não

vai também. Pode ser a melhor coordenação, o melhor presidente, não funciona. Não funciona.

E - Tem uma importância muito grande.

S - Eu acredito. Tanto é que eu te falo, se você não acreditar, não adianta. Eu acredito nisso. Por isso que eu ainda

faço.

Porque eu tenho uma questão muito particular, minha, que se eu não estiver bem no local, eu saio fora.

É uma coisa que me aborrece, me aborrece, me deixa muito insatisfeita, a questão de você estar num lugar e as

pessoas estão fazendo por fazer. Seja lá que trabalho for.

Eu, na minha casa, até mesmo aqui, às vezes, eu tenho pra mim: tudo que eu faço, eu não sou imposta a fazer, nem

aqui, nem em lugar nenhum que eu passei; eu faço porque eu tenho a minha espontaneidade de fazer. Mesma coisa

na minha casa, se eu não estiver no pique de fazer arroz, eu não faço, porque não vai dar certo. Pelo menos eu

acredito nisso. Não adianta nem você querer lavar a roupa com o melhor sabão, se você não estiver a fim, não vai

funcionar. E assim é o trabalho no profissional.

Page 179: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

E - Você, reconhecendo isso em você, você até consegue entender melhor algumas crianças. Por exemplo, a (??),

você estava falando quando ela bate o pé e ela não faz.

S - É. Sim.

E - Você se reconhece ali também.

S - Sim. Porque é uma coisa assim, não faz nada... Não que tudo o que você faz te dá prazer; normal. Mas, eu acho

que você tem que ter o mínimo de prazer no que você for fazer. Porque se não....

E - E o que você acha que é o mais fundamental no trabalho do educador, em abrigo?

S - Dedicação.

E - Dedicação.

S - Dedicação. Eu acho que é o ponto 'X', você se dedicar. Não importa se você vai, sabe. Porque, o educador em si,

ele não é só uma pessoa que vem aqui - não sei se você sabe a função, se você sabe -, a função do educador, ela

vem debaixo, desde a criança acordar: você acorda, você orienta no banho, você troca - porque nós temos bebê,

nós também fazemos esta parte - quando tem bebê, é o educador quem faz; então, desde disso até a questão de

ajudar em alguma tarefa escolar, uma busca de emprego, uma entrevista. A gente tem um fator importante que, às

vezes...

E - Participa de muito momentos da vida.

S - Participa muito. Nós temos uma participação que eu acho que 99% é nossa. Não estou dizendo, me sentindo a

'bã, bã, bã'. Não. Mas, eu acho que sim.

Não adianta, por exemplo, chegar, fulano assim, chegar; e olha, se eu não contar a história, se eu não fizer, se eu

não relatar algo do que eu vi, ninguém vai saber o que é que foi. Posso até passar ali, às vezes você tem

informações. Eu acredito.

E a única - como é que fala? -, por isso que eu te falo, a questão da dedicação; se você não se dedicar a isso, você

vai vir aqui ou em qualquer outro lugar, vai chegar o teu horário, você sair mal humorado, insatisfeito, sabe; tanto

revoltado como qualquer uma criança. Porque é assim que tem que ser. Eu acho que tem que dar a questão da

dedicação, não importando o que você vai fazer.

E - Legal ter a visão do educador mesmo.

Porque, no fim, acabam tendo muitas teorias que falam...

S - Eu não tenho teoria.

E - Tem a criança. Eu acho legal ter o relato da experiência mesmo, da prática, sabe. Você acha que é mais prática,

o trabalho?

Page 180: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

S - Não tenha dúvida.

Tem. Temos que ter a teoria sim. Mas, eu acho que ela é bem menos. É uma coisa assim, claro que é importante

você relatar a história da criança; isso, a teoria aprender. Por exemplo, eu não conheço, nós temos já não sei

quantos educadores espalhados por aí em abrigos e tal; mas, nós não temos uma faculdade que ensine a ser

educador. Então, eu acho que é uma coisa que vem de você.

Eu conheci pessoas com nível superior, com várias faculdades, aprendeu aquilo, estudou aqui e acolá e, como

educador, pelo menos na minha opinião, era um zero ali do meu lado.

Por que? Não sei. Talvez, eu acho que cada um tem um perfil. Você tem perfil pra, se você tem habilitação pra

policial, é policial; médica, médica. Assim como o médico, o bom médico, o bom policial, o bom tudo, tem o bom

educador. Não que sejamos excelentes, não é. Não sei. Eu acho que tem muito disso.

E - Você acha que, de certa forma, você tem uma teoria, mas que no dia-a-dia vem mais a experiência?

S - Eu sou muito crítica. Entendeu. Por isso que eu te falo, eu sou explosiva. Eu acho que teoria é importante, mas

não basta eu chegar aqui e relatar, e mostrar pra você uma cartilha de 'o que é que é ser educador', se quando eu for

lidar na situação em si, sai todo o tiro pela culatra.

Não sei. É uma coisa que pega. Eu já perdi amizade, eu já ganhei amizades por essa questão de falar o que eu

penso. Isso é bom e não é. Porque eu posso perder amizade, eu posso perder emprego, eu posso perder uma série

de coisas, mas eu não me engasgo fácil não. Eu não engulo sapo.

E - E aí você traz isso pro seu trabalho também como educadora?

S - Se eu tiver que cobrar, eu vou cobrar. E eu cobro.

E - Cobrar as crianças?

S - Eu cobro. Cobrar as crianças sim, é um trabalho nosso.

Se eu estiver, por exemplo, na equipe, no grupo em si, eu cobro, eu cobro.

E - Entendi.

S - Eu cobro. Porque eu acho que não basta - aquela coisa, não basta ser pai, tem que participar -, então, não basta

ser educador, você tem que atuar. Mesmo que você erre. A gente aprende nos erros.

Também não sou perfeita. Eu erro e erro muito.

Mas, eu acho que pra ser educador tem que se dedicar - à educador; agora não sei a definição, enfim, qual que

seria, educador aqui. Eu acho que a gente está na espera de alguém que defina o educador.

Claro que a gente participa de algumas coisas aí, de alguns cursos, que vai cada dia aparecendo alguma coisa a

mais que vai identificando que a gente realmente...

E - O trabalho de vocês.

Page 181: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

S - Isso.

E - Por exemplo, isso que você falou da história das crianças; isso é uma teoria que você traz, que você acha que é

importante contar a história delas.

S - É. Porque, se você me pergunta, se eu estou aqui há 4 anos, você me pergunta de uma criança e eu não sei falar

dela, então, o que é que eu fiz aqui? O que é que eu fiz aqui? Eu vim aqui, deu meu horário, olhei a situação, o clima,

e fui embora.

Como eu te falei, não trabalhamos com máquina: você vai lá aperta o botão e ela faz a quantidade, a produção que

tem que ser feita, ou sei lá o que. Nós trabalhamos com pessoas que, a cada momento, estão...

E - Essa era uma experiência que você tinha tido antes, não é. Você antes tinha trabalhado numa fábrica. (riso)

S - Sim. Eu trabalhei por 8 anos - como eu te falei - na Ford; era uma empresa que nós tínhamos que dar conta de

toda a produção. Então, um pouco diferente, não é. (risos)

E - Imagino.

S - Diferente dessa área - muito pouco. (risos)

Então, você estava ali, o chefe chega e: "olha tem que, tem tanto, tem menina aí, você tem que fazer tanto 'X' de

produção". Chegava no final do meu expediente, a minha cota de produção estava pronta.

Também não tem; como é que eu vou dar produção num trabalho desse?

Aqui eu não tenho que dar produção, eu tenho que dar qualidade, eu tenho que... O nosso trabalho é esse.

E - Nossa. Acho que é isso S.

S - Eu não sei não. Eu não sei nada.

E - Nossa! Não, me ajudou muito.

S - Eu não sei no que, não é?

E - Muito boa a entrevista.

Eu vou depois, quando eu terminar, eu vou mandar o trabalho pra vocês.

S - Você vai mostrar pra nossa equipe?

(risos)

Olha (ou a Ana???), me matam.

E - Imagina. Pelo amor de Deus. (risos)

S - Brincadeira. Normal.

Page 182: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

E - Mas, foi muito interessante.

(INTERRUPÇÃO DE GRAVAÇÃO / RETOMADA NA SEQUÊNCIA)

S - Você sabe, não é. É aquela coisa, a gente se cobra muito. Você vai se cobrando, vai se desgastando, no final,

não sai o que você quer; aí, o que você faz? Você cansa, desiste.

Apesar de que eu sou osso duro de roer.

Ah! Minha filha, não é fácil.

Olha, E, você me desculpe. Eu não sei se era isso que você queria....

(INTERRUPÇÃO DE 1 MINUTO E 23 SEGUNDOS)

E - ... Não acontece muitas...

S - Eu acho até que mesmo, na equipe, a gente tem olhares diferentes, a gente tem olhares diferentes. É claro. É

como se você estivesse numa equipe médica, você vai avaliar um caso...

E - Mas, você acha que, igual na equipe médica, você acha que tem alguma coisa que no fundo sustenta? Que,

apesar, de terem olhares diferentes, tem alguma coisa que é meio....?

S - Completa.

E - Que é completa?

S - Porque, não seria - como é que fala? - não aconteceria se todos tivessem o mesmo olhar.

É claro que, na vida, a gente se depara com pessoas mais agitadas, outras mais, um que olha e já percebe, outros

que têm dificuldades, que só vai perceber a coisa quando também já foi embora. Tem a agilidade cada um, tem o

empenho, é de cada um de nós mesmo.

Mas, eu acredito que, até mesmo no grupo, há olhares diferentes.

Porque tem aqueles mais passivos.

Você tem, na sua classe são quantos?

E - Quarenta.

S - Você acha que a pessoa vai ter, a gente sabe que vai sair um bom psicólogo, e vai sair aquele mais empenhado

na função em si, do que o outro. Não vai?

E - É lógico. Não são todos iguais.

S - Tem uns que estão por estar. Outro porque o pai quer.

Page 183: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

Por isso que eu te falo, não sei o que - que você me fez a pergunta de o que me motivou -, não sei. Eu acho que eu

cai de pára-quedas mesmo. Porque foi uma escolha. Quer dizer, eu tinha um problema ali que eu tinha que resolver

e eu acabei, foi porque aconteceu, foi o que pintou de trabalho naquela época. Eu tinha. Eu tinha que permanecer

ali. Então, meio que na marra, eu aprendi.

Assim como, talvez, tenha que pegar o Eduardo na marra pra ele aprender a se cuidar.

Eu não sei.

Mas, é isso.

E - Foi muito interessante...

(INTERRUPÇÃO /VOLTA IMEDIATA)

S - ... Função de mãe, que não é mãe. Quer dizer, como é que fica a cabeça dela e a da criança?

As crianças, não é. Porque é complicado. Quer dizer - você não é mãe -, quem é mãe sabe o que é a função

realmente de mãe.

Alguém me diga: "olha, você vai ser mãe social." Eu não saberia lidar com isso... Quem sou eu? Quem sou eu?

Tanto o profissional quanto a "quem sou eu?"

E - Pra criança?

S - Mãe social é uma palavra assim - fala: o que pega em mãe social? Não sei.

Eu teria... Não cabe pra mim isso não.

E - Mas, depois do meu trabalho, eu vou escrever alguma coisa a respeito, aí eu mando pra vocês aqui.

S - É interessante. Porque, sabe, é aquela coisa, como eu te falei, tem que aparecer.

E - O que é que tem que aparecer?

S - O trabalho. As coisas que são feitas tem que aparecer.

Por exemplo, se você não der importância ao que você está fazendo hoje, se você não aplicar, se você não divulgar;

não sei, não sei. No teu caso aí, eu acho que mais uma questão de trabalho pra até.... Eu acho que só muda aí -

como é que se fala? - a teoria. A teoria, não é?

E - A teoria. É. E que, de certa forma, acaba interferindo no trabalho.

S- Não sei. Não sei como seria isso. Não tenho nada formado sobre isso, não. Nem acredito. Eu não acredito nisso. Não tem, você não vai ter mais um referencial, a criança não vai ter. Não sei. Eu acho até que isso é uma coisa que

deveria ser excluída. Não sei quem - como é que fala? -, criou isso. Já ouvi falar, mas....

E - Não faz sentido pra você?

Page 184: um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e

S - Pra mim, não. Não faz sentido. Ou é, ou não é. Ou é você que (???), e tem alguém assim; porque mãe social é

vazio. É muito vazio.

Mas, como tudo acontece, é mais um que está acontecendo. Vamos ver o que vai dar. Provavelmente, algumas

pessoas querendo prestar um serviço à humanidade, de forma errada. Acaba você descobrir. Você descobre o

campo da descoberta.

E - Junto com vocês, não é. Porque se não tivesse vocês pra contar pra gente da experiência de vocês, do trabalho,

a gente também não teria como. Eu acho que é tudo um pouco junto.

S - É como um quebra-cabeças, falta uma peça. Mas é isso.

E - Muito obrigada.