um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA
UM OLHAR PARA O ABRIGO: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO
EDUCADOR E MÃE SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA VIDA DAS
CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS
MARIA LACOMBE PIRES
SÃO PAULO
2006
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE PSICOLOGIA
UM OLHAR PARA O ABRIGO: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO
EDUCADOR E MÃE SOCIAL E SUA INFLUÊNCIA NA VIDA DAS
CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES ABRIGADOS
MARIA LACOMBE PIRES
Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para a graduação
no curso de Psicologia, sob orientação da Profa. Dra. Ana Mercês Bahia Bock
SÃO PAULO
2006
Às crianças e aos adolescentes abrigados por terem sobrevivido ao abandono e às
condições tão adversas de vida, lutando diariamente por uma nova história.
Aos educadores e mães sociais de abrigo que têm a difícil tarefa de acolher e dar
suporte às crianças e adolescentes auxiliando-as na construção de um presente
decente e um futuro mais digno.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe e ao meu pai por terem permitido e incentivado que eu me tornasse eu
mesma; por serem um apoio para que eu pudesse aprender sozinha com as minhas
experiências; por eu olhar nos seus olhos e sentir que eu posso ir em frente, atrás dos
meus sonhos.
À minha irmã por me mostrar um outro jeito de olhar a vida; pelo companheirismo,
sempre; por me ensinar a arte; por me ensinar a levar a vida com os ombros relaxados.
Às minhas avós, mulheres com coragem, força, determinação e esperança. À minha
avó Natalia por um dia ter vindo ao Brasil em busca de uma vida melhor e a minha avó
Stella por me mostrar como a paixão é o alimento da vida.
Ao Gabriel pela compreensão, companhia e interesse pelo meu trabalho; por ouvir tão
atentamente e emocionado meus desejos e sonhos futuros; por estar ao meu lado
sempre que precisei.
À Chu, minha grande mestra. Por ter me ensinado a olhar o essencial e fundamental da
psicanálise: as relações humanas. Por ter me ensinado a encarar o trabalho com
seriedade e compromisso com o outro.
À Ana Bock por ter me acompanhado e incentivado durante todo esse trabalho; pelo
respeito às minhas idéias e apoio à elas; pela tranqüilidade, segurança e calma
transmitidas à mim em nossos encontros.
À Lurdinha por ter sido minha inspiração. Por ter me apresentado de maneira
apaixonada seu trabalho junto à infância e adolescência; por ter me mostrado a
possibilidade de transformar em ações concretas a realidade desigual do Brasil.
À Bel Kahn pela escuta atenta e acolhedora das minhas tantas indagações e
inseguranças; por ter me incentivado a seguir meu próprio caminho e confiar nas
minhas descobertas; pelo trabalho que realiza, tão inspirador para mim.
À Renate por ter me ensinado um olhar clínico para além da prática clínica; por ter me
ensinado a enxergar nas experiências cotidianas o significado e o sentido da
criatividade e da transicionalidade.
À Maria Claudia por ter me incentivado e apoiado a descobrir o meu jeito de atuar; por
me apresentar uma prática profissional que leva em conta a subjetividade do analista.
Ao Hemir Baricão por ter me mostrado que o bom humor deve ser intrínseco ao
trabalho do analista e que o sorriso pode levar a cura tanto quanto o pranto.
Às minhas grandes amigas e companheiras desses 5 anos de PUC: Kika, Táta, Cris,
Dre, Fê e Clau pela companhia fiel nesses anos de faculdade; pelas gargalhadas sem
fôlego, pelas festas, cervejas, dúvidas, medos e choros. À Debora por ter divido comigo
as ansiedades desse trabalho; à Roberta, minha grande amiga, alma gêmea “psi”, pelas
nossas risadas, por me ouvir sempre. À Felícia por termos dividido durante todo esse
ano a experiência do estágio em um abrigo com nossas angústias e gargalhadas fora
de hora. Às minhas amigas Bia e Marcela pela eterna companhia e por terem me
ensinado que o silêncio não e sinônimo de solidão, mas sim de comunhão.
Ao Biel pela sua sensibilidade e por se encantar com o humano. Por estar sempre ao
meu lado, torcendo e me apoiando desde minha primeira conquista.
Ao Projeto Fazendo Minha História por me mostrar como é possível sonhar e tornar o
sonho realidade.
Às educadoras e mães sociais por terem dividido comigo suas práticas e vivências, de
maneira sincera e emocionada.
“É na soma do seu olhar / Que vou me conhecer inteiro / Se nasci pra enfrentar o mar /
ou faroleiro.”
Chico Buarque
MARIA LACOMBE PIRES: Um olhar para o abrigo: reflexões sobre a prática do educador e mãe social e sua influência na vida das crianças e dos adolescentes
abrigados. 2006
Orientadora: Profa. Dra. Ana Mercês Bahia Bock
Palavras chaves: Educador e mãe social; abrigo; infância e adolescência.
Resumo
Esta pesquisa buscou, por meio da leitura da psicanálise social, apresentar um
olhar sobre o trabalho do educador e da mãe social de abrigo e sua influência na vida
das crianças e adolescentes institucionalizados. Tendo como referência a teoria
psicanalítica, na qual o ambiente, representado pelo outro, tem extrema importância na
vida da criança e considerando-se o fato de, na dinâmica institucional do abrigo, serem
os educadores e mães sociais os responsáveis pela educação e cuidado das crianças,
pesquisou-se as marcas deixadas e as percepções que estes têm sobre a vida desses
sujeitos afastados do convívio diário com seus familiares. O objetivo é, portanto,
compreender as teorizações que os profissionais que atuam nos abrigos formulam
sobre esta inserção e sobre a contribuição para o desenvolvimento das crianças e
adolescentes com os quais trabalham. Como procedimento de coleta de dados
realizamos entrevistas individuais com uma educadora e uma mãe social de abrigos
que atendem crianças de zero a 18 anos na cidade de São Paulo. As entrevistas foram
definidas dentro de um processo de conversação e seguiam um roteiro com questões
que visavam garantir a obtenção de informações importantes para o objetivo da
pesquisa. Buscou-se depois da coleta, analisar o discurso de cada sujeito para
compreender a teorização que têm da sua prática e a influência sobre o
desenvolvimento psicológico das crianças e adolescentes; possibilitou ainda a análise
das funções de mãe social e de educadora.
Sumário
Introdução: Meu percurso pessoal nesse trabalho.................................. 8
I. Um resgate da história do abandono no Brasil............................. 12
II. ECA – A criança e o adolescente como sujeitos de direitos........ 18 II. a. Quem são as crianças e adolescentes acolhidos nos abrigos da cidade de São Paulo?......................................................................... 19 II. b. A instituição abrigo...................................................................20 II. c. O educador social de abrigo ................................................... 23
III. Paulo Freire e o educador social...................................................26
IV. A instituição e os afetos possíveis................................................ 30
V. O lugar do ambiente na constituição da subjetividade................. 33
VI. Metodologia.................................................................................. 47 VI. a. Os abrigos............................................................................... 51 VI. b. Os sujeitos............................................................................... 53 VI. c. Procedimento de coleta de dados........................................... 55 VI. d. Procedimento de análise dos dados....................................... 57 VII. Apresentação dos dados e análise............................................... 59 VII. a. Sujeito 1 – Luciana.................................................................. 59 VII. b. Sujeito 2 – Sueli....................................................................... 83 VIII. Discussão dos dados.................................................................... 111
Conclusão................................................................................................ 123 Referências Bibliográficas Anexo 1 – Termo de consentimento Anexo 2 – Entrevistas na íntegra
Introdução: Meu percurso pessoal nesse trabalho
O interesse para a realização desse trabalho surgiu a partir da eletiva teórica
“Criança e adolescente em situação de vulnerabilidade” ministrada pela Profa. Maria de
Lourdes Trassi Teixeira, no curso de Psicologia da PUC – SP. Com essa experiência,
algumas questões se colocaram para serem pesquisadas referentes às crianças e
adolescentes abandonados e as instituições que os acolhem, mais especificamente o
abrigo. Questionava-me a respeito das possibilidades de subjetivação e construção de
identidade das crianças e adolescentes abrigados afastados do convívio familiar. A partir dessa experiência, senti a necessidade de uma vivência prática nessa
área e comecei a fazer parte de um Projeto Social – “Fazendo Minha História” –, que
atende crianças de 0 a 12 anos vivendo em situação de abrigo, com a proposta de
resgatar e registrar as histórias dessas crianças. Acho válido acrescentar nesse ponto
algo interessante que me ocorreu durante uma tarde num abrigo da cidade de São
Paulo: logo após um encontro desse projeto realizado junto a duas crianças, uma
educadora interpelou-me se não iria existir um dia alguém também responsável em
escutar suas histórias, seus medos e fantasias e quem sabe, ter um projeto similar para
os educadores. Essa situação me mobilizou para a questão desses profissionais, a qual
acabei por aprofundar mais adiante.
No quinto ano do curso de Psicologia, participei do Núcleo intitulado
“Psicoprofilaxia da Infância e da Adolescência” e realizei um estágio de duração de um
ano em um abrigo voltado para o atendimento de adolescentes grávidas e seus bebês.
Nessa experiência, depois de realizado o diagnóstico institucional, tracei, junto com
minha dupla e a supervisora o projeto de intervenção, um trabalho direto com as
educadoras sociais do abrigo, pois pensávamos ser este mais profilático já que são
esses profissionais que convivem diariamente com o público atendido.
Foi então a partir dessas experiências que me aproximei da realidade dos
abrigos, dos educadores, das crianças e adolescentes acolhidos nessas instituições.
Deparei-me com angústias e medos pessoais muito intensos, o que me levou a refletir
sobre o trabalho dos educadores, que suportam e acolhem vivências tão intensas e
histórias de vida tão difíceis dos sujeitos abrigados e ao realizarem essa tarefa tão
árdua, na maioria das vezes, não são acolhidos e ouvidos e isso, com certeza, lhes
dificulta enormemente a realização do trabalho. Segundo Marin (1999):
Essas pessoas (que acolheram o abandonado) se defrontam com a angustia de
conter essa história de déficits e perdas, muitas vezes se sentem responsáveis e
culpadas por essa questão social e muito facilmente se desesperam frente a impotência
de suprir uma carência tão grande. É comum ouvir de trabalhadores das instituições
“somos uma instituição carente e abandonada”. (pg. 6)
Assim, a questão do abrigo sempre esteve presente para mim como
preocupação de estudo. É um lugar diferente da família, não é uma creche e tão pouco
uma escola. Na tentativa de definir-se, propõem-se como sua função acolher e educar
crianças e adolescentes afastadas do convívio cotidiano com seus familiares. Nessas
condições, os profissionais a esta vinculados também se vêem com dificuldade de
definir suas funções e papeis junto às crianças e adolescentes. A existência de
diferentes denominações para esses profissionais, tais como educador, mãe e pai
social, cuidadora, “tia” dentre outros talvez seja sinal desta dificuldade.
A característica fundamental do abrigo, de ser uma medida provisória de
proteção e acolhimento, também me instigava quando pensava nas relações e vínculos
estabelecidos nessa instituição. Há o fato de muitas crianças manterem vivos e fortes
os vínculos afetivos com seus familiares, outras estão no aguardo de serem adotadas
por novas famílias e ainda há aquelas afastadas definitivamente do convívio com suas
famílias que precisarão viver no abrigo durante anos. O desafio de transformar esse
momento da vida não em uma espera, mas em um momento que lhes possibilite pensar
no futuro e elaborar sua própria história era algo instigante para mim. Diante dessas
reflexões, pensar no papel, nas funções, no lugar de quem está mais próximo dessas
crianças e adolescentes no cotidiano, os educadores sociais, foi inevitável.
A partir desses questionamentos, defini os educadores sociais de abrigo como
sujeitos desse estudo, buscando entender o ambiente no qual as crianças de abrigo
estão inseridas. Durante o levantamento bibliográfico, me deparei com uma lacuna
presente na questão da formação profissional dos educadores; não existia nada
publicado que dissesse respeito a uma formação especifica para o desempenho dessa
função. Diante disso, resgatei na teoria de educação de Paulo Freire e na teoria do
cuidado de Winnicott, além de outros autores, uma base teórica que pudesse dar conta
das questões propostas por esta pesquisa.
São os educadores os responsáveis, na cotidiano institucional, pela educação e
cuidado das crianças e adolescentes; são eles que participam de suas rotinas e se
relacionam diretamente com elas. Este trabalho buscou investigar justamente a
influência e o papel desses profissionais na vida dos sujeitos abrigados, representantes
nessas condições do ambiente aonde irão se constituir as subjetividades dessas
crianças e adolescentes.
Optei por trabalhar diretamente com eles, buscando compreender como
significam e vivenciam o seu trabalho, apresentando como justificativa inclusive o fato
de que, a grande maioria de material produzido sobre a criança e o adolescente em
situação de vulnerabilidade e sobre abrigos, refere-se a casos particulares de sujeitos
abrigados ou à especificidade de seu funcionamento psíquico ou aos aspectos
institucionais do abrigo.
O procedimento de coleta de dados baseou-se em entrevistas individuais
realizadas com 1 educadora social de um abrigo que atende crianças de 0 a 18 anos na
cidade de São Paulo e com 1 mãe social também de um abrigo na cidade de São
Paulo, dirigida à mesma população. Foi importante realizar entrevistas tanto com a
educadora quanto com a mãe social pois o modelo do abrigo é diferente nos dois
casos. A mãe social trabalha em um abrigo que busca reproduzir o modelo familiar,
atendendo no máximo 12 crianças e adolescentes. Elas vivem na casa / abrigo junto
com seu marido, que passa a ter a função de pai social e também com seus filhos
biológicos. No caso das educadoras sociais, trabalham em um modelo de abrigo mais
profissional, com uma proposta educacional mais evidente.
Optou-se em realizar essas entrevistas dentro de um processo de conversação,
no qual a entrevistadora se utilizaria de um roteiro orientador de perguntas com o
objetivo de estimular a conversação, buscando dessa forma implicar o sujeito e a si
mesmo na pesquisa da maneira mais espontânea possível. Essa escolha justifica-se
pela tentativa de se adentrar mais profundamente nas vivências e na prática desses
profissionais, compreendendo-se nesse caminho o papel dos educadores e das mães
sociais na vida desses sujeitos em situação de abrigo. A análise baseou-se em trechos
dos discursos dessas profissionais e por meio destes pude pensar em caminhos e
respostas possíveis para minhas indagações. Estas tiveram como base as teorias de
Paulo Freire e Winnicott e outros autores preocupados com a questão dos afetos
envolvidos e possíveis no ambiente institucional.
O primeiro capítulo apresenta um resgate da história da criança abandonada no
Brasil e dos atendimentos fornecidos à primeira infância e juventude nessas condições.
Em seguida, busquei compreender o contexto institucional no qual as crianças,
adolescentes e os profissionais que os assistem estão inseridos, até abordar alguns
autores com a preocupação de definir um ambiente saudável para a criança. Com isso,
buscamos aproximar- nos do que poderia ser função e papel do educador e da mãe
social de abrigo, tendo em vista a carência de material produzido em relação à
formação especifica desses profissionais. Na metodologia defini os sujeitos envolvidos
nesse estudo, as instituições as quais estão vinculados e o processo de coleta e análise
de dados. Os trechos contendo os discursos e conseqüente análise dos mesmos se
encontram no capitulo “Apresentação e análise dos dados”. Sintetizamos os dados da
análise na busca de promover um diálogo entre a mãe e a educadora social. Foi
possível no último capitulo denominado “Conclusão” visualizar de uma maneira mais
ampla o ambiente proporcionado pela educadora e pela mãe social às crianças e
adolescentes em situação de abrigo.
I – Um resgate da história do abandono no Brasil
Tenho o direito de ter raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga, tal qual tenho o direito de
amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História
como tempo de possibilidade e não de determinação. Paulo Freire1
Para iniciar, é fundamental traçarmos o caminho da história do abandono e do
atendimento social oferecido às crianças e adolescentes, nesta situação, no Brasil.
Segundo Del Priore (1991), a história do abandono inicia-se já no século XVI,
com a chegada dos portugueses colonizadores ao Brasil. A Companhia de Jesus chega
com a missão de civilizar os indígenas. Em suas palavras:
Aos olhos dos Jesuítas recém chegados às Índias então descobertas, não só o
cenário carecia de ordem que exprimisse a marca civilizatória da metrópole na colônia,
mediante a instalação de vilas, erecção de capelas e a semeadura dos campos, mas as
almas indígenas deviam ser ordenadas e adestradas para receber a semeadura da
palavra de Deus. Transformação da paisagem natural e também transformação dos
nativos em cristãos: esta era a missão. (1991, pg. 10-11)
Era descoberta na Europa ocidental nessa época, século XVI, a infância e assim
criados os primeiros modelos ideológicos sobre a criança. (Áries, apud Del Priore,
1991). Características dessas crianças, tais como, doçura, inocência, gestos delicados,
o olhar e a meiguice passaram a ser valorizados. Os Jesuítas chegam imbuídos dessa
valorização da infância e talvez por isso escolhem as crianças indígenas como alvo
para realizarem sua missão, que era conquistar a alma dos índios. Para isso, trazem
junto com eles ao Brasil os órfãos e crianças abandonadas portuguesas para serem
usadas como “iscas” para atrair os indígenas crianças e posteriormente, atingir os
adultos.
1 Trecho retirado do livro “Pedagogia da Autonomia”. São Paulo: Paz e Terra, 1996. pg. 75
Desse encontro de duas culturas, nascem os “órfãos da terra”, filhos de pai
português e mãe brasileira, que “cedidos pelos genitores, (...), reuniam-se sob cuidados
jesuíticos nas chamadas ‘casas de muchachos’” (Del Priore, 1991, pg. 17). As casas de
muchachos são consideradas os primeiros abrigos do Brasil, que além de abrigarem os
órfãos da terra, também tinham a responsabilidade cuidar dos órfãos e enjeitados de
Portugal.
O que acontecia por fim era que os pequenos indígenas faziam a passagem pela
educação religiosa cristã, porém diferentemente do que os colonizadores pensavam,
não eram “papéis em branco” e já tinham tradições e valores indígenas. Com isso, ou
porque fugiam ou por já serem adolescentes e precisarem sair da casa dos muchachos,
essas crianças índias e mestiças rompiam com os jesuítas e também não eram mais
aceitas pelas tribos. Não tendo para onde ir, “(...) os mamelucos, mestiços e índios
estavam livres para escrever por sua vez e de forma definitivamente sincrética, outra
história em um outro papel.” (Del Priore, 1991, pg. 25).
No século XVIII, a questão do abandono começou a incomodar muito a
sociedade da época, que se mobilizou para resolver esse problema. Segundo Guará:
Muitas crianças e adolescentes que sobrevivem nos espaços urbanos, marcados
pela exclusão e pela violência, espelham o abandono, a fome, a exploração e a
negligência de uma realidade incômoda para a sociedade brasileira. (...) Os registros
históricos demonstram que já no final de século XVIII, a questão do abandono começara
a incomodar a sociedade da época, o que exigiu investimentos para o atendimento de
“menores” (1998, pg. 15)
No Brasil, até o começo do século XVIII, a assistência às crianças abandonadas
era informal. As crianças que sobreviviam eram acolhidas em casas de família, que
assim agiam ou por caridade, ou por pretender transformá-las em serviçais da casa.
Portanto, o acolhimento tinha um caráter assistencialista e caritativo, não visando
mudanças sociais.
Nesse cenário, foi trazida pelos colonizadores uma instituição de acolhimento
dessas crianças abandonadas, a “roda de expostos”, primeiramente para Salvador em
1726. Depois de depositada na Roda em sigilo, para que a identidade da mãe da
criança não fosse revelada, a criança era batizada e uma ama de leite tornava-se
responsável por ela por aproximadamente três anos. As amas de leite eram mulheres
muito pobres que faziam dessa atividade um meio de sobrevivência. A situação das
crianças abandonadas nas Rodas era freqüentemente precária, faltando berço,
vestuário, etc para as crianças. Nessas condições, muitas crianças acabavam não
sobrevivendo.
Terminado o período de criação, no qual permaneciam com a ama- de- leite,
iniciava-se o período de educação, quando as crianças permaneciam na Casa de
Expostos até os sete anos. Terminada essa fase, tentava-se encaminhar as crianças
para casas de família, onde os meninos pudessem aprender algum ofício e as meninas
trabalhar como empregadas domésticas. Quando isto não dava certo, as crianças
acabavam perambulando pelas ruas. Além das crianças abandonadas por suas mães,
também havia as crianças filhas da pobreza e o aumento crescente do número de
enjeitados levou à criação dos Orfanatos e Patronatos, locais de acolhimento em massa
e espaços coletivos por excelência. Nesses locais as crianças eram atendidas
coletivamente.
Ao longo do século XIX, o espírito caritativo da época colonial foi sendo
substituído pela filantropia, que representou a tentativa de adequar o modelo
assistencial às novas exigências políticas, sociais e econômicas. Assim, o Estado
assumiu as responsabilidades de atendimento dessa população de crianças e
adolescentes abandonados mais tarde, primeiramente atendendo as “delinqüentes” –
crianças e adolescentes que não se enquadravam nos padrões vigentes e precisavam,
portanto, ser corrigidos e disciplinados – e delegou para as entidades filantrópicas o
cuidado com os “menores abandonados” (Guará, 1998). O objetivo dessa transição
para a filantropia, influenciado pelos avanços tecnológicos e pelo poder
médicohigienista, era formar um homem capaz de viver saudavelmente, em boa forma,
nas grandes cidades, ser um trabalhador correto e competente, disciplinado e dentro
dos padrões da normalidade (Marcílio, apud Cunha, 2003).
Nessa época, a exploração de crianças pobres no interior das fábricas começou
a ser denunciada. As crianças pobres representavam mão-de-obra barata e expressiva
margem de lucro, sendo assim razões suficientes para que a exploração não só
aumentasse, como fosse mantida. Diante desse problema, as primeiras políticas sociais
de defesa da criança foram elaboradas: regulamento de proteção aos menores
abandonados e delinqüentes (1923), Código de Menores (em 1927, para regulamentar
o trabalho infantil) e a proibição do trabalho dos menores de quatorze anos sem
permissão judicial (em 1934).
A internação proposta através do Código dos Menores, que tinha como objetivo
a correção de comportamentos delinqüenciais, ocorreu pela primeira vez em 1927. O
termo “menor” passou a ser referido às crianças pobres e abandonadas, vistas
preconceituosamente como delinqüentes em potencial. Grandes internatos foram
construídos a partir da década de 30 e se expandem como principal modelo
institucional, visando isolar socialmente essas crianças e adolescentes para que após a
internação pudessem ser reinseridas na sociedade de maneira mais adaptada e em
condições de alcançar o padrão de comportamento moral e social em vigor. A
internação tinha portanto duas funções: proteger as crianças do mundo e proteger a
sociedade do convívio com elas. (Guará, 1998)
Esse modelo foi muito criticado por muito tempo e as criticas ganharam
fundamentos teóricos com o avanço da pesquisa cientifica e com as denúncias da
imprensa. Nesse contexto surge a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do
Menor), em 1964, com o objetivo de ser uma política inovadora, incumbida de fiscalizar
e de oferecer referências e modelos para as entidades através de programas
interdisciplinares de reeducação, que levavam em conta dimensões psíquicas, sociais e
biológicas das crianças. Infelizmente, o modelo de internação continuou sendo o mais
utilizado nos casos de atendimento à órfãos, delinqüentes, carentes, etc. Os internatos
ligados à FUNABEM mantiveram as mesmas concepções, isolando os internos do
convívio social. (Guará, 1998).
Os internatos eram comparados às prisões, onde as crianças e adolescentes não
podiam se expressar e se desenvolver saudavelmente. Desde o momento da entrada
deles nas instituições, sua identidade já era violada através do despojamento de seus
bens, identificação por numeração, hierarquia bastante rígida e distante dos internos,
funcionários repressores, falta de liberdade, etc.
O isolamento social resultava numa alienação dos internos e a massificação do
atendimento tinha como conseqüências a despersonalização da criança ou adolescente
bem como implicava em maior dificuldade para o estabelecimento de uma auto-imagem
positiva e formação de identidade muito comprometida, dificultando o caminho para a
socialidade e interferindo nas relações das crianças com o mundo. O isolamento é
responsável ainda pelo aumento e manutenção dos estigmas socias de abandonado e
delinqüente.
Movimentos a partir da década de 70 começam a surgir mais fortemente pedindo
uma nova forma de atenção aos adolescentes e crianças em situação de risco. O
modelo assistencial e repressivo precisava ser substituído por um outro muito diferente
dessa concepção. O primeiro passo foi a abertura das instituições para a comunidade.
Crianças carentes da comunidade eram atendidas em regime de semi-internato, onde
eram realizadas atividades sócio-educativas fora do horário escolar. Essa também era
uma demanda dos movimentos sociais dos bairros mais populares, que além dessa
conquista, conseguiram aumentar significativamente os serviços de creches.
Outro movimento que se iniciou foi a flexibilização das regras dos internatos
quanto às visitas e saídas nos fins de semana com os pais e parentes e uma maior
integração com a comunidade iniciou-se lentamente através da participação dos
internos nos centros de saúde, escolas, etc. (Guará, 1998)
Algumas alternativas de atendimento em meio aberto tanto para aqueles que
estavam sendo desinternados, quanto para aqueles que necessitavam de serviços
“preventivos” ao abandono foram experienciadas, como por exemplo as “Casas da
Juventude”, os “Centros de Convivência Infantil”, dentre outras. Porém, esses projetos
ainda eram minoria.
Um movimento diferente de todos que havia existido até então surge quando as
crianças e os adolescentes tomam consciência de suas próprias condições. Surge o
Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua e a Pastoral do Menor que
lutavam principalmente pela desinstitucionalização. Como conseqüência, muitas
desinternações foram acontecendo e muitas instituições foram fechadas. Buscava-se,
inclusive, transformar as condições sociais e econômicas que geravam o abandono e
mudar radicalmente a qualidade do atendimento. (Guará, 1998)
Com a abertura política nos anos 80, a luta pelos direitos humanos tomou fôlego
e ganhou força e soluções para as causas do abandono foram buscadas, através de
um olhar mais exigente e critico sobre as crianças e adolescentes. Movimentos sociais
ganham apoio de entidades não governamentais, agentes públicos, comunidade, etc.
Esses movimentos resultaram na elaboração de uma legislação de defesa dos direitos
da infância e juventude, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990,
elaborado por uma equipe multidisciplinar composta por pedagogos, psicólogos,
assistentes sociais, advogados, dentre outros profissionais, contendo concepções e
princípios baseados em conhecimentos de diferentes campos teóricos e inovações
cientificas.
II - ECA – A criança e o adolescente como sujeitos de direitos
Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é
fim, o lugar onde todo adulto deve chegar.
Rubem Alves2
A Lei Federal número 8.069 que define os direitos da criança e do adolescente,
denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) representa uma legislação de
defesa dos direitos da infância e juventude. A novidade trazida pelo ECA é no sentido
de considerar as crianças e adolescentes dessa faixa etária como sujeitos de direitos,
além de estabelecer o Estado, a sociedade e a família como os responsáveis em
garantir-lhes educação, saúde e bem estar.
O ECA rompe com a relação pobreza = delinqüência, com o uso do termo
“menor” e com a obrigatoriedade da internação das crianças abandonadas. As novas
indicações da lei colocam que “o atendimento deve ser realizado de forma
personalizada, em pequenas unidades e pequenos grupos, privilegiando-se as ações
descentralizadas e municipalizadas.” (Guará, 1998. pg.21)
Coloca também uma nova modalidade de filantropia: incentivos fiscais àqueles
que prestarem serviços à comunidade e conseqüentemente diminuição das despesas
do Estado com a manutenção dos projetos sociais. Coloca-se, portanto, a participação
da sociedade civil frente aos problemas socias e a responsabilidade do Estado com a
assistência social.
Essa descentralização no cuidado com as crianças e os adolescentes em
situação de abandono cria outras possibilidades de procedimento além da internação,
como por exemplo, o abrigo, orientação e apoio sócio familiar, colocação familiar, etc
(ECA, p. 88). Todas essas modalidades de acolhimento / intervenção privilegiam o
sistema aberto de reintegração social.
O ECA desenha alguns princípios importantes, rompendo com a política de
assistência às crianças e adolescentes vigente até então. O primeiro princípio a ser
comentado é a proposta de substituição de uma tendência e modelo assistencialistas 2 Trecho retirado do livro “Conversas sobre educação”. Campinas: Verus editora, 2003. pg. 38
de atendimento a essa população por outras propostas de caráter socioeducativo e
emancipatório. Mais adiante se discutirá como isso se realiza na prática dos
atendimentos nos abrigos. Outro princípio refere-se ao estabelecimento de práticas
embasadas em uma proposta educacional mais evidente no atendimento às crianças e
aos adolescentes em condição de vulnerabilidade social. Um terceiro ponto levantado
pelo Estatuto diz respeito à prevenção do abandono de crianças e adolescentes. Para
isso, apresenta como uma das principais medidas de proteção a manutenção da
criança e do adolescente na família e na comunidade, visando a garantia dos seus
direitos sociais básicos. Por fim, O ECA apresenta como proposta assegurar às
crianças e adolescentes o pleno desenvolvimento físico, mental, espiritual e social e isto
só pode ser conseguido se estão em condições de liberdade e dignidade. (Guará,
1998).
Estes princípios nos quais o ECA está baseado têm por objetivo romper
completamente com um modelo assistencialista de atendimento à criança e ao
adolescente em situação de risco pessoal, trazendo, em vez disso, uma nova
concepção de educação. A partir do ECA, a criança e o adolescente são sujeitos de
direitos e isso relaciona-se e implica de modo inequívoco na inserção e na garantia do
direito que passam a ter no que tange à educação e não alvos de um modelo
assistencial.
II. a – Quem são as crianças e adolescentes acolhidos nos abrigos da cidade de São Paulo? São encaminhadas para o abrigo, através do Conselho Tutelar ou da Vara da
Infância, as crianças e adolescentes que se encontram desprotegidos e em estado de
abandono social. Somente na cidade de São Paulo,3 há 4.847 crianças e adolescentes
vivendo em abrigos, sendo a maioria desses do sexo masculino e negros.
Os bebês e crianças de pouca idade são minoria, sendo que a maior
concentração dos sujeitos vivendo em abrigos é na faixa etária de seis a 16 anos.
Quanto ao vínculo com a família biológica, a maioria das crianças e adolescentes não
são órfãos (tem sua família de origem) e recebem visitas no abrigo de seus familiares.
Ainda assim, é grande o número de crianças e adolescentes com família desconhecida
e também é significativo a quantidade de crianças e adolescentes que não recebem
visitas de seus parentes consangüíneos. Em relação aos motivos de abrigamento, o
principal deles é abandono e negligência; depois, refere-se a problemas relacionados à
saúde e às condições sociais; depois segue o motivo dos maus tratos; por uso de
drogas ou alcoolismo por parte do pai ou da mãe. Outros motivos de abrigamento de
menor ocorrência são: falecimento do pai ou da mãe, criança em situação de rua,
problemas mentais do pai e/ou da mãe, cumprimento de pena pelo pai ou pela mãe,
falta de condições familiares para cuidar da criança, devolução por guardiões, dentre
outros. Quanto à permanência dessas crianças e adolescentes no abrigo, este tempo é
longo, sendo a maior parte de três a quatro anos. Em relação à perspectiva de
desabrigamento, a maioria dos sujeitos abrigados tem como perspectiva futura retornar
a conviverem com sua família biológica, depois vem aqueles que serão inseridos em
famílias substitutas e por fim, há crianças e adolescentes, em sua minoria, que irão ser
desabrigados com a maioridade.
II. b – A instituição Abrigo 3 Dados retirados no relatório da pesquisa Por uma política em defesa dos direitos das crianças
e dos adolescentes na cidade de São Paulo realizada pela SAS, Fundação ORSA, NCA-PUC-
SP e AASPTJ-SP. 2004
As medidas de proteção recomendadas pelo ECA se aplicam à criança e ao
adolescente violados ou ameaçados em seus direitos básicos, seja por omissão do
Estado ou pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (Artigo 98 do ECA). As
principais medidas de proteção priorizam a manutenção da criança na família e na
comunidade, buscando garantir à criança e ao adolescente que seus direitos básicos
sejam respeitados, bem como busca protegê-los do abandono.
Porém, mesmo buscando garantir a permanência da criança junto a sua família
de origem, em muitos casos a família não está em condições de cuidar da criança e ser
para ela um ambiente favorável a seu desenvolvimento. Nesses casos, existem outras
medidas de proteção antes do encaminhamento ao abrigo que buscam manter a
criança na família, por exemplo, articulação em rede junto com a comunidade,
atendimentos ambulatoriais e assistenciais, etc. Quando os esforços dos Conselhos
Tutelares e do Poder Judiciário para que as medidas de inserção familiar sejam
cumpridas fracassam, o ECA recomenda o abrigo como medida provisória até que a
família recupere sua capacidade de proteção e cuidado da criança e do adolescente.
Porém, se a autoridade judiciária verificar que a família biológica está temporária ou
definitivamente impossibilitada de fornecer educação e cuidado para seus filhos, ela
poderá indicar a última medida, qual seja, colocação em família substituta na forma e
guarda, tutela ou adoção.
O abrigo é uma medida de proteção, caracterizado pela provisoriedade; tem
como objetivo colocar as crianças e adolescentes em família substituta ou promover o
retorno às suas famílias de origem. Mesmo provisório, o abrigo – sendo um lugar de
proteção e uma alternativa de moradia – deve oferecer um clima residencial, possibilitar
um atendimento individualizado e ajudar na reinserção das crianças e adolescentes na
comunidade através de escolas, áreas de lazer, médicos, dentre outros e por isso,
devem funcionar “dentro de uma rede de atendimento municipal, numa perspectiva
integrada das políticas sociais locais e em parceria com a sociedade civil.” (Guará,
1998. pg. 9)
O tempo de permanência de cada criança e adolescente no abrigo depende de
suas histórias de vida particulares. Assim, existem crianças que precisarão permanecer
na instituição por pouco tempo até poderem retornar a família e em outros casos, terão
que permanecer abrigadas por anos, muitas até serem emancipadas. Portanto, o abrigo
deve considerar, apesar de ser provisório, que esse tempo será relativo e a criança tem
o direito e por isso o abrigo necessita lhe garantir permanecer abrigada pelo tempo que
precisar.
Segundo o ECA, o abrigo é uma medida de proteção, provisória e excepcional,
utilizada como forma de transição para posterior retorno à família de origem ou para a
criança e o adolescente ser encaminhado para família substituta, não implicando em
privação de liberdade (Artigo 101- Parágrafo Único do ECA). Portanto, o abrigo deve
ser claramente discernido de um internato, pois não priva a criança e o adolescente de
sua liberdade. Opostamente, deve garantir o direito a esses indivíduos a conviver e
participar da cultura, da comunidade através de cursos, eventos culturais, escola,
centros de saúde, etc. O abrigo também é diferente de um albergue, pois tem como um
de seus principais objetivos proporcionar uma proteção e guarda integral ao sujeito.
(Guará, 1998)
Importante ressaltar o Artigo 92 do ECA referente a princípios e critérios que
devem orientar o abrigo:
I – preservação dos vínculos familiares;
II – integração em família substituta quando esgotados os recursos de manutenção na
família de origem;
III – atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV – desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V – não – desmembramento de grupos de irmãos;
VI – evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e
adolescentes abrigados;
VII – participação na vida da comunidade local;
VIII – preparação gradativa para o desligamento;
IX – participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
A fiscalização do abrigo é realizada pelos Conselhos Tutelares, Vara da Infância
e da Juventude e do Ministério Público. O bom funcionamento do abrigo depende das
relações estabelecidas com esses órgãos públicos. Por exemplo, a parceria entre o
abrigo e o Conselho Tutelar é muito importante no processo de intervenção e apoio,
para que a criança e o adolescente possam retornar à sua família de origem; e, entre a
Vara da Infância e da Juventude, é fundamental já que quando a criança é abrigada fica
sob a intervenção desse órgão, e em qualquer caso, a última palavra é sempre do juiz.
Importante ressaltar que o atendimento no abrigo só será eficiente se estiver
integrado à rede local de atendimento à criança e ao adolescente. Essa rede diz
respeito aos programas de proteção, de auxilio à família, de educação, saúde, esporte,
lazer, etc.
O ECA não recomenda qualquer tipo de atendimento realizado em grandes
instituições, já que determina que este deva privilegiar pequenos grupos de crianças e
em pequenas unidades, visando acabar com a massificação do atendimento. As
alternativas sugerem que sejam “casas” comuns, localizadas nos bairros da cidade,
com capacidade para o número de crianças abrigadas e que possua banheiros,
cozinha, dormitórios, quintal, salas de estudo em boas condições de higiene, saúde e
segurança. Essas casas-abrigo podem ser pequenas (abrigar até 20 crianças e
adolescentes) ou de porte médio (abrigar no máximo 35). É importante que isso seja
respeitado, pois só assim se torna possível que um atendimento personalizado ocorra,
que as crianças possam utilizar os recursos do bairro e que possam se integrar com a
comunidade.
Importante ressaltar ainda que o abrigo representa uma guarda
institucionalizada, diferentemente de colocação de crianças e adolescentes em famílias
substitutas, nesse caso representando a guarda domiciliar. Famílias são cadastradas e
quando o retorno à família de origem não é mais viável, essas são acionadas e
recebem apoio financeiro para assumir a guarda provisória da criança e do
adolescente.
II c – O educador social de abrigo
Pode-se pensar, a partir dessa contextualização dos abrigos, que o ECA –
trazendo uma mudança na concepção dos atendimentos à criança e ao adolescente –
amplia o lugar do educador social, diferentemente do que ocorria quando a função
desempenhada pelos “cuidadores” das crianças e adolescentes não tinha o caráter
educativo. Nas palavras de Guará (1998):
Analisando a história do atendimento social às crianças e adolescentes em
abandono social, verifica-se que esta atenção era desenvolvida predominantemente por
agentes voluntários – religiosos ou leigos. Dessa forma, eram poucos os trabalhadores
remunerados, pois a lógica que tradicionalmente orientou essa ação, inspirava-se num
ideário baseado num compromisso missionário. (Pg. 43)
A equipe profissional que trabalha nas casas-abrigos diretamente com as
crianças é composta por dirigentes, educadores e as pessoas de apoio operacional
(cozinheira, faxineira, porteiro, etc). Os educadores sociais “...são encarregados da
educação global das crianças e jovens em atividades de orientação individual e grupal,
cuidados de higiene e alimentação, apoio escolar, atividades de lazer e recreação e
acompanhamento externo quando necessário.” (Guará, 1998, Pg. 45) Dessa maneira,
fica claro a mudança da função do educador social depois do ECA. O educador de
abrigo deve proporcionar à criança e ao adolescente uma formação que vá além de
educar; ele necessariamente acaba envolvendo-se emocionalmente com os abrigados
e isso precisa ser levado em conta no seu trabalho, pois se constitui num diferencial.
Alguns autores ressaltam também outros elementos fundamentais presentes
nesse trabalho. No contato direto com os sujeitos abrigados, muitas fantasias e
fantasmas universais são revividos. Não há quem não tenha vivido em algum momento
de sua vida o temor e o medo de ser abandonado, esquecido. O que muitos
experienciam como fantasia, é vivido como realidade pelas crianças e adolescentes
abrigados, e no momento da escuta das histórias deles, esses fantasmas são trazidos à
tona e precisam ser resignificados (Sanches, Parente e Moraes, 2005).
Intrínseco a reviver fantasmas e fantasias primitivas de abandono, as histórias
de vida dos abandonados trazem também à luz a questão da desigualdade social, “uma
desigualdade que tem criado indivíduos cada vez mais desamparados e carentes de
condições mínimas de sobrevivência física e psíquica” (Temer, pg. 87, 2005). Muitas
vezes é mais fácil ignorarmos essa desigualdade fechando os vidros de nossos carros
aos meninos no farol, mudando o canal da televisão quando a noticia é da miséria de
muitas famílias brasileiras, quando mostra o trabalho infantil escravo, a luta dos sem-
terra, entre tantas outras situações. Reagimos na maioria das vezes como se essa
realidade desigual não tivesse nada a ver conosco, como se fosse responsabilidade
apenas de um governo corrupto.
A relação direta e íntima com as crianças e adolescentes abandonados torna
impossível ignorar essa realidade, pois traz a história de uma família que não pode, por
diversos motivos, permanecer com a guarda do filho e também a realidade da miséria
do Brasil, esta possibilitando cada vez menos condições básicas, materiais e
econômicas para as famílias criarem seus filhos (Temer, 2005). Assim, a realidade
social em que vivemos, faz com que milhares de famílias não tenham condições
básicas de sobrevivência, abandonando-as; essas famílias, vendo-se abandonadas
pela sociedade, abandonam seus filhos levando-os para uma instituição, que também
se vê abandonada pelas políticas publicas. É essa realidade social que se torna muito
viva aos trabalhadores do abrigo. O que muitos ignoram, é preciso ser encarado de
frente pelos educadores sociais e aí se vê mais uma das grandes dificuldades de seu
trabalho.
O abandono presente em todas as histórias dos sujeitos abrigados, segundo
Sanches e Peloso (2005) “é uma situação potencialmente traumática” (p.149). O trauma
define-se como uma situação difícil vivenciada pelo sujeito, na qual ele ainda não
possui recursos suficientes para entendê-la ou significá-la, vendo-se dessa forma
impossibilitado de nomeá-la. A necessidade desse trauma, no caso o abandono, ser
nomeado por alguém que seja importante, que faça sentido na vida da criança
possibilitando uma elaboração do mesmo, é ressaltado por Dolto (1989 apud Sanches
2005). Para Sanches e Peloso (2005), “este saber tão doloroso é tarefa árdua demais
para um sujeito só. O encontro com um outro, que dá um nome à dor, e compartilha do
sofrimento, é o caminho para que essa experiência possa ser integrada ao self” (p.150).
A mudança na função do educador social de abrigo, portanto, evoca a questão
de como a formação desses profissionais vem se realizando atualmente, já que se
espera, a partir do ECA, um novo lugar para os educadores. Guará (1998) aponta que
um espaço para a colocação de conflitos, dificuldades, supervisão, discussões,
seminários seria fundamental para a capacitação desses profissionais tendo em vista o
grande envolvimento emocional exigido no desempenho dessa função. Além disso, se
entendermos que um sofrimento quando dividido com outra pessoa importante nas
nossas vidas se torna mais fácil de ser vivido, um espaço para que o educador social
exponha suas angústias é bastante fundamental.
III - Paulo Freire e o educador social
Quando se tira da criança a possibilidade de conhecer este
ou aquele aspecto da realidade, na verdade se está
alienando-a da sua capacidade de construir seu
conhecimento. Porque o ato de conhecer é tão vital como
comer e dormir, e eu não posso comer ou dormir por
alguém.
Madalena Freire4
O abrigo se apresenta como uma alternativa de moradia e acolhimento substituto
da família de origem. Propõe que o atendimento seja personalizado, o que implica na
garantia da individualidade e da singularidade da criança e do adolescente abrigado. É
função do educador social, nesse sentido, fazer um planejamento individualizado,
garantir e respeitar a singularidade e a história pessoal de cada criança e adolescente.
A expectativa depositada no educador social, de que ele possa reconhecer e
respeitar o outro no seu contexto particular de experiências e vivências, revela a
concepção de educação que embasa o ECA. Quando o Estatuto coloca a necessidade
dos educadores sociais garantirem para as crianças e adolescentes uma formação mais
ampla do que educar; quando diz da importância fundamental de respeitar e considerar
as histórias de vida das crianças e, assim, que a relação a ser estabelecida com elas e
as atividades programadas precisam fazer sentido para ela a partir de seu contexto
social, pode-se pensar que a concepção de educação e com isso, o que o ECA espera
que seja um educador social, se aproxima da concepção do educador Paulo Freire.
Para Paulo Freire, a tarefa do educador é antes de tudo a tarefa de criar uma
outra educação (Brandão, 1981). Ele construiu uma nova proposta de alfabetização no
Brasil denominada “O Método Paulo Freire de alfabetização de adultos”, na qual a
atividade de trabalho, a realidade social das pessoas eram fundamentalmente levadas
em consideração e intrínsecas ao processo. Os educadores deveriam realizar um
estudo da realidade de trabalho dessas pessoas e com isso, fazer um levantamento
4 Trecho retirado do livro “A paixão de conhecer o mundo”. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1983. pg. 15
das palavras especificas ligadas à essa realidade para serem utilizadas no processo de
aprendizagem. Brandão (1981), no livro “O que é método Paulo Freire” apresenta um
exemplo do que foi essa nova proposta de alfabetização no Brasil: “Assim, as palavras
geradoras escolhidas para uma campanha de alfabetização nos morros e favelas do
Rio de Janeiro foram estas: favela, chuva, arado, terreno, comida, batuque, poço,
bicicleta, trabalho, salário, profissão, governo, mangue (...).” (p. 33).
O principal para Paulo Freire era que a aprendizagem fizesse sentido para o
educando e para o educador, por isso a realidade social de ambos era intrínseca ao
processo. Segundo Brandão (1981),
A educação que Paulo Freire vislumbra não é apenas politicamente utilitária. Ela
não objetiva somente criar novos quadros para um novo tipo de sociedade. Há uma
proposta politicamente mais humana, a de criar, com o poder do saber do homem
libertado, um homem novo, livre também de dentro para fora. (p. 87)
Esse homem novo e liberto a que o autor se refere só é alcançado através de
uma prática libertadora de educação que se opõe a uma prática domesticadora. Numa
prática libertadora, há uma unidade entre ação e reflexão sobre a realidade. O
educando participa do processo, sendo este dialógico, diferentemente do que ocorre
numa prática domesticadora, em que os educadores possuem o conhecimento e devem
transferi-lo para aqueles que não o possuem, os educandos.
Paulo Freire critica o fato das escolas terem, em geral, um programa universal
que deve ser ensinado; uma cultura única e universal que necessita ser transmitida
para os educandos. Assim, nessa prática, o cotidiano dos alunos não é levado em
conta e a escola distancia-se das experiências vividas pelos alunos, tornando-se dessa
forma desinteressante. Ao fazer essa critica, Paulo Freire enfatiza e sublinha o aspecto
fundamental da concepção de educação que parte da a importância da aprendizagem
fazer sentido para quem aprende. Se as experiências de vida do educando estão
excluídas do processo de aprendizagem, esse se torna tanto desinteressante como
alienante.
Sobre isso, Brandão (1981) diz do método Paulo Freire: “Tudo o que é da vida e
da cultura da comunidade, da região, é trazido para dentro do círculo (...) Tudo é
material sobre o qual o grupo pensa e cria. Tudo se incorpora ao trabalho de aprender a
ler e escrever.” (p.51)
Pensando nesses elementos da teoria de Paulo Freire, é possível traçar um
paralelo entre esses conceitos e a prática dos educadores sociais de abrigo. O contexto
de vida das crianças e adolescentes precisa ser necessariamente implícito na relação
estabelecida entre o educador e esses sujeitos. A realidade dessas crianças precisa ser
considerada e assim, um espaço na instituição para se discutir o abandono, a violência,
a falta de mãe e pai é fundamental caso se proponha possibilitar-lhes condições de
resignificar as histórias particulares de cada um, dando-lhes a condição de se situarem
em seu contexto de vida, não sendo dessa maneira alienados a esta.
Da mesma forma como Paulo Freire aponta para o equívoco de um programa
universal nas escolas que serviria para todos os alunos, nos abrigos isto pode ser
pensando na presença da ideologia baseada no modelo familiar como ideal, o que
impede os educadores de escutarem as crianças e adolescentes a partir de seus
contextos de vida. Tendo em vista o fato de estarem afastados do convívio diário com
seus familiares, as crianças e adolescentes de abrigo são vistos muitas vezes como
coitados, passivos, à espera de que algo de bom lhes aconteça, opondo-se a proposta
de um sujeito ativo, liberto como aposta Paulo Freire. Sobre esse aspecto doa abrigos,
nos diz Marin (1990):
Nota-se, nesse sentido, que quase todas as tentativas de projeto que se
estruturam tendem a reproduzir o modelo conhecido da organização de vida das famílias
burguesas, procurando encontrar substitutos de mães nas atendentes ou voluntárias
que assistem às crianças, garantindo-se assim relações individuais exclusivas, adulto/
criança.(...) (pg.46)
Outro de destaque no método Paulo Freire é a importância que ele dá ao diálogo
entre educando e educador. Segundo Brandão (1981),
Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas
no mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento do amor tornado ação. (...). Do mesmo
modo como o homem depende da natureza para sobreviver e a natureza depende do
homem para ter sentido, os homens dependem uns dos outros para sobreviverem e
darem sentido ao mundo e a si mesmos. Por isso mesmo, o diálogo não é só uma
qualidade do modo humano de existir e agir. Ele é a condição deste modo e é o que
torna humano o homem que o vive. (Brandão, 1981, p. 103-104)
A importância do diálogo entre educador e educando postulada por Paulo Freire
também pode ser tomada na relação entre os educadores e as crianças e adolescentes
dos abrigos. É na conversa presente nas experiências cotidianas desses sujeitos que
ambos irão se transformar. As crianças e adolescentes precisam de alguém se
importando com elas, acolhendo suas histórias por mais difíceis e sofridas que possam
ser para darem sentido às suas existências. O outro se coloca como fundamental,
ajudando a criança e adolescente e traçar novos projetos e elaborar dores passadas.
(Marin, 1990).
Portanto, a educação para Paulo Freire é um processo que envolve
necessariamente trocas entre as pessoas. Há sempre partes de um no outro e a
relação que irá se estabelecer entre as pessoas não é hierarquizada. Nas palavras de
Brandão (1981):
Um dos pressupostos do método é a idéia de que ninguém educa ninguém e
ninguém se educa sozinho. A educação, que deve ser um ato coletivo, solidário – um
ato de amor, dá pra pensar sem susto - , não pode ser imposta. Porque educar é uma
tarefa de trocas entre pessoas e, se não pode ser nunca feita por um sujeito isolado (...)
não pode ser também o resultado do despejo de quem supõe que possui todo o saber,
sobre aquele que, do outro lado, foi obrigado a pensar que não possui nenhum. (p. 22)
IV – A Instituição e os afetos possíveis
Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos
dos outros fizeram de mim
Álvaro de Campos5
A institucionalização de crianças e adolescentes em situação de risco social
instiga muitas questões e diversas pesquisas são realizadas nesse campo. Há o
reconhecimento da necessidade desse tipo de medida quando se considera a condição
social de muitas famílias as quais não tem recursos e condições materiais e emocionais
de cuidarem de seus filhos no ambiente familiar. Por outro lado, também existe a
percepção de que esse tipo de medida – acolhimento em instituições – acarreta em
prejuízos ao desenvolvimento da criança, principalmente em relação aos vínculos e
afetividade.
A psicologia nesse contexto apresenta como preocupação fundamental os
prejuízos causados pela separação mãe – bebê e as conseqüências desta ao
desenvolvimento das crianças que passarão aos cuidados de uma instituição. A
concepção presente na psicologia para entender os efeitos dessa separação tem como
pressuposto a afetividade e a carência afetiva como elementos intimamente
relacionados com o impedimento das crianças de viverem cotidianamente com as
figuras familiares. Foca o problema na criança e, portanto, a metodologia das pesquisas
realizadas a partir desse referencial teórico baseia-se na observação dos
comportamentos das crianças e das condições materiais da instituição.
A Segunda Guerra Mundial na Europa foi a época em que se intensificaram os
estudos da Psicologia a cerca dos efeitos da institucionalização das crianças pelo fato
de nesse período ter sido intensamente necessário proteger e acolher as crianças
separadas de suas famílias destruídas pela guerra. Também surgiu a necessidade das
mulheres trabalharem fora do lar devida a grande crise social e econômica que se
5 Trecho citado por Rubem Alves no livro “Conversas sobre educação”. Campinas: Verus editora, 2003. pg. 14.
instaurou na época, aumentando mais ainda o cuidado institucional dado à primeira
infância. (Guirado, 1986)
Alguns autores da psicologia preocupados com os efeitos da institucionalização
destacaram-se, dentre eles John Bowlby, contratado pela OMS para pensar nessas
questões. Esse autor afirmava ser a criança a priori prejudicada no seu
desenvolvimento quando internada pois seria privada de uma condição naturalmente
saudável e fonte segura de afeto: a presença e convivência com a mãe. A carência
afetiva é vista por Bowlby como uma conseqüência direta e inevitável dessa separação.
A mãe é, portanto, vista como figura decisiva para a saúde mental da criança. Em suas
palavras: “O pior dos lares é sempre melhor do que a melhor das instituições” (citado
por Rutter, M in Maternal Deprivation Reassessed, 1972, p.25 apud Guirado, M., 1986,
p.21).
Outros autores confirmam a teoria e visão de Bowlby, como foi o caso de Tizard
e Rutter. Essa primeira autora acreditava que as crianças internadas apresentavam
uma “afetividade atípica” (pg. 21), já que sua sociabilidade e investimentos afetivos
acontecem de maneira diferente da que ocorre com as outras crianças, tendo em vista
o fato de serem cuidadas por “múltiplas mães” (pg. 22) na instituição. Já Rutter,
relativiza as idéias e conceitos de Bowlby quando, por exemplo, não considera a
separação da criança e da mãe um fator necessariamente impeditivo de seu
desenvolvimento, apontando sim como fator decisivo para se tornar um sujeito saudável
precisar encontrar um substituto da figura materna.
Entretanto, mesmo com essas diferenças, esses três autores apresentam a
mesma metodologia, qual seja, observação do comportamento da criança e posterior
avaliação do mesmo a partir de escalas e testes e observação das condições materiais
do ambiente institucional. Segundo Guirado (1986), “A instituição pensada então
enquanto um feixe de condições materiais, como a criança, deve ser observada e
quantificada.” (pg. 23) Portanto, nas observações baseadas nesse metodologia,
entendia-se a carência afetiva ou como conseqüência da separação da mãe-criança ou
a partir de condições ambientais físicas da instituição não favoráveis ao
desenvolvimento da criança.
Spitz foi um autor da psicologia que se diferenciou da concepção desses autores
citados a cima, trazendo uma nova visão a respeito da condição de institucionalização.
Segundo esse autor, a afetividade e a carência afetiva devem ser pensados a partir das
relações estabelecidas com os outros sujeitos e de elementos inconscientes presentes
necessariamente nessas relações. Com as contribuições desse autor, “Abria-se (...) a
perspectiva de pensar a afetividade a partir da análise das representações e não mais
da observação e da medição do comportamento.” (Guirado, 1986, p.28)
O desenvolvimento emocional saudável das crianças e adolescentes acolhidos
em uma instituição total é pensado nessa perspectiva a partir dos estímulos afetivos
que encontrará nesse ambiente, ou seja, a possibilidade de ser acolhida, contida e
investida por um outro. A carência afetiva, dessa maneira, não está vinculada à
ausência da mãe e do pai, mas sim a falta de investimento afetivo de um outro em sua
vida.
Guirado (1986) propôs em seu trabalho na FEBEM ter como foco a afetividade,
considerando as relações que se estabelecem entre crianças e adolescentes e as
práticas institucionais. Busca situar essas relações a partir das representações que o
discurso dos internos e dos profissionais trazem, entendendo por representações os
conteúdos dos pensamentos, estes sendo o meio de organizar o mundo e nós
mesmos. Assim, nas palavras da autora: “Do comportamento ao discurso, da
polarização na criança (...) às relações instituídas e vividas imaginária e
simbolicamente.” (p. 20) A afetividade da criança passa a ser compreendida a partir de
sua história de vida e do lugar ocupado pelo abandono nesta e também no sentido das
relações que estabelecerá na sua nova realidade institucional.
Nesse estudo, tendo como pressuposto essa concepção trazida por Guirado,
que não considera a instituição como uma fatalidade na vida da criança e adolescente,
ao contrário, busca entender a sua afetividade no sentido que as perdas e as relações
atuais tem em sua vida, buscarei compreender as concepções presentes no discurso
do educador e da mãe social; com isso, busco entender o ambiente no qual as crianças
e adolescentes de abrigo estão se constituindo. A condição para um desenvolvimento
saudável se dá, portanto, segundo Marin (1990),
(...) desde que esteja num ambiente suficientemente seguro, que lhe ofereça
condições de que viva suas necessidades infantis, encontre suporte emocional para
viver suas angústias, raivas e frustrações, além de ter oportunidade onde possa
explorar, buscar, transformar, aprender e criar. (1990, p. 36)
V – O Lugar do ambiente na constituição da subjetividade
Alienação no olhar e separação desse mesmo olhar – é
nesse,delicado e perigoso, interjogo que cada ser humano
inventa a sua própria existência.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza6
Além dos aspectos trazidos pelo ECA e a maneira como as instituições se
organizam para colocar em prática um processo educacional para o sujeito, é
necessário interrogarmos nesse momento o que postulam algumas linhas teóricas
dentro da psicanálise a respeito da importância do outro e do ambiente na constituição
da subjetividade do sujeito a partir da premissa de que o processo educacional se
constitui também do desenvolvimento emocional, de condições que possibilitem ao
sujeito relações de aprendizagem.
Inicialmente, utilizaremos como base para essa discussão os postulados de
Donald Woods Winnicott (1896 – 1971), pediatra e psicanalista inglês. Esse autor
desenvolveu uma teoria psicológica do cuidar, com conceitos pensados e
desenvolvidos durante quarenta anos de experiência na clínica com crianças e
adolescentes. A maior parte de suas observações, nas quais a teoria foi elaborada,
baseou-se no seu trabalho durante a Segunda Guerra Mundial, com crianças
separadas de suas famílias.
Winnicott introduz em sua teoria uma nova noção de ambiente, qual seja, de
ambiente facilitador. Essa idéia de ambiente traz à luz um sujeito impossível de ser
isolado de seu meio, relacionando-se o tempo todo com o ambiente, de maneira que o
sujeito e o meio se tornam interdependentes (Winnicott, 2005).
6 Trecho extraído do poema: Eu me vejo nos teus olhos: o amor dos começos. In: Mais além do sonhar.
São Paulo: Marco Zero, 2003.
Existe inicialmente uma condição inata para o desenvolvimento e para o
amadurecimento, para a saúde. Desenvolvimento entendido tanto como físico
(crescimento do corpo e maturação de todas suas funções) quanto emocional. Essa
condição inata ao individuo, o que lhe é herdado, só poderá se concretizar e se tornar
capacidade de fato se encontrar certas condições possibilitadas pelo ambiente. Nesse
ponto, destaca-se o papel fundamental do ambiente como estruturante da subjetividade
do sujeito desde o inicio da vida.
O desenvolvimento emocional ocorre na criança se se provêem condições
suficientemente boas, vindo o impulso para o desenvolvimento de dentro da própria
criança. As forças no sentido da vida, da integração da personalidade e da
independência são tremendamente fortes, e com condições suficientemente boas a
criança progride (...) (Winnicott, 1983, pg. 63)
As crianças são concebidas dentro de um contexto histórico, de uma família, de
uma história particular e a noção de ambiente facilitador postulada por Winnicott
considera essa condição humana. Na relação interdependente com o meio “os
lactentes vêm a ser de modo diferente conforme as condições sejam favoráveis ou
desfavoráveis” (1983, pg 43).
A condição inata do sujeito de desenvolver-se no caminho da saúde somando-se
com as condições ambientais necessárias para a sua efetivação, introduzem o sujeito
em uma singular jornada de vida. Essa jornada pode ser descrita também como o
crescimento emocional do sujeito e se refere ao caminho da dependência até a
independência. O individuo atravessará de forma única algumas etapas importantes,
acompanhado sempre do ambiente, tendo este um papel estruturante nas passagens
desses momentos vitais do desenvolvimento. Winnicott (1983) justifica compreender o
crescimento pessoal através do caminho da dependência à independência pois dessa
maneira é possível se pensar tanto nos fatores ambientais quanto nos pessoais.
Winnicott postula como início de vida psíquica, a vida intra – uterina. Um aspecto
fundamental de sua teoria é a importância da continuidade do ambiente para um
desenvolvimento psíquico adequado. O feto no útero materno já experiência uma
continuidade de ser, ou seja, a temperatura é a mesma, o ambiente é o mesmo durante
a gestação, etc. Mesmo assim, algumas mudanças ocorrem, proporcionando vivências
de descontinuidade e essas são também extremamente importantes para a vida do
bebê. Para se adequar a essas mudanças, o feto já desenvolve algumas defesas.
Porém, essas experiências de descontinuidade não podem ser muito abruptas e
freqüentes, pois dessa maneira o feto não seria capaz de desenvolver defesas e a
situação se tornaria traumática, favorecendo ao invés da integração, uma cisão devido
à insipiência do ego. De fato o ego carece de experiência. Winnicott compreendia que a
memória corporal do feto poderia ser reativada depois do nascimento, apoiando-se na
idéia de que dentro do útero ele já constrói os primórdios de uma vida psíquica.
A primeira fase, portanto, refere-se aos estágios iniciais do desenvolvimento
emocional do sujeito iniciado desde sua vida intra – uterina. Essa etapa é caracterizada
por uma dependência absoluta, na qual o feto é completamente dependente da mãe ou
de um outro que desempenhe essa função. É uma fase de completa indiscriminação
marcada pela simbiose, onde para a criança não é possível distinguir ela do mundo,ou
melhor, eu e não eu.
Winnicott (1975) ressalta como função da mãe e da família nessa fase de
indiferenciação o papel de espelho para a criança. Vivenciando o mundo como pedaços
não integrados e não diferenciados, a mãe se apresenta como o primeiro espelho que
ajuda a criança a integrar o mundo. A mãe na função de espelho devolve na sua
imagem o próprio Self do bebê. É como se ele enxergasse a si mesmo quando olha
para o rosto da mãe. A psicanálise postula o fato do bebê não nascer num vazio; ao
contrário disso, a criança nasce a partir do narcisismo dos pais, ela tem um lugar no
imaginário dos progenitores. No espelho do olhar da mãe o bebê vai encontrar a
história transgeracional da família, que uma vez refletida no olhar da mãe, irá influenciar
a constituição do Self do indivíduo.
Apesar dessa completa dependência do bebê em relação ao ambiente, Winnicott
apresenta um importante paradoxo referindo-se ao que é herdado na criança, sendo
assim independente do ambiente, e o que depende efetivamente deste:
Podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o progresso continuado
dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das
hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial. (1983, pg 81).
Na teoria Winnicottiana esse ambiente que vai de encontro com as necessidades
do bebê possibilitando o desenvolvimento das capacidades da criança é descrito como
Suficientemente Bom ou Saudavelmente Bom. Esse ambiente não deve ser caótico
demais; ao contrário, deve fornecer principalmente segurança básica e a experiência da
continuidade de ser, fundamental para a integração e fortalecimento do ego do sujeito,
através de um ambiente confiável, onde as tranqüilas experiências tenham lugar.
Nascendo em um estado de completa indiferenciação com o ambiente,
dependendo absolutamente deste nas fases iniciais e estando num estado de não –
integração, o ego da criança é inicialmente fraco e forte ao mesmo tempo. O seu
desenvolvimento está intimamente relacionado à capacidade da mãe / ambiente em
dar suporte ou não à ele. Se houver uma mãe suficientemente boa (ou então, um
ambiente suficientemente bom), o ego da criança se torna forte.
Somente se há uma mãe suficientemente boa é que a criança inicia um processo
de desenvolvimento que seja pessoal e real. Se a maternagem não é suficientemente
boa, então a criança torna-se uma coleção de reações à imposição, e a verdadeira
identidade da criança falha em se formar ou se torna escondida atrás de uma falsa
identidade (...) (Winnicott, 1960, pg. 29).
Supondo que haja as condições favoráveis ao desenvolvimento de um ego forte,
este pode criar as defesas necessárias para sua sobrevivência no contato com o
mundo externo e interno e, principalmente, desenvolver padrões pessoais de
comportamento, uma maneira única e individual de se colocar no mundo. Quando a
criança não encontra apoio no ambiente para se desenvolver a partir de suas próprias
capacidades e individualidade, seu ego permanece fraco, pois acaba crescendo a partir
de reações aos fracassos do ambiente e não através de necessidades pessoais.
(Winnicott, 1960).
No início, o ambiente é a mãe ou então na ausência desta, uma outra pessoa
desempenhando essa função na vida do bebê. A possibilidade da mãe ser
Suficientemente Boa irá depender da sua capacidade de se identificar com o bebê.
No início, ocorre dois tipos distintos de identificação: a identificação da mãe com o
filho e a identificação do bebê com a mãe. (Winnicott, 1960). No caso da mãe, essa
identificação recebe o nome na teoria Winnicottiana de Preocupação Materna
Primária. A mãe identificada e assim, sintônica com o filho, é capaz de suprir suas
necessidades a contento e no momento propício. A mãe regride a um estado onde o
bebê se encontra. Seria, em outras palavras, uma doença saudável da mãe, quando
ela tem “especial habilidade para fazer a coisa certa” (Winnicott, 1960, pg.27).
Importante ressaltar o fato de não ser a mãe a responsável por criar a simbiose e a
indiferenciação, mas sim existe a incapacidade do bebê de um ego que exerça a
discriminação. Já a identificação do bebê com o ambiente acontece, justamente a
partir desse estado de preocupação primária da mãe que vai possibilitando ao bebê
o desenvolvimento de seu próprio ego.
Algumas falhas ambientais podem ocorrer e a mãe fica impossibilitada de se
identificar com o filho. Em um primeiro caso, pode acontecer uma falha na integração
do ego da própria mãe e essa passa a enxergar a regressão e identificação com o filho
como uma ameaça. O desamparo do bebê a assusta demais e se se identificar com ele,
acabará ficando muito desamparada também. Nesse caso, não há uma confiança
básica estabelecida possibilitando uma regressão para atender às necessidades do
bebê. Outra situação possível é a mãe estar muito voltada para si mesma e não
abandonando esse interesse excessivo por si, não consegue se identificar com o bebê.
A mãe deprimida também não consegue realizar essa identificação pois apesar de estar
presente fisicamente, não está psiquicamente.
As situações de falha ambiental também estão intimamente ligadas com a função
de espelho da mãe. A impossibilidade de identificação com o filho se traduz na
ausência de um espelho para o bebê; usando uma imagem, é como se este estivesse
“coberto”, impossibilitando que seja refletido. Há um outro caso possível de falha
ambiental. O ambiente pode ser muito intrusivo e não permitir o gesto espontâneo, ou
seja, o surgimento de capacidades pessoais e próprias do bebê; este se apresenta
com expectativas em excesso e não há espaço para a subjetividade do individuo.
Nesse caso, é como se o espelho estivesse completo de imagens e expectativas que
nada tenham a ver com o próprio bebê e este vê então refletido no olhar da mãe algo
que não é ele e para se adaptar ao ambiente, esconde o seu verdadeiro Self e
desenvolve um falso Self, mais adaptado ao meio. Para isso, nos diz Macedo: “A vida,
para aquele em que o self falsificado vem ocupar o lugar do ego, é uma vida reativa,
puramente agressiva, sempre em busca de algo ou alguém a quem se opor (...)” (1999,
pág.112)
Em todos esses casos, há uma saída saudável para o sujeito desde que
encontre um outro capaz de lhe garantir essa segurança emocional; que a mãe-
ambiente possa ser capaz de “permitir a experiência”, de interpretar e prontamente
corretamente as suas necessidades, lhe dando aconchego físico. Somente assim
poderia ter condições de se desenvolver saudavelmente. (Marin, 1990) Como já mencionado anteriormente, o crescimento e fortalecimento do ego da
criança depende de condições ambientais favoráveis ou de respostas ambientais para
se concretizar. É conhecida a importância da ambiência bem como de seu manejo em
toda a obra de Winnicott: “(...) o que importa ressaltar é a idéia de que a saúde psíquica
depende de um ambiente capaz de adaptar-se às necessidades do lactente, ou seja, de
uma mãe passavelmente boa.” (Macedo, 1999, pg. 16)
Aos processos iniciais do desenvolvimento ou necessidades primeiras, tarefas
de todo ser humano: a integração, a personalização e a realização alinham-se formas
de garanti-los – o amparo: o holding, a sustentação e permanência do cuidado
(handling), e por último a apresentação dos objetos, este se constituindo na apreciação
do tempo e do espaço e de outras propriedades da realidade. A preocupação de
Winnicott é assinalar a importância de uma harmonia entre os processos de maturação
fisiológica e sua correspondente tradução psíquica. Não cumpre obediência a uma
teoria evolucionista; ao contrário, tenta estabelecer uma lógica de proposições para o
início da vida.
Para que estes processos iniciais sejam uma realidade, para que o ego se firme
e tome, para si, as técnicas do cuidado materno, a criança precisa de tempo para ver
assegurada cada uma de suas conquistas e a inscrição de cada conquista implica a
tradução psíquica de um momento do processo maturacional. O Holding (amparo) é
uma dessas funções do ambiente suficientemente bom abarcando além do segurar
físico do bebê por um adulto, o enquadre a partir do qual o bebê negocia seu encontro
com o real do ambiente que o cerca. Então todo o investimento ambiental anterior ao
estabelecimento da possibilidade do sujeito de estabelecer relações com outros, ou em
outras palavras, relações objetais. O Holding possibilita ao bebê sair de um estado de
fusão com a mãe e passar a perceber os objetos como externos a ele e nesse caminho,
poder investir no mundo e nos objetos do mundo. (Winnicott, 1983).
O Handling, a segunda função do ambiente, é uma forma especifica de holding e
se refere basicamente aos cuidados corporais dispensados ao bebê, significando uma
maneira de demonstrar amor à ele, “possivelmente a única forma em que uma mãe
pode demonstrar ao lactente o seu amor” (1983, pg. 48). A vivência do bebê
inicialmente é de não–integração; experiencia seu corpo como se este fossem partes
separadas entre si e não como um sujeito inteiro. A mãe ou o outro desempenhando
essa função precisa enxergá-lo com um todo, um corpo inteiro a isso denominamos
integração. Cuidados como protegê-lo das agressões do meio ambiente, segurá-lo no
colo envolvendo-os nos braços afetivamente, cuidados que levem em conta a sua
sensibilidade da pele (tato, temperatura, sensibilidade visual, etc), atenção à rotina e
cuidados diários com o bebê, alimentação modificada conforme o seu crescimento,
dentre inúmeros outros, fazem parte do Holding e do Handling. (Winnicott, 1983). Esse
manejo (cuidado) no inicio deve ser satisfatório para que haja uma vivência de
continuidade, necessária para o futuro sentimento de confiança e além disso, é
necessário para o estabelecimento de uma relação integrativa psique/soma, para que o
bebê possa experimentar habitar o próprio corpo.
A continuidade desses cuidados maternos consistentes, o tocar e o segurar da
mãe, favorece a integração, ou seja promove e integra as partes antes desintegradas
do bebê, levando–o de um estado de não – integração a um estado de integração,
nomeado por Winnicott como um “estado unitário”, quando finalmente o bebê se torna
uma pessoa. Associado a esse processo e intrínseco a ele, ocorre a personalização do
sujeito, ou seja, integração da psique e no corpo. Passando a existir gradativamente
uma realidade psíquica interna, vai se separando do externo e estabelecendo-se um
esquema corporal. A dissociação mente – corpo é algo realizado historicamente pelo
homem e a criança não vive essa dissociação. Para ela, “é importante que uma pessoa
veja o corpo e a psicologia como uma coisa só” (2005, pg. 47).
Fica claro na abordagem winnicottiana o crescimento físico se dando
concomitantemente ao crescimento emocional. O Holding leva à integração do ego e o
Handling à personalização, ou seja, o sujeito se torna único e com uma individualidade
própria ao mesmo tempo em que sua psique se integra ao seu corpo. Nos diz Winnicott:
(...) criança estar sentindo que mora em seu corpo por causa da existência
dessas duas coisas: a criança ter experiências em que todo o corpo está envolvido,
chutar, correr, comer, vir a conhecer-se como o lugar em que ela mora, e também o
manejo que provém do exterior. Não tomem como certo que as pessoas vivem em seus
corpos muito facilmente. (2005, pg. 49)
Esse trecho citado indica-nos mais um conceito desenvolvido na teoria
winnicottiana, qual seja, algo iniciado na infância continua por toda a vida do sujeito. O
exemplo do banho do bebê parece ser propício nesse caso: o prazer pelo banho
verificado no bebê é algo que mais tarde poderá ser identificado no gosto por tomar
banho de mar na criança.
A mudança de um estado de fusão com a mãe, passando então a se ver como
separado dela e também, a se relacionar com ela a partir dessa diferenciação, coexiste
com o surgimento das primeiras relações objetais do bebê e essa nova condição de
existência tem com base “a manipulação e a condução geral no cuidado do lactente,
que é facilmente tido como certo quando tudo vai bem”. (1983, pg. 49).
Além do Holding e do Handling, também é função do ambiente suficientemente
bom, a apresentação de objetos. Fica evidente o funcionamento dessas três funções
ambientais acontecendo concomitantemente e a divisão entre elas é apenas para fins
didáticos. Dessa maneira, o Holding leva a integração do ego, favorecendo futuramente
o estabelecimento das primeiras relações objetais do bebê. Porém, essas relações
somente se tornarão viáveis se for iniciado no bebê a sua capacidade para se
relacionar posteriormente com os objetos e isso se dá pela apresentação de objetos
para o sujeito “feito de um modo que seja o bebê quem crie o objeto” (1983, pg. 60).
Essa necessidade do objeto ser criado pelo próprio sujeito desde bebê é um conceito
fundamental na teoria Winnicottiana e irá refletir na capacidade criativa desse sujeito
quando adulto. A criatividade é um ponto central para Winnicott significando para o
autor saúde.
Qual o manejo necessário realizado pelo ambiente para que o bebê se sinta
criador do objeto é uma questão que surge no momento. A importância da mãe estar
identificada e sintônica com seu filho e assim compreender suas necessidades é muito
importante. O bebê sente um incômodo, uma insatisfação, por exemplo, fome e se a
mãe estiver identificada com ele e lhe apresentar o seio no exato momento da fome, o
bebê terá a ilusão de ter sido o criador daquele objeto. Ou seja, a mãe apresenta um
objeto ou realiza um manejo para o filho que corresponde às necessidades dele. É
fundamental para o desenvolvimento psíquico do ser humano, como se o sujeito
pudesse se sentir confiante em criar os objetos e percebesse a existência de um mundo
que deve ser criado por ele e sustentado pelo ambiente. É um momento de onipotência
saudável e necessário. Ainda são pré – condições para o estabelecimento de relações
objetais, pois o sujeito ainda é onipotente e indiferenciado do meio.
Conforme a criança se desenvolve, seu amadurecimento se torna mais complexo
e ampliam-se suas identificações com figuras além da mãe, do pai e da família mais
ampla. Torna-se menos dependente do olhar dos pais definirem seu Self.
(Winnicott,1960, apud 1975).
O enunciado puro é este: nas primeiras fases do desenvolvimento emocional do
bebê humano, um papel vital é desempenhado pelo meio ambiente, que, de fato, o bebê
ainda não separou de si mesmo. Gradativamente, a separação entre o não – eu e o eu
se efetua, e o ritmo dela varia de acordo com o bebê e com o meio ambiente. (Winnicott,
1975, pg. 153).
Chegamos então na fase da dependência relativa. A superação dessa
Preocupação Materna Primária e conseqüentemente desse estado de identificação
acontece gradativamente por meio de falhas ambientais. O sujeito vive na dependência
absoluta com uma ilusão e onipotência necessárias numa fase inicial de
desenvolvimento, mas estas precisam ser frustradas pelo ambiente através das falhas
para que ocorra a desilusão. A teoria Winnicottiana postula, porém, a necessidade
dessas falhas ocorrerem de maneira gradativa na vida do sujeito, favorecendo a
integração do ego. Se acontecerem de forma brusca, podem se tornar traumas e a
criança criará defesas para não entrar em contato com a difícil realidade.
A desilusão e perda da onipotência possibilitam a emergência de novos
processos psíquicos. As falhas e a falta do ambiente darão lugar para o surgimento da
frustração e se criará na criança o sentimento da incompletude, base esta para a
separação Eu – Mundo. Winnicott (1983) define este estágio da dependência relativa:
“(...) vem a ser um estágio de adaptação a uma falha gradual dessa mesma
adaptação”. (pg.83)
A mãe vai aos poucos desadaptando e desiludindo o bebê e isso juntamente
com a maturação dos processos físicos apresentados pelo bebê, por exemplo, já há o
inicio de uma compreensão intelectual por parte dele, o desenvolvimento do aparelho
motor lhe permite explorar o meio, diferentes espaços, etc. Existe uma integração
suficiente do ego para perceber a existência de um Eu e um outro (Não – Eu), porém
ainda sendo uma pré – noção e totalmente a partir de seus próprios referenciais e
vontades (egocentrismo).
A idéia de um crescimento emocional iniciado num estado de indiferenciação
com o ambiente e que prossegue até nos enxergarmos como sujeitos únicos e
individuais no campo social traz implícita a idéia da apresentação continua do mundo
ao sujeito. Winnicott (1983) ressalta a importância do mundo ser apresentado a criança
de uma maneira continua e não confusa. Diz ele: “isso é algo que não pode ser feito por
pensamento, nem pode ser manejado mecanicamente. Só pode ser feito pelo manejo
continuo por um ser humano que se revele continuamente ele mesmo, não há questão
de perfeição aqui.” (pg. 83).
Para se inserir nesse mundo, necessita ser um Eu único e por isso, se separar
da mãe. Essa separação inicia-se nessa fase e traz muita angustia para a criança. Essa
angustia é expressa plenamente no conto “Menino a bico de pena” de Clarice
Lispector7:
E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe. O que
ele pensa estoura em choro pela casa toda. Enquanto chora, vai se reconhecendo,
transformando-se naquele que a mãe reconhecerá. Quase desfalece em soluços, com
urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele
ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá,
senão ninguém irá para o seu silencio ninguém o conhece se ele não disser e contar,
farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus,
pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular,
faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe.
(1998, pg. 138 – 139).
Diante dessa angústia da separação, da passagem da indiferenciação para o Eu,
o sujeito pode entrar então na transicionalidade. Esta se caracteriza pela criação de um
objeto dito transicional realizado pela criança. São geralmente objetos macios
(travesseiros, paninhos, ursinhos) que lembram algo do corpo da mãe, como a sua pele
por exemplo e que tem marcas suas, como o cheiro do bebê. Por esse motivo, “a mãe
permite que fique sujo e até mal – cheiroso, sabendo que, se lavá-lo, introduzirá uma
ruptura de continuidade na experiência do bebê (...)” (Winnicott, 1975, pg. 17). Esses
objetos têm a função de auxiliar a criança no momento da angústia, da perda do objeto;
sem ele, a separação se tornaria muito angustiante. É algo que lhe lembra o seguro e o
conhecido, mas que é diferente da mãe em si, dando-lhe a segurança de que existe
uma continuidade entre ela e a figura amada.
7 Conto retirado do livro Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O espaço da transicionalidade traz novamente o conceito de criatividade
postulado na teoria de Winnicott. O objeto transicional é algo criado pela própria
criança, possibilitando-a se sentir participante do processo de criação; sente-se capaz
em transformar algo de fora em uma coisa nova e nesse processo, além de criar o
mundo, vai se criando também. Isso se torna possível pois há um espaço que sustenta
e valoriza essa criação.
Pensar no conceito de transicionalidade de Winnicott nos remete ao conceito de
falta fundamental da teoria psicanalítica. O sujeito necessita se sentir completo,
onipotente em relação ao ambiente no inicio do seu desenvolvimento. Depois, necessita
se sentir incompleto, separado do mundo para que se constitua como um sujeito
desejante, ou seja, para poder investir no mundo e nos objetos externos. Só poderá
investir nos outros se algo lhe faltar; do contrário, se o sujeito se sentir completo, nada
precisaria buscar e em nada externo investiria sua libido. Winnicott (1975) coloca como
função da mãe suficientemente boa frustrar gradativamente seu filho e iniciá-lo na
transicionalidade:
A mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é
aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que
diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso
da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. (pg. 25).
Na medida em que ocorrem as frustrações gradativas e a criança vai se dando
conta da separação dela (Eu) em relação ao outro (Não – Eu), ela passa a atacar o
ambiente, agora visto como diferente dela. A agressividade é entendida na teoria
winnicottiana como fazendo parte, junto com a sexualidade, da energia vital do
individuo. É um recurso de vida fundamental para o sujeito na sua relação com o
mundo.
Essa agressividade que passa a ser direcionada intencionalmente ao outro já
existia desde a vida intra – uterina, porém antes é entendida como atividades do bebê.
Dessa maneira, Winnicott postula que “antes da integração da personalidade, já lá está
a agressividade.” (2000, pg. 289). Quando o bebê dá chutes dentro da barriga da mãe,
quando mexe os braços e acaba batendo na mãe, no momento em que aperta os
mamilos com a gengiva, não se pode dizer ainda que esteja atacando a mãe e,
portanto, que tenha intencionalidade nesses atos. Porém são essas atividades
realizadas pelo bebê que concomitantemente ao processo de integração da
personalidade, se juntam resultando na agressividade do sujeito. Essa agressividade
levará o sujeito a perceber o mundo como separado dele, tendo portanto para Winnicott
papel fundamental na estruturação do objeto.
Quando o bebê ataca o objeto externo intencionalmente, é imprescindível a
sobrevivência do objeto a esse ataque. No momento em que o objeto sobrevive, por
exemplo, a mãe não revida ou não abandona a criança pelo fato de ter se sentido
atacada, dá-se a possibilidade do bebê reconhecer que não é onipotente (mesmo tendo
a vontade de atacar, o objeto sobrevive contrariando sua intenção) e pode então
integrar sua agressividade de uma forma positiva para o seu desenvolvimento. Caso o
objeto não sobreviva ou acabe revidando, o sujeito perde a capacidade de usar a sua
agressividade na relação com o mundo externo, entendo ser esta destrutiva,
comprometendo seu desenvolvimento emocional e cognitivo.
A função do ambiente coloca-se, portanto, como auxiliar o sujeito na estruturação
de sua própria agressividade e fornecer possibilidades para a canalização da mesma,
por exemplo, artes, brincar, esportes, etc.
Quando o indivíduo já alcançou um grau mais elevado de integração do ego
podendo se reconhecer como separado do outro, pode sentir a culpa e preocupar-se
com os outros, desde que houve alguém a quem atos agressivos e impulsivos foi lhe
dirigido e que pode ser capaz de receber reparações. Se não há uma figura externa
confiável a quem o sujeito possa fazer um gesto de reparação, perde-se a capacidade
de se preocupar com o outro. A agressividade pode se transformar, pelo sentimento de
culpa, em sofrimento e necessidade de reparação e essa é uma função social do ato
agressivo postulado por Winnicott (2000).
No caminho da diferenciação Eu – Não Eu, o sujeito prossegue na sua jornada
de vida rumo à independência. Nessa passagem, da dependência para a
independência, a relação dual mãe – criança é rompida por um terceiro, que convoca a
dupla para uma exterioridade. É a fase do Édipo postulada pela teoria psicanalítica.
Esse terceiro que passa a ser significado e compreendido pela criança, é o responsável
direto pela introjeção das leis, dos valores, da moral, da cultura no sujeito. O pai
colocando limites na relação do filho com a mãe e juntamente com a capacidade da
mãe de ir aos poucos frustrando o bebê, permite ao sujeito vivenciar sua incompletude
e nessas condições, pode investir no mundo, buscar conhecimento de forma mais ativa
e individual. Esse processo não deixa de ser bastante doloroso e trabalhoso, mas o que
a criança terá em troca – o amor dos outros e um lugar na sociedade – impulsiona-a a
realizá-lo.
Essa passagem da dependência para a independência, dos amores do começo
da vida para outros amores, não se faz sem sofrimento. E, em verdade, só abdicamos
desses lugares porque a cultura nos oferece algo em troca – um lugar no mundo dos
homens. (Ribeiro de Souza, 2003, pg. 86).
Essa passagem também significa o ambiente internalizado por parte da criança,
ou seja, tem a lembrança dos cuidados dispensados a ela no início da vida, introjetou
esses cuidados e desenvolveu confiança no ambiente, podendo desenvolver maneiras
próprias de estar no mundo sem a necessidade de um cuidado real por parte de outra
pessoa.
Então vem ‘eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma
interação introjetiva e projetiva com o não – eu, o mundo real da realidade
compartilhada’. Acrescente-se a isso: ‘Meu existir é visto e compreendido por alguém’; e
ainda mais: ‘É me devolvida (como uma face refletida em um espelho) a evidência de
que necessito de ter sido percebido como existente’. (Winnicott, 1983, pg. 60).
O aparelho psíquico do individuo está formado quando o sujeito sai da fase
edipiana, mas apesar disso, segundo Winnicott, ele nunca alcançará uma
independência total. Não é possível o sujeito isolar-se do meio, mas ao contrário disso
relaciona-se com o ambiente de maneira que se tornam dependentes um do outro: o
ambiente modifica o sujeito, que por sua vez se vê transformado por este. O conceito
de maturidade como um processo no qual tanto o desenvolvimento pessoal, quanto a
socialização estão implícitos, revela essa idéia de interdependência entre sujeito e
ambiente. Um adulto saudável, à luz da teoria winnicottiana, seria capaz de se
relacionar com a sua cultura sem sacrificar demais seus desejos ao mesmo tempo em
que teria um compromisso social com esta. Seria inserido de forma a manter sua
espontaneidade, dando espaço para a criatividade, pensando no fato de sempre haver
um descompasso entre o desejo do indivíduo e o que é possível de ser realizado da
realidade compartilhada.
A questão da impossibilidade do individuo alcançar a independência total remete
ao conceito de Winnicott de que “(...) aquilo que começa no período inicial da infância,
nunca está terminado” (2005, pg. 46). As conquistas e aquisições das crianças na tenra
infância são sempre posições que podem ser perdidas e recuperadas. O
desenvolvimento continua ao longo da vida e nesse sentido também o papel daqueles
que não são nem pai nem mãe é fundamental; a identificação se dá com essas outras
figuras além das parentais. O essencial desses “outros” na vida dos sujeitos, segundo
Winnicott, é que possam ser importantes em suas vidas. São pessoas com quem as
crianças podem experienciar sentimentos de amor e ódio, culpa e reparação. O
importante, assim, é continuar a existir na vida delas e ser lhes confiável, sobrevivendo
aos seus ataques e acolhendo os sentimentos de amor.
Portanto, pensando ainda nessa etapa de independência, poderia se colocar
como papel do ambiente viabilizar esse intervalo entre o desejo do sujeito e o social,
promover espaços de formação da subjetividade das crianças e adolescentes, criar
situações nas quais os sujeitos tenham espaço de se colocar subjetivamente, onde
possam ser olhados a partir de suas próprias potências, possibilitar formas efetivas de
participação na cultura. O ambiente deve se colocar como uma segurança, um apoio
para onde o sujeito possa sempre se voltar e ao mesmo tempo lançá-lo no mundo, nas
muitas relações que se estabelecem na rede social.
VI – Metodologia
De acordo com a teoria do Winnicott, o ambiente representado pelo outro tem
extrema importância na vida da criança. Marin (1990) também revela a importância
que o outro tem na constituição de identidade do sujeito, quando coloca que para se
definir como sujeito, necessita se diferenciar e separar de outro e nesse sentido, o
outro sempre é a referência. A autora afirma:
(...) Ao ter lugares meus, coisas minhas, vou descobrindo que nem tudo é meu,
pois, existe o lugar do outro, coisas do outro. (...) Ao se definir esse espaço, esse lugar,
delimita-se o espaço do outro: ou ao descobrir o lugar e os limites do outro, define-se o
próprio. (1990, p.19 – 20)
Apoiando-me na importância do outro para a constituição de identidade do
sujeito postulada por Winnicott, questionava-me sobre o lugar desse outro na vida da
criança e adolescente abrigados. Neste estudo, busquei entender qual era a influência
dos educadores sociais na vida desses sujeitos, já que eles “...são encarregados da
educação global das crianças e jovens (...).” (Guará, 1998. Pg. 45). As crianças e
adolescentes em situação de abrigo estão afastadas por diversos motivos do convívio
com suas famílias e vivem cotidianamente com os educadores sociais e todos os outros
funcionários e coordenadores da instituição. Buscando investigar a influência do
trabalho na vida das crianças de quem está mais próximos delas no dia – a – dia, os
educadores sociais, optei por trabalhar diretamente com eles.
Os educadores são quem efetivamente põem em prática a proposta educacional
do abrigo e por isso a importância da realização de um trabalho diretamente com eles.
Para que eles possam ouvir a história das crianças e adolescentes, escutá-los dentro
de seu contexto social e histórico específicos, ajudá-los a significar as faltas e poder
ouvir as suas tristezas, dores, sofrimentos, os educadores sociais também precisam ser
ouvidos e acolhidos.
O meu questionamento de qual seriam as marcas do trabalho dos educadores
sociais nas crianças e adolescentes abrigados, levou-me na necessidade de ouvir a
prática desses educadores, como eles significam e vivenciam o seu trabalho.
Com intuito de refletirmos nesse momento sobre a prática desses educadores,
irei me apoiar nas idéias trazidas por Charlot (2002). Esse autor discute a distância
entre a pesquisa educacional e a situação concreta em sala de aula e acredito ser
possível traçar um paralelo dessa situação com a prática dos educadores nos abrigos.
Charlot (2002) coloca uma diferença básica entre esses dois pontos citados
acima: a pesquisa busca realizar uma análise e o ensino na sala de aula visa objetivos
e finalidades mais concretas. A seguinte citação aponta tal idéia:
“(...) o docente está se defrontando com uma urgência, a de ser professor (...) Ser
professor é defrontar-se incessantemente com a necessidade de decidir imediatamente
no dia-a-dia da sala de aula.” (pg. 91).
Da mesma forma como o professor se depara cotidianamente com a urgência, o
educador social precisa tomar decisões referentes à vida das crianças no dia-a-dia.
Charlot (2002) diz que o pesquisador, não participando das condições reais de trabalho
do professor, não deveria dizer o que ele deve ou não fazer; ao contrário disso, “o papel
da pesquisa é forjar instrumentos, ferramentas para melhor entender o que está
acontecendo na sala de aula” (pg. 91). É neste sentido que meu estudo tem como
objetivo investigar por meio da análise do discurso do educador social a sua prática e
como ele significa o seu trabalho.
Uma outra discussão realizada por Charlot (2002) sobre teoria e prática nos
interessa mais ainda para a reflexão dessa pesquisa, pois justifica porque buscarei a
teorização do educador social em relação a sua prática. A seguinte citação do autor
introduz essa discussão:
Não penso que exista um problema de diálogo entre teoria e prática. O que
existe é um problema de diálogo entre dois tipos de teoria: uma teoria enraizada nas práticas e uma teoria que está se desenvolvendo na área da pesquisa e das próprias idéias entre os pesquisadores. (pg. 94)
Segundo Charlot, não existe uma prática sem uma teoria por trás e a questão é
que na maioria das vezes os pesquisadores não escutam as teorias dos profissionais. É
como se os pesquisadores fossem portadores da teoria e os professores, da prática. A
teoria dos professores está presente na conversa entre os profissionais, nas idéias e
conceitos que tem de algo, mesmo estes não sendo expressos. O problema, segundo o
autor, é o fato deles dizerem essas teorias através do relato das experiências e
práticas, usando palavras do senso comum o que dificulta o diálogo deles com
pesquisadores e com a Academia. Da mesma forma, muitas vezes os pesquisadores
apóiam-se em uma teoria “que está falando só a outros pesquisadores e a outras
teorias.” (pg. 95)
A proposta de Charlot refere-se a promover um diálogo entre esses dois tipos de
teorias, uma fundamentada na experiência prática e outra apoiada em uma ou várias
Ciências. Nas palavras do autor:
Portanto, não se trata de diálogo entre uma prática e uma teoria. Falar de diálogo
entre teoria e prática é abrir duas possibilidades de teorismo ideológico: o teorismo do pesquisador que está dizendo: ‘Eu sei, eu conheço a verdade, tenho uma prova’ e o teorismo da prática, o teorismo do professor que diz ‘Eu sei porque tenho a minha experiência em sala de aula’. E, para sair do teorismo, temos que organizar esse diálogo entre os dois tipos de teoria. (pg.95)
A busca por compreender a teoria do educador social, construída a partir de seu
trabalho e como vê as marcas deste na vida das crianças e adolescentes
institucionalizados com base nos referenciais psicanalíticos, representa uma tentativa
desta pesquisa de promover um diálogo entre alguns conceitos desenvolvidos pela
psicanálise e a teorização do educador.
A prática do aluno também é ressaltada por Charlot (2002). Trazendo a
referência para esta pesquisa, pode-se pensar nas crianças e adolescentes quando o
autor fala de “aluno”. Ele nos chama a atenção para o engano passível de ser cometido
entre um discurso “pedagogicamente correto” do professor e as idéias que de fato
direcionam a sua experiência. Traçando novamente um paralelo entre a idéia de
Charlot e a situação do abrigo, o perigo que pode ocorrer é a instituição e os
trabalhadores apresentarem uma fala baseada no que o ECA propõe, ou seja, uma
concepção de educação ao invés de um modelo assistencialista e olharem para as
crianças como coitadas, carentes de tudo, precisando ter todas suas “vontades”
satisfeitas, etc.
Para o autor, o sucesso da atuação do professor depende das conseqüências
desta na prática do aluno e não somente no discurso que profere. Charlot (2002)
esclarece esse ponto dizendo:
Não me importa saber se o professor é tradicional, se não é tradicional, se é da
pedagogia nova, da pedagogia antiga, e todo esse debate. Importante é saber o que vai permitir ao aluno aprender a desenvolver sua próprias práticas intelectuais. (pg. 98).
Mais adiante no texto, Charlot aponta a importância dos professores terem
consciente quais as representações que têm das crianças dos meios populares, pois se
pensa ser a criança incapaz ou inferior devido a sua condição social, “ele não vai
permitir à criança entrar em atividade intelectual” (pg. 98).
Trazendo essa questão para a presente pesquisa, buscar qual é a compreensão
e representação a respeito da criança e adolescente abandonados para o educador é
um aspecto importante a ser investigado no discurso deles. Busca-se entender qual o
lugar ocupado pelos indivíduos na instituição, se é uma prática voltada à educação ou
ao assistencialismo, etc.
Optamos pela realização de um trabalho de campo e não teórico baseando-se
na tentativa de promover o diálogo entre as duas teorias. Buscou-se uma aproximação
das vivências dos trabalhadores do abrigo de maneira mais real possível. O método
escolhido, qual seja, entrevistas individuais com os educadores, também revela a
tentativa de aprofundar-se nas experiências e compreensão da própria prática tão
singular de cada sujeito. A análise se fundamentou, dessa forma, nos discursos
proferidos pelos educadores entrevistados. Através das falas escutou-se o manifesto, o
discurso consciente do sujeito e o não manifesto, fundamental também para responder
meus questionamentos a as indagações desse estudo.
VI. a – Os Abrigos
A Associação Maria Helen Drexel:
A primeira instituição, na qual as mães sociais são responsáveis pelo cuidado
das crianças e adolescentes abrigados, chama-se Associação Maria Helen Drexel.
Fundada em 1973 por um padre norte americano chamado João Drexel e um grupo de
casais de amigos, define-se como uma sociedade civil de caráter assistencial sem fins
lucrativos. Essa instituição de abrigamento define seus objetivos como dar amparo,
proteção, promoção e educação às crianças abandonadas através de ensinamentos
éticos que os capacite a viver em sociedade. A ponte entre as crianças e adolescentes
abrigados com a sociedade se dá pela freqüência nas escolas, acesso ao lazer e
cultura da cidade, participação em oficinas de informática, musica, etc.
A Associação Maria Helen Drexel mantém oito lares definidos como “lares
substitutos”. Um casal social (pai e mãe social) é responsável pelo lar e contam com o
auxílio de uma ajudante. Cada um dos lares abriga no máximo 12 crianças e
adolescentes de 1 a 18 anos; dessas 12 crianças e adolescentes, 10 são
encaminhadas do Fórum e as outras duas podem ser os filhos biológicos do casal
social. A equipe técnica da Associação é composta, dentre outros funcionários, por uma
assistente social e uma pedagoga.
A Associação busca reproduzir em cada um dos lares o ambiente familiar.
Acreditam que através da convivência com a família, composta segunda a Instituição,
pela mãe social, pai social e irmãos, as crianças e adolescentes abandonados possam
resgatar o equilíbrio afetivo necessário para seu desenvolvimento. A mãe social tem
como papel definido pela Instituição ser a responsável pela sustentação da estrutura do
abrigo, cuidar da casa e auxiliar na educação das crianças apoiada sempre pela equipe
técnica. As crianças e adolescentes permanecem abrigadas até terem condições de
retornarem a família biológica. Caso isto não seja possível, poderão ser adotadas ou
permanecer no abrigo até completarem 18 anos.
Nesse trabalho foi entrevistada a mãe social de um dos lares localizado na Zona
Sul da cidade de São Paulo, no bairro de Santo Amaro.
O Abrigo Butantã:
A segunda instituição, na qual educadores sociais têm a responsabilidade pela
educação e cuidado das crianças chama-se Abrigo Butantã. Essa instituição representa
um dos programas da Cruzada Pró-Infância, entidade fundada em 12 de agosto de
1930 por Pérola Byington e Maria Antonietta de Castro e apresenta como proposta
dedicar-se ao atendimento das crianças, jovens e famílias de baixa renda da cidade de
São Paulo. Define-se como uma instituição de caráter beneficente, social e científico,
tem por finalidade promover a defesa e execução dos direitos da criança, adolescente,
da gestante e da mulher. Atualmente a Cruzada Pró-Infância beneficia diretamente
aproximadamente 1.800 crianças e adolescentes e suas famílias, através das suas 10
creches e de 1 Abrigo (o abrigo Butantã).
A Cruzada Pró-Infância foi responsável por realizar, dentre outras coisas, a
primeira Campanha Pública Brasileira sobre a importância do Leite Materno; criou a
semana e o dia da Criança (12 de outubro, adotados nacionalmente por Decreto
Presidencial 1939); criou uma rede de 14 creches, as quais foram posteriormente
transferidas para a Rede Municipal de Ensino e inaugurou em 1959 o Hospital “Pérola
Byington”, direcionado ao atendimento da mãe e da criança, depois passando a ser
administrado pelo governo do Estado de São Paulo.
O Abrigo Butantã é um serviço da rede pública com capacidade máxima para
vinte crianças e adolescentes, destinado ao atendimento de crianças e jovens de 0 a
17 anos e 11 meses, de ambos os sexos. Define-se tendo a transitoriedade como
princípio norteador do seu atendimento, este garantido à criança ou ao adolescente
até o quanto precisar ser acolhida na instituição. Garantirá acolhimento, portanto, até
que a criança ou o adolescente seja encaminhado para a família de origem ou
substituta. As crianças e adolescentes são encaminhadas através do Conselho Tutelar
do Butantã, Vara da Infância e Juventude de Pinheiros e demais serviços
contemplados no artigo 93 do ECA, desde que o serviço possua vaga.
Trabalham nesse abrigo quatorze funcionários: um coordenador e um auxiliar da
coordenação com nível de ensino universitário; seis educadores com nível superior e
quatro com ensino médio completos; uma cozinheira também com ensino médio
completo e um auxiliar de serviços gerais com ensino fundamental completo. Os
educadores tem uma carga diária de 12 horas de trabalho e 36 horas semanais.
VI. b – Os sujeitos
A opção por uma pesquisa qualitativa se justifica na intenção de analisar os
discursos dos sujeitos de maneira mais aprofundada, buscando compreender a
dimensão subjetiva do fenômeno estudado. Tendo como objetivo compreender qual a
teoria que o educador social constrói a partir de sua prática, acredito estar lidando com
o conhecimento de forma construtiva – interpretativa. A relação direta do pesquisador
com o sujeito através das entrevistas implica levar em conta a subjetividade do
entrevistador. Essa postura não busca encontrar uma verdade absoluta e restrita dos
dados, mas sim através da própria escuta do pesquisador, construir junto com os
sujeitos os conhecimentos. Para isso nos diz González Rey: “(...) A significação dos
trechos de informação não é um processo arbitrário do pesquisador, mas sim um
processo relacionado as suas possibilidades de articulação quanto ao modelo teórico
em construção (...)” (2005, pg. 112)
Escolhemos trabalhar com um número mais restrito de sujeitos para que as
análises dos seus discursos fossem mais aprofundadas e menos superficiais. Para
tanto, um educador social e uma mãe social foram entrevistados. A relevância da
pesquisa com um número menor de sujeitos permite avaliar a subjetividade dos
indivíduos e é apresentada por González Rey (2005): “Essa consciência crescente
acerca da significação do singular para o conhecimento do social nos apresenta um
individuo socialmente constituído que, conforme assinala Ferrarotti, não é um reflexo do
social, mas que permite seu conhecimento. (...)” (Pg. 25)
Como já apontado em capítulo anterior desse estudo, fiz a opção por trabalhar
tanto com um educador social quanto com a mãe social pois o modelo de abrigo no
qual trabalham é diferente nos dois casos, elemento este investigado mais adiante
buscando compreender uma possível diferença no desempenho dessas duas funções e
conseqüente influência na vida dos sujeitos abrigados.
A atividade de mãe social é regularizada pela Lei Federal de número 7.6448 e
dentro do que se pode apurar não há uma lei que prevê a regulamentação da profissão
de educador social. A Lei de Diretrizes e Bases regulariza a atividade do professor e
não do educador social. Destaco a seguir a três artigos da Lei 7.644 citada a cima:
• Art. 1º As instituições sem finalidade lucrativa, ou de utilidade pública de
assistência ao menor abandonado, e que funcionem pelo sistema de casas-lares,
utilizarão mães sociais visando a propiciar ao menor, as condições familiares ideais ao
seu desenvolvimento e reintegração social.
• Art. 2º Considera-se mãe social, para efeito desta lei, aquela que,
dedicando-se à assistência ao menor abandonado, exerça o encargo em nível social,
dentro do sistema de casas-lares.
• Art. 4º São atribuições da mãe social:
I - propiciar o surgimento de condições próprias de uma família, orientando e assistindo
os menores colocados sob seus cuidados;
II - administrar o lar, realizando e organizando as tarefas a ele pertinentes;
III - dedicar-se, com exclusividade, aos menores e à casa-lar que lhes forem confiados.
A escolha dos dois sujeitos nas instituições teve como critério os profissionais
que tivessem mais tempo de experiência na área. A educadora social entrevistada
trabalha nessa profissão há 15 anos e a mãe social há 3 anos e meio. Os nomes
apresentados nos relatos são fictícios para que os sujeitos não possam ser
identificados.
8 Versão integral da Lei 7.644 disponível no site www.senado.gov.br
VI. c – Procedimento de coleta de dados O instrumento utilizado nessa pesquisa consistiu-se em uma entrevista individual
realizada com cada um dos dois sujeitos: uma mãe social e uma educadora social de
abrigo. O trabalho busca investigar a vivência e a significação desses profissionais em
relação ao próprio trabalho e a concepção que tem da criança e por isso justifica-se a
utilização das entrevistas individuais como instrumentos para a coleta dos dados. As
entrevistas serão realizadas dentro de um processo denominado de dinâmica
conversacional. González Rey (2005) justifica a relevância de se utilizar esse processo
na pesquisa qualitativa:
O modo mais extenso de expressão do sujeito em sua vida cotidiana são as
conversações, as quais representam o melhor exemplo de uma comunicação interativa
que se desenvolve de forma gradual e que permite a inclusão constante de novas ‘zonas
de intercambio’ entre os participantes, as quais os envolvem cada vez mais, facilitando
assim a expressão de sentidos subjetivos. (pg 47-48)
Definido então as entrevistas dentro de um processo de conversação, estas não
terão perguntas que deverão ser respondidas “rigidamente” pelo entrevistado. O
entrevistador se utilizará de um orientador de perguntas com o objetivo de estimular a
conversação buscando dessa forma implicar o sujeito e a si mesmo na pesquisa de
maneira mais espontânea possível.
Vê-se, portanto, que a postura do entrevistador deve ser objeto de reflexão. Ele é
responsável pelo andamento da conversação junto com o sujeito entrevistado,
estabelecendo uma relação direta com este, implicando assim numa produção conjunta
dos dados. Segundo Rey (2005):
As conversações geram uma co-responsabilidade devido a cada um dos
participantes se sentiram sujeitos do processo, facilitando a expressão de cada um por
meio de suas necessidades e interesses. (...). Nesse processo, tanto os sujeitos
pesquisados como o pesquisador integram suas experiências, suas dúvidas, e suas
tensões, em um processo que facilita o emergir de sentidos subjetivos no curso das
conversações. (pg 45 – 46)
- Roteiro da Entrevista:
Duas questões introduzem a conversação e têm como objetivo garantir
informações mais objetivas do sujeito (tempo de trabalho no abrigo) e introduzir a
educadora / mãe social na conversação com a entrevistadora. Tendo o inconsciente
como conceito básico para se pensar a relação educador – criança, buscou-se entender
também quais foram as motivações dos sujeitos que os levaram a trabalhar tão
diretamente e vividamente com o abandono. O estabelecimento ou não de uma relação
entre a história de vida do sujeito e a escolha por esse trabalho poderá ser feita nessas
condições.
• Desde quando você trabalha em abrigo como educadora / mãe social?
• Fale um pouco sobre quais foram as motivações que a levaram a esse
trabalho.
Em seguida, busca-se introduzir o sujeito no tema principal desse trabalho, qual
seja, a teorização que o educador social e mãe social tem do seu trabalho. Através das
facilidades e dificuldades, pode-se começar compreender qual a teoria que o sujeito
tem da sua prática.
• Quais as maiores facilidades e dificuldades desse trabalho?
Através das questões a respeito da visão da educadora / mãe social sobre uma
criança busca-se compreender efetivamente qual a teorização do próprio trabalho
desses profissionais. Contando sobre a vida e como enxerga determinada criança, o
profissional poderá revelar qual a teoria que tem dessa criança, como enxerga a
influência do seu trabalho e qual a sua teoria em questão. Provavelmente, se
questionado mais diretamente sobre esse tema, poderia responder mais
defensivamente ou com um discurso teórico não condizente com a sua prática.
Portanto, acredita-se que através do discurso da vida de uma criança, o educador / mãe
social revele a sua teoria indissociada da prática.
• Conte-me sobre uma criança:
- Como e quando chegou no abrigo?
- Qual a história dela?
- Como é para você ouvir essa história?
- Como a enxerga?
- Quais são suas maiores facilidades e dificuldades?
- O seu trabalho interfere na vida dessa criança?
- Como percebe a influência do seu trabalho na vida dela?
- Essa criança e seu trabalho com ela modificam a sua vida? De que forma?
Portanto, através dessas questões buscou-se compreender qual o ambiente
proporcionado pela educadora social e pela mãe social às crianças e adolescentes de
abrigo. Acredita-se que buscando investigar como significam sua prática e a teoria que
tem das crianças aproximaria-se do ambiente possibilitado por esses profissionais.
VI. d – Procedimento de análise dos dados
As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, garantindo assim
integridade do discurso dos sujeitos, os quais assinaram o termo de compromisso (vide
anexo) autorizando o procedimento. Para garantir o sigilo dos sujeitos e assim a ética
da pesquisa, seus nomes foram alterados.
Primeiramente foi feita uma leitura flutuante de cada entrevista buscando uma
aproximação com o discurso do sujeito. O roteiro elaborado com base em minhas
indagações e questionamentos desse estudo citado no “Procedimento de coleta de
dados” possibilitou a criação de núcleos dos diálogos dos sujeitos. Portanto, esses
núcleos tiveram como base a fala do sujeito e as minhas intenções. São quatro núcleos:
I) História de vida e história profissional; 2) O trabalho da mãe e da educadora social; 3)
Histórias de algumas crianças com quem trabalham e 4) Influência do trabalho na vida
pessoal. Dessa maneira, após uma primeira leitura, os trechos foram marcados
buscando organizar os discursos dos sujeitos nos quatro núcleos. Segundo Rey (2005),
esses núcleos não devem ser tomados como “entidades rígidas e fragmentadas”
(pg.139); ao contrário, devem ser compreendidos como uma forma de organização e
maior visibilidade. Os núcleos são entendidos em constante movimento dentro de suas
articulações que se relacionam entre si. Nesse processo, os discursos foram sendo
reconstruídos no intuito de captar o sentido manifesto e o não manifesto, inconsciente
presente nesses relatos. Para isso, nos diz Rubem Alves: “É um ouvir atento de uma
canção que só ouve no intervalo do silêncio do coaxar dos sapos, e que nos chega
como pequenos e fugazes fragmentos desconexos”9 Através de uma leitura e
interpretação psicanalítica das falas, buscou-se compreender a vivência, a significação
do trabalho desses profissionais e a concepção que têm das crianças e adolescentes
institucionalizados.
9 Trecho retirado da crônica “Sobre Príncipes e sapos” presente no livro “O Retorno e terno”, Papirus: São Paulo, 2003
VII – Apresentação dos dados e análise
VII a. SUJEITO 1 MÃE SOCIAL LUCIANA
Quando marquei a reunião com a coordenadora da Associação Maria Helen
Drexel, ela achou interessante eu realizar a entrevista com a mãe social que tivesse
mais experiência de trabalho. Indicou-me Luciana, a mãe social com quem realizei a
entrevista de um dos lares da Associação.
Luciana foi o primeiro sujeito entrevistado no meu trabalho. Relatou trabalhar
como mãe social há três anos e meio. Mostrou-se desde o inicio bastante disponível em
participar da entrevista e no dia em que nos encontramos, ofereceu uma sala separada
da área social para podermos ficar mais à vontade e garantir uma privacidade
necessária em nossa conversa.
I – HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA PROFISSIONAL “Eu nem sabia que existia esse trabalho de mãe social. Eu vi, meu marido viu um
anúncio num jornal e eu achei interessante. Aí nós fomos ver como é que funcionava isso. Eu
me interessei bastante pelo trabalho; e entramos no processo de seleção, e ficamos aqui. Eu
achei bem interessante. Eu acho que é a minha cara, eu me encontrei.”
“(...) eu trabalhava numa escola, era ajudante geral na escola. Mas eu sentia muita
falta de estar mais perto dos meus filhos biológicos. Aí, quando eu vi esse anúncio, eu
pensei: olha, de repente eu posso estar com eles - quando eu fui ver o trabalho, como
funcionava, porque me foi falado tudo isso. E eu achei interessante isso. Como eu não conhecia
antes, eu não imaginava como era. Porque, no caso, quando a gente chega aqui, é
totalmente diferente, porque você, cria-se um vínculo muito forte.”
“(...) A minha mãe teve 9 filhos, então não fica muito diferente. Hoje eu estou com
11 crianças, então eu já vivi isso antes. Pra mim fica mais fácil. E, hoje, eu sei muitas coisas
do que a minha mãe passava lá atrás. Porque, na época, quando a gente está, a gente não
entende; então eu acho que foi um crescimento pessoal muito grande também.”
“(Eu gosto) Bastante. Eu me encontrei aqui. Eu acho que, as pessoas falam: ‘ah, você
tem... ah, meu dom é cantar, o meu dom é escrever (...)’. E eu ficava pensando: 'caramba, mas
e o meu dom, qual é?' Porque eu gostava de muitas coisas, mas hoje eu sei que o meu dom
é ser mãe. O meu dom é estar alí, é estar indo junto com a criança (...) O meu dom é trabalhar
pelas crianças.”
“(...) Eu também tive uma família complicada, eu também sofri pra caramba. Então,
eu acho que mostrando a minha história também...., e eu estou aqui, eu estou feliz, eu guiei a
minha vida pra onde eu queria que fosse. Hoje eu estou aqui com vocês por que? Porque eu
quero. Porque eu estou feliz.”
O relato de Luciana indica não haver uma formação necessária para o
desempenho da função de mãe social, já que não conhecia a profissão e descobriu-a
num anúncio no jornal. A sua experiência pessoal de vida, revelada na entrevista,
serviu de referência e de base no desempenho da função de mãe social. Luciana diz já
ter vivido anteriormente na sua família a situação vivida por ela no abrigo. Portanto,
pelo fato de não existir uma formação específica profissional de mãe social, ela acaba
trazendo para a prática suas próprias referências. Além disso, relata não haver uma
diferença entre o seu trabalho como mãe social e o papel de mãe desempenhado por
sua mãe; a única diferença seria o fato dela ter dois “filhos” a mais que sua progenitora.
Ela se vê motivada por poder conviver mais proximamente com seus filhos
biológicos, não revelando, inicialmente, uma motivação mais próxima do que seria o
desempenho da função de mãe social – responsabilizar-se pela educação das crianças
e adolescentes abrigados. O valor da família já se vê claramente apontado nesse
aspecto, quando estar junto com a sua família diariamente é algo bastante importante.
No início do trabalho, apresenta uma expectativa do que poderia ser o trabalho e afirma
ter sido surpreendida pelo que acontece de fato: um grande envolvimento emocional
com as crianças e adolescentes abrigados. Uma hipótese possível seria o fato de sua
expectativa inicial estar muito centrada na possibilidade de conviver com a sua família
(filhos e marido), como se isso bastasse para sua função. Talvez não estivesse
contando inicialmente com o contexto que de fato entraria em contato, qual seja,
crianças e adolescentes em situação de abandono.
Nesse relato, Luciana diz ter descoberto o seu dom trabalhando como mãe
social. Quando lhe foi proposto o trabalho, “ser mãe” foi a única exigência feita e ela
confirma a descoberta desse dom durante a experiência de trabalho. Para Luciana ser
mãe e trabalhar pelas crianças são a mesma coisa.
Luciana revela mais alguns dados de sua história pessoal – “eu também tive uma
família complicada, eu também sofri pra caramba”. Acredita que isto facilite seu trabalho
com crianças e adolescentes que tem também uma história difícil de vida. Além disso,
pode-se tomar este aspecto como indicador de uma outra motivação para esse
trabalho. Talvez exercendo o papel de mãe social poderia elaborar essa história
pessoal marcada pela dor e mostrar para os abrigados “como é possível ter um final
feliz”. Penso Luciana poder ter vislumbrado no trabalho de mãe social uma
possibilidade de significar a própria filiação, buscando compreender sua mãe e
resignificar sua história.
II – O TRABALHO DE MÃE SOCIAL
“(...) Isso aqui não é um trabalho normal como outro. Você conhece as crianças,
conhece a personalidade de cada um, sabe das necessidades de cada um, da história de cada
um; então, chega um dia que vira mesmo uma família, porque você quer mais (...) fazer com
que a criança consiga ser feliz, mesmo com as experiências anteriores, mesmo com a história. E é um trabalho muito complexo, você está mexendo com reeducação, na verdade.
Educar já é difícil, eu acho que reeducar é um pouquinho mais ainda (...)”
Luciana busca caracterizar a atividade de mãe social como um trabalho. Sempre
se refere a ele dessa maneira, mas o reconhece como um trabalho diferente pelo
vínculo forte que se estabelece entre ela e o público atendido. Compara sua expectativa
inicial com o que aconteceu na sua experiência diária no desempenho desse papel,
quando diz: “quando a gente chega aqui, é totalmente diferente”. Luciana relata ter
trabalhado anteriormente como ajudante geral em uma escola, provavelmente também
convivendo com crianças. Porém, aponta que como mãe social o vínculo estabelecido é
muito maior do que acontecia na escola. Este vínculo se torna mais forte provavelmente
porque exige muita proximidade, conhecimento da personalidade, aproximação da
história de cada criança e adolescente, vínculo este provavelmente não exigido nem
característicos de outros trabalhos exercidos por Luciana.
Um vínculo tão forte e intenso como ela descreve nesse trabalho faz com que,
em sua vivência, o abrigo se torne um dia uma família, como se uma vinculação intensa
entre as pessoas e um investimento amoroso no outro caracterizasse uma família.
O grande objetivo da mãe social é descrito por Luciana como fazer a criança ser
feliz apesar da sua história, da sua experiência de vida. Vê, portanto, a possibilidade de
atingir sua meta mesmo as crianças tendo histórias de vida tão difíceis. Pelo fato das
crianças chegarem no abrigo já com uma bagagem de experiências, com uma história
de vida, ela aponta como característica do seu trabalho reeducar as crianças, diferente
de educá-las, como se a educação já tivesse sido dada pelas famílias anteriormente e a
função dela fosse modificar essa educação, segundo Luciana, tarefa mais complicada
ainda.
“Facilidades? (...) Fácil.... Eu acho que tudo o que você faz com vontade, você faz
com amor, fica fácil. (...) Eu acho que eu tenho facilidade pra comunicação. Eu tenho um
sexto sentido forte. (...) (Saber) aprender a respeitar o tempo certo, a hora certa. (...) Hoje,
aqui, eu olho pra cada criança, eu sei mais ou menos o que ela está sentindo, o que é a
necessidade dela. E isso você vai com a experiência, mesmo com filhos biológicos, você
vai conhecendo mesmo, sabendo como é o coração, como ela se comporta, quais os
sentimentos reais dessa criança. (...) Eu sei no olhar da criança - pelo menos nos daqui,
né. Não sei os outros. E eu sei o que ela está precisando da vida naquele momento.”
Prontamente, Luciana aponta o amor e a vontade como atributos fundamentais
para tornar o seu trabalho fácil. Se a pessoa realmente gosta do que faz e investe
nisso, então terá grandes chances de encontrar facilidades no meio do caminho.
No papel de mãe social, a comunicação é um aspecto importante do trabalho e
Luciana acredita ter facilidade em se comunicar. Para ela faz parte da comunicação
olhar nos olhos do outro e através disso, ser capaz de expressar os seus sentimentos
verdadeiros e também poder compreender as necessidades e vontades do outro. Essa
comunicação, segundo ela, facilita ir ao encontro do que o outro necessita no momento.
Aponta também ter um sexto sentido desenvolvido e isso ajuda no seu papel de mãe
social das crianças e adolescentes.
Luciana aponta na experiência diária com as crianças e adolescentes um
aspecto fundamental para o estabelecimento desse manejo e comunicação com elas,
além de perceber diferentes necessidades em cada uma. Com isso indica acreditar ser
importante compreender cada criança como sendo única, individual com necessidades
e vontades próprias. Segundo ela, essa comunicação “olhos nos olhos” que a faz
compreender os sentimentos e comportamentos das crianças não é algo dado a priori,
mas sim conquistado na experiência. Acredita ser necessário não enxergar as crianças
como sujeitos iguais, tendo todas as mesmas necessidades; dessa maneira, segundo
ela, não precisaria da prática, já saberia a priori as necessidades de cada um. O olhar
aparece como um aspecto muito importante na relação estabelecida entre ela e as
crianças; elas não precisam nem verbalizar o que sentem, bastam olhar. Na verdade,
capta o olhar como um meio de comunicação fundamental na criança, tendo em vista o
fato do sujeito nessa fase do desenvolvimento não saber verbalizar ainda o que sente,
dependendo do outro para nomear suas necessidades e vontades.
Luciana compara a relação estabelecida entre ela e os seus filhos biológicos e
entre ela e as crianças e adolescentes do abrigo quando diz: “E isso você vai com a
experiência, mesmo com filhos biológicos, você vai conhecendo mesmo, sabendo como
é o coração, como ela se comporta, quais os sentimentos reais dessa criança”. Da
mesma forma como acontece com as crianças e adolescentes abrigados, com seus
filhos também precisou da experiência para conhecê-los. O fato de ser mãe biológica
deles não fez com que a relação se estabelecesse mais facilmente ou que o vínculo
amoroso e a identificação existisse automaticamente. Em ambos os casos, a
convivência e a experiência foram fundamentais. Dito em outras palavras, a mãe
biológica também, segundo Luciana, precisa aprender a amar os filhos; esse amor não
é dado a priori, mas sim conquistado diariamente.
“Não é que é difícil, assim, é... É o que eu acabei de falar, de repente você conhece a
criança - porque aqui tem adolescente também. (...) Eu tenho 2 de 17.(...) Então, você olha
assim, mesmo com adolescentes, mesmo com as dificuldades... Difícil? O que é difícil?
Meio complicado, não é.” (emocionada)
“Eu acho que nada se torna difícil mesmo (ênfase). Eu acho que é um meio termo,
não é uma coisa que você fala ‘ai é uma coisa difícil.’ (...) É claro que tem criança que fica
mais difícil, porque você está entrando mesmo no coração, (...) conseguindo com que ela
coloque pra fora os sentimentos reais (...). Mas, ainda assim, com jeitinho você vai, você vai
conseguindo, com carinho, com amor. (...) Quer dizer, eu não acho que tem difícil. Eu
acho que tudo é o trabalho que você vai realizando e, de repente, vai obtendo resultado,
vai obtendo sucesso da sua parte, da outra demora um pouquinho, isso que é o difícil, né, demorar mais um pouquinho. Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê que deu
resultados.(...)”
Fica visível um conflito maior em falar das dificuldades do que das facilidades.
Começa negando as dificuldades, dizendo: “Não é que é difícil, assim, é...” e termina a
fala visivelmente emocionada e refletindo: “Difícil? O que é difícil? Meio complicado, não
é.” Parece ser complicado, como ela mesma diz, pensar no difícil, não sabendo
inclusive definir esse “difícil”. Inicialmente, bastante confusa em responder o que lhe
pergunto, ela diz: “porque aqui tem adolescente também, tem duas adolescentes”,
parecendo buscar uma referência no senso comum, onde adolescência é sinônimo de
dificuldade. Mas mesmo essa possível dificuldade não se sustenta e acaba negando-a.
Existem para Luciana, portanto, muito mais facilidades do que dificuldades no
desempenho dessa função.
Em seguida, depois de ficar pensativa e reflexiva, Luciana responde
enfaticamente que não há nada no trabalho que realmente possa ser considerado
difícil. Penso poder ser essa ênfase um reflexo direto de uma tentativa de Luciana em
acreditar na inexistência de dificuldades. Alguns obstáculos existem no trabalho, mas
segundo ela, são situações que não apresentam dificuldade e também não são fáceis.
Entrar no coração (sic) de algumas crianças parece ser a primeira dificuldade
revelada por Luciana no seu trabalho; com algumas delas, a relação demora mais
tempo para se estabelecer. O fato desse trabalho exigir, segundo ela, um grande
envolvimento emocional, pode ser em alguns momentos difícil. Entretanto, segundo
Luciana, esses obstáculos são sempre vencidos quando a aproximação com a criança
é feita com jeitinho, carinho e amor (sic), três aspectos fundamentais na sua experiência
para se aproximar de uma criança. A confiança entre ela e a criança é conquistada a
partir dessa relação imbuída de carinho e amor. A partir do estabelecimento do laço de
confiança onde a conversa é importante, é possível mostrar para a criança e para o
adolescente que elas podem confiar seus sentimentos, emoções e histórias.
Depois de apontar essas possíveis dificuldades no seu trabalho, nega
novamente a existência destas, quando diz: “Eu acho que também não é difícil. Quer
dizer, eu não acho que tem difícil.” Não são dificuldades em si, para Luciana, pois
conhece o jeito de superá-las com o seu trabalho – através da conversa, amor, jeitinho
e carinho, por exemplo.
O trabalho é avaliado a partir das marcas deixadas na vida das crianças e
adolescentes. Quando o resultado esperado por ela é obtido, considera um “sucesso da
sua parte”. Entretanto, quando o resultado e o sucesso levam mais a tempo a serem
alcançados, penso que se sente frustrada e isso é, no relato de Luciana, uma situação
difícil para ela no papel de mãe social. Lidar com o tempo de cada criança elaborar
suas vivências e de talvez, não ter um resultado que corresponda às suas expectativas
de sucesso, pode ser que seja uma das maiores dificuldades percebidas por Luciana.
Penso ser tão difícil para ela essas possíveis situações de “fracasso”, que ela diz em
seguida: “Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê que deu resultados.” A
possibilidade de não enxergar os resultados esperados por ela não é vislumbrada e
assim, mesmo sendo no futuro, os resultados deverão aparecer.
“Eu gosto desta instituição (...). Eu acho que eles dão condições pras crianças, pra
mãe social, pra gente estar realmente guiando pra um futuro legal (...) Tem cursos, aula de
música, informática (...) recreação pras crianças, tem um projeto cultural que tem um
passeio todo mês pras crianças. (...) Tem a pedagoga, tem a assistente social, uma equipe
técnica pra estar auxiliando nas dificuldades maiores da mãe social. (...) Eu acho que eles
sabem disso, eles têm consciência do que eles estão vivendo, e eles gostam, eles se sentem
seguros, é isso que eu acho legal. (...) Eu posso hoje falar: é uma família de verdade. Uma
família como todas as outras famílias, com dificuldades, com experiências marcantes, com felicidades plenas. Eu acho que toda família tem a sua deficiência em algum sentido,
independente que seja biológica ou não. Eu acho que isso a gente consegue passar pra eles,
isso é legal, essa coisa de família mesmo. (...)”
Luciana caracteriza também seu trabalho a partir das referências da instituição
na qual trabalha. Demonstra estar de acordo com a proposta, acreditando ser possível
possibilitar um bom futuro para as crianças através dos pressupostos desta. Uma das
condições apontadas por Luciana possível de lhes possibilitar um bom futuro é a
existência de atividades além dos muros da instituição. A convivência com a sociedade,
participar da cultura, garantir o direito às crianças de se experimentarem em diversas
áreas do conhecimento é tido como um aspecto importante por Luciana no
desenvolvimento infantil e fundamental para que se possa pensar em um futuro para
eles. Contrapondo-se a essa visão de Luciana estaria a idéia de um isolamento desses
sujeitos, idéia esta característica dos grandes internatos. Luciana reconhece também
um apoio ao trabalho da mãe social fornecido pela instituição através da presença de
uma equipe multidisciplinar.
Essas oportunidades dadas pela instituição são reconhecidas pelas crianças e
adolescentes, segundo Luciana, que parecem gostar e se sentirem seguros. Quando
diz: “eles têm consciência do que eles estão vivendo”, parece nos dar a idéia de que
antes do abrigamento, vivendo ainda com as famílias, não tinham provavelmente essas
condições e agora, no abrigo, sabem o quanto isso é importante para suas vidas. Pode
demonstrar, com isso, uma crença positiva no papel da instituição na vida deles. Talvez
ainda necessite opor as duas instituições de uma maneira maniqueísta: uma sendo a
boa e a outra a má, no caso a família da criança desvalorizada pois não fornece essas
condições e o abrigo representando um ambiente seguro, que eles gostam e valorizam.
Diante dessas condições possibilitadas pelo abrigo, o conflito na criança parece não
existir, pois o fato de gostar e se sentir segura na instituição anularia qualquer tensão.
No relato, pode ser que Luciana nos forneça o principal aspecto relacionado ao
seu trabalho e ao da instituição para ela possibilitadores de um bom futuro para as
crianças: transformar o abrigo em uma família. O fato de conseguirem ser uma família,
para Luciana, garante para as crianças um desenvolvimento saudável, a possibilidade
de sonharem com um futuro, as condições básicas para seu processo de subjetivação.
“ (...) A minha família veio toda pra cá. (...) Isso que também é muito bom. Porque
você está com a sua família, você está bem, né. E aqui se forma mesmo, chega muito
próximo de uma família (...)”
“(...) Daí eu falo: ‘eu sou sua mãe, pô, eu tenho direito. Eu sou mãe.(...)’”
“(...) Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o
que tirar”.
No discurso de Luciana, foram observados diversos trechos nos quais a família é
tida como o elemento fundamental da construção de identidade dos sujeitos. Diante do
fato das crianças abrigadas estarem afastadas do convívio familiar por diferentes
motivos, Luciana tenta reproduzir no abrigo a família acreditando com isso resgatar o
desenvolvimento desses sujeitos. É como se o processo de subjetivação das crianças
tivesse sido interrompido quando afastadas do convívio familiar e ela buscasse
recuperá-lo garantindo para as crianças novamente esse ambiente. Ela revela sua
experiência pessoal e a importância do valor da família quando fala: “Porque você está
com a sua família, você está bem, né.” Estar no ambiente familiar é garantia de bem
estar e segurança.
Luciana afirma ser a mãe das crianças e lhes diz isso concretamente,
autorizando-se inclusive a ter direitos sobre elas, justificáveis pelo papel que ocupa em
suas vidas. Diante disso, pode-se pensar numa super valorização do papel de mãe, no
qual estar no desempenho desse papel significa ser detentora de direitos,
provavelmente não fornecidos à outras funções sociais, como o de educadora e
professora.
Luciana também nota uma igualdade entre o ambiente familiar construído e
conquistado no abrigo com a instituição família. As duas realidades são idênticas, não
reconhece nenhuma diferença, apenas as semelhanças.
“(...) também (tem a) questão de estar colocando limite, de ser mãe, de estar
educando mesmo. 'Olha, é falta de respeito isso, cara, não é legal (...) ’”.
A colocação de limites e a educação são descritas como responsabilidades a
serem cumpridas pela figura materna. A mãe pode e é responsável, portanto, pelo
desempenho tanto das funções maternas quanto das paternas.
“(...) Quando ele foi, parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo. Eu
tinha 8 meses de trabalho quando ele foi embora com a mãe dele, e (...) eu me senti assim
perdendo um pedaço de mim naquele dia. É muito triste. (...) Eu trabalhei isso em terapia
porque eu não aceitava isso. Eu achava que eram todos meus filhos, era toda uma família, que não poderia estar tirando. E, hoje, eu estou mais calma em relação a isso. Eu
acho que é porque eu sei que eles vão estar bem com a família também. Eu acho que eu
consegui.”
Na medida em que busca substituir concretamente a mãe das crianças e
adolescentes do abrigo, ela sente-se a mãe deles e quando são desabrigados, sente-se
perdendo um filho (sic). Descreve o desabrigamento como um processo muito doloroso
para ela, no qual parece perder um pedaço de si. O abrigo é transformado
concretamente também em uma família, diferente de ser um ambiente familiar, e assim
o desabrigamento é vivenciado por ela como algo que lhe é arrancado, tirado, dando a
idéia de um processo que acontece à força, contrário a sua vontade e consentimento.
Penso que seu real desejo seria manter a “família unida”, com todos presentes. A mãe
da criança parece não ter mais nenhum direito sobre ela a partir do momento em que a
“abandonou”. Desde quando formou uma nova família para as crianças, ela é a nova
“mãe” delas o que lhe garante direitos sobre elas (como descrito em trecho anterior). A
experiência profissional de desabrigamento é misturada com uma vivência pessoal de
tristeza, mutilamento. Ela não aceita o fato de uma criança ser desabrigada e trabalha
essa vivência na terapia individual, ou seja, leva para a análise pessoal uma questão
institucional. Essa situação revela uma característica desse trabalho descrita por
Luciana anteriormente e exemplificada nesse caso, qual seja, um envolvimento afetivo
muito intenso entre ela e as crianças. O afeto está implícito no desempenho desse
papel e acaba sendo muito difícil, talvez impossível, diferenciar o que seria do âmbito
profissional e o que é pessoal.
“É muito complicado. Eu estou com duas crianças que, talvez, no final do ano vão
embora com a mãe e eu já estou me preparando desde já pra não sofrer tanto, pra não
sentir um vazio. Eu aprendi muito quando o G. foi embora, (...) eu trabalhei como lidar com
essa perda dentro de mim. Hoje eu já estou mais calma. No dia-a-dia eu já me policio... (...)
Tem que ficar com a consciência tranqüila, está tudo certo, a vida está seguindo o seu curso, e é bom que siga.”
“(...) Elas vão, vai ficar um vazio muito grande, mas elas vão ficar com a família
delas. E eu vou estar sempre por perto, andei armando o meu esquema pra estar conversando
com as meninas, pra estar falando um oi de vez em quando, pra não perder esse contato (...).”
Esse processo, por mais elaborado, experienciado, preparado antecipadamente,
parece ser algo sempre difícil e doloroso para a mãe social, segundo relato de Luciana.
A experiência com G. descrita como uma “perda” foi um aprendizado, segundo Luciana,
porém não foi suficiente para resolver essa questão dentro de si. O medo de sofrer e de
ficar novamente um vazio dentro de si quando as duas meninas deixarem o abrigo faz
com que ela tente se preparar para essa situação. Pensar na realidade concreta, ou
seja, no fato de não serem suas filhas, de estarem com a família biológica, de ter feito
tudo o que estava ao seu alcance tranqüiliza-a de certa forma, mas não resolve o
conflito. Pensar racionalmente na situação é bastante diferente de senti-la
emocionalmente, já que mesmo racionalizando a situação, sabe que “vai ficar um vazio
muito grande”.
“(...) No Natal do ano passado eu estava um pouco chateada dia 24 porque a casa
estava vazia, e eu não estou acostumada com casa vazia (...) foram 6 crianças passar as
férias, o Natal e Ano Novo na casa da mãe, e eu andava nessa casa e falava: ‘gente, como
pode a casa vazia.(...)’”
No Natal, data que simboliza na tradição cristã o nascimento de Cristo, é
importante para essa cultura estar com a família, pensando no valor fundamental dado
a essa instituição nos ensinamentos cristãos. Muitas crianças do abrigo são autorizadas
a estarem com suas famílias de origem tanto nessa data, quanto no Ano Novo e nas
férias. A mãe social, buscando garantir no abrigo uma nova família para as crianças, se
vê chateada e em conflito pelo fato das crianças passarem essa data junto com seus
pais biológicos. Quando o abrigo cumpre com seu objetivo e autoriza os sujeitos com
condições para passarem o Natal com a família, a mãe social se frustra; seu desejo,
revelado na sua fala, seria que nenhuma criança saísse de perto dela e que pudessem
estar todos juntos comemorando esses momentos valorosos e importantes para a união
da família.
“(...) Ela tem a sua família. Ela me chama de mãe desde que ela chegou: ‘ah, minha
mãe, minha mãe, minha mãe!’ E é engraçado, quando a gente vai visitar a mãe biológica, aí ela fala: ‘mãe, olha, a minha mãe falou...’. A gente fica meio assim. Mas eu já estou
acostumada e a mãe dela também. Pra mãe dela eu precisei provar que eu queria ajudar.
Porque muitas mães acham que a mãe social quer pegar os filhos dela. Eu cheguei várias
vezes pra conversar com a própria mãe dela e falar: ‘eu estou ajudando a sua filha pra quando
você pegar ela. Pra mim é legal você pegar ela, você levar ela pra casa, porque pra mim o
importante é estar com a família, é estar com o pai, a mãe, uma família estruturada. Isso que é
o legal.’ Depois de um tempo a mãe dela começou a entender. (...) você vê que a mãe
biológica está feliz por a criança estar com a mãe social, e sabe que a criança está sendo bem tratada, sabe que a criança está feliz. (...) E sabia que é uma parceria. Porque a gente
está ajudando também pra que vá, mas vá com uma formação melhor (...).”
“(...) Hoje ela fala: ‘ainda bem que tem você. Ainda bem que você é a mãe social
das crianças. Ainda bem que você está aqui. Ainda bem. (...)”
O estabelecimento de uma relação conflituosa marcada pela ambigüidade com a
mãe biológica das crianças e adolescentes vivendo no abrigo parece ser uma
característica implícita do papel de mãe social. Afirmando o fato da criança ter a sua
família e chamá-la de mãe desde que chegou no abrigo, Luciana já aponta a
contradição inevitável. A confusão de papéis fica evidente também para a criança,
quando diz: “mãe, olha, a minha mãe falou”. Luciana comenta ser uma situação cômica
e depois, contrariando o aspecto hilário, diz: “A gente fica meio assim.” Pode-se pensar
em uma dificuldade da mãe social em entrar em contato com essa contradição,
inclusive quando afirma já ter se acostumado com essa situação. É um conflito
intrínseco desde o momento em que se afirma ser a mãe das crianças e nesse sentido,
não é uma situação da qual se acostuma com facilidade.
Segundo Luciana, as mães biológicas apresentam uma idéia erroneamente
concebida de seu papel; sentem-se roubadas pela mãe social. Da mesma forma como
a mãe biológica se sente roubada pela mãe social, esta também demonstrou ter o
mesmo sentimento em outras situações.
Na tentativa de esclarecer a idéia equivocada na qual a mãe social deseja roubar
os filhos da mãe biológica, Luciana busca resgatar no diálogo a resolução do conflito. É
inegável nessa fala da mãe social a ausência da ambivalência sentida por ela nas
ocasiões de desabrigamento. Acreditando ser o mais importante para a criança estar
com a sua família de origem, isso não elimina a ambivalência presente no processo de
desabrigamento.
Para Luciana, dialogar e esclarecer os fatos com a mãe biológica é suficiente
para eliminar qualquer conflito possível. Entendendo a situação, a mãe biológica deixa
de se sentir roubada e passa a se sentir de uma forma bastante diferente, satisfeita e
feliz, segundo relato da mãe social, por ver seu filho feliz e bem cuidado.
A relação estabelecida entre as duas “mães” é descrita como sendo uma
parceria: a mãe biológica fica satisfeita com os cuidados dispensados à seu filho pela
mãe social e esta por sua vez faz o possível para que a criança possa voltar a viver
com sua família de origem, porém transformado, com uma formação melhor. Nessa
parceria descrita por Luciana, ela relata o reconhecimento da mãe biológica em relação
ao seu trabalho; a relação é descrita com uma ausência de conflitos e uma total
cumplicidade entre as duas. (“Ainda bem que você está aqui. Ainda bem”).
“(...) Eu tenho 2 filhos biológicos aqui, e você olha assim, você não sabe quem
são os meus filhos. Você fica tão junto que você mesma não sabe. Chega uma hora que nem
eu sei. É muito louco... (...) ”
O envolvimento com as crianças e adolescentes abrigados é tão intenso e há
uma tentativa tão presente em fazer do abrigo uma grande família, que a questão da
consangüinidade passa a ser irrelevante. Não há uma diferença entre a relação
estabelecida com as crianças e adolescentes do abrigo e com seus filhos biológicos.
Todos são igualmente seus filhos e fica tão próxima de todos, que ela mesma se vê
incapaz de fazer essa diferenciação.
“(...) Isso é um aprendizado diário. É uma sementinha que você vai colocando hoje e de
repente, amanhã ou depois, você vê o resultado. (...) Nesse trabalho você não pode desanimar
nunca, eu acho que sempre tem que acreditar e estar explorando as capacidades de cada
um.”
O trabalho de mãe social é descrito como uma experiência conquistada
cotidianamente. Precisa estar presente dia-a-dia junto com as crianças; Luciana já
apontou anteriormente a importância de morar junto com eles na casa. O resultado do
seu trabalho não é algo percebido de imediato. Ao contrário, as marcas deixadas por
este são conquistadas no futuro. A esperança e a crença são qualidades indispensáveis
no desempenho dessa função, para Luciana, sempre acreditando e buscando
desenvolver junto com os sujeitos suas potencialidades e capacidades.
“(...) às vezes a história dela te pega tanto, de repente vem uma pessoinha
pequena, totalmente desestruturada, que você vai formar, que você vai ajudar a criança a se estruturar de novo. Cada passo que você vai dando, cada vitória que a criança vai tendo, é
uma vitória sua. Isso dá uma satisfação muito grande (...)”
Lidar com as histórias de vida das crianças é visto como um desafio no trabalho
de mãe social. Convivendo diariamente com as crianças e estabelecendo um vínculo
intenso com elas, se vê algumas vezes bastante tocada e envolvida por estas histórias,
marcadas pelo abandono, medo, violência. Chegando no abrigo desamparada, é seu
papel formá-la e ajudá-la a se estruturar novamente e essa tarefa também é descrita
como um desafio por ela. É um trabalho conquistado passo a passo cotidianamente e
as transformações alcançadas pelas crianças também são vitórias da mãe social.
Sente-se muito satisfeita diante dessas vitórias e conquistas das crianças, estas vistas
como um sucesso de seu trabalho.
III – HISTÓRIAS DE ALGUMAS CRIANÇAS COM QUEM TRABALHA
Pedi para Luciana escolher uma criança do abrigo e me contar sobre a história
dela. Escolheu um garoto de 12 anos que chamarei de Marcelo. Segue a seguir os
principais trechos do relato de Luciana a seu respeito:
“O Marcelo teve uma vivência complicada, desde que a mãe dele tinha problemas
psicológicos. Ela saía e retornava grávida pra casa. (...) Ele veio com problemas psicológicos
fortíssimos também. A mãe morreu faz 5 anos, morreu com AIDS. Eu acho que é uma história
bem triste a do Marcelo, mas é alegre também ao mesmo tempo. Hoje, né! Ele tinha
problema, tomava remédio controlado pra agressividade, pra pensar. (...) Ele está estudando
numa escola da Prefeitura - coisa que eu achava que um dia fosse acontecer, mas muita gente olhando pra ele não acreditava.(...) Quase 4 anos atrás a psiquiatra falou pra mim que
ele nunca iria conseguir escrever o nome dele. Hoje ele escreve o nome dele. Então, é uma
vitória pra caramba! Isso é uma realização; pra mim e pra ele ao mesmo tempo. Hoje ele é
um rapazinho muito legal, todo mundo gosta dele, você vê no olhar dele que ele é feliz. É
isso que apóia e completa a mãe social. (...)”
“(...) Gosta de computador, gosta de consertar as coisas, brinquedos que ele
mesmo quebra, ele vai lá e conserta; quer dizer, essa é uma capacidade que ele tem. De
repente, ele pode ser um mecânico, né?! A gente não sabe. Mas a gente trabalha pra isso,
pra mostrar pra ele que ele pode. E eu acredito mesmo que ele vai conseguir sim, se
sustentar um dia, ele vai conseguir casar, vai conseguir ter uma família.”
“(...) A gente se uniu; pedagoga, psicóloga, a mãe, a psicopedagoga, a professora
da escola (...) pra estar ajudando ele, cada um fazendo um pouquinho. O clima familiar
ajuda muito, a segurança – isso é parte minha, né – ajudar nesse sentido, de harmonia, união,
respeito, de participação mesmo. O meu marido, como pai, também. ‘Não, vamos cara, você
consegue!’ Eu acho que a família, o ambiente familiar nesse caso ajudou muito. Eu acho
que faz crescer intelectualmente. (...)”
A história de Marcelo, segundo Luciana, passou a se complicar a partir de
problemas psicológicos de sua mãe, dando portanto, uma importância grande para a
mãe na vida da criança. O ambiente materno é visto por ela como fundamental, já que a
vida e experiência da criança dependem intensamente das condições psíquicas da
mãe; no momento em que a mãe apresenta problemas psicológicos, a vivência da
criança se complica e como conseqüência dessa relação, o filho passa a apresentar
também “problemas psicológicos fortíssimos”. Luciana não faz menção ao pai,
possíveis irmãos, ou à família mais extensa. A história gira em torno de Marcelo e sua
mãe.
Luciana enxerga muitas mudanças e transformações na vida dele desde que foi
abrigado. Marcelo teve uma história triste com sua mãe, e vivendo no abrigo teve a
oportunidade de superá-la, tanto que hoje em dia Luciana o considera um garoto feliz,
construindo uma nova história. A crença e a esperança na possibilidade de mudança da
criança é muito importante para Luciana. A esperança dela é, segundo Luciana, tão
forte, capaz inclusive de duvidar de um diagnóstico psiquiátrico, que dizia não ser
possível para Marcelo escrever sequer seu nome. Hoje em dia ele é capaz de escrevê-
lo e Luciana enxerga nessa vitória de Marcelo uma influência de seu trabalho. Na teoria
dessa mãe social, o investimento amoroso de um outro na vida da criança é
fundamental para que possa viver; se não tivesse investido em Marcelo e acreditado na
sua capacidade de superação ele poderia ter um destino profético auto realizador,
quando provavelmente não iria escrever, nem ir para a escola como outras pessoas
acreditavam.
A transformação de Marcelo é uma vitória tanto para ele quanto para ela, pois
participou de suas conquistas, acreditando sempre em suas capacidades. É
fundamental no desempenho desse papel enxergar um sentido no trabalho e perceber
as marcas deixadas nas crianças; os destinos das crianças e adolescentes é o que a
completa e dá sentido em sua vida.
Mostrar para eles a possibilidade de transformarem sua história, reconhecendo
as dificuldades e indo atrás das facilidades, é função do outro, portanto, papel da mãe
social. Para Luciana, essa consciência do que gosta de fazer, das coisas que tem maior
facilidade, aquelas que são mais difíceis, etc é importante para a auto-estima da criança
e para conseguir traçar novos projetos futuros, situando-se assim na sua história e
resgatando sua subjetividade. Um exemplo poderia ser o dom de mecânico percebido
por ela no Marcelo.
Uma rede social articulada foi no caso de Marcelo responsável por suas
mudanças, entendendo nesse sentido que a subjetividade se constitui nas relações
com o mundo. São esses outros na vida de Marcelo que lhe deram a possibilidade de
transformar uma experiência de dor e trauma, resignificando-a. Segundo a mãe social,
sua contribuição para as mudanças de Marcelo foi, dentre outras, lhe possibilitar um
clima familiar no abrigo. Segurança, respeito, união, harmonia, participação são
atributos conseguidos, nos valores culturais ocidentais, prioritariamente na família e por
isso, buscando garantir no abrigo um clima familiar, tenta possibilitar aos sujeitos essas
vivências. Se não fosse o ambiente familiar possibilitado por ela e pelo marido, talvez
para Luciana, Marcelo não teria alcançado tantas vitórias.
“(...) No caso da mãe da Elaine e da Viviane, as meninas vieram pra cá porque ela
tinha surtos psicológicos (...) Muitas coisas ela não entendia, não se conformava das
crianças terem vindo pra uma instituição (...) e não fazia nada pra melhorar essa situação. Simplesmente queria. (...) Ela começou a passar no psicólogo, a tomar os remédios
direitinho (...) e hoje o psicólogo deu o parecer pra ela (...) que ela está apta a cuidar dos
filhos dela, e que ela tem condições. Isso também é uma vitória. Você vê isso, você vê a
família se unindo de novo, você vê essa possibilidade de novo.(...) ”
Problemas psicológicos da mãe também nesse caso foram responsáveis pelo
abrigamento dos filhos, mostrando novamente a importância da mãe nas experiências
dos sujeitos. O pai e membros da família mais extensa não foram mencionados no
relato dessa história, como ocorreu no relato de Marcelo. Luciana revela nesse trecho a
dificuldade da mãe em entregar as filhas para o abrigo. O desejo de reaver a guarda
das meninas fez com que investisse em tratamentos psiquiátrico e psicológico. Os
sentimentos da mãe social frente a essa situação demonstram serem ambíguos: por um
lado sentirá um vazio imenso quando elas deixarem o abrigo e por outro, fica feliz e
sente-se vitoriosa vendo a família poder se reconstituir novamente.
“(...) No dia das mães vieram 8 presentes pra mim. E o que foi engraçado, que eles
ficam com dificuldade: ‘pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe
biológica, mas eu não queria dar pra ela.’ Ou: ‘ai mãe, o que você acha, dou pra minha mãe biológica?’. Eu falo: ‘cada um tem que fazer o que está no coração. Se você quer dar pra
sua mãe, dá pra sua mãe’. ‘Ah, mas você não vai ficar chateada?’ ‘Não, não vou ficar chateada,
pode ir lá e dar pra sua mãe.’ Aí chega na escola e dizem: ‘Eu quero fazer dois presentes
porque eu tenho duas mães.’ Eles falam isso e é engraçado, porque a professora diz: ‘Mas
como têm duas mães?’ Realmente, como eu estou com eles 24 horas, os professores só
me conhecem como mãe. Não sabem da história deles. Porque eles não se sentem muito à vontade pra estar falando muito da história deles pra qualquer um. Eu acho também que
isso não tem nada a ver, ele estar falando. Se eles se sentem preparados pra estar
comentando, tudo bem, aí é uma coisa dele, se não, a gente respeita. ‘Ah, mas a sua mãe não
é a Luciana?’ É engraçado isso. (...) Nove presentes, todos igualzinhos. Eu falo: ‘quê legal!’
Tudo eu mimo, tudo eu dou risada! (...)’”
Na comemoração do dia das mães, o fato das crianças terem provisoriamente,
enquanto estão abrigadas, duas mães – a mãe biológica e a mãe social – parecem ficar
confusas. Há um conflito para as crianças que se vêem na necessidade de escolher
entre suas duas “mães”; existe um presente para ser dado e precisam decidir quem irá
ganhá-lo. Os professores não conhecem a história de vida das crianças e pensam ser
Luciana a mãe biológica deles. Segundo Luciana, essa não apropriação da história de
vida das crianças por parte da escola se deve a um direito das crianças: somente
contarem para quem desejarem suas histórias. Para Luciana, é importante respeitar
essa vontade das crianças.
“(...) Já me deu um frio na barriga, eu falei, pô não escrevi o da Elaine e aí eu fui
olhar e o nome dela estava lá. (...). A gente vai vendo nos pequenos detalhes a
importância de você estar mesmo... Eu acho que eu iria me sentir muito mal naquele dia se eu não estivesse escrito o nome da Elaine (...)”
Luciana descreve mais um elemento importante de sua relação com as crianças:
preocupa-se e sente um mal estar quando vislumbra a possibilidade de esquecer de
alguma criança. Reconhece também na criança o medo de não ser lembrada e
esquecida. Essas crianças viveram concretamente o abandono e Luciana tem medo de
ser mais alguém a “esquecê-las”. Há uma preocupação grande em não esquecer de
nenhuma criança, revelando por outro lado também uma possível ambivalência sua em
relação aos afetos sentidos. Luciana acredita ser importante para as crianças a
presença de um outro lembrando dela, mostrando como ela é importante, valorizá-la,
etc. e o fato de conviver com eles 24 horas, segundo ela, é uma condição que favorece
o estabelecimento dessa relação mais íntima e pessoal.
“(...) A criança é mais fácil de você estar, a criança não mente, a criança é natural.
Às vezes pega na parte psicológica, às vezes você sente uma criança triste. Esses dias a
Viviane chegou pra mim e falou: ‘Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu
queria ter nascido da sua barriga, o que é que eu faço?’. (...) Eu falei pra ela: (...) ‘Não
importa se você nasceu de dentro de mim ou não. O que importa é que a gente está
junto, que você pode contar comigo, e que eu tenho você hoje, e que a gente está sendo feliz. (...) Daí eu falo: ‘Viviane, você é tão feliz! Você é uma criança, não tem
responsabilidade nenhuma. Quando a gente cresce, é ruim por isso, a gente fica com muita
responsabilidade, a gente tem muita coisa pra fazer. Hoje mesmo, só penso em brincar e eu
não posso parar e brincar. Eu tenho que lavar a roupa, porque se eu não lavar a roupa, como é
que você vai brincar?! (...)’”
Luciana conta de uma criança que lhe diz não querer ter nascido onde nasceu:
“Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu queria ter nascido da sua
barriga, o que é que eu faço?’” A história de vida aparece inicialmente como algo a ser
negado, modificado (desejava uma outra mãe). Viviane estava triste, segundo Luciana,
pois queria ser a sua filha biológica, ou seja, desejava uma outra história. As histórias
vivenciadas pelas crianças e adolescentes abrigados são sempre marcada pelo
abandono, perda, sofrimento, violência. Entrar em contato com essa realidade, nesse
sentido, é algo bastante difícil.
Seu entendimento do universo infantil e adulto também é explicitado quando diz
que se relacionar com crianças é mais fácil do que lidar com adultos e essa maior
facilidade se justifica no fato de considerar as crianças mais naturais e porque não
mentem (sic). Em algumas situações, percebe a criança chateada, relacionando
“psicológico” com aspectos tristes para o sujeito. Luciana apresenta uma concepção na
qual a felicidade está intimamente ligada à infância; por não ter responsabilidades,
depender totalmente de um outro cuidador, a criança é nessas condições
necessariamente feliz. Ou em outras palavras, a ausência de responsabilidades lhe
garante a felicidade. O adulto é diferenciado da criança nesse aspecto, tem
responsabilidades e deveres a serem cumpridos, inclusive estes ligados a necessidade
de cuidar da criança: “Eu tenho que lavar a roupa, porque se eu não lavar a roupa,
como é que você vai brincar?! (...)’” O adulto é aquele responsável pelos cuidados da
criança e esta está autorizada e não ter preocupações, podendo passar seus dias
brincando, se desejar. A infância é associada a idéia de felicidade plena e absoluta,
seria o objeto de desejo dos adultos, para onde eles sempre gostariam de retornar.
“(...) A gente vai mostrando: ‘olha aproveita as oportunidades, vê o que em aí à sua
frente. É legal, aqui você tem o seu armário, a sua parte - porque é tudo separadinho -,
você tem a sua cama, é sua a cama! (...)”
No relato de Luciana, as crianças falam de suas histórias de vida quando estão
tristes e mostram seu desejo por uma origem e vida diferente da que tiveram, por
exemplo, nascer de outra mãe. Aparecem, portanto, no sentido de negação da própria
história. Diante disso, Luciana considera importante ajudar a criança a vislumbrar novas
oportunidades presentes e futuras, apostar no futuro e não se prender no passado. Há
a tentativa de mostrar-lhes como é importante o lugar delas no abrigo, lugar este que
busca garantir a subjetividade, individualidade de cada um. Dando-se conta das
oportunidades existentes nesse novo momento de vida, as crianças poderão elaborar
as suas histórias de vida.
“Limite. Regras. É uma família e toda família tem a sua regra. Toda família tem que impor limites. E criança pede limites – ‘não, não pode’. Até porque a gente está criando eles
pro mundo, e o mundo tem limites. Eu acho que tem isso.(...)”
As regras e os limites são aspectos fundamentais na educação das crianças,
segundo Luciana. Há uma relação de igualdade entre o abrigo e a família; da mesma
maneira como existem regras nas famílias, no abrigo também estas serão
fundamentais. Não há nada que diferencie essas duas instituições. Além da questão da
família, Luciana acredita no fato das crianças mesmas pedirem limites, necessitam de
um outro que lhes apresente o mundo da forma como este se apresenta para todos:
repleto de regras. É função da mãe e do pai social, responsáveis pela educação das
crianças, a imposição dos limites e introdução deles no mundo compartilhado.
“(...) Aqui, eu bato muito na tecla da escola (...) porque o futuro deles é a escola; eles
aprenderem e tal. Eles sabem que o mais importante, pra mim, é que eles vão bem na escola.
Tenha respeito, tenha nota tudo. (...) Isso é pra você. Olha que legal!’ É a família isso.(...)”
A escola aparece como o meio primordial para alcançarem um bom futuro. O
desejo dela como mãe social é vê-los indo bem na escola, com boas notas, respeitando
os amigos. É um sonho similar ao projeto originário familiar que não pode se sustentar.
“(...) adolescente está se descobrindo, está conhecendo o mundo, eu acho que
tem mesmo que sair, se divertir, mas eu acho que tem que merecer. Eu acho que
qualquer mãe, com qualquer filho, sendo biológica ou não, vai querer saber onde o filho está. (...) pra eu ter certeza (...) de que você vai voltar inteira, vai voltar bem, realizada,
feliz, é só pra isso. Imagina que eu estou pegando no seu pé. Eu estou até soltando, eu
estou até deixando você ir, olha que legal.’ (...)”
É direito do adolescente, para Luciana, poder explorar o mundo e novas coisas;
entretanto, é um direito lhe concedido a partir de um merecimento. Se se comportar
adequadamente, terá os seus direitos garantidos; do contrário, não. Coloca-se
claramente como mãe substituta e nesse papel, tem vontades e necessidades iguais a
qualquer mãe biológica. Os direitos, nesse sentido, são dados a partir de um vinculo
afetivo e não consangüíneo. Incentiva a saída dos adolescentes e ao mesmo tempo
mostra-se preocupada com eles, cumprindo com a função de mãe social deles.
Entende ser importantes para os sujeitos sentirem-se realizados, plenos, completos e
satisfeitos.
“Aqui também eu sou realista com eles. Cada um conhece a sua história, eu acho
que tem que ser assim, cada um sabe o por quê de estar aqui. Se eles vêm perguntar, eu
respondo. Eu também não gosto de mentira. (...) Às vezes você omite alguma coisa, eu me
preocupo muito com isso, em omitir, porque eu acho que eu estou dando o exemplo pra eles;
então, se eu fizer, eles vão se achar no direito de fazer também. Eu me corrijo sempre pra
estar passando pra eles uma imagem (...) Olha que legal!’ (...) Aí é que está o psicológico,
porque tem coisas que marcam mesmo, não tem jeito. O que eu tento fazer é amenizar essas histórias, mostrando que eles podem mudar a história deles. (...)”
Luciana conta para as crianças suas histórias de vida quando é indagada por
elas. No seu relato, não parece tomar essa iniciativa espontaneamente. Agiu de
maneira semelhante quando considerou direito da criança contar ou não sua história
para os professores de sua escola. Justifica essa sua atitude a partir de uma postura
que julga necessária frente às crianças, qual seja, de não mentir e omitir as coisas.
Portanto, contar-lhes sobre suas vidas aparece não no sentido de ser um direito deles e
uma garantia para um desenvolvimento saudável, mas sim como uma forma de dar um
bom exemplo para eles.
Para ela, é possível e desejável abrandar as histórias de vida das crianças e
adolescentes mostrando-lhes ser viável construírem uma nova história, apesar do
passado que tiveram. A possibilidade de vislumbrar um futuro melhor se dá, segundo
Sueli, quando a criança deixa seu passado para trás suavizando-o o quanto for
possível. As histórias são impossíveis de serem esquecidas e marcam intensamente a
vivência do sujeito; diante desse fato, Luciana considera importante “amenizar” as
histórias.
IV – INFLUÊNCIA DO TRABALHO NA VIDA PESSOAL
“Eu acho que tudo isso são experiências muito grandes na vida. (...) A mãe social
passa a se conhecer mais também. Quando você está mostrando pra alguém a
capacidade que ele tem, você está pensando, caramba, eu também tenho! Isso daí é uma troca, é recíproco. (...) Eu não sabia, antes de vir pra cá, que eu tinha tanta paciência. (...) E
eu falo pra eles até mesmo a minha história, de eu não saber que eu era assim, então (...) eles
também podem não saber. (...) Eu cresci muito também como pessoa. É o que eu falo, hoje
eu me sinto realizada. Porque hoje eu me conheço melhor, eu sei das minhas
capacidades, eu sei o que eu quero. Antes eu sabia também, mas eu não tinha essa
certeza.”
As experiências proporcionadas nesse trabalho transbordam do campo
profissional e invadem a vida pessoal de Luciana. “Estar mais próximo, mais perto” das
crianças e adolescentes com histórias de vida difíceis e sofridas, toca-a em muitas
questões pessoais, modificando sua vida pessoal. Ela se conhece mais, se dá conta de
qualidades pessoais antes desconhecidas em seu ser. Quando reconhece e dá luz a
alguma capacidade do outro, isso se reflete em si mesma e volta-se para suas próprias
capacidades e potencialidades. Nesse sentido, é uma troca que ocorre nas duas
direções. Sente-se uma mulher realizada a partir da vivência dessas experiências;
apesar de antes conhecer esses aspectos pessoais, foi a experiência de mãe social
que tornou esse conhecimento mais sólido, mais certo para ela.
“‘(...) Eu aprendi muito com você e você aprendeu muito comigo.’ ‘Mas eu não ensino
nada, eu sou criança.’ ‘Você é uma criança, mas você é uma criança inteligente, você me
ensina a mostrar esse meu lado criança também que eu tenho.’ E eu acho que isso é saudável.
(...) ‘Olha, que legal, mãe, eu não sabia. Quer dizer, então, que eu faço você ser criança?’
‘Você me faz entender como é ser criança.(...)’”
Coloca-se numa posição de igualdade com as crianças e adolescentes, onde a
aprendizagem acontece na relação de maneira recíproca. O encontro com a criança lhe
possibilita resgatar o seu infantil, podendo compreendê-las melhor e também se
conhecer mais profundamente.
“Quer dizer, são coisas que você, é único isso, não tem como você descrever.. (...)
Eu acho que essas coisas simples fazem com que você cresça mais e faz com que você se realize. Eu acho isso. É muito bom, muito bom!”
É uma experiência única, intensa ainda não possível de ser verbalizada. Refere-
se a algo de outra ordem, em que qualquer palavra parece ser insuficiente para
significá-la. Aproxima-se de uma nomeação quando diz ser maravilhoso, marcante,
muito bom; entretanto, há algo que escapa. Penso ser possível comparar essa
impossibilidade de nomear o trabalho da mãe social com o que Rubem Alves nos conta
a respeito dos pintores. Segundo esse autor, há algo também em relação ao trabalho
desses artistas que eles não conseguem dizer. Cito um trecho dele: “O essencial é
invisível aos olhos. O que se vê nada é comparado ao que se imagina”.10
Luciana traz na simplicidade do cotidiano a possibilidade da pessoa crescer e se
realizar. São nas pequenas coisas, na rotina aparentemente igual do dia-a-dia, onde as
mudanças acontecem e se concretizam. O crescimento, portanto, se dá na simplicidade
complexa das relações humanas e experiências cotidianas.
“(...) Eu falo pra eles: ‘mesmo se vocês forem, um dia, se vocês forem com a mãe de
vocês, mais cedo ou mais tarde, eu fiz parte da vida de vocês também. Cada um cada fez parte da minha vida, da minha história.(...)’”
Para Luciana é importante assegurar para as crianças e adolescentes o fato de
ter feito parte da vida deles e deles terem marcado sua história. Num possível
desabrigamento, ter a certeza e garantir o lugar dela na vida deles é fundamental para
ela. Da mesma forma, busca mostrar-lhes como são importantes na vida dela e quão
importante foi, tanto para ela como para eles, as
vivências que compartilharam juntos enquanto estavam no abrigo. Portanto, demonstra
ser fundamental ser lembrada e amada por eles.
10 Trecho retirado do livro “Retratos de amor” 2002, pg.96
VII b. SUJEITO 2 EDUCADORA SOCIAL SUELI Sueli foi a educadora social indicada pela coordenadora do Abrigo Butantã para
realizar a entrevista dessa pesquisa. Um critério importante para essa escolha foi o
tempo de trabalho e a experiência dos educadores do abrigo.
Sueli trabalha em abrigos há 15 anos. No dia da entrevista, era o meu primeiro
contato com ela, já que havia conversado anteriormente apenas com a coordenadora
do abrigo. Apresentei-me e comentei que tínhamos uma entrevista marcada. Disse-me
estar cansada naquele dia, que eu a havia pegado num dia não muito bom para ela
(sic). Receosa de que essa sua condição pudesse interferir na entrevista, perguntei se
não seria melhor marcarmos outro dia, um outro horário. Contou-me que essa opção
seria mais complicada ainda, que era melhor fazermos a entrevista naquele dia mesmo.
Ofereci mais uma vez a alternativa de pensarmos em um outro dia, mas ela insistiu e
decidimos então fazer a entrevista naquele dia mesmo. Conversamos na sala dos
educadores, localizada próxima a entrada da casa e ao lado da sala.
I – HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA PROFISSIONAL
“(Trabalho em abrigos) Desde 1991. Eu iniciei no abrigo que chamava abrigão. (...)
Quando a gente iniciou (...) tava abrindo os abrigos e ficava na Mooca então era um abrigo
grande com cento e poucas crianças, unidade mista, então foi ali que eu iniciei o trabalho,
cheguei de pára - quedas fechado e cai ali. Eu vinha de uma área totalmente oposta. (...)
Eu trabalhava em empresa de metalúrgica, (...) em uma multinacional e aconteceram uns
problemas e eu acabei saindo e entrei na área social. Coisa casual e foi assim. (...) quem tava
entrando não tinha experiência nenhuma. (...) e era uma unidade mista que tava vindo de
situação de Febem. Então era complicado. (...) A gente vinha totalmente cru, e as crianças
naquela época não tinham referência, então o que acontecia: pegava meninos de ruas,
drogados, abandonados, então era meio assim que... não vamos usar o termo mas era... era meio assim, meio lixão. (...) Então era complicado porque era um número grande de
educador também, todo mundo se atropelando, a gente queria acertar, às vezes não dava, uma
dificuldade que com o passar do tempo a gente foi conhecendo melhor o trabalho... E se
adaptando porque no meu caso era uma questão de ficar ou ficar. Tinha que encarar aquilo
ali de frente porque eu (...) tinha pedido demissão e eu tava caindo ali e eu tinha um monte de
compromisso, então foi legal que deu pra eu ir descobrindo que eu dava pro trabalho.”
“(...) A gente chorava. Era tão difícil que tinha momento que a gente entrava em
crise. Cada um com as suas motivações, com as suas razões para estar ali. (...) Teve uma vez
que - até isso ficou bem marcado pra gente e pro grupo – (...) eu falei: ‘(...) eu acho que eu cai
aqui de pára-quedas e foi fechado.’ Então, ficou. Toda vida que a gente se encontrava, ele
falava: ‘e aí, já abriu o pára-quedas?’ (...) Porque era uma situação assustadora, tudo, Febem,
tinha muito atrito entre eles; então, tinha mesmo muita rivalidade, até mesmo entre funcionário,
e isso impedia o nosso trabalho. Eu acredito que aquilo valeu pra cada um (dos
profissionais) que saiu de lá, ter uma experiência. (...) E dos abrigados, em si; pra seguir. Porque fortalecia. (...) O menino saiu da Febem, aqui era abrigo... às vezes, a gente sabia que
os crimes eram bárbaros, estupros, algumas coisas assim, e estavam convivendo com os
outros e com a gente. Então, tinham momentos, principalmente nós educadoras, nós
andávamos mais em dupla, mais duas ou três, porque tinha medo mesmo. A questão era essa,
medo mesmo. (...) A maioria (dos educadores) não está mais na área, são poucos que
estão. (...) Quando nós entramos, o sonho - o Estatuto da Criança previa abrigos
pequenos com no máximo 20 crianças; então, é o que tem hoje -, e então (minha amiga)
falou: ‘só você realizou o sonho de trabalhar num abrigo pequeno, o que pedia o Estatuto.’ E eu
falei assim: ‘é um sonho ainda meio frustrante.’ A gente tinha sonhos de progresso dentro
do trabalho em si, do trabalho aparecer, de surgir efeito mesmo. (...) De tirar criança de
rua, de dar uma vida melhor, de socializar mesmo. São poucos que funcionam como aqui, um
abrigo mesmo. (...) Desde abrigo grande, eu já trabalhei em abrigos pequenos, com menos
crianças - até menos que aqui. Mas, tem umas situações também complicadas. (...) Mas, eu
acho que a gente não tem mais fôlego. (...) Apesar de agora até algumas coisas fluírem
melhor. Mas, eu acho que vai cansando.”
Inicialmente, pergunto-lhe de sua experiência como educadora social de abrigos.
Sueli trabalha há 15 anos nessa área. Relata ter se aproximado dessa área que atende
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade casualmente, chegando “de
pára – quedas fechado”. Pode-se pensar no fato de não haver uma formação
profissional exigida de educador social para exercer esse papel. Sueli tinha uma
experiência profissional distante da área de educação e sua falta de experiência na
época não impediu que fosse contratada para trabalhar nos abrigos. Essa falta de
experiência é relatada por ela: “quem tava entrando não tinha experiência nenhuma”. A
descrição de sua chegada de “pára – quedas fechado” pode ser também um indicativo
dessa falta de formação profissional. Além desse aspecto, pode-se pensar também no
fato de ter se aproximado inicialmente da área mais por uma necessidade (estava
desempregada) do que por um desejo em si.
A relação com essas crianças e adolescentes era difícil de ser estabelecida no
inicio; vinham de uma situação de vida muito difícil. Diante disso, Sueli caracteriza seu
trabalho nessa época como sendo apavorante e assustador. Um outro aspecto
complicador para a Sueli nesse inicio era o grande número de educadores; a falta de
experiência e formação poderia ser um fator que dificultava nesse aspecto. A
experiência é, segundo ela, conquistada no dia-a-dia do trabalho e assim, as
dificuldades são mais facilmente entendidas e superadas.
Sua motivação inicial está relacionada inicialmente com a questão da
sobrevivência; estava naquele trabalho mais porque precisava do emprego do que por
uma escolha pessoal. Sentia-se constrangida, apavorada, sem experiência na área.
Com o passar do tempo, essa situação modificou-se pois ela descobriu uma motivação
diferente da que tinha inicialmente: “então foi legal que deu pra eu ir descobrindo que
eu dava pro trabalho”.
O fato das crianças terem vindo da Febem era um aspecto assustador para os
educadores, já que tinham conhecimento de crimes cometidos por alguns deles. Apesar
de muito sofrida e difícil essa experiência por qual os educadores e crianças ex-internas
da Febem passaram teve também o seu lado positivo, segundo Sueli. Para ela, essa
experiência serviu para fortalecê-los a lidar com essas situações, ajudou as crianças a
seguirem a diante em suas vidas, ensinou os educadores a lidarem com o trabalho.
Pode-se pensar na hipótese do sonho de concretizar o que previa o ECA ser uma
possível motivação para o trabalho, que a fazia insistir e não desistir saindo a procura
de outro emprego. Foi uma das poucas a suportar as condições difíceis do trabalho no
inicio, demonstrando estar envolvida e esperançosa em tornar os sonhos realidade.
II – O TRABALHO DE EDUCADORA SOCIAL
“Eu acho que é uma questão de dedicação, primeiramente eu acho que tem que
existir amor, se você não tiver amor assim sabe pra oferecer pra lidar com a situação você se afoga, é estressante, é dolorido (...) porque são muitos problemas e que você tem
que estar... não sei se preparada mas pelo menos você tem que estar (...) disposto. Ceder
algumas coisas, brigar por algumas coisas. (...) São histórias difíceis, né? E ao mesmo tempo
muito complicado, muito abandono, muita revolta e isso é uma coisa que se mistura. (...)
ou você se depara com aquilo ali que começa trabalhar você e todo o trabalho ou então você
foge. (...) Eu tive casos de companheiro de trabalho de equipe que chutou mesmo literalmente,
teve que sair (...) teve gente que pediu demissão (...) e ai foi o tempo passando e eu ainda
me encontro aqui.”
Depois de afirmar a descoberta que “dava para o trabalho” de educadora social,
pergunto-lhe sobre esse seu dom. Associa primeiramente seu dom com a dedicação.
Aponta, assim, o primeiro aspecto considerado por ela como fundamental no trabalho
da educadora social: é necessário que ela se dedique a essa função para conseguir
realizar de maneira satisfatória o seu trabalho. Para Sueli, dedicação e amor estão
intimamente relacionados; o amor está implícito na dedicação e da mesma forma, em
todo ato de amor, existe a dedicação.
O amor é entendido por Sueli como atributo necessário para suportar as
situações difíceis do abrigo, que envolve muitos problemas e muitas histórias de vida
complicadas. Investir no trabalho com amor lhe garante não se perder em meio a
situações que são estressantes e causam muita dor. No encontro com histórias de vida
tão sofridas e difíceis precisa haver o amor e a dedicação para suportá-las. Amor
pressupõe um afeto mais individualizado, um investimento afetivo fundamental na
relação dela com as crianças.
Diante de muitos problemas presentes nas histórias complicadas das crianças e
adolescentes abrigados, estar disposto para enfrentar essa condição é mais importante
para Sueli do que estar preparado. Precisa haver uma abertura e uma disposição no
encontro com essas histórias, mais do que uma preparação em si (“pelo menos você
tem que estar assim, como que fala... tem que estar disposto né?”). Preparar-se,
instrumentalizar-se é algo que pode acontecer posteriormente, caso haja uma
disposição.
O abandono e a revolta presentes nas vivências das crianças e adolescentes do
abrigo tornam a situação complicada para Sueli. Os educadores sociais, relacionando-
se diretamente com as crianças e adolescentes, acabam marcados pelas vivências
deles e se misturando na relação; nessa condição, tendo que lidar com questões tão
angustiantes e difíceis, existem duas alternativas possíveis: encarar o trabalho e todas
essas questões intrínsecas à ele ou então o educador não suporta e acaba abrindo
mão do trabalho, afastando-se dessa função. Sueli apostou na primeira possibilidade,
quando diz: “E eu ainda me encontro aqui.”
“Marca, não tem como não marcar. (...) isso não acontece (...) não há assim uma
forma mágica, apertei o botão aqui fui embora, não, claro, eu procuro não trazer a minha
vida pra cá, o que também é meio impossível e também não levar, mas não tem como, não se mistura enfim (...), mas não tem como você realmente isolar. (...)”
O trabalho de educadora social é vivido como uma experiência marcante na vida
pessoal do sujeito, segundo Sueli, não existindo, inclusive, outra possibilidade. Separar
completamente sua vida íntima do seu trabalho de educadora social é visto como uma
mágica, portanto, não fazendo parte da realidade. Não é possível separar as
experiências pessoais das profissionais, no caso da educadora social, com tanta
facilidade, como ocorre em outras atividades. Há uma tentativa de Sueli de evitar, o
quanto for possível, a influência da vida pessoal na profissional e vice-versa, entretanto,
só é possível em certa medida; separá-las completamente é inviável para ela. Sueli
relata existir possivelmente um meio termo, quando afirma que as experiências não se
misturam completamente e por outro lado, também é impossível de isolá-las por
completo.
“Eu acho que eu gosto. (...) Se não gostar, não tiver uma afinidade você vai
embora, porque é difícil e assim, não tem muito retorno. Não há uma... por exemplo, (...) o
que a gente faz não aparece, é um ou outro que reconhece, isso desde de o local onde você trabalha até mesmo na sociedade, isso não aparece, então assim, se a gente fosse
fazer uma coisa para aparecer, seria frustrante (...) no meu caso, eu sinto gratificação no
trabalho, eu venho aqui, como trabalhei em outros abrigos (...) encaro meu dia de trabalho
numa boa, é claro que tem momentos que você fica sufocada mas, quanto a isso não.”
Para Sueli, investir afetivamente no trabalho de educadora social e ter uma
afinidade com este é condição básica para conseguir realizá-lo. Se não houver esse
investimento afetivo, uma identificação com o desempenho da função, o educador não
sustenta e não suporta o emprego. Segundo Sueli isso acontece, no caso do educador
social, pois este deve lidar com situações de vida muito complicadas marcadas pelo
abandono e violência e além disso, sente não haver um retorno e valorização do seu
trabalho.
Sueli percebe uma falta de reconhecimento social do trabalho do educador
social. O trabalho realizado por eles cotidianamente não tem um lugar de
reconhecimento tanto nos abrigos, local do trabalho, quanto na sociedade. No momento
em que o educador espera do social e dos outros um lugar mais valorizado, sente-se
frustrado. A gratificação e a motivação para continuarem desempenhando essa função
devem vir de um outro lugar. Sueli relata sentir gratificação no trabalho, apesar dessas
condições, e também gostar deste, encarando o cotidiano “numa boa”. Porém, sentir-se
gratificada não a impede de se sentir muitas vezes também sufocada, demonstrando
haver espaço para a ambivalência de sentimentos.
“Acho que facilidade é pouco. É bem pouco, seria bem uma coisa assim... meio que
né...a facilidade...acho que é assim, o tempo fez com que eu me... tivesse uma coisa assim
mais... uma experiência que é difícil mas tem momento que você acaba meio que dando
uns toques e vai, então há dificuldades sim, isso é normal. Independente do tempo, é
difícil porque cada dia você tem uma experiência nova então, não é uma coisa que você
tem ai um... vamos ler, vamos reler e vamos fazer, não, nós lidamos com humanos (...) e
com muitos problemas, então isso é uma dificuldade que cabe a cada um de nós, no dia a dia procurar sair bem... então eu não acho que é fácil não. É difícil mesmo, e a dificuldade
eu acho (...) por exemplo, como é uma área que é rotativa, entra e sai criança (...) mas é uma
das coisas mais difíceis, a mudança em si. A adaptação pra gente, pra quem chega (...) Sim, é o momento mais difícil, porque requer muito da gente.”
Sueli reconhece poucas facilidades no trabalho do educador social, ficando
confusa e pensativa quando reflete nestas. A experiência adquirida em anos de
trabalho fez com que, apesar de serem situações difíceis as que vive no dia-a-dia,
percebesse alguns momentos em que realiza algo mais facilmente. Entretanto, apesar
de reconhecer algumas facilidades, em conseqüência de anos de trabalho, a
experiência no cotidiano do abrigo é, segundo Sueli, sempre nova, única e por isso
difícil. Cada dia é visto por ela como diferente e único e cada situação que se depara é
uma novidade, pois traz elementos novos; por isso a dificuldade está sempre presente
e a experiência de anos se relativiza. Não é um trabalho no qual se possam antever as
situações e estudá-las previamente (“não é uma coisa que você tem ai um...vamos ler,
vamos reler e vamos fazer”) e lidar com os problemas das crianças e adolescentes é
algo que precisa ser realizado cotidianamente por cada um dos educadores. Dessa
maneira, a conduta e a interpretação são muito particulares a cada profissional, dando
um caráter de improvisação, falta de instrumentos, de base e sustentação para o
trabalho do educador.
A existência de dificuldades é vista por Sueli como algo intrínseco ao trabalho de
educadora social. O momento do abrigamento e do desabrigamento é um aspecto do
trabalho difícil para o educador social, segundo relato de Sueli. Ela se refere à
característica de provisoriedade do abrigo quando diz que é uma “área rotativa”, onde
crianças são abrigadas e desabrigadas; a mudança implícita nesse processo é algo
difícil de lidar. A adaptação de crianças novas na instituição é um momento delicado
tanto para os educadores, quanto para a criança e exige muito da presença desses
profissionais.
“Os dois momentos são difíceis. Chegar, é uma pessoa nova que nós vamos ter
que nos adaptar com ele e ele com a gente, e a rotina, e o dia-a-dia é difícil - pra ambas as
partes. E a saída também. Porque, a saída, tem o vínculo - a gente tem aquele vínculo, não
tem como não ter - e você fica com receio dali pra frente. Porque, se ele valorizou o tempo
aqui, o que aprendeu, beleza. Ele vai se estruturar, ele vai cair, mas vai estar sempre se
levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal. Mas, se não, ele pode voltar a ser pior do que era antes. Aqui, quase nós não temos, por exemplo - é até meio complicado – (...)
o retorno familiar; são poucos; tem outros que se emanciparam. Tem uns casos de uns meninos
que casaram. (...) Então, de alguma forma, o abrigo deu uma estrutura, deu um suporte. E
dá até hoje”.
“Porque é aquela questão, ao receber é a questão da adaptação e, quando sai, você
fica com aquela sensação de perda. Será que o que a gente fez foi forte a ponto de segurar o que vem pela frente? Porque a vida não se resume aqui. (...)”
Sueli explicita mais claramente as dificuldades envolvidas nas chegadas e nas
saídas das crianças e adolescentes do abrigo. Quando a criança é abrigada, uma nova
configuração se estabelece tanto para ela, quanto para os educadores e outras
crianças do abrigo. É um momento de adaptação para todos, de estabelecimento de
novos vínculos e relações. O cotidiano e a rotina precisam ser readaptados na chegada
de uma nova criança e isso é difícil para os educadores também.
Já em relação à saída, o vínculo afetivo estabelecido entre a criança e os
educadores é o principal aspecto dificultador do desabrigamento. Na relação das
crianças com os educadores é impossível, segundo Sueli, não se estabelecer um
vínculo entre eles e por isso a separação é difícil para todos e deixa para Sueli um
sentimento de “perda”. Além do vínculo, o futuro daqueles que deixam o abrigo é uma
incerteza que deixa os educadores receosos e preocupados – “Será que o que a gente
fez foi forte, forte a ponto de segurar o que vem pela frente?”. O quanto as crianças e
os adolescentes puderam aproveitar ou não das experiências no abrigo, segundo Sueli,
é um indicador importante para os educadores imaginarem e fantasiarem como estão
enfrentando o mundo. Frustrações e obstáculos são, para ela, inerentes ao processo de
crescimento e de encontro com o mundo. O abrigo tem a função, segundo Sueli, de dar
estrutura e suporte para que o sujeito possa enfrentar a realidade tal qual ela se
apresenta, repleta de desafios. Estruturar-se não tem a ver com não cair e não se
frustrar mais, mas sim com a capacidade de cair e poder superar. Os tombos e
deslizes, dessa maneira, são vistos não como fracassos, mas sim como condições
normais do sujeito estar no mundo – adquirindo novas descobertas e conquistas, ora
frustrando-se e se deparando com a falta.
O abrigo é visto como uma experiência positiva na vida do sujeito, que lhe
possibilita recursos para enfrentar o mundo de uma forma mais saudável, mais
estruturada. É também entendido por Sueli como uma passagem na vida das crianças e
adolescentes, tendo a função de auxiliar os sujeitos a restabelecerem os laços sociais
com o mundo que os cerca. A maneira como o sujeito irá prosseguir em sua jornada e
como irá se adaptar à nova realidade é um parâmetro importante para Sueli pensar se
ele pôde ou não aproveitar a experiência na instituição. Na maioria das vezes, os
educadores sociais não têm noticias das crianças e adolescentes desabrigados, o que
para ela é um aspecto complicado do seu trabalho. Esta questão do reconhecimento do
seu trabalho parece ser um parâmetro e motivação fundamentais para Sueli. Dessa
maneira, acaba por depender imensamente dos destinos das crianças e adolescentes.
“(...) Não tem como apagar (as histórias de vida das crianças). É super complicado
você querer apagar e vem né? E ai o que acontece? Aquela coisa, eles começam a se
misturar, as histórias se misturam, os problemas aparecem. Então tem isso, os conflitos
que você tem que administrar no decorrer do dia, do tempo (...)”
As histórias de vida das crianças e adolescentes não podem e não devem ser
negadas, segundo Sueli, no convívio diário com eles no abrigo. São marcas e vivências
impossíveis de serem modificadas e deixadas de lado; ao contrário, Sueli afirma que
estas surgem no dia-a-dia do abrigo, as crianças entram em contato com as histórias
dos outros e assim, os problemas aparecem, junto com conflitos que devem ser
administrados pelos educadores sociais. É função do educador, portanto, lidar com os
conflitos despertados por estas histórias de vida cotidianamente e não as negar. “(Um momento difícil) Com ela? Acho que quando ela rejeita. (...) eu penso: ‘o que
eu to fazendo aqui?’ (...) Com o tempo a gente percebe que tem efeito. Porque assim a gente,
eu acho que a gente tem receio de perder o seu trabalho, o seu... enfim... Você está mexendo
comigo hoje (ela se emociona). (...) (gagueja) Num trabalho desse o que você faz?... Você só
lucra no que você vê. Financeiramente... (...) Não, não é...”
A rejeição de alguma criança é uma situação bastante difícil para Sueli. Quando
não se sente retribuída por alguma criança questiona-se sobre a sua função e o seu
trabalho. A gratificação e o reconhecimento pelo seu trabalho são de uma ordem
diferente da retribuição financeira; sente-se reconhecida e gratificada quando a criança
demonstra retribuir o seu investimento e quando pode perceber mudanças significativas
em sua vida. O “pagamento” ocorre quando pode ver resultados do seu trabalho, por
exemplo, quando a criança vincula-se com ela de uma maneira positiva, já que o
retorno financeiro é pouco. Ao sentir-se rejeitada por alguma criança não se sente
retribuída e seu trabalho perde o sentido, não cumpre com a sua função. Nesse
momento da entrevista, Sueli se emociona, chora e diz que estou mexendo com ela
naquela conversa. Creio que essa emoção, demonstrada por ela quando conversamos
destas questões, seja um reflexo direto da dificuldade encontrada por ela em lidar com
a falta de reconhecimento do seu trabalho, seja eventualmente por alguma criança
específica, seja um reconhecimento social (pouco retorno financeiro).
“A gente acaba não dando conta mesmo porque apesar de ser 12 horas, às vezes o
tempo é curto, pensando no que você tem que fazer. (...) E a gente sai, né? Tem as saídas,
(...) são vários casos que você tem que... (...) A gente fica dois dias de folga durante o mês
(...).”
A jornada diária de trabalho da educadora social Sueli é de 12 horas, metade de
um dia. Além das tarefas da casa atribuídas aos educadores, eles são responsáveis
pelas saídas com as crianças e os adolescentes. Segundo Sueli, apesar de serem
muitas horas de trabalho, as suas funções são muitas e fazem parecer esse tempo
pouco, não sendo capaz de realizar em um dia o que deveria ser feito.
“A gente acaba sendo um referencial, (...) Bom ou ruim somos nós o referencial. É
porque a gente tem nossas atitudes... É que às vezes eles falam “o educador é chato” (...)
Claro, somos chatos, mas por que? Porque a gente pega no pé, porque a gente está ali
querendo mostrar que aquilo é importante pra ele, que é pra ele tudo que é feito, não pra nós, porque nós já temos uma bagagem seja ela de trabalho ou seja ela de experiência de vida,
a gente está aqui e por mais que queremos não ser, nós somos de passagem aqui né? A
gente vem porque é nosso trabalho depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente
vem e faz o mesmo papel, claro que como eu te falei não tem como não barrar isso, apagar (...) Eu não creio, pode até ser que alguém fale “olha, eu faço assim”. Da minha parte
eu não consigo. Talvez eu tenha que trabalhar isso (...) eu falo daqui pros meus filhos, pro
pessoal que eu tenho mais contato, então a gente tem uma troca. (...) Você vive aqui 12 horas (...) Tem (um envolvimento), não tem como (...) Se não tivesse o envolvimento como
seria? Me fala, como seria? Ficaria uma coisa vaga, né? Você vem aqui olha todo o espaço,
todas as crianças, vê o teu horário e vai embora? Não sei... O abrigo em si, ele é uma coisa
que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura mesmo; aquela coisa. Então, você
está aqui, você participa no almoço, (...) você participa até no fazer (...). Você vai lá e está
junto: ‘ah, vamos fazer isso’. Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...”
Sueli caracteriza o educador social como uma referência na vida da criança e do
adolescente. Representando uma influência positiva ou negativa na vida deles, são os
educadores quem convivem mais proximamente deles durante o período do
abrigamento e por isso são uma referência importante para eles. Segundo Sueli, o
educador social é quem garante as ações, quem efetivamente toma decisões junto às
crianças no dia-a-dia. Uma de suas funções é a colocação de limites, mesmo que essa
deixe as crianças incomodadas com eles. Estabelecer a ligação da criança com sua
nova condição de vida, qual seja, viver em um abrigo, é também papel a ser
desempenhado pelo educador social.
Para o educador social o abrigo é lugar de trabalho; emprego. Não dormem no
abrigo, têm uma vida intima e particular além dos muros da instituição. Para os
educadores o abrigo é o local de trabalho e o lar é em outro lugar. Uma ambigüidade
quanto ao desejo do educador parece estar presente na fala de Sueli quando diz: “... e
por mais que queremos não ser, nós somos de passagem aqui.” Eles têm uma
experiência de conviver diariamente com as crianças, cuidam e são responsáveis por
elas, mas não moram e dormem no mesmo local. Esta separação diária com as
crianças concomitante a um envolvimento afetivo intenso, talvez a deixe confusa quanto
aos sentimentos e desejos sentidos por ela.
É um trabalho aparentemente descrito como qualquer outro: “A gente vem
porque é nosso trabalho, depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente vem e faz o
mesmo papel”. Entretanto, há algo que o diferencia: gostaria algumas vezes que essa
separação não ocorresse, que como as crianças, não fosse de passagem no abrigo e
além disso, é impossível não levar para a vida pessoal a experiência compartilhada com
as crianças diariamente e da mesma maneira, traz para o abrigo vivências de seu
mundo intimo. Há uma troca continua entre a experiência profissional e a vida pessoal.
O envolvimento intenso com as crianças é tão intrínseco ao trabalho do educador
social, ficando impossível de pensá-lo sem esse vinculo; o trabalho do educador social
existe e tem um sentido quando há essa vinculação. O contrário dessa situação é
descrita como uma vivência fria, com ausência de afetos e sentimentos, não condizente
com o que sugere a instituição abrigo. Este é descrito por Sueli como uma instituição
onde os afetos e sentimentos estão implicados: as histórias das crianças têm um
espaço de expressão e acabam tocando as crianças entre si e os educadores também.
No abrigo, é impossível não se envolver e ser marcada pelas histórias e afetos dos
outros; os sentimentos são todos postos a prova e as relações se estabelecem meio a
esta mistura de emoções.
É função do educador de abrigo além de preparar as refeições, compartilhar
desses momentos e tantos outros com as crianças, estando o elemento afetivo
claramente presente. Ele não é apenas alguém a auxiliar as crianças e ajudá-las
naquilo que ainda precisam de outro para fazer por elas; ao contrário, participam e
compartilham junto com elas de momentos importantes de suas vidas. As funções não
são descritas apenas no âmbito do fazer, mas sim do compartilhar.
O abrigo é comparado por Sueli com uma família: “É meio que família, por mais
que o querer...”. Toda uma fantasia afetiva é projetada nas relações familiares. Sueli
aponta um grande envolvimento afetivo com as crianças e um compartilhamento de
suas vidas; entretanto, quando reconhece esses elementos no abrigo, compara-o com
a família, como se relações afetivas intensas fossem particulares a essa instituição ou
quando há uma aproximação com esta. Quando Sueli relata desejar que sua estada no
abrigo não fosse de passagem, pode também indicar esta idealização do modelo
familiar. Por mais que busquem uma diferenciação com esse modelo, a comparação
parece ser inevitável.
“É uma dificuldade dele e nossa. (...) Pra gente, como eu te falei, é o nosso trabalho
também. Então, a gente não quer perder. A gente quer que alguém saia daqui bem, melhor
do que veio. Porque senão não teria sentido o nosso trabalho.”
“(...) Isso acaba transferindo pra gente também. Porque, como eu te falei, nós também
temos as nossas emoções. O fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na mesma
situação. É uma coisa que também nos irrita (a não melhora de uma criança). Pelo menos no
meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa... ‘Veja que você pode viver,
você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola”. Mas eu ainda não descobri a fórmula. Então, é isso.”
Há um compartilhamento entre os educadores e as crianças e adolescentes
tanto de momentos rotineiros como as refeições, quanto dos problemas; a dificuldade
de uma criança é percebida também como do educador social. O trabalho do educador
social é entendido por Sueli, dentre outras coisas, como o de auxiliar a criança e o
adolescente a encontrarem novos caminhos e alternativas em suas vidas,
possibilitando-lhes recursos para vencerem problemas. Nesse sentido, o que é
complicado para um, torna-se para o outro também. A função do educador social é não
só acompanhar o sujeito em sua história, como também ser protagonista de
transformações positivas ocorridas em suas vidas. A não mudança de uma criança, ou
seja, quando Sueli não nota mudanças no período em que morou no abrigo para
quando chegou, é vivido como um fracasso, um insucesso, sentindo-se uma perdedora.
Encontra sentido no trabalho e assim se vê motivada quando pode perceber
transformações positivas nos sujeitos.
A angústia e a dificuldade de uma criança marca bastante a experiência do
educador social. O fato de os educadores relacionarem-se com o abrigo
profissionalmente e as crianças o terem como uma alternativa de acolhimento, parece
se diluir na vivência de Sueli: “O fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na
mesma situação”. Penso haver uma identificação com as crianças, onde as emoções e
sentimentos dos educadores e das crianças passam a se misturar, não sendo mais
possível diferenciar o que é de um e o que pertence ao outro; o lugar e papel do
educador e o da criança, apesar de estarem institucionalmente evidentemente
diferenciados, se confundem no campo dos afetos e nas experiências cotidianas.
“(...) Na maioria das vezes têm vindo pelo lado positivo. (...) É muito gratificante você
saber, por exemplo, quando eu trabalhava no outro abrigo, nós tivemos um caso de um garoto,
que a situação dele era delicada. (...) antes de eu sair de lá (...) ele conseguiu um emprego
de boy no Banco do Brasil. Depois, ele prestou concurso, e ele é funcionário do Banco do Brasil. Foi bom. E a gente entende que aquilo foi parte do trabalho.”
Sueli nota em sua experiência profissional a existência de mais casos onde a
influência do educador social favoreceu o sujeito ao invés de prejudicá-lo. Nas
conquistas futuras desses jovens, ela claramente reconhece marcas do seu trabalho,
da mesma forma como diante de uma ausência de mudanças positivas nos
comportamentos deles, oscila entre considerar um fracasso de sua atuação como
educadora e perceber um limite no desejo de transformação por parte do outro.
“(...)Se você é procurada, de alguma forma você está, é positivo. Se você é isolada,
aquilo é negativo. Então, isso é uma parte que você enxerga que o seu trabalho serviu. Bom
seria se todos saíssem assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente. Mas, não é
porque eu acho que o povo não acredita. Os governos não acreditam, a maioria da
população não acredita. Às vezes, a gente está no dia-a-dia ali com alguém que também não acredita. (...)
A avaliação da educadora social quanto à eficiência ou não de seu trabalho é
percebida na freqüência com que as crianças e adolescentes a procuram. Parece ser
função do educador incentivar, conversar com eles sobre as diversas possibilidades de
ser e estar no mundo; quando os sujeitos a procuram para um conselho ou para
ouvirem algo, Sueli considera que conseqüentemente estão avaliando seu trabalho
como bom e do contrário, se não a requisitam, diante dessa situação entende que seu
trabalho não está adiantando, alcançando seus objetivos.
Sueli revela seu desejo como educadora social: “Bom seria se todos saíssem
assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente.” Nesse desejo, penso estar
implícito a vontade de não existir mais conflitos, buracos e faltas na existência das
crianças e adolescentes desabrigados; a função do educador social poderia ser, para
Sueli, tapar e suprir todas as faltas anteriores do sujeito, a partir de suas histórias de
vida marcadas pelo abandono, dor, violência, etc. O desejo que se apresenta seria do
abrigo como a instituição responsável por resgatar o sujeito e não deixá-lo mais com
faltas. Entretanto, se não há o reconhecimento social, se a sociedade não garante um
espaço no qual esses profissionais e jovens possam se sentir pertencentes e se os
próprios funcionários do abrigo não acreditam no seu trabalho e na possibilidade de
transformação das crianças, então o trabalho do educador social se vê limitado. Sueli
considera a importância de uma rede social articulada para dar conta das crianças e
adolescentes abrigados; nesse sentido, o abrigo não faz o seu trabalho sozinho,
necessitando do apoio de uma proposta política eficaz e das pessoas da sociedade.
“(...) dependendo da equipe, ela dá um suporte muito bom e é o que garante. Mas,
não tenha dúvida que o educador é quem dá as cartas no trabalho. (...) Porque, a chefia,
ela está aí sim, mas quem está no dia-a-dia, no corpo - como a gente, às vezes, usa o termo, 'dar cara à tapa' - somos nós. (...) às vezes você trabalha em determinado lugar que
não flui. Por que? Porque a equipe de educador (...) não funcionar, não se preocupe que o
resto não vai também. Pode ser a melhor coordenação, o melhor presidente, não funciona. (...) Tanto é que eu te falo, se você não acreditar, não adianta. (...) eu faço
porque eu tenho a minha espontaneidade de fazer. Mesma coisa na minha casa, se eu não
estiver no pique de fazer arroz, eu não faço, porque não vai dar certo. (...) Não adianta nem
você querer lavar a roupa com o melhor sabão, se você não estiver a fim, não vai funcionar. E assim é o trabalho no profissional.”
Sueli caracteriza o educador social como aquele responsável por garantir na
prática o projeto educacional da instituição. Percebe, nesse sentido, uma importância
fundamental do seu trabalho. Se o educador social, que é quem está no cotidiano junto
com as crianças e adolescentes, não realizar um bom trabalho e efetivar a teoria na
experiência prática do dia-a-dia, nada adianta existir um projeto; este depende
completamente da prática dos educadores. A equipe e a coordenação, segundo Sueli,
são importantes pois sustentam e apóiam o trabalho do educador social; entretanto,
sem a atuação deste toda a teoria e um projeto não se concretizam e permanecem
somente no papel.
Para ela, é importante a pessoa gostar do que faz e trabalhar envolvida e
investindo no trabalho. O desejo e o investimento afetivo são o que garante um bom
trabalho; sem esses dois elementos, nenhuma ação se torna satisfatória, mesmo a
pessoa possuindo os melhores instrumentos em mãos. A paixão e o prazer são
considerados importantes em qualquer ação do sujeito para que esta se torne boa e
eficiente.
“Dedicação. Eu acho que é o ponto 'X', você se dedicar. (...) Porque, o educador em si,
ele não é só uma pessoa que vem aqui – (...) a função do educador vem debaixo, desde a
criança acordar: você acorda, você orienta no banho, você troca - (...) desde disso até a
questão de ajudar em alguma tarefa escolar, uma busca de emprego, uma entrevista. (...)
Nós temos uma participação que eu acho que 99% é nossa. Não estou dizendo, me
sentindo a 'bã, bã, bã'. Não. Mas, eu acho que sim. (...)”
Diferentemente de alguém que vai trabalhar sem se envolver com o trabalho e
com as pessoas, o educador social participa e compartilha da vida das crianças e
adolescentes em diversos momentos de suas vidas e por isso é importante dedicar-se
ao trabalho. O cuidado aparece como elemento básico no desempenho das funções do
educador social. Ele tem como tarefa suprir os cuidados básicos das crianças, estes
englobando desde cuidados físicos (dar banho, trocar a fralda, dar comida) até
cuidados mais relacionados ao ambiente externo (ajudar na tarefa escolar, buscar
emprego, etc). Para Sueli só fica viável cuidar de alguém se gostar, se existir um
investimento afetivo daquele quem cuida naquele que recebe os cuidados.
“(...) Temos que ter a teoria sim. Mas, eu acho que ela é bem menos. É uma coisa
assim, claro que é importante você relatar a história da criança; isso, a teoria aprende. (...) Eu
não conheço, nós temos já não sei quantos educadores espalhados por aí em abrigos e
(...) não temos uma faculdade que ensine a ser educador. Então, eu acho que é uma coisa
que vem de você. Eu conheci pessoas com nível superior, com várias faculdades (...) e como educador, pelo menos na minha opinião, era um zero ali do meu lado. Por que? Não
sei. Talvez, eu acho que cada um tem um perfil. (...) Eu acho que teoria é importante, mas
não basta eu chegar aqui e relatar, e mostrar pra você uma cartilha de 'o que é que é ser educador', se quando eu for lidar na situação em si, sai todo o tiro pela culatra. (...) Eu
acho que não basta (...) ser pai, tem que participar -, então, não basta ser educador, você tem que atuar. Mesmo que você erre. A gente aprende nos erros. (...) agora não sei a
definição, enfim, qual que seria, educador aqui. Eu acho que a gente está na espera de
alguém que defina o educador. Claro que a gente participa de algumas coisas aí, de alguns
cursos, que vai cada dia aparecendo alguma coisa a mais que vai identificando que a gente
realmente... (O nosso trabalho).”
No trabalho do educador social a prática na experiência diária com as crianças e
adolescentes é considerada mais importante do que a teoria em si. Esta teria a função
de auxiliar no entendimento das histórias de vida das crianças e como lidar com elas,
porém não é garantia de uma boa prática. Sueli percebe a inexistência de uma
formação profissional para o trabalho do educador social e a maneira como lidam com
essa ausência é trazer referências pessoais para a prática do trabalho.
O trabalho do educador é mais relacionado com um “dom” do que com algo que
se aprende no campo da teoria; nesse sentido, está mais próximo da idéia de existir um
perfil de educador do que da necessidade de aprender na faculdade a função desse
profissional. O saber teórico é entendido, em certa medida, desvinculado e
independente do saber prático: há aqueles que sabem muito, mas fracassam na
atuação prática e de outro lado, há aqueles que não tem formação profissional alguma
e atuam adequadamente na experiência diária nos abrigos. Entretanto, apesar de
relativizar a importância da teoria no trabalho do educador, Sueli não descarta
totalmente sua importância; ao contrário, reconhece sua função mas ressalta o fato de
não ser suficiente, não garantir uma boa prática. As funções não se sustentam
naturalmente, ou seja, o educador para ser bom precisa agir, fazer, concretizar mesmo
que erre nos seus atos.
Sueli fica confusa ao tentar definir o educador social e acredito que essa
confusão seja um reflexo direto da falta de identidade social apontada inclusive por ela
em sua fala. Ela mesma diz: “Eu acho que a gente está na espera de alguém que
defina o educador”. Essa identidade é construída, portanto, por toda uma sociedade e
dentro de uma política, não sendo uma tarefa exclusiva dos educadores. Talvez,
quando Sueli se refere à falta de identidade social esteja se referindo a uma ausência
de reconhecimento social do próprio trabalho.
“(...) Como eu te falei, não trabalhamos com máquina: você vai lá aperta o botão e
ela faz a quantidade, a produção que tem que ser feita (...) Eu trabalhei por 8 anos na Ford;
era uma empresa que nós tínhamos que dar conta de toda a produção. Então, um pouco
diferente, não é. (...) O chefe chega e: ‘olha tem que, tem tanto, você tem que fazer tanto 'X' de
produção’. Chegava no final do meu expediente, a minha cota de produção estava pronta.
Também não tem; como é que eu vou dar produção num trabalho desse? Aqui eu não tenho que dar produção, eu tenho que dar qualidade... O nosso trabalho é esse.”
O trabalho desenvolvido pelo educador social nos abrigos é claramente
diferenciado de outros. Opondo-se a um trabalho no qual as quantidades são
fundamentais, no desempenho da função de educador social a qualidade é o mais
importante. Relacionando-se diretamente e intensamente com seres humanos, não fica
possível quantificar o trabalho e nem garantir resultados objetivamente definidos; ao
contrário, o educador lida com o imprevisto e com afetos, elementos estes implícitos
nas relações humanas. Não há um dia igual ao outro e a segurança de se atingir uma
meta previamente definida. O trabalho do educador deveria ser justamente suportar o
desconhecido e aceitar o fato de cada dia, cada criança e cada experiência ser
diferente da outra. Isso já foi inclusive apontado por Sueli quando ela considera sua
experiência de 15 anos de trabalho relativa na medida em que acredita cada encontro
com as crianças ser único e singular.
“É como um quebra-cabeça, falta uma peça. Mas é isso.”
O educador tem como função unir fragmentos dissociados, buscar um sentido
junto com as crianças e adolescentes para partes de suas vidas separadas,
fragmentadas. Precisa juntá-las para que algo de novo surja e para que o sujeito possa
se colocar frente a sua história e ao mundo de forma mais organizada e inteira. Deve
poder trabalhar com as peças que o sujeito possui para a partir dessas, construir um
novo caminho. A mudança, objetivo almejado pela educadora social Sueli, se dá,
portanto, a partir da reconstrução e resignificação de uma história já vivida pela criança
– essa é a possibilidade do novo, recriar a própria vida e encontrar um novo sentido
para ela a partir do posicionamento frente a própria história. Sueli também ressalta um
aspecto importante dessa tarefa do educador: há algo que lhe escapa, que falta,
impossibilitando a completude. Não tem como garantir tudo, prometer a felicidade e
conquistas plenas para aqueles a quem seu trabalho é dirigido.
III – HISTÓRIAS DE ALGUMAS CRIANÇAS COM QUEM TRABALHA
Peço para me contar de alguma criança específica que esteja vivendo no abrigo
no momento. Pergunta-me qual o critério de escolha dessa criança, já que consegue
pensar em vários exemplos. Questiona-me se deve ser a criança que é mais apegada
ou a que lhe dá mais trabalho. Respondo à Sueli que poderemos então falar de duas
crianças a partir desses critérios apontados por ela. Começa com a história da Ana,
uma menina do abrigo que julga ter uma grande proximidade:
“Quanto a questão da proximidade eu tenho essa facilidade né, de me aproximar, é
muito raro eu não ter um contato legal (...) com relação a proximidade (...) por exemplo, eu
tenho a Ana, ela entrou (...) e era (...) agitadinha, não aceitava muito o que a gente falava,
as vezes sumia, você procurava ela tava dormindo com o dedo na boca, então era uma coisa que me chamava atenção. (...) aqui a gente tem a questão da pasta individual que cada
educador é quem cuida do caso (...) Então ela é uma criança que é bem ativa, já tem um
desenvolvimento super bom com relação a aprendizagem (...) ela gosta de fazer
cambalhota (...) então é uma criança que eu tenho muita afinidade, que tem um pouco de mim. A questão da agressividade, de às vezes bater o pé com algumas coisas. Então eu fui
isso, então tem uma afinidade maior (...) Assim, a gente se identifica. (...) A Ana até onde
eu sei a mãe morava aqui no João XXIII, era uma família constituída acho que por 5 ou 6
filhos, que teve problemas com drogas ou alguma coisa, uma das irmãs foi pra Febem a outra saiu pra rua, então era uma família bem difícil. E veio a irmã mais velha a Suzana, que
ficou aqui com a gente, então era uma menina adolescente explosiva mas de um bom coração.
(...) E a Ana vivia num outro abrigo acho que era aqui em Osasco e ela queria porque queria e
ela lutou até conseguir trazer a irmã pra cá. (...) aquela coisa de garra mesmo, mesmo com as
dificuldades dela. A Ana chegou de cantinho, cabelinho bem curto, meio que raspado
parecendo com um homem e vinha com você parecia um bichinho, num queria... se isolava de
você, e como eu fiquei com a pasta dela eu começava a bisbilhotar, querer saber alguma
coisa, e ela sempre saia que nem um peixinho, escorregava. É aquela coisa que a gente
conquista no dia a dia, vem aqui, (...) vamos cortar a unha, vamos lavar o cabelo (...)
tinha umas feridinhas então ficava aquela coisa do cuidado e hoje eu vejo a Ana cresceu, já se cuida melhor, não gostava de tomar banho (...) Ela tinha umas assaduras debaixo do
braço, que era questão de higiene mesmo. (...) Eu acho que conquistei na questão do
cuidado. (...)”
“(...) Você pode falar, ela sai batendo porta. Eu acho assim que é uma coisa que...
não é uma coisa agressiva, mas é uma coisa que mostra que a pessoa está reagindo, então eu acho que nesse ponto ela reagiu, porque no inicio ela ficava ali acuada. (...)”
Há uma importância dada a um atendimento mais pessoal e individualizado às
crianças e adolescentes no relato de Sueli, por exemplo, quando diz do fato de cada
educador social ficar responsável pelas pastas de determinadas crianças. Organizando-
se dessa forma, é como se ficasse mais viável cada um se dedicar mais integralmente à
certas crianças. Nesse sentido, pode-se pensar numa valorização de uma relação dual,
mais íntima e pessoal entre o educador e a criança.
Há a possibilidade de se identificar com algumas crianças e adolescentes.
Compartilhando o dia-a-dia com eles, os educadores acabam os conhecendo muito
intimamente; uma relação bastante íntima é descrita nesse sentido. Há uma maior
afinidade no momento em que se identifica com a criança e reconhecendo nela suas
próprias características, consegue entendê-la mais profundamente. Com outras, a
relação se estabelece diferentemente, revelando como a personalidade e
características individuais de ambas estão implícitas na relação.
No relato da história de vida de Ana, Sueli faz menção à mãe e aos irmãos, uma
delas inclusive moradora do mesmo abrigo que Ana. O pai não é mencionado nesse
caso. Sueli, ao descrever características da irmã de Ana, revela a possibilidade da
existência de diferentes sentimentos presentes na mesma pessoa: “era uma menina
adolescente explosiva mas de um bom coração”. Percebia algo muito saudável por trás
de uma história de vida bastante difícil, com muitas dificuldades: um desejo enorme em
unir a família novamente. A relação das duas irmãs e a vivência delas no abrigo foram
os aspectos mais ressaltados por Sueli ao contar a história da vida de Ana.
Sueli caracteriza sua aproximação com Ana por dois caminhos diversos: buscava
em sua história de vida presente na “pasta individual” um sentido para alguns
comportamentos que lhe chamavam a atenção e por outro lado, tentava conquistar sua
confiança nas experiências diárias com ela. É no encontro cotidiano com as crianças
que se dá a relação e que a aproximação e confiança acontece, segundo Sueli. Ainda
nesse sentido, aponta a atenção aos cuidados físicos (“cortar as unhas, cuidar dos
cabelos, dar banho”) das crianças como principal elemento no estabelecimento da
relação dela com a criança. Dispensando-lhes cuidados, consegue conquistar a
confiança das crianças. O cuidar revela-se como elemento fundamental da função do
educador social, cuidar este que envolve necessariamente uma dedicação,
envolvimento afetivo e identificação com a criança. Sueli nota mudanças nos
comportamentos das crianças, percebendo um retorno de seu investimento afetivo.
Cuidando das crianças, elas aprendem a se cuidar também; na medida em que valoriza
o corpo da criança, ela passa a valorizá-lo.
Ao identificar-se com Ana e reconhecendo em atitudes dela suas próprias
características, Sueli pode entendê-la mais profundamente. A sua experiência pessoal
também a ajuda entender outros comportamentos das crianças. A agressividade, por
exemplo, de uma criança é considerada por ela como uma reação, uma maneira
saudável da criança mostrar que está viva. A apatia, opondo-se ao ato agressivo, é
caracterizada por ela como algo preocupante na criança, um desinvestimento na vida.
Nesse sentido, ela incomoda-se e se preocupa mais com uma criança quieta do que
com uma que ataca o ambiente. Quando a criança pode ser agressiva, ela demonstra
estar investindo no ambiente e assim, pode se vincular afetivamente novamente com
alguém, segundo relato de Sueli. Em sua fala, foi justamente quando deixou de estar
apática e reagiu que a possibilidade de uma relação entre as duas se deu.
“(...) com o tempo eu descobri que falar e expor algumas coisas não funciona. Ela
(Ana) é mais com as atitudes, então eu falo (...) não basta sabe, perguntar, questionar, falar, explicar, na maioria das vezes pelo menos comigo não tem funcionado. Eu acho que
foi isso que levou a uma proximidade maior.”
Na sua experiência como educadora social, Sueli relata ter aprendido que com
crianças é mais importante a ação, ou seja, demonstrar concretamente através de atos
algo considerado importante para ela. Nesse sentido, atuar opondo-se ao falar. Uma
atitude diante de uma situação, por exemplo, no relato dela, cuidar do cabelo de Ana,
pareceu-lhe ser mais efetivo e eficaz do que se tivesse conversado com ela sobre a
importância de se lavar o cabelo.
“Eu acho que a questão de lidar com a mãe (é algo muito difícil para ela). (...)
Quando ela chegou aqui, ela não gostava que falava da mãe. (...) Hoje não, ela vai com a
mãe, mas ela tem ainda uma resistência, eu não sei qual que é ainda, mas quando você
fala: ‘você vai passar férias com sua mãe.’ Ela fala: ‘não, eu não quero ir’. Teve dias que ela
saiu chorando porque ela não queria ir. Então a impressão que dá é que aqui é mais
prazeroso ficar. Hoje mesmo ela falou pra mim ‘meu aniversário é dia nove’, agora de julho, e
eu falei assim ‘ah ta, segunda feira?’ Ela falou ‘Não, é domingo e é seu plantão’. E antes eu
havia falado pra ela que eu ia ligar pra família para ela ir passar férias, então a impressão que deu era que ela não queria sair antes do aniversário. (...)”
A relação com a mãe aparece como a dificuldade mais essencial na vida de Ana.
Resgatar o vínculo da criança com a mãe e com a família parece ser algo importante
para Sueli. Quando Ana rejeita a mãe e todas as tentativas de reaproximação com ela,
Sueli atribui a isso a importância do abrigo na vida dela; entende diante da negação de
Ana que estar com a família é menos prazeroso, mais sofrido do que estar no abrigo.
Entretanto, é importante ressaltar a incerteza na fala de Sueli quando nos fala desses
aspectos: “eu não sei qual que é ainda” e “a impressão que dá...”. Ao pensar na
relação mãe-filha, ao invés de certezas, Sueli levanta possíveis hipóteses a partir de
sua observação dos comportamentos de Ana. Não entende a dificuldade de Ana e
pensa em algumas explicações para esta, por exemplo, estar associada a uma boa
vinculação com o abrigo e com ela, parecendo desejar, inclusive, comemorar o seu
aniversário no abrigo.
“Eu acho que mesmo com pouca idade (o abrigo) representa muito (na vida dela).
Eu acho que até mais do que a família em si, porque mesmo quando a irmã saiu a gente
achou que fosse... deu uma interferidazinha na escola, mas aqui não, foi uma coisa normal,
que superou-se rápido, então eu acho que o abrigo em si é o porto seguro né, do momento.
Eu acredito nisso.”
Em meio a tantas incertezas quando reflete sobre a relação de Ana com sua
mãe, um elemento aparece como certo em seu discurso: o abrigo é uma referência
fundamental na vida da criança, uma experiência certamente marcante e significativa. A
segurança possibilitada à criança pelo abrigo pode ser um elemento decisivo em torná-
lo mais significativo em sua vida do que o ambiente familiar. A maneira como Ana
reagiu quando se separou de sua irmã no momento do desabrigamento desta também
pode refletir, segundo Sueli, a importância do abrigo na vida dessa criança
contrapondo-se ao lugar ocupado pelas relações familiares: pareceu superar rápido
essa situação tendo em vista estar num abrigo, um lugar seguro para ela.
“(...) Pra alguns é importante ter (a família). Mas, por exemplo, (para) a Angélica
não... Talvez, um pouco pra frente, ela vá valorizar isso; de momento, eu não vejo. (...) Eu
me baseio pelas atitudes dela. Por exemplo, ela prefere ficar aqui. Ela fala: ‘eu não quero
ir, eu quero ficar aqui.’ Teve meses que ela foi chorando. Então eu fico pensando, eu me
pergunto por que é que ela chora pra não ir. A impressão que dá (...) é que aqui é melhor.
Aqui tem mais não sei o que, mas aqui é melhor.”
“(...) É o referencial. O abrigo acaba sendo, porque é como se a família ficou pra
trás. Na maioria das vezes eles vêm pequenos, e acabam meio que a metade do ciclo de vida ficam aqui. Eu acho que é a parte que fecunda melhor. Mas, é difícil, tanto pra receber
como pra retirar. (...) Porque, por exemplo, tem pessoas que saem e voltam pra visitar, liga.
Tem outros que não. Eu acho que vai muito do que ele colheu daqui. O que ele plantou e o
que ele colheu daqui.”
A importância para a criança de estar com a família é relativizada por Sueli:
conviver com os familiares não é sempre positivo ou negativo. A intensa valorização do
abrigo pode revelar por outro lado uma desvalorização da família biológica da criança.
Há um maniqueísmo presente em seu relato: a instituição é uma referência sempre
positiva e boa e para se manter nesse lugar, as relações familiares acabam perdendo
seu espaço de importância.
Ela percebe através de comportamentos das crianças como para algumas é
complicado estar com a família e também o desejo delas em não estar com seus
familiares. Como no caso de Ana, com outras crianças acontece situação semelhante.
Na rejeição da família, no desejo de não estar com a mãe e o pai, Sueli pensa na
hipótese do abrigo estar sendo para a criança um ambiente onde encontra mais
satisfação do que nas relações familiares. Suas observações a levam pensar na
hipótese do abrigo ser um lugar mais positivo na vida de algumas crianças, mas ainda
não identifica o que poderia ser esse diferencial da instituição (“Aqui tem mais não sei o
que, mas aqui é melhor.”)
O aspecto provisório do abrigo também é relativizado por Sueli na medida em
que ressalta o fato de muitos viverem por anos na instituição e não terem mais
condições de voltar a morar com suas famílias. Nesse sentido, reconhece o abrigo
como uma etapa importante na vida do sujeito, representando uma referência para a
qual poderão recorrer sempre que precisarem.
Agora é a vez do Eduardo, uma história difícil segundo Sueli:
“(...) A questão do Eduardo é questão de saúde. Ele tem diabetes (...) Eu acho que
pro grupo, no geral, foi difícil quando a gente recebeu o Eduardo aqui. Porque, um menino de 9
anos que a gente não conhecia nada (...) da diabetes. (...) Pra mim foi difícil, porque eu não
ainda sabia lidar com aquilo - como também não sei até agora, a gente faz por uma
questão de sorte ou sei lá o que. (...) você se sente impotente, você não sabe, você não tem o que fazer; você vai procurar os recursos que você conhece. (...) Pra mim foi um
momento de medo. (...) Por mais que falem chame o Resgate, mas você fica naquela
apreensão, se não dá tempo: vai morrer na minha mão? Isso é um complicador, não é.
Porque você não entende nada de saúde, em si. (...) É o meu trabalho. Eu venho aqui, dou
o meu plantão, então, sou eu, como pessoa, que estou em jogo. Não é só a saúde dele.
Eu não tenho só que dar conta da saúde dele, eu tenho que dar conta também do meu eu. (...) Das minhas condições. Da questão ética e tudo mais (...) Porque é diferente de você
lidar com os conflitos em si. (...) É uma coisa que, não tenha dúvida, vai te deixar apavorado. (...) Eu sei que não é fácil pra uma criança ter diabetes. Mas, ao mesmo
tempo, ele é uma pessoa difícil, porque você percebe que ele não quer se ajudar. Você
percebe que ele provoca a situação, ele come obsessivamente pra que ela suba, ou ele não come pra ela desça. (...) É viver no limite. Com ele é assim. Eu tenho procurado
aprender, mas também não tenho conseguido. Então, é assim, eu estou aqui, eu faço o
meu trabalho, procuro fazer o melhor, mas é complicado. É aquela coisa de você
trabalhar, ou melhor, você dar murro em ponta de faca. Porque ele tem condições de
melhorar a situação dele, em todos os sentidos, ele tem. Mas ele não quer. Então, você
fica... É frustrante até. Porque você fala: ‘poxa vida, por onde eu vou? Qual caminho eu
sigo? Qual é o momento? Onde eu mexo?’”
“(...) Todos os recursos - não estou te dizendo ‘olha o abrigo é 100%’; estou te
falando o que é real - então, tudo que é e que está ao alcance do abrigo em si, tem sido feito pro Eduardo. Ele faz terapia duas vezes por semana, terapeuta particular. (...) Eu acho
que da nossa parte não requer mais nada. (...) Por exemplo, (parece) que ele vive em
busca de alguma coisa. Eu, sinceramente falando, eu só acredito que é a mãe. Porque não
é o recurso com relação à diabetes, não é recurso com relação a estrutura do abrigo; o abrigo é
bem estruturado. Não é isso. É uma questão dele querer. Talvez, ele faça isso até pra nos
chamar a atenção, como a figura feminina, como a figura mãe ou busque ajuda com a mãe.
Não sei. (...) O Eduardo, nesse ponto ele ainda não despertou. (...)”
Opondo-se a facilidade encontrada em sua relação com Ana, uma criança
segundo Sueli muito parecida com ela, está Eduardo, um garoto de 10 anos portador de
diabetes. Para ela, é mais fácil entender Ana pois se identifica com ela e já Eduardo
apresenta uma doença – a diabetes – totalmente distante de sua experiência pessoal e
profissional. Esse desconhecido permeia a todo instante a relação dela e de outros
educadores com ele e isso dificulta muito o seu trabalho com Eduardo. A história de
vida de Eduardo, apesar de bastante difícil marcada pelo abandono, negligência, etc, é
algo mais familiar para Sueli no sentido de existirem outras crianças no abrigo com
histórias semelhantes. O diferenciador, nesse caso, era a doença e em relação a esta
que era difícil se portar.
Na falta de recursos teóricos e práticos para lidar com a diabetes, esta se
apresentando como um desconhecido tanto na sua experiência como educadora,
quanto na pessoal, Sueli caracteriza a situação como amedrontadora e apavorante. O
acaso, a “sorte” é o que sustenta suas intervenções com Eduardo diante de uma
situação na qual não conhece recursos os quais possa se utilizar. Não sabendo como
nem como fazer, se vê impotente e frustrada, buscando de alguma forma qualquer
coisa que possa auxiliá-la.
Apesar de reconhecer o limite real posto na sua função, ou seja, poder agir até
onde seu conhecimento permitir (“deixá-lo em pé, chamar a ambulância”), sente-se
pessoalmente e profissionalmente implicada e responsável pela vida da criança. Se
algo fatal acontecer, apesar de reconhecer seus limites, se sentirá muito provavelmente
culpada, questionando-se se mais alguma coisa não poderia ter sido feito. Preocupa-se
consigo também, com seus sentimentos pessoais e com sua ética pessoal e
profissional no momento em que se sente a necessidade de uma maior apropriação da
doença de Eduardo.
Lidar com os conflitos rotineiros das crianças é mais fácil para Sueli a partir de
sua experiência profissional quando comparada a uma possível crise da diabetes de
Eduardo. Uma comparação é possível de ser feita nesse momento: no inicio da
entrevista, quando Sueli descreveu como chegou no exercício da função de educadora
social na Febem, de “pára-quedas fechado”, também caracterizou a situação como
apavorante pois da mesma forma, estava diante de uma realidade totalmente
desconhecida e nova em sua experiência. Também naquela época descreveu ir
trabalhar na total incerteza do poderia acontecer e da mesma maneira, sente isso em
relação ao seu encontro com Eduardo.
Reconhece a dificuldade da criança em lidar com a própria doença e, por outro
lado, percebe um não desejo em melhorar suas condições de saúde. Assim, a não
melhora de uma criança é atribuída a um desejo dela: não desejar melhorar. Quando
percebe não ser capaz mais de ajudar uma criança, quando sente já ter se esgotado os
esforços para auxiliá-la e mesmo assim, não notar melhoras, Sueli levanta a hipótese
disso estar relacionado a uma vontade da criança. Percebe, portanto, o sujeito
implicado no seu processo, na sua vida já que as mudanças dependem em certa
medida de seus esforços e empenho. Entretanto, mesmo reconhecendo esse fator do
individuo, sente-se frustrada e se questiona o que mais poderia ser feito de sua parte
para ajudá-la. Por um lado, percebe a necessidade dela desejar transformações e por
outro, não reconhece esse limite de sua atuação e frustra-se, buscando
incessantemente novas alternativas.
“Sim, teve (uma situação diferente com o Eduardo). Por exemplo, a questão da
escola. A saúde é que é complicada. Quando ele chegou aqui, ele não sabia ler, nem
escrever, ele dava trabalho na escola, e ficou no reforço, depois foi pra aceleração, um monte
de coisa. Hoje ele já está na 5a série, ele já escreve, ele já lê, ele já compreende melhor.
Então, ele conseguiu - claro, com a ajuda nossa, da escola e tudo - mas, esse mérito é
dele, porque foi ele quem conseguiu; se ele não quisesse, ele continuava lá paradão. Ele conseguiu sair. (...) Mas, a gente quer o que? Por exemplo, eu, como mãe, eu queria que
ele avançasse na questão dos cuidados da saúde. Só que aí ele emperra.(...)”
Apesar das dificuldades com a diabetes, Sueli reconhece melhoras e mudanças
em outros aspectos da vida de Eduardo. A escola é um deles. Ocorreram
transformações significativas em relação a escola desde quando Eduardo foi abrigado e
Sueli reconhece a influência de seu trabalho e dos profissionais da escola nessas
mudanças. Entretanto, atribui a Eduardo as transformações e o progresso, mais do que
aos esforços de seu trabalho como educadora. É como se ela fosse responsável por lhe
possibilitar recursos e ele por aproveitá-los ou não. Se ele não desejasse ler e escrever,
de nada adiantaria todos os esforços do abrigo e da escola em proporcionar a ele as
condições; há algo que cabe somente ao sujeito e Sueli reconhece nesse ponto o limite
de sua atuação.
Sueli comete um lapso e se afirma mãe de Eduardo: “Por exemplo, eu, como
mãe, eu queria...”. Penso na hipótese disso estar relacionado com a ausência de uma
identidade social do educador, assim, ela busca uma definição e um lugar para a sua
função em outras referências conhecidas e valorizadas socialmente, no caso na figura
materna,. Alem disso, esse lapso pode revelar um desejo seu: ser a mãe das crianças.
“(Para ele é difícil) Reagir. Eu acho que, por exemplo, a mãe... Ele foi abandonado.
(...) Ele chegou aqui eu acho que com 9 ou 10 anos. (...) Ele fez 13. (...) Desde que ele está
aqui, a mãe nunca - ela ligou uma vez, pelo menos que eu atendesse. (...) Ela nunca veio.
Teve momento que ele procurou, fala que quer. (...) porque o pai vem, faz a visita; ele passa
o dia com o pai. (...) Não sei que pressão acontece do lado de lá que evita que essa
mulher se aproxime. (...) E, assim, a figura feminina - no caso, nós mulheres – (...) ele
quer sugar. Ele pede pra gente: ‘ah, me adota, me leva pra casa.’ Talvez, se a mãe aparecesse, alguma coisa, ele desse uma deslanchada. (...) É como se ele quisesse
alguém que substitua. (...) É complicado. (...) É uma coisa que eu ainda não elaborei. Por
exemplo: ‘me adota’. Você escuta e vai embora. (...) É uma coisa que é um compromisso
muito sério, uma coisa que requer muito - no caso dele, até recursos. Pra todo mundo ele faz
isso. (...) Às vezes você tem que sair fora, porque você não pode alimentar isso. Não tem
como. Ter como tem, mas não é viável isso. (...) porque jamais eu faria algo que não estivesse ao meu alcance. Eu acho que por aí eu vou passar a satisfazer o ego, e aí? (...)
Complicado.”
O não desejo de Eduardo em melhorar suas condições de saúde é atribuído por
Sueli a uma ausência da mãe na vida dele. Apesar da presença do pai, visitando-o no
abrigo, a mãe desde que o abandonou nunca o viu e Sueli acredita que se houvesse
um resgate do vínculo com a mãe, Eduardo passaria a se cuidar em relação a diabetes.
Sueli percebe uma vinculação diferente de Eduardo com as mulheres, buscando nelas
uma mãe substituta quando as pede para adotá-lo. Interessante notar que percebe uma
melhora dele no âmbito escolar, este mais relacionado com a função paterna e no
âmbito da saúde, relacionado aos cuidados corporais e com a alimentação (mais
relacionado a função materna), Sueli identifica um limite da instituição e do pai: é uma
carência de mãe.
No pedido de Eduardo para ela o adotar, se vê em conflitos e ambígua em
relação ao pedido. Por um lado, reconhece racionalmente seu papel de educadora e
não de mãe, mas por outro, sente-se emocionalmente tocada, como se o que soubesse
com a razão não correspondesse a seus sentimentos. Envolve-se emocionalmente com
as crianças e adolescentes e nesse sentido, um pedido de adoção a deixa confusa.
Diante disso, Sueli aponta como um possível caminho o afastamento na tentativa de
não se confundir, para ela e para ele, os papeis de ambos.
IV – INFLUÊNCIA DO TRABALHO NA VIDA PESSOAL
“(...) Sou casada há vinte e poucos anos, tenho 2 filhos, na época eu já tinha um, tive
uma filha, (...) fiquei grávida no período que eu trabalhava lá, então, não interfere na minha vida
não. E é gostoso porque você aprende muito né? E isso dá um respaldo pra você também
ter tua vida lá fora, muitas coisas que você não valorizava você passa a valorizar muitas
das coisas que você não conseguia encarar você acaba encarando de uma maneira mais leve, menos sofrida. (...) Marca, não tem como não marcar.”
Durante toda a entrevista e não somente nesse trecho citado a cima é inegável a
influência do trabalho de educadora social na vida de Sueli. Relata, apesar das
dificuldades, ser uma experiência muito positiva, na qual aprende muitas coisas, não só
no âmbito profissional, como também no pessoal. A convivência diária com as crianças
e adolescentes do abrigo a ajudam a olhar para o mundo e para as coisas que a cerca
de outra maneira, encarando a realidade e sua vida mais suavemente, segundo seu
relato.
Há um encontro e uma troca entre ela e os abrigados. Ambos se influenciam
mutuamente e saem modificados do encontro. Não dá mais para ser a mesma depois
dessa experiência, pois aprendeu uma nova postura diante do mundo e de sua própria
vida.
VIII – DISCUSSÃO DOS DADOS
Em relação às motivações e a história pessoal e profissional dos dois sujeitos,
pode-se ressaltar alguns elementos do conteúdo de seus discursos. O primeiro deles
refere-se a maneira como ambos aproximaram-se do trabalho com crianças e
adolescentes em situação de risco.
Luciana relata ter descoberto e se interessado pelo trabalho através de um
anúncio de jornal, pela possibilidade de conviver mais próxima de seu marido e filhos.
Já Sueli aproximou-se dessa área chegando de “pára-quedas fechado”, como ela
mesma descreveu, já que trabalhava antes numa fábrica, desempenhando uma função
que nada tinha a ver com o trabalho exigido nos abrigos. Portanto, nas duas
experiências fica evidente a falta de formação profissional para o trabalho com crianças
e adolescentes abrigados. Nenhuma das duas tinha uma experiência ou formação
anterior e isso não foi exigido pela instituição quando as contrataram. A motivação dos
dois sujeitos é no entanto diferente: para Luciana, o valor e importância da família são
evidentes, além de existir um desejo enorme de maternagem (estaria com seus filhos
biológicos e seria mãe social de mais 9 crianças) e para Sueli, foi uma falta de escolha,
pois foi a oportunidade que lhe surgiu de trabalho. Ambas tiveram ultrapassadas suas
expectativas iniciais em relação ao trabalho: Luciana não esperava um envolvimento
tão intenso com as crianças e adolescentes e Sueli não imaginava ser tão doloroso e
difícil o trabalho com os jovens ex-internos da Febem. Na ausência de uma formação
específica anterior para o trabalho de mãe e educadora, ambas relatam o uso de
referências e experiências pessoais de vida como base e suporte.
Ainda em relação à questão das referências pessoais, um exemplo de Sueli é
bastante ilustrativo. Quando fala de Ana, mostra um entendimento profundo de sua
história, conseguindo inclusive estabelecer uma confiança positiva com ela através de
cuidados físicos. Fez a função do Holding e do Handling como Winnicott postulou em
sua teoria. Pôde identificar-se com ela e encontrou facilidades para isso já que se
reconhecia em suas atitudes e comportamentos: ela era igual a Ana quando criança. Já
com Eduardo a situação foi diferente. Revelou um desconhecimento total de sua
condição de saúde (diabetes) e, diante desse desconhecido, não pôde se identificar
com ele a ponto de fazer a provisão e atender suas necessidades. Portanto, é inegável
a falta de um respaldo mais profissional pois o critério não deveria ser somente as
referências pessoais de Sueli para lidar bem ou não com uma criança.
Uma outra diferença em relação à motivação aparece no discurso de ambas. No
relato de Luciana, ela iguala a experiência de sua mãe com o papel de mãe social do
abrigo; a única diferença estaria no número de filhos das duas (ela teria dois filhos a
mais que sua mãe). Tendo tido essa experiência familiar, acredita estar apta para
desempenhar o trabalho de mãe social e tendo tido uma história de vida semelhante à
das crianças e adolescentes de abrigo, bastante difícil e dolorosa, pode lhes mostrar
através de seu exemplo, a possibilidade de um “final feliz”. Diante disso, penso na
hipótese de Luciana buscar no trabalho de mãe social uma tentativa de elaboração de
sua própria história e entender a maternagem a que foi submetida. Além disso,
igualando a sua experiência no abrigo com a de sua mãe, Luciana acaba negando a
história de vida das crianças e dos adolescentes. Colocando-se como mãe deles, da
mesma forma como sua mãe é mãe dos filhos biológicos dela, Luciana nega nelas o
essencial de suas vidas: a própria história. Estão acolhidas no abrigo por terem sido
afastadas do convívio familiar por diversos motivos e esse elemento fundamental não é
considerado no momento em que Luciana iguala sua experiência com a da sua mãe.
Na experiência de Sueli, ela relata ter aceito o trabalho de educadora social pois
foi a oportunidade que lhe surgiu na época. Não foi uma escolha, portanto. Foi obrigada
a aceitar e encarar o trabalho por uma questão de sobrevivência. Envolvendo-se com o
trabalho, foi uma das poucas educadoras a permanecer na profissão e a começar
realizar o que o ECA previa para os atendimentos em abrigo: atender no máximo 20
crianças. Penso ser esta uma possível motivação para seu trabalho, tendo em vista o
fato de não ter escolhido esse trabalho e depois ter se envolvido.
Em relação ao trabalho desempenhado na instituição como mãe e educadora
social, alguns elementos merecem destaque.
Quanto ao reconhecimento das facilidades e das dificuldades no desempenho
dessas funções, suas posições são opostas. Luciana percebe somente facilidades no
seu trabalho e as dificuldades são praticamente inexistentes, pois mesmo que existam,
são facilmente superadas com recursos já conhecidos por ela: “jeitinho, carinho e
amor”. Já para Sueli, no trabalho de educadora social quase não há facilidades. Lidar
com crianças e adolescentes com histórias de vida tão difíceis, implica em muitas
dificuldades ficando complicado perceber facilidades.
A negação das dificuldades por parte de Luciana penso estar diretamente
relacionada com a dificuldade em percebê-las (“Não é que é difícil assim, é...”, “Eu acho
que é um meio termo, não é uma coisa que você fala ‘ai é uma coisa difícil”.). Há uma
diferença importante entre as crianças em situação de abrigo e as crianças não
institucionalizadas e se Luciana não pode perceber essa diferença, reconhecendo as
limitações e dificuldades da instituição, no sentido de buscar garantir o desenvolvimento
psíquico de sujeitos marcados pela violência e carência, permitindo espaço para a
existência das dificuldades, ela acaba por colocar-se numa posição heróica e distante
do real. (Nogueira, 2004). Poder lidar com as dificuldades implica também em poder
aceitar as frustrações, aquilo que não se realiza exatamente da mesma forma como
imaginávamos ou de conformidade com as expectativas. Nesse sentido, é necessário
poder reconhecer as próprias dificuldades para ser capaz de enxergá-las nas crianças e
adolescentes. Eles trazem necessariamente histórias de vida difíceis referentes às
angústias básicas do humano tais como o desamparo, a necessidade de afeto e amor,
o medo da perda, etc. É fundamental reconhecer esse dado de realidade. O amor e
jeitinho como elementos suficientes para vencer qualquer dificuldade, revelam a visão
assistencialista do discurso de Luciana, bem equidistante de uma proposta educacional
de maior potencial reflexivo.
Sueli considera algumas situações cotidianas relativamente fáceis, já que os
anos de experiência lhe favorecem ter um manejo para lidar com elas. Entretanto, as
situações não são sempre fáceis já que cada criança é única e cada experiência é
diferente. A dificuldade reside justamente em lidar cotidianamente, com situações
novas, já que são crianças diferentes com histórias de vida únicas. Lidando com o ser
humano, acredito não existir uma fórmula única para todos; além disso, conflitos e
problemas estão sempre presentes. Acredito estar mais próxima ao que acontece de
fato no contexto dos abrigos, ou seja, reconhecer as dificuldades existentes quando se
entra em contato com histórias de vida difíceis e além disso, parece reconhecer o fato
das crianças institucionalizadas apresentarem dificuldades e limites característicos de
uma vida no coletivo, diferentemente da vida levada na família. (Nogueira, 2004).
Apesar das diferenças há um elemento semelhante para os dois sujeitos: a
questão do vínculo. Dificuldade maior para ambas. Sueli relata dois momentos
particularmente difíceis: a chegada das crianças ao abrigo, expectativa do vínculo a se
formar e quando são desabrigadas ou momento da separação. No caso de Luciana, o
desabrigamento é uma situação geradora de muito conflito e tristeza. Penso estar esse
aspecto diretamente relacionado com a questão da provisoriedade do abrigo (moradia
provisória até que possam retornar à família de origem ou serem adotados) e com a
relação emocional intensa que se estabelece entre o educador e a mãe social e as
crianças e adolescentes. Esses profissionais trabalham no âmbito da vida pessoal,
lidam cotidianamente com a intimidade e a privacidade das crianças e apesar do
vínculo profissional estabelecido com eles, é inegável uma grande carga afetiva
envolvida nessas relações. O fato de serem relações estabelecidas a partir de um
vínculo profissional faz com que vivenciem, com ambigüidade, o desabrigamento. No
entanto, o principal objetivo da instituição abrigo é poder ser uma medida provisória de
acolhimento e nesse sentido, o desabrigamento é sua maior meta. Entretanto, quando
alcançada é vivenciada de forma ambígua.
No entanto, apesar do desabrigamento ser vivenciado com bastante dificuldade
por ambos os sujeitos, ocorre de maneira diferente nos dois casos. Luciana sente uma
tristeza profunda, sente-se roubada, como que amputada, faltando um pedaço de si:
“parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo, eu me senti assim perdendo um
pedaço de mim naquele dia. É muito triste”. É algo que acontece claramente contra a
sua vontade, sentindo-se fracassada e mutilada. Nesse momento, penso estar o abrigo
fracassando pois tem dificuldade em cumprir com seu principal objetivo. Colocando-se
como mãe substituta das crianças e buscando reproduzir no abrigo a família, o
desabrigamento não poderia ser vivenciado de outra forma.
Outro aspecto dissonante é assinalado: a educadora social apresenta a chegada
da criança ao abrigo como um momento difícil do trabalho e a mãe social não vê
dificuldades no abrigamento. Vincular-se com as crianças que chegam é um processo
que necessita de presença e envolvimento intenso dos educadores. Acabaram de
passar por um momento sofrido de suas vidas e chegam ao abrigo vivendo
necessariamente um luto. Aproximar-se dessas crianças e fazê-las confiar no novo
ambiente, ajudá-las a entender a nova condição de suas vidas é difícil para Sueli. Já
para Luciana, precisa haver um jeitinho para se aproximar das crianças e se isto é feito
com amor, então o vínculo e a confiança se restabelece. Também a comunicação é um
elemento importante para o estabelecimento dessa confiança. A história de vida desses
sujeitos parece ter mais lugar no discurso da educadora social, não pelo fato dela
enxergar dificuldades, mas sim por levar em conta o luto pelo qual as crianças estão
passando. Estão deixando uma situação para se adaptarem a uma nova e precisam
confiar no ambiente para isso acontecer. Esse elemento está presente na fala de Sueli,
diferentemente do que ocorre com Luciana.
Um outro elemento importante é a maneira como os sujeitos significam o abrigo.
A dificuldade de definir essa instituição é presente nos dois sujeitos, apesar de terem
sido observadas diferenças significativas nesse sentido.
A instituição na qual Luciana trabalha se caracteriza pela tentativa de reproduzir
nos lares–abrigo o modelo familiar, e na prática de Luciana esse dado foi evidente: ela
oscila entre comparar o abrigo a uma família, demonstrando existir alguma diferença
entre essas duas instituições e de outro lado, relata ter conseguido igualar o abrigo a
uma família e se coloca como mãe das crianças e adolescentes. Cito trechos onde isso
fica claro: “Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o
que tirar” e “Daí eu falo: ‘eu sou sua mãe, pô, eu tenho direito. Eu sou mãe.’”.
Igualando o abrigo à família, sem o reconhecimento das diferenças e das limitações de
ambas as instituições, coloca-se em questão aqui a possibilidade de se discutir o abrigo
como uma instituição efetivamente alternativa para a garantia do desenvolvimento da
criança. Nesse sentido, penso na hipótese do abrigo como um modelo alternativo de
socialização ser avaliado como ineficiente, falho; Luciana acredita que somente se
conseguir efetivamente ser uma nova família para a criança é que conseguirá cumprir
com seus objetivos. Porém, sabemos dessa impossibilidade e além disso, o quanto é
prejudicial e alienante para as crianças e profissionais não reconhecerem as limitações,
tanto de parte das crianças vivendo em instituições quanto dos profissionais pela
ausência de reflexão sobre a real proposta do abrigo.
Também nessa tentativa de reprodução do modelo familiar é inegável a
existência de uma idealização ao redor e de uma fantasia derramando afetos e
projetada nas relações familiares. A família é vista como o lugar primordial de uma
vinculação afetiva intensa e a condição mais favorável, talvez a única, capaz de garantir
um desenvolvimento saudável para a criança. Por isso a tentativa de reproduzi-la nos
abrigos.
A dificuldade da educadora social em definir o abrigo se apresenta de uma outra
maneira, porém com elementos bastante semelhantes aos de Luciana. Sueli diz: “O
abrigo em si, ele é uma coisa que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura
mesmo; aquela coisa. Então, você está aqui, você participa no almoço, você participa;
você participa até no fazer, às vezes. Você vai lá e está junto: "ah, vamos fazer isso".
Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...” Mais do que apenas
participar da vida das crianças e adolescentes, Sueli compartilha de suas vidas e
vivencia com eles momentos importantes de sua história. Há um vínculo profissional
com esses sujeitos e ao mesmo tempo parece sentir o envolvimento com eles para
além desse vínculo. Seus sentimentos e emoções em relação às crianças ultrapassam
o âmbito profissional e esse limite acaba sendo muito tênue na sua experiência. Nesse
sentido, vê-se confusa buscando encontrar uma caracterização para o abrigo. É um
lugar onde os afetos se misturam e se confundem, como ela mesma diz, e se sente
envolvida com as crianças além de um vínculo profissional. A comparação com a
família parece ser inevitável para Sueli o que me faz pensar novamente em uma
idealização do modelo familiar. Quando reconhece um grande envolvimento afetivo
entre ela e os sujeitos abrigados, compara o abrigo com uma família demonstrando
acreditar, como também ocorre com a mãe social, ser a família o lugar primordial para
uma vinculação intensa entre pessoas. A diferença poderia estar no fato de Sueli dizer
“por mais que o querer...” e Luciana falar “Eu acho que é uma família mesmo, eu acho
que não tem o que por e nem o que tirar”. Sueli parece questionar a adoção de um
modelo familiar para o abrigo e Luciana, ao contrário, parece acreditar neste como a
melhor alternativa possível para o trabalho nessa instituição.
A dificuldade de se definir mais claramente a instituição abrigo traz também uma
confusão nos papeis desempenhados por esses dois sujeitos. No discurso de Luciana,
essa confusão é mais evidente e penso estar esse dado relacionado com a diferença
de denominação de ambas: uma é educadora e outra é mãe. Luciana colocando-se no
lugar de mãe das crianças, entra factualmente numa relação de rivalidade com a mãe
biológica, como ela mesma descreveu, tem enorme dificuldade em desabrigar uma
criança, sente-se perdendo um filho nesse processo. A criança, nessa relação, se vê
com muita dificuldade de diferenciar as figuras maternas em suas vidas, tendo em vista
o fato das mães biológicas, apesar de não terem condições de cuidar de seus filhos,
permanecerem presentes e manterem a relação e o vínculo vivos (Nogueira, 2004).
Para ilustrar essa confusão, cito trechos de Luciana: “E o que foi engraçado, que eles
ficam com dificuldade: ‘pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe
biológica, mas eu não queria dar pra ela.’”. Há um conflito e um sofrimento da criança e
uma dificuldade de enxergar isso, Luciana diz achar engraçado algo que é sofrido para
a criança. A dificuldade de entrar em contato com esse conflito também fica evidente na
maneira como descreve sua relação com uma mãe biológica. Luciana, acredita que a
mãe biológica enxerga a mãe social como alguém que deseja roubar seus filhos. A
fantasia acaba sendo totalmente projetada na mãe biológica, tendo em vista que
também Luciana na função de mãe social se sentiu roubada quando uma criança é
desabrigada. Essa questão projetada na mãe biológica dificulta e impede a reflexão de
sua própria prática. Além disso, Luciana descreve uma relação ausente de conflitos e
tensões, oposta ao que ocorre na realidade. Em seu discurso, a mãe biológica depois
de entendida a função da mãe social, é descrita agradecendo imensamente a mãe
social por ela ter conseguido algo que foi incapaz de realizar: amar e cuidar de seu
filho. Penso não ser essa relação tão harmônica como Luciana descreve e esse conflito
precisa ficar claro para todos os envolvidos.
Nesse sentido, a mãe biológica aparece, tanto para Sueli como para Luciana,
como a responsável pelos problemas das crianças e culpada por tudo de mal que lhes
ocorreu. A relação é, portanto, de rivalidade e não de parceria. Há um valor e uma
importância muito grande projetados na função de “mãe”, diferentemente do papel do
pai, que não é citado nas histórias de nenhuma criança.
No caso de Sueli, algumas diferenças são dignas de registro. As crianças no
abrigo lhe chamam pelo nome ou por “tia” e isso acredito facilitar a confusão de papeis.
Entretanto, mesmo com o lugar aparentemente mais garantido institucionalmente, a
confusão para ela também está presente. Um exemplo poderia ser um lapso cometido
por ela, quando se afirma mãe de Eduardo: “Por exemplo, eu, como mãe, eu queria...”.
Investindo amorosamente e afetivamente na criança, se vê possivelmente em conflitos
no papel de educadora sentindo-se como a mãe da criança. A educadora é como se, no
seu imaginário, na função de educadora, estivesse mais distante emocionalmente da
criança e quando se vê bastante envolvida e implicada na relação , resgata o valor
projetado na figura da mãe. Além disso, quando uma criança pede para ela adotá-lo,
ela fica confusa e diz: “É uma coisa que eu ainda não elaborei. Por exemplo: ‘me
adota’. Você escuta e vai embora”. O desejo de dar uma nova mãe e uma outra família
para a criança para quem sabe ela poder ser feliz novamente está presente no discurso
de Sueli.
Sueli relata muito pouco a respeito das mães biológicas das crianças, o que me
faz pensar no lugar que essas mães têm no abrigo. Esteve presente no seu discurso
uma visão do abrigo como o lugar ideal para a criança viver e estar naquele momento e
isso pode ser que afaste e impossibilite a relação com a família da criança, vista como
um elemento dificultador de seu trabalho. Sueli apresenta muitas incertezas na relação
da criança com sua família contrapondo-se a certeza do abrigo ser uma referência
fundamental, um porto seguro.
Alguns elementos considerados importantes no trabalho de educadora e mãe
social estiveram presentes tanto na fala de Luciana quanto na de Sueli. Amor, vontade,
dedicação. São estes os elementos apontados como fundamentais por ambas no
trabalho em abrigos. Sueli diz: “Eu acho que é uma questão de dedicação,
primeiramente eu acho que tem que existir amor”. E na fala de Luciana: “Eu acho que
tudo o que você faz com vontade, você faz com amor, fica fácil, tudo fica fácil”. A
dificuldade de reconhecer o trabalho de educadora e mãe social como uma atividade
profissional fica evidente nesse aspecto, quando gostar e amar parecem ser suficientes
no trabalho com crianças. Qualquer pessoa com esses atributos poderia desenvolver
essa atividade, não necessitando para tanto de nenhuma formação especifica.
O caminho pelo qual reconhecem as marcas de seu trabalho e sentem-se
valorizadas e satisfeitas é muito semelhante tanto para Sueli como para Luciana. Essas
duas profissionais têm expectativas em relação às crianças e adolescentes abrigados.
Esperam que eles possam melhorar suas condições, estruturar-se melhor e quando
desabrigados, possam sair de uma maneira diferente de quando entraram. Vêem o
abrigo como um lugar de ajuda para as crianças em termos de desenvolvimento e
nesse sentido, consideram a instituição como um lugar positivo e saudável para a
criança. Entretanto, quando não notam na criança uma melhora ou quando os
“resultados” alcançados não correspondem às suas expectativas, tanto Sueli quanto
Luciana sentem-se frustradas e fracassadas. Dependem totalmente do “sucesso” das
crianças e adolescentes para sentirem-se valorizadas. Inclusive quando não
reconhecem transformações nas crianças, não aceitam essa condição e tentam a
qualquer custo modificá-la. Trechos de ambas ilustram esse aspecto. Sueli diz: “Pelo
menos no meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa... ‘Veja que
você pode viver, você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola” e
“Você vai se cobrando, vai se desgastando, no final, não sai o que você quer; aí, o que
você faz? Você cansa, desiste...”. Já Luciana nos fala: “Cada passo que você vai
dando, cada vitória que a criança vai tendo, é uma vitória sua. Isso dá uma satisfação
muito grande. (...) E, de repente, você conseguir, você ver que está dando resultado, é
maravilhoso”.
Fica evidente o fato de Sueli e Luciana dependerem das crianças e dos
adolescentes para se sentirem potentes, capazes, realizadas e satisfeitas. Nesse
sentido, acaba sendo um trabalho mais missionário do que educativo. Além disso, entra
em cena um funcionamento totalitário de “tudo ou nada”: ou as mudanças das crianças
correspondem às expectativas de ambas ou então o trabalho delas não surtiu efeito
nenhum e se sentem fracassadas com vontade de desistir. Ou é um sucesso por
completo ou um fracasso total. Não há um lugar garantido para as histórias de vida das
crianças e adolescentes nessas condições, já que estas são sempre vistas como algo a
ser modificado, transformado ao invés de serem acolhidas e poderem ter suas histórias
resignificadas. Quando isso não é possível, “quebram-se os elos com o passado, o que
torna mais difícil viver o presente e quase impossível representar um futuro” (Sanches e
Peloso, p. 150, 2005). Apesar de buscarem garantir um espaço individualizado para
cada um, por exemplo, garantindo-lhes um armário, e roupas individuais, não há
espaço para as necessidades individuais se pensarmos nas ações efetivas desses
profissionais. Demonstram estar mais preocupadas com a satisfação pessoal, em
sentirem-se úteis e amadas do que com as reais condições das crianças e com as suas
necessidades pessoais. Outros exemplos poderiam ser o caso do Natal, quando
Luciana ficou mais tranqüila e feliz no momento em que as crianças ligaram para ela e
quando Sueli sentiu-se fracassada e infeliz ao perceber a rejeição de uma criança.
Há uma diferença nos dois sujeitos em relação à questão do reconhecimento.
Sueli também aponta uma falta de reconhecimento social de seu trabalho. Não percebe
uma visibilidade do seu trabalho na sociedade e na política, como também em algumas
crianças e adolescentes. Diante dessa condição, diz estar o reconhecimento nas
mudanças das crianças, incumbindo-os assim de altas doses de expectativa e portanto
de uma enorme carga.
A dificuldade em entrar em contato com as histórias de vida das crianças e
adolescentes está presente nos dois sujeitos, porém de uma forma diferente. Para
Luciana, as histórias das crianças aparecem no sentido de serem amenizadas e
negadas. Quando as crianças lhe perguntam sobre sua história, conta-lhes a verdade
pois acredita ser importante não mentir para eles (do contrário, estaria dando um mau
exemplo) ao invés de tê-los como sujeitos de seus direitos (como definido pelo ECA).
Nessas condições, a possibilidade de resignificar a própria história fica impedida. Já
Sueli nos diz: “Não tem como apagar, né? É super complicado você querer apagar e
vem né?” Demonstra também o desejo de que as crianças tivessem uma outra história;
entretanto, mesmo com essa dificuldade busca lidar com os conflitos despertados por
estas no cotidiano do abrigo. Por outro lado, há uma grande idealização do abrigo em
seu discurso o que leva à hipótese de que não há um espaço para a família. É
marcante em seu discurso os aspectos positivos e favoráveis do abrigo e a família
apareceu na maioria das vezes em um lugar bastante desvalorizado.
Há uma diferença na maneira como enxergam as crianças e os adolescentes.
Luciana entende as crianças como seres naturalmente felizes, sem conflitos e
preocupações. Em suas palavras: “A criança é mais fácil de você estar, a criança não
mente, a criança é natural. Às vezes pega na parte psicológica, às vezes você sente
uma criança triste. (...) Daí eu falo: ‘V., você é tão feliz! Você é uma criança, não tem
responsabilidade nenhuma”. É possível pensar na hipótese de ser difícil para Luciana
lidar com a tristeza e com os conflitos das crianças. Elas não podem ficar tristes e se
acabam ficando, ela busca mostrar como isso não é viável nas crianças. Se não é dada
essa possibilidade para a criança de poder ficar triste, sofrer, ter conflitos, dificuldades,
então Luciana não consegue escutá-la nas suas necessidades. A história de vida das
crianças também não têm lugar nessa dinâmica onde todos devem ser felizes e livres
de tensões.
No discurso de Sueli, parece existir mais lugar para os conflitos e dificuldades
das crianças. Ela diz: “Então tem isso, os conflitos que você tem que administrar no
decorrer do dia, do tempo, e ai vai” e “Ele vai se estruturar, ele vai se... vai cair, mas vai
estar sempre se levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal.” Existe a
possibilidade de haver deslizes na vida do sujeito bem como dificuldades. Entretanto, é
inegável também o incômodo de Sueli diante desses conflitos, quando diz que o sujeito
sempre estará superando as dificuldades. No discurso de Luciana chamou a minha
atenção a grande quantidade de vezes que proferiu a expressão “Olha que legal!”. Já
na entrevista de Sueli aparece muitas vezes a expressão: “Então eu fico pensando, eu
me pergunto...” Penso na hipótese de existir para a educadora social mais espaço para
a frustração e para a falta; no entanto, ressalto não excluir por isso a presença de um
intenso conflito quando se depara com essas questões. A idéia de uma felicidade plena
e ausente de conflitos é mais presente na fala da mãe social.
Um último aspecto é importante apontar. Sueli relata trabalhar no abrigo durante
uma carga horária de 12 horas, diferente de Luciana que trabalha 24 horas. Luciana
considera importante permanecer junto com as crianças durante o dia inteiro e Sueli
acredita muitas vezes, apesar de considerar um tempo extenso, faltar tempo para
realizar todas as tarefas necessárias. Diante disso, é evidente um desejo e vontade de
ambas em suprir todas as faltas do sujeito; o tempo não parece nunca suficiente e o
trabalho só é eficaz se realizado em tempo integral. Porém, Sueli está mais “protegida”
desse desejo pelas condições institucionais do seu emprego.
CONCLUSÃO
Esse estudo indagava sobre as possibilidades de subjetivação das crianças e
adolescentes em situação de abrigo. Essas crianças institucionalizadas são afastadas
do convívio familiar e passam a viver num ambiente coletivo, com todas as implicações
e diferenças, um ambiente pouco usual à maioria das crianças. Seus vínculos e
investimento afetivo não se restringem, nessas condições, apenas às figuras parentais,
pois na instituição, passam a conviver diariamente com os educadores ou casal social
do abrigo, com todos os outros funcionários e com as outras crianças e adolescentes.
Na dinâmica do abrigo, são os educadores ou a mãe social os responsáveis pela
educação e cuidado das crianças, pelo estabelecimento e acompanhamento de sua
rotina e com quem se relacionam diretamente.
Este trabalho buscou investigar justamente a influência e o papel desses
profissionais na vida dos sujeitos abrigados por serem estes profissionais
representantes e mantenedores do ambiente onde a subjetividade será tecida. Na
tentativa de compreender o papel do educador social e da mãe social, ouvimos desses
profissionais como significam e vivenciam o seu trabalho e como compreendem
elementos importantes da vida da criança.
Os resultados, mais do que fornecerem respostas, nos levaram a muitos
questionamentos. Primeiramente, através dos discursos da educadora e da mãe social,
pudemos pensar no fato desse trabalho não se caracterizar simplesmente por uma
mera execução de tarefas; ao contrário disso, estabelece-se um vínculo muito intenso
entre os sujeitos abrigados e esses profissionais, sendo o afeto implícito na relação.
Dessa maneira, acabam representando figuras de investimento afetivo significativas e
fundamentais na vida dessas crianças e adolescentes. Por esse motivo, a maneira
como se colocam e investem é fundamental. Aqui representam o ambiente emocional.
A partir do vínculo profissional acabam envolvendo-se intensamente na relação
com as crianças o que implica experimentar o desabrigamento de forma ambígua. No
entanto, é fundamental que não se perca de vista o caráter provisório do abrigo definido
pelo ECA11. Nesse sentido, deveria haver um espaço de reflexão e supervisão dentro
da instituição onde essas dificuldades, ansiedades, medos, etc da mãe social e da
educadora social pudessem ser discutidas e acolhidas. Quando um abrigo não
consegue desabrigar uma criança está fracassando no cumprimento de seu principal
objetivo definido pelo ECA.
A questão do desabrigamento e as diferenças neste processo nos levam a
pensar na diferença existente entre as funções de educadora e de mãe social. No papel
de educadora e não de mãe substituta, o lugar parece ser mais claramente definido e a
ambigüidade menos evidente, sendo o desabrigamento vivido como tal. Quando se
coloca como mãe substituta, a sensação é de perder um filho. No entanto, já vimos
como isso não garante a ausência de ambigüidade e dificuldades inerentes ao
processo; apenas torna-se mais claro e menos confuso para todos os envolvidos
(educadores, crianças e adolescentes). No caso da mãe social, a situação fica mais
complexa se levarmos em conta o fato da instituição fornecer autorização para que a
mãe social se coloque no lugar de mãe e não há depois um amparo suficiente que dê
conta dos conflitos despertados pelo desempenho desse papel.
Ainda em relação ao vínculo estabelecido entre esses profissionais e as crianças
e adolescentes do abrigo, podemos pensar na questão da definição dos papeis
desempenhados por eles. A ambigüidade presente nas relações intimas e privadas e ao
mesmo tempo profissionais entre esses sujeitos faz com que a função que estabelecem
e o lugar que ocupam sejam indefinidas. As crianças chamam a educadora social pelo
nome ou por “tia” e chamam a mãe social de “mãe”. Essas possíveis denominações
auxiliam ou dificultam a todos envolvidos na definição dos papeis; entretanto, é
11 “O acolhimento em abrigo é considerado uma medida provisória e excepcional, utilizável como forma
de transição para o posterior retorno à família de origem ou para a colocação das crianças e
adolescentes em famílias substitutas” (artigo 101 – Parágrafo Único do ECA).
importante ressaltar que mais do que uma questão de denominação, é fundamental a
postura e a consciência do profissional diante de sua função. Nesse caso, acredito ser
menos confuso para as crianças e para o profissional se está no lugar de educadora da
criança e não no de mãe substituta. Muitas crianças mantêm relações e um vínculo
forte com sua família biológica e é importante que isso seja mantido. Colocando-se no
lugar de mãe dessas crianças, pode-se deixá-las mais confusas em relação a seus
sentimentos, além de dificultar a elaboração de suas histórias. Precisam entrar em
contato com a falta da mãe e do pai, com seu contexto atual de vida, e com sua
história. Quando a mãe social se coloca como a “mãe” deles, a possibilidade dessa
resignificação fica impedida. Como afirma Marin: “Coloca-se portanto como fundamental
para quem trabalha com o abandono se conscientizar de que as faltas vividas não
poderão e aliás não deverão ser totalmente preenchidas.(...)” (1990, p. 36)
O modelo familiar como ideal na subjetivação do indivíduo está presente no
discurso tanto da educadora, quanto da mãe social. Entretanto, é possível verificar na
mãe uma tentativa mais intensa de reproduzir esse modelo no abrigo, diferentemente
da educadora que parece questionar esse aspecto e enfatizar a importância do abrigo
como um modelo alternativo. A idéia de desempenho de funções materna e paterna
pelos educadores e casal social, ao invés de tentarem ser concretamente o pai e a mãe
da criança, parece mais apropriada ao estabelecimento de uma ambiência saudável
para as crianças e adolescentes. Há aspectos importantes do desenvolvimento infantil
que as mães podem nos ensinar e em relação a estes Winnicott nos diz:
Nós, como as mães, precisamos saber a importância: da continuidade do
ambiente humano, e do mesmo, modo, do ambiente não humano, que auxilia a
integração da personalidade do indivíduo; da confiança, que torna o comportamento da
mãe previsível; da adaptação gradativa às necessidades cambiantes em expansão da
criança, cujo processo de crescimento a impele no sentido da independência e da
aventura; da provisão para concretizar o impulso criativo da criança (1983, pg. 67 -68)
O mesmo autor (2005) dá uma contribuição fundamental para desmistificarmos
essa idéia de que a família é sempre o ideal e a instituição é um mal necessário, na
medida em que considera que as crianças que viveram em lares insatisfatórios, viveram
a desintegração da família ou constantemente o perigo de dissolução desse lar,
necessitavam na verdade experienciar pela primeira vez um lar primário e não um
substituto para seus lares. Ou seja, não precisam necessariamente ser encaminhadas
para uma família substituta e nem retornar à família de origem, mas sim que sejam
acolhidas num ambiente que lhes dê as bases para seu desenvolvimento.
Esse ambiente suficientemente bom, postulado por Winnicott, implica nos
educadores e casal social poderem entrar em contato com o contexto real das crianças,
reconhecer as dificuldades delas e os limites da instituição e da influência que exercem
na vida das crianças. Para isso, é necessário o reconhecimento das diferenças – do
abrigo e da família – e assim, abrir-se a possibilidade da discussão e da reflexão sobre
sua prática (Nogueira, 2004). Prendendo-se ao modelo familiar como única alternativa
possível, fica muito complicado proporcionar um ambiente saudável nos abrigos.
Nos discursos da mãe e da educadora social ficou evidente a maneira como se
relacionam com a família biológica das crianças; há uma intensa rivalidade entre a mãe
social e a biológica, o que acaba criando um ambiente hostil para a criança, colocando-
a numa posição de ter que escolher e decidir a todo momento “quem ela ama mais”. No
caso da educadora social foi quase inexistente a presença da família biológica no seu
discurso, o que nos leva a pensar na hipótese de não haver um lugar para esta na
instituição. É como se a instituição entendesse que sua tarefa é outra e suprisse tudo.
Os lugares, os objetivos e as funções de todos envolvidos na vida das crianças e
adolescentes precisariam ser claros e definidos para ser possível uma relação de
parceria e não de rivalidade. A família biológica precisa ter um lugar de acolhimento na
instituição visando romper com uma visão maniqueísta onde a instituição é “boa” e a
família é “má”. Isso contribuiria para que a criança pudesse elaborar seu luto. Segundo
Winnicott (2005),
Cuidar de crianças pode ser um trabalho árduo e desgastante, pode ser sentido
como uma verdadeira tarefa de guerra. Mas ser privado dos próprios filhos é um tipo
bem miserável de tarefa de guerra, que dificilmente terá algum atrativo para qualquer
mãe ou pai, e somente poderá ser tolerado se o seu aspecto infeliz for devidamente
levado em conta. Por essa razão, é necessário realmente fazer um esforço para
descobrir o que sente uma mãe destituída de seus próprios filhos. (pg.39)
É necessário um espaço de discussão e esclarecimento das funções dos
educadores e mães sociais. Segundo Nogueira, “Tal profissional tem um papel
fundamental na realidade dessas crianças e só uma definição precisa de suas funções
garantirá que elas possam se desenvolver de forma saudável e integrada”. (2004, pg.
65)
A dificuldade de escutar e acolher as histórias de vida das crianças, presente nos
discursos da mãe e da educadora social, nos leva a pensar em algumas questões
também nesse sentido. As crianças e adolescentes institucionalizados viveram
concretamente as angústias básicas humanas, ou seja, o desamparo, a necessidade de
afeto e amor, o medo da perda, angústias essas vividas por todos nós no campo da
fantasia. O contato direto com essas questões aponta para a necessidade de um
espaço de reflexão desses sujeitos quanto a sua prática tendo como problemática o
desenvolvimento infantil, o contexto social dos educadores e das crianças e
adolescentes, dentre outras. Se esse espaço de discussão não existe e nem está
previsto, a tarefa desses profissionais fica muito mais difícil no que tange por exemplo a
aceitação da frustração bem como toda sorte de dificuldades implícitas nesse trabalho.
Nesse momento, é importante retomarmos a concepção de educação de Paulo
Freire, vista em capítulo anterior desse estudo. A idéia fundamental é pensarmos numa
educação na qual educador e educando se sintam fazendo parte do processo. Para
isso, levar em conta o contexto social no qual ambos estão inseridos é condição básica
para a formação de sujeitos libertos e não alienados. Considerar, nesse sentido, o fato
de todas as crianças abrigadas estarem vivendo um luto é muito importante. Em relação
às perdas e lutos nas crianças, nos diz Winnicott (2005): “Estas coisas podem ser muito
profundas, e difíceis de curar; não obstante, é importante que não contribuamos para o
estado desconfortável da criança, recusando-nos a permitir-lhe a tristeza e
desesperança reais, e mesmo idéias autodestrutivas que se relacionam diretamente à
grave perda que ela sofreu.” (pg. 65)
Essa dificuldade esteve presente mais intensamente na fala da mãe social do
que na fala da educadora e penso que isso pode estar diretamente relacionado com a
função que cada uma visa ocupar na vida das crianças: uma a mãe e a outra a
educadora. Inclusive deve-se considerar a questão da carga horária definida
institucionalmente para cada uma: 24 horas e 12 horas diárias de trabalho. No caso da
mãe, busca-se suprir todas as faltas, ser uma instituição completa “sem buracos”, total!
(o dia inteiro com a criança!) e garantir-lhe novamente algo muito importante que
“perdeu”: uma nova mãe. Assim, acredito haver menos espaço para a frustração,
principalmente das crianças e adolescentes. No caso da educadora, a jornada de 12
horas já ajuda a colocar o limite necessário: terá um tempo considerável com ela, mas
não é completo. O abrigo coloca-se como seu ambiente de trabalho e garante-lhe uma
vida intima e pessoal extra - instituição, contribuindo inclusive para uma concepção de
trabalho baseada na incompletude institucional (pressuposto da inserção na rede social,
levando em conta que a instituição não é capaz de dar conta de todas as necessidades
do indivíduo).
Entretanto, essa questão institucional não garante a qualidade do atendimento,
podendo ser apenas uma primeira condição importante. Cabe lembrar o lapso da
educadora quando afirmou ser a mãe de uma das crianças e no fato do trabalho ser
tomado como uma missão quase divina, tanto pela educadora quanto pela mãe social.
Winnicott coloca como função fundamental do ambiente suficientemente bom ser capaz
de depois de uma período de ilusão, gradativamente frustrar a criança concedendo-lhe
assim a possibilidade de encontro com o objeto não-eu, portanto, encontro com a
exterioridade. A boa mãe é a mãe que ilude para depois desiludir. E isso parece ser
mais possível em um modelo que não busque cobrir todas as faltas da criança.
Talvez também essa diferença entre a educadora e a mãe social se relacione
com uma questão apontada por Nogueira: “(...) ao ser colocada no lugar de mãe, que
deve ser ‘abnegada’, a necessidade de formação e suporte para o trabalho que
desenvolve fica ainda mais distante. ‘Mães’ não são formadas para tal exercício, uma
vez que o instinto se encarrega de ajudá-las (...)” (2004, pg. 126)
A falta de um reconhecimento social do trabalho é apontada por ambas. Vêem-
se satisfeitas e motivadas a partir das mudanças e progressos observados nas crianças
e adolescentes. Se estes obtêm “sucessos”, a educadora e a mãe social sentem-se
realizadas, do contrário, sentem-se fracassadas. Na verdade não enxergar “resultados”
não é sequer vislumbrada pela mãe social. Já a educadora, enxerga essa possibilidade,
porém não sem conflitos; inclusive, atribui os resultados indesejáveis a um não
aproveitamento por parte do sujeito das condições dadas pela instituição. Nesse
sentido, acreditamos estarem mais envolvidas com a própria satisfação pessoal; as
crianças precisam corresponder às expectativas desses adultos para se sentirem
acolhidas e aceitas e acabam não sendo ouvidas em suas reais necessidades.
Inclusive, a capacidade de identificar as necessidades das crianças no momento
(identificação), postulada por Winnicott (1983), implica em um sujeito atento à realidade
e à história da criança. Ele diz:
Devemos nos organizar de modo que em cada caso haverá alguém com tempo e
inclinação para saber o que a criança precisa. Pode-se saber isso na base de alguém
conhecer a criança. A identificação com a criança não precisa ser tão profunda como a
da mãe com o recém nascido (...) (pg.68)
Portanto, mais uma vez, verificamos a importância de um outro que se importe
com a criança em sua vida e não necessariamente da mãe e do pai substituto. Para
isso, justifica-se mais uma vez a importância de um espaço de reflexão desses
profissionais para que possam trabalhar questões pessoais e profissionais evitando que
projetem tão maciçamente suas necessidades pessoais nas crianças e adolescentes.
Cabe ainda trazermos para esta conclusão a questão da falta de formação
profissional apontada pela educadora e pela mãe social e talvez essa carência seja o
elemento que permeia, no geral, as indagações desse estudo. Ambas descrevem trazer
para a prática nos abrigos referências e experiências pessoais como base do trabalho.
E isso não poderia ser diferente tendo em vista a inexistência de uma teoria que defina
e se preocupe com essa prática. Essa falta de identidade social aponta para a
necessidade imprescindível de uma formação profissional que busque uma
instrumentação da função de educador e mãe social, garantindo uma proposta
educacional para os abrigos, opondo-se a uma postura assistencialista, onde prevalece
o amor e a vontade como norteadores do trabalho. Inclusive esses elementos
somando-se à necessidade de dedicação, foram aspectos apontados pelas
profissionais como fundamentais no exercício do trabalho em abrigos. Como aponta
Guará (1998), o atendimento antes fornecido às crianças e adolescentes em situação
de risco era baseado na missão. Verifica-se essa mentalidade ainda presente,
demonstrando com isso que além de uma mudança estrutural, como proposto no ECA,
é fundamental uma transformação ideológica. As competências profissionais só podem
se desenvolver se tiverem uma base teórica em saberes específicos da área de
atuação.
Chegamos nesse momento a uma questão crucial: quais os fatores que levam a
instituição abrigo a não exigir uma formação profissional? Qual é o imaginário projetado
nessa instituição? Uma resposta possível a essa questão é o imaginário social e cultural
que gira em torno da família. Resgato Brasiliano (2005):
O conceito de família constitui-se (...) em um desses elementos simbólicos muito
valorizados em nossa sociedade. Adquire uma importância inquestionável e é uma
estrutura intensamente presente em todos nós. (...) A família é, portanto, o primeiro
referencial que encontramos, em nossa cultura, para a formação de vínculos. (pg. 107)
Sendo a família tão valorizada socialmente, as crianças, impossibilitadas por
diversos motivos do convívio com seus familiares, têm um lugar no contexto social de
exclusão. Nossa reação imediata é sentir pena do abandonado; pensá-lo como um
coitado, impotente, incompleto e, assim, busca-se resgatar e recuperar para ele tudo
que perdeu. (Marin, 1990). Entendendo-o dessa maneira, parece ser suficiente um
atendimento baseado no amor, no cuidado e na dedicação. Uma ideologia alternativa
valorizando outras relações humanas além das familiares poderia ser uma possibilidade
interessante no trabalho em abrigos. (Brasiliano, 2005)
Enfim, é possível pensar, nesse contexto dos abrigos, nas crianças e
adolescentes sentindo-se abandonados; na instituição e nos educadores e mães
sociais também se vendo abandonados frente a falta de recursos e técnicas
profissionais, falta de reconhecimento social, de investimento, buscando dar conta do
abandono e de tantas outras questões angustiantes para todos nós e tão presentes
nas suas vidas cotidianas. Retomemos as entrevistas, onde possibilitamos a esses
profissionais um tempo de reflexão; falaram durante horas, o que está intimamente
relacionado às necessidades de falarem e pensarem sua prática. Esse fato ressalta a
importância de um espaço de discussão.
O trabalho do psicólogo pode ser então pensado como o de possibilitar um
espaço de retaguarda institucional para o educador e casal social poderem discutir e
refletir sobre a função desempenhada por eles e como podem suportar a dor do outro.
Pensar também em uma formação especifica e profissional desse trabalho junto a
outras áreas do conhecimento, rompendo com uma ideologia assistencialista e
moralista, para que possam ser para as crianças e adolescentes em situação de abrigo
um ambiente suficientemente bom. Isso significa garantir-lhes uma continuidade;
confiança no mundo e nas relações humanas; adaptar-se gradativamente às suas
necessidades e depois ser capaz também de frustrar e acolher sua subjetividade em
construção bem como suas particularidades e fazer com que sejam reconhecidas na
rede social. Com isso, possibilitar uma escuta e um acolhimento para as histórias
particulares dos sujeitos de abrigos, que apesar de todas estarem na condição
institucional de abrigamento, essas condições não os homogeneíza. Segundo Temer
(2005),
A realidade social que se mostra tão determinante da problemática psíquica do
paciente, não pode sair do seu lugar de fundo. Caso contrário, corre-se o risco de
reduzir o paciente a um problema social e perder de vista sua singularidade. A figura
deve se manter no sujeito – na esperança de que o paciente possa se constituir como
um sujeito apesar desta realidade (p. 88)
Garantindo no abrigo um espaço transicional uma fábrica de palavras e idéias,
uma espécie de usina de criação tanto para os educadores quanto para as crianças e
adolescentes, tornar-se-ia possível instrumentar esses profissionais a ajudarem as
crianças e adolescentes na construção de um presente decente, cuidando dos aspectos
do cotidiano considerados insignificantes por muitos mas de capital importância para
que cada um possa sonhar e alicerçar seu futuro.
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Anexos
Anexo 1
TERMO DE CONSENTIMENTO
Eu, ______________________________________________________, R.G. nº
________________, atesto que a minha participação no Trabalho de Conclusão de
Curso, da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
da aluna Maria Lacombe Pires, é voluntária.
Fui informado (a) e entendi com clareza que o objetivo desse trabalho é
investigar qual a representação e compreensão que o educador social ou mãe social de
abrigo tem das marcas e influências do seu trabalho na vida das crianças e
adolescentes institucionalizados. Para tanto, tenho consciência de que estou sendo
submetido (a) a uma entrevista na qual fornecerei informações a respeito de minha
experiência, assim como concordo que a mesma seja gravada e transcrita para análise
dos resultados.
Fui informado (a) e também entendi com clareza que as informações coletadas
serão utilizadas para formação cientifico – profissional desta aluna, sendo garantido
total sigilo das mesmas. Sei que meus dados de identificação não constarão no
relatório a ser produzido.
São Paulo, ___ de ___________de 2006
_______________________________________________
(assinatura)
Anexo 2 Entrevistas na íntegra
Mãe social Luciana E: Entrevistadora
L: Luciana E - Pra começar, eu queria saber, se você puder me falar um pouco, desde de quando que você trabalha como mãe
social?
L - Há três anos e meio eu estou aqui. É... três anos e meio.
E - E o que te levou pra este trabalho?
L - Eu nem sabia que existia esse trabalho de mãe social. Eu vi, meu marido viu um anúncio num jornal e eu achei
interessante. Aí nós fomos ver como é que funcionava isso. Eu me interessei bastante pelo trabalho; e entramos no
processo de seleção, e ficamos aqui. Eu achei bem interessante. Eu acho que é a minha cara, eu me encontrei.
E - O que você acha desse trabalho, que é a sua cara? Quando você viu o anúncio, o que é que foi que te
interessou? O que você achou que pudesse ter a ver com você?
L - Porque, na época, eu trabalhava fora, eu trabalhava numa escola, e eu era ajudante geral na escola. Mas eu
sentia muita falta de estar mais perto dos meus filhos, dos meus filhos biológicos. Aí, quando eu vi esse anúncio, eu
pensei: olha, de repente eu posso estar com eles - quando eu fui ver o trabalho, como funcionava, porque me foi
falado tudo isso.
E eu achei interessante isso.
Como eu não conhecia antes, eu não imaginava como era. Porque, no caso, quando a gente chega aqui, é
totalmente diferente, porque você, cria-se um vínculo muito forte.
Isso aqui não é um trabalho normal como outro. Você conhece as crianças, conhece a personalidade de casa um,
sabe das necessidades de cada um, da história de cada um; então, chega um dia que vira mesmo uma família,
porque você quer mais melhorar o seu trabalho, melhorar a cabeça, sabe, fazer com que a criança consiga ser feliz,
mesmo com as experiências anteriores, mesmo com a história. E é um trabalho muito complexo, você está mexendo
com reeducação, na verdade. Educar já é difícil, eu acho que reeducar é um pouquinho mais ainda; você tem que
começar, tem que ter um entendimento.
Eu acho que eu cresci muito como pessoa nesse tempo todo aqui. Eu acho que eu aprendi. Eu acho que aprendi
mais com eles do que eles comigo, nesse sentido.
E - Muito bom.
E os seus filhos moram aqui junto com você?
L - É. Os meus filhos e o meu marido. A minha família veio toda pra cá.
E - Entendi.
L - Isso que também é muito bom. Porque você está com a sua família, você está bem, né. E aqui forma-se mesmo,
chega muito próximo de uma família, chega muito próximo mesmo.
Apesar de... Eu tive uma família com, a minha mãe teve 9 filhos, então não fica muito diferente. Hoje eu estou com
11 crianças, então eu já vivi isso antes. Pra mim fica mais fácil.
E, hoje, eu sei muitas coisas do que a minha mãe passava lá atrás. Porque, na época, quando a gente está, a gente
não entende; então eu acho que foi um crescimento pessoal muito grande também.
E - Você gosta bastante, então?
L - Bastante. Eu me encontrei aqui.
Eu acho que, as pessoas falam: "ah, você tem... ah, meu dom é cantar, o meu dom é escrever, encontrei meu
dom...". E eu ficava pensando: 'caramba, mas e o meu dom, qual é?' Porque eu gostava de muitas coisas, mas hoje
eu sei que o meu dom é ser mãe. O meu dom é estar alí, é estar indo junto com a criança: "não, olha por aqui.
Vamos conversar. Olha..."
Sabe, o meu dom é esse. O meu dom é trabalhar pelas crianças.
E - E o que você acha que são as maiores facilidades nesse trabalho?
L - Facilidades?
E - É. Você está dizendo que é um dom pra você; então, não sei... Talvez, o papel de mãe seja uma facilidade pra
você exercer? O que é que você acha que é mais...?
L - Fácil... (risos)
Eu acho que tudo o que você faz com vontade, você faz com amor, fica fácil, tudo fica fácil.
De repente, você tem uma comunicação legal, você consegue olhar nos olhos, sabe, expressar o que você está
sentindo e que o outro expresse o que realmente está sentindo, pra que você poder estar ajudando naquilo
realmente.
Eu acho que eu tenho facilidade pra comunicação. Eu tenho um sexto sentido forte, então, isso eu acho que são
coisas minhas. Então, eu olho, eu já sei: "olha, você não está legal; senta aqui vamos conversar.." Ou aprender a
respeitar o tempo certo, a hora certa.
Eu acho que isso são facilidades. Eu acho que eu fui adquirindo também no decorrer do tempo, com a experiência,
errando aqui, acertando alí - porque também ninguém é perfeito. Mas você vai adquirindo experiência, adquirindo,
sabe, conhecendo mais.
Hoje, aqui, eu olho pra cada criança, eu sei mais ou menos o que ela está sentindo, o que é a necessidade dela. E
isso você vai com a experiência, mesmo com filhos biológicos, você vai conhecendo mesmo, sabendo como é o
coração, como ela se comporta, quais os sentimentos reais dessa criança. Eu acho que você descobrindo isso fica
muito mais fácil, porque você vai logo no ponto.
Tem criança que, você conversando, ela pede, ela mostra pra você no olhar: 'olha, eu estou precisando isso'. Não
precisa nem falar: 'olha, eu estou precisando de carinho. Olha, não briga comigo agora, por favor.' Ou: 'olha que
legal!'
São coisas que, com a experiência, com a experiência aqui eu fui aprendendo.
E, hoje, eu acho que eu olho e fica bem mais fácil pra mim por isso, porque eu olho e eu sei. Eu sei no olhar da
crinaça - pelo menos nos daqui, né. Não sei os outros. E eu sei o que ela está precisando da vida naquele momento.
E - E o que você acha que é difícil nesse trabalho? Tem alguma coisa que você acha que pra você fica um pouco
mais difícil?
L - Não é que é difícil, assim, é... É o que eu acabei de falar, de repente você conhece a criança - porque aqui tem
adolescente também, tem duas adolescentes.
E - Até quantos anos?
L - Até 18 eles ficam aqui.
E - Ah, eles ficam até 18.
L - Eu tenho 2 de 17. Eu peguei elas com 13 e 14 anos.
Então, você olha assim, mesmo com adolescentes, mesmo com as dificuldades... Difícil? O que é difícil? Meio
complicado, não é. (emocionada)
E - Quando eles partem é uma coisa difícil?
L - É.
E - Posso encostar um pouquinho aqui?
L - Claro.
Eu vou pedir pra eles...
E - Não, imagina. É só porque a gravação depois a gravação fica depois...
L - Mas aí eles vão lá na frente. Posso pedir pra eles brincarem lá na frente.
(risos)
E - Não quero atrapalhar.
L - Eu acho que nada se torna difícil mesmo(ênfase). Eu acho que é um meio termo, não é uma coisa que você fala
ai é uma coisa difícil. (?) ...isso mesmo de você conhecer.
É claro que tem criança que fica mais difícil, porque você está entrando mesmo no coração, de você estar sabendo,
conseguindo com que ela coloque pra fora os sentimentos reais, aquela coisa. Mas, ainda assim, com jeitinho você
vai, você vai conseguindo, com carinho, com amor. Sabe aquela coisa de estar conversando e, de repente, você
consegue demonstrar e fazer com que a pessoa confie em você de fato, pra estar passando isso pra você, sabe.
Eu acho que também não é difícil. Quer dizer, eu não acho que tem difícil, difícil. Eu acho que tudo é o trabalho que
você vai realizando e, de repente, vai obtendo resultado, vai obtendo sucesso da sua parte, da outra demora um
pouquinho, isso que é o difícil, né, demorar mais um pouquinho. Mas, de repente, você chega lá na frente e você vê
que deu resultados.
Então eu acho que é assim.
Eu (?) nesta instituição, é uma instituição muito boa. Eu acho que eles têm, eu acho que eles têm uma preparação
pra vida, boa! (ênfase) Eu acho que aqui tem uma preparação pra vida boa, eu acho que eles dão condições pras
crianças, pra mãe social, pra gente estar realmente ajudando, realmente guiando pra um futuro legal, um futuro bom
pra eles.
Então, assim, como a instituição tem cursos aqui. É porque tem aula de música, tem informática, tem... Nossa, tem
recreação pras crianças, tem um projeto cultural que tem um passeio todo mês pras crianças. É uma instituição que
está mesmo preocupada e com condições pra estar guiando esta criança pra um futuro legal.
Tem a pedagoga, tem a assistente social, uma equipe técnica pra estar auxiliando nas dificuldades maiores da mãe
social. Eu acho que isso é bom também, isso ajuda também.
Eu acho que eles sabem disso, eles têm consciência do que eles estão vivendo, e eles gostam, eles se sentem
seguros, é isso que eu acho legal.
E é sim, é sim uma família. Eu posso hoje, eu falo, é uma família de verdade. Uma família como todas as outras
famílias, com dificuldades, com experiências marcantes, com felicidades plenas, sabe. Eu acho que toda família tem
a sua deficiência em algum sentido, independente que seja biológica ou não. Eu acho que isso a gente consegue
passar pra eles, isso é legal, essa coisa de família mesmo, dele sentir. Eu acho que isso é bom.
E - Eu ia pedir agora pra você, L, me contar um pouco de uma criança. Você pode escolher uma criança assim, não
precisa me falar o nome, nada.
L - Nossa, menina! Tem tantas. (risos)
E - Tenta escolher uma.
L - Vou pegar o Willian. O Willian era quem estava lavando a louça quando você chegou. O Willian, ele teve uma
vivência complicada, desde que a mãe dele tinha problemas psicológicos. Ela saía e, de repente, retornava grávida
pra casa. Como ela tinha problemas psicológicos, ela fugia do hospital... Foi uma história bem, bem, acho que bem
complicada. E ele veio pra instituição, ele tinha 4 anos de idade; hoje ele tem 12.
E - Olha! Já está há bastante tempo.
L - Ele veio com problemas psicológicos fortíssimos também. A mãe morreu faz 5 anos, morreu com AIDS.
Eu acho que é uma história bem triste a do Willian, mas é alegre também ao mesmo tempo. Hoje, né!
Ele tinha problema, ele tomava remédio controlado pra agressividade, pra pensar. E hoje você vê, eu vejo ele assim,
eu falo: nossa! Sabe. Ele passa com a psicopedagoga, ele está estudando numa escola da Prefeitura - coisa que, eu
achava que um dia fosse acontecer, mas muita gente olhando pra ele não acreditava.
Eu acho que é isso que eu falei pra você, de a gente conhecer mesmo as capacidades, de onde, o que que a
criança, onde ela consegue chegar, mostrar e conseguir mostrar, e conseguir tirar isso dela. Eu acho que isso é que
é o legal, o bom, de você ter essa oportunidade, quando você está no dia-a-dia, você tem a oportunidade de estar:
"olha, você pode cara! Você é inteligente sim!
Não deixa a vida fazer isso com você, é você quem vai guiar a sua vida!" E conseguir mostrar isso pra eles, e eles
conseguirem assimilar, e dizer: "pô, eu posso ser feliz! Eu vou mudar a minha história!" Isso é que é legal, que eu
posso passar isso pra eles.
E o Willian está num processo, ele está nesse processo de descobertas: "eu posso! Eu sou inteligente sim! Eu tenho
capacidade sim! eu tenho dificuldades em algumas coisas, mas tem outras que eu tenho mais facilidade, então eu
vou atrás dessas que eu tenho mais facilidade. Não vou deixar as dificuldades vencerem." E ele está assim, nesse
processo hoje, ele está aprendendo as palavras, está aprendendo as palavras... Quando, quase 4 anos atrás, eu
cheguei aqui, a psiquiatra falou pra mim, que ele passava por uma psiquiatra, e ela falou pra mim que ele nunca iria
conseguir aprender o nome dele, escrever o nome dele. Hoje ele escreve o nome dele.
Então, é uma vitória, pra caramba. Eu participei disso, eu estou junto. São coisas que, pra mim, isso é uma
realização; pra mim e pra ele ao mesmo tempo. É bem isso.
Hoje ele está com 12 anos e sabe, é um rapazinho muito legal, é uma pessoa que você olha, todo mundo gosta dele,
você vê no olhar dele que ele é feliz. É isso que apóia e completa, eu acho. Eu, no caso, a mãe social.
Essa é a história do Willian. Eu ainda tenho, vai ter muita história pra contar dele daqui pra frente.
Mas, ele deu uma melhorada muito grande. O Willian, ele está crescendo intelectualmente, ele está surpreendendo,
eu acho. Gosta de computador, gosta de consertar as coisas, brinquedos que ele mesmo quebra, ele vai lá e
concerta; quer dizer, essa é uma capacidade que ele tem. De repente, ele pode ser uma mecânico, né! E aí?! (risos)
A gente não sabe. Mas a gente trabalha pra isso, a gente trabalha pra mostra pra ele que ele pode, que ele vai.
E eu acredito mesmo que ele vai conseguir sim, se sustentar um dia, ele vai conseguir casar, vai conseguir, sabe, ter
uma família. É isso.
Está bom?
E - Está ótimo!
Você poderia falar um pouco mais de como você enxerga o seu trabalho nessa melhora do Willian? O que você acha
que ajudou?
L - Eu acho que foi uma junção de tudo. Eu acho que foi uma junção da instituição, eu acho que... Porque, na
verdade, a gente se uniu; pedagoga, psicóloga, a mãe, a psicopedagoga, então assim, a professora da escola, a
gente, nós fizemos uma junção pra estar ajudando ele, cada um fazendo um pouquinho. Porque, é aí que eu falo, o
clima familiar, isso ajuda muito, a segurança - isso, a parte minha, né -, ajudar nesse sentido, de harmonia, união,
respeito, de participação mesmo, de estar colocando: "olha, você pode!" Essa coisa toda: - "você é inteligente! Pára
com isso!" Pra eles saberem da capacidade real. Eu acho que tudo isso ajudou.
O meu marido, como pai, sabe. "Não, vamos cara, você consegue!" Eu acho que a família, o ambiente familiar nesse
caso ajudou muito. Eu acho que faz crescer intelectualmente.
Eu acho que eu tive uma participação nesse sentido, de estar buscando, de estar falando, de estar passando
informações, de estar, eu acho que ele pode isso... (ruído) Eu acho que ele tem capacidade, vamos testar, vamos
mostrar pra ele! Sabe, de acreditar mesmo que vai. Eu acho que é isso, você acreditar, eu acho que você não pode
desanimar nunca, nunca, nunca, nunca! Nesse trabalho você não pode desanimar nunca, eu acho que sempre tem
que acreditar e estar explorando as capacidades de cada um.
Eu acho que é isso. Eu acho que isso ajudou muito, auxiliou muito.
Eu falo: "eu sou feliz, hoje, assim." Eu acho que, na verdade, eu sempre fui feliz, sempre tive... (risos) Mas, hoje, eu
me sinto realizada, que é bem a minha cara mesmo.
É o que eu falei, eu acho que eu descobri que tenho o dom de ser mãe.
E é legal você ver, de repente assim, o retorno. Porque, quando a criança está feliz, a criança, ela vai bem na escola,
ela tem convivência com a sociedade melhor, ela consegue expressar aquilo, de expressar o que está sentindo de
uma maneira legal, ela consegue ter um respeito maior pelos outros; eu acho que tudo isso é consequência do que a
criança está passando, do que ela está vivendo, do que ela está sentindo. Você começa a ver as melhoras daí, e
isso é uma satisfação pessoal muito grande, você está vendo que o seu trabalho está fluindo, ele está indo.
E, de repente, no dia das mães aqui, passado - cada criança tem sua história aqui, e tem crianças que têm mães
biológicas, têm mães que deixaram um tempo de estar vindo e agora estão retornando, cada uma tem uma história,
tem crianças que não têm mãe mesmo, não têm família. No dia das mães - E, né? - vieram 8 presentes pra mim. E o
que foi engraçado, que eles ficam com dificuldade: "pô, tem a minha mãe, minha mãe vai vir me visitar, minha mãe
biológica, minha mãe biológica, mas eu não queria dar pra ela." Ou: "ai mãe, o que que você acha, dou pra minha
mãe biológica?". Eu falo, gente, olha cada um tem que fazer o que está no coração. Se você quer dar pra sua mãe,
dá pra sua mãe. "Ah, mas você não vai ficar chateada." "Não, não vou ficar chateada, pode ir lá e dar pra sua mãe."
Aí, ela, de repente, chega na escola: "olha, eu quero fazer dois desse aqui, porque eu tenho duas mães." (risos) Eles
falam essa coisas e é engraçado, porque a professora: "mas, como têm duas mães?" Porque, realmente, como eu
estou com eles 24 horas, os professores, tudo, só conhecem eu como mãe. Não sabem da história. Porque eles não
se sentem muito à vontade pra estar falando muito da história deles pra qualquer um. Eu acho também que isso não
tem nada a ver, ele estar falando, olha é isso, é aquilo. Se eles se sentem preparados pra estar comentando, tudo
bem, aí é uma coisa dele, se não, a gente respeita."Ah, mas a sua mãe não é a L?" Eles olham assim, ai, lá vem
outra história. (risos)
Mas, é engraçado isso, dessa coisa.
E é engraçado, porque, como eu tenho 9 crianças na mesma escola, então, são os mesmo presentes. Nove
presentes, tudo igualzinho, é... (risos) Os 9 presentes. (risos) E eu falo: "quê legal!"
Porque cada dia é um dia. Eu fico... tudo eu assim, mimo (?), tudo eu dou risada, ou eu vou e...
Assim, cada, tem 9 da mesma escola. Ontem veio um bilhete da escola, eu tenho que ler os 9. (risos) Os 9 bilhetes, a
mesma coisa: "ah, tá legal! Olha, a professora mandou esse bilhete!" (risos) Uma professora, eu já sei o que está
escrito alí.(risos) Mas, de repente, se eu não leio o de um: "mas, você não leu o meu bilhete."
E que são coisa que você vai aprendendo mesmo com a experiência.
Esses dias, eu estava brincando, e eu tenho mania, estava conversando com o meu marido e eu tenho mania de
escrever, escrever o que eu estou falando, ou alguma coisa que me chame a atenção, e eu comecei a escrever o
nome das crianças daqui, assim sem pensar, sem raciocinar, sem imaginar o que eu estava fazendo; daí eu peguei,
escrevi o nome deles todo, e escrevendo o nome de cada um, nisso veio a Efigênia, olhou todos os nomes dali, e a
minha sorte é que eu tinha escrito o delas também, porque ela procurou o nome dela e não achou, e ela falou: "mãe,
você não escreveu o meu nome aqui. Por que você escreveu o nome de todo mundo e não escreveu o meu?" Aí é
que eu fui me tocar, nossa, eu estou escrevendo o nome de todo mundo! Já me deu um frio na barriga, eu falei, pô
não escrevi o da Efigênia. E aí eu fui olhar e o nome dela estava lá. "Efigênia, o seu nome está aqui, você é que não
achou. " Aí ela olhou: "ah, é mesmo mãe."
A gente vai vendo nos pequenos detalhes a importância de você estar mesmo... Eu acho que eu iria me sentir muito
mal naquele dia se eu não estivesse escrito o nome da Efigênia.
São coisa que...
E - Porque seria um filho que não iria estar alí...
L - Talvez, na cabeça dela ela pense assim. Eu perguntei pra ela: "mas, se eu não tivesse escrito o seu nome não
teria problema, eu estou escrevendo aleatório, uma coisa que não está vindo." "Não, mãe, é porque todos aqui você
está escrevendo porque você está pensando neles, se eu não estivesse falando, você não estaria pensando em
mim." " Mas isso poderia estar acontecendo, de eu não estar pensando em você naquele momento; ou, de repente,
saber que você está bem, que você não tem necessidade de eu estar..." Não, mãe, mas você não precisa se
preocupar comigo, só lembrar de mim sempre."
São coisas que você, a gente (?), o pequeno detalhe, uma coisa que de repente pode fazer uma diferença muito
grande - nesse caso, faria. A Efigênia é sensível, uma pessoa muito amável, gosta das coisas muito certas, cobra
muito, de estar fazendo as coisas, de estar indo bem na escola, de arrumar uma mesa direito, de estar limpo
realmente, sabe. Ela é bem assim. Ela é exigente com ela mesma. E ela, nessa exigência com ela mesma, ela exige
dos outros; e exige da mãe, exige do pai, das crianças.
Alí eu percebi, conheci mais a Efigênia, uma coisa que eu não imaginava.
Pequenos detalhes que vem vindo no dia-a-dia que você vai aprendendo como lidar, e vai descobrindo a
personalidade mesmo, você vai descobrindo a capacidade da criança. Isso é o mais importante.
E - E já aconteceu, L, de quando você estava trabalhando, de uma criança ser desabrigada?
L - Já.
E - Já aconteceu?
L - Com o Gabriel. Ele tinha 2 anos quando ele foi desabrigado.
Eu tive que trabalhar isso em terapia, porque...
E - Você (?) (risos)
L - É, eu trato.
Porque o Gabriel, quando ele foi, parecia que eu estava entregando o meu filho mesmo. Foi como se... Também, eu
tinha 8 meses de trabalho, quando ele foi embora com a mãe dele, e parecia que eu estava entregando o meu filho
mesmo, eu me senti assim perdendo um pedaço de mim naquele dia. É muito triste. Porque, ao mesmo tempo que...
Depois, eu trabalhei isso em terapia, e aí a gente vai compreendendo melhor. Porque quando, compreendendo que o
melhor pra criança é realmente estar com a mãe, que aqui, de repente a criança pode ficar com a família biológica,
vai ter uma estrutura melhor, eu acho que o sangue fala também em alguns momentos, eu acho que (?), mas, nesse
caso de estar com a família.
Eu trabalhei isso em terapia porque eu não aceitava isso. Eu achava que eram todos meus filhos, era toda uma
família, que não poderia estar tirando - isso, dentro de mim, um conflito dentro de mim. E, hoje, eu estou mais calma
em relação a isso. Eu acho que é porque eu sei que eles vão estar bem com a família também. Eu acho que eu
consegui.
E - Deve ser difícil mesmo. Imagino como deve ter sido.
L - É complicado, é muito complicado.
Eu estou com duas crianças que, talvez, no final do ano vão embora com a mãe e eu já estou me preparando desde
já pra não sofrer tanto, pra não sentir um vazio. Eu aprendi muito quando o Gabriel foi embora, o Gabrielzinho foi
embora, essa perda, e eu trabalhei como lidar com essa perda dentro de mim.
Hoje eu já estou mais calma. No dia-a-dia eu já me policio, eu já...
No caso dessas duas que vão sair, eu já estou: 'calma, L, calma. Elas não são suas filhas, elas vão estar bem com a
mãe, com o pai, vão estar com a família. Você fez a sua parte, você fez o que você pode.' Tem que ficar com a
consciência tranquila, está tudo certo, a vida está seguindo o seu curso, e é bom que siga. É isso.
E - E como é que as crianças trazem no dia-a-dia a história delas, de vida? Como é que você percebe isso?
L - Porque a criança é mais fácil de você estar, a criança não mente, a criança é natural. Às vezes pega na parte
psicológica, às vezes você sente uma criança triste. Esses dias a Valéria chegou pra mim e falou: "mãe, eu queria
que você fosse a minha mãe de verdade." E ela tem lá. "Mãe, eu queria que você fosse minha mãe de verdade, eu
queria ter nascido da sua barriga, o que é que eu faço?"
E - E como, e o que é que você responde numa situação dessas? (risos)
L - De repente a criança pega você de saia justa. Gente, como pode, o que é que eu vou falar agora? Eu falei pra
ela: "eu acho que você já tem que agradecer pela sua vida, acho que você não nasceu de dentro de mim é porque
não era pra ser. Mas eu estou aqui, oh! É engraçado, né, eu estar aqui junto de você e não era pra você nascer de
dentro de mim. Olha que legal! Eu dei um jeito, de um jeito ou de outro, eu estou na sua vida. Não importa se você
nasceu de dentro de mim ou não. O que importa é que a gente está junto, que você pode contar comigo, e que eu
tenho você hoje, e que a gente está sendo feliz hoje, sabe. Eu aprendi muito com você e você aprendeu muito
comigo, mesmo." "Mas eu não ensino nada, eu sou criança." "Você é uma criança, mas você é uma criança
inteligente, você ensina eu a tirar, a mostrar esse meu lado criança também que eu tenho." E eu acho que isso é
saudável. Eu acho que... " Olha, que legal, mãe, eu não sabia. Quer dizer, então, que eu faço você ser criança?"
(risos) "Você me faz entender como é ser criança."
Apesar de que também eu sou uma criançona, gosto de dançar, gosto de pular, andar de bicicleta, brincar de futebol.
Eu acho que eu sou uma criançona também, mas não tanto quanto eles.
Daí eu falo: "Valéria, você é tão feliz! Você criança, você não tem responsabilidade nenhuma. Quando a gente
cresce, é ruim por isso, a gente fica com muita responsabilidade, a gente tem muita coisa pra fazer. Hoje mesmo, só
penso em brincar, brincar, brincar, e eu não posso parar e brincar, brincar, brincar. Eu tenho que lavar a roupa,
porque se eu não lavar a roupa, como é que você vai brincar, não dá pra você brincar pelada." (risos)
A gente vê como foi história deles, eles colocam nesse sentido. A gente vai mostrando que, olha aproveita as
oportunidades, vê o que em aí à sua frente. É legal, aqui você o seu armário, a sua parte - porque é tudo
separadinho -, você tem a sua cama, é sua a cama!
Ela tem a sua família. Ela me chama de mãe desde que ela chegou: "ah, minha mãe, minha mãe, minha mãe!" E é
engraçado, quando a gente vai visitar a mãe biológica, aí ela fala: "mãe, olha, a minha mãe falou..." (risos) A gente
fica meio assim. Mas eu já estou acostumada e a mãe dela também. E é tanto, porque, por exemplo, pra mãe dela
eu precisei provar, provar assim, mostrar pra mãe dela que eu queria ajudar. Porque muitas mães acham que a mãe
social quer pegar os filhos dela, entendeu. Eu cheguei várias vezes pra conversar com a própria mãe dela e falar: "eu
estou ajudando a sua filha pra quando você pegar ela. Pra mim é legal você pegar ela, você levar ela pra casa,
porque pra mim o importante é estar com a família, é estar com o pai, a mãe, uma família estruturada. Isso que é o
legal." Depois de um tempo a mãe dela começou a entender e, hoje, ela fala: "nossa, L, ainda bem que tem você."
E isso também é gratificante. Porque você vê que a mãe biológica está feliz por a criança estar com a mãe social, e
sabe que a criança está sendo bem tratada, sabe que a criança está feliz.
Essa mãe agora, o juiz está liberando pra ela estar levando as crianças no final de semana pra casa. Então, todo o
final de semana ela está levando as crianças pra casa. As crianças vão na sexta e voltam no domingo, à tarde. As
crianças vão comentando, eu fico imaginando, elas comentam daqui pra lá e de lá pra cá; aí a mãe fala: "ai, que bom
estar com você L. A Efigênia já tem você como uma mãe mesmo."
E sabia que é uma parceria. Porque a gente está ajudando também pra que vá, mas vá com uma formação melhor,
vá bem, pra própria mãe continuar o trabalho que a gente está fazendo.
E - Mas, às vezes, você sente que fica um conflito pra criança?
L - Pra criança? A gente trabalha isso?
E - E pra mãe?
L - Não. Hoje não. Hoje não tem, não existe mais. Como no caso dessa mãe. Mas existiu. Quer dizer, a gente tem
que também fazer um trabalho com relação a isso. Mostrar que a gente está ajudando mesmo, mostrar o papel que a
gente está fazendo, sendo bem transparente. E eu acho que é isso que ajudou no caso da mãe dessas meninas.
É o que eu falo, quer dizer, eu acho que é fruto de um trabalho. É a comunicação, é você estar pensando, é você
estar alí com a sua preocupação. Hoje ela fala: "ainda bem que tem você. Ainda bem que você é a mãe social das
crianças. Ainda bem que você está aqui. Ainda bem. Eu vou levar os meus filhos e eu sei que eles vão estar bem
quando eu levá-los."
Eu acho que isso também é uma realização, quando chega a mãe biológica de uma pessoa - eu estou falando no
caso, porque tem várias histórias, no caso da Efigênia e a Valéria.
E - Elas são irmãs?
L - São.
E - Ah, tá.
L - No caso dela, no caso da mãe.
Porque tem mães, é tudo mães diferentes. Eu tenho mães biológicas que são diferentes.
No caso da mãe da Efigênia e da Valéria, as meninas vieram pra cá porque ela tinha surtos psicológicos, ela saía,
não sabia onde ia, ficava perdida; ela não queria ir no médico, tinha que tomar remédio, e ela não tomava remédio,
tinha que estar fazendo terapia e ela não fazia. Muitas coisas ela não entendia, não se conformava das crianças
terem vindo pra uma instituição, ela não se conformava de o juiz ter tirado as crianças da guarda dela, não se
conformava, e não fazia nada pra melhorar essa situação. Simplesmente queria, queria e queria. "Não vou deixar
meus filhos aqui, não vou deixar." Eu achava que, na época, até isso mexeu um pouquinho também com ela, de ter
perdido as crianças. De, de repente, chegar a assistente social e falar, de estar fazendo um trabalho de: "olha, os
filho são seus. A gente precisa de uma família estabilizada pra criar essas crianças. Se você está sofrendo tanto
assim, vai e se cuida. Vai num psiquiatra, toma todos os remédios, faça as coisas direitinho, sempre passo a passo,
que eles vão voltar pra você. Ninguém está querendo tirar os seus filhos definitivo. A gente só está tirando por um
tempo pra estar ajudando eles e você, e ajudando a você também."
Isso é importante estar mostrando pra mãe biológica - no caso dessa mãe. Porque também tem outras que as
crianças vieram pra cá porque a mãe foi presa; então são completamente diferente os casos, cada história é uma
história.
No caso dela, de repente ela começou a fazer, passar no psicólogo, e ela começou a tomar os remédios direitinho,
como tinha que tomar; e, hoje, o psicólogo deu o parecer pra ela, que ela está boa, que ela está apta a cuidar dos
filhos dela, e que ela tem condições.
Isso também é uma vitória. Você vê isso, você vê a família se unindo de novo, você vê essa possibilidade de novo.
Mesmo eu sofrendo porque as meninas vão embora, eu sei que elas vão estar bem com a mãe, com o pai, que a
família, hoje, está mais estruturada, que, hoje, eles podem estar dando um pouquinho mais de carinho, de amor, de
consciência, aquela consciência de dever dos pais, da família em si. Elas vão, vai ficar um vazio muito grande, mas
elas vão ficar com a família delas. E eu vou estar sempre por perto, andei armando o meu esquema pra estar
conversando com as meninas, pra estar falando um oi de vez em quando, pra não perder esse contato.
O vínculo fica muito forte também. É uma coisa muito louca, essa coisa de (?). E tanto da parte deles como da
minha, da minha como da deles, eles estão, um exemplo, no Natal eles vão passar as férias na casa da mãe, e aí...
E - Todos?
L - Não todos.
E - Todos os que têm a mãe biológica?
L - É. Os que têm a mãe biológica e os que o juiz liberou pra estar passando as férias. Daí eles ligam e falam: "eu
estou com saudade, mãe!" Quer dizer, está do lado dos pais e está falando: "ai estou com saudades! Eu estou bem,
estou no parque agora. Eu pedi pra minha mãe pra ela ligar pra você."
No Natal, a mãe, a própria mãe biológica liga e fala: "as crianças estão querendo falar com você." Feliz Natal, e tal,
Feliz Ano Novo! Eu acho que tudo isso é uma coisa bem legal.
No Natal do ano passado eu estava um pouco chateada, dia 24, porque a casa estava vazia, e eu não estou
acostumada com casa vazia, sempre foi aquela bagunça, criança correndo, criança brincando, e a televisão e o
rádio, aquela coisa, de repente, foram 6 crianças passar as férias, o Natal e Ano Novo na casa da mãe, e eu andava
nessa casa e falava, gente como pode a casa vazia. Aí, de repente, me ligou os meninos, começaram a me ligar:
"oh, tia, olha, eu quero te desejar um Feliz Natal pra você. Olha, a gente está bem aqui, eu só queria falar pra você
que a gente está bem." Uma coisa que eu não lembrei de pedir, quando foram eu não pedi pra ligar, mas ligaram e
isso que é a alegria, e eu falei: "nossa, que bom, que bom!! E isso já vale, só falar um pouquinho, você já tira essa
coisa de dentro do coração. É bem forte.
E - Imagino que deve ser. (risos)
L - Eu acho que tudo isso são experiências muito grandes na vida. É por isso que eu falo, depois que eu vim pra cá,
quando (?), de estar mais próximo, mais perto, isso faz mudar até a própria vida da mãe social mesmo. A mãe social
passa a se conhecer mais também. Quando você está mostrando pra alguém a capacidade que ele tem, você está
pensando, caramba, eu também tenho, sabe. Isso daí é uma troca, é recíproco. De repente, você aprende a se
conhecer melhor, a... Eu não sabia, antes de vir pra cá, que eu tinha tanta paciência, eu não sabia. Hoje eu olho
assim e nossa! Eu vindo pra cá, eu também me descobri. Eu tenho paciência; gente do céu!
Às vezes, eu, está aquele monte de criança tudo gritando, brincando, aquela coisa, eu olho e, vamos arrumar uma
brincadeira pra, com menos bagunça: "ai, eu estou com um pouquinho de dor de cabeça." Eles falam assim: "vamos
ajudar a mãe, vamos falar mais baixo, vamos falar mais baixo." Assim, de você saber como chegar. Eu não sabia
que eu era assim, eu não sabia que eu tinha essa paciência, que eu tinha essa capacidade.
E eu falo pra eles até mesmo a minha história, de eu não saber que eu era assim, então, a gente não se conhece, e
eu mostro pra eles a experiência que eu tive, de eu não sabia e vocês também podem não saber. De repente a gente
pode explorar outras coisas juntos. Você é um desenhista e você não sabe? E até eu aprendi isso quando eu vim pra
cá. Eu cresci muito também como pessoa.
É o que eu falo, hoje, eu me sinto realizada. Porque hoje eu me conheço melhor, eu sei das minhas capacidades, eu
sei o que eu quero. E isso já tem o que? Quatro anos. Antes eu sabia também, mas eu não tinha essa certeza.
E - Então, você enxerga também uma marca de na sua história também?
L - Também!
E - Bastante. Você estava me contando que você consegue neles também o jeito como o seu trabalho ajuda eles -
quando você estava contando do Willian também... E é legal porque também tem o outro movimento, eles deixam as
marcas deles em você também.
L - Todos. É incrível.
É o que eu falo, duvido! Cria-se mesmo, não tem como. E é uma marca mesmo, isso aqui é experiência pro resto da
vida. Eu acho que tanto na vida deles como na minha. Eu tenho 2 filhos biológicos aqui, e você olha assim, você não
sabe quem são os meus filhos. Você cria uma, uma, tão junto, fica tão junto que você mesma não sabe. Chega uma
hora que nem eu sei. (risos) É muito louco. Só você vivendo mesmo.
Igual, o pessoal fala assim - eu sou casada há 13 anos -, e aí o pessoal fala que você tem que viver o casamento pra
você saber como é; e aqui é a mesma coisa, você tem que viver, estar aqui pra você saber como é...
LADO B
continua L - ... no dia-a-dia mesmo para você saber, como é que funciona, como mexe mesmo, uma coisa de estar
mesmo no dia-a-dia, é uma coisa muito interessante. É uma experiência única, ótima!
Quando chega - tem o coral, que eles fazem parte, música e tal -, gente, e eu tenho aqui 8 crianças que participam
desse coral.
E - Nossa! Bastante, né.
L - É maravilhoso o coral! Você vê, lá, eu fico toda vez... Lá, vai ter uma missa agora, em junho, e eles vão
comparecer, as crianças vão cantar. E você olha assim, crianças cantando, com aquela... É muito emocionante! É
uma coisa indescritível. Eu fico olhando, gente, como pode. E, depois, bater palma, sabe. Lindo! Eu sou bem assim:
"Ehhh!!". Eles olham de lá - ainda bem que estão acostumados com o meu jeito. (risos)
Mas é mesmo. De repente você olhar, assim, e ver isso, e ver a satisfação deles quando você fala: "que lindo! Estava
legal!" Eles vêem. Porque criança não é boba. Eles vêem nos seus olhos a felicidade que você está sentindo, o que
você está sentindo alí na hora, e eles retribuem automaticamente. É uma coisa incrível esse negócio, essa vida, a
vida em si. E retribuem: "Valeu!" E eles: "que bom!" E eles tentam melhorar a cada passo, a cada novo ensaio,
aquela coisa de vou melhorar. É maravilhoso!
Tem o Gabriel aqui, de 6 anos, e ele ficava, porque tem a professora quando eles estão cantando, e aí fica assim, e
o Gabriel estava com o prato na mãe e ele ficava assim... (gesto) ...olhando pra professora, olhava, e quando a
professora fazia: "tum!" Ele "tum" com a professora. Muito engraçado.
Quer dizer, são coisas que você, é único isso, não tem como você descrever. Eu acho que é isso.
Eu acho que essas coisas simples fazem com que você cresça mais e faz com que você se realize. Eu acho isso. É
muito bom, muito bom!
É claro que, às vezes, a desobediência. Ontem mesmo... Na semana passa um frio, um frio, um frio; e eu tenho dois
aqui que são viciados em futebol. Começaram a ficar, a Efigênia ficou gripada, Valéria ficou gripada, Gabriel ficou
gripado; e aí, eles chegam em casa às 5h 30 (17h 30), e estava um frio do caramba.... será que eu posso...
E - Imagina. Pode falar. (risos)
L - Eu falei com eles: "olha, gente, vocês estão ficando gripados, porque fica pegando esse vento, vai brincar alí fora.
Não é legal."
Geralmente eu dou o jantar aqui às 7 horas (19h), depois de 7h, eles vão, tomam um banho e vão assistir TV. Mas,
até então, eles ficam brincando. Eu falei: "enquanto estiver esse frio, eu não quero vocês brincando lá fora." De
repente, eu olho lá, estão o Lucas e o Edivaldo, estavam brincando lá fora; uma garotinha e eu alí, sabe: "gente do
céu, mas eu não falei pra vocês. A Valéria doente, tomando remédio, vocês querem ficar desse jeito?" "Ah, mãe,
deixa eu brincar lá, mãe." Sabe, assim, e eu: "não vai brincar." Daqui a pouco, eles foram de novo, no outro dia. Eles
entraram nesse dia, tudo bem, quando é no outro dia foram de novo, esqueceram, foram de novo. Eu falei: "ah, é,
vocês estão de castigo, pode sentar aqui, ficar pertinho de mim, eu sei que vocês me amam mesmo." E faz bico e....
"eu sei que vocês me amam, pode ficar aqui comigo, me olha enquanto estou fazendo janta."
E, isso, pra eles já é um castigo. "pô, a mãe fez isso, a mãe colocou eu pra ficar lá perto, olha..." Aí passa um e fala:
"você está de castigo, você aprontou." Eles ficam loucos. "Vocês poderiam ter se livrado dessa" - eu falo pra eles.
(risos) "Ah, mãe, não é legal." "Eu sei que não é legal, é por isso que vocês estão ai. Da próxima vez que eu falar,
ouçam o que eu estou falando, porque eu estou falando por vocês, pra vocês, eu estou protegendo vocês mesmo.
"Tá bom." Daqui a pouco passa, assim, uns 10, 20 minutos, aí eu olho e falo: "e aí, conseguiu colocar na cabeça?"
"Consegui. Você vai deixar eu brincar?" "Não, brincar não. Assistir TV." "Não, não é lá fora não mãe. Agora a gente
vai brincar aqui dentro." (risos)
Essas coisas é que você olha, é engraçado depois que passa. Na hora eu fiquei até um pouco irritada, na hora em
que eu vi lá fora de novo, um vento do caramba.
Viciados. Eles são viciados em futebol.
E - É legal porque tem um limite também. A regra.
L - Limite. Regras. É uma família e toda família tem a sua regra. Toda família tem que impor limites. E criança pede
limites - não, não pode. Até porque a gente está criando eles pro mundo, e o mundo tem limites. Eu acho que tem
isso.
Quando eu falei que a instituição é uma ótima instituição, é também esta questão de estar colocando limite, de ser
mãe, de estar educando mesmo. 'Olha, é falta de respeito isso, cara, não é legal. Pensa bem." Eu coloco eles num
lugar, eu falo: "se coloca no lugar dela, e se fosse com você que tivesse acontecido isso, o que é que você faria?"
Eles olham assim... É difícil se colocar no lugar do outro, mas tenta, quem sabe você consegue. É muito isso. Vou
sempre mostrando, senta aqui. Eles não gostam quando eles vão lá, sentados comigo, alí, porque eu vou falando,
conversando, explico: "sabe por que é que você está aí? E aí, o que é que você acha disso?"
Outra coisa que eu faço também é: você acha que eu estou errada? Eu falo pra eles: "você acha que eu estou
errada? Então me convença de que eu estou errada. Se vocês conseguirem me convencer eu mudo de idéia. Eu
prometo." É engraçado, porque eles tentam me convencer.
E - Eles se esforçam ao máximo. (risos)
L - E às vezes conseguem.
"Eu acho que eu mereço isso por causa disso, disso e disso. Eu estou indo bem na escola, tudo bem que eu dei uma
falha..."
Aqui, eu bato muito na tecla da escola. Pode até errar em outras coisas. Eu vou, e falo, essa coisa toda. Mas a
escola eu acho que tem que ter, porque o futuro deles é a escola; eles aprenderem e tal. Então, eu bato muito nessa
tecla. Eles sabem disso. Eles sabem que o mais importante, pra mim, é que eles vão bem na escola. Tenha respeito,
tenha nota, tudo, tudo, tudo. "Tudo bem, eu falhei aqui, eu deixei a minha blusa jogada alí, isso não é legal, mas eu
estou indo bem na escola, a professora não tem reclamação."
E - Eles tentam compensar de outro lado. " Tudo bem fazer isso..." (risos)
L - Está certo. Mas, pô, será que você não consegue também colocar a sua blusa no lugar?
"Tem 11, só criança, já pensou se cada um deixa uma blusa num lugar, jogada. Não dá. A gente só vai viver pisando
em blusa, pisando nas coisas aqui. Eu acho que tudo tem que ter uma organização, uma coisa, legal. "Vamos fazer o
seguinte, pega a sua blusa, guarda no lugar; veja seu armário, se está arrumadinho, bonitinho. Isso é pra você. Olha
que legal!" Aí eles olham: "não convenci, não deu." (risos)
Mas é bem engraçado, é bem legal. Eu acho que é isso que vale. É a família isso.
Tem umas 3, tem 3 de 10 anos - você imagina, 10 anos, já estão ficando tudo mocinha -, e aí eu falo... Estão ficando
mocinhas, não querem mais que a gente entra no banheiro junto, aquela coisa. Daí eu falo: "eu sou sua mãe, pô, eu
tenho direito. Eu sou mãe." Ela fala, elas falam: "mas, mãe, quando você vai tomar banho a gente não entra no
banheiro pra ver você." Porque, às vezes, eu quero entrar no banheiro pra pegar uma escova, e não abrem. "Eu
estou tomando banho, eu já saio." Às vezes eu quero alguma coisa mais rápido, aí elas falam: "oh, mãe, mas quando
você está tomando banho a gente não entra no banheiro pra ver você." "Não entra porque não quer." "Ah, então
pode?" "Não, vamos deixar o jeito em que está." (risos) Elas me convencem, tudo bem eu vou esperar. Tá bom. Elas
me colocam e daí eu coloco elas , eu acho isso engraçado. "Mas, olha, nunca vão esquecer que a responsável aqui
sou eu. Soou eu e seu pai. Tudo bem, você está me convencendo, está certo, está legal, mas a responsável..." E
elas "tá bom, tá bom." Eles tentam me ganhar no papo. Isso que é legal, eu tento ganhar eles no papo e eles tentam
me ganhar no papo também.
E - No fim, isso... Tem coisas que são bastante gostosas desse trabalho, bem...
L - Nossa! Com certeza. Até mesmo com os adolescentes, porque adolescente que é mais complicado de você
chegar e falar, que já vem aquela coisa de eu quero sair, eu quero isso, eu quero, eu acho que eu tenho direito. Eu,
ah, você tem mesmo, você tem os seus direitos, mas liberdade a gente conquista, a gente não vende, a gente não
compra, a gente conquista. Você acha que você tem idade e responsabilidade pra estar fazendo isso, então me
prova que você tem responsabilidade pra estar fazendo isso. Eu vou me sentir muito feliz em te dar essa liberdade
que você está querendo. "Você pega pesado." (risos)
E - Eles falam? (risos)
L - "Você pega pesado. Não vale isso." (risos)
Eu bato na mesma, mesmo com os adolescentes, a escola. Principalmente com os adolescentes. A escola, a escola,
a escola. "E aí, será que você merece mesmo sair? Qual foi a nota que você tirou em geografia no bimestre
passado? Você conseguiu recuperar?" Já vem - as duas, que tiram notas boas na escola -, já vem: "olha aqui tia,
olha aqui tia a minha nota." Eu falo: "legal. Eu estou com responsabilidade. Eu posso ir numa festa alí?" 'Claro, você
está bem, tem que ser divertir mesmo." Eu acho que adolescente é isso, adolescente está se descobrindo, está
conhecendo o mundo, aquela coisa de, eu acho que tem mesmo que sair, se divertir, mas eu acho que tem que
merecer.
Eu acho que qualquer mãe, com qualquer filho, sendo biológica ou não, vai querer saber onde o filho está. "Oh, tia,
hoje eu vou numa festa." Onde é esta festa? Com quem você vai nesta festa?
Mesmo, independente de ser daqui ou não, eu sou uma pessoa que me preocupo muito. Quê horas que você vai
voltar? Você pode voltar até 11 horas da noite?. Vai estar se divertindo mesmo? Você vai nessa festa pra se divertir?
Saber as pessoas que estão na festa, eu procuro saber tudo. É o que eu falo, tem que se divertir sim, mas tem que
se divertir com responsabilidade, você tem saber o que você está fazendo de fato. "Vai tia, vai, vai, eu vou com a
mãe de uma amiga." "Me dá o telefone da mãe da amiga, só pra eu ter certeza."
Às vezes o adolescente fala, eu não dou criança. Eu falo, imagina, isso é uma preocupação pessoal mesmo, não é
que eu estou... (risos)
E - Não tem nada a ver com você, né.
L - É só pra saber. É só pra ter certeza de que você vai voltar inteira, vai voltar bem, realizada, feliz, é só pra isso.
Imagina que eu estou pegando no seu pé. Eu estou até soltando, eu estou até deixando você ir, olha que legal.
É assim mesmo. Eu acho que é uma família mesmo, eu acho que não tem o que por e nem o que tirar.
E - E a história da vida deles, como você acha que interfere no seu trabalho? Você acha que interfere de alguma
forma? No lugar, no papel de mãe social deles?
L - Aqui também eu sou realista com eles. Cada um conhece a sua história, cada um, eu acho que tem que ser
assim, cada um sabe o por quê de estar aqui, cada um... Isso, cada um sabe porque está aqui. Se eles vêm
perguntar, eu respondo. Eu também, no caso, não gosto de mentira. Nossa! É muito feio isso. Mentira, mentira, não
é legal de forma nenhuma. Eu me preocupo também com isso, eles não, às vezes você omite alguma coisa, eu me
preocupo muito com isso mesmo, em omitir, porque eu acho que eu estou dando o exemplo pra eles; então, se eu
fizer, eles vão se achar no direito de fazer também. Eu me corrijo sempre, todo dia, pra estar passando pra eles uma
imagem, uma pessoa de, uma pessoa passando isso pra eles, pra eles poderem retribuir também. Eu acho que é
muito isso. Eu acho que como eu passo isso, eu sou muito realista, eu sou muito de conversar -já percebeu, eu falo
pra caramba, né... (risos)
E - Mas eu estou adorando. (risos)
L - Tô vendo...
Como eu sou muito de conversar, a gente vai, aí é que, olha, você viveu isso mesmo, e daí a gente tem como
amenizar isso. Isso daí é parte da sua história, não vai ter como apagar isso, tirar da mente aquela coisa, mas você
vai poder mudar isso se você quiser.
Eu já fico passando essa responsabilidade pra eles desde pequenos. Você pode mudar isso, a sua vida, hoje não,
hoje você está sendo cuidado porque você é criança, mas vai chegar um dia que a sua vida vai depender, única e
exclusivamente, de você. Daí você vai fazer o que você quiser. Você vai poder mudar a sua história, você vai poder
ter os seus filhos, casar, formar uma família, e você vai fazer a sua família do jeito que você quiser. Olha que legal!
Eu acho que isso vai, eu vou mostrando pra eles que eles têm condição, ou de repente você não quer casar, você
quer estudar muito, você quer, ganhar dinheiro, você não quer ser pobre. Pô, vai filho, corre atrás. Eu acho que tudo
o que você quer de verdade você consegue. Mas tudo é com luta, tudo é com determinação, você tem que estar
indo. Você não vai ultrapassar, você não vai pular etapas, você tem, cada fase tem a sua fase, então você tem que
fazer as coisas direito desde hoje, pra quando você chegar lá em cima, você olhar pra trás e falar, olha, eu tive essa
vida, mas eu mudei a minha vida porque eu quis mudar. Eu fui atrás, eu fiz isso pra mim e hoje eu consegui. É aí que
vai a parte da confiança, da capacidade que você vai mostrando: olha, você pode, se você quiser, você pode. Porque
não é só você dar responsabilidade, você tem que mostrar que pode, mostra que é capaz. Mostrar.
Isso é um aprendizado diário. É uma sementinha que você vai colocando hoje, você vai colocando, e de repente,
amanhã ou depois, você vê o resultado. Eu falo pra eles: "mesmo se vocês forem, um dia, se vocês forem com a
mãe de vocês, mais cedo ou mais tarde, eu fiz parte da vida de vocês também. Cada um cada fez parte da minha
vida, da minha história." Eu mostro pra eles que eu também sou um ser humano, igual a eles, mas com
responsabilidade, que eu sou responsável por eles, mas que eu também tenho os meus sentimentos, eu também
sofro quando a mãe sofre, eu também tenho as minhas aflições. Então, eu não sou diferente. Não é porque eu sou
mãe que eu sou a super star. Eu falo: gente, eu não sou super star, eu não sou assim, eu não sou estrela. "Ah, você
pode fazer..." Não, eu não posso fazer, eu ainda, com 36 anos, eu tenho limites na minha vida, porque senão eu vou
ferir alguém, magoar alguém, ou mesmo eu, que seja. A vida inteira tem isso. A sociedade impõe limites, o mundo
impõe limites. Então não tem como. Eu não faço o que eu quero, hoje. Porque seu quiser sair pelada no meio da
rua, o pessoal vai me prender porque eu sou louca. Eu falo isso. (risos)
É mesmo. Eu falo isso. Às vezes pros adolescentes, às vezes ela fala assim: "ah, um dia eu vou poder fazer tudo o
que eu quero." Eu falo: "engraçado, se um dia você fizer isso, então, por favor, me dê a receita, porque eu não posso
fazer o que eu quero." "Você não pode por que?" Porque eu tenho que dar satisfações pro meu marido, eu tenho
que, quer dizer, a gente vai guiando a vida do jeito que a gente acha que é legal. Mas não é assim, pensou? Eles
olham assim: "ai tia, viu!"
Eu tento mostra isso pra eles no dia-a-dia, e tento não deixar - aí é que está o psicológico, porque tem coisas que
marcam mesmo, não tem jeito. Tem histórias que marcam mesmo, não tem jeito. O que eu tento fazer é amenizar
essas histórias, mostrando que eles podem mudar a história deles. Eu acho legal isso. Uma coisa minha, porque eu
mudei a minha história.
Eu conto os meus problemas pra eles também. Eu também tive uma família complicada, eu também sofri pra
caramba. Então, eu acho que mostrando a minha história também, muitas, muitas delas, e eu estou aqui, eu estou
feliz, eu guiei a minha vida pra onde eu queria que fosse. Hoje eu estou aqui com vocês por que? Porque eu quero.
Porque eu estou feliz.
Então, são exemplos também.
E - Muito bom, L. Adorei a entrevista.
L - Que bom.
E - Tem alguma coisa que você gostaria de...?
L - Nossa! Depois de tudo o que eu falei? (risos)
E - Pra mim foi ótimo. Mas, alguma coisa que você queria falar, acrescentar? Alguma coisa que eu não perguntei,
que você acha importante a gente falar?
L - Eu acho que não, né.
E - Foi bastante. (risos)
L - Eu te falei tudo. Falei (?) todinho pra você.
E - Foi ótimo, me ajudou muito. Muito obrigada.
L - Que bom. Que bom.
....
E - Só pra aproveitar mais um pouquinho.
L - E aquilo pra você é um desafio, você está vendo a criança, porque às vezes a história dela te pega tanto, de
repente vem uma pessoinha pequena, totalmente desestruturada, que você vai formar, que você vai ajudar a criança
a se estruturar de novo, você vai formando ela de novo. De repente, você olha assim, você consegue ou meio que
você consegue; quer dizer, cada passo que você vai dando, cada vitória que a criança vai tento, é uma vitória sua.
Isso dá uma satisfação muito grande.
Se você quisesse, melhor, se eu pudesse também, eu te contaria histórias até amanhã, sabe.
E - Tem muita coisa.
L - É muita coisa. É muita experiência. Muito, muito. Histórias maravilhosas, história que você, caramba, de repente
você olha assim, chocantes, que é uma vida que está começando de novo alí, quando vem pra cá. É uma
reconstrução. Você, educar é difícil, reeducar é mais, é um pouquinho mais difícil ainda. Você mexer com a cabeça
de, aquele negócio que eu falei, de você estar tentando entender onde está, o que você pode fazer, qual é o seu
melhor caminho pra você chegar até alí. É fascinante! É muito... E, de repente, você conseguir, você ver que está
dando resultado, é maravilhoso.
Educadora social Sueli E: Entrevistadora S: Sueli E – Desde de quando você trabalha em abrigo como educadora social?
S – Desde 1991. Eu iniciei no abrigo que chamava abrigão.
E – Abrigão?
S – É assim, quando a gente iniciou, a secretaria iniciava e ai tava abrindo os abrigos e ficava na Mooca então era
um abrigo grande com cento e poucas crianças, unidade mista, então foi ali que eu iniciei o trabalho cheguei de para
quedas fechado e cai ali ne. Eu vinha de uma área totalmente oposta.
E – de que área você vinha?
S – eu trabalhava em empresa de metalúrgica né? Trabalhava em uma multinacional aconteceram uns problemas e
eu acabei saindo e entrei na área social ne? Coisa casual e foi assim.
E – E esse abrigo é bem diferente desse outro né?
S – É muito diferente porque era o inicio, era bem no inicio dos abrigos. Então era assim, coisa que quem tava
entrando não tinha experiência nenhuma. Então tinha uma equipe de coordenação e alguns abrigos e era uma
unidade mista que tava vindo de situação de Febem ne? Então era complicado. (interrupção)
E – E o que que você achava de diferente do seu trabalho nas duas unidades, que são bem diferentes não é?
S – Como assim?
E - Da quantidade de crianças, do trabalho que era proposto?
S – Você fala no inicio?
E – É quando você trabalhava no outro abrigo
S – Era diferente porque era o inicio, então assim, a gente vinha totalmente cru, e as crianças naquela época não
tinham referência, então o que que acontecia, pegava meninos de ruas, drogados, abandonados então era meio
assim que não vamos usar o termo mas era... era meio assim meio lixão. Uma coisa assim que constrangia agente
quanto estava iniciando porque era apavorante ne você tava lidando ali com gente mas a situação que chagava pra
gente era muito difícil. então era complicado porque era um numero grande de educador também todo mundo se
atropelando a gente queria acertar, as vezes não dava, voltava, então tinha isso, uma dificuldade que com o passar
do tempo a gente foi conhecendo melhor o trabalho assim mesmo né? E se adaptando porque no meu caso era uma
questão de ficar ou ficar né? Tinha que encarar aquilo ali de frente porque eu tava saindo de uma empresa da qual
eu tinha saído, tinha pedido demissão e eu tava caindo ali e eu tinha um monte de compromisso e eu tinha então foi
legal que deu pra eu ir descobrindo que eu dava pro trabalho, e foi assim.
E - O que você acha que é esse seu “dar para o trabalho”, esse seu dom?
S – Eu acho que é uma questão de dedicação, primeiramente eu acho que tem que existir amor, se você não tiver
amor assim sabe pra oferecer pra lidar com a situação você se afoga, é estressante, é dolorido, a cima de qualquer
coisa é dolorido, porque são muitos problemas e que você tem que ta...eu acho assim que... não sei se preparada
mas pelo menos você tem que ta assim como que fala tem que estar disposto né? ceder algumas coisas, brigar por
algumas coisas, então é isso?
E – Por que, são histórias muito difíceis, S?
S – São historias difíceis, né? E ao mesmo tempo muito complicado, muito abandono, muita revolta e isso é uma
coisa que se mistura né? Mistura e você acaba meio que... ou você se deparada com aquilo ali que começa trabalhar
você e todo o trabalha ou então você foge. a gente teve, eu tive casos de companheiro de trabalho de equipe que
chutou mesmo literalmente, teve que sair teve, que se afastar, teve gente que pediu demissão, enfim a gente foi...e ai
foi o tempo foi passando e eu ainda me encontro aqui.
E – E você acha então que é um trabalho que nesse sentido interfere bastante na sua vida?
S – Não. Não interfere, eu tento lidar da melhor maneira possível. Sou casada há vinte e poucos anos, tenho 2 filhos,
na época eu já tinha um, tive uma filha, no período que eu trabalhava lá, fiquei grávida no período que eu trabalhava
lá então, não interfere na minha vida não. E é gostoso porque você aprende muito né? E isso dá um respaldo pra
você também ter tua vida lá fora, muitas coisas que você não valorizava você passa a valorizar muitas das coisas
que você não conseguia encarar você acaba encarando de uma maneira mais leve, menos sofrida. Então a mim não
interfere, né?
E- De certa forma marca sua vida, mas não modifica assim...
S – Marca, não tem como não marcar. Né, não tem como não marcar assim, seria meio que hipócrita falar isso do
passado, (telefone toca) isso não acontece (interrupção)...Que que a gente tava falando mesmo?
E - A gente tava falando um pouco de como marca sua vida pessoal.
S – É não tem como não marcar, não há assim uma forma mágica, apertei o botão aqui fui embora, não, claro, eu
procuro não trazer a minha vida pra cá, o que também é meio impossível e também não levar, mas não tem como,
não se mistura enfim não se mistura, mas não tem como você realmente isolar. Isso não acontece.
E – E qual que você acha assim que é sua principal motivação e interesse no trabalho de educadora?
S – Eu acho que eu gosto, como eu já te falei. Se não gostar, não tiver uma afinidade você vai embora, porque é
difícil e assim, não tem muito retorno. Não há uma... por exemplo, não aparece, o que a gente faz não aparece, é um
ou outro que reconhece, isso desde de o local onde você trabalha até mesmo na sociedade, isso não aparece, então
assim, se a gente fosse fazer uma coisa para aparecer, seria frustrante, então você faz, por exemplo, no meu caso,
eu sinto gratificação no trabalho, eu venho aqui, como trabalhei em outros abrigos, numa boa, encaro meu dia de
trabalho numa boa, é claro que tem momentos que você fica né sufocada mas, quanto a isso não... (interrupção)
E – E qual assim que você acha que são as suas maiores facilidades e dificuldades no trabalho como educadora?
S – Acho que facilidade é pouco. É bem pouco, seria bem uma coisa assim meio que né...a facilidade...acho que é
assim, o tempo fez com que eu me... tivesse uma coisa assim mais... uma experiência que é difícil mas tem momento
que você acaba meio que dando uns toques e vai, então há dificuldades sim, isso é normal. Independente do tempo,
é difícil porque cada dia você tem uma experiência nova então, não é uma coisa que você tem ai um...vamos ler,
vamos reler e vamos fazer, não, nós lidamos com humanos com pessoas, com gente e com muitos problemas, então
isso é uma dificuldade que cabe a cada um de nós, no dia a dia procurar sair né bem ou... então eu não acho que é
fácil não. É difícil mesmo, e a dificuldade eu acho assim, que o que pega mesmo é quando tem um, por exemplo,
como é uma área que é rotativa né, entra sai criança, aqui não muito, porque é uma abrigo assim, mas é uma das
coisas mais difíceis, a mudança em si, ne? A adaptação pra gente, pra quem chega né?
E – Para as crianças que chegam?
S – É, acho que a maior parte é essa.
E - A adaptação deles aqui na casa?
S – Sim, é o momento mais difícil, porque requer ne muito da gente. Que mais?
E – E eles trazem as historias deles junto com eles né?
S – Sim, não tem como apagar né? É super complicado, você querer apagar e vem né? E ai o que acontece? Aquela
coisa, eles começam a se misturar, as historias se misturam, os problemas aparecem. Então tem isso, os conflitos
que você tem que administrar no decorrer do dia, do tempo, e ai vai, é isso.
E – E agora eu queria pedir pra você me contar um pouco sobre uma criança especifica, de uma criança...
S – Você diz do momento? Ou não?
E – É um pouco sobre ela, eu vou te fazer umas perguntas no geral
S – Você fala criança do momento, por exemplo, especifica desse abrigo?
E – É. Alguma criança que está aqui abrigada agora, e não sei, só pra a gente focar em uma criança.
S – Se a gente fosse falar vários, teriam vários exemplos, mas é assim...você fala no sentido do que? Do que tem
mais apego, do que dá mais trabalho?
E - Não sei, você que pode escolher o critério. A gente pode então fazer de duas, uma que você tenha uma
proximidade maior e uma que você acha que te dá mais trabalho.
S – Quanto a questão da proximidade eu tenho essa facilidade né, de me aproximar, é muito raro eu não ter um
contato legal com ne...sempre tem um mais é muito difícil, então assim aqui não, eu acho assim que com relação a
proximidade tem umas que você, por exemplo, eu tenho a Ana, que quando eu entrei aqui, ela entrou então, ela
ainda ta aqui no momento, aquela que eu te falei, então ela entrou ela era assim, agitadinha, não aceitava muito o
que a gente falava, as vezes sumia, você procurava ela tava dormindo com o dedo na boca, então era uma coisa que
me chamava atenção ne? Então assim, e fico, ficou ne ai, então como aqui a gente tem questão da pasta individual
que cada educador é quem, quem cuida no caso, ou alguma coisa assim, então a gente acaba relatando todas as
situações, todos os fatos daquela historia. Então ela é uma criança que é bem, é ativa, já tem um desenvolvimento
super bom com relação a aprendizagem, entendeu, com essa coisa de...ela gosta de fazer cambalhota, como ela
fala, então é bem ágil, e ela pega as coisas, então é uma criança que eu tenho muita afinidade, que tem um pouco
de mim ne? A questão da agressividade, de às vezes bater o pé com algumas coisas. Então eu fui isso (risos), então
tem uma afinidade maior assim que quando ela tá às vezes eu chamo, então eu puxo um pouco né? Assim a gente
se identifica. E com relação assim a problema, por exemplo, tem o Eudi.
E – Vamos falar um pouquinho mais dela. Qual que é a historia de vida dela?
S – Da Ana. Então a Ana é o seguinte, a Ana até onde eu sei a mãe morava aqui no João XXIII, era uma família
constituída acho que por 5 ou 6 filhos, que teve problemas com drogas ou alguma coisa, uma das irmãs foi pra
Febem a outra saiu pra rua, então era uma família bem difícil. E veio a irmã mais velha a Suelen, que ficou aqui com
a gente, então era uma menina adolescente explosiva mas de um bom coração ne, ela era agitada e tal, hoje ela não
se encontra mais com agente, ela tinha uma coisa de unir a família. E a Ana vivia num outro abrigo acho que era aqui
em Osasco e ela queria porque queria e ela lutou até conseguir trazer a irmã pra cá. Então foi assim uma coisa assim
né...aquela coisa de garra mesmo, mesmo com as dificuldades dela. A Ana chegou de cantinho assim ainda,
cabelinho bem curto, meio que raspado parece com homem ne e vinha (???) com você parecia um bichinho, num
queria...se isolava de você, e como eu fiquei com a pasta dela eu começava a bisbilhotar ne querer saber alguma
coisa, e ela sempre saia que nem um peixinho, escorregava ne. E como...é aquela coisa que agente conquista no dia
a dia, vem aqui, vamos e assim, eu tenho uma coisa de mexer com... vamos cortar a unha, vamos lavar o cabelo,
então ela... quando chegou quase não tinha cabelo, tinha umas feridinhas tal então ficava aquela coisa do cuidado e
então hoje eu vejo a Ana cresceu, já se cuida melhor, não gostava de tomar banho, não gostava. Ela tinha uma, essa
parte ai você pula porque eu sempre gostei de tomar banho (banho) a gente tem afinidade mas eu gosto de tomar
banho. Ela tinha umas assaduras debaixo do braço, que era questão de higiene mesmo ne? Então ela, foi através
disso né, eu acho que conquistei na questão do cuidado mesmo ne? De estar junto ali, vem aqui, olha aqui, passa
uma pomada, lava bem lavado e o cabelo foi crescendo, hoje o cabelo dela, ela tem o maior prazer em lavar o
cabelo, tanto é que ela pede “você vai lavar o meu cabelo?”, mesmo sabendo, mas ela pede e ela faz, é ondulado e
meio crespo, mas tem uns cachinhos, conseguiu crescer, então é isso.
E – Então você acha que foi mais uma aproximação pelo cuidado mesmo, tem que ter esse cuidado né?
S – Acho que foi. É preciso ne? É preciso porque talvez o que você fala às vezes, eu já vi... com o tempo eu descobri
que falar e expor algumas coisas não funciona. Ela é mais com as atitudes, então eu falo, eu posso encher a bola de
alguém, acho que tem que ter atitude, não basta sabe, perguntar, questionar, perguntar, falar, explicar, na maioria
das vezes pelo menos comigo não tem funcionado. Eu acho que foi isso que levou a uma proximidade maior.
E – E quanto assim a suas atitudes, por exemplo, qual foi um momento prazeroso pra você quando você estava com
ela?
S – Ah, ver ela bem, assim ne, ver que ela estava feliz porque o cabelo estava crescendo, porque ela já conseguia, já
não existia mais aquela parte que afetava ela falava “olha como é que ta tal” então hoje ela fala, “eu não tenho mais”,
então acho que ela aprendeu, mesmo eu não estando, ela aprendeu que se cuidar é importante.
E – Aí você vê um pouco a marca dos seu trabalho nesses momento?
S – É ai que aparece. Porque não aparece de outra forma ne? Não aparece nos jornais, nem nas revistas.
E – E qual foi o momento difícil? Que você estava com ela?
S – Com ela? Ah, acho que quando ela rejeita.
E – É difícil?
S – É, tem tipo um... eu penso o que que eu to fazendo aqui ne? E é isso, então com o tempo foi, a gente percebe
que tem efeito. Porque assim a gente, eu acho que a gente tem receio de perder, o seu trabalho, o seu... enfim, você
está mexendo comigo hoje (ela se emociona).
E – Por que?
S - Não porque...
E – Quando a gente fala a gente vai revendo muitas coisas ne?
S – (gagueja) Num trabalho desse o que que você faz?... Você só lucra no que você vê. Financeiramente...
E – Não tem ne? Não é pelo financeiro o trabalho né?
S – Não, não é...
E – É, mas é difícil mesmo, acho que quando a gente tem uma oportunidade de falar, a gente vai entendendo
algumas coisas né?
S – É
E - E qual que você acha assim que é uma facilidade dela?
S – Dela? O aprender, ela tem... tudo que você explica, ela também tem uma determinação ne? Ela é determinada,
quando ela quer alguma coisa, dificilmente você consegue tirar. Então é ai onde eu acho que ela tem uma
semelhança, que eu me identifico. Porque eu vou mesmo, eu saio rasgando o caminho, batia pé, até hoje não porque
a idade não permite mais, mas bater o pé de rachar mesmo, são coisas que não intimida, ela não se intimida fácil.
Você pode falar, ela sai batendo porta. Eu acho assim que é uma coisa que... não é uma coisa agressiva, mas é uma
coisa que mostra que a pessoa está reagindo, então eu acho que nesse ponto ela reagiu, porque no inicio ela ficava
ali acuada.
E – Então a agressividade também como uma forma dela estar viva?
S – É, reagiu né? Então, eu acho que é isso, você, melhor do que eu entende.
E – Vocês muito melhor que a gente.
S – Não, imagina.
E – A gente está aqui tentando aprender com vocês.
S – É, mais é isso.
E – E uma dificuldade assim dela, uma coisa que você vê que pra ela é muito difícil?
S – Eu acho que a questão de lidar com a mãe.
E – Com a mãe?
S – Quando ela chegou aqui, ela não gostava que falava da mãe. Muito pequena e acho que deixou a mãe muito
pequena e você fala “não sei o que Ana vai tal vai lá”... como se... teve uma vez que ela falou que no outro abrigo
ninguém nem falava da mãe dela. Hoje não, ela vai com a mãe, mas ela tem ainda uma resistência, eu não sei qual
que é ainda, mas quando você fala “ah você vai passar férias com sua mãe?” ela fala “não eu não quero ir”. Teve
dias que ela saiu chorando porque ela não queria ir. Então a impressão que dá é que aqui é mais prazeroso ficar.
Hoje mesmo ela falou pra mim “ah meu aniversario é dia nove” agora de julho, eu falei assim “ah tá segunda feira?”
ela falou “não, é domingo e é seu plantão”. E antes eu havia falado pra ela que eu ia ligar pra família para ela ir
passar férias, então a impressão que deu era que ela não queria sair antes do aniversario.
E – Entendi, que ela quer passar aqui. Quantos anos ela vai fazer?
S – Agora você me pegou, mas eu acho que é 10.
E – E ela chegou aqui com quantos anos?
S – Ela chegou acho que...vou ver aqui (procura na tabela). Ela chegou aqui em 2003, com 7 anos. Está na quarta
série, termina agora, amanha é a formatura dela
E – Ah a formatura dela? Ela deve estar feliz né?
S – É, porque eu fiquei de férias o mês de maio, então eu voltei, e ai a gente trabalha e foi um mês meio que corrido
e a gente acaba não dando conta mesmo porque apesar de ser 12 horas, às vezes o tempo é curto, pensando no
que você tem que fazer.
E – É muita coisa assim?
S – É, a gente sai né? Tem as saídas, e você acaba meio que também, são vários casos que você tem que (???)
então eu sai de folga, eu tava de folga, eu voltei hoje né? A gente fica dois dias de folga durante o mês, então eu
tava no período de folga. Então meu ultimo plantão foi sábado e eu to retornando hoje, então elas vem todas
querendo, então ela já havia me perguntado se eu estava na escala no dia do aniversario dela, que por sinal é
domingo que vem ne? Ai ela falou...acho que ela espera passar o aniversario aqui.
E - Você acha que o abrigo então pra ela representa um... o que você acha que representa na vida dela?
S – Ah eu acho assim que mesmo com pouca idade no caso, representa muito. Eu acho que até mais do que a
família em si, porque mesmo quando a irmã saiu a gente achou que fosse (???)... deu uma interferidazinha na
escola, mas aqui não, foi uma coisa normal, que superou-se rápido, então eu acho que o abrigo em si é o porto
seguro ne, do momento. Eu acredito nisso.
E – E ai esse que é o papel muito importante do educador né?
S – É porque a gente acaba sendo um referencial ne? Bom ou ruim somos nós o referencial né? É porque a gente
tem nossas atitudes ne? É que às vezes eles falam “o educador é chato”, ela mesmo fala “ah você é chata”. Claro,
somos chatos por que? Porque a gente pega no pé, porque a gente está ali querendo mostrar que aquilo é
importante pra ele, que é pra ele tudo que é feito, não pra nós, porque nós já temos uma bagagem seja ela de
trabalho ou seja ela de experiência de vida, sei, a gente está aqui e por mais que queremos não ser, nós somos de
passagem aqui né? A gente vem porque é nosso trabalho depois vamos embora. Ai no dia seguinte, a gente vem e
faz o mesmo papel, claro que como eu te falei não tem como não barrar isso, apagar, não tem como. Eu não creio,
pode até ser que alguém fale “olha, eu faço assim”. Da minha parte eu não consigo. Talvez eu tenha que trabalhar
isso, mas eu não tenho não... eu falo daqui pros meus filhos, pro pessoal que eu tenho mais contato, então a gente
tem uma troca, não tem como. Você vive aqui 12 horas, são 12 horas.
E – E você acha que tem um envolvimento também?
S – Tem, não tem como, seria um... como seria? Se não tivesse o envolvimento como seria? Fala, como seria?
Ficaria uma coisa vaga né? Você vem aqui olha todo o espaço, todas as crianças, vê o teu horário e vai embora?
Não sei...
O abrigo em si, ele é uma coisa que - como é que fala? - ele une, ele meio que mistura mesmo; aquela coisa. Então,
você está aqui, você participa no almoço, você participa; você participa até no fazer, às vezes. Você vai lá e está
junto: "ah, vamos fazer isso". Você está ali. É meio que família; por mais que o querer...
E - Num certo sentido. Como é que fica o lugar da família deles aqui?
S - É como eu te falei. Pra alguns é importante ter. Mas, por exemplo, a Angélica não... Talvez, um pouco pra frente,
ela vá valorizar isso; de momento, eu não vejo.
E - Pra ela é muito difícil ainda.
S - É. Assim como ela, pelas atitudes dela. Eu me baseio pelas atitudes dela. Por exemplo, ela prefere ficar aqui. Ela
fala: "eu não quero ir, eu quero ficar aqui." Teve meses que ela foi chorando.
Então, eu fico pensando, eu, me pergunto por que é que ela chora pra não ir. A impressão que dá - porque a família
está se reestruturando -, a impressão que dá é que aqui é melhor. Aqui tem mais não sei o que, mas aqui é melhor.
Então, é isso.
E - Ah... Deixa eu ver.
E daquela outra criança que você iria contar, que você acha que é mais...
S - Ah, do Eduardo (???).
A questão do Eduardo é questão de saúde. Assim, claro, ele tem diabetes - não sei se a Alaíde até á falou dele,
porque ele é uma pessoa que está em...
E - Não. A Alaíde contou de uma outra criança. Acho que era o Gustavo.
S - Ah, o Gustavo.
Porque o Eduardo é uma criança que está sempre em foco, porque ele tem diabetes. E, pra gente - eu me coloco -,
eu acho que pro grupo, no geral, foi difícil quando a gente recebeu o Eduardo, quando recebemos o Eduardo aqui.
Porque, um menino de 9 anos, na época, 9, 10 anos, portador de diabetes, que a gente não conhecia nada; nada,
nada, nada.
E - Da história?
S - Não.
E - Ah, da diabetes.
S - Da história, a gente acaba conhecendo; porque sabia que é uma questão de denúncia, que era abandono, tal e
tal.
Mas, a diabetes em si, a gente teve que, a gente apanhou. E, como a gente é obrigado a lidar com a situação, então,
teve uns casos, umas vezes que ele teve a queda - a diabetes cai, ela fica muito baixa -, e ele entra em convulsão.
Pra mim foi difícil, porque eu não ainda sabia lidar com aquilo - como também não sei até agora, a gente faz por
uma questão de sorte ou sei lá o que -, então, foi muito difícil. Porque você fica, você se sente impotente, você não
sabe, você não tem o que fazer; você vai procurar os recursos que você conhece. Ou seja, é o açúcar, é levantar, é
não deixar... Porque você não conhece nada.
Pra mim foi um momento de medo. Porque, por mais que eu tenha a certeza que ele tem aquela diabetes, que eu
estou aqui, que esteja respaldada pra alguma coisa que venha a acontecer - porque a gente espera que esteja; você
está aqui num lugar, você está lá com uma criança que tem um problema, mesmo não sendo (???) , você tem que
dar conta. Mas, você só da conta até onde você conhece. Por mais que falem assim, chame o Resgate, tal e tal; mas
você fica naquela apreensão, se não dá tempo: vai morrer na minha mão? Então, foram momentos assim...
Ainda existe. Menos agora. Porque a gente acabou - como fala, assim? - pegando um pouco mais das malícias que a
diabetes, em si, ela têm. Fica mais fácil.
Mas, naquele momento, era angustiante. Porque, várias vezes, no meu plantão, aconteceu aquelas coisas com
referência a ele; deu chegar, dele estar, e você ter que correr, e você ter que dar conta. Isso é um complicador, não
é. Porque você não entende, não entende nada de saúde, em si.
Mas, nós fomos, com o passar do tempo a gente acompanha - como eu já te falei - a gente saía, acompanhava no
médico; sempre que estava no médico ou alguma coisa, pelo menos no meu caso, eu procurava ouvir melhor, eu
questionava, eu perguntava. Porque, é o meu trabalho, então, que está em jogo também. É o meu trabalho. Eu
venho aqui, dou o meu plantão, então, sou eu, como pessoa, que estou em jogo. Não é só a saúde dele. Eu não
tenho só que dar conta da saúde dele, eu tenho que dar conta também do meu eu.
E - Do seu medo ali.
S - Das minhas condições. Da questão ética e tudo mais.
Isso é uma coisa que, pelo menos no meu caso, foi uma questão que eu fiquei apreensiva. Porque, cada plantão que
eu vinha, eu vinha naquela: como será hoje?
Porque é diferente de você lidar com os conflitos em si. Você está adaptada mais a aquilo. Por exemplo, até separar
uma briga, alguma coisa, lidar com aquela situação do que lidar com alguém que está ali e, num piscar de olhos,
pode ou não voltar. É uma coisa que, não tenha dúvida, vai te deixar apavorado.
E - E como que ele é? Como que você enxerga ele?
S - É difícil. Eu sei que não é fácil pra uma criança ter diabetes. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma pessoa difícil,
porque você percebe que ele não quer se ajudar. Você percebe que ele provoca a situação, ele come
obsessivamente pra que ela suba, ou ele não come pra ela desça. Então, é difícil lidar com isso, porque você não
sabe o momento em que ele está bem, que ele vai fazer ou que ele não vai fazer. É uma oscilação muito grande de
humor, de... a insulina em si, a glicemia em si é uma oscilação muito grande, e o humor dele que - também tem um
agravante -, às vezes ele mente, ele está assim e ele não está, e a gente corre faz outra coisa. É - como se diz? - é
viver no limite. Com ele é assim.
A gente tem, eu tenho procurado aprender, mas também não tenho conseguido. Então, é assim, eu estou aqui, eu
faço o meu trabalho, procuro fazer o melhor, mas é complicado. É aquela coisa de você trabalhar, ou melhor, você
dar murro em ponta de faca. Porque ele tem condições de melhorar a situação dele, em todos os sentidos, ele tem.
Mas ele não quer. Então, você fica... É frustrante até. Porque você fala: "poxa vida, por onde eu vou? Qual caminho
eu sigo? Qual é o momento? Onde eu mexo?"
E - E teve alguma coisa que você já sentiu que modificou de algum jeito? Alguma atitude que você tomou?
S - Com ele ?
E - É. Ou não? Não sei. Alguma situação que você achou que foi diferente? Que você não se sentiu dando murro em
ponta de faca?
S - Sim, teve. Por exemplo, a questão da escola. A saúde é que é complicada.
A escola. Quando ele chegou aqui, ele não sabia ler, nem escrever, ele dava trabalho na escola, e ficou no reforço,
depois foi pra aceleração, um monte de coisa. Hoje, ele já, ele está na 5a série, ele já escreve, ele já lê, ele já
compreende melhor. Então, ele conseguiu - claro, com a ajuda nossa, da escola e tudo - mas, esse mérito é dele,
porque foi ele quem conseguiu; se ele não quisesse, ele continuava lá paradão. Ele conseguiu sair. Hoje, ele lê, ele
faz a lição (??). Quer dizer, houve avanço.
Mas, como a gente quer o que? Por exemplo, eu, como mãe, eu queria que ele avançasse na questão dos cuidados
da saúde. Tem esse lado também. Só que aí ele emperra, não é. Então, ele faz terapia, a gente acompanha. Mas,
enfim, eu acho que é alguma coisa que ainda está muito difícil, eu acho que, pra ele aceitar.
Isso acabada transferindo pra gente também. Porque, como eu te falei, nós também temos as nossas emoções. O
fato de não sermos abrigados, mas nós estamos na mesma situação.
É uma coisa que também nos irrita. Pelo menos no meu caso, irrita. Porque você fica assim, você quer, cria essa...
Veja que você pode viver, você pode estar bem, se você se esforçar; assim como foi na escola. Mas eu ainda não
descobri a fórmula.
Então, é isso.
E - Tem alguma coisa ali que você sente que pra ele é difícil, não é? Que não faz ele se cuidar.
S - Reagir.
Eu acho que, por exemplo, a mãe. Ele foi abandonado.
E - Com quantos anos ele chegou aqui?
S - Ele chegou aqui eu acho que com 9 ou 10 anos.
E - E ele tem agora?
S - Ele fez 13.
E - Treze.
S - Ele deve ter, isso mesmo, de 10 pra 11 anos que ele chegou aqui.
Desde que ele está aqui, a mãe nunca - ela ligou uma vez, pelo menos que eu atendesse, ai ela meio que dizendo
que era uma pessoa que conhecia, eu quero denunciar o pai, alguma coisa assim. Eu falei, fiz meio que uma
pressão, e ela acabou confessando que ela era a mãe. Eu falei: "se a senhora quer, o seu filho está aqui, pega o
endereço, o telefone; assim como a senhora já tem o telefone, pega o endereço e vem visitar." Ela nunca veio. Teve
momento que ele procurou, fala que quer, diz que saiu - porque o pai vem, faz a visita; ele passa o dia com o pai. Eu
não sei se o pai oculta isso, não sei. Não sei que pressão acontece do lado de lá que evita que essa mulher se
aproxime.
Eu, particularmente, acredito que, se houvesse uma, talvez isso fluísse. Eu.
E - Se ele tivesse uma relação melhor com a mãe?
S - Sim. Eu acho.
E - A questão do cuidado.
S - Porque dá a impressão que... E, assim, a figura feminina - no caso, nós mulheres - ele acaba, ele quer sugar. Ele
pede pra gente: "ah, me adota, me leva pra casa."
Talvez, se a mãe aparecesse, alguma coisa, ele desse uma deslanchada. Não sei. Essa é a minha opinião.
E - E como que é isso - escutar assim: "me adota" - na figura feminina? Que é como se ocupasse o lugar da mãe.
S - É como se ele quisesse alguém que substitua.
Às vezes bate a escorrega, às vezes bate e vai. Mas, às vezes, é um bate que fica. É complicado. Muito complicado.
Porque é assim, ele tem uma família, tem um histórico de saúde que compromete; então, você fica assim meio deixa
quieto. Não sei. É muito complicado.
É uma coisa que eu ainda não elaborei, por exemplo, isso. Por exemplo: "me adota". Você escuta e vai embora.
Porque, se você adotar em si, como eu falo - eu já falei pra ele -, adotar não é só pegar e levar pra casa, você tem
que entender o que é a adoção. É uma coisa que é um compromisso muito sério, uma coisa que requer muito - no
caso dele, até recursos.
Pra todo mundo ele faz isso. Ele pede.
Teve umas vezes que eu trouxe a minha filha aqui; ele fala assim: "ah, deixa eu ser irmão da Renatinha; me leva pra
sua casa. Eu vou passar minhas férias lá." Às vezes você tem que sair fora, porque você não pode alimentar isso.
Não tem como. Ter como tem, mas não é viável isso.
E - Não é o seu papel. S - Não. Porque jamais eu faria algo que não estivesse ao meu alcance.
Eu acho que por aí eu vou passar a satisfazer o ego, e aí? Porque o que ele quer é que apareça alguém. E, de
repente, não é isso. Mas, de momento, é o que ele tem.
Complicado.
E - E aqui, as condições aqui do abrigo, como que você, o que você sente que pode ajudar ele?
S - Tudo o que tinha que fazer, tudo que tem ao alcance já foi feito. Já - eu acredito. Porque, quando ele chegou, ele
tomava insulina de agulha; hoje, ele toma com (caneta????). Todos os recursos - não estou te dizendo numa
questão de querer dizer, olha o abrigo é 100%; estou te falando o que é real - então, tudo que é e que está ao
alcance do abrigo em si, tem sido feito pro Eduardo. Ele faz terapia duas vezes por semana, terapeuta particular. Ele
toma insulina que a casa não tem; as fitas a casa não tem. Eu acho que da nossa parte não requer mais nada.
E - Isso é o que parece pra você, quando você diz que não entende, não é. Porque ele tem os recursos e parece não
se esforçar. É essa a sensação que você tem?
S - Tem. É, a sensação é essa.
Porque, por exemplo, que ele vive em busca de alguma coisa. Eu, sinceramente falando, eu só acredito que é a mãe.
Porque não é o recursos com relação à diabetes, não é recursos com relação a estrutura do abrigo; o abrigo é bem
estruturado. Não é isso. É uma questão dele querer. Talvez, ele faça isso até pra nos chamar a atenção, como a
figura feminina, como a figura mãe ou busque ajuda com a mãe. Não sei. Enfim, eu vejo assim. O Eduardo, nesse
ponto ele ainda não despertou.
E - Seria uma dificuldade dele, não é.
S - É uma dificuldade dele e nossa. Porque, dia após dia, as coisas se agravam em relação à diabetes se ele não se
cuidar - pelo menos é o que a gente tem de conhecimento; que com o passar do tempo, se ela fica muito alta ele
pode ter problemas renais, ele pode ter um monte de coisas, perdas de membros, essas coisas.
Pra gente, como eu te falei, é o nosso trabalho também. Então, a gente não quer perder. A gente quer que alguém
saia daqui bem, melhor do que veio. Porque senão não teria sentido o nosso trabalho.
E - É.
E você acha que é mais fácil, mais fácil ou mais difícil, quando a criança chega no abrigo ou quando ela tem que
sair?
S - Os dois momentos são difíceis. Os dois momentos são difíceis.
Chegar, é uma pessoa nova que vai, que nós vamos ter que nos adaptar com ele e ele com a gente, e a rotina, e o
dia-a-dia é difícil - pra ambas as partes.
E a saída também. Porque, a saída, tem o vínculo - a gente tem aquele vínculo, não tem como não ter - e você fica
com receio dali pra frente. Porque, se ele valorizou o tempo aqui, o que aprendeu, beleza. Ele vai se estruturar, ele
vai se; vai cair, mas vai estar sempre se levantando. Vai ter os deslizes, porque isso é normal. Mas, se não, ele pode
voltar a ser pior do que era antes.
Aqui, quase nós não temos, por exemplo - é até meio complicado - mas, quase nós não temos o retorno familiar; são
poucos; tem outros que se emancipou. Também, é um abrigo pequeno.
Tem uns casos de uns meninos que casaram.
E - Ah, é?!
S - É. E até que, razoavelmente, bem. Então, de alguma forma, o abrigo deu uma estrutura, deu um suporte. E dá
até hoje.
E - É uma referência pra eles.
S - É o referencial. O abrigo acaba sendo, porque é como se a família ficou pra trás. Na maioria das vezes eles vêm
pequenos, e acabam meio que a metade do ciclo de vida, enfim, ficam aqui. Eu acho que é a parte que fecunda
melhor.
É isso.
Mas, é difícil, tanto pra receber como pra retirar. Não sei. Porque é aquela questão, ao receber é a questão da
adaptação e, quando sai, você fica com aquela sensação de perda. Será que o que a gente fez foi forte, forte a ponto
de segurar o que vem pela frente. Porque a vida não se resume à aqui. Não se resume aqui.
O abrigo, em si, é apenas um momento que alguém teve que passar.
E - E que pra alguns é um momento que dura bastante tempo, não é.
S - É. Porque, por exemplo, tem pessoas que saem e voltam pra visitar, liga. Tem outros que não. Eu acho que vai
muito do que ele colheu daqui. O que ele plantou e o que ele colheu daqui.
E - E como que você percebe a influência particular do seu trabalho na vida da criança?
S - Como que eu percebo?
E - É. A influência do seu trabalho na vida dela? Porque você contou um pouco da Ana?
S - A Ana?
E - É.
S - Você fala em que sentido?
E - É. Não sei. Como é que você sente que você, ou se você sente que você influencia e marca de alguma forma a
vida deles, aqui, no abrigo?
S - Da forma como eles se deportam à você. A forma com que ele fala. Você chega e ele está querendo contar
alguma coisa; eu acho que é assim que você percebe até onde foi a tua importância com relação... Eu acho que é
isso.
E - No reconhecimento deles?
S - Eu acredito nisso.
E - Em algumas outras situações que você estava falando; por exemplo, quando ela fala começa a se cuidar
também, você...
S - É uma forma de que isso valeu. De que o que você fez, isso surgiu efeito.
Eu acho que a gente tem um papel muito importante; seja positivo ou seja negativo.
Na maioria das vezes têm vindo pelo lado positivo. É muito raro você escutar - até mesmo de outros lugares que eu
já trabalhei - escutar: "ah, fulano, foi negativo ali". Eu tenho recebido - como é que fala? - notícias de pessoas, a qual
eu já trabalhei no passado, que o tempo que a gente conviveu foi positivo. Então, isso é bom.
É muito gratificante você saber, por exemplo, quando eu trabalhava na (??), nós tivemos uma caso de um garoto lá,
que a situação dele era delicada; ele saiu de casa, era filho de uma ex-bailarina do Sargenteli, então, ele tinha uma
vida conturbada. Ele ficava com a avó, e esse mulher viajava muito, e a avó parece que passou a roubar; e aí, ele
roubava dentro de casa, e roubava até no abrigo. Era um adolescente, na época. E, antes de eu sair de lá, ele
conseguiu; ele estudava, e ele conseguiu um emprego de boy no Banco do Brasil. Depois, ele prestou concurso, e
ele é funcionário do Banco do Brasil.
Foi bom. E a gente entende que aquilo foi parte do trabalho.
E - Você vê uma marca sua ali naquela...
S - Sim. Porque, a questão do incentivo, do falar não faz assim, faz assado. Ou até mesmo vir e: "o que você acha?"
Isso é uma coisa que, se você é procurada, de alguma forma você não está, é positivo. Se você é isolada, aquilo é
negativo. Então, isso é uma parte que você enxerga que o seu trabalho serviu.
Bom seria se todos saíssem assim, 100% ou 99% encaminhado a seguir em frente.
Mas, não é porque eu acho que o povo não acredita. Os governos não acredita, a maioria da população não acredita.
Às vezes, a gente está no dia-a-dia ali com alguém que também não acredita. E isso é uma parte que...
E - Não acredita na criança?
S - Não acredita, eu acho, naquilo que faz. Porque se você está num local que você não acredita no que você...
LADO B - continuação
E - Acho que era mais ou menos isso.
S - Não sei. Você é quem sabe. (risos) Já falei por demais.
E - Não. Está ótimo.
S - Eu falo muito.
E - Imagina. Eu estou adorando.
S - Eu sou espuleta. (risos)
É. Eu sempre tive essa coisa de falar pelos cotovelos. Mas, faz parte.
E - E você percebe, então, de certa forma - não sei é a influência - mas, alguma coisa na sua história de vida também
que te trouxe pra trabalhar em abrigo? Alguma motivação...?
S - Olha - você me perdoa, eu esqueci o seu nome.
E - E.
S - E, então, eu não sei. De verdade que eu não sei.
Eu acho assim, quando eu entrei pra trabalhar nessa área, era um grupo grande - como eu já te falei - e a gente, às
vezes, se pegava, como era difícil, a gente pegava um se lamentando um pro outro, o outro questionando,
choromingando; a gente chorava. Era tão difícil que tinha momento que a gente entrava em crise. Cada um com as
suas motivações, com as suas razões estava ali. Mas, eu não sei.
Teve uma vez que - até isso ficou bem marcado pra gente e pro grupo - estava eu e um educador, Carlos Bimbarte o
nome dele, e a gente estava confessando, estava um grupo (não sei se era época de Natal ou alguma coisa), e eu
falei: "quer saber, Bimbarte, eu acho que eu cai aqui de pára-quedas e foi fechado." Então, ficou. Toda vida que a
gente se encontrava, ele falava: " e aí, já abriu o pára-quedas?" A gente ficou muito tempo junto, mas no início eu via
isso, que eu acho que eu tinha caído ali de pára-quedas e fechado. Porque era uma situação assustadora, tudo,
Febem, tinha muito atrito entre eles; então, tinha mesmo muita rivalidade, até mesmo entre funcionário, e isso
impedia o nosso trabalho. Eu acredito que aquilo valeu pra cada um que saiu de lá, ter uma experiência.
E - Pra cada um dos profissionais?
S - Dos profissionais. E dos abrigados, em si; pra seguir. Porque fortalecia. Mesmo no meio daquela fraqueza,
daquele medo, daquele pavor -porque a gente, tinha momento, porque tinha respaldo da Febem (respaldo que eles
falavam, não sei a palavra certa), por exemplo, o menino que saía (??) da Febem, ele ia pra esse abrigo (era
respaldo) -, então, o que acontecia? A gente temia. O menino saiu da Febem, aqui era abrigo, mas ninguém; às
vezes, a gente sabia que os crimes eram bárbaros, estupros, algumas coisas assim, e estavam convivendo com os
outros e com a gente. Então, tinham momentos, principalmente nós, mulheres, nós educadoras, nós andávamos
mais em dupla, mais duas ou três, porque tinha medo mesmo. A questão era essa, medo mesmo.
A gente ficava meio ali. Eu acho que valeu. Isso serviu de - como fala assim - de fortaleza mesmo, da gente lidar com
o trabalho. E aprender muito pra nós mesmos.
A maioria não está mais na área, são poucos que estão. Mas, às vezes, a gente se encontra, sai, conversa. Até outro
dia, eu acho que foi no ano passado, nós "ajuntamos" uns 5 ou foi 4, que trabalhamos junto na época, e aí a minha
amiga falou assim: "poxa vida, só você que realizou o sonho." Porque, quando nós entramos, o sonho - o Estatuto da
Criança previa abrigos pequenos com, no máximo, 20 crianças; então, é o que tem hoje -, ela falou: "só você realizou
o sonho de trabalhar num abrigo pequeno, o que pedia o Estatuto." E eu falei assim: "é um sonho ainda meio
frustrante." Porque tinham outros sonhos; a gente tinha sonhos de progresso dentro do trabalho em si, do trabalho
aparecer, de surgir efeito mesmo.
E - De surgir efeito como?
S - De tirar criança de rua, de dar uma vida melhor, de socializar mesmo.
São poucos que funcionam assim, que funcionam como aqui, um abrigo mesmo.
E - Um abrigo mesmo. Entendi, tem abrigos muito complicados.
S - Tem.
Eu tive o privilégio de trabalhar - não sei se isso é - de trabalhar em vários abrigos. Esse não é o único. Desde abrigo
grande, eu já trabalhei em abrigos pequenos, com outras, com menos crianças - até menos que aqui. Mas, tem umas
situações também complicadas.
Então, é isso.
E a gente, às vezes, pega falando: "só você realizou o sonho." Não tanto. Porque o sonho...
E - Ainda falta muito, você acha?
S - Falta.
Mas, eu acho que a gente não tem mais fôlego. Eu acho que a gente não tem mais aquela perspectiva. Apesar de
agora até algumas coisas fluírem melhor. Mas, eu acho que vai cansando. Eu acho que é isso.
E - Porque, parece que, pelo que você está falando, é uma relação muito junta mesmo. Parece que é o educador,
que modifica de certa forma, ajuda a transformar a história da criança ou do adolescente, que também, de certa
forma, mexe com o educador.
S - Não tenha dúvida, que quem faz o trabalho, não - deixando fora a equipe técnica -, de jeito nenhum. Porque,
dependo da equipe, ela dá um suporte muito bom e é o que garante. Mas, não tenha dúvida que o educador é quem
dá as cartas no trabalho.
Quando eu falo, dar as cartas, vir aqui, que eu que mando aqui, e você obedece - nós estamos aqui pra obedecer.
Mas, eu acredito que o bom educador, é ele quem faz o projeto. Porque, a chefia, ela está aí sim, mas quem está no
dia-a-dia, no corpo - como a gente, às vezes, usa o termo, 'dar cara à tapa' - somos nós. Se você não fizer o seu
trabalho da melhor maneira, não se preocupa que não vai em nada, vai virar água com a açúcar. Tanto é que, às
vezes, a gente tem dificuldade; às vezes você trabalha em determinado lugar que não flui. Por que? Porque a equipe
de educador, embora sejam os menos favorecidos, não funciona. Se não funcionar, não se preocupe que o resto não
vai também. Pode ser a melhor coordenação, o melhor presidente, não funciona. Não funciona.
E - Tem uma importância muito grande.
S - Eu acredito. Tanto é que eu te falo, se você não acreditar, não adianta. Eu acredito nisso. Por isso que eu ainda
faço.
Porque eu tenho uma questão muito particular, minha, que se eu não estiver bem no local, eu saio fora.
É uma coisa que me aborrece, me aborrece, me deixa muito insatisfeita, a questão de você estar num lugar e as
pessoas estão fazendo por fazer. Seja lá que trabalho for.
Eu, na minha casa, até mesmo aqui, às vezes, eu tenho pra mim: tudo que eu faço, eu não sou imposta a fazer, nem
aqui, nem em lugar nenhum que eu passei; eu faço porque eu tenho a minha espontaneidade de fazer. Mesma coisa
na minha casa, se eu não estiver no pique de fazer arroz, eu não faço, porque não vai dar certo. Pelo menos eu
acredito nisso. Não adianta nem você querer lavar a roupa com o melhor sabão, se você não estiver a fim, não vai
funcionar. E assim é o trabalho no profissional.
E - Você, reconhecendo isso em você, você até consegue entender melhor algumas crianças. Por exemplo, a (??),
você estava falando quando ela bate o pé e ela não faz.
S - É. Sim.
E - Você se reconhece ali também.
S - Sim. Porque é uma coisa assim, não faz nada... Não que tudo o que você faz te dá prazer; normal. Mas, eu acho
que você tem que ter o mínimo de prazer no que você for fazer. Porque se não....
E - E o que você acha que é o mais fundamental no trabalho do educador, em abrigo?
S - Dedicação.
E - Dedicação.
S - Dedicação. Eu acho que é o ponto 'X', você se dedicar. Não importa se você vai, sabe. Porque, o educador em si,
ele não é só uma pessoa que vem aqui - não sei se você sabe a função, se você sabe -, a função do educador, ela
vem debaixo, desde a criança acordar: você acorda, você orienta no banho, você troca - porque nós temos bebê,
nós também fazemos esta parte - quando tem bebê, é o educador quem faz; então, desde disso até a questão de
ajudar em alguma tarefa escolar, uma busca de emprego, uma entrevista. A gente tem um fator importante que, às
vezes...
E - Participa de muito momentos da vida.
S - Participa muito. Nós temos uma participação que eu acho que 99% é nossa. Não estou dizendo, me sentindo a
'bã, bã, bã'. Não. Mas, eu acho que sim.
Não adianta, por exemplo, chegar, fulano assim, chegar; e olha, se eu não contar a história, se eu não fizer, se eu
não relatar algo do que eu vi, ninguém vai saber o que é que foi. Posso até passar ali, às vezes você tem
informações. Eu acredito.
E a única - como é que fala? -, por isso que eu te falo, a questão da dedicação; se você não se dedicar a isso, você
vai vir aqui ou em qualquer outro lugar, vai chegar o teu horário, você sair mal humorado, insatisfeito, sabe; tanto
revoltado como qualquer uma criança. Porque é assim que tem que ser. Eu acho que tem que dar a questão da
dedicação, não importando o que você vai fazer.
E - Legal ter a visão do educador mesmo.
Porque, no fim, acabam tendo muitas teorias que falam...
S - Eu não tenho teoria.
E - Tem a criança. Eu acho legal ter o relato da experiência mesmo, da prática, sabe. Você acha que é mais prática,
o trabalho?
S - Não tenha dúvida.
Tem. Temos que ter a teoria sim. Mas, eu acho que ela é bem menos. É uma coisa assim, claro que é importante
você relatar a história da criança; isso, a teoria aprender. Por exemplo, eu não conheço, nós temos já não sei
quantos educadores espalhados por aí em abrigos e tal; mas, nós não temos uma faculdade que ensine a ser
educador. Então, eu acho que é uma coisa que vem de você.
Eu conheci pessoas com nível superior, com várias faculdades, aprendeu aquilo, estudou aqui e acolá e, como
educador, pelo menos na minha opinião, era um zero ali do meu lado.
Por que? Não sei. Talvez, eu acho que cada um tem um perfil. Você tem perfil pra, se você tem habilitação pra
policial, é policial; médica, médica. Assim como o médico, o bom médico, o bom policial, o bom tudo, tem o bom
educador. Não que sejamos excelentes, não é. Não sei. Eu acho que tem muito disso.
E - Você acha que, de certa forma, você tem uma teoria, mas que no dia-a-dia vem mais a experiência?
S - Eu sou muito crítica. Entendeu. Por isso que eu te falo, eu sou explosiva. Eu acho que teoria é importante, mas
não basta eu chegar aqui e relatar, e mostrar pra você uma cartilha de 'o que é que é ser educador', se quando eu for
lidar na situação em si, sai todo o tiro pela culatra.
Não sei. É uma coisa que pega. Eu já perdi amizade, eu já ganhei amizades por essa questão de falar o que eu
penso. Isso é bom e não é. Porque eu posso perder amizade, eu posso perder emprego, eu posso perder uma série
de coisas, mas eu não me engasgo fácil não. Eu não engulo sapo.
E - E aí você traz isso pro seu trabalho também como educadora?
S - Se eu tiver que cobrar, eu vou cobrar. E eu cobro.
E - Cobrar as crianças?
S - Eu cobro. Cobrar as crianças sim, é um trabalho nosso.
Se eu estiver, por exemplo, na equipe, no grupo em si, eu cobro, eu cobro.
E - Entendi.
S - Eu cobro. Porque eu acho que não basta - aquela coisa, não basta ser pai, tem que participar -, então, não basta
ser educador, você tem que atuar. Mesmo que você erre. A gente aprende nos erros.
Também não sou perfeita. Eu erro e erro muito.
Mas, eu acho que pra ser educador tem que se dedicar - à educador; agora não sei a definição, enfim, qual que
seria, educador aqui. Eu acho que a gente está na espera de alguém que defina o educador.
Claro que a gente participa de algumas coisas aí, de alguns cursos, que vai cada dia aparecendo alguma coisa a
mais que vai identificando que a gente realmente...
E - O trabalho de vocês.
S - Isso.
E - Por exemplo, isso que você falou da história das crianças; isso é uma teoria que você traz, que você acha que é
importante contar a história delas.
S - É. Porque, se você me pergunta, se eu estou aqui há 4 anos, você me pergunta de uma criança e eu não sei falar
dela, então, o que é que eu fiz aqui? O que é que eu fiz aqui? Eu vim aqui, deu meu horário, olhei a situação, o clima,
e fui embora.
Como eu te falei, não trabalhamos com máquina: você vai lá aperta o botão e ela faz a quantidade, a produção que
tem que ser feita, ou sei lá o que. Nós trabalhamos com pessoas que, a cada momento, estão...
E - Essa era uma experiência que você tinha tido antes, não é. Você antes tinha trabalhado numa fábrica. (riso)
S - Sim. Eu trabalhei por 8 anos - como eu te falei - na Ford; era uma empresa que nós tínhamos que dar conta de
toda a produção. Então, um pouco diferente, não é. (risos)
E - Imagino.
S - Diferente dessa área - muito pouco. (risos)
Então, você estava ali, o chefe chega e: "olha tem que, tem tanto, tem menina aí, você tem que fazer tanto 'X' de
produção". Chegava no final do meu expediente, a minha cota de produção estava pronta.
Também não tem; como é que eu vou dar produção num trabalho desse?
Aqui eu não tenho que dar produção, eu tenho que dar qualidade, eu tenho que... O nosso trabalho é esse.
E - Nossa. Acho que é isso S.
S - Eu não sei não. Eu não sei nada.
E - Nossa! Não, me ajudou muito.
S - Eu não sei no que, não é?
E - Muito boa a entrevista.
Eu vou depois, quando eu terminar, eu vou mandar o trabalho pra vocês.
S - Você vai mostrar pra nossa equipe?
(risos)
Olha (ou a Ana???), me matam.
E - Imagina. Pelo amor de Deus. (risos)
S - Brincadeira. Normal.
E - Mas, foi muito interessante.
(INTERRUPÇÃO DE GRAVAÇÃO / RETOMADA NA SEQUÊNCIA)
S - Você sabe, não é. É aquela coisa, a gente se cobra muito. Você vai se cobrando, vai se desgastando, no final,
não sai o que você quer; aí, o que você faz? Você cansa, desiste.
Apesar de que eu sou osso duro de roer.
Ah! Minha filha, não é fácil.
Olha, E, você me desculpe. Eu não sei se era isso que você queria....
(INTERRUPÇÃO DE 1 MINUTO E 23 SEGUNDOS)
E - ... Não acontece muitas...
S - Eu acho até que mesmo, na equipe, a gente tem olhares diferentes, a gente tem olhares diferentes. É claro. É
como se você estivesse numa equipe médica, você vai avaliar um caso...
E - Mas, você acha que, igual na equipe médica, você acha que tem alguma coisa que no fundo sustenta? Que,
apesar, de terem olhares diferentes, tem alguma coisa que é meio....?
S - Completa.
E - Que é completa?
S - Porque, não seria - como é que fala? - não aconteceria se todos tivessem o mesmo olhar.
É claro que, na vida, a gente se depara com pessoas mais agitadas, outras mais, um que olha e já percebe, outros
que têm dificuldades, que só vai perceber a coisa quando também já foi embora. Tem a agilidade cada um, tem o
empenho, é de cada um de nós mesmo.
Mas, eu acredito que, até mesmo no grupo, há olhares diferentes.
Porque tem aqueles mais passivos.
Você tem, na sua classe são quantos?
E - Quarenta.
S - Você acha que a pessoa vai ter, a gente sabe que vai sair um bom psicólogo, e vai sair aquele mais empenhado
na função em si, do que o outro. Não vai?
E - É lógico. Não são todos iguais.
S - Tem uns que estão por estar. Outro porque o pai quer.
Por isso que eu te falo, não sei o que - que você me fez a pergunta de o que me motivou -, não sei. Eu acho que eu
cai de pára-quedas mesmo. Porque foi uma escolha. Quer dizer, eu tinha um problema ali que eu tinha que resolver
e eu acabei, foi porque aconteceu, foi o que pintou de trabalho naquela época. Eu tinha. Eu tinha que permanecer
ali. Então, meio que na marra, eu aprendi.
Assim como, talvez, tenha que pegar o Eduardo na marra pra ele aprender a se cuidar.
Eu não sei.
Mas, é isso.
E - Foi muito interessante...
(INTERRUPÇÃO /VOLTA IMEDIATA)
S - ... Função de mãe, que não é mãe. Quer dizer, como é que fica a cabeça dela e a da criança?
As crianças, não é. Porque é complicado. Quer dizer - você não é mãe -, quem é mãe sabe o que é a função
realmente de mãe.
Alguém me diga: "olha, você vai ser mãe social." Eu não saberia lidar com isso... Quem sou eu? Quem sou eu?
Tanto o profissional quanto a "quem sou eu?"
E - Pra criança?
S - Mãe social é uma palavra assim - fala: o que pega em mãe social? Não sei.
Eu teria... Não cabe pra mim isso não.
E - Mas, depois do meu trabalho, eu vou escrever alguma coisa a respeito, aí eu mando pra vocês aqui.
S - É interessante. Porque, sabe, é aquela coisa, como eu te falei, tem que aparecer.
E - O que é que tem que aparecer?
S - O trabalho. As coisas que são feitas tem que aparecer.
Por exemplo, se você não der importância ao que você está fazendo hoje, se você não aplicar, se você não divulgar;
não sei, não sei. No teu caso aí, eu acho que mais uma questão de trabalho pra até.... Eu acho que só muda aí -
como é que se fala? - a teoria. A teoria, não é?
E - A teoria. É. E que, de certa forma, acaba interferindo no trabalho.
S- Não sei. Não sei como seria isso. Não tenho nada formado sobre isso, não. Nem acredito. Eu não acredito nisso. Não tem, você não vai ter mais um referencial, a criança não vai ter. Não sei. Eu acho até que isso é uma coisa que
deveria ser excluída. Não sei quem - como é que fala? -, criou isso. Já ouvi falar, mas....
E - Não faz sentido pra você?
S - Pra mim, não. Não faz sentido. Ou é, ou não é. Ou é você que (???), e tem alguém assim; porque mãe social é
vazio. É muito vazio.
Mas, como tudo acontece, é mais um que está acontecendo. Vamos ver o que vai dar. Provavelmente, algumas
pessoas querendo prestar um serviço à humanidade, de forma errada. Acaba você descobrir. Você descobre o
campo da descoberta.
E - Junto com vocês, não é. Porque se não tivesse vocês pra contar pra gente da experiência de vocês, do trabalho,
a gente também não teria como. Eu acho que é tudo um pouco junto.
S - É como um quebra-cabeças, falta uma peça. Mas é isso.
E - Muito obrigada.