um modelo integrado de desenvolvimento sustentável às escalas global e urbana
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Um modelo integrado de desenvolvimento sustentável às escalas global e urbana
UM MODELO INTEGRADO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
ÀS ESCALAS GLOBAL E URBANA
Nuno Quental1, Júlia Lourenço2 e Fernando Nunes da Silva3 1 Doutorando no Instituto Superior Técnico; correio electrónico: [email protected] 2 Departamento de Engenharia Civil da Universidade do Minho 3 Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura do Instituto Superior Técnico, Universidade Técnica
de Lisboa
Endereço postal:
Prof. Doutora Júlia Lourenço
Universidade do Minho
Departamento de Engenharia Civil
Campus de Azurém
4800-058 Guimarães
1. Introdução
A transição para um desenvolvimento sustentável é actualmente um objectivo praticamente
unânime da sociedade, variando as formas e processos para o atingir. Importa, devido à
crescente urbanização do planeta, reflectir sobre o papel que as cidades podem desempenhar
para que essa transição ocorra.
As cidades são vistas como os principais motores do crescimento económico, como o milieu
da criatividade ou mesmo como uma das grandes realizações da humanidade. Há um vasto
conjunto de modificações socio-económicas decorrentes da urbanização. A vida urbana induz
no ser humano o desejo de satisfazer necessidades de hierarquia superior, tais como maiores
requisitos em termos de conforto e cultura. Os estilos de vida e os padrões de consumo
tornam-se significativamente mais exigentes em termos energéticos e materiais, aumentando a
pressão sobre os ecossistemas devido ao uso acrescido de recursos naturais.
Nos 23 países membros da Agência Europeia do Ambiente a transformação do solo para uso
urbano ou similar atingiu mais de 800 000 ha entre 1990 e 2000; as áreas artificiais têm-se
expandido ao ritmo de 0,6% anualmente (desde 1990), valor elevado que implica uma
duplicação da área em causa em pouco mais de um século. Em Portugal a cifra anual atinge os
2,7% (European Environment Agency, 2005, pp. 42-47).
As novas áreas artificiais destinam-se fundamentalmente a habitação, serviços e recreio (50 000
ha/ano), indústria e comércio (30 000 ha/ano), minas, pedreiras e aterros (15 000 ha/ano) e,
em menor escala, pelas redes de transportes (embora neste caso a base de dados seja pouco
rigorosa). Quase metade do solo transformado era usado na agricultura, enquanto 36% estava
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ocupado por pastagens e culturas complexas, 9% por florestas e arbustos de transição e 6%
por áreas naturais (European Environment Agency, 2005, p. 43).
Grande parte do crescimento urbano ocorreu na periferia de cidades já existentes ou ao longo
do litoral, contribuindo para a sua artificialização. O fenómeno da dispersão urbana continua
activo e, em boa parte, é alimentado por ciclos viciosos onde influem o crescimento das
infra-estruturas rodoviárias, mudanças culturais que conduzem a uma percepção das distâncias
em termos de tempo, a adopção do automóvel particular como principal meio de transporte e
os custos comparativamente reduzidos da habitação na periferia. Em menor escala, o
fenómeno da dispersão urbana é também explicado pelo facto de cidadãos pertencentes às
classes média e alta valorizarem o contacto com a Natureza e a vida em ambientes menos
artificializados, o que também se deve à elevada degradação ambiental que atinge muitas
cidades. À medida que a malha urbana cresce e se vai consolidando, contudo, será necessário
“fugir” para locais progressivamente mais longínquos para encontrar a tranquilidade desejada.
O ecologista Herbert Girardet, a quem foi atribuído o Global 500 Award for Outstanding
Environmental Achievement, comenta da seguinte forma as alterações dramáticas provocadas
pelos processos de urbanização: “The global environmental impact of the urban use of resources is becoming a critical
question to the future of urbanization and the dominant characteristic of human presence
on Earth. As humanity is urbanizing itself it changes its relationship with the host planet:
global urbanization has increased enormously the use of natural resources by humanity”
(Girardet, 1999).
Outros autores defendem que, apesar de todos os impactes ambientais das áreas urbanas, a
elevada concentração de pessoas também confere às cidades uma capacidade acrescida na
transição para a sustentabilidade, não só devido à possibilidade de economias de escala como
também às condições que possuem para fomentar a aprendizagem e a inovação. Eles exprimem
esta dualidade da seguinte forma: “(…) the real issue is whether the material concentrations and high population densities of
cities make them inherently more or less sustainable than other settlement patterns. What
is the materially optimal size and distribution of human settlements? (…) Until we know
the answer to this question, we cannot know on ecological grounds whether policy should
encourage or discourage further urbanization. In the meantime, we in the wealthiest cities
must do what we can to create cities that are more ecologically benign” (Rees &
Wackernagel, 1996).
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2. Modelos de desenvolvimento sustentável
Uma das respostas da sociedade e da ciência à crise ecológica tem sido o aprofundamento do
conceito de desenvolvimento sustentável. Como consequência, foram desenvolvidas diversas
abordagens ou modelos conceptuais que privilegiam normalmente uma determinada
perspectiva. Esta diversidade significa não só que o debate tem sido fértil em ideias e também
que as certezas sobre como se poderá construir a transição para a sustentabilidade são ainda
reduzidas. A literatura científica enfatiza que não há um caminho único, mas sim um conjunto
de soluções possíveis.
A tarefa de integrar os diferentes pontos de vista é, portanto, complexa e ao mesmo tempo
necessária. Uma conceptualização intelectual robusta é importante porque representa um grau
de abstracção maior do que princípios, critérios e objectivos específicos. Estes, muito embora
possam ser mais facilmente inteligíveis, possuem a desvantagem de estarem já impregnados de
valores éticos e normativos que restringem a sua capacidade de adaptação a realidades
distintas.
Quatro questões de princípio, contudo, são consensuais e representam uma visão
fundamentalmente ideológica do desenvolvimento sustentável: (National Research Council,
1999, p. 23):
• o que é preciso sustentar: as condições necessárias à permanência da vida na Terra (em
particular a do ser humano);
• o que se pretende desenvolver: as condições que, embora não indispensáveis à
sobrevivência da vida a uma escala global, são relevantes para a existência de espécies
(aparentemente) não essenciais, as suas populações e a qualidade de vida humana;
• que tipos de ligações devem existir entre o que se pretende sustentar e desenvolver;
• o horizonte temporal em causa.
As respostas a estas questões e a outras mais específicas como “quais os recursos do planeta
que podem ser utilizados para proveito do ser humano? qual o grau de extinção de espécies
admissível? que locais poderão ser irreversivelmente degradados?” dependem do contributo de
ciências naturais como a ecologia e biofísica, mas requerem em larga medida uma valoração
baseada na ética e operacionalizada através de opções políticas.
Estas opções são complexas e encontram-se sujeitas a uma diversidade de pressões, o que é
particularmente visível ao nível da política internacional. Entre as decisões e o que é
efectivamente cumprido, contudo, pode haver um desfasamento significativo. Portanto, as
metas de sustentabilidade definidas às escalas global, regional e local devem ser encaradas com
esperança e, simultaneamente, com uma dose apreciável de cepticismo, visto que em grande
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parte dos casos os meios necessários para que a mudança preconizada ocorra não são
disponibilizados.
Ao longo deste capítulo serão descritos alguns modelos conceptuais que constituem
importantes desenvolvimentos teóricos ao nível da ciência da sustentabilidade, tanto a uma
escala global como ao nível mais específico dos sistemas urbanos. Não se pretende uma
listagem e descrição exaustivas dos modelos existentes, mas sim fazer referência a abordagens
recentes e úteis para a definição de um modelo mais integrado de desenvolvimento
sustentável.
Não serão abordados, por isso, conceitos tão caros à economia ecológica como a
sustentabilidade forte e fraca ou ainda os princípios operacionais de Daly utilizados no método
“The Natural Step” (ver, por ex., Ayres et al., 1996; Goodland, 1995; Parris & Kates, 2003; e
Robèrt, Daly, Hawken, & Holmberg, 1997). O modelo de desenvolvimento sustentável
proposto no capítulo 4, contudo, terá em consideração também estas abordagens.
2.1 A teoria da panarquia
A literatura científica mais recente vem devotando um interesse crescente relativamente ao
carácter processual do desenvolvimento sustentável enquadrando-o numa perspectiva cíclica.
Significa isto que, ao invés de se encarar a sustentabilidade como um fim último a atingir, se
deve privilegiar uma perspectiva de capacidade adaptativa da sociedade com o tempo. Holling
(2001) apelidou de “panarquia” o conceito que explica a capacidade evolutiva dos sistemas
complexos: a estrutura hierárquica segundo a qual os sistemas naturais, humanos e sociais se
interligam em ciclos de crescimento, acumulação, reestruturação e renovação. Segundo o
autor, a sustentabilidade de um sistema complexo depende fundamentalmente do
comportamento de um reduzido número de variáveis críticas, as quais controlam o
funcionamento dos ciclos evolutivos: “Se a sustentabilidade significa alguma coisa, tem a ver com um pequeno conjunto de
variáveis críticas e auto-organizadas e com as transformações que ocorrem nelas durante
o processo evolucionário de desenvolvimento da sociedade” (Holling, 2001, p. 391).
Holling identificou as três variáveis que, segundo a teoria da panarquia, moldam os ciclos
adaptativos e o estado futuro do sistema:
• potencial: a capacidade disponível de um sistema para a mudança, a qual está relacionada
com o número de opções de desenvolvimento disponíveis;
• conectividade: o grau de ligação entre as variáveis e os processos que controlam o sistema,
propriedade relacionada com a capacidade de o sistema controlar o seu próprio destino e
com a sua sensibilidade a perturbações;
• resiliência: a medida da vulnerabilidade do sistema a choques imprevistos.
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São variáveis que, não descrevendo os sistemas propriamente ditos, são responsáveis pela sua
capacidade de adaptação. A Figura 1 representa um ciclo adaptativo, o qual é caracterizado por
quatro fases essenciais:
• de r para K, longo período em que o potencial aumenta (devido ao aumento do capital) em
conjunto com um aumento de eficiência (conectividade) mas também de rigidez
(diminuição da resiliência);
• de K para Ω, e de Ω para α, em que um potencial e vulnerabilidade elevados são
propensos a que um evento despolete uma mudança brusca consumindo rapidamente os
recursos acumulados, processo que foi apelidado do “destruição criativa”;
• α, em que a combinação de um reduzido controlo (baixa conectividade) com potencial e
resiliência elevados cria as condições para o aparecimento de inovações;
• de α para r, dando origem a um novo ciclo, em que as inovações e o potencial acumulados
são utilizados com ou sem sucesso. É uma fase de reorganização, de oportunidades e de
crises.
Figura 1 – Ciclo adaptativo revelando as três variáveis que o controlam (Holling, 2001, pp. 394-395).
Ao longo de um ciclo sucedem-se períodos longos de acumulação e transformação de
recursos (de r para K) e outros, curtos, que criam oportunidades para a inovação (de Ω para
α).
Uma panarquia é um conjunto hierárquico de vários ciclos adaptativos, cuja ligação e
funcionamento determina a sustentabilidade de um sistema (Figura 2). Através da panarquia o
sistema é capaz de criar e de experimentar novas soluções, beneficiando daquelas que criam
oportunidades e evitando as que representam uma ameaça.
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Figura 2 – Panarquia e hierarquia institucional de sistemas de regras e de normas revelando relações
entre escalas de espaço ou pessoas e tempo (Holling, 2001, p. 393 e 397).
Segundo Holling (2001, p. 399), “sustentabilidade é a capacidade de criar, testar e manter
capacidade adaptativa. Desenvolvimento é o processo de criar, testar e manter oportunidades.
A expressão combina os dois, “desenvolvimento sustentável”, refere-se por isso ao objectivo
de promover simultaneamente capacidades adaptativas e a criação de oportunidades.” A
adopção de medidas com vista à sustentabilidade de um determinado sistema requer, segundo
o autor, uma análise prévia sobre a posição do ciclo adaptativo em que se encontra, visto que
certas acções podem ser apropriadas a uma fase mas não a outra.
Nem todos os ciclos são adaptativos. Holling descreve dois tipos de ciclos maladaptativos:
• a armadilha da pobreza: combinação de reduzido potencial, conectividade e resiliência (por
exemplo, uma sociedade depauperada pela guerra, onde os recursos escasseiam, o capital
social é diminuto e não possui capacidade de inovação);
• a armadilha da rigidez: combinação de elevado potencial, conectividade e resiliência (por
exemplo, uma oligarquia baseada no petróleo, onde o capital é muito elevado mas a rigidez
das normas sociais é tão elevada que não há espaço para a criatividade).
Sustentabilidade significa manter em funcionamento os ciclos adaptativos e, por isso mesmo,
evitar eventuais tendências para a queda nas armadilhas mencionadas.
2.2 Os orientadores do comportamento
Na tentativa de melhor compreender a motivação humana e o seu impacte nas decisões e
acções, Hartmut Bossel desenvolveu a teoria dos orientadores (em inglês “orientators”) para
sistemas complexos. O autor argumenta que há orientadores básicos que representam
interesses fundamentais comuns a todos os sistemas auto-organizativos. Os orientadores
desenvolveram-se como resposta a propriedades fundamentais também elas características de
todos os sistemas ambientais (Bossel, 2000, p. 339). Visto que num sistema viável é necessário
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um grau mínimo de satisfação de cada uma destas propriedades, a teoria pode revelar-se uma
ferramenta útil para seleccionar indicadores de sustentabilidade.
O entendimento de que uma cidade constitui um sistema complexo permite testar
directamente a teoria de Bossel. O autor definiu seis orientadores básicos determinados pelo
ambiente (Bossel, 2000, pp. 341-342), tal como representado na Figura 3:
• existência: o sistema deve ser compatível com o estado normal do ambiente;
• efectividade: o sistema deve ser capaz de assegurar o fornecimento de recursos
indispensáveis à sua existência;
• liberdade de acção: o sistema deve ter a capacidade de lidar de várias formas com os
desafios colocados pela variabilidade ambiental;
• segurança: o sistema deve ser capaz de se proteger dos efeitos nefastos provocados pela
variabilidade ambiental;
• adaptabilidade: o sistema deve ser capaz de aprender, adaptar-se e organizar-se de modo a
gerar respostas mais apropriadas à evolução do ambiente;
• co-existência: o sistema deve ser capaz de modificar o seu comportamento de modo a ter
em consideração a existência de outros sistemas.
Para certos tipos de sistema Bossel considerou, ainda, outros três orientadores específicos:
• reprodução: para sistemas que se reproduzem;
• necessidades psicológicas: os seres conscientes possuem determinadas características que
precisam de ser satisfeitas;
• responsabilidade: os seres humanos precisam de fazer escolhas que terão consequências
para os sistemas afectados.
Figura 3 – Propriedades fundamentais do ambiente e orientadores correspondentes
(Bossel, 2000, p. 341).
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2.3 Dos “ultimate means” aos “ultimate ends”
Existe um extenso trabalho acerca de indicadores de desenvolvimento sustentável. Autores,
países, regiões e projectos elaboram continuamente novos conjuntos de indicadores,
partilhando alguns aspectos comuns mas também adaptados a circunstâncias específicas.
Verifica-se, contudo, que a maior parte destes conjuntos de indicadores é desenvolvida de uma
forma relativamente pragmática, procurando abarcar uma grande diversidade de temas, sem o
apoio de uma estrutura conceptual. Na prática, muitos dos conjuntos de indicadores
desenvolvidos funcionam mais como um sistemas de informação, ou seja, uma tentativa de
fornecer ao público e aos decisores dados sintéticos sobre as condições a um determinado
nível geográfico, do que como indicadores na verdadeira acepção da palavra (Bossel, 1999, pp.
11-14 e Meadows, 1998, p. 4, apresentam listas de problemas associados à escolha de
indicadores).
O modelo conceptual de desenvolvimento sustentável elaborado por Meadows (em conjunto
com outros membros do Balaton Group; ver Figura 4) é intuitivo devido à hierarquia dividida
em quatro níveis (Meadows, 1998, pp. 41-43):
• “ultimate means”: o suporte que serve de sustento à vida e à economia;
• “intermediate means”: os factores que definem a capacidade produtiva da economia;
• “intermediate ends”: os objectivos utilitários da economia tais como bens de consumo,
saúde, riqueza, conhecimento, recreação, comunicação e mobilidade;
• “ultimate ends”: o objectivo último da sociedade, ou seja, aumentar a qualidade de vida, a
felicidade, identidade, etc.
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Figura 4 – Modelo conceptual, hierárquico, de desenvolvimento sustentável (Meadows, 1998, p. 42).
Embora membros do Balaton Group tenham levantado algumas objecções à estrutura
triangular do modelo, que pode transmitir a ideia de que o capital natural serve apenas de
suporte às actividades e bem-estar humanos – como que ignorando o valor intrínseco da vida
(matéria de debate a um nível mais filosófico) –, a autora salienta que pretende realçar a
importância do capital natural enquanto base de sustentação do ser humano bem como a
relação entre os diversos níveis hierárquicos (Meadows, 1998, p. 44).
Entre 2001 e 2005 as Nações Unidas lançaram aquele que pode ser considerado o maior
estudo alguma vez desenvolvido sobre os ecossistemas: o “Millennium Ecosystem
Assessment”. O objectivo foi avaliar as consequências das alterações nos ecossistemas no ser
humano e estabelecer uma base científica para as acções necessárias à sua conservação, gestão
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sustentável e promoção dos serviços que prestam à sociedade. A estrutura conceptual
utilizada perdeu a hierarquia do modelo de Meadows mas, em compensação, ganhou
dinamismo (ver Figura 5).
Figura 5 – Estrutura de análise do “Millenium Ecosystem Assessment”
(Millennium Ecosystem Assessment, 2005, p. vii)
2.4 Modelos à escala urbana
Não existem definições consensuais sobre o que constitui uma cidade sustentável, pelo que se
podem encontrar na literatura diversas alternativas. Apresentam-se apenas duas: “(…) o objectivo da sustentabilidade numa cidade é a redução do consumo de recursos
naturais e da produção de resíduos, melhorando simultaneamente a sua vivência, de tal
forma que se adapte melhor às capacidade dos ecossistemas locais, regionais e globais”
(Newman, 1999, p. 220).
“Uma cidade sustentável é organizada de modo a tornar todos os seus cidadãos capazes
de satisfazerem as suas necessidades e de melhorarem o seu bem-estar sem prejudicarem
o mundo natural ou porem em perigo as condições de vida de outras pessoas, agora ou no
futuro” (Girardet, 1999).
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Existem ainda definições mais específicas, tal como a de uso do solo sustentável: “Para que o desenvolvimento do uso do solo, dos padrões do solo artificializado e das
infra-estruturas numa área sejam considerados sustentáveis, ele tem de satisfazer as
necessidades vitais dos habitantes dessa área de uma forma sustentada para o futuro, e
não pode estar em conflito com o desenvolvimento sustentável a um nível global” (Naess,
2001, p. 505).
Estes objectivos foram operacionalizados através de cinco elementos principais (Naess, 2001,
p. 506):
• redução da utilização de energia e das emissões;
• minimização da conversão de áreas naturais para produção alimentar;
• minimização do consumo de materiais de construção prejudiciais ao ambiente;
• substituição dos fluxos abertos, onde os recursos naturais são transformados em resíduos,
em ciclos fechados suportados numa extensão maior em recursos locais;
• um ambiente saudável para os habitantes.
Vários outros autores propuseram análises sistémicas de cidades, embora por vezes segundo
perspectivas mais direccionadas. O conceito de metabolismo urbano, que emergiu há cerca de
30 anos, representa uma abordagem holística ao planeamento urbano, explorando as
interacções entre fluxos de recursos, processos de urbanização, produção de resíduos e
qualidade de vida (Rotmans, van Asselt, & Vellinga, 2000, p. 266). Este modelo inicial de
metabolismo foi estendido no sentido de passar a incluir também as dinâmicas das áreas
urbanas e a sua sociabilidade, i.e., não apenas os processos físicos e biológicos das cidades mas
também toda a sua base humana (Newman, 1999, p. 221). Ver também Figura 6.
Figura 6 – Metabolismo dos sistemas urbanos (Newman, 1999, p. 221)
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Jan Rotmans et al. propuseram uma ferramenta integrada de planeamento que em princípio
pode ser aplicada a qualquer cidade (Figura 7). Os autores consideram a cidade como um
sistema complexo constituído por stocks e fluxos de diversos tipos, incluindo físicos,
financeiros, informativos e de conhecimento (Rotmans, van Asselt, & Vellinga, 2000, p. 268). A
avaliação da sustentabilidade deve ser levada a cabo através da medição, análise e projecção
das relações entre as mudanças de longo prazo (stocks) e de curto prazo (fluxos).
Figura 7 – Esquema para análise de Maastricht usado por (Rotmans, van Asselt, & Vellinga, 2000, p. 268).
Um modelo semelhante foi proposto por Joe Ravetz através do intitulado Integrated
Sustainable Cities Assessment Method (ISCAM) – ver Figura 8. A abordagem representa uma
extensão dos modelos de metabolismo e do DPSIR (driving forces, pressures, state, impacts e
responses). A característica comum entre ambos é a interpretação dos problemas ambientais
humanos como uma desregulação ou disfunção entre necessidades, a montante, e impactes, a
jusante (Ravetz, 2000, p. 44).
Figura 8 – Estrutura do método ISCAM (Ravetz, 2000, p. 44).
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O conceito de ecossistema urbano surgiu da necessidade de conciliar a investigação nas áreas
da biologia e ecologia com as ciências sociais, designadamente a sociologia e geografia, no
sentido de se caminhar em direcção a uma teoria unificada que explique a ecologia de todas as
formas de vida (Machlis & Force, 1997).
Este entendimento multidisciplinar incorpora o ser humano nos ecossistemas, ao invés de o
entender meramente como um agente externo de perturbação, encarando os sistemas
urbanos como mais um tipo de ecossistema com características próprias. Isso deve-se à
percepção, cada vez mais evidente, de que a resolução dos problemas ambientais passa
necessariamente por alterações comportamentais do ser humano, e que não é possível gerir
de forma sustentável os ecossistemas sem compreender e controlar, simultaneamente, os
agentes que estão na origem da sua degradação e evolução.
Coexistem actualmente duas visões principais relativamente à ecologia urbana. Uma,
denominada “ecologia na cidade”, examina a estrutura ecológica e o funcionamento dos
habitats ou organismos nas cidades; outra, intitulada “ecologia da cidade”, debruça-se sobre
toda a cidade ou área metropolitana segundo uma perspectiva ecológica (Pickett et al., 2001, p.
130). O primeiro modelo é marcadamente analítico, enquanto o segundo privilegia uma visão
mais sistémica, enfatizando não apenas as partes do sistema mas também as relações que
existem entre elas. Esta perspectiva é comum na análise de sistemas complexos e, em
particular, na literatura da “economia ecológica” e da “ciência da sustentabilidade”.
Machlis & Force (1997) desenvolveram o modelo de ecossistema humano, o qual permite
organizar os seus diversos componentes, fenómenos e interacções numa estrutura global. Este
modelo foi posteriormente trabalhado por (Pickett et al., 1997; Pickett et al., 2001), como se
pode observar na Figura 9.
Figura 9 – Estrutura do ecossistema humano (Pickett et al., 2001, p. 149).
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O modelo coloca em evidência os recursos essenciais para o funcionamento do ecossistema
(não apenas naturais mas também sociais e culturais), as ligações funcionais entre os diversos
subsistemas e integra uma abordagem institucional e processual que lhe confere dinamismo.
No âmbito da sustentabilidade urbana e baseando-se parcialmente nos conceitos de Holling,
(Egger, 2006, p. 1240) optou por dividir o sistema urbano em duas categorias:
• “net”: o impacte da cidade noutras regiões do mundo através do comércio, investimento
estrangeiro, poluição, consumo de recursos, etc;
• “self”: a forma como a cidade satisfaz as necessidades dos seus habitantes, como se adapta
e como se protege de perturbações externas. Esta categoria é ainda dividida em duas:
capacidade, relacionada com o bom funcionamento dos ciclos adaptativos, e condição, que
procura medir a qualidade de vida e os resultados do desenvolvimento da cidade.
Os vários modelos apresentados reflectem, cada um, uma parte da realidade. Esquemas mais
elaborados, contendo um maior número de funções e de processos, podem ser
contraproducentes devido a uma menor legibilidade. Há um equilíbrio a encontrar entre
esquemas completos e intuitivos. O próximo capítulo apresenta uma tentativa de integrar num
único modelo um conjunto mais alargado de elementos essenciais quando se aborda o
desenvolvimento sustentável.
3. Um modelo integrado de desenvolvimento sustentável
Apesar de a bibliografia relativa ao desenvolvimento sustentável ser numerosa, não se
encontrou ainda um modelo conceptual capaz de agregar as várias perspectivas existentes.
Pode não ser possível combinar essas abordagens num todo coerente, mas cremos ser
possível integrar de forma mais completa a informação disponível. (Parris & Kates, 2003)
referem-se a este aspecto e a necessidade de mais investigação, designadamente na área dos
indicadores.
O esquema que se propõe na Figura 10 procura integrar os contributos descritos no capítulo
2 bem como outras abordagens relevantes e não aqui analisadas. O objectivo principal deste
modelo é enfatizar as condições necessárias para que a transição para a sustentabilidade possa
ocorrer, bem como os processos, fluxos, capitais e relações entre eles cuja gestão é
fundamental.
Um modelo integrado de desenvolvimento sustentável às escalas global e urbana
Figura 10 – Modelo integrado de desenvolvimento sustentável.
O esquema está orientado segundo uma dupla hierarquia:
• uma pirâmide que representa a relação entre os diversos tipos de capital: na base,
enquanto suporte de todo o ecossistema humano, encontra-se o capital natural; numa
posição intermédia, o capital manufacturado e o capital institucional (que alguns autores
enquadram no capital social); no topo da pirâmide encontram-se o capital humano e o
capital social, cuja existência e desenvolvimento depende do bom funcionamento dos
sistemas natural e económico;
• uma relação entre recursos, serviços por eles prestados e objectivos que esses serviços
procuram atingir, mais concretamente a satisfação das necessidades de que os sistemas
dependem para serem viáveis.
No seu conjunto, esta dupla hierarquia, combinada com o processo de mudança baseado nos
ciclos adaptativos de Holling, constitui a matriz fundamental do desenvolvimento sustentável:
encarar a defesa da vida na Terra como a razão de ser da própria vida, razão pela qual se
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encontra no topo da pirâmide; e assegurar a manutenção e viabilidade de cada um dos sistemas
que compõem o ecossistema humano.
O modelo apresentado, porém, está ainda a ser desenvolvido, pelo que todos os comentários
e sugestões acerca do mesmo serão bem vindos.
Numa tentativa de descer de escala e analisar de forma mais aprofundada os sistemas urbanos,
no próximo capítulo procurar-se-á aplicar a teoria dos orientadores de Bossel a este caso
concreto.
4. Aplicação da teoria dos orientadores ao sistema urbano
Por serem genéricos e aplicáveis a qualquer sistema, os orientadores podem ser pouco
perceptíveis sem uma reflexão mais aprofundada sobre o seu significado, pelo que se apresenta
a sua aplicação ao caso concreto dos sistemas urbanos, enumerando os temas de análise
envolvidos. A concretização desta tarefa implica ter sempre presente uma questão essencial: o
que caracteriza os sistemas urbanos e é fundamental para a sua existência e prosperidade? A
Tabela 1 constitui uma primeira tentativa de resposta. Não foram incluídos os orientadores
reprodução e responsabilidade por não serem aplicáveis.
Tabela 1 – Propriedades dos sistemas urbanos relativamente aos orientadores de Bossel.
Orientadores Necessidades do
sistema urbano Temas envolvidos
Existência: o sistema urbano deve ser
compatível com o seu ambiente interno
e externo
Qualidade
ambiental
Saúde
Qualidade do ar, da água e do solo
Biodiversidade
Ruído
Efectividade: o sistema urbano deve
organizar-se de modo a manter-se e a
prosperar
Estrutura
Estrutura urbana (modelo de cidade,
ocupação do solo, estrutura ecológica,
vias de comunicação, passeios e
ciclovias, estacionamento)
Estrutura populacional (demografia)
Base económica (sectores
económicos, emprego)
Efectividade: o sistema urbano deve ser
capaz de receber os recursos de que
necessita, de os processar e de escoar
os seus resíduos de forma eficiente
Fluxos
Metabolismo (consumo de recursos,
produção de resíduos)
Transportes (sistema de transportes,
repartição modal)
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Orientadores Necessidades do
sistema urbano Temas envolvidos
Liberdade de acção: o sistema urbano
deve ter a capacidade de lidar com os
desafios existentes e de tomar decisões
Governança
Sistema político
Liberdades e garantias
Participação pública
Acesso à informação e sua divulgação
Transparência dos processos de
decisão
Segurança: o sistema deve ser capaz de
se proteger de fenómenos ou situações
que constituam uma ameaça
Segurança
Segurança social
Protecção civil
Justiça
Risco
Adaptabilidade: o sistema urbano deve
ser capaz de evoluir e de se adaptar Inovação
Inovação
Estilos de vida
Coexistência: o sistema deve ser capaz de
interagir (cooperar ou competir) com
outras regiões e com o mundo rural
Coexistência Comércio
Sistemas de comunicação
Necessidades psicológicas: o sistema
urbano deve proporcionar aos seus
habitantes uma vida feliz e preenchida
Necessidades
psicológicas
Recreio
Educação e cultura
Desporto
Habitação
Rendimentos
Estrutura familiar
Os orientadores de Bossel foram desta forma transformados em sete necessidades essenciais
dos sistemas urbanos, às quais correspondem diversas temáticas. As necessidades não são
substituíveis, ou seja, um elevado desempenho de uma não compensa um menor desempenho
de outra. Contudo, existem inter-relações entre elas – afectam-se e reforçam-se mutuamente
– e algumas são mais importantes ou requerem um grau de satisfação maior do que outras;
algumas podem existir com défice prolongadamente enquanto que, noutros casos, um défice
elevado mesmo que temporário poderá implicar graves consequências. É importante, mas de
grande dificuldade prática, determinar valores limiar a partir dos quais a recuperação é difícil
ou impossível. Existe uma base de dados na internet que agrupa precisamente investigação
neste sentido, embora não propriamente vocacionada aos sistemas urbanos (ver
http://www.resalliance.org/185.php).
Um modelo integrado de desenvolvimento sustentável às escalas global e urbana
5. Conclusão
Ao longo deste artigo analisaram-se algumas abordagens inovadoras ao desenvolvimento
sustentável, as quais foram integradas no capítulo 3 num único modelo esquemático. Este
modelo procura enfatizar as condições, stoques e processos que são necessários para que a
transição para a sustentabilidade possa ocorrer. No fundo, trata-se de lançar as sementes para
que o caminho possa, naturalmente, surgir.
O caminho será longo e complexo, e passará quase inevitavelmente pelas cidades, devido à
urbanização crescente do planeta, com tendência para se acentuar. Os orientadores de Bossel
permitiram, na aplicação ao caso dos sistemas urbanos, compreender melhor as necessidades
de que precisam de satisfazer para assegurar a sua viabilidade.
A organização e estrutura das cidades, o seu sistema produtivo, a sua relação com a região
envolvente e, talvez o mais importante, os estilos de vida da população, serão provavelmente
factores determinantes para o sucesso da transição para a sustentabilidade.
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