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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 30, n. 3, 3601 (2008) www.sbfisica.org.br Hist´oriadaF´ ısica e Ciˆ encias Afins Um esbo¸co da hist´oria do conceito de trabalho virtual e suas aplica¸c˜ oes (An outline concerning the history of the concept of virtual work and its applications) Jos´ e Louren¸co Cindra 1 Universidade Estadual Paulista, Campus de Guaratinguet´a, SP, Brasil Recebido em 11/1/2008; Revisado em 16/4/2008; Aceito em 18/4/2008; Publicado em 18/9/2008 Neste trabalho abordamos a quest˜ao concernente `a origem do princ´ ıpio de trabalho virtual e sua consolida¸c˜ao como um dos conceitos fundamentais no estudo da mecˆanica anal´ ıtica e, em particular, dos sistemas em equil´ ıbrio est´atico. ˆ Enfase foi dada `as contribui¸ oes seminais de Stevin, Galileu e, sobretudo, as de d’Alembert e Lagrange, no tocante ao conceito de trabalho virtual. Al´ em disso, faz-se um coment´ ario geral sobre v´ ınculos holˆonomos e deslocamento virtual. Alguns exemplos de emprego da equa¸c˜ao de d’Alembert-Lagrange s˜ao apresentados, para mostrar como o princ´ ıpio de trabalho virtual pode ser adequadamente aplicado. Palavras-chave: trabalho virtual, deslocamento virtual, v´ ınculo, princ´ ıpio d’Alembert. In this work is discussed the question concerning the origin and development of the principle of virtual work as a fundamental principle in the study of the analytical mechanics, and particularly of the static equilibrium of an initially motionless system. The seminal contributions of Stevin, Galileo, d’Alembert and Lagrange are emphasized. Furthermore, the concept of holonomic constraints and virtual displacements are presented. Some examples of how to apply the D’Alembert’s principle expressed under the D’ Alembert-Lagrange equation are introduced, in order to show how this fundamental principle of static and dynamics can be successfully employed. Keywords: virtual work, virtual displacement, constraint, D’Alembert’s principle. 1. Considera¸c˜oespreliminares Umano¸c˜ ao bastante vaga de trabalho virtual parece ter se originado j´a nos prim´ordios da mecˆanica. Como muitos conceitos e princ´ ıpios da f´ ısica, o conceito de trabalho virtual, juntamente com outros conceitos cor- relatos, como o de deslocamento virtual e velocidade virtual, teve sua evolu¸c˜ ao desde intui¸c˜ oes gerais rela- tivamente vagas at´ e ficar bem estruturado no ˆambito daconcep¸c˜ ao diferencial do movimento. Este conceito teve sua origem nos problemas de est´atica, bem an- tes do aparecimento das c´ elebres trˆ es leis de Newton. Posteriormente,gra¸cas`ascontribui¸c˜ oes de d’Alembert e Lagrange, este conceito passou a ser tratado como um princ´ ıpio fundamental da dinˆamica e foi incorpo- rado pela mecˆanica newtoniana, de modo a dar conta n˜ao apenas dos problemas de est´atica, mas tamb´ em dos problemas envolvendo corpos em movimento. Por que abordar o conceito de trabalho virtual, se, nos cursos elementares de mecˆanica, esse conceito, em geral, nem sequer ´ e citado? ` A primeira vista, pode pa- recer que o formalismo estritamente newtoniano com base nas trˆ es conhecidas leis da dinˆamica resolveria qualquer problema mecˆanico bem formulado, dispen- sando, assim, a preocupa¸c˜ ao com uma nova abordagem baseada em conceitos alternativos. Entretanto, h´a pro- blemas relativamente simples que n˜ao podem ser re- solvidos pelo m´ etodo newtoniano stricto sensu. Um problema dessa natureza ´ e apresentado por Stadler [1]. O exemplo escolhido por ele ´ e o de um pˆ endulo duplo constitu´ ıdo por duas massas puntiformes m 1 e m 2 liga- das por duas hastes r´ ıgidas de comprimentos desiguais. Ele mostra que o emprego da terceira lei de Newton para esse problema resulta numa incompatibilidade das equa¸c˜ oes diferenciais do movimento. ´ E preciso, ent˜ ao, em lugar da centralidade das for¸cas internas, introduzir de modo independente, a lei do momento angular, isto ´ e, a derivada temporal do momento angular do sistema de part´ ıculas ´ e igual ao momento resultante de todas as for¸cas externas que atuam sobre o sistema. O autor ainda mostra que o problema tamb´ em pode ser adequa- damente resolvido se aplicarmos a ele uma abordagem totalmente alternativa: a lei de conserva¸c˜ ao da ener- gia e o postulado de que o trabalho virtual de todas as for¸cas internas do sistema se anula. Comecemos este trabalho, tecendo alguns co- ment´ arios sobre os precursores e os que formaliza- ram o princ´ ıpio do trabalho virtual. Em seguida, ire- mos apresentar os conceitos de v´ ınculos, de desloca- mento virtual e de trabalho virtual. Finalmente, ire- 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 30, n. 3, 3601 (2008)www.sbfisica.org.br

Historia da Fısica e Ciencias Afins

Um esboco da historia do conceito de trabalho virtual e suas aplicacoes(An outline concerning the history of the concept of virtual work and its applications)

Jose Lourenco Cindra1

Universidade Estadual Paulista, Campus de Guaratingueta, SP, BrasilRecebido em 11/1/2008; Revisado em 16/4/2008; Aceito em 18/4/2008; Publicado em 18/9/2008

Neste trabalho abordamos a questao concernente a origem do princıpio de trabalho virtual e sua consolidacaocomo um dos conceitos fundamentais no estudo da mecanica analıtica e, em particular, dos sistemas em equilıbrioestatico. Enfase foi dada as contribuicoes seminais de Stevin, Galileu e, sobretudo, as de d’Alembert e Lagrange,no tocante ao conceito de trabalho virtual. Alem disso, faz-se um comentario geral sobre vınculos holonomos edeslocamento virtual. Alguns exemplos de emprego da equacao de d’Alembert-Lagrange sao apresentados, paramostrar como o princıpio de trabalho virtual pode ser adequadamente aplicado.Palavras-chave: trabalho virtual, deslocamento virtual, vınculo, princıpio d’Alembert.

In this work is discussed the question concerning the origin and development of the principle of virtual workas a fundamental principle in the study of the analytical mechanics, and particularly of the static equilibriumof an initially motionless system. The seminal contributions of Stevin, Galileo, d’Alembert and Lagrange areemphasized. Furthermore, the concept of holonomic constraints and virtual displacements are presented. Someexamples of how to apply the D’Alembert’s principle expressed under the D’ Alembert-Lagrange equation areintroduced, in order to show how this fundamental principle of static and dynamics can be successfully employed.Keywords: virtual work, virtual displacement, constraint, D’Alembert’s principle.

1. Consideracoes preliminares

Uma nocao bastante vaga de trabalho virtual pareceter se originado ja nos primordios da mecanica. Comomuitos conceitos e princıpios da fısica, o conceito detrabalho virtual, juntamente com outros conceitos cor-relatos, como o de deslocamento virtual e velocidadevirtual, teve sua evolucao desde intuicoes gerais rela-tivamente vagas ate ficar bem estruturado no ambitoda concepcao diferencial do movimento. Este conceitoteve sua origem nos problemas de estatica, bem an-tes do aparecimento das celebres tres leis de Newton.Posteriormente, gracas as contribuicoes de d’Alemberte Lagrange, este conceito passou a ser tratado comoum princıpio fundamental da dinamica e foi incorpo-rado pela mecanica newtoniana, de modo a dar contanao apenas dos problemas de estatica, mas tambem dosproblemas envolvendo corpos em movimento.

Por que abordar o conceito de trabalho virtual, se,nos cursos elementares de mecanica, esse conceito, emgeral, nem sequer e citado? A primeira vista, pode pa-recer que o formalismo estritamente newtoniano combase nas tres conhecidas leis da dinamica resolveriaqualquer problema mecanico bem formulado, dispen-sando, assim, a preocupacao com uma nova abordagem

baseada em conceitos alternativos. Entretanto, ha pro-blemas relativamente simples que nao podem ser re-solvidos pelo metodo newtoniano stricto sensu. Umproblema dessa natureza e apresentado por Stadler [1].O exemplo escolhido por ele e o de um pendulo duploconstituıdo por duas massas puntiformes m1 e m2 liga-das por duas hastes rıgidas de comprimentos desiguais.Ele mostra que o emprego da terceira lei de Newtonpara esse problema resulta numa incompatibilidade dasequacoes diferenciais do movimento. E preciso, entao,em lugar da centralidade das forcas internas, introduzirde modo independente, a lei do momento angular, istoe, a derivada temporal do momento angular do sistemade partıculas e igual ao momento resultante de todasas forcas externas que atuam sobre o sistema. O autorainda mostra que o problema tambem pode ser adequa-damente resolvido se aplicarmos a ele uma abordagemtotalmente alternativa: a lei de conservacao da ener-gia e o postulado de que o trabalho virtual de todas asforcas internas do sistema se anula.

Comecemos este trabalho, tecendo alguns co-mentarios sobre os precursores e os que formaliza-ram o princıpio do trabalho virtual. Em seguida, ire-mos apresentar os conceitos de vınculos, de desloca-mento virtual e de trabalho virtual. Finalmente, ire-

1E-mail: [email protected].

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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mos escrever a equacao de d’Alembert-Lagrange comosendo a expressao matematica do chamado princıpio ded’Alembert, que e um dos princıpios mais importantesda mecanica. Achamos conveniente comecar esta dis-cussao com algumas consideracoes sobre Simon Stevine Galileu.

Simon Stevin (1548-1620) nasceu em Bruges, naBelgica, e morreu em Haia, na Holanda. Em 1581,os Estados Gerais se declararam independentes da Es-panha. Stevin, como fısico, matematico e engenheiro,esteve engajado nos esforcos militares do prıncipeMaurıcio de Nassau para a consolidacao da inde-pendencia dos Estados Gerais, ou seja, da regiao queposteriormente viria a constituir os Paıses Baixos (naoconfundir com o outro Maurıcio de Nassau, aqueleque esteve a frente do domınio holandes no nordestebrasileiro). Em 1600, Stevin, seguindo instrucoes deMaurıcio de Nassau, funda um curso de Engenharia naUniversidade de Leyden, onde as aulas eram ministra-das em holandes mesmo, e nao em latim, como era dehabito na epoca. Com isso, o curso tornava-se maisacessıvel a camadas mais amplas da populacao. Com omesmo proposito, ele escreveu suas obras cientıficas emholandes. Isso nos mostra uma nova atitude da burgue-sia vitoriosa, na sua luta secular contra as instituicoesfeudais.

Stevin introduziu muitos neologismos cientıficos noidioma holandes. Um exemplo tıpico e a palavra “ma-tematica”, que, em praticamente todos os idiomas eu-ropeus tem a mesma origem grega, mas, em holandesela tem uma origem germanica: Wiskunde. Outros neo-logismos introduzidos por Stevin foram aftrekken (sub-trair) e delen (dividir), middellijn (diametro) que con-tinuam os mesmos. Entretanto, menigvuldigen (multi-plicar) e verdageren (adicionar) transformaram-se emverminigvuldigen e optellen, respectivamente. Ja a pa-lavra zomenigmaal (quociente, “assim muitas vezes”),no moderno holandes e quotient.

Autor de onze livros, Stevin deu contribuicaosignificativa a trigonometria, mecanica, arquitetura,geografia, fortificacao e navegacao. Calculou a de-clinacao magnetica (diferenca angular entre o polonorte magnetico e o polo norte geografico) em diver-sos locais; demonstrou geometricamente a impossibili-dade do funcionamento de um moto-perpetuo de pri-meira especie, compreendeu a diferenca entre equilıbrioestavel e equilıbrio instavel, traduziu obras gregas, in-troduziu o uso das fracoes decimais e fez uso da vırgulapara representar essas fracoes.

Em 1586, Stevin publicava De Beghinselen des Wa-terwichts sobre hidrostatica, onde foram introduzidosnotaveis melhoramentos em relacao ao trabalho de Ar-quimedes sobre este topico. La se encontra o famoso pa-radoxo hidrostatico: A pressao exercida sobre o fundode um vaso com agua depende da altura do nıvel daagua, mas nao depende da forma do vaso nem da areado fundo. Consequencia: A forca exercida por um

lıquido sobre o fundo do vaso, devido a sua pressao,pode ser muito maior que o peso do volume do lıquidonele contido.

Muitos consideram que, com a apresentacao de sualei fundamental da hidrostatica, a lei segundo a qual, apressao hidrostatica cresce linearmente com a profundi-dade, Stevin torna-se o verdadeiro fundador da cienciada hidrostatica. Este trabalho de hidrostatica foi feitocom o intuito de melhorar a construcao de plataformasflutuantes usadas em assaltos militares.

Publicou tambem De Beghinselen der Weegconst,livro que tratava da estatica, e uma versao mais com-pleta deste mesmo trabalho apareceu em 1605. Em1608 Stevin unificou estes trabalhos sob o tıtulo de Hy-pomnemata Mathematica. Em 1634 este trabalho foitraduzido para o frances.

Neste livro se encontra o princıpio de composicaode forcas e a resolucao do problema do equilıbrio deum corpo sobre um plano inclinado, por um metodocompletamente original e que foi baseado na impossi-bilidade do moto-perpetuo de primeira especie (veja aFig. 1).

Figura 1 - A corrente de Stevin, com a legenda Wonder en isgheen wonder, contem quatorze esferas iguais. As seis esferas so-bre os catetos de um triangulo retangulo estao em equilıbrio. Sea corrente comecar a se mover, ainda assim, outras seis esferasestarao sobre esses mesmos lados do triangulo, e o sistema con-tinuara em equilıbrio. Portanto, o sistema uma vez em repouso,assim continuara para sempre. O moto contınuo e impossıvel.

A corrente de Stevin com a legenda Wonder en isgheen wonder (a magica que nao e nenhuma magica)encontra-se no frontispıcio do Hypomnemata Mathema-tica [2]. A corrente contendo quatorze contas igual-mente espacadas esta em equilıbrio, com quatro contassobre o lado maior e duas contas sobre o lado menor dotriangulo. Ela esta em equilıbrio, visto ser inconcebıvelque ela comece espontaneamente a se mover sobre oslados do triangulo. Caso isso acontecesse, terıamos rea-

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lizado um movimento perpetuo.Stevin foi um dos primeiros a introduzir o princıpio

de trabalho virtual para a resolucao de problemas deestatica, indicado em forma de proporcoes entre gran-dezas fısicas: a distancia percorrida por uma forcaesta para a distancia percorrida pela resistencia, assimcomo a intensidade da resistencia esta para a intensi-dade desta forca, ou seja, se F representa a forca, Ra resistencia, d a distancia percorrida pela forca e s adistancia percorrida pela resistencia,2 logo

d

s=

R

Fou Fd = Rs.

Isso pode ser verificado por meio da propria “cor-rente de Stevin”. Pois, podemos eliminar a parte debaixo da corrente, sem afetar o equilıbrio das seis con-tas restantes. Duas contas sobre o lado menor estao emequilıbrio com quatro contas sobre o lado duas vezesmaior. Se a corrente se mover sobre o plano inclinado,a mesma proporcao de contas entre os dois lados dotriangulo sera mantida. Portanto, espontaneamente,elas nao tem porque mover-se. Nestas consideracoesesta em germe o conceito de conservacao da energia.

Stevin conseguiu fazer da estatica uma ciencia pu-ramente dedutiva. Partindo do princıpio da impossi-bilidade do perpetuum mobile (dispositivo que realiza-ria trabalho sem consumo de energia), Stevin, de fato,chega a nocao de trabalho virtual, sem, contudo, re-conhecer explicitamente a importancia desse conceito.O que, de fato, Stevin formulou foi algo proximo aoseguinte princıpio: “o que e ganho em forca e per-dido em velocidade”. Uma origem remota do princıpiode trabalho virtual pode ser encontrada em um tra-tado atribuıdo a Aristoteles e denominado Problemasde Mecanica (Mηχανικα πρoβληµαα). Entretanto,possivelmente, trata-se de um texto apocrifo. O au-tor desse tratado derivou a lei da alavanca a partir doprincıpio de que “as forcas se contrabalancam quandosao inversamente proporcionais as velocidades”. Narealidade, o nome “velocidade virtual”, em lugar dedeslocamento virtual foi largamente usado ate o seculoXIX.

E importante ressaltar que Stevin foi um tıpico re-presentante do estilo de ciencia dos tempos moder-nos. Ele compreendeu a importancia de um novo idealcientıfico: A uniao indissoluvel da teoria e da praxis.Para ele, a tecnica seria sempre uma aplicacao de co-nhecimentos teoricos.

O livro De Beghinselen der Weegconst comeca coma seguinte assercao: Na natureza, nao ha nada de mira-culoso. Aquilo que nao compreendemos chamamos deum milagre (een wonder, em holandes). Isso acontecesimplesmente porque ainda nao conhecemos sua causa.3

Galileu Galilei (1564-1642) procurou fundamentarseus estudos de mecanica, e de hidrostatica em particu-lar, com base no conceito de momento e de velocidadevirtual. E assim que Galileu consegue explicar porqueuma pequena quantidade de agua pode sustentar e fa-zer flutuar um corpo de peso muito maior, desde queele tenha menor densidade do que a da agua. E assimque ele tenta mostrar o princıpio que esta por tras docomportamento peculiar da agua nos vasos comunican-tes. E assim que ele demonstra a condicao de equilıbriode um corpo pendente com um corpo sobre um planoinclinado. O princıpio das velocidades virtuais ja ha-via sido empregado por Guidobaldo del Monte, que otinha aplicado ao estudo das alavancas e das roldanasmoveis. O merito de Galileu esta em dar a este princıpiouma maior generalidade, estendendo-o ao estudo dosplanos inclinados e de todas as maquinas que deles de-pendem [3].

Imagine - escreveu Galileu - um corpo flutuando emum recipiente com agua e que esse recipiente tenha umaarea muito maior do que a area da base do corpo. Seesse corpo for retirado da agua, seu nıvel ira abaixarmuito pouco. Entretanto, se esse mesmo corpo passara flutuar em um recipiente de dimensoes pouco maiorque a do proprio corpo, quando ele for retirado da agua,seu nıvel ira abaixar consideravelmente. No primeirocaso, uma grande quantidade de agua abaixou seu nıvelmuito pouco, no segundo uma pequena quantidade deagua abaixou muito seu nıvel: Nos dois casos citados, oproduto da area do fluido pela velocidade com que seunıvel abaixa deve ser o mesmo. Esta aı um exemplo doemprego do conceito de velocidade virtual.

No caso dos vasos comunicantes, ocorre um efeitosimilar. Consideremos dois vasos comunicantes comdiametros muito desiguais. A agua esta em equilıbrionos dois vasos. Imaginemos entao que este equilıbrioseja alterado. A agua entao podera se elevar muito novaso mais estreito e descer muito pouco no vaso maislargo, e vice-versa, pois volumes deslocados nos doissentidos tem o mesmo valor. Alem disso, o lıquido ten-dera a subir com uma velocidade muito maior no vasomais estreito do que descer no vaso mais largo, e vice-versa. Este e outro exemplo de velocidade virtual [4].

No caso de um plano inclinado (Fig. 2), Galileu re-presenta o comprimento da base do plano por AB, suaaltura por BC e o plano inclinado por AC. Se doiscorpos: corpo E e corpo F , ligados por um fio E sobreo plano e F pendente, estao em equilıbrio, entao o pesoF estara para o peso E assim como BC estara para CA

F

E=

BC

CAou entao F = E

(BC

CA

).

2The distance traveled by the force actinga is to the distance traveled by the resistance as the power of the resistance is to that ofthe force acting.Ut spatium agentis ad spatium patientis, sit potential patientis ad potentiam agentis (Stevin, Hypomnemata, apud Ref. [7, p. 127]).

3Het is wel waar dat er in de Natuur niets wonderbaars is, maar als we niet begrijpen waarom iets is zoals het is, dan spreken weterecht van een wonder, omdat het zich aan ons zo voordoet (ver http://www.xs4all.nl/∼adcs/stevin).

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Figura 2 - O corpo sobre o plano inclinado esta em equilıbrio comoutro corpo suspenso por um fio passando por uma polia.

Imaginemos entao que este equilıbrio seja ligeira-mente perturbado: o corpo E pode sofrer um deslo-camento na vertical para cima, enquanto o corpo Fsofre outro deslocamento para baixo. Novamente, BCestara para CA assim como o deslocamento de E: des-locamento ∆E (projecao vertical) estara para o deslo-camento de F : deslocamento ∆F . Portanto, o deslo-camento F esta para o deslocamento E assim como opeso F esta para o peso E.

BC

CA=

∆E

∆Fou

∆E

∆F=

F

E.

Sejam ∆ os deslocamentos de E ao longo do planoinclinado e de F na vertical. A componente vertical de∆ para o corpo E e ∆E = ∆senθ, logo,

F

E= senθ, ou seja, F = E senθ.

Galileu, utilizando argumentos desta natureza, con-seguiu reduzir o equilıbrio de corpos sobre planos incli-nados a lei da alavanca. Nos estamos mais acostumadosa resolver este tipo de problema com a decomposicaodos pesos em componentes paralela e perpendicular aoplano e o uso concomitante de funcoes trigonometricas.Aplicamos a segunda lei de Newton a cada corpo, consi-derando o caso particular de aceleracao nula e chegamosa mesma condicao de equilıbrio a que chegou Galileu.

Galileu ainda teve o merito de utilizar uma aborda-gem dinamica na resolucao de problemas de estatica.Neste aspecto, ele deu um passo a frente de Arqui-medes e de Stevin. O tempo comeca a entrar expli-citamente em suas consideracoes sobre as questoes demecanica. Segundo Stillman Drake [5], Guidobaldodel Monte percebera um hiato intransponıvel entre aestatica e a dinamica, enquanto Galileu ja notou em1593 que, tendo em vista o fato de que qualquer forcapor pequena que seja e capaz de perturbar o equilıbrio

de um corpo, nenhuma distincao deve ser feita entre opoder requerido para sustentar um peso e o necessariopara move-lo. Em conformidade com isso, ele formulouuma regra geral, segundo a qual ha proporcionalidadeentre forcas, pesos, velocidades, distancias e tempo, demodo que tudo que e ganho em uma dessas grandezasdeve ser perdido em outra.

2. O princıpio de trabalho virtual

O princıpio de trabalho virtual, como outros gran-des princıpios da fısica, teve uma longa historia, an-tes de se tornar um princıpio plenamente consolidado.Aristoteles, ou quem quer que tenha escrito os Proble-mas de Mecanica esta remotamente na origem desseprincıpio. Na realidade, Stevin nao o formulou ex-plicitamente, tampouco Galileu; embora Galileu tenhafalado de uma certa velocidade potencial ou virtual,e mostrou saber fazer bom uso dessa nocao. Parafra-seando Koyre [6] a respeito do que ele disse sobre oprincıpio de inercia, podemos dizer que o princıpio detrabalho virtual nao saiu ja feito, como Atena da cabecade Zeus, do pensamento de Stevin ou de Galileu. Entreos autores que contribuıram para a emergencia e a con-solidacao desse princıpio, podemos, alem do proprioStevin, citar Galileu, Jean Bernoulli, Jaques Bernoulli,d’Alembert e finalmente Lagrange. E com Jean Ber-noulli que o princıpio de trabalho virtual se aproximada nossa concepcao moderna que temos dele. Pareceque ele foi o primeiro a reconhecer o princıpio de tra-balho virtual como um princıpio geral da estatica. Cor-nelius Lanczos chama a atencao para o fato de Bernoulliomitir o uso das proporcoes [como fizeram Stevin e Ga-lileu] e introduz o produto da forca pela velocidade nadirecao dessa forca, tomado com sentido positivo ou ne-gativo, dependendo do angulo entre a forca e a veloci-dade ser agudo ou obtuso. O produto da forca pelo seudeslocamento Bernoulli chamou de energia. Parece queaı se encontra a primeira referencia ao termo energiapara designar algo ja bem proximo do conceito de tra-balho mecanico. Ele expressa estas consideracoes emcarta a Pierre Varignon,4 escrita em 26 de janeiro de1717. Rene Dugas [7] cita que este princıpio fora noseculo XIII usado implicitamente por Jordanus de Ne-more (tambem conhecido como Jordanus Nemerarius).Mais tarde dele fizeram uso Rene Descartes e John Wal-lis. De fato, o mesmo Dugas [7, cap. 3] discorre sobreo Elementa Jordanus super demonstrationem ponderis.Ele assevera que a originalidade de Jordanus esta nouso sistematico, em seu estudo do movimento de corpos,

4Jean Bernoulli wrote, in letter to Varignon, “Imagine several different forces which act according to different tendencies or in dif-ferent directions in order to hold a point, a line, a surface or a body in equilibrium. Also, imagine that a small motion is impressedon the whole system of these forces. Let this motion be parallel to itself in any direction, or let it be about any fixed point. It will beeasy for you to understand that, by this motion, each of the forces will advance or recoil in its direction; at least if one or several ofthe forces do not have their tendency perpendicular to that of the small motion, in which case that force or those forces will neitheradvance or recoil. For these advances or recoils, which are what I call virtual velocities, are nothing else than that by which each line

of tendency increases or decreases because of the small motion” (Jean Bernoulli, letter to Pierre Varignon, January 26th, 1717, apudRef. [7, p. 231-232]).

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do caminho efetivo em uma direcao vertical como umamedida do efeito de um peso, que geralmente era colo-cado na extremidade do braco de uma alavanca. Emconsequencia disso o peso descrevia um cırculo. Jor-danus expressa a ideia de “peso aparente”, segundo olugar ocupado (gravitas secundum situm). Quanto maisoblıqua e a descida de um corpo, menor e seu peso apa-rente. Segundo Jordanus, maior obliquidade de umadescida significa maior angulo de inclinacao a partir dadirecao vertical. Assim, se uma alavanca estiver em suaposicao horizontal, com pesos em suas extremidades eela girar em certo angulo, em torno do ponto de apoio,um dos pesos ira subir uma certa distancia enquanto ooutro ira descer outra distancia. Entretanto, se a ala-vanca nao estiver na sua posicao horizontal, seu giro emum angulo igual ao do caso anterior, sera acompanha-do de menores subida e descida dos respectivos pesos.Portanto, tudo leva a crer que a estatica de Jordanus seorigina do princıpio de trabalho virtual, mas nao aindaexplicitamente enunciado.

Nao resta duvida que o princıpio de trabalho vir-tual foi o primeiro princıpio a ser estabelecido para amecanica. Este princıpio, em seu enunciado modernosimplesmente afirma o seguinte:

Um sistema mecanico esta em equilıbrio se, e so-mente se, o trabalho virtual total de todas as forcasaplicadas for nulo.

Para entendermos de modo operacional como esseprincıpio pode ser aplicado efetivamente na resolucao deum problema de estatica, precisamos considerar algunsconceitos e grandezas fısicas auxiliares imprescindıveis.O primeiro conceito que temos que levar em conta e oconceito de vınculo.

2.1. Conceito de vınculo

Em mecanica, um vınculo e, em geral, uma restricaode natureza geometrica imposta ao movimento do sis-tema. Consideremos o caso do movimento de uma unicapartıcula. Se essa partıcula puder se mover em todasas tres direcoes no espaco, ela esta livre de vınculos.Dizemos entao que ela tem tres graus de liberdade. Se,pelo contrario, ela estiver condicionada a se mover aolongo de uma superfıcie dada, ela esta submetida a umvınculo, geometricamente falando, ela esta restrita a semover ao longo dessa superfıcie. Ela tera entao doisgraus de liberdade. Mas, se ela estiver condicionada amover-se ao longo de uma curva, esta curva e o vınculoa que ela esta submetida. Ela tera apenas um graude liberdade. Um exemplo tıpico de sistema vinculadoe formado de uma unica partıcula, possuindo apenasum grau de liberdade, seria o pendulo simples. Essependulo e constituıdo de um fio de comprimento L e deuma massa m, e que pode oscilar em um plano verti-cal, digamos plano xy. O movimento da partıcula e aolongo de um arco de circunferencia de raio L. Um sis-tema formado por duas partıculas livres tem seis graus

de liberdade: tres para o movimento do centro de massado sistema e tres para o movimento das partıculas emrelacao ao centro de massa. Entretanto, se essas mes-mas partıculas estiverem ligadas por uma haste de com-primento fixo, o sistema estara submetido a um vınculoe ele tera ao todo cinco graus de liberdade: tres para omovimento do seu centro de massa e dois para rotacaoem torno do centro de massa.

Equacao de vınculo. Em muitos casos, a equacao devınculo e uma funcao algebrica das coordenadas. Porexemplo, no caso do pendulo oscilando no plano xy, asequacoes de vınculos sao

f1 = x2 + y2 − L2 = 0 e f2 = z = 0.

Para uma partıcula condicionada a se mover na su-perfıcie de uma esfera de raio R, a equacao de vınculoe f = x2 + y2 + z2 −R2 = 0.

Nestes dois exemplos, e em muitos outros, asequacoes de vınculos nao dependem explicitamente dotempo. Significa entao que o vınculo e estacionario.Casos ha, entretanto, em que as equacoes de vınculo de-pendem explicitamente do tempo. Temos entao o quechamamos de vınculos nao-estacionarios. Por exemplo,no caso de uma partıcula que se move sobre a superfıciede uma esfera cujo raio cresce linearmente com o tempo,isto e, quando R(t) = Ro +αt, estamos em presenca deum vınculo nao-estacionario.

Em geral, os vınculos se classificam em vınculosholonomos ou integraveis (do grego: (oλoς) olos =todo ou inteiro e (νoµoς) nomos = lei) e vınculos nao-holonomos. Os vınculos holonomos sao expressos porequacoes algebricas das coordenadas, e eventualmentedo tempo: f(r, t) = 0. Os vınculos nao-holonomos naopodem ser expressos por equacoes algebricas, e sim porformas diferenciais nao integraveis do tipo df = Adx +Bdy + Cdz + (∂f/∂t)dt. Os vınculos ainda podem serclassificados como estacionarios ou escleronomicos (dogrego: σκληρoς (scleros) = duro, rıgido + nomos =lei) quando as equacoes de vınculo nao dependem ex-plicitamente do tempo; caso contrario, os vınculos saochamados nao-estacionarios ou reonomicos (do grego:ρεω (reo) = fluir, correr + nomos = lei).

2.2. Deslocamento real, deslocamento possıvele deslocamento virtual

Em se tratando de uma partıcula sujeita a mais de umvınculo, ou a um unico vınculo, o deslocamento infini-tesimal real desta partıcula, como todos que estudaramum pouco de calculo ja sabem, e, em geral, represen-tado por dr, onde dr deve ser compatıvel com a equacaode vınculo e com as forcas aplicadas sobre a partıcula.Este deslocamento ocorre em um tempo infinitesimal dt.Tanto e assim que se a equacao de vınculo da partıculafor dada por f(r, t) = 0, o deslocamento dr acompanhaa sua diferencial df = ∇ f dr + ∂f

∂t dt = 0.

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3601-6 Cindra

O deslocamento possıvel e um “deslocamento” drpermitido pelo vınculo. Mas, ao contrario do desloca-mento real, o deslocamento possıvel satisfaz apenas aequacao de vınculo: df =∇f dr + ∂f

∂t dt = 0. O desloca-mento real esta contido no conjunto dos deslocamentospossıveis.

Entretanto, na mecanica analıtica, que e o ramo daciencia que estuda as equacoes do movimento com oemprego de um formalismo matematico mais bem ela-borado, ou mais sofisticado, se assim quisermos dizer,fez-se necessaria a introducao do conceito de desloca-mento virtual. Galileu, por exemplo, em alguns de seustrabalhos sobre o movimento dos corpos solidos, sobre aestatica dos solidos e sobre hidrostatica, fez uso de umconceito muito proximo daquele de deslocamento vir-tual, que e o de velocidade virtual. Autores modernosabandonaram o conceito de velocidade virtual a favordo conceito de trabalho virtual. Galileu reconheceu oimportante fato de que ao formular o princıpio de velo-cidades virtuais, nao e a velocidade, mas a componenteda velocidade na direcao da forca que deve ser levadaem conta. Com isso, e como se Galileu tivesse reconhe-cendo a importancia da grandeza trabalho, o produtoda forca pelo deslocamento na direcao da forca. Che-gando, assim, muito proximo do conceito de trabalhovirtual propriamente dito.

O deslocamento virtual e, em geral, representadopor δr e tem o seguinte significado: novamente, esta-mos em presenca de um deslocamento infinitesimal,mas nao se trata de um deslocamento real, trata-sede um deslocamento imaginario, que, entretanto, deveser compatıvel com a equacao de vınculo, em um dadoinstante de tempo: um deslocamento virtual nao temduracao: dt = 0. Portanto, se o vınculo depender ex-plicitamente do tempo, o deslocamento virtual e obtidocom a condicao de que e feito um deslocamento idea-lizado em dado instante fixo. E como se o vınculo “con-gelasse” naquele instante dado. Seria como uma especiede experiencia de pensamento que imaginamos realizarcom o sistema. Se o sistema estiver em equilıbrio, ima-ginemos a saıda desse sistema do equilıbrio, por meiode um pequeno deslocamento (virtual) do sistema comoum todo.

Dada uma equacao de vınculo holonomo f(r, t) = 0,representemos sua variacao (nao e uma diferencial) porδf = ∇fδr = 0. Notemos que δt = 0, pois, para efe-tuar um deslocamento virtual, o tempo permanece fixo.Portanto, apenas quando lidamos com vınculos esta-cionarios, os deslocamentos possıveis e os deslocamen-tos virtuais coincidem.

A Enciclopedia Larousse Cultural define “virtual”(lat. virtualis, fr. virtuel) como sendo o que nao serealizou, mas e suscetıvel de realizar-se, potencial.

Esta definicao nao nos satisfaz plenamente, pois, nocontexto da mecanica, um deslocamento virtual nao e omesmo que um deslocamento possıvel ou potencial. Doponto de vista filosofico, o adjetivo virtual se contrapoe

ao real, enquanto o possıvel se contrapoe ao atual ouconcreto. Assim como ha uma certa semelhanca entre oreal e o atual, e uma nuanca de significados distinguindoesses dois termos, tambem o virtual e o possıvel se as-semelham sob certos aspectos, mas nao sao a mesmacoisa. Em alguns casos, a diferenca entre o que e vir-tual e o que e possıvel pode ser muito sutil, mas casostambem ha em que a diferenca de significado entre elese bastante acentuada.

Lembremos o conceito de imagem virtual num es-pelho, nao se trata de uma imagem possıvel, do mesmomodo que uma partıcula virtual em teoria quantica decampo, nao significa uma partıcula possıvel, no sentidode ter algum poder de se transformar em algo concreto,algo atual.

No ambito da mecanica analıtica, o conceito de des-locamento virtual e peculiar a ela e matematicamentedefinido, nao se confundindo com o real nem com opossıvel. Entretanto, para o estudante, esse conceitopode ainda parecer pouco claro. Por isso, vamos mos-trar o seguinte exemplo, que pode servir para dissiparalgumas duvidas no tocante ao significado do desloca-mento virtual, deslocamento possıvel e deslocamentoreal.

Consideremos uma partıcula que se move sobre umplano horizontal animado de um movimento verticaluniforme, com velocidade u (Fig. 3) (ver tambemRef. [8]). A equacao de vınculo nao-estacionario e f = z- ut = 0.

O deslocamento possıvel dz satisfaz a equacao devınculo, logo

dz − udt = 0 ou dz = udt.

O deslocamento virtual e δz = 0, visto que δt = 0.

Figura 3 - Deslocamento virtual de uma partıcula que se movesobre um plano horizontal em presenca da forca da gravidade. Oplano, por sua vez, se move com velocidade constante na direcaoperpendicular, ou seja, ao longo do eixo z.

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Um esboco da historia do conceito de trabalho virtual e suas aplicacoes 3601-7

Geometricamente, o deslocamento virtual δz = 0estaria sobre o plano xy, em dado instante, como se“congelasse” uma fotografia do plano em movimento.Ja o deslocamento possıvel dz = udt poderia unir doispontos em dois planos paralelos: um ponto no instantet e outro no instante t + dt.

Finalmente, o deslocamento real dz devera satisfazertambem as forcas aplicadas sobre a partıcula. Esse des-locamento real sera entao um deslocamento realizado econcreto. Entretanto, ele se encontra entre os desloca-mentos possıveis; ele pertence ao conjunto dos desloca-mentos possıveis, para um dado sistema mecanico.

2.3. Representacao matematica do trabalhovirtual das forcas aplicadas e o das forcasde vınculo

Em muitos casos, sobre um sistema de N partıculas emequilıbrio atuam forcas aplicadas e forcas oriundas dosproprios vınculos. Podemos representar essas forcas dereacao de vınculos por Ri (i = 1, 2,...N). Os vınculossao chamados ideais, se o trabalho virtual das forcas dereacao de vınculos e nulo. Exemplos de vınculos ideaissao: a) Interconexao rıgida entre partıculas (corporıgido), b) movimento de deslizamento sobre uma su-perfıcie lisa. c) rolamento sem deslizamento. Entre-tanto, estes exemplos nao esgotam todos os casos devınculos ideais. Mesmo os vınculos reonomicos, comoe o caso de uma haste de comprimento variavel com otempo, podem ser vınculos ideais, visto que o tempo econsiderado fixo durante um deslocamento virtual (verRef. [9]). Representemos as forcas aplicadas por Fi,de modo que a condicao de equilıbrio do sistema e quea soma de todas as forcas aplicadas mais as forcas dereacao de vınculo seja nula

N∑

i

(Fi + Ri) = 0.

Podemos formalmente multiplicar toda a expressaoacima por δri. Portanto

N∑

i

Fi.δri +N∑

i

Ri.δri = 0.

Mas, como estamos considerando vınculos ideais,N∑i

Ri.δri = 0 Consequentemente

N∑

i

Fi.δri = 0

Princıpio de trabalho virtual

O princıpio de trabalho virtual afirma que um sistemamecanico estara em equilıbrio se, e somente se, o tra-balho virtual de todas as forcas aplicadas sobre ele for

nuloN∑

i

Fi

.δri = 0.

Este e o princıpio de trabalho virtual aplicado a esta-tica.

Sommerfeld [10] chama as forcas de reacao devınculos de forcas de origem geometrica. De fato, elassao devidas aos contatos de vınculos, e os vınculos, porsua vez, tem uma estrutura essencialmente geometrica.Ele denomina as forcas aplicadas de “forcas de origemfısica”, e ainda chama atencao para as forcas de atritoestatico e atrito cinetico. As primeiras sao automati-camente eliminadas pelo princıpio do trabalho virtual,ou seja, elas podem ser consideradas forcas de reacaode vınculos ideais; as ultimas devem ser introduzidascomo forcas aplicadas.

2.4. Exemplos de emprego do princıpio de tra-balho virtual

Exemplo 1: Consideremos uma alavanca de bracosdesiguais (Fig. 4), ela estara em equilıbrio, na posicaohorizontal, se pesos desiguais forem colocados em suasrespectivas extremidades. Qual a relacao entre estespesos e os bracos da alavanca?

Figura 4 - A condicao de equilıbrio de uma alavanca uniformede bracos desiguais contendo pesos desiguais P1 e P2 em suasextremidades.

Sejam b1 e b2 os comprimentos desses bracos.Suponhamos que a alavanca esteja em equilıbrio sob

acao dos pesos P1 e P2, colocados nas extremidades dosseus bracos. Para aplicar o princıpio do trabalho virtuale preciso que imaginemos o que aconteceria se um dosbracos saısse um pouco da posicao de equilıbrio (poracao de um peso infinitesimal acrescentado a um dospesos). E razoavel supor que um dos bracos ira abaixarum pouco enquanto o outro ira subir proporcionalmenteao seu comprimento. Seja δs1 o arco descrito pela ex-tremidade do braco b1 e δs2 o arco descrito pelo bracob2. Estes deslocamentos sao gerados devido a um des-locamento angular δϕ, isto e, δs1 = b1δϕ e δs2 = -b2δϕ.O princıpio de trabalho virtual exige que

δW = P1δs1 + P2δs2 = P1b1δϕ− P2b2δϕ = 0,

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3601-8 Cindra

ou, simplesmente,

(P1b1 − P2b2)δϕ = 0.

Como δϕ e arbitrario, a expressao se anula, apenasse

P1b1 = P2b2.

Esta relacao entre pesos e bracos da alavanca e, defato, a condicao de equilıbrio da alavanca. Ela foi obti-da a partir do princıpio de trabalho virtual.

Exemplo 2: Vejamos agora outro exemplo, destavez, trata-se de um problema de hidrostatica. Con-sideremos uma prensa hidraulica (Fig. 5). Um tubode area transversal A1 se comunica com um tubo dearea A2, sendo A2 > A1. Se estes contem um lıquidoincompressıvel cujo nıvel se encontra a uma altura h,o sistema estara em equilıbrio. E ele continuara emequilıbrio, mesmo quando pesos de determinados va-lores sao colocados sobre as respectivas superfıcies dolıquido. Se sobre a superfıcie menor for colocado umpeso P1, qual devera ser o peso P2 a ser colocado so-bre a superfıcie A2, de modo a manter o equilıbrio dosistema?

Figura 5 - Esquema de uma prensa hidraulica. Os dois ramosdo tubo tem areas desiguais, contem um fluido incompressıvel.Pesos desiguais P1 e P2 apoiados sobre as superfıcies livres dotubo estao em equilıbrio.

Solucao: Se o peso P1 provoca um pequeno des-locamento para baixo no fluido do tubo 1, o peso P2

ira sofrer um deslocamento vertical para cima. Peloprincıpio do trabalho virtual, temos P1δh1 + P2δh2 =0. Por outro lado, como o lıquido e incompressıvel,os volumes de lıquido deslocados nesse processo tem omesmo valor absoluto. Logo, δV1 = A1δh1 e δV2 =−A2δh2, mas δV1 = δV2, portanto, A1δs1= −A2δh2,ou seja, δh2 = - A1/A2δh1 e

(P1 −A1/A2P2)δh1 = 0.

Portanto, temos a seguinte relacao simples entre P1

e P2

P1 = (A1/A2)P2.

Como A2 > A1, logo P1 < P2. Portanto, nestascondicoes, um peso muito pequeno pode equilibrar umpeso muito maior. Este e o princıpio de funcionamentode uma prensa hidraulica. Este resultado pode tambemser deduzido a partir do princıpio de Pascal, reconhe-cendo a igualdade de pressao em todos os pontos delıquido em equilıbrio. O emprego do trabalho virtualpara a solucao desse problema dispensou o conheci-mento do princıpio de Pascal.

3. Princıpio de D’Alembert-Lagrange

Ja vimos que, para um sistema em equilıbrio, o trabalhovirtual de todas as forcas aplicadas e nulo. D’Alembertteve uma ideia engenhosa, ao perceber que um sistemaem movimento poderia ser tratado como se estivesseem repouso. Sabemos que se uma partıcula nao estaem equilıbrio, a resultante das forcas que atuam sobreela e dada pela massa da partıcula multiplicada pelasua aceleracao (segunda lei de Newton), ou seja, F1 +F2 + . . .Fn = ma. D’Alembert concluiu que podemosreescrever esta equacao na forma F1 + F2 + . . .Fn−ma= 0.

Ou ainda, como o termo -ma representa uma forcade inercia, podemos afirmar que um sistema em movi-mento esta formalmente em equilıbrio, se levarmos emconta todas as forcas aplicadas conjuntamente com asforcas de inercia. Este enunciado e comumente cha-mado de princıpio de d’Alembert.

E que Jean le Rond d’Alembert 1717-1783) em seuTraite de Dynamique (Paris, 1743) apresentou a pri-meira versao deste princıpio. E preciso, entretanto, no-tar que, ao contrario do que vemos em livros didaticos,D’Alembert nao fez uso explıcito do conceito de forca,principalmente de forcas externas, como se procede naabordagem newtoniana da segunda lei da dinamica, vis-to que, na realidade, ele estava apresentando uma novaversao da mecanica newtoniana, onde o conceito deforca nao seria um conceito primario, mas sim derivadode outros conceitos primitivos. D’Alembert recusa-se afazer apelo a nocao de forca concebida como exterioraos corpos, pois isso seria recorrer a uma abordagemmetafısica. Newton e Euler viam as forcas externascomo causas que provocam as alteracoes do movimentode um corpo. Segundo d’Alembert, as causas sao “efei-tos que resultam de outros efeitos” [11]. De fato, o queD’Alembert fez, tanto na edicao do Traite de Dynami-que de 1743, como tambem na edicao de 1758, foi intro-duzir explicitamente tres princıpios como fundamentoda mecanica, os “princıpios do movimento”: princıpiode inercia, princıpio de composicao dos movimentos eprincıpio de equilıbrio. O princıpio de inercia e o mesmo

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Um esboco da historia do conceito de trabalho virtual e suas aplicacoes 3601-9

que Newton coloca em sua primeira lei do movimento,o princıpio de composicao dos movimentos ja havia sidoutilizado por autores, tais como Stevin, Galileu, PierreVarignon e outros, enquanto o princıpio de equilıbrioremonta aos trabalhos de Stevin. A grande originali-dade de D’Alembert foi, realmente, a de introduzir oprincıpio de equilıbrio e a generalizacao dos outros doisprincıpios, com o intuito de oferecer um fundamentomais solido para a mecanica, “o princıpio do equilıbrio,juntamente com o de inercia e do movimento composto,nos conduz a solucao de todos os problemas em que con-sideramos o movimento de um corpo na medida em queele pode ser alterado por um obstaculo impenetravel emovel, ou seja, em geral, por um outro corpo ao qual eledeve comunicar movimento para conservar uma partedo seu”.5

Para fim de completeza, vamos tambem apresentaro enunciado do que seria o “princıpio de d’Alembert”,na forma em que ele foi, pela primeira vez, publicadopor d’Alembert no Traite de Dynamique de 1743:

“O princıpio para achar o movimento devarios corpos que atuam uns sobre os outrose o seguinte: Decomponha os movimentos a.b. c etc. impressos a cada corpo, cada umem dois outros a e α; b e β; c e χ; etc taisque se tivessemos imprimido aos corpos osmovimentos a, b, c, etc, eles teriam perma-necido inalterados; e se lhes tivessem sidoimpressos somente os movimentos α, β, χ,etc o sistema teria permanecido em repouso.E claro que a, b, c serao os movimentos queesses corpos irao adquirir em virtude de suaacao recıproca”.6

Por sua vez, escreveu Blay [12]:

Se compararmos estes tres princıpiosd’alembertianos (inercia, composicao domovimento e equilıbrio) com os tres axio-mas ou leis do movimento de Newton, asso-ciados a concepcao euleriana da forca, e umaabordagem totalmente diversa da ciencia domovimento que esta surgindo.7

E com Lagrange, na sua Mecanique Analytique(1788), que aparece o princıpio de d’Alembert escritoem forma de trabalho virtual. O resultado da soma dos

produtos escalares das resultantes das forcas aplicadassobre cada uma das N partıculas pelos seus respecti-vos deslocamentos virtuais mais a soma dos produtosescalares das forcas de inercia pelos seus respectivosdeslocamentos virtuais e nulo. Em outras palavras, otrabalho virtual das forcas aplicadas mais o trabalhovirtual das forcas de inercia do sistema e nulo. Mo-dernamente, em geral, este enunciado e escrito de umaforma bastante compacta

N∑

i

(Fi −mi

d2ri

dt2

).δri = 0.

E importante compreender que nesta expressao e asoma por todos os valores de i que e nula, e nao apenascada termo entre parenteses. E necessario prestar bas-tante atencao neste fato, visto que, em geral, nem todosos deslocamentos virtuais ou variacoes δri sao indepen-dentes. Alem disso, embora esta equacao se aplique aosproblemas de dinamica, ela tem a mesma estrutura daequacao para o princıpio do trabalho virtual aplicadoem problemas de estatica, quando entao

N∑

i

mid2ri

dt2.δri = 0; logo,

N∑

i

Fi.δri = 0.

Embora na maioria dos livros de mecanica analıticaesta equacao e denominada princıpio de d’Alembert,achamos mais conveniente chama-la de equacao ded’Alembert-Lagrange ou equacao geral da mecanica, re-servando a expressao “princıpio de D’Alembert” apenaspara designar as concepcoes gerais que estao em suaorigem. Essas concepcoes ja foram comentadas acima,mais ou menos como d’Alembert as expressou em seuTratado de Dinamica de 1743 e na Enciclopedie, em1785. Sobre este assunto ver tambem a Ref. [8].

Lanczos [13] ressalta a grande importancia doprincıpio de d’Alembert-Lagrange no contexto damecanica analıtica. Outros princıpios mais sofisticadosdesta ciencia, como e o caso do princıpio variacionalde Hamilton ou o princıpio de Jacobi nao passam deformulacoes matematicas alternativas do princıpio ded’Alembert-Lagrange. Realmente, por meio de umatransformacao matematica adequada, o princıpio deHamilton pode ser obtido, diretamente a partir daequacao de d’Alembert-Lagrange.

5Le principe de l’equilibre, joint a ceux de la force d’inertie et du mouvement compose, nous conduit donc a la solution de tous lesproblemes ou l’on considere le mouvement d’un corps, en tant qu’il peut etre altere par um obstacle impenetrable et mobile, c’est-a-dire,em general, par un autre corps a qui il doit necessairement communiques du mouvement pour consrver une parte du sien (Jean Le Rondd’Alembert, Enciclopedie Methodiques, Mathematiques, article “Mecanique”, Paris, 1785, apud Ref. [12, p. 309]).

6“Le Principe suivant pour trouver le mouvement de plusieurs corps qui agissent les uns sur les autres: Decomposes les mouvementsa, b, c etc. imprimes a chaque corps, chacun em deux autres a e α; b e β; c e χ; qui soient tels, que si l’on n’eut imprime aus corps queles mouvements a ; b ; c etc ils eussent pur conserver ces mouvements sans se nuire reciproquement; et que si on ne leur eut imprimeque les mouvements α, β, χ; etc le systeme fut demeure au repos; il est clair que a, b, c seront les mouvements que ces corps prendrontem vertu de leur action” (Je Le Rond d’Alembert, Traite de Dynamique, Paris, 1743, apud Ref. [12, p. 309]).

7Si l’on compare maintenant les trois principes d’alembertiens (inertie, composition des mouvements et equilibre) aux trois axiomesou lois du mouvement de Newton (voir partie II, chapitre 4 [de ce livre]), associes a la conception eulerienne de la force, c’est bien umapproche toute differente de la science du mouvement qui se fait jour, apud Ref. [12, p. 309].

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3601-10 Cindra

Lanczos ainda enumera outras vantagens ineren-tes ao princıpio de d’Alembert-Lagrange. Uma delase que ele nao envolve integracao no tempo, outra eque ele se aplica tanto a sistemas sujeitos aos vınculosholonomos como tambem a sistemas nao-holonomos.Lanczos ainda acrescenta que, apesar de todas as van-tagens apresentadas, este princıpio nao e isento de, pelomenos, uma deficiencia. E que, enquanto as forcas apli-cadas Fi, em muitos casos, mas nao em todos, sao forcaspotenciais, isto e, forcas monogenicas, oriundas de umaunica funcao escalar, ja as forcas de inercia -mi

d2ri

dt2 naogozam desta propriedade. A consequencia disso e que oprincıpio de d’Alembert-Lagrange, escrito sob a formada equacao acima, nao e muito adequado para o em-prego de coordenadas curvilıneas. Por isso, os fısicosmatematicos posteriores a Lagrange acharam conveni-ente obter as equacoes de movimento de um sistemade partıculas a partir de um princıpio em que se em-prega apenas coordenadas generalizadas independentes,de modo que todas as variacoes sao independentes. Es-sas coordenadas generalizadas e suas variacoes sao, ge-ralmente, representadas por qj e δqj , respectivamente.

3.1. Exemplos de emprego da equacao ded’Alembert-Lagrange em casos concretos

Exemplo 1: Consideremos um plano inclinado emforma de uma cunha de massa M (Fig. 6). Sobre oplano inclinado e colocado um bloco de massa m quepode escorregar sobre ele sem atrito. Tambem nao haatrito entre o plano horizontal e o corpo em forma decunha. Enquanto o corpo de massa m desliza sobrea cunha, esta, por sua vez, e capaz de se mover aolongo do plano horizontal. Use a equacao d’Alembert-Lagrange para achar as equacoes do movimento dos doiscorpos.

Figura 6 - Um corpo de massa m desliza sem atrito sobre umplano inclinado em forma de cunha. O plano inclinado tem massaM e pode deslizar sem atrito sobre um plano horizontal.

Solucao. Escolhemos x1 e y1 como as coordenadasinstantaneas do corpo de massa M . Sejam x2 e y2 ascoordenadas instantaneas do corpo de massa m, todasem relacao a um referencial fixo no plano horizontal,onde o eixo x e orientado horizontalmente para a di-reita e o eixo y verticalmente para cima. A unica forcaaplicada sobre o corpo de massa M e a forca gravitacio-

nal -Mgj e sobre o corpo de massa m e -mgj. A equacaode d’Alembert-Lagrange toma a seguinte forma

Mgδx1 + mgj(δx2i + δy2j)+

m(

d2x2

dt2i +

d2y2

dt2j)

(δx2i + δy2j) = 0.

E facil notar que x2 = x1+s cosθ e y2 = s senθ, ondes e a posicao do corpo de massa m, medida ao longodo plano inclinado, a partir do topo. Portanto, temosδy2 = δs senθ e x2 = δx1 + δs cosθ. Substituindo es-tes valores na equacao acima, encontramos facilmenteas equacoes de movimento do sistema, escritas sob aforma abaixo

d2s

dt2+

d2x1

dt2cosθ + g senθ = 0,

(M + m)d2x1

dt2+ m

d2s

dt2cosθ = 0.

Exemplo 2: Um cilindro de massa m e de raio Rque se encontra em repouso sobre um bloco de massaM , o qual, por sua vez, repousa sobre uma mesa hori-zontal sem atrito (Fig. 7). Se uma forca F e aplicadahorizontalmente sobre o bloco, este e acelerado e o ci-lindro rola sem deslizamento. Encontre a aceleracaodo bloco e a aceleracao do cilindro, em relacao a umreferencial inercial fixo a mesa.

Figura 7 - Uma forca constante F e aplicada horizontalmente so-bre um bloco de massa M apoiado sobre um plano horizontal,sem atrito. Sobre este bloco, encontra-se um cilindro de massam que pode rolar sem deslizar sobre o bloco.

Solucao: Na direcao horizontal, as forcas queatuam sobre o bloco sao F e uma forca de atrito estaticofcb (forca devida ao cilindro), em sentido contrario. So-bre o cilindro, atua apenas uma forca de atrito estaticofbc (forca devida ao bloco), sendo que fcb = -fbc. Entre-tanto, as forcas de atrito estatico nao sao forcas ativas,elas nao realizam trabalho, portanto, podem ser con-sideradas como forcas de vınculo. Por isso, elas naoentram na equacao de d’Alembert-Lagrange.

A equacao de d’Alembert-Lagrange toma a seguinteforma

(F −M

d2x

dt2

)δx−m

d2

dt2x1δx1 = 0.

Como a forca de inercia -md2x1

dt2esta orientada para

a esquerda (sentido contrario ao da forca F), podemosintroduzir a seguinte representacao para x1

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Um esboco da historia do conceito de trabalho virtual e suas aplicacoes 3601-11

x1 = x + xo,

onde x e posicao do CM do bloco de massa M , enquantoxo e a posicao do cilindro em relacao ao bloco.

Com esta notacao, encontramos a expressao

d2x1

dt2δx1 =

(d2x

dt2+

d2xo

dt2

)(δx + δxo) =

d2x

dt2δx +

d2x

dt2xδxo +

d2xo

dt2δx +

d2xo

dt2δxo.

Por outro lado, o termod2

dt2xoδxo esta associado

ao movimento de rotacao do cilindro pela acao da forcade inercia aplicada horizontalmente em seu centro demassa. Esta forca produz um torque em relacao aoeixo instantaneo de rotacao do cilindro, eixo este, pa-ralelo ao eixo de simetria do cilindro e que passa peloponto de contato do cilindro com o bloco, ponto P , naFig. 7. Logo

md2xo

dt2δxo = Ip

d2xo

dt2δxo

R2.

Substituindo estas expressoes na equacao acima, en-contramos

(F − (m + M)

d2

dt2x−m

d2

dt2xo

)δx−

(m

d2

dt2x + Ip

d2

dt2xo/R2

)δxo = 0.

Podemos considerar δx e δxo como variacoes in-dependentes. Portanto, cada parentese deve anular-seidenticamente. Por isso, temos

md2xo

dt2=

Ip

R2

d2xo

dt2= 0.

Alem disso, IP = 3/2mR2, portantodxo

dt2= -

23

d2x

dt2.

Finalmente, encontramos a solucao do problema

d2

dt2x =

3F

(3M + m),

d2

dt2xo =

−2F

(3M + m),

d2

dt2x1 =

F

(3M + m).

A aceleracaod2xo

dt2(aceleracao do cilindro em

relacao ao bloco) e para a esquerda; a aceleracaod2x1

dt2(aceleracao do cilindro em relacao ao referencial fixo a

mesa) e para a direita. A aceleracaod2x

dt2do bloco de

massa M sob a acao da forca horizontal F, natural-mente, tambem esta orientada para a direita.

4. Conclusao

Concluindo este artigo, ressaltemos que o princıpio detrabalho virtual, aplicado na resolucao de problemas deestaticas, ou a equacao de d’Alembert-Lagrange paratratar de problemas dinamicos, a primeira vista, podeparecer equivalente ao metodo newtoniano. Entretanto,esta abordagem da mecanica fornece uma visao mais ge-ral e unificadora dos problemas do que o metodo estri-tamente newtoniano tendo como base as forcas e mo-mentos de forca (torques). Ainda mais, Stadler [1] mos-tra que ha alguns problemas bastante simples, como eo caso de um pendulo rıgido duplo, em que o metodonewtoniano, com base nos postulados da segunda leida dinamica e da terceira lei de Newton a suposicao deque as interacoes sao forcas centrais, resulta num im-passe. E entao preciso introduzir a lei do momento domomento (a derivada do momento angular pelo tempoe igual ao torque resultante vetorial de todos os torquescausados pelas forcas externas). Entretanto, o metodoanalıtico com base no princıpio de trabalho virtual e daenergia mecanica total (energia potencial mais energiacinetica) do sistema conduz a uma solucao aceitavel doproblema.

Nao podemos esquecer de dizer que a equacaode d‘Alembert-Lagrange exposta acima representa, doponto de vista historico e conceitual, apenas o primeiropatamar alcancado pela mecanica analıtica. Um pa-tamar mais elevado e aquele em que se utiliza apenascoordenadas generalizadas independentes, fazendo comque todas as variacoes passam ser independentes. Emlugar das forcas aplicadas introduz-se uma funcao esca-lar, obtida a partir de uma combinacao sui generis daenergia cinetica T com a energia potencial U ; mais pre-cisamente, esta funcao escalar e a lagrangiana L do sis-tema: L = T−U . Ela mostra ser suficiente para encon-trar as equacoes diferenciais do movimento do sistema.Com isso, torna-se possıvel simplificar ainda mais osproblemas da dinamica. Este e o metodo lagrangiano,o qual nao foi abordado neste trabalho.

5. Agradecimento

Agradeco a Douglas Calzzetta Filho, estudante do cursode Engenharia da Computacao do Instituto Nacional deTelecomunicacoes, em Santa Rita do Sapucaı, MG, pelacolaboracao na confeccao das figuras que acompanhamo texto deste artigo.

Referencias

[1] W. Stadler, American Journal of Physics 50, 595(1982).

[2] http://www.xs4all.nl/∼adcs/stevin, 15 de dezembrode 2007.

[3] L. Geymonat, Galileu Galilei (Editora Nova Fronteira,Rio de Janeiro, 1997), p. 39.

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3601-12 Cindra

[4] S. Drake, Cause, Experiment & Science (The Univer-sity of Chicago Press, Chicago, 1981), p. 49-50.

[5] S. Drake, Galileu at Work (Dover, Nova York, 1995),p. 35.

[6] Koyre, A. Estudos Galilaicos (Publicacoes Dom Qui-xote, Lisboa, 1986), p. 203.

[7] R. Dugas, A History of Mechanics (Ed. Dover, NovaYork, 1988), p. 231-233.

[8] N.A. Lemos, Mecanica Analıtica (Ed. Livraria daFısica, Sao Paulo, 2004), 1a ed., p. 14-15.

[9] D. Greenwood, Classical Dynamics (Dover, Nova York,1997), p. 13-23.

[10] A. Sommerfeld, Mechanics: Lectures on TheoreticalPhysics (Academic Press, Nova York, 1970), v. 1, p. 53-54.

[11] M. Paty, ScientiÆ Studia 2, 9 (2004).

[12] M. Blay, La Science du Mouvement de Galilee a La-grange (Editions Belin, Paris, 2002), p. 305-310.

[13] C. Lanczos, The Variational Principles of Mechanics(Dover, Nova York, 1986), 4a ed., p. 77, 92-93.