um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · a forma política da...

42
IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 1 Texto para Discussão 017 | 2017 Discussion Paper 017 | 2017 Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e perspectivas de democratização no meio de uma crise de poder e de acumulação Jaime Ernesto Winter Hughes León Doutorando em Ciências Econômicas pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro Estudante do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Membro do Grupo de Estudos Florestan Fernandes E-mail: [email protected]. Maria Mello de Malta Pró-reitora de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. This paper can be downloaded without charge from http://www.ie.ufrj.br/index.php/index-publicacoes/textos-para-discussao

Upload: doanhuong

Post on 27-Jan-2019

218 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 1

Texto para Discussão 017 | 2017

Discussion Paper 017 | 2017

Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e perspectivas de democratização no meio de uma crise de poder e de acumulação

Jaime Ernesto Winter Hughes León Doutorando em Ciências Econômicas pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro Estudante do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Membro do Grupo de Estudos Florestan Fernandes E-mail: [email protected].

Maria Mello de Malta Pró-reitora de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

This paper can be downloaded without charge from

http://www.ie.ufrj.br/index.php/index-publicacoes/textos-para-discussao

Page 2: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 2

Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e perspectivas de democratização no meio de uma crise de poder e de acumulação

Julho, 2017

Jaime Ernesto Winter Hughes León Doutorando em Ciências Econômicas pelo Universidade Federal do Rio de Janeiro Estudante do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Membro do Grupo de Estudos Florestan Fernandes E-mail: [email protected].

Maria Mello de Malta Pró-reitora de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (IE/CCJE/UFRJ) Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

Page 3: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 3

Resumo

Este artigo analisa criticamente a questão democrática brasileira a fim de contribuir com o entendimento da atual crise política e econômica. Para tanto, privilegia as discussões sobre as perspectivas democráticas no Brasil com a distensão do regime de ditadura civil-militar no fim da década de setenta. É feito o resgate das interpretações de Fernandes (1975) e de Coutinho (1979) sobre a problemática da tradição democrática no Brasil e suas imbricações com as relações de classe, políticas e econômicas, no interior do Estado brasileiro. A hipótese de trabalho é que a "Nova República" se esgostou, resultado de um movimento global de ascensão do autoritarismo no contexto de crise estrutural do capitalismo que vem sinalizando a possibilidade de uma nova forma de dominação autoritária ainda compatível com a tradição plutocrática brasileira. Como no regime de 1964, o Estado desta iminente forma de autoritarismo concilia o padrão de dominação de classe burguês via um consenso de transformação capitalista que comporta disputas internas entre frações da classe dominante e que é orientado pelos negócios. Porém, este Estado tem uma marca distinta daquele ao pretender a manutenção não-harmônica de "instituições democráticas" pela via do Poder Judiciário como substância do capital. Este trabalho se trata de um resgate da teoria marxista de Estado e da história do pensamento marxista no Brasil.

Palavras-chave: democracia; Estado; classes; neoliberalismo; autoritarismo

Abstract

This paper analyses the Brazilian democratic issue in order to contribute with the understanding of the current economic and political crises. Thus, the paper focuses on the discussions about the democratic perspectives in Brazil with the distension of the civil-military dictatorship in the late seventies. Fernandes`(1975) and Coutinho`s (1979) interpretations of the democratic tradition in Brazil and the relations of classes, political and economic, within the Brazilian State are taken into consideration. The hypothesis of the paper is that the "New Republic" is worn out as a result of the global movement of rising authoritarianism in a context of a structural crises of capitalism which indicates the possibility of a new form of authoritarian domination still compatible with the Brazilian plutocratic tradition. Just like the regime of 1964, the State of this form of authoritarianism patches the bourgeois` domination pattern up throughout a consensus of capitalist transformation guided by business. However, this State has a distintive mark in pretending the non-harmonic maintenance of "democratic institutions" through the Judiciary Power. This paper addresses a recovery of the marxist theory of State and of the history of Brazilian marxist thought.

Key-words: democracy; State; neoliberalism; authoritarianism

Page 4: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 4

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.

A revolução dos bichos (George Orwell, 1945)

1 Introdução

A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia

liberal. Conforme Hobsbawm (2011), a predominância atual desta forma de

manifestação da democracia remonta ao fim da disputa ideológica e hegemônica

entre E.U.A. e U.R.S.S. durante a Guerra Fria. Com a vitória estadunidense a

democracia liberal - fundada nos princípios de representatividade; da soberania dos

Estados nacionais; da garantia das liberdades civis e políticas e de eleições

periódicas decididas por maiorias numéricas - despontou diante de regimes

políticos diferentes como a "única" alternativa de organização política democrática,

classificando os outros como "não-democráticos". Embora haja debate sobre a

restauração neoliberal e acerca das perspectivas para a periferia do capitalismo

contemporâneo, o fato é que esta modalidade de gerenciamento das relações de

classe está em crise expressa na alienação política, na erosão das liberdades civis e

na emergência do autoritarismo no mundo capitalista (Ayers & Saad-Filho, 2014).

No centro do sistema, a eleição de Donald Trump nos E.U.A. em 2016 e a

possibilidade de candidatos de extrema direita serem eleitos na Europa ocidental

num futuro iminente são exemplos deste processo. Tal movimento também se

alastra à periferia. Houve o fim da chamada "onda rosa" na América Latina da

primeira década do século XXI, governos classificados como "progressistas" foram

substituídos por governos declaradamente conservadores. No caso brasileiro em

particular, a ascensão do impopular governo de Michel Temer, via o impeachment

da presidenta anterior, é a consolidação e expressão deste processo1. Conforme

1 É importante frisar que a ascensão de Temer representa uma continuação da política econômica

neoliberal de Dilma Rousseff. No máximo, a diferença entre ambos governos seria uma intensificação

do arrocho sobre os trabalhadores, sobre o sistema de seguridade social (com a substituição dos

serviços pela iniciativa privada) e sobre a austeridade da política fiscal. A marca que o define como

um governo autoritário, e deste ponto de vista distinto aos de Dilma e de Lula, são as restrições às

liberdades-civis e à Constituição. configurando um retorno ao autoritarismo com uma política

econômica orientada pelos interesses de classe burgueses brasileiros, os quais são comandados pela

dependência do capital internacional (Sampaio Jr., 1999; Singer, 2015; Pinto et alli, 2017).

Page 5: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 5

Boulos (2017), o governo Temer assumiu o poder com a seguinte proposta de

políticas: a flexibilização das relações trabalhistas; a Emenda Constitucional com um

teto para os gastos públicos e a reforma da previdência social. As acusações de não

respeitar as regras democráticas e os direitos adquiridos pelos trabalhadores ao

longo de décadas de luta e de propor medidas antissociais são relevantes para

qualquer perspectiva de democracia no país e têm reflexos sérios nas sociedades

civil e política brasileiras.

Este artigo visa realizar um debate sobre a questão democrática no Brasil. Seu ponto

de partida é a discussão, com destaque para a abordagem marxista, sobre o que é a

democracia e, em termos de classes sociais, para quem ela serve na sua forma

contemporânea. Para isso, serão expostas a tradição plutocrática de democracia

brasileira e as perspectivas que estavam na ordem do dia no período de abertura do

regime autoritário instaurado em 1964. Tal questão será balizada pela análise das

obras de Florestan Fernandes e de Carlos Nelson Coutinho, dois intérpretes do

Brasil que privilegiaram a perspectiva política de análise crítica da sociedade no

contexto histórico da transição do regime nascido em 1964 para a "Nova República".

Ao expor o debate em torno do tipo de democracia existente no país e suas

perspectivas no capitalismo brasileiro dependente, o artigo chega à discussão sobre

as estratégias adotadas pelo principal partido, em termos de defesa da causa

trabalhadora, da cena política brasileira das últimas três décadas: o Partido dos

Trabalhadores (PT). Apesar de sua evolução trazer semelhanças interessantes com

os traços marcantes do ciclo político do Partido Comunista do Brasil (PCB), interessa

mais destacar as diferenças dos ciclos políticos de ambos os partidos: Enquanto

instrumento de luta pela democracia de massas no país, como meio para a

construção da consciência dos trabalhadores do conceito de "classe para si" (de

classe como sujeito histórico da emancipação trabalhadora e associado a uma

determinada estratégia de ação), o PT se aproximou do PCB (Neves, 2016). Porém

deve-se levar em conta o período histórico totalmente distinto destes ciclos, o que

condicionou as suas diferenças2. O trabalho aponta os fatos que afastaram o PT de

2 Vale destacar que o PT surgiu como fruto de um movimento histórico singular na história do Brasil,

o surgimento da classe operária como classe em si, de forma independente à classe capitalista, no

movimento grevista do ABC paulista de 1978. Enquanto o PCB surgiu em 1922 como reflexo da III

Page 6: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 6

suas premissas fundantes e que ajudam a explicar como, num contexto internacional

de retomada do pragmatismo econômico e de ascensão do autoritarismo, o Brasil se

encontra hoje numa tríplice crise (Pinto et alli, 2017) de acumulação de capital; da

cena política; e da relação entre bloco no poder e Estado, a qual, no limite, está

reinstaurando bases autoritárias no Brasil (Iasi, 2016).

A hipótese de trabalho é que há uma nova forma de autoritarismo no Brasil advinda

da manifestação da atual fase do neoliberalismo, que se diferencia do regime de

1964 por comportar uma disputa entre classes e frações de classe burguesas,

internas e externas, que não estão harmonizadas no interior do Estado em relação

aos rumos da liderança política para o país. Isto explica o impedimento de Dilma ter

se dado de forma oportunista e desorganizada pelo partido do então vice-presidente

(Partido do Movimento Democrático Brasileiro), porém estas mesmas classes e

frações de classe ainda estão concertadas em torno de um padrão de dominação

burguês consolidado como "plutocracia" e que necessita da polarização crescente

da luta de classes. Este padrão de dominação gerou uma crise de acumulação e de

poder sem precedentes que pôs em xeque a forma de democracia de cooptação,

exercida plenamente pelo PT assim que subiu ao poder. Já em 2013, nas

manisfestações conhecidas como "jornadas de 2013", esta forma de dominação

sofreu uma inflexão importante para a cena política e foi agravada pela inflexão

econômica com a crise internacional chegando ao Brasil e os ajustes econômicos do

governo Dilma Rousseff, causa principal de sua queda.

O reforçamento da democracia de cooptação, possibilidade anunciada em

Fernandes (1975), através da incorporação de parcela significativa dos "condenados

do sistema" ao consumo de massas financeirizado3 foi a opção seguida pelo PT na

primeira década de 2000 para conciliar interesses burgueses com a base social

histórica do partido: os trabalhadores. Assim foi construído e articulado, durante o

governo de Lula, um grande acordo entre classes e frações de classe que se

prolongou aos governos de Dilma Rousseff e reproduziu a dominação burguesa

(Singer, 2015). A marca distintiva do governo de Dilma teria sido um certo

Internacional Comunista, sendo influenciado pelos impactos da Revolução Russa de Outubo de 1917

(Bandeira et alli, 1967). 3 Para mais sobre a dinâmica das relações políticas e econômicas no interior do Estado, sob a

dominância do movimento de financeirização, ver Filho & Paulani (2011).

Page 7: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 7

"weberianismo tacanho" de achar que poderia interferir politicamente nos acordos

políticos de classe, sem alterar os interesses econômicos estabelecidos. Nas

avaliações de Singer (2015) e de Pinto et alli (2017), Dilma achou que o poder

emanava do Executivo autonomizado das outras esferas de poder e que era

independente das relações econômicas e políticas entre as heterogêneas classes e

frações de classe no interior do Estado e pagou um alto preço político: seu

impeachment. Contudo, seu afastamento logo demonstrou para as classes

dominantes que o governo de Temer, embora tenha avançado grande parte das

reformas pretendidas, era também débil em termos de apoio popular e parlamentar

e não pode entregar estabilidade. Pode-se afirmar que as frações dominantes

assumiram o risco de um "salto no escuro", pois sabiam que o status quo não estava

em contestação.

A ascensão de Michel Temer foi uma manobra das burguesias dominantes de tentar

restaurar e garantir os privilégios particularistas da classe burguesesa. Num

verdadeiro jogo político, que traz a mente as disputas descritas em "O dezoito

Brumário" de Marx (1852), as diversas classes e frações burguesas se uniram

compositamente para afastar Dilma; porém como é comum ao capitalismo estes

interesses são heterogêneos e, logo após o impedimento, foi desencadeada uma

"guerra fratricida" entre os diversos segmentos burgueses: imprensa, sistema

jurídico (Procudaria Geral da União, Supremo Tribunal Federal, Parlamento), classe

média e classes dominantes (Pinto et alli, 2017). Neste contexto a discussão da

democracia volta à ordem do dia como tema eminente, principalmente porque estes

conflitos incidem diretamente sobre a massa da população.

Para dar coerência, em termos metodológicos, à interpretação proposta neste artigo,

foi necessário sincronizar três pontos básicos: i) o que está acontencedo no Brasil e

no mundo com o capitalismo em termos político, econômico e social; ii) qual o

conceito de Estado utilizado e iii) o que define a burguesia brasileira. Não se

pretendeu resolvê-los em todas as controvérsias que o envolvem, mas de alinhá-los

para uma reflexão coesa.

Uma análise de teoria política descolada da análise de economia política não é capaz

de responder estes pontos e seria uma discussão de política estéril (Heinrinch,

2007). Portanto o cerne de orientação metodológica foi como a História explica a

Page 8: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 8

relação entre a estrutura (base material da vida, relações sociais de produção e

forças produtivas) e a superestrutura (consciência social, aparato jurídico e

organismo político) do modo-de-produção capitalista no Brasil.

Em relação ao primeiro ponto, o artigo se propõe a analisar o neoliberalismo, num

momento de crise estrutural do capital e sua manifestação política de democracia

liberal, pois são nas contradições do capital com o trabalho que se encontram a

resposta para a crise estrutural do capitalismo e as novas soluções que o capital

encontra para si e as possibilidades abertas ao trabalho (Mészáros, 2005).

Em relação ao Estado, apesar de ser um lugar onde se manifestam os diferentes

interesses econômicos e políticos de classe, é, em última instância, um instrumento

de dominação de classe. Ele pode comportar disputas intestinas entre as diversas

classes que o compõem, mas seu caráter de classe é bem definido. Aqui é importante

frisar, conforme Heinrich (2007), que o uso de uma "sociologia do poder" tal como

as derivações de Lenin, de Gramsci e de Poulantzas é insuficiente para a análise do

Estado, é necessária também a crítica da Economia Política que busca na teoria do

valor as determinações ocultas do Estado. A especificidade brasileira seria sua

formação social colonial, sendo que, no campo econômico-social, o estatuto da

escravidão exerce direta e indiretamente influência central na determinação do

padrão tradicional de vida da maioria da população e, no campo político, o

oligarquismo das classes dominantes mantêm as classes subalternas alijadas do

poder, numa espécie de circuito fechado à plena participação popular (Fernandes,

1981a).

Por úlitmo, em relação à burguesia brasileira, o artigo segue a linha de Prado Jr.

(1966), de Fernandes (1975) e de Fontes (2010) de que nossas classes dominantes,

resultado do capitalismo dependente, compõem uma classe orientada pelos

negócios, com uma mentalidade de curto prazo para a valorização de suas riquezas.

Além disso, não têm um caráter nacional, mas sim são umbilicalmente associadas ao

volátil capital internacional de forma subordinada. Refuta-se, as visões de uma

suposta "burguesia interna" brasileira, pois isto dá margem para interpretações

equivocadas de que há uma burguesia dentro do Brasil dissociada da externa.

Tampouco se faz a distinção entre burguesia produtiva e burguesia financeira, pois

na era do capitalismo monopolista financeiro elas são indissociáveis.

Page 9: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 9

Além desta introdução, este artigo conta com outras seis seções. A segunda é

referente à discussão sobre o conceito de democracia e para quem, em termos de

classes sociais, ela serve; a terceira é sobre a específica tradição democrática

brasileira; a quarta trata do consenso burguês de dominação e transformação

capitalista no período da ditadura civil-militar iniciado em 1964 na interpretaçao de

Fernandes (1975); a quinta analisa o desmonte deste consenso e as perspectivas

postas à democracia no Brasil no fim daquele regime; a sexta traz a discussão sobre

democracia e revolução presente em Coutinho (1979); por fim, na sétima, há

ponderações sobre a democracia no ciclo do PT e as conclusões.

Page 10: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 10

2 Democracia e Estado como pilares das classes dominantes

Desde o fim da Guerra Fria, os países capitalistas hegemônicos defendem as

bandeiras de democracia e de liberdade como se fossem conceitos de inquestionável

consenso sobre seu conteúdo qualitativo positivo. Não são, há disputa ao redor

deles. É necessário frisar que a democracia de que tratam é a democracia liberal

construída a partir das revoluções liberais inglesa, estadunidense e francesa a partir

do fim do século XVII. Por ser um conceito que pode assumir distintas formas ao

longo do tempo em formações sociais distintas, a democracia pode ser defendida

por distintas correntes de pensamento e ideologias (Hobsbawm, 2011; Malta, 2008;

Ayers & Saad-Filho, 2015).

Liberais e socialistas reivindicam a democracia e a liberdade como princípios

norteadores de suas visões de mundo, suas ideologias. Conforme a reflexão de Marx

& Engels (1846) as ciências sociais, incluindo a economia política e a teoria política,

não são neutras. Elas assumem um caráter político específico em cada formação

social sob o comando das ideias das classes dominantes. Como o período de

consolidação do neoliberalismo foi o de subjulgamento de alternativas aos

princípios liberais de individualismo, o "fim da História", a democracia e a liberdade

liberais puderam se perpetuar a partir de então como a opção hegemônica.

Segundo Bobbio (1988), a democracia liberal tem seu limite máximo no formalismo

do ativimismo político com o direito ao voto universal masculino e feminino, que

teoricamente passaria a mensagem de que cada pessoa participa da vida política de

uma sociedade ao poder exercer o direito de eleger um parlamento que a represente.

Em teoria, as pessoas teriam igualdade de ativismo político. Há de se fazer uma

análise deste formalismo.

Segundo a crítica marxista, hoje vive-se a democracia liberal, fundada na

formalidade da igualdade e da liberdade liberais, que tem como pressuposto um

princípio metodologicamente equivocado: a naturalização dos momentos da

totalidade "produção, distribuição, troca e consumo" (Malta, 2008). Ao formularem

o método materialista-histórico, Marx & Engels (1846) refutam esta naturalidade

das relações sociais de produção e apontam que os indivíduos não são iguais, nem

formalmente tampouco concretamente, pois desde que existe a propriedade privada

Page 11: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 11

e a garantia de existência deste tipo de instituição, as possibilidades de igualdade

são eliminadas. Este fato tem implicações na vida econômica, política e social, logo,

também reflete determinações no interior do Estado. Assim, a crítica da economia

política marxista é importante para a crítica da teoria política.

Simplificadamente, para o marxismo, existem os proprietários dos meios de

produção, os capitalistas, e os despossuidos/expropriados, aqueles que só podem

contar com a venda da sua força de trabalho como fonte de subsistência. Assim, o

pressuposto de igualdade da democracia liberal já é eliminado, pois a liberdade na

qual ele é fundado, a liberdade individual privada, é falsa. A subsunção formal do

trabalho ao capital, dada pela existência da propriedade privada, e a posterior

subsunção real, dada pelo desenvolvilmento das forças produtivas e a geração de

mais-valor relativo, transformam a liberdade do indivíduo em dependência social

(Malta, 2008).

Destarde, para os autores marxistas, a noção de liberade individual advogada pelo

liberalismo é de uma liberdade limitada, pois é mediada pelas trocas. Isto porque a

democracia liberal pressupõe a existência de diferença social. Retomando e

interpretando a epígrafe deste artigo, todos os homens são iguais, mas alguns

homens (os proprietários dos meios de produção) são mais iguais que outros e

estabelecem relações assimétricas de poder no interior do Estado: a relação entre

dominantes e dominados, como afirmaria Gramsci (1934).

De acordo com Bobbio (1988), a democracia socialista (ou proletária) se opõe à

democracia liberal (ou burguesa) por, ao invés de propor uma democracia

representativa, advogar uma democracia direta de todo o povo sem representantes

e com delegados cujos mandatos estão sujeitos à revogação. Ademais, ao contrário

da democracia liberal, a democracia socialista prevê participação popular, além do

voto universal, na tomada de decisões econômicas. Assim, o objetivo final da

democracia socialista, soberania popular com igualdade entre os homens, seria

atingido por meio de uma melhor distribuição da riqueza social e superaria a

aparência de igualdade formal entre os homens, baseada no mero direito ao voto.

Na democracia liberal a igualdade dos indivíduos seria um consequência da livre

tomada de decisões individuais em todos os campos da vida social, enquanto na

democracia socialista a igualdade entre os indivíduos, adquirida com o fim da

Page 12: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 12

propriedade privada dos meios de produção e exploração de um homem por outro,

é pressuposto para a liberdade. A democracia socialista implica a plena participação

popular em todos os espaços de sociabilidade humana.

Conforme Ayers & Saad-Filho (2015), as próprias condições que tornam a

democracia liberal do neoliberalismo possível geram contradições em diversas

áreas da vida social que impedem a plena realização da democracia enquanto

soberania popular. Por exemplo, a democratização política liberal promove partidos

políticos, organizações de comércio e grupos de interesse com interesses de

horizontes limitados, por não terem um projeto de sociedade além de seus próprios

interesses particularistas. Já o sistema jurídico, malgrado sua formal independência,

é estabelecido para garantir a previsibilidade das "regras do jogo" democrático,

porém não esconde um viés conservador orientado pelas ideias e interesses das

classes dominantes.

Para a perspectiva marxista, o formalismo da democracia liberal é uma

escamoteação por nunca ter permitido a efetiva participação de cada membro da

sociedade civil na vida política no interior do Estado. Tal fato já tinha sido

explicitado por Marx (1852) e seria melhor elaborado nas elaborações de teoria

política de Gramsci (1934) e de Poulantzas (1978) com a discussão sobre classes,

frações de classe, Estado e bloco no poder.

Em linhas gerais, para Poulantzas (1978) o Estado é o lugar onde se dão as diversas

disputas políticas de classes e frações de classe, incluindo dominantes e dominados,

em torno de interesses de classe específicos, os quais têm sua base material

definidas, no limite, por interesses econômicos de classe mas que com os interesses

políticos interagem de forma simultânea numa relação dialética de determinação.

Ademais, em cada formação social histórica há um determinado grupo, orbitando

interesses de classe comuns, que se apresenta como hegemônico perante as outras

classes e frações de classe que conformam um "bloco no poder" no interior do

Estado, orientando a dinâmica política e econômica de determinada sociedade em

um momento dado do tempo. Vale lembrar que as formas de dominação se dão, no

geral, por meio da coerção e do consenso, sendo este último construído no "chão da

fábrica", nas relações cotidianas de produção de forma educativa e via os aparelhos

hegemônicos privados e hegemônicos de Estado (Gramsci, 1934).

Page 13: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 13

Para Poulantzas (1978), o Estado, garantidor e organizador da acumulação

capitalista, é definido como um processo e, importante, o "poder de Estado" difere

de "poder de classe". Para ele, por mais que em determinadas conjunturas haja um

determinado grupo com hegemonia ao bloco no poder, não se pode confundir, por

exemplo, o Estado com um mero "comitê da burguesia". É necessário levar em

consideração que no interior do Estado as diversas frações burgesas estão em

permanente disputa. O que se pode passar é que em determinados momentos, como

os de crise econômica e política burguesa, o Estado possa ser controlado a partir dos

interesses da classe dominante reunida - mesmo que heterogeneamente - com vistas

à manutenção do status quo de dominação (Sawaya, 2016; Pinto et alli, 2017).

Mais, o Estado pode ganhar certa "autonomia relativa" na medida em que o poder

seja efetivamente exercido nos "centros de poder de Estado" formados por

aparelhos, instâncias e órgãos de tomadas de decisão sem subordinação burocrática

direta às frações de classe dominante4. É crucial apontar, porém, que esta autonomia

é relativa, pois não está dissociada do poder da classe dominante, mas sim por estes

centro de poder terem a possibilidade de decisão própria dada a sua posição na luta

política de classes. Esta visão é, de certa forma, a assumida por Coutinho (2011).

Já para Fernandes (1975), o Estado tem um caráter de classe bem definido: é

dominado pelas classes dominantes em favor do interesses delas mesmas. No caso

das economias do "capitalismo dependente", o Estado comporta a disputa entre as

diversas classes e frações de classe a depender do estado das lutas de classes. Se

estas estiverem como uma "guerra civil oculta", com manifestações de dentro da

ordem e com a concessão de alguns benefícios para as classes médias e para as

classes desprivilegiadas, o Estado terá uma aparência democrática. Se as lutas de

classe estiverem como uma "guerra civil aberta", com contestação da ordem a partir

de fora, o Estado assume uma posição autoritária e repressora.

Em busca da especificidade brasileira, será analisado como a democracia liberal se

desenrolou no interior do Estado, entendido sob a relação entre a sociedade civil e

a sociedade política como uma totalidade dialética entre coerção e consenso, num

4 Hoje, os centros de poder de Estado se encontrariam no Banco Central, no Supremo Tribunal Federal

e, em especial na operação anti-corrupção da Lava Jato comandada pela "República do Paraná",

segundo Pinto et alli (2017).

Page 14: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 14

país de tendência autocrática de "via prussiana" única como o Brasil com o fim do

período de repressão civil-militar iniciado em 1964 e terminado, formalmente, em

1985.

Page 15: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 15

3 A tradição democrática brasileira

Para se fazer uma avaliação da democracia como ela existe no Brasil e suas

perspectivas, é interessante considerar sua forma de existência na América Latina5

como corolário das revoluções burguesas postas em curso com os movimentos de

independência nacional, conforme alertou Ianni (1988). Para o sociólogo, todos os

países da região já tiveram suas revoluções burguesas, porém sem consolidar a

democracia para as massas. Mais precisamente há a existência de uma tradição de

"democracia restrita" ou democracia para poucos (plutocracia) em função de

valores conservadores, caudilhescos, patrimonialistas, oligárquicos, particularistas

e autoritários que são reproduzidos ao longo do tempo pelas classes e frações de

classe dominantes.

Tais valores foram instaurados e reproduzidos nas ordens sociais denominandas

por Fernandes (1968) de colonial e a sua sucedânea neocolonial. Nestas épocas, por

5 Poder-se-ia fazer uma interpretação da tradição autoritária brasileira como em Sérgio Buarque de

Holanda em "Raízes do Brasil" (1936), que através de uma análise não materialista da história, busca

aquilo que diferencia o brasileiro, em particular, e o latino-americano, em geral, de suas raízes

ibéricas, a fim de apontar os traços fundantes da tradição democrática latino-americana. Dado o

período em que escreveu, Holanda (1936) está analisando a democracia na região sob este prisma

de algo novo nas sociedades de classe incipientes de origem ibéricas.

Para ele, no caso brasileiro a democracia no Brasil é um "lamentável mal-entendido", pois as classes

dominantes (burguesas) brasileiras, rebentas das oligarquias rurais do período neocolonial,

distorceram os princípios e valores das lutas burguesas europeias pela democracia liberal,

adaptando-a de forma a manter seus privilégios em terras americanas. Criaram uma caricatura de

democracia burguesa imposta de "cima para baixo", dos dominantes para os dominados. As

transformações vistas no Brasil aliás se davam pelos intelectuais e por motivos sentimentais do

"homem cordial", movido pelos motivos do coração, atingindo a massa do povo despreparada para

tais mudanças.

É importante ressaltar que Holanda escrevia num período de ascensão do fascismo na Europa como

crítica ao liberalismo parlamentarista e que ele próprio escrevia da Alemanha. Portanto sua tentativa

era de denunciar as tendências fascistas e autoritárias da manifestação de sua forma no Brasil, o

integralismo, e de apontar mudanças bruscas na sociedade brasileira que não coincindentemente

tiveram a emergência de um Estado autoritário (Estado-Novo em 1937) apenas um ano após a

publicação de Raízes do Brasil.

Caudilhismo e liberalismo são postos como antítese em Holanda (1936) e sua superação seria

condição necessária para a concretização de "nossa revolução" proposta por Sérgio Buarque, aquela

que acabaria com os traços coloniais e patriarcais em nossa sociedade . De um lado, o personalismo

caudilhesco seria a base da nossa vida social. O oligarquismo seria a manisfestação no tempo e no

espaço daquele personalismo que foi capaz de dar a aparência de estabilidade política aparente em

distintos momentos-chave de nossa história.

Page 16: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 16

definição, o conceito de nação não se aplicava ao Brasil, pois o país não passava de

mera colônia da metrópole portuguesa. Com a emergência da ordem social

competitiva, típica da sociedade de classes, nos começos do século XX e as

revoluções burguesas da região, a variável de sociedade burguesa latino-americana

surgiu mantendo as antigas oligarquias das ordens sociais precendentes aliadas às

classes dominantes burguesas do capitalismo dependente. O ápice da tradição de

contrarrevoluções preventivas teria sido, segundo Fernandes (1975), a

concretização da revolução burguesa dependente na ordem social monopolista na

era do imperialismo total com as ditaduras civis-militares que se difundiram em

toda região. Vale lembrar que os regimes autoritários latino-americanos foram

contemporâneos do acirramento da Guerra Fria, da experiência de Cuba e tiveram

apoio estadunidense (Hobsbawm, 2011; Netto, 2014).

Para Fernandes (1975), a definição de revolução burguesa na periferia seria: "um

fenomêno essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de

estruturas de poder predominantemte políticas, submetidas ao controle da

burguesia ou por ela controláveis em qualquer circunstâncias" (FERNANDES, 1975:

343), por isso não se pode falar de revolução burguesa frustrada no Brasil. De fato,

a revolução burguesa foi completa em toda a América Latina com o estabelecimento

de contrarrevoluções com o controle das estruturas de poder garantido às

burguesias latino-americanas (Ianni, 1988). Vale lembrar que, no Brasil, a Revolução

Burguesa se consolida com a crise da República Velha e ascensão conciliadora de

Vargas em 1930.

Octávio Ianni aponta as conexões das revoluções burguesas latino-americanas, as

quais combinaram a aceleração do processo econômico com a intensificação dos

problemas sociais, políticos e culturais, com a emergência de um Estado forte,

autoritário e bastante vinculado com os interesses internacionais. Surge daí uma

cultura política autoritária marcada pelo conservadorismo expressos nos lemas de

"ordem e progresso"; "segurança e desenvolvimento", "paz social" e pelo elevado

número de golpes e tentativas de golpes de Estado e cartas constitucionais dos

países da região. Seria também característico desta cultura autoritária a afirmativa

de que as mudanças propostas com o Estado autoritário estão cerceadas de

legalidade ou de razões que as justificam e são sempre em prol do conceito de

democracia liberal, forma política que serve às classes dominantes. Por fim, esta

Page 17: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 17

tradição é caracterizada pela transformação da questão social em questão de polícia,

pois os movimentos dos setores populares da sociedade civil, por serem débeis e

desorganizados, são postos como subversivos e perigosos à ordem estabelecida e

resolvidos pela força da violência institucionalizada.

Portanto, a constatação sobre a tradição democrática brasileira é inequívoca: o país

tem uma tradição democrática bem delineada de autoritarismo e plutocracismo,

típica do capitalismo dependente latino-americano6. Pode parecer paradoxal a

afirmação de uma democracia autoritária, mas, a democracia assume diversas

formas em contextos distintos (Bobbio, 1988). A qualificação mais adequada para

explicar como se deu o consenso burguês de dominação de classe e transformação

capitalista seria a de democracia restrita, tal como cunhou Fernandes (1975).

6 Não obstante a generalidade da questão democrática na América Latina, a especificidade brasileira

estaria na forma em que a dupla articulação e a segregação social gravitariam em torno do estatudo

da escravidão como dínamo social e econômico uma vez que este é ditado pelo "sentido dos negócios"

e, nos marcos do capitalismo dependente, necessita de um exército de mão-de-obra disponível para

a valorização do capital sob baixa remuneração e alta exploração. A permanência da questão por

resolver do negro e de seus descendentes, segundo Fernandes (1981a), seria chave para se afirmar

se o Brasil é ou não é um país democrático. Para o sociólogo, o negro e seus descendentes são a base

da exploração econômica brasileira desde os tempos coloniais, mas deve-se lembrar, como alertou o

autor, que não obstante a questão racial seja central para se pensar a democracia no país, é na causa

proletária que se encontra a unidade de interesses dos explorados no Brasil.

Page 18: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 18

4 Consenso burguês de dominação burguesa e de transformação capitalista

O cerne da explicação da unidade entre autoritarismo e democracia no Brasil estaria

na forma como as burguesias brasileiras e as suas frações de classe encontraram

para solucionar o período de crise burguesa na ordem social monopolista e de

imperialismo total durante os anos sessenta (Fernandes, 1975).

A relação entre dominação burguesa e transformação capitalista assumiu uma

forma idiossincrática, pois ela é sempre variável, instável e mutante. De um lado, as

heterogêneas classes e frações de classe burguesas se encontravam pressionadas

"de fora" pelas burguesias dos países hegemônicos centrais e suas transnacionais.

Por outro, a instabilidade interna gerava pressões sociais e políticas "de dentro", que

embora não estivessem organizadas politicamente para realizar uma "revolução

democrática", eram potencialmente pré-revolucionárias e por isso traziam medo às

burguesias.

Como formulou o sociólogo, a solução burguesa para sua própria crise foi a de se

reunir compositamente, como se fosse uma colcha de retalhos. As classes e frações

de classe burguesas ficariam unidas por uma solidariedade assentada na defesa de

seu interesse comum: sua manutenção como classe dominante. Portanto, as

burguesias e frações de classe burguesas, no contexto do capitalismo dependente

marcado pela segregação social interna e dependência externa, fizeram uma opção

crucial que varreu qualquer possibilidade de solução desta dupla articulação, senão

a intensificou. Por um lado, se uniram ao "aliado principal" - o capital internacional

- para se reproduzirem enquanto classe; para se inserir ao espaço econômico

mundial mais amplamente; e para tomarem o controle de um Estado viablilizador

de logros que estavam além da esfera privada de ação burguesa. Por outro, puderam

agir de forma aberta, opressora e repressora contra seu "inimigo principal" - as

classes populares -. Este era o chamado "consenso burguês".

Tal acordo era dotado de uma racionalidade própria de unificação e centralização

do poder destas classes e frações de classe com a transferência da arena econômica

de dominação para a arena puramente política. Destarte estaria garantida a

continuidade da dominação burguesa opressora, única saída viável para as

burguesias e suas frações de classe no capitalismo dependente.

Page 19: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 19

É claro que tal solução só foi possível num contexto de ápice da Guerra Fria, no qual

a defesa da ordem capitalista figurava como cerne das políticas em todo continente.

As ideias dominantes do centro eram as das classes dominantes do país hegmônico

da ordem mundial e eram importadas mimeticamente pelas classes dos países

dominantes da periferia. Não é à toa que valores abstratos tais como "solidariedade

do hemisfério" ou "defesa da civilização cristã ocidental" foram defendidos se

sobrepondo até mesmo aos interesses de cada país em particular como Nação, como

o conjunto da maioria do povo. Se tratava da submissão de interesses nacionais e,

logo, da democracia como algo libertador (Fernandes, 1975; Netto, 2014).

O busílis da interpretação de Fernandes para este trabalho é o seguinte: ao

assumirem tal postura reacionária, as burguesias e frações de classe burguesas

brasileiras abandonaram, por não precisarem, as ideologia e utopia burguesas tal

como estabelecidas nos casos clássicos de revolução democrático-burguesa inglês,

francês e estadunidense uma vez que se formaram num período histórico e numa

realidade social distintas. Elas optaram por uma solução que reforçou o caráter de

democracia restrita instaurando duas revoluções antagônicas na sociedade

brasileira: uma de "aceleração do tempo histórico" que promoveu a modernização

da economia, indispensável para a legitimação de sua dominação; outra de caráter

contrarrevolucionário, pois tornou permanente as contradições econômicas,

sociais, culturais e políticas no interior da sociedade burguesa através de uma

"ditadura de classe preventiva". Em linhas gerais, a formação da Nação em moldes

democrático, nacional ou popular foi tirada da ordem do dia pelas burguesas

dependentes.

A dominação burguesa se manifestava então nos seus traços mais elementares e

irredutíveis. Na defesa de seus interesses materiais privados e políticos

particularistas, as classes dominantes assumiram sem medo formas autocráticas de

autodefesa e de autopriviliegiamento. "O 'nacionalismo burguês' enceta assim um

último giro, fundindo a república parlamentar com o fascismo" (FERNANDES, 1975:

345).

De forma complexa, a dominação burguesa ainda foi camuflada aparentando ser

coincindente com os interesses da nação (mairoria do povo). Houve uma clara

separação entre "sociedade civil e Nação" e uma nítida identificação de "classe

Page 20: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 20

burguesa com a Nação". O eixo de gravitação da relação política entre as classes

dominantes, os interesses nacionais e a estabilidade político-econômica foi

deslocado para o interior das classes burguesas e de seu controle sobre toda a

sociedade.

Todo este padrão de dominação e de transformação capitalista burgueses teria um

alto preço para as classes e frações de classe burguesas. Ao se fecharem em si

mesmas de forma agressiva e autoritária, diminuíram seu raio de ação e afastaram

qualquer diálogo possível com as demais classes. Funcionalmente, lidaram até com

as manifestações de dentro da ordem, o chamado "radicalismo burguês", como se

fossem manifestações contra a ordem e portanto reagiram de forma repressora com

reivindicações que vinham a partir de dentro da ordem burguesa e não visavam a

mudança radical da ordem vigente. Assim, a ordem social "competitiva" burguesa

assumiu a única forma possível no capitalismo dependente: aberta somente para os

mais iguais, para os que se inseriam positivamente na ordem como classes

possuidoras. E o fazia sob a condição de explorar as classes despossuidas e os semi-

integrados à ordem.

Como já destacado, o problema com que se defrontaram as burguesias brasileiras

era um problema da ordem e não de democracia. Era o desafio de como instaurar

uma "oligarquia coletiva das classes possuidoras" que estava posto para elas,

procuravam como prolongar seu status de classes historicamente dominantes na

sociedade brasileira. E a solução foi implantar uma autocracia aberta, opressora e

repressora que unificasse e centralizasse o poder burguês na figura de um Estado

forte e núcleo de poder burguês. Historicamente encontra-se no colapso do

populismo que precedeu a cristalização do poder burguês, principalmente com

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, o fracasso do radicalismo burguês e uma das

condições de cristalização do poder autoritário.

Florestan Fernandes elucidou como a intensificação da dominação burguesa, fez

com que aumentasse a impregnação militar e da tecnocracia no Estado como

processos de preservação e consolidação da ordem, inclusive com demonstrações

excessivas de força bruta. O Estado além de policial-militar, era jurídico e político e

tinha como principal função eliminar a necessidade de articulação política entre as

classes, pois ele mesmo determinava a ordem que deveria ser respeitada: a ordem

Page 21: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 21

burguesa. O Estado virou portanto uma superentidade política que centralizava os

controles de dominação política, jurídica e promovia a aceleração econômica da

sociedade.

Segundo Fernandes (1975), o Estado nacional virou um Estado nacional sincrético,

pois na aparência ainda defendia a ordem como se fosse democrático,

representativo e pluralista, mas na realidade era um verdadeiro instrumento de

oligarquias autoritárias permeado de contradições. Esta era a única possibilidade

num capitalismo dependente que passara por profunda crise.

Page 22: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 22

5 O desmanche do consenso e a possibilidade de democracia de cooptação

A própria opção pelo consenso burguês continha as sementes de sua destruição, ou

pelo menos de seu debilitamento. Fernandes (1975) apontou que, definitivamente,

a plutocracia compósita burguesa autoritária e repressiva seria transitória. Muito

embora este acordo tenha dado às classes burguesas a possibilidade de gerir

abertamente novas formas da luta de classes com um Estado autocrático, não lhe

deu autonomia "para fora" e limitou o próprio horizonte interno de solidariedade

entre a burguesia e as demais classes. Os setores dominantes não tinham base

material para realizar o autodesenvolvimento do Brasil e enxergavam as classes

despossuidas como meros "inimigos irreconciliáveis" ou setores sociais que deviam

ser tutelados. Enfim, a opção pelo consenso foi também a opção de entrar numa

circularidade viciosa que só fazia aumentar a dupla articulação entre segregação

social interna e dependência externa e impedia ideais realmente revolucionários de

autodeterminação.

De acordo com Fernandes (1975), uma vez consolidada a democracia restrita

autocrática do consenso burguês, surgiu com o milagre econômico, a forma de

democracia de cooptação. Os heterogêneos interesses burgueses que haviam sido

temporariamente abrandados pela união compósita de classe, guiados pela

solidariedade de classe, poderiam voltar à cena política implicando a inevitável

corrupção do sistema de poder. A cooptação ou agregação sistemática e

generalizada de interesses brasileiros e estrangeiros burgueses serviu de elo

facilitador para o autoprivilegiamento dos "mais iguais". Não é um

autopriviliegiamento somente das classes "altas", senão também das frações médias

que puderam usufruir do aparato estatal, tecnocrático e militar. Enfim, os interesses

dominantes se impuseram ilimitadamente de "cima para baixo" conformando um

verdadeiro "paraíso burguês".

Malgrado este cenário do auge da regeneração burguesa, as dinâmicas da

emergência do capitalismo monopolista e da industrialização intensiva colocavam

em conflito cada vez maior os interesses burgueses no período de "estabilidade"

política dentro do regime militar dos anos setenta. Os interesses privados e estatais

oriundos desta nova ordem capitalista acelerada pela revolução modernizadora

Page 23: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 23

colocavam em xeque a contrarrevolução. Em síntese, como é caracaterístico do

capitalismo, seu desenvolvimento ou aceleração econômica numa determinada

formação social acarreta a irrupção de contradições no interior da sociedade de

classes, o terror das burguesias plutocráticas. É verdade que a ativação daquelas

forças reprimidas era insuficiente para uma revolução socialista, mas impunha

inexoravelmente transformações na sociedade dependente. É por isso que a

distensão política do regime civil-militar passou a ser almejada pelas próprias

classes dominantes.

Florestan Fernandes formulou que a tarefa burguesa naquele período de início de

abertura política seria dupla, teria de criar modos novos de conectar organicamente

os mecanismos de democracia de cooptação com o Estado autocrático burguês. Não

se trataria de retomar uma suposta "democracia", algo que nunca teria existido, mas

sim de reforçar a autocracia burguesa ampliando a cooptação "para baixo", criando

novas formas de conexão com o restante da sociedade civil de maneira a camuflar o

autoprivilegiamento, e estabelecendo claramente o alcance constitucional e legal do

Estado autocrático. Para o sociólogo, as burguesias visavam retornar condições

seguras para o prosseguimento da ordem competitiva de antes de 1964. Com a

garantia do status quo burguês, elas já podiam pensar na transição do regime.

O sociólogo foi preciso ao formular que as classes dominantes teriam de encontrar

novas formas coercitivas estatais e que o alastramento da democracia de cooptação

implicaria o beneficimanento de outras classes que não só as altas e as médias.

Assim, a possibilidade de mobilidade vertical social teria duas consequências: i)

aumentaria o horizonte da consciência burguesa ao converter estas classes

despossuidas em possuidoras gerando protestos de "dentro da ordem"; ii) geraria

uma crescente organizada de pressões "contra a ordem", uma vez que estariam

expostas as contradições da sociedade de classes7.

Segundo Fernandes (1975), a democracia de cooptação aberta nasceria débil, pois

na perspectiva das classes tuteladas ofereceria muito pouco, enquanto que na ótica

7 Esta bifurcação entre reforma e revolução será retomada mais a frente, pois será central para

entender o ocorrido nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores e, em linhas gerais, remete

ao texto de Marx & Engels (1850) sobre os limites de alianças que um partido revolucionário pode

fazer com partidos burgueses.

Page 24: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 24

dos dominantes teria um preço muito elevado. Nos parece extremamente atual sua

afirmação:

Acresce que a democracia de cooptação possui pouca eficácia e pouca

"flexibilidade" em nações capitalistas pobres onde a extrema

concentração da riqueza e do poder deixa um escasso excedente para

dividir na compra de alianças ou de lealdades. Por isso, ela concorre para

exarcebar as contradições intrínsecas ao regime de classes, levando-as a

pontos explosivos de efervescência, que mais debilitam que fortalecem o

Estado autocrático, compelido a funcionar sob extrema tensão

permanente e autodestrutiva, de insuperável paz armada" (FERNANDES,

1975:424).

Page 25: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 25

6 Perspectivas de uma democracia de massas

Pode-se afirmar que Coutinho (1979) tinha uma visão mais otimista para as

perspectivas da democracia brasileira do que Florestan Fernandes. Mais

precisamente, ele tinha mais esperança na tarefa que julgava competente às forças

de esquerda no país: a luta pelo fim do regime de exceção implantado em 1964 e a

implantação do socialismo. Sua obra é marcada pela forte conexão entre democracia

e revolução e é fortemente influenciada pela busca de uma "terceira via" entre o

socialismo stalinista e a social-democracia europeia, dado que o autor se exilara na

Itália8 na década de setenta.

O autor fez sua análise a partir de uma visão crítica da teoria política, a partir do

arcabouço político e teórico gramsciano. Portanto, combinou a crítica da política ou

das lutas no interior da superestrutura da sociedade de classes tendo como base, em

última instância, a crítica da economia política determinada na luta econômica de

classes9.

A interpretação de Carlos Nelson Coutinho da tradição política brasileira não difere

substancialmente da de Florestan Fernandes, da de Sérgio Buarque de Holanda ou

de Octávio Ianni. Para ele o Brasil é um país de tradição antidemocrática com a

variável de "democracia restrita", sendo suas transformações orientadas de "cima

para baixo". Foi assim com a instauração da República Velha, com Revolução de

1930 e com o Estado Novo. Em Coutinho (1979), a especificidade brasileira seria a

de combinar o capitalismo de Estado com o latifundismo e as formas imperialistas

de dominação e exploração econômicas. No país, minorias determinam o rumo, o

sentido e a intensidade das mudanças sociais através do que o autor chamou de "via

prussiana"10, exatamente este fato de a dominação política das classes dominantes

8 No seu exílio na Itália, Carlos Nelson Coutinho sofreu influência do eurocomunismo de Enrico

Berlinguer, com quem teve contato, e aprofundou sua análise de democratização como caminho para

o comunismo. 9 Como afirma Coutinho (2011), para Gramsci, a política tem na relação "governantes x governados"

todas as determinações mais simples da teoria política, assim como, para Marx, as conexões mais

elementares da economia política se encontravam na conexão entre "mercadoria e valor". 10 Como afirmam Martins et alli (2014), a preocupação de Carlos Nelson Coutinho com a espeficidade

histórica e estrutural brasileira data de 1972, numa obra sobre Lima Barreto, o fez formular a análise

sobre via prussiana brasileira de conciliação com o atraso e comandado "pelo alto" das classes

dominantes brasileiras.

Page 26: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 26

orientarem o ritmo, o sentido e a intensidade das transformações sociais brasileiras.

A propósito, tal forma de ação seria comum também em outras formações sociais

capitalistas.

A perspectiva gramsciana do autor, o fez afirmar no final da década de setenta, em

movimento de crítica ao stalinismo soviético e à social-democracia burguesa, que a

passagem para a democracia socialista seria algo provável e de transição longa,

necessitando a criação de "pressupostos ideológicos, econômicos e políticos" para

tal (Coutinho, 1979). Portanto a tarefa da esquerda se tratava de uma estratégia, e

não de uma tática, de pôr fim às soluções prussianas dando resposta às

insuficiências da revolução burguesa no Brasil11.

Sua explicação se baseia na circunstância de o sistema capitalista, que à época recém

atingira a fase monopolista de Estado, trazer inexoravalemnte na sua dinâmica os

fundamentos da "suprassunção" da democracia liberal para a democracia socialista.

A transição da democracia liberal para a socialista seria, portanto, a superação

dialética da democracia liberal, tal qual elaborada pelos autores liberais do século

XVIII, com a incorporação de elementos novos e a negação dos elementos

incompatíveis com o novo momento histórico de emancipação humana, abertura

possível graças à criação incipiente daqueles "pressupostos ideológicos, econômicos

e políticos.

Segundo Coutinho (1979), a democracia liberal teria como conjunto de qualidades

os princípios da soberania nacional, da representatividade, da pluralidade, do

direito ao voto etc. Segundo sua crítica marxista, esta democracia - a liberal - é

baseada no princípio da pluralidade dos indivíduos e tenderia ao falso "equilíbrio

natural" de auto-regulação pelas forças de mercado. O poder executivo, segundo

11 Neves (2016), em tese exegética sobre a obra de Carlos Nelson Coutinho, faz a diferenciação entre

tática e estratégia tão utilizada na obra do autor baiano. Partindo da analogia já levantada por

Gramsci entre política e guerra, ambas - tática e estratégia - têm como significado a ação racional

visando a obtenção de um determinado objetivo final, portanto englobam a ideia de objetivo final e

caminho para tal. Porém, o campo da tática se refere a ações que se tomam para lidar com situações

de momento, é a teoria para lidar com os embates episódicos de classe. Já a estratégia seria uma ação

planificada objetivando obter vantangens futuras ou interesses de classes ou frações de classe com

respeito à dominação sobre o adversário sobre o qual se quer demarcar posição. Estes conceitos

serão cruciais para explicar o que será uma estratégia democrática, algo tão caro ao PCB (Partido

Comunista do Brasil) e ao PT (Partido dos Trabalhadores).

Page 27: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 27

advogam os defensores da democracia liberal, seria guiado por uma burocracia

estatal alheia ao controle público que, supostamente, harmonizaria a sociedade. Esta

burocratização estatal, ao pretender equilibrar os interesses particularistas

individuais, lograria somente homogeneizar os interesses do capital. Todavia, como

para o marxismo não existe teoria política livre de axiologia ideológica, a democracia

liberal camufla a dominação ou hegemonia de classe burguesa sobre a sociedade

civil com este mecanismo de "burocracia harmonizante".

Já a democracia socialista, segundo Carlos Nelson Coutinho, seria fundada na

participação e controle das massas e pela reversão da via prussiana de

transformação social. Para ser atingida teria de ser construída por um processo de

renovação democrática que acabasse com a alienação política - fruto do

autoritarismo do regime de exceção - e com a tendência à burocratização estatal.

Isto se daria pelo fortalecimento de tendências recém surgidas naquele contexto. A

saber: o surgimento de novos mecanismos de democracia direta relativamente

dissociados do Estado (comissões de empresa, sindicatos, associações religiosas, de

bairro etc.) agregando numa unidade interesses plurais, principalmente da classe

operária, de forma organizada de "baixo para cima", o que conformaria o "sujeito

político coletivo"; também reforçaria as formas de democracia indireta (parlamento

e cena político-partidária), de forma a constituírem uma síntense política dos

sujeitos coletivos. Uma advertência é feita porém: estes mecanismos de democracia

direta e indireta não poderiam resultar na burocratização proletária do Estado, pois

a ideia era ter um autogoverno dos produtores associados com o fim da alienação

política. O povo deveria ser visto como um conjunto e não governado por um grupo

"acima da sociedade".

Para Coutinho (1979), tal processo de democratização em novas bases pressupõe a

negação da falsa identidade entre "gênese e validade" da democracia. A explicação

de "democracia como um valor universal de Carlos Nelson Coutinho advém do fato

de o conceito de democracia, formalmente, não depender do momento e da

sociedade de sua origem. As qualidades que o sistema democrático impõe na

intensificação da vida política das massas seriam o que tornam a democracia

"universal", valendo em distintas formações sociais como um princípio a ser

atingido. Isto teoricamente, permitiria a possibilidade de suprassunção da

democracia liberal em democracia socialista. Portanto, a democracia socialista

Page 28: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 28

requer mais que socialização dos meios de produção, mas uma verdadeira

socialização da política com a superação da antinomia entre governantes e

governados, elemento fundante da política segundo Gramsci (Coutinho, 2011).

O ponto da análise propositiva de Coutinho que gerou muita polêmica foi sua crença

de que as possibilidades de transformação da democracia a partir da distensão do

regime civil-militar estariam, num primeiro momento, circunscritas aos limites da

democracia liberal, pois o processo de renovação democrática seria lento e gradual.

As raízes disso estariam no fato de a fonte da fraqueza democrática brasileira estar

na tradição de soluções prussianas, a qual aliada à marca da antidemocracia, geraria

uma barreira temporária para a renovação democrática que ficaria ainda por um

certo tempo sob hegemonia de monopólios nacionais e internacionais12.

Tal análise da democracia brasileira, leva Coutinho ao seguinte diagnóstico de

bifurcação para a abertura que se mostrava iminente:

Embora no quadro de uma busca permanente da máxima unidade

possível, é certo que se alterarão - em função das tarefas concretas - a

natureza e a amplitude das alianças visadas pelas forças populares. De

modo esquemático, poderíamos dizer que as tarefas da renovação

democrática desdobram-se em dois planos principais. Em primeiro lugar,

lógica e cronologicamente, trata-se de primeiro conquistar e depois

consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se torna

necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista

e nas permanências das "regras do jogo" a serem implantadas por uma

Assembleia Constituinte dotada de legitimidade.

E, em segundo, trata-se de construir as alianças necessárias para

aprofundar a democracia no sentido de uma democracia organizada de

massas, com crescente participação popular; e a busca de unidade, nesse

12 Esta proposição, como será visto, será fundante do programa democrático-popular e está

relacionada à não superação da estratégia de revolução nacional-democrática do PCB.

Page 29: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 29

nível terá como meta a conquista do consenso necessário para

empreender medidas de caráter antimonopolista e anti-imperialista e,

numa etapa posterior, para a construção em nosso País de uma sociedade

socialista fundada na democracia política (COUTINHO, 1979: 45-46).

A primeira abertura, de busca de unidade das forças que buscavam o fim do regime

de exceção, foi crucial para atingir o conjunto de liberdades citado para a garantia

de um regime estabelecido pela Assembleia Consituinte após findado o regime civil-

militar. Como afirma Neves (2016), na década de 1980 havia um compromisso

sincero, indenpendente de posição de classe, com a "democracia".

O segundo caminho, de construção de alianças que construiriam o rumo para a

democracia de massas, é o que parece dispontar como ponto de maior polêmica do

texto. Se tanto para economia política crítica e para a teoria política crítica, com as

quais o autor tanto se referencia, as contradições da sociedade capitalista estão

postas nas irreconciliáveis lutas de classe, econômicas e políticas, a construção de

alianças para orientar a democracia liberal para a democracia de massas seria uma

tarefa cheia de dificuldades. Para Coutinho, a passagem pela agenda democrático-

popular era uma necessidade para a chegada na "sociedade regulada" de Gramsci

ou, simplesmente, na democracia socialista. Portanto, para o autor, a democracia é

um processo (Neves, 2016). Em suma, se se usa conceitos de gramscianos, Carlos

Nelson Coutinho no período da redemocratização priorizou a busca pela hegemonia

política pela via da "guerra de posição" do que o reforço da estratégia socialista pela

"guerra de movimento", Iasi (2017).

Um dos maus usos do conceito de "democracia como valor universal" foi a

apropriação por setores da esquerda que se estavam movimentando para dentro da

ordem burguesa. Assim, Coutinho propôs, posteriormente, a substituição do título

de seu trabalho por "democratização como valor universal", a ideia é que a

democracia ou a democratização são um caminho necessário a atingir o socialismo,

pois as condições objetivas e subjetivas para emergência deste não estariam postas

(Martins et alli, 2014).

Page 30: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 30

A discussão das perspectivas sobre a democracia brasileira encontrariam

materialidade no começo da década de oitenta com a criação do Partido dos

Trabalhadores. A interpretação e o uso que tal partido faz desta categoria é

significante para sua ação como partido de organização política dos trabalhadores e

para se entender os limites que se colocaram ao partido como instrumento de

transformação social emancipatório da classe trabalhadora.

Page 31: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 31

7 Conclusão: democracia como instrumento de acomodação à ordem burguesa

Iasi (2013) e Neves (2016) fazem uma importante recapitulação de como a

democracia foi o centro de orientações equivocadas, segundo o marxismo, para a

obtenção de um autogoverno dos produtores associados. Antes de expor a maneira

como o PT lidou com a abertura política, eles citam as semelhanças do uso

programático, pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), da democracia burguesa

como "campo privilegiado de luta em direção ao socialismo".

Segundo Iasi (2013), a utilização, por parte do PCB, das orientações do VI Congresso

da III Internacional comunista em 1928 teria uma influência problemática e de

"gravíssimas consequências políticas" para os rumos do programa nacional-

democrático. Conforme Neves (2016), as orientações da Internacional Comunista se

consolidariam com a estratégia nacional-democrática vigentes no Brasil desde

1935. Seu conteúdo está explícito na Declaração de Março de 1958 do PCB.

A ideia era a seguinte: havia, segundo orientações daquele Congresso, a ideia da

necessidade de uma longa passagem ou etapa de transição entre o desenvolvimento

capitalista dependente, de colônias e semi-colônias, em direção ao capitalismo

avançado para, então, exisitirem condições objetivas e subjetivas rumo a transição

ao socialismo. A imposição da necessidade de florescimento de condições mínimas

de transição num futuro não bem definido foi o mote da intervenção da

Internacional nos partidos comunistas de todo o mundo.

Como país enquadrado no perfil de capitalismo dependente, a revolução nacional-

democrática do PCB se pautaria pela intensificação da democracia burguesa a fim

de superar os resquícios feudais ou semifeudais que, segundo a Internacional,

subsistiam aqui para só quando consolidada esta levantar a bandeira de uma

revolução do tipo socialista. O principal proponente das teses do PCB foi Nelson

Werneck Sodré que recebeu duras críticas de Caio Prado Júnior sobre o caráter

dependente da orientação comercial do capitalismo brasileiro. Para ambas

interpretações, como para outros teóricos da revolução nacional-democrática, a

formação da Nação era algo imprescindível para o desenvolvimento.

Page 32: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 32

Conforme apontam Iasi (2013) e Neves (2016), as teses do PCB mostravam o

caminho da revolução nacional-democrática como democrático-burguesa, anti-

imperialista, antimonopolista e antilatifundiária a fim de eliminar resquícios

disfuncionais ao capitalismo e, logo, a transição ao socialismo. Ao dar esta orientação

de necessidade de concretização da revolução burguesa, o PCB imaginava que se

"acumulariam as forças" necessárias para que estivessem postas as condições para

a transição socialista. Daí a importância de uma burguesia nacional, supostamente

com interesses anti-imperialistas, anti-feudais e nacionais. Assim, a tarefa do

proletariado na revolução nacional-democrática seria, em última instância, lutar

pelo desenvolvimento capitalista no Brasil. Só depois, num futuro não vislumbrável,

poderia pôr em marcha a mudança socialista.

Segundo Neves (2016), desta interpretação do PCB advinham duas situações

problemáticas: i) a falta de percepção da especificidade das formações sociais

dependentes, que tendem a reproduzir a dependência externa e segregação social

interna indefinidamente, levava a uma caracterização algo progressista e positiva

do capitalismo como modernizador; ii) o acúmulo de forças necessárias ao câmbio

socialista deveria vir do reforçamento do capitalismo. Estes pontos problemáticos

ajudam a explicar, de acordo com Schwarz (1970), a lentidão e a letargia dos setores

de esquerda no interior do PCB quando do golpe de 1964. Eles tinham certa

esperança que o aparato civil-militar poderia promover esta eliminação dos

entraves ao capitalismo que levaria à revolução socialista. Um erro de interpretação

de proporções gigantescas que se traduziu em conciliação com os setores burgueses

e dominantes da sociedade.

Esta digressão sobre a orientação dada pelo PCB à revolução nacional-democrática

é importante para diferenciá-la do papel do PT. Este partido foi fundado em 1980

com a retomada da luta sindicial e operária no período em que as teses de Florentan

Fernandes e de Carlos Nelson Coutinho sobre o fracasso da revolução nacional-

democrática e sobre os rumos da democracia brasileira estavam na ordem do dia.

Vale lembrar que ambos autores participaram do movimento entitulado de "Nova

Esquerda" de crítica aos limites do PCB e foram intelectuais ativos na criação do PT

e das formulações do programa democrático-popular, sendo ambos duros críticos

de algumas posições do novo partido.

Page 33: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 33

Como explorado por Iasi (2013), o PT surgiu tentando se diferenciar do PCB

negando sua estratégia revolucionária e tentando estabelecer uma linha

programática própria. Já no seu V Encontro Nacional em 1987, os dirigentes do PT

deixaram claro que, nas suas formulações, descartariam o caráter nacional,

indicando que a aliança com a burguesia brasileira seria espúria na medida em que

em nada contribuiria para o atingimento da meta final do partido: a introdução do

socialismo.

Em Iasi (2012), fica claro como as proposições iniciais do PT eram superficiais. Em

1986, no seu IV Encontro, os participantes do partido tinham delineado sua visão

sobre a meta socialista. Porém, conforme lembra Neves (2016), tal meta também

existia no PCB e, até mesmo, na proposta da social-democracia europeia (pelo

menos até 1959). Outro aspecto desta superficialidade é a existência de uma

diagnóstico da necessidade do acúmulo de forças (a expressão é a mesma usada pelo

PCB) para atrair e não afastar pequenos setores médios, a pequena burguesia

urbana e rural. Portanto, a estratégia do PT estava desde o seu surgimento

embrenhada de permanências com a estratégia do PCB, dentre as quais a mais

explícita é justamente a teoria da etapa nacional e democrática com acúmulo de

forças com outras classes para realizar a "transição para a transição".

Neves (2016: 484) portanto chega a formular:

O que importa aqui, é que o pressuposto é o mesmo, e inscreve-se num

marco fundamental que, uma vez atravessado - tão cedo como 1986 -

permitiu que o PT viesse a reproduzir, ao longo de todo o

desenvolvimento posterior de sua estratégia para a revolução brasileira,

o mesmo elemento fundamental a informar o limite da estratégia do PCB

e, com ele, sua dificuldade de servir de fato como base teórica para uma

armação política coerente com a transição socialista: esse pressuposto é a

necessidade de se desenvolver o capitalismo para que se pudesse transitar

ao socialismo.

A estratégia democrático-popular levou o PT cada vez mais perto dos setores

burgueses da sociedade em prol do acúmulo de forças necessário, segundo sua

formulação de 1986, para a transição ao socialismo. Acontece que o quadro de classe

mobilizada e em avanço nos anos pós ditadura encetou as possibilidades de ganhar

Page 34: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 34

espaços e posições no interior executivo do Estado burguês. Todavia, esta tomada

de posições nunca engendrou, segundo o núcleo administrativo do partido, o início

às transformações socialistas estabelecidas como meta final na formulação inicial do

PT. Igual aos anos de PCB e de sua revolução nacional-democrática, as condições

para a mudança foram sempre consideradas insuficientes pelo PT. Longe de estarem

amadurecidas, era sempre necessário a intensificação na "guerra de posição" no

interior do Estado burguês. Porém é necessário frisar que o contexto de atuação do

PT é radicalmente distindo do PCB.

Assim que possível, o partido viu a necessidade de governar e isto, no Estado e

sociedade burgueses, só foi possível para um partido como o PT com alianças. Então

o "presidencialismo de coalizão" passou a ser defendido em prol da governabilidade

em si mesma e não tendo o objetivo final como horizonte de chegada. A estratégia

de ação do PT, portanto, foi de atingir novas formas de manter o status quo sem abrir

mão do programa originário, mas sem perspectiva nenhuma de cumpri-lo.

Ironicamente a cooptação foi exercida em sua forma plena, com a "abertura para

baixo" por um partido de base social trabalhadora que sofreu o que Gramsci

chamaria de transformismo: um processo de absorção gradual e contínua dos

setores aliados e inimigos, aparentemente irreconciliáveis, por meio de variadas

técnicas. Nos governos de Sarney, Collor e FHC isto não fora possível, pois não

tinham o mesmo apelo popular que Lula obteria junto às massas. Ao assumir a linha

de menor resistência de conciliação e apassivamento da luta de classes e rendição

total aos princípios neoliberais do Plano Real, o PT se tornou o que Sampaio Jr.

(2017) chamou de o partido da esquerda da ordem, reproduzindo a dependência e

o subdesenvolvimento típicos do capitalismo dependente.

Iasi (2013: 33) nos remete a Florestan Fernandes quando afirma precisamente:

A situação real de governo apenas aprofunda a contradição. As alianças

necessárias para ganhar não são suficientes para governar e se ampliam

para além do centro, para a direita do espectro político. Segue-se nova

moderação programática e finalmente a rendição ao pragmatismo.

As alianças e programa se mostram, dessa forma, secundários em relação

ao acúmulo de forças. A mediação democrática é mais essencial que seu

caráter popular. Não por acaso, nas formulações o termo forte passa a ser

Page 35: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 35

"uma revolução democrática", caindo para segundo plano o qualificativo

popular.

Há alguma proximidade da estratégia democrática-popular do PT com a estratégia

nacional-democrática do PCB pelo fato de ambas perceberem insuficiências no

capitalismo brasileiro, em sua infraestrutura e superestrutura, que fazem com que

seja necessária a intensificação da democracia burguesa para qualquer pretensão de

câmbio socialista. Entretanto é necessário ressaltar suas diferenças, o PCB nunca

chegou ao poder e, portanto, tampouco esteve tão umbilicalmente relacionado com

alianças tão espúrias como esteve o PT.

A cooptação se baseia no pacto e aliança de classes e frações de classe, uma

verdadeira "revolução das técnicas da contrarrevolução" (FERNANDES, 1981b: 10).

A estratégia do PT nada mais foi do que se acomodar aos marcos da democracia

burguesa cooptando os setores médios e altos, o que garantiu os patamares de

acumulação de capitais, enquanto a crise mundial não se fazia sentir tão

intensamente por aqui dado o "efeito China", e enquanto a domestificação das

classes tuteladas com emprego, com consumo de massas e com programas

assistenciais focalizadas de massa pôde vigorar. Conforme alertou Grasmci (1934),

o conseno vem da fábrica, do cotidiano das relações de trabalho dos trabalhadores

e da racionalização do processo produtivo e da consciência social, necessitando de

poucos intermediários profissionais e ideológicos para atuar como ator do

apassivamento da luta de classes conjuntamente com a força que neutraliza os

sindicatos e outras formas de organização dos trabalhadores. Os mecanismos para

a "democracia de cooptação com abertura para baixo" de que alertara Florestan

Fernandes foram postos em prática de forma a reproduzir a tutela dos dominantes

sobre os dominados com o reforço do Estado autocrático burguês, casando as duas

perspectivas colocadas pelo sociólogo.

O reforço da autocracia burguesa também parece ter sido um acerto do sociólogo

brasileiro, pelo menos no período de governo do PT. E como previra o sociólogo em

citação referida acima, a democracia de cooptação instaurou a instabilidade neste

Estado, numa "tensão permanente e autodestrutiva de silenciosa paz armada". Vale

lembrar que em "O que é Revolução?" (Fernandes, 1981b) já alertava sobre os riscos

Page 36: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 36

do oportunismo e do populismo da "social-democratização" dos partidos que se

propõem a mudar a ordem.

O PT optou por um longo processo de conciliação de classes, mas que chegou a um

ponto de saturação quando se pensa nas possibilidades de o PT estreitar laços

novamente com sua base social trabalhadora devido ao desgaste de seu processo de

transformismo, conforme hipótese de Antunes (2017). Segundo Iasi (2016), o

contexto atual de governo de Michel Temer é de rumo a uma nova ditadura. Porém

não naquela forma civil-militar da contrarrevolução preventiva com Estado de

exceção repressor, senão um novo tipo cercado de legalidade jurídica e com a

aparência de possibilidades de alternância política como se o Estado de Direito

estivesse preservado, mas que na verdade torna o Estado de exceção uma regra. As

formas institucionalizadas de democracia teriam entrado em confronto com os

interesses da classe dominante dando forma a um novo tipo de ditadura que

sintetiza a totalidade entre coerção e consenso, mas que como em todas as ditaduras

repousam sob as modernas relações sociais de produção capitalista em graus

distinto de desenvolvimento.

Segundo o autor, o momento de crise não é único ao Brasil, está no centro capitalista

e na sua periferia se traduzindo em barbárie, negando a possibilidade dos meios de

consenso atuarem efetivamente. A relação entre forma de Estado e conteúdo de

Estado se torna obscura no regime burguês, encobrindo graus distintos de

autoritarismo, de representatividade e de violência. Para ele o Estado se baseia na

criação e superação de equilíbrios instáveis sem, entretanto, poder esconder sua

substância de classe.

Iasi (2016) levanta um ponto interessante quando afirma que a derrota do PT, com

o golpe de 2015-2016, representa uma instabilidade nova na ordem. Não por

contestações "de fora da ordem", mas sim por ter intestinamente uma convulsão de

interesses díspares disputando o núcleo da dominação burguesa. Segundo Mauro

Iasi, as burguesias não estão num momento de consenso burguês de solidariedade

de classes e isto ainda gerará instabilidades impresíveis na política, economia e

sociedade brasileiras. Esta mesma hipótese é defendida em Pinto et alli (2017) ao

afirmarem que a atual crise de acumulação e de poder burguesas está se

manifestando numa espécie de guerra fratricida pelas frações de classe burguesas

Page 37: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 37

no interior do Estado. Isto é, porém, um ponto de diferença em relação à

interpretação de Sampaio Jr. (2017), para quem o conflito fratricida burguês é

normal ao regime capitalista, mas condicionado por um padrão de dominação

concertado e conformado a ser pouco suscetível à mudança.

Embora haja certa divergência entre, de um lado, Iasi (2016) e Pinto et alli (2017) e,

de outro Sampaio Jr. (2017) de outro, sobre se as burguesias brasileiras atuam de

forma monolítica ou não no momento atual de crise, há convergência sobre o caráter

burguês do Estado e na caracterização das burguesias brasileiras serem

fundamentalmente burguesias dos negócios, conformando uma grande feitoria

moderna marcada por instabilidade política, econômica e social.

Uma conclusão é que a democracia de cooptação chegou ao ponto de saturação nas

"jornadas de 2013". A confusa relação entre o público e o privado trouxe a

corrupção, mais uma vez, ao debate de democracia no Brasil. O hábil controle que a

mídia e o Estado execem sobre as manifestações como se fossem apartidárias e "sem

bandeira" mostra como a manutenção da ordem é o que une as classes dominantes.

A greve, em todo o país, no dia 28 de Abril de 2017 foi um ponto de inflexão para a

instabilidade do governo Temer, porém as cúpulas do Estado (nas sociedades civil e

política) trataram de assumir uma postura de controle desta instabilidade

principalmente por meio da delação premiada de Joesley Batista, a fim de esvaziar o

poder dos movimentos populares. Atualmente, o uso do aparato judiciário-legal é o

instrumento de ordem do Estado e sujeito do capital correspondente ao que foi a

tecnocracia militar do regime de 1964.

Como fenômeno superficial que esconde o substrato de luta de classes da sociedade

burguesa, a forma política desta democracia varia entre a cooptação e o

esmagamento das classes trabalhadoras. O que se pode afirmar com o efetivo fim da

"Nova República" é que, apesar de autoritária, a nova forma política e as bases que

emergirão para o Estado brasileiro ainda são amorfas. Se não forem superados os

dilemas da segregação social interna e dependência externa que reproduzem o

subdesenvolvimento, a democracia brasileira continuará alienando a maioria da

população das esferas decisórias da política, da economia e da cultura, pois o capital

mesmo em momentos de crises sérias encontra novas formas para execer seu poder

de dominação. Parafraseando Giuseppe di Lampedusa em Il Gattopardo de 1958:

Page 38: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 38

"tudo deve mudar para que tudo fique como está". Se esta nova forma política que

está por emergir seguir plutocrática, ainda não se poderá falar de democracia de

massa ou plena participação popular em todas esferas de sociabilidade humana no

Brasil, mas somente em democracia para "os mais iguais": a tradição brasileira.

Page 39: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 39

Referências Bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Nossas classes dominantes sempre oscilaram entre a conciliação

e o golpe. Entrevista ao sítio Esquerda Diário. Disponível em

http://esquerdadiario.com.br/ideiasdeesquerda/?p=126. Acessado em

16/06/2017, 2017.

AYERS, Alison & SAAD-FILHO, Alfredo. "Democracy against neoliberalism:

paradoxes, limitations, transcendence". Critical Sociology. V.41. pp.581-596, 2015.

BANDEIRA, Monis et alli. O ano vermelho: a revolução russa e seus reflexos no Brasil.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988

[2000].

BOULOS, Guilherme. Ofensiva conservadora, condusão estratégica: o duplo desafio da

esquerda brasileira. Entrevista ao sítio Le monde diplomatique Brasil. 2017.

Disponível em: http://diplomatique.org.br/o-duplo-desafio-da-esquerda-

brasileira/. Acessado em janeiro de 2017, 2017.

COUTINHO, Carlos. "A democracia como valor universal: notas sobre a questão

democrática no Brasil". Rio de Janeiro: Revista Encontros com a civilização

brasileira. n.9. pp.33-47, 1979.

____. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo editorial,

2011.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1968 [1981a].

____. A revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação Sociológica. São Paulo:

Editora Globo, 1975 [2011].

____. O que é revolução? São Paulo: Editora Brasiliense, 1981b.

____. Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo hoje. São Paulo: Editora Globo,

1984.

Page 40: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 40

FILHO, Niemeyer & PAULANI, Leda. "Regulação social e acumulação por espoliação

- reflexão sobre a essencialidade das teses da financeirização e da natureza do

Estado na caracterização do capitalismo contemporâneo". Campinas: Economia e

sociedade. V.20. pp.243-272, 2011.

FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 2010.

GRAMSCI, Antonio. Cardenos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. v.3 e

v.4, 1934 [2011].

HEINRICH, Michael. "Marx`s State theory after 'Grundrisse' and 'Capital'". Atenas.

(no prelo), 2007.

HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das

letras, 2011.

HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1936 [1995].

IANNI, Octávio. "As raízes da anti-democracia na América Latina". Lua Nova: Revista

de Cultura e Política. São Paulo: Lua Nova, n. 14, pp.17-22, 1988.

IASI, Mauro. As metamorfoses da consciência de classe. São Paulo: Expressão Popular,

2012.

____. "O PT e a revolução burguesa no Brasil". Marília: Editora Unesp. (no prelo),

2013.

____. O caminho da ditadura. Texto publicado no blog da Boitempo. Disponível em:

https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/24/o-caminho-da-ditadura/. Acessado

em 08/12/2016, 2016.

____. Política, Estado e Ideologia na trama atual. Sao Paulo: Instituto Caio Prado

Júnior, 2017.

JINKINGS Ivana et alli (organizadores). Por que gritamos golpe? São Paulo:

Boitempo editorial. 2016.

MALTA, M. "Liberdade e democracia: agenda socialista ou liberal?" In: IV

Conferencia Internacional "La obra de Carlos Marx y los desafíos del siglo XXI. Cuba.

Page 41: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 41

Disponível em:

https://www.nodo50.org/cubasigloXXI/congreso08/conf4_mellom.pdf, 2008.

MARTINS, Caio et alli. "A "estratégica democrática e popular" e um inventário da

esquerda revolucionária". Rio de Janeiro: Marx e o marxismo. v. 2. n.3. pp.382-403,

2014.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo editorial, 1852

[2011].

____. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo editorial, 1875 [2012].

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia

alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão

em seus diferentes profetas. São Paulo: Boitempo editorial,1846 [2007].

____. "Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas". Texto disponível em:

https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm.

Acessado em 16/06/2017, 1850.

MÉZSÁROS, István. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo:

Cortez Editora, 2014.

NEVES, Victor. Democracia e revolução: um estudo do pensamento político de Carlos

Nelson Coutinho. Tese de doutorado em Serviço Social — Universidade Federal do

Rio de Janeiro, 2016.

PINTO, Eduardo et alli. "A guerra de todos contra todos: a crise brasileira". Texto

para discussão 006/2017. Rio de Janeiro: Instituto de Economia da UFRJ. Grupo de

Análise Marxista Aplicada, 2017.

POULANTZAS, Nico. O Estado, o poder, o socialismo. Riode Janeiro: Graal, 1978.

PRADO JR., Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966 [2004].

SAAD-FILHO, Alfredo. "Crise no neoliberalismo ou crise do neoliberalismo?"

Uberlândia: Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.1. n.3. Edição especial -

Dossiê: A crise atual do capitalismo, 2011.

Page 42: Um debate sobre a democracia brasileira: tradição plutocrática e ... · A forma política da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo, é a democracia liberal. Conforme Hobsbawm

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: LEÓN; MALTA, TD 017 - 2017. 42

SAMPAIO JR., Plínio. Entre a nação bárbarie: os dilemas do capitalismo dependente

em Caio Prado, Florestan e Celso Furtado. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

____. Crônicas de uma crise anunciada: crítica à economia políitica de Lula e Dilma. São

Paulo: SG-Amarante, 2017.

SAWAYA, Rubens. Dependência e subordinação: capital transnacional nas

estruturas do Estado. Trabalho apresentado no XXI Encontro Nacional de Economia

Política. São Bernardo do Campo, 2016.

SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das

Letras, 1970 [2008].

SINGER, André. "Cutucando a onça com vara curta". São Paulo. Novos Estudos.

CEBRAP. n.102, 2015.