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Ronald Anthony

Um Ano Inesquecível

 Um grande amor nem o tempo pode apagar.

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Capítulo 1

Ao se deitar na cama naquela manhã, um númeromuito grande de pensamentos passou pela cabeça de MickeySienna. Mais de uma vez, ele considerou a possibilidade deque aquele dia mudaria sua vida profundamente. Ele

descobriu que atingira o ponto em que todos aqueles diastinham ficado no passado e, na verdade, a maioria de seuspensamentos se concentrava na ideia de que, a cada manhã,ele cogitava nunca mais se levantar da cama, e isso estava setornando cada vez mais atraente.

Em seu 83o ano de vida e na quarta estação desde quesua companheira de mais de meio século se fora, Mickey

abria os olhos cedo todas as manhãs. Ouvia os trabalhadorescorrerem para pegar o jornal na entrada da casa, acreditandoque já estavam atrasados para matar o leão do dia. Ouvia osônibus escolares rangerem os pneus para apanhar outrageração de crianças. Os lixeiros vinham às terças e às sextase os apanhadores da coleta seletiva de lixo, às segundas.Aquela menininha super agitada, sua vizinha, dava um gritoestridente para convencer a mãe a qualquer custo a deixá-la

brincar na rua, apesar do mau tempo. Cada som levava seuspensamentos para uma direção diferente. Os primeiros eestimulantes dias como negociante e a vida que levara. Oprimeiro dia de escola de Darlene. As pilhas de caixas depresente deixadas de lado depois do Natal. A alegria deDenise ao ser carregada nos ombros dele.

Deitado às vezes por horas e horas, ele continuava

escutando, lembrando os fatos. Era incapaz de voltar adormir, mesmo que estivesse esgotado e soubesse que

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permaneceria assim o restante do dia. Mas, por ora, tiraruma soneca não era uma opção e levantar não parecia tãoatraente. Ele tinha dores nos joelhos, a destreza nos dedostinha diminuído e sua vida sem Dorothy simplesmente não

tinha muita rotina.

Depois da morte de Dorothy, os filhos imploraram queele se mudasse da colonial New Jersey, onde haviam moradopor quarenta anos. Muito espaço. Muitas escadas. Ele nãocaminhava mais tão bem como antes. Disseram-lhe queninguém na idade dele precisava de uma casa daqueletamanho. Mas o que eles realmente queriam dizer era que ele

era velho para ser independente e certamente velho demaispara aprender a fazer as coisas que Dorothy costumava fazerpor ele. Embora amasse seus filhos, aquilo era uma ofensa.Os joelhos poderiam estar com a cartilagem gasta, e seusbraços por vezes adormeciam sem aviso, mas sua mente eratão brilhante quanto antes. E se ele não sentia vontade desair da cama na maioria dos dias, e se o simples ato dedescer as escadas e ir para o escritório no andar debaixo o

cansava, aquilo era problema só dele. Aquela era a casa dele.Ele permaneceria ali. Fim de conversa.

Mickey não sabia preparar a maioria das coisas quegostava de comer. Sempre houvera alguém para cozinhar emseu lugar. Primeiro, sua mãe, uma mulher forte, comascendência napolitana, que abraçava a cozinha com amesma paixão com que abraçara seu primeiro filho. Depois,

quando morara sozinho, havia uma infinidade derestaurantes em Nova York. E um dos motivos pelos quaisseu coração se unira a Dorothy fora a facilidade com quepreparava os pratos tradicionais de ambas as origens. Tendoacesso a essa incessante fonte de boa alimentação, Mickeynunca tivera motivo para aprender a cozinhar nem mesmo ospratos mais simples. Nunca lhe ocorrera que talvez chegasseo dia em que precisaria saber. Certamente, nunca pensara

que sua mulher, oito anos mais jovem, morreria antes dele.

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Então, dez meses depois da morte de Dorothy, Mickeyrealizou suas primeiras tentativas na cozinha: pegou doisovos da geladeira. Pratos quentes eram uma questão dehonra para ele. Qualquer um era capaz de encher uma tigela

com cereais e leite. Mas um prato quente requeria certo nívelde habilidade, que Mickey Sienna poderia seguramenteconquistar mesmo em idade avançada. Em breve, eleconvidaria todos os filhos para jantar; seria uma grandesurpresa. Ele pegou uma frigideira, colocou-a sobre uma bocado fogão e despejou um pouco de óleo. Acendeu o fogo, mas,sem saber à qual boca correspondia, acabou errando. Semdesligar aquela saída de gás, acendeu outra boca e quebroudois ovos na frigideira. Tinha a impressão de que sempredemorava mais para fritar do que ele imaginava, então,esperou um tempo para virar os ovos e foi para o corredorverificar o que estava passando na TV.

Na verdade, Mickey não gostava muito de televisão,principalmente da programação da manhã, na qualpredominavam talk shows  sem graça, programas de

autoajuda deseducativos e barulhentos programas educativosinfantis. Mesmo assim, não tinha vontade de ler nada pelamanhã, somente à tarde. E havia certo conforto na sensaçãode ter algum rumor na casa. Mickey escolheu um programaao acaso e se sentou no sofá. Era um velho drama de famíliados anos 1970. A baixa qualidade do som e a simplicidade danarrativa, aliadas à fadiga que parecia se tornar sua eternacompanheira nos últimos dias, causaram-lhe sonolência.

Enquanto na cama, uma vez acordado, ele não conseguiavoltar a dormir; o mesmo não acontecia no sofá. Pouco depoisdo intervalo para os anunciantes, Mickey estava fora do ar.

Possivelmente, foi a primeira vez na história que umapropaganda na televisão salvou a vida de um homem.

No intervalo entre a soneca de Mickey e o anúncio que o

acordou  —   um contraste complicado e barulhento comrelação ao melodrama mudo  — , os ovos queimaram e o

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excesso de óleo na frigideira espirrou para a outra boca, quepermanecera acesa. O que aconteceu foi que toda a frigideirapegou fogo e se espalhou para a bancada de fórmica paraonde o óleo tinha espirrado. Uma onda negra de fumaça se

encaminhou para onde Mickey estava dormindo. A fumaça,que poderia matá-lo com um pouco mais de tempo, não odespertou, mas sim uma propaganda em volume alto,dizendo-lhe que ele teria “uma barriga em forma detanquinho em apenas dez minutos por dia”. 

Mickey tossiu e teve falta de ar enquanto se levantava dosofá. Devagar, entrou na cozinha, retardado não apenas pela

dificuldade de dobrar os joelhos, mas também pelo medotremendo que advém da sensação de perigo. Tentou jogarágua nas chamas, mas aquilo causou ainda mais fumaça. Também tentou apanhar a frigideira com um pano decozinha, mas o pano pegou fogo.

Mickey começou a pensar —  mesmo a contragosto, umavez que não queria admitir suas limitações físicas  —  que, se

quisesse sair dali a salvo, não poderia perder tempo. Tãorápido quanto seus joelhos que rangiam podiam suportar,Mickey lutou contra a fumaça para atravessar a porta dafrente. Lá fora, no jardim, arfou profundamente. O que eledeveria fazer? Pensou em todas as coisas que estavam dentroda casa e considerou voltar para resgatar os itens maispreciosos. Mas sabia que isso era insensato. Tinha que fazeralguma coisa. Não podia simplesmente deixar que a casa se

incendiasse. Mickey pensou claramente, o bastante paraperceber que não estava pensando com clareza. Tentou seacalmar para ver se lhe vinha alguma ideia sensata.

 —   Oi, Sr. Sienna  —   disse uma voz de menina. Mickeyvirou-se para ela. Era Maureen, de 3 anos, a garota queadorava brincar fora de casa.

 —   Ei, Mickey  —   disse a mãe dela, Lisa, acenando ecaminhando para ele. —  Saiu cedo de casa hoje, hein?

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Mickey começou a andar na direção delas. A angústia ea desorientação devem ter ficado aparentes em seu rosto, poismal havia dado uns passos e Lisa apressou-se em suadireção.

 —  Está tudo bem? —  ela perguntou.

 —   A cozinha... a casa... está pegando fogo  —   Mickeyrespondeu.

Lisa abriu a boca, espantada, e voltou-se rapidamentepara olhar para a filha. Ela caminhou até Mickey e pegou-opelo braço.

 —  Venha para a minha casa  —  disse.  —  Você chamouos bombeiros?

 —  Não, não fiz nada. Não consegui pensar em nada. Eusimplesmente saí de lá.

 —  Vamos ligar agora mesmo.

Eles deram dois passos. Mesmo agitado, Mickey nãopodia andar depressa. Lisa soltou seu braço.

 —  Sabe de uma coisa? Vou na frente. —  Virou-se para afilha.  —   Maureen, pode acompanhar o Sr. Sienna até emcasa?

 —  Quero brincar mais um pouco —  disse a menininha,em um tom de voz claramente inconveniente.

 —  Vamos sair de novo para brincar daqui a pouco. Podemostrar seu novo cavalinho para o Sr. Sienna, por favor?

Minutos depois, o Sr. Sienna estava sentado na cozinhade Lisa. O coração dele ainda estava batendo forte, mas pelomenos tinha se acalmado com o fato de que os bombeirosestavam a caminho. Havia investido mais de quarenta anos

de sua vida naquela casa. E muito mais, se considerasse as

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lembranças que havia ali. Não poderia sequer imaginar comose sentiria se a casa fosse destruída.

Lisa parecia entender pelo que ele estava passando. Ela

afagou a mão dele. Desde que chegara, havia poucos anos,ela era uma boa vizinha. De vez em quando, fazia unsdocinhos para ele e sua mulher. Aparecera todos os dias paraa vigília de Dorothy.

 —  Os bombeiros vão chegar logo —  disse.

Mickey segurou a mão dela e deu um sorriso tímido.

 —  Preciso chamar meu filho. Posso telefonar?

Matthew deveria estar no escritório a uma hora dessas.Demorou um pouco para ele se lembrar do número. Malditosaparelhos automáticos velozes!

 —  Pai, ia te ligar agora mesmo  —  disse Matthew, assimque atendeu. —  O que aconteceu?

 —   Estou com um probleminha aqui  —  Mickey disse, omais casual que pôde.

 —   O que há de errado?  —   Matthew perguntou,preocupado. Mickey podia imaginar o rosto dele, agitado.Matthew era um excelente pai e marido e tinha um empregode muita responsabilidade, mas tendia a se irritar muitofacilmente.

 —  Houve um pequeno incêndio na cozinha.

 —  Incêndio na cozinha? Pai, onde você está?

 —  Estou fora de casa; na casa da Lisa.

 —  Bom, fez a coisa certa —  disse Matthew. Mickey podiaouvir a voz do filho um pouco mais calma agora. Matthewteria um ataque do coração qualquer dia desses, caso não

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tomasse cuidado.  —   Está tudo bem? Está respirando bem?Inalou muita fumaça?

 —   Estou bem  —   respondeu Mickey, sentindo uma

imensa necessidade de minimizar a sua própria ansiedade. —  Estou mais preocupado com as coisas na casa. Deveria pelomenos ter trazido o álbum de fotos comigo.

Ao ouvi-lo suspirar, Mickey podia imaginar a expressãoexasperada que, sem dúvida, Matthew tinha naquelemomento. Seu rosto deveria ter passado de preocupado aconsternado. Mickey quis saber quando exatamente os filhos

começavam a tratar os pais como crianças. —   O álbum de fotos é a última coisa com a qual você

deve se preocupar agora, pai. Não existem “pequenosincêndios”. Estou contente que tenha saído vivo disso. 

 —  Não seja dramático!

 —   É muito interessante que diga isso depois de me

avisar que nossa casa pegou fogo.

Mickey olhou demoradamente para Lisa e fez umaexpressão de alguém que fora cercado. Ela deu-lhe umsorriso. Mickey se perguntou se ela tratava os pais da mesmamaneira.

 —  A casa não está caindo  —   respondeu. Olhou para aporta lateral. Era fumaça que saía da janela?  —   Eu só não

vou poder usar a cozinha por um tempo.

 —  Então, por que me ligou? —  Matthew havia superadocompletamente o estado inicial de preocupação. Mickey seperguntou quanto tempo mais ele levaria para dizer que acasa era “grande demais” para ele. 

 —   Liguei porque queria saber o que você acha que eu

devo fazer. Esse é o tipo de coisa de que sua mãe cuidaria.

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 —  Pai, estou em Chicago —  disse Matthew, levantando otom de voz.  —   Reparou que precisou discar um código deárea? Não posso simplesmente pegar um carro e chegar aí emmeia hora.

 —  Denise quase nunca está no trabalho.

 —   Não comece a falar de Denise, pai. A propósito,quando foi a última vez que a viu? Ela manda de vez emquando alguém verificar como você tem passado?

Mickey balançou a cabeça. Ele deveria ter ligado paraDarlene.

 —  Denise é muito boa para mim e você sabe disso.  —  Ele nunca gostara das rixas entre os irmãos. Pensou quetivesse sido claro a respeito disso em todos aqueles anos. —  Ésó que ela trabalha muito.

 —   Não é hora de discutir isso  —   Matthew disseabruptamente.  —  Olhe, tem que acionar o seguro e esse tipo

de coisa. Por que não liga para Jesse?

Nem lhe passara pela cabeça procurar Jesse.

 —  Por que deveria ligar para Jesse?

 —  Bom, para começar, ele mora a dez minutos da suacasa.

 —  Jesse não entende dessas coisas. Ele é só um garoto.

 —  Pai, ele tem 32 anos. E tem sua própria casa.

Mickey olhou para a porta lateral de novo. O caminhãode bombeiros estava estacionando.

 —   Os bombeiros chegaram  —   ele disse a Matthew.  —  Não vamos nos preocupar com isso agora. Vou ver se falocom Denise mais tarde.

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 —  Me ligue quando souber de algo.

 —  Vou ligar hoje à noite.

 —  Me ligue assim que souber. —  Está certo. Preciso falar com os bombeiros.

Mickey desligou e estendeu o telefone para Lisa.

 —  O caminhão de bombeiros chegou —  ele disse.

 —  Maureen já está na janela. Ela ouviu as sirenes.

Mickey se dirigiu para a porta da frente.

 —   Meu filho acha que sou incapaz de fazer qualquercoisa sozinho.

Lisa deu um tapinha no ombro dele.

 —  Os filhos às vezes pensam assim. —  Ela pegou-o pelobraço. —  Venha, eu o acompanho.

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Capítulo 2

Praticamente minha vida toda, juntar meus irmãosdebaixo do mesmo teto foi uma tarefa e tanto. Minha irmãDarlene, que é vinte anos mais velha que eu, saiu de casaantes que eu começasse a andar. Naquele outono, meu irmãoMatty entrou na faculdade. Quando eu estava aprendendo asprimeiras operações de matemática, Denise fazia cálculosconsideravelmente mais complexos em Dartmouth, onde sepreparava para sua carreira hoje reconhecida no mercado.

Minha mãe se referia a mim como “uma maravilhosa

surpresa”, pois ela engravidou com mais de 40 anos, quandopensava que não podia mais ter filhos. Denise, doze anosmais velha que eu, referia-se a mim como um “acidente” todavez que era forçada a ser minha babá, quando era aindaadolescente. Não obstante os títulos, não havia dúvida de quemeus pais não planejaram meu nascimento. E, enquantominha mãe se tornara quase uma profissional nesse negóciode ser mãe, se isso é possível, e cuidava de mim como alguém

a quem fora oferecido pela segunda vez o carrinho dassobremesas, para mim era difícil não me sentir como ummembro que sobrava na família. Isso se tornou ainda maisverdadeiro quando tanto Darlene como Matty se casaram etiveram filhos com pouca diferença de idade, dando-me umsobrinho e uma sobrinha muito mais próximos de minhaidade que meus próprios irmãos. Eu era muito novo para unse muito velho para outros. Era um homem sem geração.

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Minha lembrança mais viva das reuniões de família sãoas palavras ditas. Darlene contava histórias coloridas sobre avida no “mundo real”. Matty regalava-nos com pensamentosprofundos sobre as aulas que andavam captando sua

imaginação naquela época. Denise sugeria que nenhum delessabia o que andava realmente acontecendo, de um modomuito cínico para alguém de sua idade. Meu pai alimentavaos debates em um tom de voz ao mesmo tempo autoritário ede admiração. Minha mãe gritava da cozinha para o andar debaixo, a fim de se certificar de que não faltava nada paraninguém. E tudo isso a plenos pulmões.

Achava tudo aquilo muito divertido e assustador. Aimagem que fazia daquele tempo era que cada membro dafamília estava no alto de uma montanha e eu, ainda no pé dovale. Eu admirava imensamente a habilidade deles de seexpressar, de persuadir uns aos outros, de gerar tantavitalidade. Invejava a atenção que meu pai dedicava a meusirmãos mais velhos e a patente alegria que tinha ao conversarcom eles dessa maneira. Era fácil permanecer nos bastidores

quando todo mundo aparecia na casa. Não tinha nada de tãoimportante a dizer e, mesmo se tivesse, não sabia comoprojetar minha voz para ser ouvida. Eu era o caçula. Meuspensamentos vinham muito vagarosamente. Quando algovalioso entrava em minha mente, a conversa já tinha mudadode rumo. Deve ser por isso que me tornei escritor. Foi o modoque encontrei de firmar uma opinião sem arriscar serinterrompido.

Com o passar dos anos, o número de reuniões familiaresdiminuiu drasticamente. O marido de Darlene, Earl, arranjouum emprego como gerente em uma fábrica de tecidos e elesse mudaram para Orange. Matty e Laura se transferiram paraPittsburgh por um tempo e depois para Chicago, cerca de dezanos atrás. Denise morou em vários apartamentos em UpperEast Side antes de comprar uma propriedade de frente para o

rio Hudson. Isso a distanciou 24 quilômetros da casa de

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meus pais, fisicamente falando; emocionalmente, ela estava adiversos continentes de lá. Obviamente, Denise havia seguidoo conselho de meu pai, tantas vezes repetido, segundo o qualela deveria ser ela mesma, o que significava que deveria ficar

em um isolamento virtual do restante da família.

Não sei por que as coisas com Denise me aborreciamtanto. Penso que se relacione com o fato de que, na verdade,passamos um tempo dividindo o mesmo teto e por isso euesperasse mais dela do que de Darlene ou de Matty. Sabiaque Denise era brilhante e que suas habilidades eramverdadeiras; eu havia acompanhado de perto seu

desenvolvimento por alguns anos e a admirava sinceramente.Mas, quando ficou claro para mim que minha admiração eraignorada, meus sentimentos por ela se tornaramconsideravelmente menos beneméritos. Não queria me darconta de que ela adorava meu pai, mas não viria visitá-loquando ele mais precisasse dela. Não queria admitir que elatinha sido extremamente generosa com meus pais, masnunca tinha tempo para eles. Não entendia como era capaz

de fazer isso com pessoas com as quais realmente seimportava.

A última vez em que todos nós estivemos juntos foidepois da morte de minha mãe. Lembro-me de estar sentadoà mesa de jantar com todos na véspera da partida deles e deme sentir desconfortável  —   e não era por conta do funeral,que havia acontecido naquele mesmo dia. Obscurecido por

meu pesar, havia algo mais, enviezado. Comi com os olhosfixos no prato, mas meus outros sentidos estavam voltadospara as outras pessoas enquanto eu estava com elas. Nãoentendia o que estava errado, até que finalmente percebi queera o silêncio. Ninguém conversava.

Contemplávamos a fragilidade de meu pai; estávamosabsolutamente despreparados para a morte de minha mãe.

Ela estava bem até ir para o hospital por causa de umpequeno problema respiratório e então teve complicações.

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Passou uma semana na UTI e em seguida teve alta. Masnunca mais foi a mesma. Dois meses depois, estava morta. Eisso foi o suficiente para silenciar todo mundo. Sua passagemnão deveria ter sido tão veloz. Não deveria acontecer senão

em vinte anos. Não tenho certeza quanto ao que os outrosestavam pensando naquela noite, mas pensei que talvez fosseapropriado que esse jantar fosse diferente de todos osdemais. Daquele ponto em diante, tudo mudaria em nossafamília.

A partir de então, todos nós tentamos convencer meupai a desistir da casa. Ele não se movimentava mais tão bem

quanto antes, parecia cansado e sombrio, e tínhamos receiode que se machucasse, caso tentasse fazer tudo o que eranecessário para sua sobrevivência naquele espaço. Todavia,ele não tinha interesse de conversar sobre isso. Minhasconversas com ele foram breves e superficiais. Dizer queestava sendo indiferente comigo pode sugerir que ele, emprimeiro plano, estivesse considerando minha posição. Tenteiusar diversas técnicas para provocá-lo que apreendi com as

interações com Darlene, Matty e Denise, mas elas pareciamdiferentes ao saírem de minha boca; eram mais incisivas,mais sarcásticas do que persuasivas. Os outros eramtranquilamente implacáveis; todos tentavam tratá-lo de modoenérgico e respeitoso, embora mantendo o ponto de vista.

Depois da Crise dos Ovos Fritos, todas as apostas foramretiradas. Simplesmente, sabíamos que precisávamos tirá-lo

de lá. Como um indício do quanto aquilo era sério, Matty eDenise pegaram o avião e Denise abriu as portas da casapara a reunião. Claro que ela chegou meia hora atrasada eentrou reclamando de um empregado que “simplesmente nãoqueria deixá-la ir embora”. E mais, ela se comportou como setivesse pensado, durante o trajeto de táxi, em cada palavraque diria. Mesmo quando achei que ela estava meaborrecendo, o que foi quase o tempo todo, tive que

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reconhecer o quanto me impressionava o modo comoconduzia os outros a considerarem sua presença.

 —   Estou apenas dizendo que um enfermeiro em casa

pode ser um passo muito drástico  —   Matty disse, emresposta à sugestão da irmã.  —   Não se trata de Alzheimer,nem que ele precise de cadeira de rodas, nem nada do tipo.Está velho e move-se devagar, mas não está com o pé nacova.

 —  Enfermeiros em casa não são apenas para quem estáprestes a morrer —  Denise respondeu de pronto.

 —   Na verdade  —   continuou Matty  — , acho que éexatamente essa a definição de dicionário.

Denise balançou a cabeça e fez algo com os dentes. Eracomo se estivesse rangendo os dois juntos, mas a parte decima nunca alcançava a debaixo. Com o tempo, entendemosque aquilo era um código para “não acredito que estouperdendo tempo tentando me comunicar com vocês”. Às

vezes, eu me perguntava se ela tinha adquirido esse hábitodepois de anos usando todos os meios para garantir umaposição entre os irmãos. Quando fiquei maduro o suficientepara entender isso, aquilo já estava enraizado.

Naquele instante, Marcus, o filho de 8 anos de Denise,entrou na sala com um livro nas mãos e perguntou à suamãe o que simbolizava a neve em Caninos Brancos1. Marcus

é um menino-prodígio, no mau sentido. Sem se abalar com ofilho, Denise se voltou para o marido, Brad, e disse:

 —  Estou um tanto ocupada com outra coisa agora.

Brad levou o menino para fora dali. Estou certo de queele anotou qualquer coisa antes de voltar para a reunião,para que pudesse estabelecer seu próprio quiproquó maistarde. Esse parecia ser o tipo de relacionamento entre eles.

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 —   Poderíamos contratar um enfermeiro por tempointegral  —   sugeriu Darlene.  —  Um enfermeiro se certificariade que o papai estaria bem e poderia ao mesmo tempo servirde companhia.

 —  Parece que estamos procurando um substituto para amãe  —   Matty respondeu.  —   E o pai não vai aceitar essahistória de enfermeiro.  —   Começou a imitar a voz rouca dopai.  —   “Se não estou doente, por que preciso de umenfermeiro?” Vocês sabem o quanto ele reluta em admitir quenão é mais capaz de fazer as mesmas coisas de sempre.

 —   O que o pai precisa é de uma assistência em umacasa de repouso —  Laura sugeriu. Das três noras, Laura eraa mais chegada a meu pai. Provavelmente, tinha muito quever com o fato de que sua missão na vida era fazer com quetodos se sentissem em casa. E também porque meu pai nãose parecia em nada com o homem que a tinha abandonado,sua mãe e sua irmã quando Laura tinha 11 anos. Mas elestambém tinham uma amizade e nenhum de nós duvidava de

que Laura tivesse afeição verdadeira por ele. —  Esses lugaressão quase como apartamentos. Alguns são muito bons, e aspessoas que moram neles mantêm um nível deindependência. Não precisam se preocupar com lavar aroupa, limpar ou cozinhar  —   disse com um sorriso desabedoria.

 —  Amém —  Denise disse com sarcasmo.

 —   Essas casas estão proliferando por todo o sul daCalifórnia  —   comentou Darlene.  —   Parece a rede daStarbucks. Aposto que é a mesma coisa em New Jersey.

Muitas cabeças balançaram e começaram a discutir oque deveriam fazer. Como pesquisar o que elas oferecem?Como dizer ao pai? Vamos conversar com ele ou vamosembalar suas coisas e fazer suas malas?

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Eu me levantei do sofá para pegar um café na cozinha.Não dissera nada desde que a conversa havia começado, oque significa que estava fazendo meu papel em reuniõesfamiliares. Certamente, não significava que não tinha opinião

própria (o que eu tinha) ou que me sentisse intimidado (oque, suponho, sempre fui). Simplesmente repetia o mesmopadrão toda vez que nos reuníamos. Sempre quis saber o queos outros pensavam sobre meu constante silêncio. Naverdade, o que eu me perguntava era se eles notavam meusilêncio.

Mesmo assim, tive que me levantar, pois precisava de

um momento para coordenar as ideias. Havia algo que euqueria dizer, algo que estava me intrigando, algo queninguém poderia prever. Eu deveria apenas dar algunspassos e voltar para a sala, embora tivesse acabado dechegar. Suponho que sentia necessidade de “fazer umaaparição”. Ou apertar o “reset”. 

Não era nada que eu tivesse pensado previamente.

Como todos ali, considerei aquele evento algo sério. Mas,antes de ouvir as sugestões de todo mundo, que variavam deúteis a assustadoras e algo a mais do que um vazio, percebique havia uma decisão a ser tomada. Algo que oferecesse ameu pai mais do que simplesmente uma ponte para uma vidamais rica.

 —   Quero que meu pai venha morar comigo  —   disse,

antes de tomar outro gole de café e escaneando todos elesrapidamente com o olhar.

Denise adotou uma nova expressão de aborrecimento.Darlene simplesmente parecia confusa. Foi Matty quem meencarou:

 —  Certo, ótima ideia! —  disse, apressadamente.

 —  Estou falando sério —  repeti, tomando mais café.

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 —  Não, não está, Jesse.

 —   Estou, sim. Você não pode me dizer que morarcomigo não vai ser melhor para o pai do que ir para uma casa

de repouso.

Ele fez uma careta, como se minha sugestão estivesseespremida em suco de limão.

 —  Jess, isso está fora de cogitação.

Percebi que fiquei agitado, minhas frustrações giravamcom a falta de ideias sobre como responder a meus irmãos e

como facilmente eu perdia minha compostura quando eradesafiado por eles. Terminei de tomar o café e disse algocomo: “eu ainda acho que seria uma boa ideia”. 

 —  Babe   —   disse Darlene  — , é ótimo que queiraparticipar e estou certa de que o papai apreciaria muito esseseu gesto. Mas acho que a casa de repouso é algo bem maissensato. Você seria de grande ajuda se pesquisasse as

melhores casas em New Jersey. Nenhum de nós pode fazerisso, estando tão longe daqui.

Fui dispensado. Sabia que havia enrubescido e que nãotinha nenhuma condição de continuar argumentando.Imediatamente, pensei que deveria ter sugerido isso antes edeveria ter mandado e-mails para eles, justificando minhaposição antes do encontro. Deveria saber que tal provocaçãorequeria uma preparação. Como resultado, recaí em meupapel tradicional. Disse, simplesmente, “claro, tanto faz” edeixei tudo como estava.

O restante do tempo em que fiquei ali, eu me fechei emmeu mundo. Os outros continuavam discutindo os planos. Odestino de meu pai tinha sido selado, meu papel como“pesquisador oficial”, confirmado. Não havia sinal de alguémter repensado o que eu havia dito. Com certeza, eu não

tocaria de novo no assunto.

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Mas sabia que algo no meio disso tudo estava certo e,embora não tivesse considerado nada antes da reunião, fiqueicada vez mais convicto daquela ideia nos dias que seseguiram.

Marina entendeu. Quase sempre entendia. Mesmo antesde tê-la beijado pela primeira vez, valorizei o fato de que ela

simplesmente me compreendia. Podia conversar com ela arespeito de pessoas que ela desconhecia ou situações a queela não estava habituada, e ela seria tanto aberta comoprestativa. Não era apenas que ela me permitia desabafar. Tinha um modo de falar comigo como se realmenteentendesse as coisas pelas quais eu estava passando, mesmocom o mínimo de informação. Nunca conheci alguém capazde fazer isso. Sempre reconheci isso, sei disso. Apenas queria

reconhecer mais vezes, tanto quanto deveria.

Quando tudo aquilo aconteceu com meu pai e irmãos, agente estava saindo havia uns quatro meses e nosconhecíamos há quase seis. Ficávamos três ou quatro noitespor semana juntos e nos telefonávamos quase todos os dias.Nossas coisas estavam espalhadas nas duas casas e de vezem quando fazíamos planos para o futuro. Eu me divertia

com ela e pensava que era uma companhia estimulante,nossa vida sexual era ativa e satisfatória, e era o máximoagarrá-la e ser agarrado por ela. Havia algo que me dizia queMarina era uma mulher com quem deveria conviver por umtempo.

Mas isso era o máximo que conseguia vislumbrar denosso relacionamento. Não era algo tão simplório como a

incapacidade de estabelecer um compromisso. Quando você éincapaz de estabelecer um compromisso, ou significa que

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valoriza a independência e individualidade (código paraliberdade: dormir com qualquer mulher que demonstre certointeresse) em detrimento de um voto de fidelidade, ousignifica que o relacionamento não é tão bom quanto um que

se encontra na esquina. Nenhum dos dois cenários tinha algoque ver comigo. Nunca namorei duas mulheres ao mesmotempo, nem sei se sou capaz de uma coisa dessas. Tambémnão tenho necessidade nem vontade de comparar Marina aoutra mulher, real ou imaginária. Ela é uma das melhorespessoas que conheci e me considero muito sortudo por tê-laconhecido.

Havia algo muito mais insidioso em jogo aqui e algomuito mais intratável (afinal de contas, estamos sempreouvindo histórias de caras que “sossegaram o facho” depoisde namorar muito por uma ou duas décadas). Em minhacabeça, entre as poucas Verdades Absolutas que definem ahumanidade, havia uma que se relacionava a romance: oamor sempre acaba.

 Tenho muitas cicatrizes no coração, adquiridas desdeque tinha 25 anos. Quando estava no primeiro ano dafaculdade, eu me apaixonei perdidamente por uma mulherque se chamava Georgia. Nós nos vimos quase todos os diaspor quase dois anos. Escrevia-lhe poesia, comprava-lhe florespelo menos uma vez por semana, tinha aprendido a cozinharpara que ela viesse para meu quarto. Ela escondialembrancinhas para mim em lugares inesperados, me

comprava cartões engraçadinhos, cantava para mim nacama. A gente estava sempre se beijando, sempredemonstrando afeto, sempre se tocando. Pensei que já tivesseme apaixonado antes  —  pelo menos uma dúzia de vezes, nocolegial  — , mas todos esses relacionamentos perderam suaforça diante de meu desejo por Georgia. Quando ela me disseque estudaria um ano em Londres, pois aquilo faria umagrande diferença em sua carreira, ambos choramos horas e

horas. Achei que não sobreviveria tanto tempo longe dela. Eu

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me concentrei nos estudos naquele ano, escrevendo-lhe cominédito fervor enquanto esperava por ela. Eram três ou quatrocartas por semana e por engano interpretei o tom distantedas cartas como nada além de uma perda na tradução da

afeição por mim em carne e osso para a página escrita. Ao seaproximar o término do semestre, eu mal dormia deansiedade por seu retorno. Às vezes, escrevia-lhe duas outrês vezes por dia, enquanto ela diminuía a frequência comque me respondia.

Uma semana antes de ela voltar, comprei um anel denoivado com as economias de um emprego de meio período

que arranjei para preencher o tempo em que ela não passavacomigo. Fui pegá-la no aeroporto e planejei fazer um pedidocerimonioso naquela mesma noite. Mas o anel nunca saiu dacaixa. Meia hora depois que aterrissou, Georgia me disse quevoltaria a Londres em um mês. Havia decidido terminar osestudos na Inglaterra. E, sim, havia esse cara que elaencontrara e, bem, ela não planejara nada, mas acontecera.

Depois de me recuperar do choque inicial, eu percebicomo tinha me dedicado a ela enquanto ela fora capaz demudar de opinião com outro homem. Não era a primeira vezque uma mulher me abandonava. Nem mesmo a primeira vezque uma mulher me trocava por outro. Porém, sem sombrade dúvida, era a primeira vez que uma mulher me dava o foraquando eu estava pronto para me entregar completamente.Achei muito assustador não ter pressentido que isso

aconteceria. Claro que poderia reler todas as cartas (o quefrequentemente fazia) e descobrir as pistas iniciais. Mas nãopude encontrar nenhum sinal em meu coração. Eu mededicara totalmente a Georgia. Mas uma viagem a Londreslhe dera permissão para mudar de rumo.

Nunca antes me senti tão desconectado de minhaprópria vida como nos meses seguintes. Todos os meus

planos e pensamentos incluíam um futuro com Georgia. Foi

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somente no último ano de faculdade que realmente admitique não éramos mais um casal.

Depois de sair com algumas mulheres que pareciam

muito interessantes por um breve período, conheci Karen ecomecei a acreditar que poderia me apaixonar de novoseriamente. Enquanto meu romance com Georgia forafilmado com lentes difusas, meu relacionamento com Karenera uma produção da MTV. Havia um ritmo frenético,preenchido com reviravoltas e pirotecnias. Eu era maisimpulsivo com ela do que em qualquer outra situação naminha vida. A gente entrava no carro e parava em qualquer

lugar apenas para transar. Bebíamos muito e satisfazíamos oapetite sexual ao beber. Pela primeira vez na vida, achei queestava ultrapassando as convenções. Dizia o que me passavapela cabeça e, se os outros se sentissem incomodados comisso, era problema deles. Georgia me transformou em umamante e Karen, em um rebelde. Minha vida tinha adquiridoum sentido dionisíaco.

Em alguns meses, fomos morar juntos e por um tempoestivemos no auge da paixão. Esse foi o antídoto. Era dissoque eu precisava. Se o amor inocente poderia se acabar demodo devastador (e eu ainda pensava em Georgia todos osdias e imaginava onde ela estava), então o amor certo paramim obviamente tinha um aspecto muito mais sombrio. Masquando o tesão começou a desaparecer e todo o oba-obacomeçou a cobrar juros, começamos a perceber quão

frequentemente discordávamos e quão pouco nosimportávamos com os valores um do outro. Naquela altura,descobrimos que poderíamos brigar tão fervorosamentequanto transar e, por um tempo, mesmo isso exerceu certaatração.

Não tenho certeza de quando voltei a pensar nos amigosque deixei para trás ou no fato de que, a meu ver, eu havia

me tornado feio. Eu me refiz por amor e estou certo de queem algum ponto devo ter tomado conhecimento de quão

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antinatural isso era. Deve ter havido um momento em quepercebi quanto estava editando meus pensamentos e ações,quase que a cada hora, para encaixá-los com a visão demundo de Karen. Mas ainda não havia tomado plena

consciência disso. Enquanto estava fora da cidade a serviço,Karen não somente partiu para outra como partiu para ooutro lado dos Estados Unidos, deixando apenas um bilhete:“Fui”. 

Depois de Karen, percebi que existem diversos tipos deamor romântico e cada um tem um prazo de validade. Vocêpode ser terno, generoso e doce. Você pode ser amargo,

egoísta e ferino. Mas não importa como se vista, uma horavocê vai ficar nu. Não há meios de manter a profundidade nasemoções. E, se você realmente se importa, vai doer muitomais no final.

Não foram apenas minhas experiências pessoais quecomprovavam isso. Por toda parte, as pessoas tinham ocoração partido por casos de amor que se acabavam. E eu

não encontrava esperança naquelas pessoas que conseguiamficar juntas. Estava circundado de relacionamentosdesapaixonados e utilitaristas, que devem ter tido suasfaíscas em algum momento, embora agora nenhuma chamafosse visível. Darlene se casou com um homem “estável”, queparecia ter nascido para a paternidade. Matty se casou comuma mulher que poderia conversar sobre a mais nova iguariaoferecida por uma vendedora de doces como se fosse uma

conversa importante, mas que pegava no sono diante da TVdepois das 9h30. E Denise se casou com um cara que era tãofechado e voltado para os negócios que eu imaginava que elestransavam toda semana porque provavelmente haviam lidoque aquele hábito resultaria em um rápido avançoprofissional.

Mesmo o casamento de meus pais, embora tenha

durado mais de cinquenta anos, parecia mais uma parceriaque um romance. Eles faziam uma boa dupla e se

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completavam muito bem. Mas não me lembro de teremtrocado um beijo demorado e nunca os vi se abraçandomesmo que momentaneamente. Sem dúvida, em minhacabeça, eles se importavam um com o outro e meu pai ficou

arrasado com a morte de minha mãe. E, por causa de suamútua admiração, eu sabia que muito provavelmente, antesde eu nascer, eles expressavam mais seu romantismo. Masparecia inexistir eletricidade entre eles. Simplesmente,construíram muita coisa juntos. Como uma empresa dearquitetura.

Por certo, era assim que todos os relacionamentos se

desenvolviam. Você se apaixona por alguém e acredita que, juntos, podem ter uma boa vida pela frente. Talvez atétenham, mas em algum ponto ou vocês se consomem ou setornam companheiros de quarto, em vez de amantes. Paramim, não valia a pena. Não procurava uma companhia damesma idade. Não procurava netos que ficariam rodeandominhas pernas. Se o amor não podia durar um tempão,então, por que manter um relacionamento longo? Meu

sentimento era de que simplesmente se deveria seguir o cursonatural da vida, sempre consciente de que o inevitável podeacontecer. Você se diverte até certo ponto, e aí acaba. Nãoprecisa ficar de cama por uma semana e tocar baladinhasromânticas em seu aparelho de som.

Então, com Marina, eu deixei rolar até onde deveria ir,embora passasse muito menos tempo pensando na

inevitabilidade do fim do que com qualquer outra mulherantes. A gente estava na mesma página em relação aossentimentos. Ela estivera envolvida com outro homem porquatro anos e terminara de modo horroroso, e tenho certezade que, assim como, eu não queria entrar de cabeça em outrorelacionamento.

Encontrei Marina em um evento em uma livraria; nos

sentamos um do lado do outro. Gostei dela logo de cara efomos tomar um café depois da leitura do autor. Voltamos

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àquele café mais de uma dúzia de vezes antes de euoficialmente convidá-la para sair. Ela tinha um bom coraçãoe se importava com as coisas e me fez sentir que eu eraimportante para ela, mesmo antes de nossa primeira saída

 juntos. Sabia que era alguém com quem poderia fazeramizade  —   na verdade, nos tornamos grandes amigos  — ,mesmo se as coisas não acontecessem em outro nível. Aposteino relacionamento, pois me baseava em quanto me sentiabem ao lado dela, sem pensar em quanto tempo aquiloduraria. Ou se haveria uma mudança renovadora. Antes deKaren, a qualquer novo relacionamento que começava eu meperguntava se seria o Grande Amor. Depois de Karen, osrelacionamentos se resumiam ao fato de que eu não tinhanada melhor para fazer às sextas-feiras.

Estava me divertindo a valer com Marina, mas aindanão me perguntava se aquela química finalmente entraria emcombustão e desvaneceria. Teria que ser assim. Sempreacontecia. No meio-tempo, entretanto, a gente se divertiabastante. Aquilo era o suficiente para ambos.

E ela me compreendia. Melhor que meus irmãos.

 —   Por que aquilo era tão inconcebível para eles?  —  perguntei, enquanto nos sentávamos no sofá de minha casa,tomando um gole de vinho. —  Eu não sou irresponsável, nemmoro em um apartamento de um quarto só. Trabalho fora decasa, sei cozinhar, sei discar para a polícia. Isso cobre tudo,

não é mesmo? —   Acho que muitas pessoas têm problemas na família

porque pensam que o caçula é o bebezinho, não importa aidade dele —  disse Marina, gentilmente. —  Eles simplesmenteignoram quanto você é capaz e que isso seria muito bom paravocês dois.

Sim. Isso seria muito bom para nós dois. Foi isso o que

me inspirou naquela noite no apartamento de Denise. Algoque ainda não havia considerado até então. Acredito que

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seria bom para meu pai morar em uma casa onde seu filhopudesse lhe fazer companhia e cuidar de suas necessidadesbásicas. Mas também acho que seria bom para mim.

 Todos carregam um monte de problemas mal resolvidosnas costas com relação aos pais. Em meu caso, as coisas malresolvidas com meu pai eram que aparentemente eu nãotinha nada em comum com ele. Ele era cinquenta anos maisvelho que eu, e estou certo de que nunca fiz parte de seusplanos. Parecia que sempre estava confuso quando eu estavapor perto. Era como se eu o tivesse acordado novamente paraser um pai ativo, por determinado período, e ele não soubesse

muito bem como reativar essa função. Não era negligente ouinsensível, mas passava muito tempo no trabalho. A gentevivia vidas separadas debaixo do mesmo teto. Comoresultado, tenho um relacionamento com ele bem diferente dode meus irmãos. Aprendi que meu pai apenas tinha seenvolvido com os filhos quando eles atingiam uma idade emque pudessem estabelecer conversas racionais e se inter-relacionar. Não era muito para trocar fraldas ou se agachar

no chão para brincar, mas era ótimo em acampamentos, emconstruir modelos e fazer longos passeios de carro, e muitobom em discussões profundas. Acreditava que minha horaainda chegaria, que ele não tinha se envolvido mais comDarlene, Matty e Denise quando cada um deles tinha 6 anosdo que comigo e que ele se revelaria quando eu completasse10 anos. Mas, quando cheguei aos 10, ele tinha 60 e achoque a energia que se requer para interagir com um pré-

adolescente tinha se esvaído. Muitas de nossas discussõesvinham por meio de minha mãe, fosse o caso de ele me dar20 dólares para “comprar algo legal para o aniversário dela”ou ela declarar: “agora que fez 12 anos, seu pai ficariacontente se você cortasse a grama do jardim”. Eu tinhaamigos com avós da idade de meus pais e eu meio quepensava que eles fossem meus avós. Seu avô não brinca depega-pega nem anda de bicicleta com você. Ele se aproxima

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com conselhos indispensáveis, lhe dá uns trocados e umtapinha nas costas e vai-se embora.

Depois que me mudei, meu pai e eu conversaríamos

quando eu o visitasse ou se ele atendesse o telefone. Mas asconversas eram sempre breves, raramente mais substanciaisdo que uma revisão das notícias mais importantes, umcomentário sobre o tempo, uma pergunta sobre meu trabalhoou sua observação sobre o mercado de ações. Nunca me sentirejeitado e nunca acreditei que seria uma pessoa superior,melhor encaminhada na vida, caso tivesse recebido maisatenção da parte dele. Entretanto, as histórias de Darlene,

Matty e Denise me chateavam um pouco. E ver meu paiinteragir com meus irmãos mais velhos nos jantares medeixava enciumado. Havia uma grande parte de MickeySienna à qual eu nunca tivera acesso e, por conta disso, sentique algo estava faltando.

E agora essa oportunidade estava bem diante de mim,uma chance de estreitar o relacionamento depois de 32 anos.

Se Marina era capaz de entender isso com apenas algunsdados sobre os jogadores envolvidos, por que outras trêspessoas, que estavam muito mais por dentro da situação, nãopodiam?

 —   O que seu pai pensa sobre isso?  —   Marinaperguntou.

 —   Por que falaria com ele?  —   perguntei-lhe,

ingenuamente.

 —   Me desculpe, não sei onde estava com a cabeça  —  disse, rindo em silêncio.

 —  Não quis dizer isso. É que Matty e as outras gostamde controlar as coisas. Se eles não aceitarem minha ideia,não há como repassá-la para meu pai.

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Marina aproximou-se da mesa de café, apoiou a taça devinho e em seguida me puxou para perto. Ela foi a primeiramulher que se sentou assim perto de mim. Todas as outrasse inclinavam para mim, mas Marina era diferente.

 —  Você quer mesmo isso? —  ela perguntou.

 —  Nem imagina quanto!  —  disse, animado.  —  Fico meperguntando se é porque os outros me ignoram, mas achoque não. Acho que algo realmente bom pode surgir daí. Étudo muito romântico, você sabe, pai e filho que finalmentese entendem depois de tantos anos.

 —  Então, acho que deve fazer alguma coisa. E só existeuma coisa a fazer.

Eu me encolhi. Claro que ela estava certa, mas a ideiade discutir isso com meu pai pessoalmente parecia tãoartificial quanto perguntar a qualquer velhinho desconhecidose queria se mudar para minha casa. Na verdade, qualquervelhinho seria mais receptivo que meu pai.

 —  Estava esperando isso acontecer. Você quer conversarcom ele no meu lugar?

Ela me deu um tapinha na cabeça:

 —  Bom, eu iria, Jesse, mas, como nunca nos vimos, elepode achar isso meio esquisito.

 —  Sim. Temo que tenha a mesma reação comigo.

 —  Isso pode ser muito bom pra você. Mesmo que ele nãoo leve em consideração, você vai se sentir diferente quanto àsua posição na família.

Eu me aproximei dela, peguei sua mão e a beijei.

 —  Quando acabar, pode ser que eu me sinta vazio e tolo

 —  eu disse.

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 —  Isso pode acontecer, caso decida ir por esse caminho.Mas, a menos que seu pai tire sarro de você toda vez que ovê, não há nada a perder. Foi você mesmo quem disse: osoutros gostam de controlar as coisas e não vão permitir.

Então, se não bater de frente com seu pai, não vai piorar asituação. Mas aposto que ele se comoverá com sua proposta.Que pai não quer ser querido por um filho no fim da vida?

Eu me inclinei e beijei-a docemente.

 —  Você é muito boa, sabia?

Ela beijou minha cabeça.

 —  Você teria descoberto por si mesmo.

 —  Não, acho que haveria uma boa chance de eu desistire ficar irritado por muitos anos.

Ela me abraçou.

 —  Se se tratasse de outra coisa, pode ser; mas você sabe

quanto isso é importante. Não teria desistido sem lutar.

 Tomei outro gole de vinho e me ajeitei nos braços deMarina. Dois pensamentos me passaram pela mente. Oprimeiro foi como era tranquilo estar com alguém querealmente prestava atenção em mim. O segundo, que falarcom meu pai sobre a mudança marcaria a minha vida.

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Capítulo 3

O cheiro de fumaça ainda era forte nacozinha. Demorou uns dias para que os trabalhadoresconcluíssem as reformas, e eles fizeram o possível paralimpar o ar. Mas o mau cheiro ainda permanecia. Àsvezes, Mickey tinha a sensação de que dava para senti-lo atédo quarto.

Agora mesmo, o que Mickey queria era um sanduíchecom bacon, tomate e alface, mas comeria um de presunto.Ele não queria ter medo do fogão. Não desejava pensar queseria um problema ferver água, que estava fazendo algo

errado e que aquilo o mataria. Fora uma estupidez o queacontecera naquela manhã. Ele se revirara na cama todanoite, ainda se sentia cansado e dormira no sofá. Fora umacidente isolado, mesmo que seus filhos estivessem fazendoum escarcéu. Bem, está certo: um sanduíche de presuntocairia bem.

Mickey cortava o tomate quando escutou alguém se

aproximar da porta da frente. Ainda ouvia muito bem.Quando a campainha tocou, perguntou-se quem poderia ser.Não estava esperando nenhuma encomenda. Talvez Laurativesse mandado outro “kit de sobrevivência”. Tinha quasecerteza de que Theresa não viria hoje.

Ficou muito surpreso ao abrir a porta e dar de cara com Jesse. Não que fosse estranho ele aparecer, mas é que

geralmente ele telefonava primeiro. Jess aparecia mais vezesagora que Dorothy tinha morrido. Era um bom filho. Mickey

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gostava de dizer aos amigos que ele tinha um filho mais jovem que os netos deles. Ele se sentia mais novo.

 —   Oi, Jess. Que surpresa! Estava preparando um

sanduíche. Quer um?

 Jesse balançou a cabeça, entrou na casa e beijou o rostodo pai.

 —  Um pouco cedo para almoçar.

 —  É? —  Mickey perguntou.  —  Estou com um pouco defome. Quer um café ou outra coisa?

 —  Sim, obrigado. Um café cai bem.

 —  Ótimo —  disse Mickey ao se dirigir para a cozinha. —  Por que não faz você mesmo, enquanto termino de cortar ostomates?

 Jesse foi até a geladeira, pegou uma lata e chacoalhou-a.

 —  Tem pouco café, pai.

Mickey levantou os olhos da tábua de cortar econcordou.

 —  É, preciso fazer compras. Eles fecharam a A&P. Eraaonde sua mãe costumava ir. Todos os outros lugares sãochatos.

 Jesse pôs uma colher de café na máquina e colocou alata de volta na geladeira.

 —  Parece que precisa de um monte de coisas, pai. Querque eu o leve ao supermercado? Poderíamos almoçar depois.

Mickey pensou que não era má ideia. Havia coisas queDorothy costumava comprar, mas das quais ele não se

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lembrava. Não estava tão certo quanto a perder tempo em umrestaurante depois.

 —  Sim, se pudesse me levar, seria muito bom. Deixe-me

terminar o sanduíche.

Não disseram muita coisa enquanto ele comia. Pareciaque Jesse tinha alguma coisa para dizer, mas não queriafalar. Era uma descrição perfeita de Jesse, segundo Mickey.Sabia que era inteligente —  todos os seus filhos eram —  e eraum escritor com relativo sucesso, então devia ser bom em seexpressar. Mas quando Mickey estava com Jesse, nunca

podia adivinhar o que ele pensava ou se não estava pensandoem nada. Ele pensou como um filho seu poderia ter setornado daquele jeito. Mas, em relação aos outros filhos, ascoisas com Jesse sempre foram muito diferentes.

Eles ouviram a estação que passava apenas notícias nocaminho para o supermercado; Mickey fez um comentáriosobre o índice da Dow Jones e Jesse disse algo sobre ir para afaculdade quando passaram os comerciais. Exceto por isso,ficaram em silêncio.

Para Mickey, os supermercados eram um tanto quantoassustadores. Muita coisa para escolher, muitas marcaschamativas. Isso era um território exclusivo de Dorothy,enquanto era viva. Se precisassem de leite ou algo assim,Mickey iria a uma mercearia a alguns quarteirões de casa.Pelo menos, sabia o caminho para a A&P, tendo ido diversas

vezes até lá com sua mulher depois que se aposentara. Masagora tanto Dorothy quanto a A&P foram embora e Mickeynão fazia ideia de quanto brócolis comeria em uma semanaou quantas laranjas deveria comprar, que fossem suficientese não estragassem. E, além disso, acontecera o incêndio e ascoisas tinham se complicado.

 —  O que se faz com repolho crespo? —  perguntou para

 Jesse, pegando um maço da prateleira. Queria saber se eraalgo que se come cru.

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 —   Não uso repolho  —   Jesse respondeu, fazendo umacareta exagerada.  —   Não é o tipo de coisa que como.  —  Mickey colocou a verdura na prateleira e se voltou para outroitem.

 —  E couve-rábano?

 —  Vai percorrer uma lista? —  Jesse perguntou, rindo. —  Logo ali, estão os limões, a alface e o feijão-verde. Posso tedizer o que fazer com todos eles.

 —   Obrigado, Sr. Hortifrúti  —   respondeu Mickey,repondo o artigo na prateleira. Ele olhou ao redor e pensou

que comeria mais salada dali para a frente.

 —   Pai, acho que temos bastante coisa no carrinho.Precisa de mais alguma coisa?  —   continuou Jesse, andandopara o fim do corredor.

Surpreendentemente, Jesse estava sendo de mais ajudado que o filhinho que Mickey pensara que fosse. Ele se

lembrou de coisas como castanhas e detergente, que faltavamhavia várias semanas, mas ele sempre se esquecia decomprar. Mostrou até mesmo todos aqueles congelados queele poderia aquecer no micro-ondas, uma ideia que pareciamenos assustadora que usar o fogão. Jesse se movimentavacom eficiência e objetividade, como se tivesse planejado ascompras. Mickey pensou que ele aprendera isso com a mãe.

 —  Ouça, pai, quero lhe dizer uma coisa  —  Jesse disse,ao chegarem ao fim do corredor de laticínios.  —   Você sabeque, desde o incêndio, todos nós ficamos preocupados com ofato de você ficar ou não na casa.

O humor de Mickey mudou instantaneamente. Elelevantou os braços e olhou para cima.

 —   Não me diga que eles mandaram você ter essa

conversa comigo!  —   agitou-se.  —   Eles pensaram que seriamais fácil se mandassem o caçula?

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Mickey olhou para Jesse em sinal de reprovação,considerando a covardia dos outros filhos. Jesse ficouperturbado e Mickey percebeu que tinha sido um tanto duro.Era muito fácil fazer com que Jesse voltasse atrás. Mickey se

perguntou por que não o havia educado para ser mais forte.

 —   Não foram os outros, pai  —   Jesse tentou.  —   Naverdade, eles nem mesmo sabem que vim conversar com vocêsobre isso e pensariam que sou louco de fazê-lo.

Embora ainda estivesse para concluir o pensamento, Jesse se interrompeu. Mickey franziu a testa. Era duro

imaginar que seu filho era um jornalista, considerando adificuldade que tinha para defender seu ponto de vista.

 —   Estou pensando  —   Jesse continuou, enfim  —   quetalvez você devesse considerar a ideia de se mudar paraminha casa.

Mickey arregalou os olhos. Certamente, não previraaquilo.

 —  Não seja tolo  —   disse, impulsivamente.  —   Antes demais nada, não preciso me mudar. E, em segundo lugar  —  hesitou  — , bem, não precisamos falar sobre o segundomotivo.

 —  Eu insisto, pai —  Jesse interpôs-se. —  Não pode maisficar naquela casa. Se não quer que eu acredite que já não émais tão jovem quanto antes, isso não é problema. Mas,mesmo se fosse esse o caso, de certas coisas era a mãe quemse encarregava e você simplesmente não sabe fazer sozinho.

 Jesse se aproximou um pouco dele. Seu rosto estavaenrubescendo.

 —  Você pensa em comprar roupas novas e parar de usara lavanderia assim que as roupas sujas se amontoarem? Nem

vamos falar sobre cozinhar. Se testar algo com repolho, entãotoda a vizinhança corre perigo.

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 Jesse sorria enquanto dizia aquelas coisas, mas Mickeyse surpreendeu com o tom de voz. Claramente, ele pensaraantes de dizer. Ninguém o tinha convencido daquilo, mas eraum discurso premeditado.

 —   Jesse, eu estou bem. Você e seus irmãos estão mesubestimando.

 —   Pai, nenhum de nós está dizendo que está comalguma deficiência mental, nem que vai passar o resto davida debaixo das cobertas, ouvindo rádio. Mas é uma casagrande, você mora sozinho e talvez não seja a hora de

aprender novos truques.Mickey deu um passo para trás e levantou as mãos para

interromper o filho.

 —  Não quero mais falar sobre isso —  disse.

Mickey deixou o carrinho com Jesse e foi para o caixa.

 —   Eles falaram em uma casa de repouso  —   Jessemencionou, enquanto Mickey se afastava.  —   Os outrosdecidiram que morar em um lugar com assistência vai sermelhor para você.

Mickey parou e se virou. Não podia acreditar no que Jesse acabara de dizer. Seus filhos estavam conspirandocontra ele sem que ele soubesse?

 —   Não sou um débil mental  —   disse, rangendo osdentes. —  Não podem me forçar a uma coisa dessas.

 Jesse passou o braço em volta dos ombros do pai emtom conciliatório.

 —  Pai, depois do incêndio, eles podem fazer quase tudoque quiserem, caso achem necessário.

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Mickey sentiu um calafrio. Seus filhos iriam à justiçapara declarar sua incapacidade de morar sozinho? Chegariama tal ponto?

 —  Não preciso morar em uma casa de velhos.

 —   Foi por isso que sugeri que viesse morar comigo  —   Jesse sorriu. —  Seu filho mais novo.

Mickey riu, meio sem jeito:

 —  É, meu filho rebelde e solteiro.

 Jesse gargalhou alto. —  Rebelde e à espreita  —  completou. —  Com seu velho

com a mira apontada, e digo “velho” no sentido coloquial. 

Mickey sorriu. Jesse era muito diferente de seus outrosfilhos.

 —   Não, não quer que eu vá morar com você. Vou

atrapalhar. —  Na verdade, eu adoraria, pai.

Mickey olhou nos olhos do filho. Percebeu que nuncaadivinhava como interpretá-los. Se isso acontecesse comDarlene, Matt ou Denise, em um segundo ele saberia se elesrealmente tinham intenção de cumprir a palavra.

O que Jesse dizia não fazia sentido. Mas o filho fizeracom que ele pensasse em algumas coisas. Sobre os filhos otirarem de casa ou contratarem advogados para selar seudestino. Ninguém deveria ter que lidar com isso.

 —   Vamos passar as compras no caixa  —   disse,começando a andar novamente.  —   Quando chegarmos emcasa, vou fazer um café e vamos conversar mais.

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Capítulo 4

Às vezes, os clichês são verdadeiros. Tive um desejo efui satisfeito. E, quando comecei, já estava arrependido.

Deveria me conhecer melhor a uma altura dessas. Deveriasaber como me iludo e sobretudo como tendo a reagir quandoas coisas não se desenvolvem à la  Disneyworld. Deveria estarcareca de saber disso e me preparar para tempos difíceis.Mas tratava-se de meu pai e eu ainda era um menininho.Novamente, o mero ato de lidar com meus familiares metransformou em algo menor do que eu gostaria de ser.

Estava bem consciente de que transferir meu pai de

uma casa colonial de 370 m² para uma de de 230 m² seriaum desafio. Por isso, passei bastante tempo com ele,tentando escolher quais objetos ele necessitava, quaisdesejava, quais doaria para os filhos e netos e quais nóssimplesmente jogaríamos fora. Foram horas e horas, dias edias. Pela primeira vez em minha carreira, não cumpri oprazo e, ainda assim, no dia da mudança, percebi que tantofazia se eu tivesse ido para as Bermudas.

Deveria ter esperado algo do gênero, depois de termosestabelecido os preços uma semana antes. Consultei-o sobrecada objeto que colocamos à disposição. Concordamos sobreos preços. A primeira vez que ele disse que não poderiavender um cesto, “pois minha mulher realmente gostava delee provavelmente não posso me livrar dele”, eu me comovi.Mas isso foi porque ainda não tinha entendido o mecanismo.

Outras seis vezes durante aquela tarde, as pessoas tentaram

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comprar objetos que Mickey Sienna decidiu que elas nãoestavam autorizadas a adquirir. Não sei direito por que nãoconsiderei que aqueles objetos iriam para minha casa —  bemcomo muitos outros. Talvez porque eu simplesmente gostasse

de permanecer na ignorância por mais tempo.

Nos dias seguintes antes da mudança, eu me sentianormalmente agitado. Não era capaz de manter umaconversa mais longa, nem de escrever. Tive até problemas nacama com Marina. Queria que tudo transcorresse na maiorpaz. Queria que meu pai se alegrasse com a possibilidade devir morar comigo. Queria que levasse seus objetos pessoais

favoritos e imediatamente considerasse minha casa comosua. Tendo tido pouca experiência, eu mistifiquei as relaçõesentre pai e filho. E, ainda assim, se tivesse prestado atençãoaos sinais que meu corpo estava me mandando, teriaentendido que tinha me engajado em uma campanhafracassada.

 Tudo aquilo estava me irritando terrivelmente. Na noite

anterior, não dormi bem e pela manhã tomei muito café.Cheguei à casa de meu pai uma hora antes do caminhão demudança e comecei a reclamar depois de 15 minutos deatraso. Estava sem condições de enfrentar até mesmo amínima coisa que saísse dos trilhos e certamente não estavapreparado para o fato de meu pai reavaliar cada objeto nacasa.

 —   Embale tudo com cuidado. Tem plástico-bolha?  —  perguntou a um dos ajudantes de mudança. O homem tinhalevado uma caixa para a sala e a estava preenchendo comcisnes de cerâmica.

 —   O que está fazendo, pai?  —   perguntei, ao meaproximar deles.

 —  A gente não embalou os cisnes  —  disse, em um tom

de desdém.

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 —   Não era para embalar os cisnes. Você iria dá-los aChristina. —  Christina é a filha mais nova de Matty.

Meu pai olhou para mim como se eu tivesse sugerido

que ele doasse um pulmão.

 —   Não posso dar isto a Christina. Sua mãe adoravaesses cisnes. Lembra quando ela os limpava um por um?Christina vai quebrá-los.

 —  Ela tem 23 anos.

 —  Ela não vai gostar. Se quer dá-los a ela depois que eu

morrer, não posso fazer nada contra isso. Mas não vou medesfazer deles.

Não tinha ideia do que ele pretendia fazer com aquelasbugigangas. Com certeza, não seriam embalados, nãoimportava quão inocentemente ele tentasse me impressionar.Mas ele quase me emocionou com a imagem de minha mãelimpando-os. Devia ter visto minha mãe fazer isso uma

dezena de vezes. Decidi deixar para lá e supervisionar o quecolocavam no caminhão.

Pouco tempo depois, vi uma luminária que eu sabia quehavíamos concordado em não trazer. Eu me lembro muitobem da conversa que tivemos, quando expliquei queluminárias requeriam mesinhas e que todas as que tinha emcasa estavam ocupadas. Definitivamente, não havia espaçopara outra mesa na sala. Mesmo assim, não disse nada,embora tenha me irritado.

Em seguida, três ajudantes de mudança saíram da casa,carregando um armário de louça.

 —  O que estão fazendo? —  perguntei.

 —  Temos que colocar o armário no caminhão, antes de

trazer as caixas —  um deles respondeu.

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 —  Quem mandou levar o armário para o caminhão?

O ajudante de mudanças apontou para dentro da casa.

 —  O senhor lá dentro disse que isso também vai.Depois de dormir mal, de muita cafeína e algum indício

de que meu pai tinha brincado comigo durante as semanasanteriores, aquilo foi a gota d’água. 

 —   O senhor lá dentro está com as funções mentaisseriamente comprometidas. Não quero que deem ouvidos aele. Provavelmente, ele lhes contou que costumava viver

nessa casa com a mulher, não foi? Muito triste. Não peguemnada que não tenha sido estipulado para a mudança semfalar comigo primeiro.

Voltei para dentro.

 —   Por que disse aos ajudantes de mudança parabotarem o armário no caminhão?

 —  E como faria para levá-lo até sua casa? Tem algumaideia de quanto pesa?

 —  Não há espaço para um armário de louça na minhacasa, está lembrado? Conversamos sobre isso. Você o doariapara o Exército da Salvação, assim como a outra parte domóvel, a mesa de jantar, a cama de hóspedes e todos osoutros móveis que não cabem em casa.

 —   Nunca conversamos sobre o armário de louça  —  disse, secamente.

 —  Acho que a conversa começou por aí.

 —   Não teria concordado em não levar o armário. Sabequando o comprei para a sua mãe?

Aquilo tudo estava me cansando muito depressa.

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 —  Não sei, pai. No dia em que se mudou para esta casa?Quando Denise nasceu? No dia em que a mamãe lhe contouque queria um armário de louça mais do que tudo na vida eque, se algum dia ela morresse antes de você, você teria de

prometer não ir a lugar nenhum sem ele?

Meu pai olhou zangado para mim:

 —  Não há motivo para falar assim comigo.

Concordei. Não era assim que havia imaginado amudança de meu pai para casa. Pensei em algo como tomarum conhaque juntos, jogar cartas, ter conversas

enriquecedoras, não isso!

 —   Leve o maldito armário  —  desabafei.  —  O espaço jáestá comprometido mesmo.

Saí da casa e andei um pouco pelo quarteirão,esperando me acalmar. Pensei em olhar sob outra ótica,então percebi que estava agitado demais para ser simpático.

Peguei o celular para ligar para Matty e reclamar. Comcerteza ele me entenderia facilmente e concordaria que meupai era um teimoso e um estraga-prazeres. Mas então penseimelhor. Não queria admitir para Matty que estava acelerandoas coisas ou que havia reconsiderado a decisão. Era o que eleesperava que acontecesse. Provavelmente, até dissera a suasecretária para não repassar nenhuma ligação, exceto asminhas —  e somente se eu estivesse irritado.

Em vez disso, liguei para Marina. Ela era umaprofessora de Ensino Fundamental e não havia como eu mecomunicar com ela na escola, mas apenas a ideia de poderdesabafar um pouco já me fazia me sentir melhor.

 —  Oi, sou eu. Acho que vou ter que me livrar da minhacama para acomodar todas as coisas do meu pai. Você quer?Este não é um dos meus melhores momentos. Na verdade,

meu pai está me deixando louco. Se ele disser algo sobre

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levar a máquina de lavar, eu não me responsabilizo. Esperoque seu dia tenha sido bom. Estou louco para ver vocêamanhã. Vou tentar não me meter em confusão, pelo menosaté amanhã. Tchau.

Decidi dar a volta no quarteirão antes de voltar paracasa. Assim que me aproximei, eu o vi supervisionar osajudantes que carregavam a outra parte do armário paradentro do caminhão. Respirei fundo, tentei pensar em coisaspositivas e decidi que resolveríamos aquilo em outra hora.

Uma hora e meia depois, mais ou menos, tudo estava

dentro do caminhão e podíamos finalmente ir embora.Sentamos dentro do carro por um instante, antes de dar apartida. Os novos proprietários não se mudariam em pelomenos algumas semanas; logo, aquele não era o últimoadeus. Não seria correto nos apressarmos naquele momento.

Pela primeira vez naquele dia maluco, eu me dei contade que a casa em que cresci não pertenceria mais à família.Pensei em todas as vezes em que me deitara no sofá,assistindo à televisão, com a cabeça apoiada no colo deminha mãe. Pensei nos pôsteres de Joe Montana e do U2 quetinha no quarto e na foto de Christie Brinkley sob aescrivaninha. Pensei no porão cujos cantos escuros meamedrontaram até os 14 anos. Quis saber se todas aslembranças que queria manter sobre minha vida naquelelugar estavam salvaguardadas em memória ou se eu tinha

sido muito paladino com elas, supondo que sempre poderiavoltar para recuperá-las.

Podia apenas imaginar o que se passava na cabeça demeu pai naquele momento. Se meramente me preparar paradar a partida no carro estava causando esse efeito em mim,deve ter sido algo exponencialmente maior para ele. Nãohavia considerado esse fato até então. Entendi que fosse umatarefa que deveria cumprir. Mas foi um rito de passagem.

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Permanecemos um tempo em silêncio. A certa altura, euaté mesmo fechei os olhos para ver minha mãe andando até afrente da casa para me cumprimentar, como fazia semprequando eu era mais novo. Finalmente, decidi que

precisávamos ir embora. Estava pronto para girar a chavequando meu pai disse, de repente:

 —   Meu Deus! Quase ia me esquecendo!...  —   Abriu aporta do carro e correu para a casa. Perguntei-lhe para ondeestava indo, mas ele me ignorou. Pensei que fosse trazer umacadeira ou vaso sem o qual decidira não ser capaz de viver. Já tinha dito a mim mesmo que não discutiria com ele.

Pouco depois, voltou com uma caixa amarelada e caindoaos pedaços:

 —  Não me faça um sermão —  ele disse, ao voltar para ocarro, segurando a caixa no colo.

 —  O que é? —  perguntei.

 —   Não me diga que não tem mais espaço  —   elecomentou. Obviamente, eu o tinha aterrorizado de certamaneira com meus modos e me sentia culpado agora.

 —  Tudo bem —  respondi e liguei o carro.

 —  Isso é importante para mim.

 —  Eu sei. Tudo é importante. Tem razão.

Ele olhou para a casa e de novo para a caixa.

 —  Vamos logo para casa —  eu lhe disse.

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Capítulo 5

Prefiro escrever artigos. Penso que as históriashumanas são absolutamente fascinantes. Há alguns anos,

redigi um artigo com 10 mil palavras sobre uma avó solteiraque criava os três netos sozinha depois que seus paismorreram num acidente de carro. Eu me identificava tantocom a matéria quanto com ela. Marilyn e eu aindatrocávamos cartões de Natal e de aniversário, e nos últimostempos eu começara a escrever e-mails para Kerry, que agoratinha 9 anos e decidira ser escritora quando crescesse.

Muito do que publiquei na área foram histórias de

pessoas comuns que levavam uma vida extraordinária.Sempre me impressiono com o modo como as pessoasencontram fontes inexploradas quando precisam.Infalivelmente, depois de algumas semanas, eu me torno umpouco menos cínico. Mas também escrevi artigos sobrecelebridades. Tento encontrar histórias humanas atrás delase procuro não me decepcionar se não encontro nada.

A realidade de um escritor freelancer  é que, todavia, osartigos são uma sobremesa ocasional à qual me permito semantenho uma dieta saudável  —  o que significa artigos seminspiração, mas consistentes, sobre temas como saúdemasculina, finanças e reformas de casa. Fui atémesmo ghost-writer  para alguns especialistas emmaternidade e paternidade. No momento, escrevo sobrepessoas que fazem exames de próstata regularmente. Não há

como se manter motivado com um trabalho como esse,

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mesmo que o médico consultado no artigo seja muitodedicado, fale com convicção e tenha se convencido de quenão passou tempo demais examinando seus própriostestículos.

Isso deveria ser algo muito fácil de escrever e euesperava terminar a matéria em um dia ou um pouco mais.Mas passei a manhã toda adiando, reelaborando frasesincompletas (embora ninguém estivesse interessado em meuestilo) e verificando meu e-mail a cada quinze minutos. Comcerteza, o tema da matéria me impedia de terminar deescrever. Perdi precisamente o estilo escrevendo sobre

piolhos, sobre 401 K, um tipo de aposentadoria nos EstadosUnidos, e sobre como instalar janelas com água-furtada.

Mas, em vez disso, resolvi colocar a culpa em meu pai.

Uma vez instalado e encontrado espaço para suas coisasem meu lar transformado em uma casa com inúmerosacessórios burlescos, fiquei contente novamente com a ideiade que ele viera morar comigo. Eu sentia muita falta deminha mãe e ter meu pai por perto aliviava um pouco ascoisas. Quando tinha saudades, poderia falar com ele sobreela e pareceria que ela ainda estava por ali. Também estavacontente porque finalmente eu o conheceria, e ele a mim.Nunca houve tempo para isso quando eu era criança e nuncamais houvera uma oportunidade para isso desde então.Imaginei que naturalmente nos envolveríamos um com o

outro nos seis meses seguintes ou um ano, até que seríamosvelhos companheiros, caras que não apenas mantinham umvínculo familiar, mas também relações pessoais verdadeiras.Pensei na reunião de família seguinte em que meu pai e euteríamos nossas piadinhas para contar e ele diria outrascoisas a seus filhos, como sempre. E talvez, por um instante,os outros tivessem ciúmes de mim como eu sempre tiveradeles.

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Mas, novamente, estava me iludindo. Talvez porquenunca tivesse tido um elo com meu pai, eu tenha simplificadodemais os mecanismos para estabelecer um relacionamentoentre pai e filho. Pensava que haveria um encontro natural,

um lugar onde nos sentiríamos à vontade juntos,emocionalmente falando. Era assim com minha mãe. Mas,como isso não aconteceu de uma hora para a outra, acabeiperdendo as ilusões  —   mesmo que eu me repreendesse porter sido tão apressado, tão impaciente. Eu havia feito umplano em minha mente e acabei ficando sem perspectivas.Falava com meu pai de um modo mais sarcástico do que comtodas as outras pessoas, embora percebesse que aquilo omachucava. Estava zangado por ele não exercer nenhumpapel em minha fantasia sobre um relacionamento entre paie filho e não me importava que ele soubesse disso.

Não era evidente para mim que conhecer meu paisignificava me tornar consciente de todas as formas comoéramos diferentes um do outro, filosófica e praticamente. Nãohavia pensado que teríamos ideias díspares sobre o que fazer

num domingo de manhã, ou quantas vezes deveríamosconvidar tia Theresa para jantar, ou qual deveria ser atemperatura ideal do chuveiro. Não havia imaginado que eleporia o volume da TV tão alto que os estúdios de difusão emManhattan perguntariam de onde vinha o eco.

 —   Pai, por favor, estou tentando trabalhar  —   disseatravés da porta fechada do escritório.

Não houve resposta. Claro. Como é que ele poderia ouvircom um volume tão alto? Tentei ignorar e me concentrar noartigo, mas a combinação de citações chatas de um médico arespeito da redução de câncer de próstata e as informaçõessem sentido sobre um filme B dos anos 1940 queatravessavam a parede tornava minha tarefa impossível.Enfim, saí do quarto.

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Da cadeira, meu pai me observou com uma expressãoque sugeria ou que ele estava perturbado comigo ou que,dessa vez, não fazia ideia do que tinha feito para que eudemonstrasse tamanha irritação.

 —  Está um pouco alto —  eu disse.

 —  Já abaixei quando você reclamou —  defendeu-se.

 —   E as janelas do meu escritório pararam de vibrar,ainda bem. Dá para abaixar um pouco mais?

Ele fez uma careta, pegou o controle remoto e abaixou o

volume.

 —  Não entendo por que tem que ouvir tão alto. Não temnenhum problema de audição.

 —   É melhor ouvir mais alto. Como aquela música quevocê costumava ouvir em casa.

Olhei para a tela de TV.

 —   Aquilo era Jane Russell, não Jimi Hendrix  —  argumentei.  —  Sem contar que você tem 82 anos, não 14. —  Na verdade, estava bem surpreso de que ele se lembrasse damúsica (típico momento entre pai e filho: “Seu pai prefeririase não ligasse o som tão alto no quarto”) e imaginava queaquele fora um dos poucos momentos em que nósinteragimos quando morávamos debaixo do mesmo teto.

Ele apertou com força o botão para desligar a TV.

 —   Não sabia que esta casa tinha se transformado emuma biblioteca —  resmungou.

Voltei para o escritório e retomei o artigo. Porém, aindaestava irritado e não conseguia me concentrar. Enfim, decidique almoçaria mais cedo, na esperança de que a tarde fosse

mais produtiva.

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Saí do quarto. Meu pai ainda estava sentado na cadeira,olhando para a tela em branco da TV. Acho que ele esperavaque eu saísse, para então me mostrar, imóvel, o quanto euhavia lhe faltado com o respeito. Poderia ter lhe perguntado o

que estava fazendo. Poderia ter lhe sugerido que voltasse aassistir ao filme, uma vez que não trabalharia na meia horaseguinte. Em vez disso, apenas fui para a cozinha e, de lá,perguntei se ele queria comer algo. Ele não respondeu, masum minuto depois apareceu.

 —  O que eu queria era um sanduíche com bacon, alfacee tomate, mas não tem mais bacon —  ele disse.

Abri a geladeira e peguei uma embalagem.

 —  Olhe só o bacon.

 —  Isso não é bacon de verdade.

 —  É bacon de peru. Você come muita carne de porco.

 —   Verdade, e isso está me matando. Isso aí não temgosto de bacon, de jeito nenhum.

 —   Isso é porque não tem 80% de gordura. Sabe, sóporque ainda não aconteceu nada com você por se alimentarmal não quer dizer que não vá acontecer uma hora ou outra.

Ele olhou para dentro da geladeira.

 —   Vou fazer compras mais tarde. O que vai comer dealmoço?

 —  Hambúrguer vegetariano. Quer um?

Ele se afastou da porta da geladeira.

 —  Está brincando, né?

 —  Ia comer toicinho em um pão de centeio, mas acabou.

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Ele me lançou de novo aquele olhar, que dizia que aindaestava surpreso de que eu continuasse a falar com eledaquele jeito. Matty falava com ele assim o tempo todo, eparecia que ele gostava de ser desafiado pelo filho daquela

maneira. Por que comigo era um problema? Ele pegou umassobras de frango da noite anterior e foi até a mesa dacozinha.

Enquanto fritava o hambúrguer, olhei de relance paraele, que comia o frango frio. Não saberia se ele estava irritadoou chateado. Queria saber se tinha se arrependido de ter semudado para cá ou se apenas via isso como parte do

processo de aprendizagem de convivência. O primeiropensamento me entristeceu. Percebi que poderia concluir quenão conseguiríamos nunca conviver bem e isso seria muitopior do que nunca ter tentado. Isso era outra coisa que medeixava louco: a oscilação emocional que advinha dos bons emaus momentos com meu pai, passando do estado de quererdesesperadamente ter um vínculo significativo com ele para ode desejar que ele tivesse ido para a casa de Darlene. Era a

mesma coisa que acontecia nos relacionamentos afetivosquando você se importa muito. Pensei que tivesse aprendidoa lição.

 Terminei de fritar o hambúrguer e me sentei ao ladodele. Não dissemos nada por alguns minutos.

 —  Quer beber alguma coisa? —  perguntei, afinal.

 —  Pode ser Coca-Cola.

As coisas pareciam destinadas a não andarem bem. Eunão tinha comprado nenhum refrigerante. Estava mesentindo meio mal comigo mesmo. Como poderia esperar queele se sentisse em casa se não fazia nada para isso?

 —   Não tem Coca-Cola. Vamos ao supermercado mais

tarde, ok? Vamos comprar bacon também.

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Ele me olhou com uma expressão que não conseguiinterpretar claramente. Queria que ele concordasse com umatrégua, mas poderíamos dizer que esse relacionamento estavaenvelhecendo rápido demais. Ele voltou a comer e eu tentei

fazer o mesmo.

 —   Eu tinha uma queda por Jane Russell  —   ele disse,quebrando o silêncio.  —   Sua mãe ficava louca. Como se aprovocante Jane Russell pudesse vir um dia em casa e melevar embora.

Sorri.

 —  Pode ligar a TV de novo, depois que a gente acabar decomer. Estou com dificuldades para escrever esse artigosobre saúde masculina. Acho que o volume da televisão foiapenas uma desculpa.

 —   Não. Tem outras coisas que quero fazer esta tarde.Sobre o que é o artigo?

 —  Prevenção de câncer de próstata.

 —  Nossa! É mesmo?

 —  Deveria ter lido meu artigo sobre colonoscopia mesesatrás. Acho que até meu computador se ressentiu.

Ele se levantou para pegar um copo d’água. 

 —   Você escreve bem. Aquele artigo sobre o astro dobasquete em cadeira de rodas no ano passado me fez chorar.

Eu nem sabia que ele havia lido. Senti um nó nagarganta, que disfarcei mordendo mais um pedaço dohambúrguer.

 —  Que gosto tem isso?  —  ele perguntou, ao voltar a sesentar.

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 —   É muito bom. Você precisa apenas ter imaginação.Quer uma mordida?

Ele torceu o lábio:

 —  Minha imaginação não é tão boa.

Ele pousou o garfo, o que significava que tinhaterminado de comer. Na hora do almoço, ao terminar, ele selevantava e voltava para a sala. Nesse dia, ele decidiu esperarque eu acabasse. Não dissemos muita coisa um para o outro,mas ele não retornou para a sala até que eu fosse para oescritório.

Acho que isso significava progresso.

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Capítulo 6

No Grande Livro do Comportamento RomânticoCorreto  (uma cópia dele se encontrava em minhas mãos) énotável que não haja um capítulo dedicado a passar oaniversário de seis meses de namoro falando exclusivamentesobre seu pai. Não que eu tivesse a intenção de deixar que ascoisas se encaminhassem assim. Fiz reservas em umrestaurante de fusioncuisine 11,porque a ideia me pareciasexy. Comprei um lenço de seda pintado à mão para Marina,um de que ela havia gostado em uma galeria, algumassemanas antes. Até mesmo me certifiquei de que no toca-CDdo carro ouviríamos Richard Thompson, que ela amava,durante todo o trajeto para o restaurante.

Mas, quando o vinho chegou, eu estava em plenaatividade. Àquela altura, tinha total consciência de que amudança de meu pai para casa era algo muito maior do queeu esperava. Havia uma dezena de coisas que ele fazia queme chateavam. Havia centenas de coisas que eu fazia quedeveriam tê-lo desapontado. Poucos momentos de entrega

como aquele na mesa da cozinha, e então comecei a perceberque poderíamos ter que cortar relações. Muitos momentos emque nos lembrávamos de que não havíamos tido umrelacionamento por 32 anos.

1  A fusion cuisine   é um conceito geral que indica tanto a mistura de estilos

culinários de diferentes culturas como a combinação de ingredientes

representativos de outros países. (N. T.)

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Deveria ter sido fácil para mim esquecer tudo e meconcentrar em Marina, não fosse o que acontecera naquelatarde. Estava trabalhando no escritório e então saí paratomar alguma coisa. No caminho para a cozinha, vi meu pai

na sala. Ele estava ao computador, negociando mercadorias,coisa que fazia quase todas as tardes.

 —   Quer beber algo, pai?  —   perguntei e continuei aandar.

 —  Sim, me faça aquele café estiloso de que tanto gosta.

Ri baixinho enquanto ia para a cozinha. Esse era um

clássico exemplo do estado de nosso relacionamento.Discutíamos sobre as diferenças entre os grãos de café que eucostumava comprar de um negociante local e o café pré-torrado que ele gostava de tirar da lata. Quando finalmente oconvenci a provar meu café, percebi que ele notou adiferença. Mas, em vez de admitir a qualidade superior, elefez parecer que só havia provado para evitar que fizéssemosduas jarras de café separadas todos os dias.

Minutos depois, trouxe-lhe uma caneca. Seus olhos nãobaixaram do computador.

 —  Deixe-me ver seus investimentos —  ele pediu.

 —  Não quero que veja meus investimentos  —   respondi,rispidamente.

 —  Prometo não dar risada. Estão na internet?

 —  Realmente, não quero que faça isso.

Ele interrompeu o que estava fazendo e se virou paramim:

 —   Fui um comerciante bem-sucedido por cinquentaanos. Faço negócios há sessenta. Pensa que sabe mais que

eu?

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Senti algo ruim como se pressentisse uma discussão.Não estava ansiando por mais outra.

 —  Não é nada disso. É que não há muito que conversar.

 —   Justamente por isso é que devemos conversar. Vocêtem que diversificar, sabe disso, né?

Respirei fundo. Estava muito receoso de ter aquelaconversa.

 —  Tenho alguma coisa em um fundo; só isso.

Ele me olhou como se não compreendesse nada. —  E o resto do dinheiro?

 —   Bem, tenho um milhão em uma conta na Suíça emais outro milhão dentro do armário.

Ele apenas olhou fixamente para mim. Aquela era umanova jogada que ele começara a aplicar toda vez que eu me

tornava sarcástico. —  Tenho algum dinheiro no banco para pagar as contas.

E é tudo.

Ele virou os olhos.

 —  E o resto, em que gasta?

 —   Não tenho uma vida extravagante, pai. Não existe

“resto”. 

Ele olhou de novo para a tela e digitou alguma coisa.

 —  Não sabia o que dizia quando o aconselhei a aceitar otrabalho na revista —  resmungou.

Suponho que deveria ser grato por já estarmosconvivendo havia seis semanas antes de ele tocar no assunto.Aquela fora uma das poucas vezes que meu pai me obrigara a

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me sentar para conversar. Eu havia acabado de me formar etinha a intenção de me tornar um trabalhador freelancer . Umamigo me indicou para um editor da Newsweek , uma coisalevou à outra e o editor acabou me oferecendo um cargo. Não

foi algo em que pensei seriamente, mas acabei mencionandopara minha mãe, a fim de que ela soubesse das coisas queestavam acontecendo comigo. Naquele domingo de manhã,meu pai me puxou de lado e disse que eu estava cometendoum grande erro ao não optar pela segurança de um empregofixo. Argumentou que, depois, eu poderia seguir meu própriocaminho, quando tivesse alguns anos de experiência, e eurespondi que discordava dele. Minha posição original, de quenecessitava de liberdade para escrever sobre o que quisesse,foi cair em ouvidos moucos. Somente quando sugeri, de modogeral, que poderia ganhar mais como freelancer , elefinalmente abrandou. A partir de então, nunca maisconversamos sobre quanto eu ganhava.

 —  Estou bem —  disse-lhe.

 —   Se está me dizendo...  —   respondeu, ainda olhandopara o computador.

Queria explicar que eu levara tempo para construir umacarreira como escritor, que no ano anterior trabalhara comolouco, que um de meus artigos tinha sido indicado ao Pulitzerde jornalismo, que teria detestado trabalhar para umacorporação. Em vez disso, simplesmente voltei para o

escritório e imaginei continuar aquela discussão empensamento.

 —   Deveria ter dito algo a ele  —   eu disse a Marina,enquanto o garçom servia café. Era a terceira vez que repetiaa mesma coisa durante o jantar.  —  Ele me olhou com ar desuperioridade e me fez sentir muito pequeno. Como é que euposso me afetar tanto com alguém que teve um papel tãosecundário na minha vida durante tantos anos?

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Marina sorriu para mim. Sua paciência eraincompreensível.

 —  Ele é seu pai. Você se sentiria do mesmo jeito mesmo

se o visse uma vez a cada dez anos. É assim que as coisassão.

 —   Eu me sinto em uma montanha-russa. Vamosdevagar até o topo para então mergulharmos verticalmenteem alta velocidade. Não é isso o que entendo por diversão.

 —   Vai ter que se acostumar com isso. Sabe, éimprovável que não tenha tido nenhuma relação com ele ao

longo dos anos. Havia obviamente muita coisa acontecendocom vocês dois enquanto moraram juntos. Agora, ambos têmuma expectativa quanto ao futuro e ao fato de voltarem aviver debaixo do mesmo teto. Isso o deixa muito vulnerável.

 —  Que me sirva de lição.

 Tomei um gole de café e considerei a situação por um

momento. Estava quase certo de que não era esse o modocomo Marina imaginara passar a noite comigo.

 —  Então, isso é para mim ou é a gorjeta do garçom? —  ela perguntou, referindo-se ao pacote com embalagem parapresente que havia deixado na cadeira ao lado. Não acrediteique tinha me esquecido de dá-lo para ela.

 —  Que idiota eu sou! —  disse e lhe entreguei o presente.

Ela abriu e sorriu. Quando olhou para mim, havia umbrilho em seus olhos que me dizia que eu fizera a escolhacerta.

 —  Da Artisan Shop —  comentou.

 —  Voltei ali alguns dias depois.

 —  Eu nem percebi que você me viu olhando para ele.

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 —  Você demorou um pouco na frente dele. Não costumafazer isso. Parecia um sinal.

Ela inclinou-se em cima da mesa e me deu um beijo. Em

seguida, me deu um presente. Era uma caneta feita à mão domesmo local.

 —  Incrível que não tenhamos nos cruzado dentro da loja —   ela disse, sorrindo. Eu a beijei e lhe agradeci. Àquelaaltura, chegou a sobremesa.

 —  Então, como foi seu dia? —  perguntei, brandamente.Ela me olhou de um modo como se reconhecesse que eu

praticamente só havia falado de meus problemas e que porela estava tudo bem.

 —  Kendall Blevins confessou estar apaixonado por mim.

 —  Kendall Blevins? —  perguntei, imaginado um tipo dafaculdade que a observasse da sala dos professores por muitotempo. Ele lhe traria refrigerante e se sentaria meio

incomodado a seu lado. É impressionante o quanto aimaginação da gente pode ser fértil.

 —   Ele tem 8 anos  —   ela explicou, pois era evidenteminha expressão de ridículo diante dela.

 —  Ah.

 —  Foi muito doce. Quando cheguei à sala de aula esta

manhã, havia uma carta em cima da mesa. Era de Kendall.Ele me contou que pensava em mim o tempo todo e que fariaqualquer coisa por mim. E que isso significava que ele estavaapaixonado por mim. Disse que queria se casar comigo e quesabia que havia uma diferença de idade entre a gente, masque ele não se importava com isso, caso eu não meimportasse. Eu não sabia muito bem como reagir. Sabe, járecebi cartões no Dia dos Namorados, coisas assim, das

crianças, mas nunca uma carta de amor.

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 —  Verdade, uma criança como você? —  brinquei. Marinaera bonita, mas costumava não sobrevalorizar sua aparênciaenquanto estava na escola.

 —  Acho que, quando um aluno de 8 anos se apaixona,ele quer algo mais do que um beijo no rosto. De qualquermodo, na hora do almoço, pedi que ele continuasse na sala.Perguntei sobre a carta e ele ficou super vermelho e começoua remexer em tudo quanto era coisa ao redor. Deixei que seacalmasse e então que falasse. Descobri que os pais deleestão se separando e que a mãe vai sair de casa.

 —  Nossa! —  É. Acho que eu me tornei a coisa mais firme na vida

dele. Ele andou um pouco e depois começou a chorar e eudeixei que lidasse com o problema do jeito dele. Ele pareciabem chateado, então a gente almoçou junto na sala de aula.A gente deu um pedaço de sanduíche um para o outro (porque será que ninguém gosta de molho à bolonhesa?) e elepareceu ter ficado mais contentinho. Também deixei que elecomesse uma barra de cereal, que para ele foi a coisa maisesquisita que já comeu. Depois de um tempo, ele me contousobre a grande competição de bandeiras de futebol e quealguns colegas participariam no recesso escolar. Ele pareceumelhorzinho. Antes que as outras crianças voltassem para asala de aula, eu disse que podia me procurar quandoquisesse, mesmo quando estivesse se sentindo um pouco

triste, mas que ele deveria procurar uma garota da idade delepara se apaixonar. Ele ficou vermelho de novo. Acho quenosso lance terminou.

 —  Ei, queria que você tivesse sido minha professora noterceiro ano —  declarei. Aquela não era a primeira vez que mecomovia com uma de suas histórias com seus alunos. Etambém não era a primeira vez que eu tinha vontade de vê-ladando aula. Porque conhecia Marina, sabia que era umaprofessora excepcional e radiante. Imaginei-me no lugar de

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Kendall e pensei que era muito sortudo de poder contar comela. Minha professora do 3o ano uma vez fechou um livro emminha cara; então, sei qual é a diferença.

Diversas vezes, pensei em passar na escola e vê-la daruma aula, mesmo que por pouco tempo. Mas isso pareciapassar dos limites. Com certeza, era melhor poupar Marinado acesso de perguntas que as garotas fariam a respeito deseu namorado.

Logo em seguida, deixamos o restaurante. O relato deMarina havia diminuído o efeito de meus problemas e foi

ótimo voltar dirigindo tranquilamente para casa, segurandofirme a mão dela.

 —   Eu adorei o lenço, de verdade  —   ela me disse,enquanto ia para seu bairro.

 —  Fico contente —  respondi e apertei mais sua mão.  —  Seis meses é um tempo considerável.

 —  Ei, são só 180 dias, um dia de cada vez, certo? —  elame disse em um tom um pouco mais ríspido do que eu estavaacostumado a ouvir. Olhei para ela e percebi que alçara asobrancelha e que sorria um tanto maliciosamente. Masentão ela abriu o sorriso e beijou minha mão.

Outra vez, silêncio no carro. Quis saber se podia fazeralgum outro comentário. Deveria dizer-lhe quanto gostava deestar com ela? Ela sabia que esse era o terceiro namoro maislongo que eu já tivera? Aquilo tinha alguma importância?

Muito embora eu não tenha o Grande Livro doComportamento Romântico Correto, sabia que tudo quequeria dizer a ela quase certamente sairia do jeito errado.Queria dizer que o tempo que passávamos juntos, qualquerque fosse, era muito precioso para mim. E também que,enquanto ambos éramos inteligentes demais para sermos

pegos nas implicações daquilo, o que tínhamos era muito

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bom para a alma. Bem como que ela ficaria em meu coração eem minha cabeça por muito tempo depois que nosso casoterminasse. Sabia que ela entenderia o que queria dizer comtodas aquelas coisas e que provavelmente sentia o mesmo.

Mas não parecia ser o tipo de coisa a ser dita naquelacircunstância.

Ainda estava pensando no que falar quando ela se viroue anunciou:

 —  Descobri que, com você, são bons apenas os dois outrês primeiros encontros.

Com o canto dos olhos, percebi que ela sorria e eu sabiaque o que ela queria dizer no fundo era “vamos pular essaparte, tá?”. 

Chegamos à casa dela logo depois.

 —  Tem certeza de que quer passar a noite aqui?  —  elame perguntou, enquanto entrávamos.

 —  Claro!

 —   Estou só um pouco preocupada por causa do queaconteceu da última vez.

Desde a mudança de meu pai, Marina não haviapassado uma noite em minha casa porque eu me sentia umpouco embaraçado com a situação. Eu passara inúmeras

noites na casa dela, mas bem menos do que antes, porquenão queria deixar meu pai sozinho com tanta regularidade.Algumas noites antes, eu chegara de manhã à minha casa e oencontrara em pânico, pois se esquecera de que eu o avisaraque não passaria a noite ali. Parecia desorientado em casa.Fora a primeira vez que o vira daquele jeito. Todos nós nospreocupávamos com sua condição física, mas sua capacidademental parecia em perfeito estado. Eu o observara com

cuidado depois disso; devia ter sido um caso isolado. A partirde então, ele parecia normal, capaz.

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 —  Ele está bem —  respondi. Entramos e eu a peguei nosbraços. —  Hoje, ele já nos atrapalhou o suficiente.

 —   A noite é uma criança  —   ela disse e me beijou

longamente.

Poucas vezes eu me chateava com Marina. Que ela

acordasse todo dia com os Beatles tocando GettingBetter  erauma delas.

 —  Uma hora você vai ter que me explicar por que gastoudinheiro com um despertador se vai escutar sempre a mesmamúsica —  disse, meio grogue.

 —   Com que mais queria que eu despertasse?  —  respondeu, alcançando o rádio e trocando de estação. Tudo

fazia parte de um ritual, cuja lógica me escapava.

Ela virou de costas para mim e se aconchegou em meusbraços. Aquilo era algo que fazíamos toda manhã, e mais doque compensava ter que ouvir uma das músicas menores deLennon e McCartney.

 —  Senti falta disso nos últimos dias —  eu disse.

 —  Eu também  —  acrescentou, com um beijo em minhanuca. —  Acha mesmo que seu pai estranharia se eu dormissena sua casa?

 —   Não sei. Não sou muito bom em prever as reaçõesdele. Mas acho que eu é que vou me sentir esquisito. Há algoestranho no fato de nós dois estarmos juntos assim e meu paiestar dormindo no fundo do corredor.

Ela me beijou de novo.

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 —   Isso é engraçado e um pouco puritano. Se eu fosseoutro tipo de garota, poderia pensar que estava escondendoalgo de mim.

Continuamos na cama por mais alguns minutos: euacariciava seus cabelos e ela passava a unha em meu braço.Quando o rádio anunciou 6h45, Marina se levantou,apoiando-se em um braço.

 —  A gente tem que tomar um banho —  ela disse.

 —  Diga que está doente. Você nunca fez isso desde queestamos juntos.

 —  Isso é porque levo meu trabalho a sério —  respondeu,empurrando-me para o banheiro.

 —  Não posso acreditar que está me trocando por KendallBlevins —  reclamei, encarando-a.

Ela se virou e beijou meu rosto:

 —  Ele se dedica mais a mim. Vá fazer um café.

Uma vez que Marina tinha se levantado, eu não viaproblemas em me levantar também. Fui para a cozinha fazerum café e depois me juntaria a ela debaixo do chuveiro. Haviauma rotina muito clara em nossas manhãs. Depois disso,tomaríamos o café da manhã rapidamente e cada um iriapara seu carro, em direções opostas. Era tudo muito gostoso

e fácil. Originalmente, Marina me apresentara um modo decomeçar o dia que me deixava pronto para qualquer desafioque viesse.

Ela tinha posto o lenço novo. Eu estava contente tantopor ela ter feito isso como porque parecia feliz.

 —  Escreva algo brilhante com sua caneta nova hoje  —  ela disse, dando-me um beijo e entrando no carro.

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 —   Estou redigindo um artigo sobre como pechincharcom fornecedores —  expliquei.

Ela fez uma careta:

 —  Então, guarde a caneta para outra ocasião.

Eu me inclinei e beijei-a de novo, antes de ir para meucarro. Ao esperar o sinal abrir, peguei a caneta de dentro dacaixa. Era uma beleza a caixa com motivo de pau-rosa,ornamento de metal e bico de pena banhado a ouro. Seriauma das mais impressionantes de minha coleção de canetas.

Seis meses. Estávamos juntos por meio ano e tudoainda parecia fresco e familiar. Havia algo inacreditavelmentefácil em namorar Marina. A gente caiu em padrões muitonaturais. Um parecia adivinhar quando o outro estava a fimde uma noitada ou de tomar uma taça de vinho. E semprequeríamos ver os mesmos filmes. Mesmo o que líamos no jornal parecia se complementar.

E suponho que o que tornava tudo mais fácil era queambos queríamos que o relacionamento se desenvolvesse umpouco por dia. Pensei um pouco mais no que ela havia medito na noite anterior e me perguntei se havia deixado decompreender algo. Mas acho que ela só estava brincandocomigo. Às vezes, ela fazia esse tipo de coisa.

Eu me surpreendi que não tivéssemos conversadoponderamente sobre nosso futuro em uma noite importantecomo aquela. Quando completamos meio ano de namoro,Karen e eu falamos sobre isso no meio de uma transa,alternando momentos de respiração ofegante com imagens decães e jardins e férias na Grécia. Claro que, dois mesesdepois, no último dia em que ficamos juntos, não trocamosuma palavra.

Pensei em Larry, o cara que Marina tinha namorado por

quatro anos. Nunca o encontrei, mas fazia uma imagem

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vívida dele em minha cabeça. Quando comecei a namorá-la,ela tinha se separado de Larry fazia mais de um ano, mas eleainda era tema de nossas conversas, no princípio. Do modocomo o descrevia, Marina tinha se entregado completamente

ao relacionamento. Ele fora o primeiro cara que ela namorarapor um longo período e ela não reprimira nada. Ela o amaracom absoluta devoção, tornara-se a melhor amiga da irmãdele e fazia jantar para os pais dele uma vez por semana.Havia redecorado a casa dele e deixado que ele reinventasseseu guarda-roupa. Tinha até mesmo largado a escola em queocupava um cargo, um ano antes de ser efetivada, porque elereclamava que era longe de onde moravam.

Larry pediu a Marina para se mudar para a casa deledepois de estarem juntos por apenas um mês. Três mesesdepois, estavam noivos. Marina fez todos os protocolos deuma noiva: procurou o lugar para a recepção, rasgou fotos denoivas nas revistas, visitou empresas que organizambanquetes e floriculturas e chegou a ir a festas de outraspessoas para ouvir as bandas. Mas a data de casamento

deles permaneceu no ar. Primeiro, era em maio próximo.Depois, setembro. Então, em junho. Todavia, Marina viviacomo se já fosse casada. Claro que, às vezes, aconteciamalgumas rusgas entre eles, e outras em que as viagens atrabalho de Larry se acumulavam e parecia que nunca maiseles se veriam de novo. Mas, quer ele estivesse por perto ounão, às quartas à noite ela via os pais dele e todos os diastelefonava para a irmã dele. Ela já fazia parte da família.

Demorou quatro anos para Marina perceber que o diado casamento não chegaria nunca. Cada adiamento marcavaum novo caso de Larry. O que acontecia era que ele amava aideia de se apaixonar e, embora verdadeiramente seimportasse com Marina (o que bastava para tê-la por perto),ele não conseguia deixar de se envolver em um novoromance. Marina acreditava que um senso distorcido de

devoção na verdade o convenceria de que, a longo prazo, ele

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queria Marina e era por isso que adiava o casamento semromper definitivamente. Minha opinião era que ele sabia queMarina não desistiria dele, mesmo se a deixasse de stand-by .

Claro que isso se baseava somente em minha afeição porela, mas foi comprovado pelo que aconteceu no final entreeles. Uma noite, Larry chegou em casa e confessou todos osseus relacionamentos com outras mulheres. Também disseque tinha encontrado sua alma gêmea e, embora sentissemuitíssimo, ele não poderia continuar com Marina.Curiosamente, a relação entre ele e sua alma gêmea durouquatro meses. Larry foi inteligente o suficiente para não pedir

que Marina voltasse para ele.

Fui apenas o segundo cara que Marina namorou depoisde Larry. Demorou quase um ano para ela reconsiderar ahipótese de sair com alguém. Acredito que, se alguém lhedissesse que ficaríamos juntos por seis meses, ela teriaevitado qualquer contato comigo. Mas, como quase tudo anosso respeito, as circunstâncias encontraram seu lugar.

Nenhum de nós queria algo mais um do outro do que játínhamos e, como resultado, tínhamos ultrapassado asexpectativas. Pela milésima vez, disse a mim mesmo como erasortudo por tê-la encontrado.

A gente morava a quinze minutos de distância um dooutro e o caminho de volta, dentro do carro, me deixavapronto para o dia. Nunca, na casa de Marina, acordava com

vontade de trabalhar. Não sei se era o colchão que era maismacio, se o quarto era mais quente ou se ela ficava maisrelaxada quando estava na própria casa, mas eu sempresentia que me demorava um pouco mais. Quando chegava emcasa, trabalhava nos artigos freelance de modo maisprofissional. Revia o que tinha feito no dia anterior,estabelecia uma meta para o dia e mentalmente fazia umalista do que fazer, a quem telefonar e pequenos detalhes que

requeriam atenção. Assim que chegava em casa, ligava ocomputador.

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Essa manhã, entretanto, o cheiro de ovos queimadosarruinou meus planos. A primeira coisa que pensei foi quemeu pai tinha feito em minha cozinha o mesmo dano que nadele. Mas não foi bem isso o que aconteceu. Eu o encontrei ao

lado do fogão, tentando virar o que eu supus fosse umaomelete (com uma espátula de aço em minha panelaantiaderente; mas é melhor nem tocar nesse assunto). Osovos nem estavam fritos e ele já segurava a panela acima daboca do fogão, o que fez com que os ovos saltassem para forada panela. Havia outra boca acesa, embora não se soubesse oporquê. Uma coluna de fumaça se elevou de onde os ovosatingiram a chama. Havia também diversas cascas de ovosquebradas pelo balcão e gordura de bacon espalhada portoda parte.

 —  O que você está fazendo?  —   repeti, enquanto corriapara o fogão. Peguei a panela, desliguei o gás (ambas asbocas) e usei a espátula para limpar aquela sujeira.

 —  Estava tudo bem até que você me assustou.

 —   É, eu percebi.  —   Botei os ovos dentro da panela e joguei tudo no lixo. —  Você queria saber se fez algum amigoentre os integrantes do corpo de bombeiros?

 —   Não ia começar nenhum incêndio. Você fala comigocomo se eu não fosse capaz de fazer nada.

 —  Pai, você é capaz de fazer muitas coisas, mas deixar

você sozinho na cozinha é como deixar uma criança sozinhacom uma serra elétrica. Por que não comeu cereal ou algoassim?

 —  Queria ovos.

 —  E não podia esperar que eu chegasse em casa?

 —  Nunca sei a que horas chega.

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 —   Toda vez que estou com Marina, chego no mesmohorário. Ela sai para trabalhar às 7h45. Eu demoro quinzeminutos para chegar, dezessete se houver trânsito.  —   Olheipara o relógio. —  Veja: são 8h05.

 —  Bem, e quem olha para o relógio quando você chegaem casa?

Limpei as bocas do fogão e a panela e pus a bandeja deovos de volta na geladeira. Havia só mais três ovos. Eu tinhaquase certeza de que havia quase uma dúzia no dia anterior.Dava para imaginar onde tinham ido parar.

Devagar, peguei uma tigela nova, quebrei os ovos e bati-os, na tentativa de baixar minha pressão.

 —  Quer omelete de quê? —  perguntei-lhe calmamente.

 —  Não quero mais comer omelete —  ele resmungou.

 —  Pai, me diga apenas o que quer que eu ponha nessamaldita omelete.

Ele disse em tom de zombaria:

 —  Me faça uma surpresa.

Comecei a cozinhar e ele foi para um canto. Não houvemais nenhuma palavra até que entreguei a ele o prato e meservi de café. Como sempre, o café que ele fizera estava fraco.Suponho que deva agradecer por ele não ter iniciado outrodesastre ao coar café.

Eu me sentei à mesa com ele enquanto comia, aindanão totalmente pronto para começar a trabalhar.

 —  Está bom, obrigado —  disse, depois de uma mordida.

 —  De nada.

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Ele comeu um pouco mais. Dava para perceber queestava pensando em alguma coisa.

 —  Por que eu ainda não a conheci? —  enfim, perguntou.

 —   Conheceu quem?  —   devolvi, muito emboraclaramente soubesse de quem se tratava.

 —  A garota.

 —  Que garota? Refere-se a Marina?

 —  É esse o nome dela? Como é que eu poderia saber? —  

Ele não disse isso de modo petulante. —   Mencionei o nome dela diversas vezes  —   comentei,

impaciente.

 —  Por que não a conheci?

 —   Não sei. Também não conheço os pais dela. Aindanão chegamos a esse estágio.

 —  Há quanto tempo sai com ela?

 —  Mais ou menos seis meses.

Ele largou o garfo:

 —  Você tem saído com ela há seis meses e não acha queestá na hora de ela conhecer seu pai? Está dormindo com ela,não é mesmo?

 —   Não, eu durmo no quarto de hóspedes. Mas, antesdisso, a gente veste o pijama e toma chocolate quente.

Ele me lançou aquele olhar. Pensei que talvez pudessese poupar um pouco e apenas repetir o olhar quando medirigisse a palavra.

 —   Se está dormindo com ela, está na hora de elaconhecer seu pai.

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 —  Humm, tenho uma notícia para lhe dar, pai.

 —  Não banque o sabichão. O que quero dizer é que, seestá dormindo com ela há seis meses, eu deveria conhecê-la.

 —  E por que isso é importante para você?

 —  Porque o que você faz é importante —  ele declarou.

 —  Tem algum manual de instruções? Meu jogo veio sem.

Ele zombou novamente:

 —   Muitas pessoas não precisam de manual de

instruções. Elas simplesmente sabem qual é a coisa certa afazer.

Não queria continuar aquela conversa. Nem ter queconciliar meu relacionamento com Marina com suasensibilidade retrô. Não havia nenhuma chance de eu serbem-sucedido nisso e eu não estava me divertindo.

 —   Se quer mesmo conhecer Marina, vou dar um jeito.Devo vê-la amanhã à noite. A quinta é um bom dia para umpai conhecer a namorada do filho ou tem de ser um fim desemana?

Ele resmungou novamente e levou o prato para a pia.Penso que aquilo queria dizer que a quinta era um bom dia.Mal podia esperar para contar a Marina sobre a mudança deplanos. Ela adoraria.

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Capítulo 7

Mickey nunca foi o tipo de pessoa que levava a vidade modo regulado. Quando era negociante, nunca

costumava telefonar para clientes nem ir para a mesa dereuniões. Não era alguém que se esperava para jantar às6h30, que botava as crianças para dormir às 9h ou queiniciava o passeio de domingo exatamente às 11h10. Mickeyacreditava que aquele tipo de precisão tornava uma pessoainflexível e, nesse caso, também mais fraca.

Mesmo assim, depois da morte de Dorothy, toda manhã,às 9h05, ele estava ao telefone com Theresa. Ele seconvencera de que não havia nada de preestabelecido quantoa isso. Theresa gostava de assistir a determinados programasde TV que terminavam às 9h. Ele não queria perturbá-la etambém sabia que ela precisava de uns minutos para lavar alouça do café. Então, para Mickey, era como se a primeiracoisa que fizesse de manhã era ligar para Theresa.

 Theresa viera ao mundo cinco anos depois dele: era a

última dos quatro filhos de Michael e Anna Sienna. EntreMickey e Theresa, viera Paulie, que nascera doente e morreraantes de Theresa nascer, e Teddy, que falecera em umtreinamento para ir para Okinawa. Como única filha mulher, Theresa era companheira de Anna e uma bonequinha paraseu pai admirar e enfeitar. Quando tinha 4 anos, ela passavahoras com a mãe na cozinha, preparando a massa domacarrão, misturando os ingredientes do pão, cozinhando as

almôndegas e mexendo o molho sem parar. E, quando a

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comida estava pronta, antes de se sentar à mesa, ela iriacorrendo para o quarto vestir um de seus vestidos cheios delacinhos, que o seu pai não pudera deixar de comprar-lhe.

Mickey podia entender a fascinação do pai. Suairmãzinha tinha uma luz. Ela era pequena, a voz era aguda ebem alta (algo que manteve na vida adulta) e parecia quesorria toda vez que falava. O resultado era que parecia umafada, uma criatura de outro mundo. Mickey achava que eramisteriosa e preciosa. Não havia dúvida de que Theresa erauma pessoa especial na família. Ela tirava as melhores notasna escola, tinha muitos amigos e, de algum modo, parecia ter

se isentado de ser alvo da crueldade dos meninos davizinhança, coisa da qual nenhuma outra garota havia selivrado.

Ela era fascinante e fascinada. Até que Jackie Pandolfoapareceu. Se Michael e Mickey tivessem desejado um homempara cortejá-la, essa pessoa seria Jackie. Ele amava sua mãee tinha um bom emprego na loja de calçados. Era educado e

distinto, mas sabia como se defender e também era capaz detomar cerveja e falar de esporte. E, mais importante: elereverenciava Theresa e deixou claro para todos que seconsiderava a pessoa mais sortuda do mundo por poder estarcom ela.

 Talvez Jackie não acreditasse em sua boa sorte. Talvezestivesse convencido de que algum dia Theresa perceberia

que ele não era de sua laia. Mickey considerava muitasteorias para o que aconteceu naquela noite de julho em que Jackie viu Theresa trocar inocentemente gentilezas comVictor Trulio. Victor tinha uma reputação de roubar o coraçãodas garotas e Jackie tinha quase certeza de que ele estava aponto de conquistar Theresa. Mickey não sabia o que sepassara na cabeça de Jackie, mas o homem que ele pensavase tornaria seu cunhado atacou rápido, puxou Theresa de

lado e ordenou que eles fossem embora da festaimediatamente. Theresa não conseguiu chegar em casa

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naquela noite. Ela chegou somente na manhã seguinte,cambaleando, o corpo ferido: tinha sido abusadasexualmente. Jackie nunca mais foi encontrado.

Levou anos para que Theresa encontrasse novamenteseu caminho; anos de tratamentos médicos e psiquiátricos.Mas, mesmo assim, ela nunca voltou completamente. Obrilho nos olhos, se é que ainda existia, ficara escondidoatrás dos cílios que pareciam não mais abrir completamente.O que permanecera de seu sorriso tinha se transformado emuma risada irônica. Mesmo a voz de menina fora erodida porsessenta cigarros por dia.

Depois disso, a única pessoa do mesmo sangue quetinha permissão para entrar no mundo de Theresa eraDorothy. Como havia feito com várias pessoas, Dorothy foium bálsamo para as feridas psíquicas de Theresa. Podiaalcançá-la de modo que ela soubesse que havia um portoseguro em si, que não ameaçaria Theresa de nenhum modo enunca infligiria nenhuma tortura ou tentaria ressuscitar a

criatura mágica que uma vez ela fora. Por anos, houve longassessões ao redor da mesa da cozinha, regadas a café,pedacinhos de bolo e conversas tranquilas. Mickey viu que Theresa geralmente não respondia a ninguém e ele adorouque Dorothy estivesse se esforçando, muito embora elemesmo somente conseguisse se sentar à mesa por um tempo.Mas, de vez em quando, Dorothy conseguia fazer com que Theresa permanecesse mais tempo. Aos poucos, Theresa se

 juntou ao círculo social de Dorothy toda tarde. Voltou acozinhar. E por trinta anos trabalhou em uma fábrica dedoces. Ela e Dorothy até mesmo viajaram em um cruzeiro  —  somente as duas “garotas” —   para comemorar o aniversáriode 60 anos de Theresa. O sorriso dela nunca mais foi tãointenso como fora em sua juventude, mas, pelo menos, agoraera algo mais do que uma reflexão amargurada do passado.

 Theresa chamava Dorothy de irmã, não de cunhada.Elas se viram ou falaram ao telefone praticamente todos os

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dias por 48 anos. Como consequência, Mickey associava alembrança da mulher mais com a de sua irmã do que com ade seus filhos. Em princípio, ele ligava para Theresadiariamente apenas para seguir a tradição e fazia isso, na

verdade, pelo bem dela. Porém, logo descobriu que assimtinha acesso a uma parte de Dorothy. Ele podia até mesmoouvi-la do outro lado da linha.

 —  Acho que vou ao cinema hoje à tarde ver aquele filmenovo de romance —  ela disse. —  O cara com cabelo feio na TVfalou bem dele. Quer vir comigo?

 —  Que cara com cabelo feio? Todos eles têm cabelo feio.Aquele do Good Morning, America ?

 —  Não, aquele do Today Show . O que há de errado como cara do Good Morning, America ?

 —  Você acha que um cabelo daquele é normal? Pareceque está usando um capacete.

 —  Você nunca diz algo agradável sobre as celebridades. Já percebeu? Então, quer vir comigo ou não?

 —  É sobre quê? —  ele perguntou.

 —   É uma história de amor. Sobre essas duas pessoascujas almas estão unidas até que acontece uma tragédia.Deve ser bem triste.

Mickey rosnou:

 —   É bem o meu tipo de filme. Acho que vou deixarpassar.

 —   Como quiser. Estava apenas querendo companhia.Eu contei que Maggie foi para o hospital?

 —  Não. O que aconteceu?

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 —  Eles ainda não sabem. Ela está fazendo uns exames.Ela procurou um médico porque não estava se sentindo beme eles decidiram mantê-la lá por alguns dias.

Mickey revirou os olhos. Já tinha visto aquele filme.

 —  Espero que os médicos saibam o que estão fazendo —  comentou. —  Os parentes dela vieram de Baltimore?

 —  Não acho que ela tenha contado a eles. Você conheceMaggie. Não quer que ninguém se preocupe com ela. Excetoeu, é claro. Ela me conta tudo.

Mickey deu risada. Nos últimos anos, Theresa havia setornado a confidente de todos os idosos que viviam nocondomínio. Ele tinha a impressão de que ela gostava disso,embora nunca fosse admitir. Para Mickey, aquilo era umsinal de que durante todos aqueles anos o processo de curaainda estava se desenvolvendo.

 —  Então, como vai Jesse? —  Theresa perguntou.

 —   Ótimo. Ele vai trazer a namorada para jantar aquihoje à noite.

 —  Bem, isso é interessante. É um namoro sério?

 —   Acho que deve ser, porque ele vai me apresentar aela. Você sabe como ele é.

Mickey podia imaginar que Theresa balançava a cabeçado outro lado da linha.

 —   Então, você vai acabar ficando por aí?  —   elaperguntou.

 —  Acho que sim. Às vezes, Jesse me dá dor de cabeça,mas é um bom filho. Posso dizer que ele está fazendo de tudopara que eu me sinta confortável.

 —  Você tem sorte. Dorothy educou bem os filhos.

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 —  Obrigado pelo elogio.

 —  Acho que você também. Sabe de Darlene?

 —   Ah, ela anda muito ocupada. Tem que cuidar dascoisas do clube e da biblioteca. Acho que agora ela anda maismotivada, já que Carla vai ter um bebê. Ainda não acreditoque vou ser bisavô. Gostaria que Dorothy estivesse aqui. Elairia amar. Outro dia, Darlene me contou que Earl vai serpromovido e que eles devem viajar ao Oriente juntos atrabalho ainda este ano. Ela leva uma vida boa.

 —  Quando foi a última vez que falou com ela?

 —  Outro dia, não me lembro, umas semanas atrás.

 —  E Matthew está bem?

 —   Parece que sim. Ele me liga quase todo dia. Ligapouco antes das dez, assim que chega ao escritório. Pareceque sempre tem um monte de coisas na cabeça, emboratenha acabado de chegar. Ele tem um cargo de muitaresponsabilidade. Espero que eles reconheçam o tipo detrabalhador que ele é. Eu disse que ele deveria voltar a NovaYork, que lá eles lhe pagariam três vezes mais pelo que faz.

 —  Com certeza ele sabe o que quer.

 —  Como sempre. Nunca precisei me preocupar com ele.Nunca vai ganhar tanto quanto Denise, mas está indo bem.

 —   Denise ainda trabalha para aquela empresa emManhattan?

 —   Ela tem uma equipe toda sob sua responsabilidade.Qualquer dia, se continuar assim, vai chegar à presidência daempresa. Embora não saiba muito bem qual seria a reação deBrad se isso acontecesse. Provavelmente, ele vai dirigir umaempresa em alguns anos, mas queria saber como se sentiria

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se sua mulher fosse bem-sucedida a esse nível. Muitos carasnão sabem lidar com isso.

 —  Bem, como você se sentiria se fosse a Dorothy?

Mickey hesitou um instante e em seguida disse:

 —   Por mim, tudo bem. Não era muito bem o perfil deDorothy, mas, se ela se interessasse por esse tipo de coisa, eunão criaria problemas.

 —   É, acho que tem razão  —   Theresa respondeu,melancolicamente.

Para Mickey, não fazia a menor diferença que elestivessem praticamente a mesma conversa toda manhã. Naverdade, de algum modo, ele se sentia confortável com essafamiliaridade. Era tudo parte de um ritual —  falar dos filhos edo que fariam naquele dia e espargir reminiscências deDorothy ao longo da conversa. Era um hábito matutino bem-vindo, assim como o café estiloso que seu filho lhe preparava.

 —   Então, você vai ou não ao cinema?  —   Theresaperguntou.

 —  Vai mesmo ver esse filme romântico?

 —  Podemos ver outra coisa, se quiser. É que esse pareceser bom.

Mickey pensou por um momento e depois declarou:

 —  N-não. É melhor você ir sem mim. Se vou conhecer anamorada de Jesse hoje à noite, não quero me cansar.

Depois de escutar o relato de Ted Cranston e seusproblemas com a vesícula, Mickey desligou o telefone. Emseguida, pensou se deveria ter dito a Theresa que iria aocinema com ela. Ela detestava sair sozinha e era provável que

desistisse, agora que ele havia dito não. Mas como é que elapoderia pensar que ele assistiria a um filme dramático de

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amor? Mais do que ninguém, Theresa deveria saber queaquele não era o tipo de filme dele.

Mickey foi da sala para o quarto. Seus joelhos o estavam

matando. Se seus filhos não tivessem um ataque histéricotoda vez que ele reclamasse de dor, ele faria com que Jesse olevasse ao médico, para que lhe dessem um analgésico. Bem,não era muito importante. Estava assim já havia bastantetempo.

Ele caminhou até a escultura de ferro forjado que estavaem cima da mesa e a tocou por um instante. Depois da

mudança, Jesse lhe perguntara sobre a peça como se elenunca a tivesse visto antes, muito embora a esculturaestivesse na casa havia mais tempo do que ele. Ficava dentrodo armário de louça  —   muito fácil de não notar, Mickeyconcluiu. Fora um dos poucos momentos em que Jesse fizeraum elogio a seu bom gosto. Claro que era um elogio àsavessas. “Não tem nada a ver com você”, Mickey lembrou-sedas palavras do filho.

A caixa estava no chão do closet, o que significava queele deveria se ajoelhar para pegá-la. Tentou fazer isso o maisdevagar possível, mas mesmo assim sentiu que era umprisioneiro da Inquisição. Queria muito falar com ela hoje.Para o diabo com sua dor. O fato é que tinha vontade de falarcom ela quase todos os dias, mas estava menos inclinado asofrer hoje. Theresa tinha conseguido algum efeito ao falar

sobre aquele filme besta. Será que alguém em Hollywood faziaideia do que eles estavam falando? Ele nunca tinha visto umfilme de amor que compreendesse a questão do amor e comcerteza esse não seria uma exceção.

Havia uma foto no topo da pilha, como sempre. Ele apuxou e tentou se levantar devagar. Provavelmente, faziamais sentido apenas se sentar ali, com a foto, porque assimnão teria que recolocá-la no lugar, mas ele não queria sesentar no chão. Queria ficar deitado na cama.

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Mickey admirou sua beleza por um momento. Ela aindaera a mulher mais deslumbrante que ele conhecera. Os anosnão eram capazes de mudar isso. Nenhuma estrela de cinemase comparava a ela. Em seguida, fechou os olhos. Às vezes,

ele se perguntava por que pegava a foto, se na verdade nãoolharia para ela enquanto conversasse. Mas parecia queassim o elo era mais forte.

 —  Quer saber de uma coisa engraçada? —  ele disse paraa imagem em sua cabeça.  —  Nos últimos dias, pensei muitoem Jenny Hirschberg. Lembra dela? Ela trabalhava comigo esempre aparecia para cumprimentar você. Lembra que ela

tinha um novo namorado a cada semana? Não se cansava deprocurar um marido. Foi por causa daquilo que dizia que melembrei dela. “Só estou procurando alguém com quemenvelhecer”, ela diria. Lembra? Tenho certeza de que lhecontei sobre ela, porque ela me repetiu isso tantas vezes. “Sóestou procurando alguém com quem envelhecer.” Como se oamor e o casamento se resumissem a isso. Encontrar alguémcom quem se sentisse bem ao conversar sobre artrite, ou a

perda de visão, ou os joelhos que doem. Nossa, se aquilofosse tudo o que procurava, provavelmente poderia terencontrado qualquer um na esquina.

 —   De qualquer modo, tenho pensado muito nelaultimamente, porque quero saber o que as pessoas procuram,afinal. Nunca pensei muito nisso, porque simplesmenteaconteceu comigo. Mas, sabe, hoje vou conhecer a namorada

de Jesse e parece que ele nunca soube o que ele mesmoprocura. Acho que só quero saber se você realmente sabia.Com certeza, eu não sabia que estava procurando por você.

Mickey inclinou a cabeça para trás. Os olhos fechadosestavam virados para o teto.

 —  Você nunca se cansa de me ouvir repetir o quanto aamo? Não me acha chato porque digo as mesmas coisas nãosei quantas vezes? Se é assim, eu paro. Não, isso não é

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verdade. Não pararia nem se quisesse, porque não consigo.Nunca.

Mickey abriu os olhos e admirou a foto dela. Como

alguém poderia ser tão bela? O que não daria para tê-la devolta?

 —  Bem, então, quero conhecer essa garota —  continuou,agora olhando para o retrato.  —  Espero que seja mais legalque a última. Que pesadelo! Não que tivesse algumaimportância, mas eu acabaria dizendo alguma coisa sobre omodo como ela o havia tratado quando terminassem. Meu

filho parece não ter muito bom senso quando se trata demulheres. Lá pelo fim do dia, vou saber muito mais. E contopara você amanhã. Vou tentar não ser tão crítico. Sei que nãogosta disso.

Olhou fixo para a foto mais um pouco. Em seguida,ficou na ponta dos pés e cuidadosamente colocou a foto nolugar. Por mais tempo, ainda permaneceu assim, nãoolhando, mas absorvendo. Por fim, tampou a caixa.

 —  Reserve um lugar na mesa para mim  —  disse, antesde fechar a porta.

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Capítulo 8

Por ser uma noite especial, escolhi o menu comcuidado. Parei de trabalhar mais cedo, a fim de prepararo mole poblano . Escolhi esse prato pensando em meu pai,porque sei que ele não gosta de comida mexicana.

A verdade é que estava bastante irritado com a conversaque originara o plano do jantar. Não que eu deliberadamenteo estivesse mantendo afastado de Marina. Apenas não queriaque fosse grande coisa. Talvez ele a conhecesse na Páscoa, ouqualquer dia assim, se Marina e eu ainda estivéssemos juntos. Ou talvez ela viesse algum dia depois do trabalho.

Algo que fosse casual, não ensaiado. Não era para ser umaocasião especial. E eu conheceria seus pais  —  ou não  — , demodo similar. Agora, obviamente, tinha se transformado emalgo maior. Meu pai tinha tocado no assunto umas seis vezesdurante o dia, perguntando-me sobre seu passado, suafamília e em que trabalhava. Quando, por fim, me pediu umaopinião sobre que camisa vestir naquela noite, cogitei se eleiria chamar a CNN. Não sei por que ele ficou tão ligado. Tentei deixar bem claro que ele não conheceria sua futuranora. Mesmo assim, ele estava extremamente ansioso. Haviatanta coisa nele que eu não entendia.

Decididamente, Marina estava mais relaxada que eu.

 —   Bom, estava mesmo me perguntando quandoconheceria o famoso Mickey Sienna  —   ela declarou, depois

que fiz o convite.

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 —  Espero que ele seja um enigma para você. Se não for,você não o conheceu de verdade.

 —  Não se preocupe, Jesse. Mesmo se não for, vou ficar

do seu lado.  —   Ela me beijou no rosto e acrescentou:  —   Amenos, é lógico, que ele seja mais legal comigo do que você.Nesse caso, posso mudar de lado.

 —   Bom, claro, já que tocou no assunto, é preciso quesaiba de uma coisa —  disse, sério: —  Sou muito diferente nafrente da família.

Ela me olhou, espantada:

 —  Você não fala que nem criancinha, fala?

 —   Tudo é possível  —   respondi, soltando uma risadamal-humorada.  —   Tenho a tendência a assumir outrocomportamento. Muitas vezes, isso significa que vou ficarcalado. Era assim com meu pai também, mas ultimamentetrocamos farpas. —  Pensei um instante e acrescentei: —  Para

o observador casual, isso pode ser interpretado como espíritode porco, embora eu saiba que você sabe que, no fundo, nãosou assim.

 —  Não. Sei que você vai preparar um prato que seu paidetesta como um ato de extrema compaixão. Não vejo comointerpretar de outro modo.

Sabia que ela estava brincando, mas também sabia que

eu estava intencionalmente provocando meu pai. Todavia, ofato era que eu fazia um ótimo mole poblano  e Marinaadorava comida mexicana. Estava muito mais preocupadocom que ela gostasse do jantar do que ele. E já tinha passadoda hora de ele ampliar seus horizontes.

Marina chegou às 18h30. Tinha trocado a roupa dotrabalho por um jeans e um suéter branco, uma peça do seu

guarda-roupa que eu adorava mais que todas. Havia algo no jeito como seus cachos negros caíam no suéter branco e

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macio que eu achava incrivelmente atraente. Ela me beijou eeu a abracei. Segurei-a mais tempo do que o normal, emparte porque tinha gostado tanto do modo como se vestira eem parte porque, quanto mais tempo a abraçasse, mais

tempo a reteria longe do que seria o restante da noite. Antesde nos separarmos, sussurrei em seus ouvidos:

 —   Peça licença e vá para o banheiro. Encontro você láfora em quinze minutos. Ele nunca vai saber o queaconteceu.

Com isso, ela gentilmente se desvencilhou de mim, deu-

me um beijinho e se virou para meu pai, que tinha seaproximado da porta. Estava sorrindo como nunca haviavisto antes. Certamente, nunca sorrira quando eu lheapresentara outras mulheres.

 —  Há muito tempo eu quero conhecê-lo, Sr. Sienna  —  ela disse e estendeu a mão.

 —  Me chame de Mickey, querida —  meu pai disse. —  O

prazer é meu. —  Ele segurou a mão dela com ambas as suas.Por um tempo considerável.

 —   Jesse me contou tantas coisas sobre você  —   disseMarina.

 —   Bom, ele fala de você o tempo todo  —   meu paicompletou, olhando para mim para se certificar de que estavaexagerando a meu favor.  —   Mas tenho certeza de que hámuito mais para saber. Por que não nos sentamos e me contatudo sobre você?  —   Ele deslizou um braço entre os ombrosdela e a trouxe para o sofá da sala. Eu os acompanhei, masmeu pai me disse: —  Você precisa terminar de cozinhar, nãoé verdade?

Podia jurar que ele falava em um registro diferente. Suafala parecia ter outra cadência. Era isso o que ele entendia

por delicadeza? Era desse modo que conversava com as

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damas nos encontros da terceira idade? Não pude acreditarque estivesse fingindo para Marina. Veio-me à cabeça queestivesse fazendo aquilo como um modo de invalidar o quequer que fosse que eu tivesse dito sobre ele para ela.

Provavelmente, pensava que, se fosse suficientementecharmoso, ela nunca acreditaria em mim quando eureclamasse de algo no futuro.

Embora quisesse permanecer para ver o próximo ato desua performance  —   especialmente porque ele tinha mebanido para a cozinha  — , na verdade, eu tinha algumascoisas para fazer. Claro que eu poderia ouvir a maior parte da

conversa. Quase nunca meu pai falava baixo e isso faziaparte de seu novo alter ego . Parecia também que Marinafalava um pouco mais alto do que o normal, então eu tambémera capaz de ouvi-la. Meu pai deixava que ela falasse quase otempo todo  —   sobre a escola, seus alunos, sua família  — ,interrompendo de vez em quando para fazer alguma perguntaou observação, tal qual:

 —  A dedicação é uma das qualidades mais louváveis noser humano, mas com certeza não preciso lhe dizer isso.

Nunca o ouvi falar daquele jeito. Com minha mãe,sempre fora respeitoso, mas mandão. Com os filhos,provocador e desafiador. Ele tratava a mulher de Matty,Laura, como se fosse sua sobrinha favorita, sorrindo eapreciando o fato de que não a considerava uma igual.

Porém, com Marina, estava sendo bajulador. Ou ele estavasutilmente tirando um sarro com minha cara ou estavamesmo tentando algo com ela.

Continuou assim por um tempo, enquanto eu preparavao jantar na cozinha. Cada vez mais eu apreciava o fato de quetinha feito moles poblanos . Isso faria com que ele saísse dopersonagem. Se as últimas seis semanas haviam comprovadoalgo, era que meu pai não perderia a oportunidade de sugerir

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que culinária boa era a francesa ou a italiana, maisnenhuma. Marina pediu licença e foi falar comigo:

 —   Você não me disse que ele era tão bonito  —   ela

sussurrou para mim.

 —  Ele está velho, corcunda e dez quilos acima do peso.Está bom para você?

 —  Ele tem olhos lindos!

 —   Ainda bem que notou. Ele não parou de olhar paravocê desde que chegou.

Marina riu:

 —  Seu pai é muito charmoso.

 —  Não, não é. Ele só está presente de corpo. Sua almafoi raptada por alguma nave espacial. Não se aproxime muitodele. Sabe-se Deus qual será sua missão na Terra!

Ela pegou a colher de pau de minha mão e me abraçou.Beijei-a delicadamente e nossas cabeças permanecerampróximas por mais tempo. Adorava falar com ela naquelaposição.

 —  Você está espetacular hoje —  eu disse.

Ela sorriu:

 —  Seu pai faz cantadas melhores.Eu a segurei mais forte:

 —  Estou falando sério. Promete que vai sempre pôr essesuéter quando estiver comigo?  —   Beijei-a novamente, commais paixão dessa vez.

 —  E eu que ia trocar você por um homem mais velho.

 Talvez tenha que reconsiderar.

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Beijei-a de novo e em seguida disse:

 —  Melhor você voltar agora. Do contrário, ele vai vir aquià sua procura e é melhor para nós que ele passe o menor

tempo possível na cozinha.

Ela me deu outro beijo de selinho e saiu. Eu a observeicaminhar para a sala. Sempre a achei atraente, mas pareciaque agora era mais bonita. Isso nunca tinha acontecidoantes.

Deveria ter adivinhado que meu pai adoraria os moles

 poblanos . Era assim que as coisas seriam essa noite. Fiqueiprocurando uma pista de que ele cuspiria no guardanapo ou jogaria um pedaço no chão, mas obviamente estava gostandode verdade.

 —  Está excelente, Jesse —  ele disse. —  Nunca comi umfrango assim.

 —   Eu adoro comida mexicana  —   Marina comentou.  —  Não há nada igual no mundo.

Meu pai sorriu para ela:

 —   Sim, é maravilhoso! Tentei experimentar antes, masnunca tive muita oportunidade.

Engoli em seco ao me lembrar do guacamole  que elerejeitara em sua primeira semana em minha casa, ou domolho verde que ele dissera parecer uma sopa. Tambémresisti à tentação de rir com escárnio quando ele continuoudizendo:

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 —   Acho essencial continuar explorando coisas novas.Mantém a gente jovem.

Com certeza, Marina não fazia ideia de quanto ele era

teimoso e apegado às suas manias, então, ela nãocompreendia a ironia.

 —   Concordo plenamente  —   ela disse.  —   O mesmo sepode dizer de pessoas de minha idade. Você tem que se abrirpara as pessoas a seu redor. Queria que os mais velhosentendessem isso.

 —   Eles não tiveram bons professores  —   meu pai

continuou. Acho que nesse ponto os ETs já tinham levado aalma dele para Plutão.

Procurei a perna de Marina debaixo da mesa e dei-lheuma apertadinha. Em parte, era um comentário àperformance de meu pai. Mas eu também queria tocá-la. Fizisso a noite toda. Estava acontecendo alguma coisa. Poderiaser minha própria reação ao ver os dois juntos. Poderia ser

alívio porque  —  mesmo diante do ridículo da situação  — , naverdade, meu pai tinha gostado de Marina (nunca meesquecerei do desastre que fora quando ele se encontraracom Karen pela primeira vez). Ou poderia ser o modo comoela havia se arrumado essa noite. Ou as qualidades inegáveisdo chocolate e da pimenta. Mas a verdade é que eu estavamais espontaneamente afetuoso com Marina. Estavagostando de me sentar ao lado dela e de meu pai à mesa.

Gostava de vê-la divertindo-se com ele enquanto euterminava de comer. Gostava de que ela fosse minhanamorada e apreciasse que eu a tocasse. Era tudo muitoexcitante para mim. Como quando Jill Somers viera conhecermeus pais e quando eu fora com ela ao baile de debutantes.

De sobremesa, Marina tinha trazido uma torta de maçãque ela mesma preparara e serviu com sorvete de caramelo.

No caso de meu pai não estar absolutamente convencido deque ela era a mulher mais perfeita do mundo, ela pôs um

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pouco mais de sorvete no prato dele. Sua expressão haviaredefinido o termo “enlevado”. Naquele momento, ele pareciao pré-adolescente mais velho do planeta.

Seria a noite ideal para quebrar o gelo quanto ao fato deela dormir em casa, mas havíamos decidido não ir além doponto. Não poderíamos ter previsto a reação de meu pai e eupensava que as coisas poderiam ir tão mal que eu acabariaacompanhando-a até sua casa e dormindo lá. No fim dascontas, uma hora e meia depois de o jantar ter terminado,Marina anunciou que ia embora.

 —  Não faça cerimônia por minha causa —  meu pai dissee se levantou. —  Eu durmo cedo; logo, vocês dois podem ficarà vontade.

Marina deu-lhe um aperto de mãos e sorriu.

 —   Obrigada, mas tenho mesmo que ir. Na verdade,tenho que corrigir umas provas antes de dormir.

 —  Espero que essas crianças saibam quão sortudas elassão. —  Meu pai beijou a mão dela e eu estava quase certo deque ele a agarraria a qualquer momento. Marina puxou-opara si e deu-lhe um beijinho no rosto. Pude jurar que eleenrubesceu.

Pus o braço ao redor dos ombros de Marina eacompanhei-a até o carro:

 —  Foi tudo bem, né? —  ela perguntou.

 —  Acho que ele foi para o quarto alterar o testamento eincluir você.

 —  Ele é um cara legal.

 —  Hoje, ele com certeza foi.

Ela me puxou para perto de si.

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 —  Eu me diverti.

 —  É, eu também. Imagine só!

 —  Fico contente com isso.Nós nos beijamos longamente. Não queria que ela fosse

embora. Na verdade, não queria mais nada, a não ser beijá-la. Por fim, ela se afastou e disse que tinha mesmo quecorrigir umas provas. Nós nos beijamos ainda outra vez, eoutra, antes de ela entrar no carro. Esperei que ela dobrassea esquina para voltar para dentro.

Meu pai estava me esperando logo na entrada.

 —  Que mulher! —  exclamou.

 —  Ela é bem bonita, não é?  —   eu disse, sorrindo. Fuilimpar a cozinha. Meu pai não tinha limpado. Não achavaque era sua tarefa. Ele fez o que sempre fazia, o quesignificava me seguir e se sentar à mesa enquanto eulimpava.

 —   Então, quais são suas intenções com ela?  —  perguntou.

 —  Intenções?

 —  Sim, intenções.

 —  Pai, acho que as pessoas pararam de usar esse termo

uns três anos depois da invenção da roda.

 —   Você sabe o que eu quero dizer. Quais são seusplanos?

Dei de ombros:

 —   Não temos planos, a não ser o de reservarrestaurantes ou escolher quais filmes vamos ver. Estamos

vivendo um dia por vez.  —  Novamente, pensei em Marina ao

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dizer aquilo algumas semanas antes. Eu deveria dizer deoutro modo.

 —   Você tem noção de que ela é uma mulher muito

especial, não tem? —  disse, asperamente.

 —   Pude ver o quanto gostou dela  —   comentei, sememoção.

 —  Seria um erro deixá-la partir.

 —  Não vou deixá-la partir, pai. Só não estamos fazendo“planos”, nem temos “intenções”. Você sabe que muitos

relacionamentos não dão certo. Só estamos apenas sendorealistas.

 —  Não seja tolo.

Ele disse isso de modo tão agressivo que eu desliguei atorneira e olhei para ele.

 —  Você está me dizendo que pensa que Marina é uma

mulher qualquer? —  perguntou no mesmo tom.

 —  Pai, se eu pensasse desse modo, não estaria com elahá seis meses. Só acho que é uma bobagem ficar dando umade romântico.

 —  Como se isso fosse a pior coisa que pudesse acontecercom você.

 —   Não precisa ser assim, pai. Marina e eu realmentegostamos um do outro. Nós nos divertimos. Conseguimos issosem fazer nenhuma promessa sobre ficar junto até o fim domundo.

Ele me deu um adeusinho com a mão, levantou-se esaiu. Eu me virei para a pia. Pouco depois, ele voltou e fechoua torneira.

 —  Quero lhe dizer uma coisa —  soltou, num impulso.

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Eu me virei para ele e lancei-lhe meu melhor olhar deimpaciência.

 —  Mal posso esperar.

O olhar dele capturou o meu por um segundo. Haviatanta desaprovação em sua expressão que me senti um poucocastigado.

 —  N-não, você não merece —  disse e saiu.

Fiquei ali um tempinho esperando que ele voltasse.Quando ficou claro que isso não aconteceria, voltei a lavar os

pratos. Para uma noite em que tudo ocorrera tão bem, aquelefinal era um tanto quanto perturbador, infelizmente.

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Capítulo 9

Tom Postron é um amigo e, em amplo sentido, umcolega. Há seis anos, apresentamos um estudo juntos emuma conferência de escritores. Em seguida, tomamos umdrinque e saímos durante o fim de semana. Naquela época, Tom era apenas um jovem e bom editor-assistente em umarevista. Em pouco tempo, porém, estava assinando comoeditor de destaque para a nova revista Tapestry . Parecia tersido um movimento arriscado, uma vez que saiu rápido doemprego e ninguém sabia ao certo quantas edições apublicação duraria. Mas Tapestry  captou a atenção de um

grande número de pessoas e a decisão de Tom pareceu bemacertada. Dois anos depois, tornou-se uma ideia genial, poiso editor-chefe decidiu se transferir para Montana e Tom ficouem seu lugar. Ele era três anos mais velho que eu eresponsável pelo que muitos escritores de minha geraçãoconsideravam a melhor vitrine disponível para pequenosartigos.

Fiz um trabalho para Tom e não foi nada além de umquadro como chamada para o que outro escritor tinhapublicado algumas edições anteriores. Na época, considereiuma porta aberta para a Tapestry ; a porta continuava aberta,mas eu não sabia como entrar. Eu tinha feito propaganda de Tom em uma série de artigos, alguns dos quais vendi paraoutros meios, mas não conseguia me engajar em nenhum deseus projetos. Mesmo assim, trocávamos constantes e-mails,falávamos sempre ao telefone e almoçávamos juntos três ou

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quatro vezes por ano. Era por isso que eu estava ligando paraele naquela manhã.

 —  Ei, Jesse, tudo bem? —  disse, ao atender ao telefone.

 —   Estou ligando para perguntar se tem uma brechapara almoçarmos juntos antes de virar o século.

 —  É proibido exagerar a esta hora da manhã, Jess. Sabeque não marco compromissos para além de um ano.

 —   Sim, sua disposição é obviamente a chave do seusucesso estrondoso.

 Tom riu e fez uma pausa. Acho que ele estava olhandona agenda.

 —  Que tal dia 8? —  perguntou.

 —  Dia 8 de que mês?

 —  Do próximo mês. Será que estou sendo presunçoso?

Você também está com a agenda lotada? —   Bem, as pessoas têm me requisitado bastante, mas

deixe-me ver se consigo remarcar uns compromissos.

 —   Ótimo, vou anotar aqui. Então, no que temtrabalhado ultimamente?

Bem naquele instante, ouvi meu pai do outro lado da

linha. Presumo que Tom também pudesse ouvi-lo e queprovavelmente nem precisava usar o telefone.

 —   Oi, Theresa, como se sente hoje?  —   perguntou. Amesma frase toda manhã. Sobre os mesmos assuntos. Eradifícil não se distrair com isso. Geralmente, eu não usava otelefone de manhã cedo por conta disso. Mas, com Tom, senão o pegasse antes das 9h30, havia poucas chances de falarcom ele o restante do dia.

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 —  Em alguns artigos para pagar as contas —  respondi a Tom.  —   Estou trabalhando em coisas mais significativasagora. É um dos motivos pelos quais queria me encontrarcom você.

 —  Bom, sempre tenho interesse em ouvir suas histórias.Se quiser mandar por e-mail algumas observações antes denos encontrarmos, vá em frente.

 —   Bem, se tiver um segundo, queria lhe contar umadelas.

 —  Diga.

Parei um minuto para juntar as ideias. Sempre faziaisso antes de começar a contar uma história. Nada frustravamais um editor do que escutar alguém dizer: “ei, espere,esqueci de mencionar...”, ou “certo, tem também...”. 

Enquanto pensava, ouvi meu pai dizer à minha tia:

 —   Foi ótimo. Ele está com uma garota bem diferenteeste ano.

Com certeza, meu pai estava contando os detalhes do jantar com Marina na noite anterior. Eu me distraí por umsegundo, mas então me concentrei de novo em Tom.

 —  Estou pensando em escrever um artigo sobre PercyKescham, o garoto de Newark que entrou para a NBA direto

do Ensino Médio.

 —  Não foi ele que jogou somente uns dez jogos?  —  Tomperguntou.

Simultaneamente, meu pai dizia:

 —  Ela é bem bonita e simpática. Gostei dela de cara.

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Era impossível não esticar os ouvidos para a sala, diantedaquelas circunstâncias, mas me lembrei de que falava com oeditor da revista Tapestry .

 —  Na verdade, ele ficou um ano inteiro parado  —  disseao telefone — , mas, na metade do campeonato, ele era o 11°homem na lista. Os Bucks o cortaram antes que elecomeçasse a temporada, muito embora precisassem cumprirum longo contrato.

 —  Então, qual é a história?

 —   O que quer dizer com “qual é o problema?” —  

perguntou meu pai. —  Por que pensa que há um problema?

 —   Pense em daqui a uns anos  —   continuei, muitoembora estivesse bastante distraído com o que meu pai dizia. —   O cara decide que vai ser alguém na vida. Abre umaempresa própria. Mês passado, foi preso por fraude. O caratem uma grana preta no banco e ainda assim está envolvidoem um esquema sujo.

 —  É isso? —  Tom perguntou.

 —   Ah, mas é que Jesse está a ponto de confundir ascoisas com ela, dá para perceber  —   meu pai continuou.  —  Mal posso acreditar que ele pensou em se casar com aquelalouca e está indo devagar com esta aqui. Parece que ele nãoaprendeu nada.

 —  Sim —  eu respondi para Tom, muito embora quisesseouvir o que mais meu pai diria.  —   Vejo a coisa como umalerta. Ele é um cara que acreditava que não fazia nada deerrado, mesmo depois que a melhor coisa da sua vida foidestruída. Então, ainda age como se fosse imune às leis e, emseguida, é preso.

 —  E por que meu leitor se interessaria por essa história?

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 —  Não estou entusiasmado com isso!  —  meu pai gritoupara tia Theresa. —  Mas você não estava aqui, Theresa. Vocênão os viu. Não posso acreditar que ele vá ferrar orelacionamento com essa grande mulher.  —   Ele soltou um

suspiro de exasperação. Parecia muito mais empenhadonessa história do que deveria estar.  —   É como se ele nãosoubesse distinguir o que é o amor, mesmo que bata à suaporta.

Não tinha certeza de qual conversa estava sendo piorpara mim.

 —  Acho que em algum grau ele se interessa  —  eu dissepara Tom.  —   Sabe, a gente sempre se pergunta se essesgarotos deveriam sair direto do Ensino Médio ou não. E euacho que alguns deles são ídolos, mesmo em pequena escala,em decadência.

 —  Não entendo, Jess. Esse tipo de história já foi contadainúmeras vezes. Se você cavar alguma coisa e descobrir algomais sobre esse cara e o que o levou para esse caminho,talvez haja alguma coisa aí, mas precisa olhar sob esseângulo. Eu disse mais ou menos isso da última vez que nosvimos. —  Ele hesitou por um momento. —  Jess, pode esperarum segundo?

 —  Sim, claro.

Como estava à espera, pude ouvir meu pai.

 —   Ontem à noite, foi quase, mas ele me olhou de um jeito e, considerando que eu já tinha sido bastanterepreendido, perdi o interesse.

 Tom voltou ao telefone:

 —   Tenho que correr. Minha série favorita começou umpouco mais cedo hoje. Vai ser um ótimo dia. A gente se vê dia

8, certo?

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 —  Certo, obrigado.

Desliguei o telefone e ouvi meu pai dizer algo a Theresasobre alguém que morava no condomínio dela. Tanto Tom

como ele tinham mudado de assunto.

Quase pensei que meu pai quisera intencionalmente que

eu ouvisse a conversa com tia Theresa, muito embora euquase sempre ouvisse todas as conversas entre eles. Tivevontade de ir falar com ele, quando desligou o telefone, mastinha o pressentimento de que não gostaria muito doconfronto. Em vez disso, decidi voltar ao trabalho. Não eraparticularmente fácil me concentrar com sua voz e a de Tomainda ressoando em minha cabeça.

Muito provavelmente, Tom estava certo sobre a históriade Percy Kescham. Não havia muita coisa inédita. Claro queeu achava um pouco irônico o fato de estar trabalhando emum artigo  —   apenas ligeiramente diferente  —   que já haviaaparecido em centenas de revistas ao longo dos anos. Masescrever longas reportagens era um tanto diverso e, como meconsiderava havia muito tempo esse tipo de escritor, tinhatido alguns problemas com meus artigos. Publiquei apenasuns seis artigos longos em minha carreira e de longe foram osmais trabalhosos. Havia uma ideia de história que me viria àcabeça, pensaria um tempo nela e então veria que estavadiante de algo substancial. Mas, por alguma razão, não davacerto. Não queria acreditar que meu destino fosse escreverartigos práticos que serviam de manual, mas toda vez quealgo dava errado eu voltava a pensar que meu destino eraaquele mesmo.

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Meu pai não estava errado quanto a meusrelacionamentos. Quando, no passado, eu procurara umaesposa, não fizera boas escolhas. Tanto Georgia quanto Karencontribuíram para que eu me expressasse de modo

romântico. Em retrospecto, elas não me ofereceram muitacoisa em troca. Isso não significa que eu não as tivesseamado ou que meus sentimentos não fossem sinceros, massim que errara o alvo. As outras mulheres com quem saíantes de Karen eram geralmente bonitas, mas não queriamcompromisso. Parece que eu gravitava em torno dessaspessoas.

Depois de Karen, as regras mudaram para mim e euadaptei minha visão de romance para adequar-se ao tipo demulher ao qual me ligava. Não importava mais se eu saíssecom mulheres que não se entregavam à relação, porque eunão queria muito isso. Companheirismo, sexo, algo para metirar de casa. Eu era mais otimista sobre minha vidaromântica do que antes. Saía com mulheres interessantes, agente se divertia por um tempo, depois partia para outra e

nenhum coração ficava ferido durante o processo.

Meu pai era de outro tempo e não era capaz decompreender que isso funcionava para mim. Para ele, oshomens deveriam encontrar companheiras, construir famíliase morar em castelos, onde seriam os reis. Bem comodeveriam trabalhar em escritórios, ter um salário, diversificaros investimentos. No tempo de meu pai, os únicos homens

solteiros aos 30 anos eram homossexuais enrustidos econquistadores baratos, e “freelance” queria dizer“desempregado”. Mais ou menos há três ou quatro anos,contei a ele que não deveria esperar que eu lhe desse netos eele me olhou como se eu tivesse nove cabeças. Para ele, nãoera assim que o jogo era jogado.

 Tenho certeza de que eu o tinha alertado sobre Marina.

Lembrando de nossas conversas sobre ela, pensei que tivesseesclarecido que as coisas entre nós eram “casuais”. Mas sei

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que ele tirou suas próprias conclusões, já que a gente se viaquase sempre durante a semana e isso vinha acontecendohavia quase meio ano. Deveria saber disso quando ele meperguntou que camisa vestir.

Não havia modo eficiente de eu explicar a ele o que eutinha com Marina. Não era bom de conversa, nem ele sabia osignificado das palavras. Como se explica a alguém quecresceu com uma definição de amor e de família muitoprecisa que concorda com ele quanto ao fato de que a mulhercom quem você está saindo é extraordinária, mas que seucoração já está preparado para o inevitável? Como ele

entenderia que eu pensava que Marina seria minha amantepor mais alguns meses até que o inevitável acontecesse e que,depois disso, eu esperava que ela se tornasse uma de minhasmelhores amigas na vida? Como não pensar que ele veria issocomo não somente um desejo, mas também preferível aocasamento, o qual se tornaria um desespero tranquilo ou, nomáximo, um conforto?

Então, resolvi nem tentar. Se meu pai queria atormentarminha tia sobre como eu estava me equivocando, então, quefosse. Não bateria a cabeça contra a parede tentandoesclarecer como eram os relacionamentos na metade doséculo XXI para uma mentalidade tão arcaica como a de meupai.

Demorei mais de uma hora, sete mensagens de e-mail e

mais alguns telefonemas, mas finalmente tinha voltado aescrever o artigo. Na hora do almoço, saí do escritório eencontrei-o sentado no sofá, vendo televisão, com o volumepraticamente desligado.

 —  Quer comer algo? —  perguntei.

Ele me olhou de relance e em seguida voltou os olhospara a televisão. Pensei que era um modo de dizer “não” e fui

para a cozinha. Quando entrei, vi uma panela com um pingo

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de água fervendo. Obviamente, devia estar fervendo haviaalgum tempo.

 —  O que pretende fazer com essa água? —  perguntei.

 —  Vou fazer algo para mim —  disse, sem me olhar.

 —  Algo que precise ferver a água até ela evaporar toda?

Ele me encarou. Tinha que fazer isso.

 —  Eu já ia cuidar disso. Precisa de mais macarrão, porfalar nisso?

 —  Pai, achei que a gente tinha concordado que eu ficoresponsável pela cozinha.

 —   Vou cozinhar para mim. Não gosto do jeito comocozinha.

 —  Não reclamou de nada a noite passada.

 —  Estava encenando para sua “namorada”. 

 —  Está brincando? Foi uma encenação e tanto, pai. Masacredito que ela se convenceu depois que você se serviu pelasegunda vez.

Ele resmungou:

 —  Vou cozinhar para mim.

 —  Obrigado por me avisar. Vou verificar se o seguro dacasa já venceu.

Voltei para a cozinha para preparar um sanduíche.Enquanto isso, despejei mais água na panela e peguei o potecom “molho à bolonhesa” (ou “molho de carne”, como meu paichamava —  não discutimos o fato de que a carne era de peru)que tinha cozinhado dias antes. Ele tinha hábitos tão

arraigados. O macarrão tinha que ser ou com molho de carneou à marinara. Deus me proibia de oferecer-lhe outra coisa.

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Ele veio logo depois, o que significa que eu tinha perdidoa aposta segundo a qual ele deixaria a panela no fogo o diatodo. Ele jogou o macarrão na panela e voltou para a sala.Embora quisesse fazer valer minha opinião, não estava nem

um pouco a fim de limpar panela com macarrão queimado,então, decidi esperar que ficasse pronto. Eu despejaria omolho por cima e deixaria o prato na mesa.

 —  Seu almoço está pronto —  disse e fui andando para oescritório.

 —  Eu disse que cuidaria do meu almoço.

 —  Eu ouvi o que disse.

Ele se levantou lentamente da cadeira. Mesmo se eu meirritasse com ele, sempre sentia uma ponta de pena quando oolhava caminhar com as pernas bambas. Os médicos nosdisseram que ele deveria operar o joelho, algo que meu pai serecusou veementemente a fazer.

 —  Posso cuidar de mim mesmo —  comentou, ao passarpor mim.

 —  De nada. —  No caminho, parei para completar: —  Porfalar nisso, vou para a casa de Marina hoje. Vou sair lá pelasseis. Tem comida na geladeira para você. Se for cozinhar,prefiro que faça isso enquanto eu estiver em casa.

Ele parou para olhar para mim:

 —  Vai passar a noite lá?

 —  Sim, vou.

Ele resmungou algo e se virou. Demorou um pouco paraeu entender. Tinha dito:

 —  Você não a merece.

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Capítulo 10

Eram 7h43. Mickey estava sentado à mesa dacozinha, pensando que Jesse chegaria a qualquer momento.Provavelmente, estava se despedindo dela bem naquele

momento, apreciando-a um pouco menos do que uns diasantes. Era tão ignorante em relação a certas coisas.

Mickey não estava tão certo com respeito a Marina.Claro, havia uma semelhança física, mas precisava olhar bemde perto para reconhecer. O formato dos olhos. As ruguinhas.Mas havia algo muito mais profundo que isso. Era o modocomo ela o abraçara para simplesmente dizer “oi”. O jeito

como abraçou Jesse para cumprimentá-lo. Como o olhoufirme, ao entrar na sala pela primeira vez, e dizer que estavagrata por conhecê-lo, que estimava isso. Não havia nada maisprazeroso do que um olhar de uma mulher como ela.

Mickey tinha pena de que Jesse fosse incapaz dereconhecer isso. “Estamos apenas sendo realistas”, ele haviadito. Será que Marina também era cega a esse respeito? De

algum modo, Mickey esperava que fosse esse o caso, poisassim seria menos doloroso para ela se o filho não iluminadoum dia não aparecesse mais. Porém, Mickey realmente queriaque as coisas fossem diferentes dessa vez. Marina era umamulher rara. Isso era evidente mesmo para um observadorcomum. E Mickey queria que ela ficasse com Jesse  —   tantopor ele, quanto por Jesse.

Mickey apreciava o fato de que Marina lhe permitiraflertar com ela naquela noite. Ele não tivera muita

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oportunidade de conviver com mulheres lindas quando tinha30 anos e acabou se divertindo com o encontro. Era aprimeira vez que se dirigia a uma mulher desde a morte deDorothy. Ela costumava brincar com ele sem piedade com

essas coisas quando era viva. Mesmo fingindo ter ciúmes devez em quando, embora tivesse plena certeza de que nãoprecisava se preocupar com isso. Desde quando falara pelaprimeira vez com Dorothy, ele soubera como seria sua vidadali para a frente e não perderia isso por nada no mundo.

Mickey tomou outro gole de café. Estava tão forte! Nãodava para entender como Jesse bebia aquilo o tempo todo.

Que gosto dos infernos! Normalmente, se ele se levantasseantes de Jesse, Mickey fazia café do jeito dele, mas não foi oque aconteceu essa manhã. Não queria que a conversadescambasse para outro assunto porque Jesse se preocupavacom a “água suja”, como costumava chamar o café queMickey preparava. E um pouco mais de cafeína lhe faria bem.Se ele pretendia contar, precisaria de um estímulo a mais.

Minutos depois, Jesse entrou pela porta. Como sempre,ele deu um salto na cozinha. Como não notar que ele atémesmo caminhava diferente depois de passar uma noite comMarina?

 —  Ei, pai. Dormiu bem?

 —   Sim, muito bem  —   respondeu Mickey. A verdade éque mal pregara o olho de ansiedade por essa manhã, mas

isso não vinha ao caso. —  Tome um pouco de café. Acabei defazer.

 —   Ahh, essa é uma receita secreta  —   comentou comsarcasmo, pegando uma caneca do armário.  —  Como foi queficou tão saboroso?

Mickey se arrepiou, mas não comentou nada. Foi

recompensado logo depois pela expressão de Jesse ao tomar oprimeiro gole.

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 —   Hummmm, bom  —   disse Jesse, levantando assobrancelhas.  —   Parece que o velho aqui finalmente serendeu. —  Fez um movimento para sair da cozinha. —  Tenhouma porção de coisas para fazer. Vou ter que trabalhar até

tarde hoje.

 —  Jess, por favor sente-se um minuto.

Mickey podia notar, pela reação do filho, que ele haviacompreendido a nuance em seu tom de voz. Também percebeque ele não estava tão entusiasmado para conversar.

 —  Pai, tenho um monte...

 —  Eu escutei. Mas tem algo que quero lhe dizer. Sente-se comigo por uns minutos.

Analisando a expressão de Jesse, você pensaria queMickey segurava uma seringa ao fazer o convite.

 —  Não dá para deixar para a noite? Depois do jantar?

Mickey avaliou seu filho com atenção. Jesse sustentou oolhar, mas Mickey podia adivinhar que ele queria escapar e omotivo não era apenas o trabalho. Mickey sabia que os tête-à- 

tête   entre pai e filho que eles tiveram ao longo da vida nãohaviam sido muito bons. Mas nunca haviam discutido aquiloantes.

 —   Me dê alguns minutos agora. Não é o que está

pensando, eu prometo. Não é sobre você; pelo menos, nãodiretamente. É sobre mim.

 Jesse estava prestando atenção agora. O garoto pareciamenos distraído e mais apreensivo, enquanto se sentavarelutantemente à mesa da cozinha.

 —   Não é nada. Não estou morrendo ou algo assim. Sóquero lhe contar uma história que não contei a seu irmão e

irmãs. Algo que faz muito tempo que não menciono a

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ninguém. Depois de ver você com Marina, percebi queprecisava saber disso.

A expressão de Jesse mudou novamente e Mickey

imaginou que seu filho esperava por uma conferência.

 —  Relaxe. Não vai doer nada. Mas você vai precisar ter amente aberta, porque sei o quanto você e seus irmãos erampróximos de sua mãe.

 Jesse arregalou os olhos.

 —  E também não é nada disso  —  Mickey continuou. —  

Sempre fui fiel a sua mãe. Não acredito que você possa ser deoutro jeito e ainda assim se olhar no espelho. Mas, se tiversorte, vai ser abençoado com um grande amor na vida, umapessoa que torne o mundo completamente diferente paravocê. —  Ele se virou para olhar para Jesse, um pouco menoscerto do que no início da manhã a respeito de como o filhoreagiria a essa história.

 —   Conheci esta pessoa antes de sua mãe. É sobre elaque quero lhe contar.

Em 1947, Manhattan era um lugar cheio deoportunidades. A guerra tinha acabado havia dois anos, opaís estava prosperando como nunca antes e Manhattan erao coração da América, talvez do mundo inteiro. Para um jovem educado e bom em números, as portas estavamescancaradas. Mickey Sienna era um homem e tanto.

Um problema no joelho direito o tinha afastado doserviço militar durante a guerra, mas não havia banido a

tragédia da porta de sua casa. Mickey contribuíra

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trabalhando para o setor de comunicações da Marinha noBrooklyn. Fazendo isso, tivera tempo suficiente paraconseguir um diploma de administração de empresas. Foi oprimeiro na família a ter um título universitário, o que rendeu

a admiração da parte deles, mas também os distanciou.Quando a guerra terminou, um amigo contou que umnegociante da Quick, Banks e Kay estava à procura decandidatos para treinar em seu programa e Mickey quisconcorrer. Em seis meses, ele tinha uma base modesta declientes. Trabalhar nesse campo era uma habilidade naturalde Mickey, uma vez que entendia que lidar com pessoasdiferentes implicava vários níveis de risco e recompensa. Porvolta de 1947, Mickey tinha ganhado a aprovação de seussuperiores, o respeito dos colegas (alguns dos quais oinvejavam secretamente) e dinheiro suficiente para alugar umapartamento em Grammercy Park.

Esse padrão de vida elevado agradava-lhe. Como filho deum modesto lojista, ele crescera em uma casa onde semprehavia comida na mesa, mas raramente um luxo. Agora,

Mickey descobrira que gostava de vinho da Borgonha e decamisas da Brooks Brothers. Ele costumava comer fora decasa e dançar ouvindo bandas de jazz ao vivo uma vez porsemana.

A mudança do Brooklyn para Manhattan foi mais doque um sinal de que Mickey progredira no trabalho. Eratambém um passo simbólico longe de seu velho mundo para

um novo. Houvera tempos escuros em sua família desde amorte de Paulie. A morte de Teddy e o ataque que Theresasofrera também tinham sido golpes duros para seu pai e mãe,e mesmo para toda a vizinhança. Mickey ainda visitava seuspais pelo menos uma vez por semana e via Theresa a cadadois ou três dias. Mas, ao mesmo tempo, sabia que precisavaviver sua própria vida, ou se tornaria uma criaturadesesperada.

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Mickey achava fácil fazer amizade nos meios financeiros,que cresciam rapidamente. Havia tantos jovens na mesmaposição e tantas mulheres atraentes e brilhantes com quempassar o tempo. Sempre havia um jantar para aparecer,

sempre um recém-formado em Vassar para andar lado a lado.Casar-se era a última coisa que lhe passava pela cabeça e eleacreditava piamente que poderia viver assim indefinidamente.

Entre seus melhores amigos na QBK2, estava Carl Ceraf.Eles fizeram o mesmo programa de treinamento, e no iníciohavia até certa competição entre eles. Mas, uma vez queperceberam que havia clientes muito mais do que suficientes

para conquistar, se fossem suficientemente agressivos ebons, eles começaram a se encontrar fora do escritório.Saíram juntos, com suas namoradas, em diversas ocasiões,beberam uns drinques e passaram vários dias de verão noPolo Grounds. Carl ainda morava com os pais, porque era “omelhor negócio na cidade”. Mickey sabia que os Ceraf viviamem Manhattan havia três gerações, que o pai de Carl eraprofessor na Columbia e que sua irmã era um “gênio”, mas

sabia pouco mais que isso. Tudo aquilo mudaria naquelanoite em que Carl o convidou, bem como “mais algunsamigos”, para uma festinha em casa. 

Mickey foi para a festa acompanhado de Jessica Fain.No máximo, ele tinha um interesse passageiro por ela, masera a mulher mais sofisticada com quem saíra; enquanto Carlera sempre casual em sua conduta, Mickey sabia que um alto

nível de decoro seria exigido dele naquela noite. Na verdade,estava bastante entusiasmado, se bem que um tantointimidado com a probabilidade de se encontrar com oestimado professor Ceraf. Mal podia saber que teria umencontro muito mais decisivo.

Mickey e Jessica chegaram uns vinte minutos depoisque a festa tinha começado. Devia haver umas 20 pessoas

2 Quick, Banks e Kay 

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movendo-se pela sala, pelo bar, ao redor da mesa com asentradas e em outra sala, onde tocavam soft jazz  e todos sesentavam para conversar. Quando ele atravessou a porta com Jessica, Carl interrompeu uma conversa para cumprimentá-

los.

 —  Mickey, que prazer em vê-lo! Jessica, está divina hoje,como sempre!  —  Mickey apertou a mão do amigo, enquanto Jessica lançou-lhe um sorriso demorado e um beijo leve norosto. Carl os levou para dentro. Mickey conhecia váriasdaquelas pessoas do trabalho e Carl o apresentou a não seimais quantas, dizendo “meu parceiro de crime na QBK”. Eles

foram para a outra sala, onde o pai de Carl contava umahistória a duas mulheres de vinte e poucos anos.

 —  Pai, quero que conheça meus amigos Mickey Sienna e Jessica Fain  —   anunciou, enquanto eles entravam. DanielCeraf se virou, educadamente tomou a mão de Jessica edisse:

 —   Seja bem-vinda.  —   Em seguida, apertou a mão deMickey e comentou:  —   Meu filho me disse que você é umgênio no mercado financeiro.

 —   Bondade dele. Na verdade, tudo o que sei aprendicom ele.

Carl deu uma risada.

 —  Claro, e é por isso que sua comissão é três vezes maisalta do que a de qualquer outro no grupo.

 —   Isso é muito impressionante, Sr. Sienna.  —   Econtinuou: —  A que atribui tamanho sucesso?

Mickey se sentiu envergonhado:

 —   Eu apenas tento dar bons conselhos às pessoas,

senhor. No meu trabalho, se você faz isso constantemente,acaba convencendo muitos.

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 —  Isso é muito sábio, Sr. Sienna. —  Ele virou-se para ofilho. —  Carl, Mickey nos disse que você lhe ensinou tudo oque sabe. Mas parece que ele tem algumas coisas para nosensinar também.

 —   É por isso que não perco nenhum dos movimentosdele, pai.

Carl, Mickey e Jessica foram encontrar um velho colegade faculdade de Carl e sua nova mulher. Enquantoconversavam, Mickey lançou um olhar para o sofá, onde duas jovens mulheres estavam conversando e rindo. A da esquerda

era muito bonita, mas a da direita era deslumbrante. Cabelospretos brilhantes, enormes olhos azuis, um sorrisocontagiante. Mickey se distraiu completamente. Essa mulhernão era simplesmente bonita. Mickey conhecia um grandenúmero de mulheres bonitas. Jessica mesmo era bela, de ummodo escultural. Mas a beleza daquela mulher se projetava.Mickey não tinha nem sido apresentado a ela e se sentiacomo alvo de toda a sua beleza radiante.

Ele devia estar olhando-a fixamente, pois Jessica, porfim, agarrou-se ao braço dele para que ele voltasse aconversar. Mickey fez um esforço sobre-humano para seconcentrar no que estavam discutindo, mas sua cabeçaestava em outro lugar. Queria saber se havia um mododiscreto de sugerir a Carl que o apresentasse em seguidaàquelas duas mulheres.

Isso não foi necessário. Depois do riso final das pessoascom quem ele deveria estar conversando, se estivesserealmente prestando atenção, Carl puxou Mickey e Jessicapara um lado e disse:

 —  Preciso lhes apresentar a mana. —  Foram até o sofá eCarl primeiro apresentou a mulher da esquerda, Mickeyesqueceu o nome dela imediatamente, e em seguida a mulher

da direita. —  Minha irmã terrível e mimada, Gina.

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Mickey apertou sua mão e mergulhou os olhos nos dela.

 —   Carl me contou muitas coisas sobre você  —   elecomeçou, acrescentando, em pensamento, que Carl tinha

cometido o erro de não declarar que a irmã dele era a mulhermais linda do mundo.

 —   Tenho certeza de que pelo menos alguma coisa éverdade e talvez um pouco lisonjeiro  —   ela respondeu,sorrindo tanto para Mickey como para o irmão mais velho.Rapidamente, Mickey começou a investigar um modo deconseguir outro sorriso daqueles.

 —   Ah, mana, você sabe que só digo coisas agradáveissobre você —  Carl declarou. Virou-se para Jessica e disse demodo jovial: —  Sou um excelente mentiroso.

 Jessica deu um sorrisinho, mas Mickey se recusoufirmemente a olhar em outra direção que não fosse paraGina.

 —   Bom, não posso garantir se ele estava dizendo averdade ou não, mas posso adiantar que Carl disse que erabrilhante, talentosa e muito, muito mais legal que ele  —  Mickey disse para Gina.  —  Acho que ele apresentou os fatosde forma atenuada.

Como Gina perfurou-o com o olhar, mais uma vez Jessica puxou o braço de Mickey:

 —  Quer tomar um drinque? Estou com muita sede —  eladisse.

Mickey se permitiu ser guiado por ela, mas apenasporque sabia que, se negasse, estaria sendo mal-educado.Pouco depois, eles foram para a sala de estar e Jessica seafastou para conversar com uns amigos que tinham acabadode chegar. Mickey, tão casualmente quanto possível, voltou

para a outra sala. Estava mais lotada agora e, enquantoprocurava por Gina, foi abordado por outro negociante da

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empresa que queria saber sua opinião sobre o mercado têxtil.Mickey dedicou-lhe o mínimo de atenção, enquanto seusolhos percorriam o ambiente. Quis saber se Gina tinha idopara outra parte da casa, ou mesmo se tinha ido embora. Ele

estava prestes a sair, quando, de repente, a viu a seu lado.Mickey fez mais um comentário sobre o mercado de ações elogo se distanciou do homem.

 —   Você é o tipo de pessoa que fala o tempo todo denegócios? —  Gina perguntou.

 —   Há hora e lugar para tudo  —   Mickey respondeu,

virando-se para observá-la melhor. —  E agora?

 —   Agora, podemos conversar sobre o que quiser  —   eledisse e sorriu. Esperava ter um impacto pelo menos umpouco menor ao sorrir de volta para ela.

 —  Mesmo se eu quiser falar sobre o mercado de ações?

 —  Gina respondeu e sorriu modestamente.

 —   Podemos conversar sobre a lista telefônica, se lheinteressar  —   sugeriu Mickey, lembrando que deveria evitarmostrar-se tão obviamente encantado.

 —   Quanta gentileza!  —   Gina disse, decidida.  —   Nãoquero conversar nem sobre a lista telefônica, nem sobre omercado de ações. Acho ambos os assuntos chatos.

 —   Então, deixo que escolha sobre o que vamosconversar.

A expressão de Gina passou da extrema seriedade àdescontração. Seu rosto brilhou de novo.

 —  Festas com coquetéis. O que pensa sobre isso?

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 —  Tudo depende de quem você encontra.  —  Mickey fezuma pausa para olhar ao redor. —  Estou me divertindo muitoaqui.

 —  Isso é um elogio? —  Gina perguntou, alegre.

 —  Pensava em seu pai —  Mickey disse com um sorriso,elogiando a si mesmo por não ter aproveitado a óbviaoportunidade para flertar com ela.

Gina riu e seus olhos capturaram de novo Mickey.Nunca antes tinha se impressionado tanto com a expressãode uma mulher.

 —   Quer sentar e conversar um pouco?  —   Ginaperguntou. —  Ou ainda quer conhecer outras pessoas?

 —  Já conheci pessoas suficientes hoje. Acho que querome sentar e conversar.

Não havia lugar para sentar nem na sala de estar, nemna sala de jantar, então Gina e Mickey foram para o estúdiodo professor Ceraf.

 —   Seu pai não se importaria com o fato de estarmosaqui? —  Mickey perguntou.

 —   Se continuarmos uma conversa inteligentementeestimulante, ele concordaria que estamos fazendo bom usodo estúdio —  Gina respondeu.

E foi precisamente o que fizeram. Por meia hora, a qualpareceu definir o início e o fim dos tempos, eles conversaramsobre os estudos de Gina, sobre o último discurso dopresidente, um editorial do The New York Times , teatro emesmo sobre quais eram suas tirinhas de humor favoritas.Em poucos minutos de conversa, Mickey percebeu que estavaverdadeiramente fascinado pelo que Gina tinha a dizer —  não

simplesmente porque era bela, mas porque falava comautoridade e dedicação. Ele queria conhecê-la de um modo

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diferente do que conhecia as pessoas em geral. A festaprovavelmente acabaria logo.

 —   Tenho que admitir  —   Gina disse  —   que esperava

conhecê-lo hoje à noite. Carl fala muito de você. E, como eletem sempre muito poucas coisas boas a dizer sobre os outros,estava ansiosa por conhecer alguém a quem ele fora generosonos elogios.

 —  Espero não tê-la desapontado.

 —   Não, absolutamente. Na verdade, me surpreendeu.Geralmente, Carl é um péssimo juiz de personalidades. Seus

outros amigos negociantes tendem a ser... Será que devodizer?... Quadrados.

 —  Quer dizer que eles só estão interessados em ganhardinheiro?

 —  Apenas nisso —  disse e virou seus lindos olhinhos. —  Um dos assuntos mais chatos do mundo.

Mickey olhou para o salão de madeira de mogno emóveis de couro onde estavam sentados e disse:

 —   Acho que deve ser mais chato ainda para quemsempre teve dinheiro do que para os novos-ricos.

Gina moveu o lábio superior levemente.

 —   Deve estar certo quanto a isso  —   ela disse. Comotudo o mais que haviam discutido naquela noite, ela parecialevar a sério os comentários dele.  —   É divertido conversarcom você.

Mickey sorriu e estava prestes a sugerir outra coisa paradebater, quando ouviu uma voz que vinha de fora do estúdio:

 —  Ah, você está aqui.

Era Jessica. Não parecia muito contente.

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 —  Estava me perguntando onde tinha ido parar.

 —   Jessica, oi. Desculpe, não havia lugar para sentar,então viemos para cá. Lembra-se de Gina, não é?

 —  Sim, claro —  disse, com a voz fraca.

Gina se levantou e foi para a porta. Tocou os ombros daacompanhante de Mickey.

 —   Me desculpe, Jessica. Não vou mais monopolizarMickey. —  E saiu rapidamente.

Imediatamente, Mickey se sentiu esvaziar. Não estavapreparado para fazer mais nada, a não ser conversar comGina. Sabia que seria terrivelmente rude dizer qualquer coisaa Jessica, mas conversar com estranhos e se juntar a umamulher que apenas de leve lhe interessava era muito menosatraente do que a alternativa anterior.

Mesmo assim, se não quisesse ser mal-educado, nãohavia outra escolha. Ficaram na festa por mais uma hora. Jessica não parecia estar muito preocupada em passar otempo com Mickey, nem ao menos o requeria nas conversas.No entanto, não parecia inclinada a deixar Mickey escapar denovo. Diversas vezes naquela última hora, Mickey viu Ginaconversando com outros convidados. Por duas vezes, eles seentreolharam, Gina sorriu e voltou a atenção para a pessoacom quem falava. Mickey queria desesperadamente voltarpara o estúdio e descobrir mais sobre ela, mas temia a ira de Jessica e que aquele momento com Gina já tivesse passado.

De casaco na mão e prontos para partir, Mickey e Jessica se despediram de Carl e vários outros à entrada doapartamento. Nisso, Gina apareceu:

 —  Já vão? —  perguntou.

 —   Sim, infelizmente. Ambos temos muita coisa parafazer amanhã —  Mickey respondeu.

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 —   Talvez meu irmão convide vocês dois de novo paraque a gente possa se conhecer um pouco melhor.

 —   Isso seria muito bom  —   Jessica interveio, dando o

braço para Mickey. Então, eles saíram para o hall. Noelevador, Mickey só pensava nos olhos de Gina. Quando aporta do elevador se abriu, ele segurou Jessica e disse:

 —  Esqueci uma coisa. Volto já.

 Jessica olhou para ele sem entender nada, enquanto asportas do elevador se fechavam. No instante seguinte, eleestava de volta ao apartamento e perguntava ao homem com

quem Gina conversava se poderia interrompê-los por ummomento.

 —  Preciso ver você de novo —  disse às pressas.

Gina sorriu, o que era um bom sinal.

 —  Mas e a sua namorada? Ela parece bem possessiva.

 —   Jessica é só uma amiga  —   disse Mickey.  —   Naverdade, agora que a deixei no lobby , talvez ela nem estejamais lá.

 —  Não gostaria de ficar entre vocês dois.

 —  Eu juro que não é nada disso.

Gina sustentou um olhar em direção a Mickey por um

momento eterno.

 —  Nesse caso, pode me levar para jantar sábado à noite.

Sábado? Mas era dali a uma semana.

 —   Eu adoraria  —   respondeu, embora não soubessecomo conseguiria esperar tanto tempo.

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Demorou três dias para que Mickey conseguisse fazeruma reserva no La Coquille. Por fim, um cliente conseguiureservar uma mesa para ele, embora Mickey se sentisse umtanto culpado por ter que pedir um favor ou mesmo envolver

sua vida pessoal no caso. Em outras circunstâncias, teriarecorrido a Carl. Carl tinha a incrível habilidade de encontrarmesas vazias, entradas para o teatro e quartos de hotel, ehavia se tornado a “fonte” de Mickey para as coisasnecessárias. Mas Mickey não queria incomodar o amigo nessecaso. Nem mesmo sabia como contar que teria um encontrocom a irmã dele.

 —  Então, aonde é que vai levá-la? —  Carl perguntou donada, na quinta à tarde.

 —  Ao Coquille  —  disse Mickey, certo de que havia algoestranho no ar. —  Acha que ela vai gostar?

 —   Coquille, é?  —   Carl se espantou.  —   Já tinha seprogramado para ir com outra pessoa? É impossível arranjaruma mesa antes de um mês.

 —   Basta conhecer as pessoas certas  —   Mickeycomentou, fazendo uma careta. Era a frase que Carl semprerepetia depois de fazer um favor.

 —  Bom saber que está levando isso a sério.

Mickey hesitou antes de fazer outro comentário:

 —  Desculpe se não lhe disse antes. Você não se importa,não é?

Carl sorriu.

 —  Que vá sair com a minha irmã? Não, absolutamente.Deu todos os indícios de que é um cavalheiro, Sienna, e estoucerto de que vai se comportar desse modo com Gina. Além

disso, pelo tempo que você estiver junto com ela, vouconseguir dela qualquer coisa que queira. Qualquer coisa que

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me impeça de contar a respeito do escândalo do caso daroupa de bailarina, quando ela tinha 5 anos.

Mickey deu risada.

A noite de sábado poderia ser assustadora, caso nãofosse tão natural. Gina vestia um chiffon  preto que a tornavaabsolutamente irresistível e altamente refinada. Mickey tinhasaído com muitas mulheres sofisticadas, mas nunca comalguém tão decidida a cada movimento e modulação. Aomesmo tempo, havia certo convite de sua parte. Ela deixoubem claro para Mickey que gostava de sua companhia. Na

verdade, ele acreditou que ela preferia estar com ele aqualquer outra pessoa no mundo. Era um sentimentoimpetuoso.

O restaurante era menos convidativo. Com painéisescuros, luz fraca e cheio de funcionários rijos em seusternos, o Coquille era acessível a bem poucos. Felizmente,Mickey, que vestia seu terno mais fino, acompanhado de umamulher como Gina e de uma nota de dez dólares nas mãos,sentiu-se digno de entrar. Ele já havia comido nos melhoresrestaurantes da City e não ficaria intimidado pela auraproibitiva desse estabelecimento francês.

 —   Você costuma trazer as mulheres para um primeiroencontro em lugares como este?  —   Gina perguntou, assimque se sentaram.

 —   Você quer dizer um estabelecimento perto destavizinhança? Achei melhor que começássemos de modocasual.

 —  Bem pensado. Que tal o hambúrguer daqui?

Mickey sorriu. Em sua imaginação, ele e Gina estavamem um banco de praça comendo hambúrguer. Na últimasemana, ele havia se imaginado com Gina em diversas

situações. Parecia que toda vista ou fragmento de conversa

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levaria a um momento de vida em que Gina fosse o centro.Aquilo tudo era novo para ele. Mickey já havia se enamorado,e certamente ficara impressionado com alguma beleza físicaantes, mas Gina fora a primeira mulher que o fizera pensar

em um futuro além daquele primeiro encontro.

Àquela altura da vida, Mickey estava no meio de umaperformance que simultaneamente honrava o fato de ele ternascido em uma vizinhança comprometida com a primeirageração de imigrantes italianos e de que lutava para parecermais urbano, pertencente a uma comunidade que respirava oar internacional do mercado financeiro de Nova York. Nunca

quis esquecer o abrigo aconchegante de suas origens, masnão dava para resistir ao apelo de gravitar em umaManhattan cosmopolita. Mickey sentia que podia apreciarqualidade e, desde que recentemente havia sido abençoadocom os meios que o circundavam, ele achava um desperdícionão aproveitar o máximo da situação. Naquela noite, orefinamento que cultivava caía bem. O garçom apresentou aseleção de vinhos. Gina deixou que ele escolhesse pelos dois e

ofereceu um sorriso de satisfação ao fazer o pedido. Quandoo maître  veio até a mesa verificar se tudo corria bem, Mickeyencetou uma conversa sobre o mural em uma das paredes, oque lisonjeou o homem até ele apresentar uma expressão deestupefação. Ele queria passar a impressão de que eraeducado e sábio para Gina, e parecia estar sendo bem-sucedido.

Ao mesmo tempo, tudo em Gina o impressionava. Queela conhecesse o Puligny-Montrachet que ele havia escolhido,que ela pudesse falar apaixonadamente sobre artigos de jornais, que se divertisse com coisas como o formato dasconchas na parede e das toalhas de mesa. Mas o que mais oimpressionou era a ambição de Gina. Ela não frequentava afaculdade para aumentar as chances de arranjar um marido,como tantas mulheres faziam. Ela fora à faculdade porque

esse era um degrau a subir em busca de suas aspirações.

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 —   Por que o gabinete do prefeito?  —   ele perguntou,enquanto comiam as entradas; ela, canard à lapresse , eele, carré d’agneau . 

 —  Pensei em algumas coisas quando saí da escola. Meupai queria me convencer a ir para a Columbia. Ele disse quelá eu teria uma qualidade de estudo mais elevada, mas achoque, na verdade, sua sugestão tinha a ver com o fato de elepoder manter os olhos em mim. Pensei em jornalismo, mastive a sensação de que me obrigariam a escrever uma colunade aconselhamento ou algo do gênero. Geralmente, é isso queas mulheres fazem. Você pode achar estranho, mas pensei

até em ir para a televisão.

 —  Televisão?

 —   Sim, eu sei. Quem sabe se isso vai durar ou sealguém vai se importar? Mas acho que as pessoas vão reagirbem assim que descobrirem um pouco mais. E acho que éum bom jeito de fazer algo significativo.

 —   Não posso dizer que prestei muita atenção. Não é amesma coisa que ir ao cinema.

 —  Tem razão. Mas e no futuro? De qualquer modo, eume fiz várias perguntas sobre o que queria fazer na vida epercebi que, assim como não estou convencida de queO’Dwyer é o cara certo para a prefeitura de Nova York, a Citytem um monte de programas que poderiam realmente ajudar

as pessoas se aqueles envolvidos estivessem de fatocomprometidos. Quando descobri que poderia participar doprojeto de abrigo para as mulheres, tudo se encaixouperfeitamente.

 —   São mulheres que foram abandonadas por seusmaridos e não podem se sustentar sozinhas?

 —   A maioria, sim. Mas estamos tentando criar um

espaço onde elas se sintam seguras e venham em busca de

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refúgio. Queremos que essas mulheres saibam que nãoprecisam continuar com um casamento abusivo.

Ficou claro para Mickey que Gina era mesmo diferente

das outras mulheres que tinha namorado. Muitas delas nãotinham nenhuma opinião política. E, mesmo se tivessem, nãoa revelariam em um encontro.

 —  Esse é um pensamento bem avançado.

 —   É hora de pensar para a frente. Os homens podemser bastante ruins com as mulheres, às vezes.

Imediatamente ele pensou em Jackie Pandolfo. Toda vezque se lembrava do ataque a Theresa, sentia-se mal.

 —  Sei disso —  disse, em voz baixa.

Gina tomou um gole de vinho e baixou a cabeça para oprato. Pareceu a Mickey que ela tentava se controlar.

 —  Você deve estar pensando que sou muito exagerada.

Meu pai diz que eu exponho demais as minhas opiniões.

 —   Não, não mesmo  —   disse Mickey, com entusiasmo.Ele não queria que Gina pensasse que sua mudançarepentina de humor tivesse algo que ver com ela.  —  É tudomuito estimulante.

 —  Acha mesmo?

 —   Sim, muito. É inspirador. Fiquei com vontade departicipar de um projeto desses.

Gina sorriu.

 —  Fique comigo e vai acabar distribuindo folhetos pelasesquinas.

 —   Conte comigo  —   Mickey disse e pensou que ouvir

Gina dizer “fique comigo” era realmente muito bom. 

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Naquele ponto, a conversa convergiu para assuntosmais leves. Gina parecia ter um conhecimento enciclopédicosobre as celebridades e suas vidas pessoais e admitiu, comvergonha, que lia as seções de jornal que achava engraçadas

primeiro.

 —   Humor  —   Mickey disse quase aos sussurrosenquanto comia a sobremesa.

 —  Desculpe?

 —   Adoro humor  —   Mickey repetiu ligeiramente maisalto. Estava muito surpreso consigo mesmo ao admitir isso a

uma mulher que tentava impressionar.  —   Sei que nãodeveria. Percebi que não é sinal de uma mente educada, maseu simplesmente adoro.

Gina riu:

 —  Acho ótimo!

 —   Acha ótimo que eu ache engraçado observar aspessoas esmurrarem umas às outras até cair?

 —   Acho ótimo que ache alguma coisa engraçada deverdade. Quero dizer: já sabia que era inteligente,trabalhador, atualizado com a maioria dos assuntos. Etambém que pode ser um pouco misterioso, mas é muitomisterioso para esclarecer certos assuntos tão cedo. Achoótimo que algo o faça sorrir, mesmo se for um humor bobo.

Se bem que eu não seja muito fã de humor.

E então sorriu de novo. Dessa vez, sorria porque eleadmitira algo que seria muito perigoso admitir a qualqueroutro de seus amigos de Manhattan, algo que, pensava, odenunciava como um garoto ignorante do Brooklyn. Mas, emvez de reagir mal, Gina o havia recompensado com o maiorpresente que podia: seu sorriso.

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Ao sair do restaurante, Mickey se sentia flutuar. A noiteera uma criança e ele não tinha nenhum desejo de queacabasse logo.

 —   Quer ir dançar?  —   ele perguntou, tomando-a pelobraço e saindo do La Coquille.

 —   Sim, gostaria muito  —   ela respondeu, apertando deleve o braço dele.  —   Algum lugar tranquilo, no entanto. Émelhor não irmos a nenhum local barulhento hoje.

 —  Tem um ótimo trio que toca no The Plaza todo sábadoà noite.

 —  Parece perfeito.

Mickey pensou que a noite não poderia melhorar aindamais, mas, ao pôr seu braço direito em torno da cintura delae segurá-la pela mão a fim de dar o primeiro passo de dança,concluiu que estava profundamente enganado. Não haviadedos mais delicados, rosto mais sedoso, nenhum corpo que

se ajustava melhor ao seu. Cole Porter nunca escrevera umacanção que descrevesse esse sentimento. Como uma mulherque ele mal conhecia podia mexer tanto com ele?

 —  E você também sabe dançar —  disse Gina, admirandoos passos dele no salão.

 —  Acredite se quiser, foi minha mãe quem me ensinou.Ela disse que “as mulheres” apreciariam.

 —  E “as mulheres” apreciam? 

 —  Só estou interessado na opinião de uma.

Gina colou o rosto no dele e sussurrou:

 —  Acho que a sua mãe está certa.

Eles dançaram até depois da 1 hora da manhã. Mickeynão tinha certeza se algum dia pararia de dançar, mas Gina

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lhe disse com pesar que a esperavam cedo para o café damanhã e que precisava dormir pelo menos um pouco. No táxi,de volta ao apartamento de Gina, ela pousou a cabeça nosombros dele e ninguém disse uma palavra. Quando chegaram

diante da porta, permaneceram vários minutos se olhando.

 —  Tenho certeza de que está na cara, mas eu me divertimuito hoje —  declarou Mickey.

Gina o observou devagar pela vigésima vez.

 —  Fico contente. Eu também me diverti.

 —  Posso ver você de novo?

 —  Gostaria muito.

 —  Esta semana?

 —   Está certo.  —   Gina pensou um instante.  —   Vocêgosta de ópera?

 —  Não penso que o Gordo e o Magro tenham ido algumavez à ópera. Não sei dizer muito sobre isso.

 —   Venha comigo na terça à noite. Minha mãe e eutemos uma cadeira cativa no Lincoln Center. Vou tentarconvencê-la a me dar o ingresso dela.

 —   Seria maravilhoso. Seria como explorar um novomundo.

 —   Será como tem que ser.  —   Ela olhou por cima dosombros. —  Eu devo ir de qualquer jeito.

Com isso, Gina se inclinou e beijou delicadamente orosto de Mickey. Quando estava quase beijando-o, seus lábioshesitaram por alguns minutos. Depois de beijá-lo, ela seafastou, sorriu e foi para dentro do prédio.

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 —   Foi como se um anjo tivesse me beijado  —  Mickeydisse a Jesse.  —   Um anjo vivinho da silva.  —   Olhou paralonge.  —   Ainda posso sentir, Gina  —   disse e olhou parabaixo.

 Jesse não dissera nada desde que Mickey começara orelato. No início, pensara em interrompê-lo e fazer umasperguntas, mas nem notou quando decidiu simplesmente sesentar e ouvir. Jesse estava surpreso por seu pai estar lhecontando aquela história e precisava admitir que ficaracompletamente enlevado. Agora, esperava que o paiterminasse o relato. Porém, Mickey não disse uma palavra. A

expressão dele se tornou séria. Apenas poucos minutosantes, estava iluminado, mas agora ele parecia perdido empensamentos. Ou será que era no tempo?

O suspense estava matando Jesse.

 —  Tem mais, não é? —  Jesse perguntou.

Mickey parecia estar de volta de onde quer que tivesse

ido. Ele se lembrou de que seu filho estava lá.

 —   Sim, tem mais. Mas não agora. Acho que vou medeitar um pouco. E você precisa trabalhar.

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Capítulo 11

Essa história tinha me pegado de surpresa em váriosestágios.  Não entendia como ficara tão surpreso. Claro queeu queria ouvir mais, mas, como as coisas estavam tãoesquisitas entre mim e meu pai nos últimos dias, não quisparecer ansioso. Quando se levantou da mesa, fiz o mesmo, edisse algo sem importância como:

 —   É verdade. Tenho que escrever o artigo.  —   Noentanto, minha cabeça vacilava.

Quem era essa mulher que cativara tanto meu pai? Será

que ela se tornara alguém bem diferente do que ele esperava?Será que virara uma incansável lutadora pela liberdade,deixando meu pai em apuros? Talvez Gina não fosse seuverdadeiro nome; talvez fosse alguém importante na políticacuja identidade ele estava proibido de revelar. Claro queimediatamente eu quis saber o que tinha interrompido oromance, porque era isso o que sempre pensava quandoconsiderava histórias de amor. Era evidente que falar de Gina

tirava muita energia de meu pai e isso me sugeria que eleficara com o coração partido no final. Será que eles tiveramum curto romance arrasador ou as coisas foram sedesgastando aos poucos, deixando meu pai de mãos vazias?

E havia também o choque de ouvir meu pai falandodesse jeito. Até dois dias antes, nunca pensara nele comouma pessoa romântica. Ele e minha mãe exerciam bem seus

papeis: sócios em uma empreitada. Ele não lhe trazia flores,nem cantava músicas de amor, nem fazia mais nada que Neil

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Diamond pudesse sugerir  —   pelo menos, não enquanto euestava por perto. E então, de um dia para o outro, flertou comMarina quando a conheceu, o que por si só era bastanteestranho. E quando começou a falar de Gina, seu

comportamento mudou completamente. Ele era como umdesses contadores de história profissionais que ficampossuídos pelos personagens sobre os quais falam. Ele tinhapassado de Mickey Sienna, 82 anos, velho resmungão, paraum jovem amante sonhador. Quando mencionara asqualidades viciantes da atração, pude me identificar com oque dizia. Mas isso porque eu sabia a que ele se referia e nãoporque o tinha visto antes tocar naquele assunto. Enquantocontava a história, pensei que a coisa mais importante nomundo para meu pai era o amor entre um homem e umamulher. Isso era uma visão completamente desconectada daimagem de um cara que falava de investimentos financeiros,escolhas de carreira e sanduíche de alface, tomate e bacon.Bom, pelo menos, eu o reconhecia na parte sobre o humor.Diversas vezes, desde que se mudara, eu quase enterrara a

cabeça debaixo do travesseiro porque ele estava se matandode rir com uma comédia idiota na sala. Ele tinha esse prazercondenável desde que eu me entendia por gente. Não é queeu nunca o tivesse ouvido dar preferência ao amor sobretodas as coisas; eu não o ouvira colocá-lo nem em uma listadas dez mais.

E outra coisa: quem era o cara que ele descrevera? Eunão conhecia nem o Valentino, nem o homem cosmopolita.

Sempre soube que meu pai era inteligente, e certamentegostava de cercar-se de pessoas com essa qualidade. Masternos sob encomenda? Restaurantes quatroestrelas? Nightclubs  da moda? Carré d’agneau , Stickley eLincoln, isso ainda fazia parte de sua personalidade, masPuligny-Montrachet? Não era o Mickey Sienna que euconhecia.

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Mal podia esperar para contar isso a Marina. Ainda nãodava. Ela estava na escola, então tinha que esperar até anoite.

 —   Isso é muito fofo  —   ela disse, depois que comecei acontar-lhe a história. Ainda estávamos sentados no sofá,embora fôssemos nos atrasar para o cinema. Não pude

resistir e relatei todos os detalhes no instante em que a vi.

 —   Dá para imaginar seu pai com os olhos vidrados esentimentais.

 —  Aí está a diferença entre mim e você.

 —   Ah, vamos lá, Jesse, vai ter que admitir algum diadesses que seu pai é uma pessoa inteligente e sensível. Dá

para perceber isso no primeiro encontro. E agora, depois deouvir essa história, como pode ter outra opinião? Pessoassem coração não carregam tochas por mais de cinquentaanos.

 —   Nunca disse que ele era sem coração. Careta,mandão, um cara chato de primeira, disse essas coisas. Masnunca sem coração.

Ela me puxou para perto de si no sofá e me beijou norosto.

 —  Não posso acreditar que ele está contando um grandesegredo a você depois de tanto tempo. Acha que a sua mãesabia?

Balancei a cabeça. Essa era uma das dezenas de

perguntas que eu me fizera o dia todo; a maior delas, claro,era por que ele me contara tudo aquilo.

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 —   Não sei. Ele deixou claro que nenhum dos meusirmãos sabe, mas não disse nada sobre minha mãe. Essesdias, como você sabe, alguém como Gina apareceu econversou com ele pela primeira vez. Mas naquele tempo é

possível que não se falasse dessas coisas.

 —  Então, quando é que vai ouvir o resto da história?

Sorri para ela:

 —  Humm, ficou interessada, é?

Ela deu um sorriso malicioso:

 —  E você, não? Fique à vontade e tire o casaco. Por falarnisso, acho que o filme começou há uns sete minutos.

 —   Não, na verdade, admito que fiquei fascinado. Nãovou confessar isso a ele, mas a você, sim. Não tenho ideia dequando ele vai continuar a contar a história. Parecia exaustoao final da parte um, como se aquilo exigisse um bocado deenergia. As poucas vezes que o vi durante o dia, ele pareciacompletamente perdido em pensamentos, como se estivesserevivendo a coisa toda. Não disse uma palavra sobre oassunto. Pode ser que demore um pouco. Pode até ser quenão conte mais nada.

Marina considerou essa hipótese por um minuto. Penseise ficaria desapontado caso ele nunca mais mencionasseGina e percebesse que, especialmente agora que Marina

também estava interessada, eu me sentia assim.

 —   Você está pensando nele de um modo totalmentediferente, não é? —  Marina perguntou.

 —  Sim, bastante. Acha que foi por isso que me contou?

 —  Acho que ele está ganhando tempo.

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 —   Pode ser. Se for esse o caso, o tempo dele é bemestranho. Desde o jantar em que você apareceu, ele está depéssimo humor.

 —  Vai ver que a história é um momento de trégua. Elequer que você saiba que ele é uma pessoa boa, mesmo quevocês não se entendam bem.

 —   Acho que tudo é possível. Quero dizer: quem oimaginaria interessado em alguém como Gina?

Nenhum de nós disse nada por um tempo considerável.Eu me aninhei nos braços de Marina e pensei nos detalhes da

história de meu pai. Tenho certeza de que ela fazia a mesmacoisa. Pensei em como meu pai e ela se aproximaram. Estavapensando nisso e justapondo a vida dele e a de Gina com aminha e a de Marina. Será que ele chegava animado à casadela para contar as novidades? Eles deixavam de ir ao cinemapor conta dele? Ele adorava especialmente algumas roupasque ela usava? Ela tinha gestos afetuosos para com ele, comoalisar suavemente os cabelos dele quando eles se sentavam juntos?

Depois de algum tempo, voltei da viagem aos anos 1940para me dar conta de como era bom me sentar no sofá comMarina. Fazia mais de uma semana que não tínhamos tempoum para o outro e isso agora era mais do que bem-vindo.

 —  A gente não precisa ir a lugar nenhum hoje  —  disse

Marina.

 —  Você concorda em não ir ao cinema?

 —   Nenhum filme vai ser melhor do que a história queacabou de me contar.

 —  E o que quer fazer então?

 —  Vamos pensar em algo.

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Eu me aninhei mais confortavelmente nos braços dela.Pensava que era muito melhor do que estar no cinema.Fechei os olhos e a próxima coisa que soube era que era 1hora da manhã. Fiquei surpreso ao olhar o relógio e, com

isso, acordei Marina.

 —  O que aconteceu? —  ela perguntou e se sentou.

 —  Parece que caímos no sono.

Marina riu. Ainda me abraçava e acabou me apertandoum pouco mais.

 —  Foi ótimo —  disse, meio sonhando.

 —  Sim, foi.  —   Percebi que concordava com ela.  —  Nãosabia que estava tão cansado.

Fiquei surpreso que me sentisse assim. Nunca tinhapego no sono ao lado de uma mulher, a não ser depois detransar. Acho que, se isso tivesse acontecido com uma deminhas ex, ficaria horrorizado, com receio de estar perdendoo vigor ou de o relacionamento estar no fim. Em vez disso, mesentia plenamente satisfeito, como se tivéssemos passado anoite toda conversando em um café. Era meio improvável queeu sugerisse que repetíssimos o plano, mas ao mesmo tempoqueria muito que isso acontecesse.

 —  Preciso voltar —  disse-lhe com pesar.  —  Não deveriaficar longe de meu pai duas noites seguidas.

 —   Sei. Não quer que ele fique furioso com você, agoraque quer saber o final da história.

 —   Humm, então, vai ver que é isso mesmo. Um novomodo de me manter na linha.

Marina se levantou do sofá e, por conseguinte, eutambém. Percebi, ao caminhar até a porta, que nem ao

menos tirara o casaco.

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 —  Noite bem estranha, né? —  comentei à porta.

 —  Foi legal.

 —  Acha mesmo? —  Sim. Dê um beijo no seu pai.

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Capítulo 12

Lá pelo sábado seguinte, meu pai ainda não havia mecontado mais nada sobre Gina. Embora eu tivesse sugeridoa Marina que era possível que não emitisse mais nenhumapalavra sobre o assunto, eu mesmo não queria acreditarnisso até então. Ele não havia sido reticente. No entanto,parecia mais relaxado, mais próximo a mim do que antes.Mas é claro que ele sabia que eu esperava que ele mecontasse o final. Lembro como ele tinha ficado cansado, ao selevantar da mesa da cozinha naquela manhã, e concluí quetalvez contar a primeira parte do relato o consumira tantoque ainda não havia se recuperado totalmente.

Mas esse domingo não era nada disso. Uma visita darealeza  —   pelo menos, aos olhos deles  —   tinha chegado.Denise, Brad e Marcus escolheram essa data para fazer suavisita cerimoniosa. Era a primeira vez que Denise pisava ochão de minha casa desde que meu pai se mudara. Naverdade, fazia quase dois anos que não cruzava a fronteira. Tudo parecia ter uma aura de obrigatoriedade: do

compromisso (“Um almoço seria mais adequado, Jesse. Vocêsabe que o trânsito pode ser infernal no domingo à noite.Preciso preparar um monte de coisas para a segunda-feira eMarcus precisa estudar.”) às orientações sobre o cardápio(“Ultimamente, evitamos comer carne vermelha; então, émelhor que não sirva isso”, ela disse, muito embora eutivesse parado de comer carne vermelha havia cinco anos) eaos ensaios sobre o tipo de conversa (“Seria melhor se a gente

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não falasse muito na mãe, não acha? Pode não ser bom parao pai.”). Meu pai, obviamente, estava ansioso com a visita. 

 —   Acha que Denise vai trazer o celular, o pager  e

o laptop ?  —   perguntei, enquanto deixava as coisas prontas. —   Ou pensa que ela vai apenas trazer uma assistente comela, enquanto fiscaliza as atividades do carro?

 —  Por que fala assim da sua irmã? Ela sempre foi muitoboa com a sua mãe e comigo.

 —  Pai, ela atendeu o telefone no meio do funeral.

 —   Não durou mais que 30 segundos. Ela tinhaesquecido de desligar o celular.

De um modo muito complicado, eu estava ansioso com ofato de Denise vir à minha casa. Se bem que eu a visse comoela era e não concordasse com muitas coisas  —   tais quaisdedicar-se infinitamente ao trabalho, criar o filho para ser oorador oficial da turma desde os 2 anos e sistematicamente

marginalizar seus pais  — , nunca parei de me espelhar nela.Ela era esperta, educada, podia se concentrar em mim porum tempo indeterminado e era realmente muito boa em darconselhos. Sempre sentia que deveria estar alerta com ela,que deveria lhe prestar contas. E mesmo que isso tornasse asraras visitas um tanto quanto estressantes, acabava sendotambém revigorante.

O horário combinado era ao meio-dia, mas eleschegaram à 1h15min, protestando sobre o acesso à ponte.Denise me deu um beijo no rosto e em seguida pôs o braçosobre os ombros de meu pai, guiando-o para dentro de casa.Brad apertou minha mão, balançou a cabeça e foi para asala. Marcus também apertou minha mão (ele me dera umabraço uns anos atrás, mas tenho quase certeza de que foraum acidente) e imediatamente começou a me bombardear

com perguntas sobre um artigo que eu publicara no verão arespeito de calvície masculina. Embora não quisesse ser

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rude, a perspectiva de discutir tal assunto com um meninode 8 anos parecia absurda e voltei minha atenção para o queacontecia na sala, onde minha irmã discorria sobre o lugarocupado na casa pelos objetos que pertenceram à minha

mãe.

 —   As coisas parecem muito bem arranjadas  —   Deniseme disse a um canto. —  Colocou muita coisa aqui.

Queria dizer que poderia arranjar tudo muito melhor, setivesse uma casa de campo com 460 m² e uma vista para olago, como eles tinham, mas evitei. Outra coisa complicada

sobre nossa relação era que eu sabia que ela ganhava rios dedinheiro, e eu não podia evitar invejá-la.

 —  O pai foi um general quando decidiu o que trazer paracá. E, é claro, ninguém nunca mais vai conseguir entrar noporão.

 —   Diante dessas circunstâncias, a casa parece boa  —  disse Denise.

 —   Obrigado  —   respondi, um pouco agitado, comosempre ocorria involuntariamente quando recebia um vagoelogio da parte dela.

 —  Jesse me obrigou a comer comida mexicana  —  dissemeu pai.

Denise voltou-se surpresa para mim.

 —  Duas vezes —  completei.

 —  E carne de peru  —  ele continuou.  —  Você sabia quepodemos fazer almôndegas de peru?

 —  Acho que não pensei muito nisso, pai.

Meu pai sorriu para mim, como a dizer que estava

impressionado que mesmo Denise se mantivesse inalterada.

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 —   Então, em que está trabalhando?  —   ele lheperguntou.

Denise revirou os olhos. Não ficou muito claro se era o

prelúdio de um discurso sobre a sobrecarga de trabalho ou seera um modo de agradecer a Deus que tivessem abandonadoo assunto das almôndegas de peru.

 —  Ah, em um milhão de coisas. E quando é que eu nãoestou trabalhando em um milhão de coisas? A equipe estásem pique, estou organizando uma conferência no escritóriode Londres, tem duas pessoas que estão ignorando

completamente... —  Vamos, conte mais —  disse meu pai, puxando-a pelo

braço e levando-a para a sala. Sabia que pelo menos por meiahora haveria um debate entre as vantagens do velho modo deentender o sistema financeiro e o modo de fazer negócio dabrilhante protegida. Denise fingiria prestar atenção àsobservações de meu pai e ao mesmo tempo banalizaria cadauma delas. Meu pai a interpretaria como uma aprendiz tãoinflada de orgulho que não teria mais espaço para outraopinião a não ser a dela própria.

Felizmente, eles resolveram pular esse intercâmbio e euentrei na sala de jantar com Marcus em minha cola. Bradestava quase apagando, mas pelo menos mantinha umachama acesa para conversar. Ele era o vice-presidente sêniorde uma corporação que incluía algumas revistas e holdings .

Consequentemente, conhecia algumas pessoas com as quaiseu trabalhava e dava para bater um papo com ele, mesmo seeu ironizasse sua posição como especialista na indústria.

 —   Ei, como vão as coisas?  —   perguntei enquantocaminhava pela sala. Brad tinha se servido de um drinque(eu me surpreendi que ele soubesse onde ficava o bar na sala)e estava sentado em uma poltrona, olhando pela janela.

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 —  Bom, tudo bem —  disse de um modo vago, enquantodirigia o olhar para mim. Marcus foi até ele e ele tocou de levena cabeça do menino. Rapidamente, Marcus olhou ascerâmicas no armário e saiu da sala.

 —  Como estão as coisas na Lynch? —  perguntei.

 —   Bem  —   respondeu, novamente olhando de relancepara mim. —  Ando ocupado, como sabe.

 —   Ei, você soube que Ken Hurley pediu as contasda Alive  e vai ter seu próprio programa de TV?

 —  Não, não soube.

 —   O que acha das mudanças administrativasna American Week ?

Ele balançou a cabeça e comentou:

 —  Elas já vêm acontecendo há muito tempo.

A cada comentário, ele voltava a olhar pela janela,apenas para deixar claro que não tinha intenções decontinuar a conversa. Eu tentei dois lances, o que significavaque tinha esgotado meu repertório de início de diálogo commeu cunhado. Geralmente, Brad tinha muito mais a dizer doque eu a respeito desses assuntos. Presumo que ele poderiafalar sobre a American Week  por uma hora, inclusive porquechegara a comentar os problemas que impediam os escritores

de se levarem tão a sério. No modo como Brad via a situação —  “com o devido respeito” — , os escritores tinham tão poucopara contribuir com a revista quanto o clero. Tratava-seapenas de administração e venda de anúncios. Mas ele estavaperdendo uma oportunidade de ouro, uma vez que omegassalário dos escritores era provavelmente uma parte dosmotivos pelos quais a Week  não era lucrativa. Se nãoconversaríamos sobre a indústria, não sei muito bem sobre

que poderíamos conversar.

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Depois de alguns minutos de silêncio perturbador (pelomenos, para mim, era perturbador; Brad parecia bemrelaxado, tomando o drinque e olhando a rua), as palavras“você tem ido ao cinema?” estavam quase se formando em

minha boca, quando Brad disse, ainda olhando para fora:

 —   O que você sabe sobre a GruenbachCommunications?

 —   Não foram eles que compraram a Hesson no anopassado?

Brad soltou um riso meio sem graça e disse:

 —  Sim, foram eles.

 —  Não sei bem, mas acho que são a terceira ou quartamaior empresa de mídia no mundo e eles têm muitas revistasfemininas e canais a cabo para crianças e, claro, os EstúdiosQuimera e a Gravadora Quimera. Por quê?

 —  Conhece alguém de lá?

 —  Bom, o Ted Ream pertence à gravadora e eu sempreadorei suas músicas —  disse, brincando.

 —  Quero dizer se pessoalmente conhece alguém —  Bradrepetiu, como sempre sem o menor senso de humor.

Pensei um pouco.

 —   Sally Oxford, com quem trabalhei na Optimum , foipara a Senior Woman  ano passado. Não mantive mais contatocom ela depois disso, porque não costumo escrever sobremulheres na terceira idade.

Brad balançou a cabeça. Tenho certeza de que pensava:“que escritor inútil!”. 

 —  Por quê? —  perguntei novamente.

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Ele pousou o drinque e se virou para mim:

 —   Sei de fonte quase certa que a Gruenbach estátentando comprar a Lynch.

 —   Nossa! Isso é uma notícia e tanto! E qual é oproblema? Vocês não são donos de farmácias e postos paralavar carros?

 —  Não temos postos para lavar carros —  Brad disse, emum tom de voz mais elevado que o normal. Não era assim tãofácil lisonjeá-lo.  —   Eles querem as revistas. Tudo mais, vãovender.

 —   O que prova, mais uma vez, que nunca entendi omercado  —   comentei. Fiquei pensando um pouco no queacabara de dizer.  —   Então, se é por isso que eles queremcomprar a Lynch, por princípio não vão aproveitar nenhumexecutivo da Lynch.

 —  É isso o que se conclui.

 —  Você tem um bom contrato?

Brad me olhou de modo desprezível e em seguida pegouo copo de novo. Pelo menos, agora eu sabia que ele estavamenos disposto a discutir sobre minhas escolhasprofissionais do que sempre estivera. Senti um pouco de penadele. Embora eu não respeitasse muito pessoas cujo trabalhoé supervisionar indivíduos que supervisionam outros que na

verdade trabalham, eu podia me compadecer de seu medopelo futuro de seu emprego. Desse modo, a casa perto do lagopoderia ficar para depois.

Quando ficou claro que Brad não queria mais conversarsobre negócios e eu não pude pensar em mais nenhumassunto, pedi licença para ir para a cozinha verificar oalmoço.

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Pouco mais de uma hora depois, todos estávamossentados em volta da mesa de jantar. Meu pai pareciaruborizado com a conversa com Denise, como se tivesseacabado uma partida exaustiva de raquetebol. Marcus, ao

notar que havia páprica no frango, fez um pequeno discursosobre a origem dos temperos e seu uso nas diversas cozinhas.Se existe uma criança que precisa de video game , é Marcus.Pensei rapidamente que ninguém o chamava de Mark. Bradpermaneceu taciturno e distraído. Interpretaria esse fatocomo convencimento, se não tivéssemos tido aquela conversaantes. Tentei imaginar o que ele pensava. Será que ele via amesma energia no rosto de meu pai depois de sua seção comDenise? Será que ele se sentia já meio por fora, sabendo quesua mulher havia regalado meu pai com as vibrações de seusesforços profissionais, enquanto ele mesmo enfrentava umfuturo incerto na carreira? Será que ele pensava que meu pai(e, por extensão, o mundo todo) o veria como um parasita seele perdesse o cargo na Lynch e não encontrasse nada tãocedo?

 —  Você percebe que aquela empresa foi superfaturadapor anos, não é mesmo?  —  meu pai perguntou. Parecia algoque tinha surgido do nada, mas na verdade devia ser acontinuação de algo que ele e Denise haviam discutido antes. —  É certo que as ações vão cair.

 —  Nunca é assim tão simples, pai —  Denise respondeu. —   Quando se sabe tanto sobre as operações financeiras

quanto eu, percebe-se que há fatores mais sutis envolvidos.

 —  Está se referindo à Dodd?

Denise pegou o garfo para ajudá-la a enfatizar seuargumento.

 —  Nunca disse que a Dodd seria lucrativa a longo prazo.

 —  Acho que você disse que era uma das empresas maissólidas de todo o setor.

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Denise moveu o garfo pelo ar.

 —  Duvido que tenha dito isso. E quem poderia adivinharque o velho homem quebraria ao fazer o único movimento

arriscado em toda a sua carreira?

Meu pai riu:

 —  Bem-feito. E estou certo de que você aprendeu a lição,mesmo se não se lembre de todos os detalhes.

 —  Nunca disse nada a respeito de longo prazo  —  Deniserepetiu, mas concedeu-lhe um sorrisinho. Sempre me

surpreendo quando a vejo em uma conversação como essa,porque ela não tem tempo para ninguém. Acredito que elapassou quarenta minutos explicando a meu pai quãoantiquadas eram suas opiniões sobre o comércio. Aindaassim, ele era a única pessoa que lhe dizia seus erros nacara-dura e certamente apenas com ele ela se divertia quandoisso acontecia.

Meu pai parecia se deliciar com aquele sorriso. Tenhocerteza de que adorava participar da vida de Denise e de queas coisas sobre as quais ela o informava eram algo que nãocontava para mais ninguém. Era precisamente esse tipo detroca que me fazia ter tanta inveja dos relacionamentos entremeu pai e meus irmãos. Comecei a reagir como de costume:um momento de apreciação seguido de uma onda demelancolia. Mas fiquei surpreso ao descobrir que dessa vez

havia um terceiro componente: um flash  de inclusão. Porque,pela primeira vez na vida, pude me sentir como parte da vidade Mickey Sienna. Denise podia dividir a Petroquímica Doddcom ele; eu tinha Gina. Foi muito mais fácil aceitar o fato deDenise julgar meu jantar como “arrojado” e sua opinião sobreo National Voice , para o qual havia trabalhado em meu iníciode carreira, que segundo ela “era insignificante demais paraencontrar leitores interessantes”. 

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Quando o jantar acabou, fui para a cozinha lavar alouça, enquanto os outros foram para a sala. Isso era outratradição na família e eu sempre estava fora. Meu pai e osoutros filhos falavam, enquanto minha mãe cuidava da

limpeza. Quando eu tinha uns 6 anos, comecei a ajudá-la nacozinha. Ela sempre parecia surpresa com isso e sugeria queeu me juntasse aos outros; só depois, com o tempo, começoua gostar daquilo. Já estava sozinho na cozinha fazia dezminutos, quando Denise entrou e pôs a mão em meu ombro.

 —  Então, como vão as coisas com o pai? —  perguntou.

 —   Acho que ele está bem. Por quê? Preocupa-se comalguma coisa em especial?

 —   Não, absolutamente. Ele parece ótimo. Relaxado.Parece que tem mais dificuldade para andar, mas o que sepode fazer? Se não quer tratar do joelho, não adianta. Ele nãofalou nada sobre isso?

 —   Provavelmente, se quisesse, já teria telefonado para

você.

 —  Bom, não dava para saber antes, mas acho que se atéagora vocês não se mataram é porque não vai ser tãodesastroso quanto eu pensava.

Eu simplesmente sorri e voltei a lavar a louça. Não davapara considerá-la tão a sério porque na verdade ela não tinhaoferecido ajuda nenhuma.

 —   E como vai você?  —   ela perguntou depois de umminuto.

 —  Tudo bem —  respondi, dando-lhe um rápido olhar.

 —  Sabe, Jess, se achar que isso é demais para você enão quiser “admitir uma derrota”, ninguém vai condená-lo.

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 —  É sério, Denise, está tudo bem. Gosto de ter meu paipor perto.

Ela deu de ombros, como se lhe escapasse qualquer

compreensão.

 —  O pai me disse que você tem uma namorada.

 —  Ele disse isso a você?

 —   Sim, falou dela por vários minutos. Acho que ele aconsidera bem bonita. Ela é professora?

 —  Sim, do Ensino Fundamental. —  Você está levando a sério essa relação?

 —   Por que sempre me perguntam isso? Quer saber onome dela?

 —  Já sei o nome dela. Então, não está levando a sério?

 —   Não. Significa que não estamos preocupados se a

relação é séria ou não.

 —  Bom, isso é muito sofisticado.

 —   É? Pensei que fôssemos apenas realistas. É bomsaber que somos também refinados.

 —  É. Bem pós-moderno. Claro, quando se tem 55 anos ese está repetindo a mesma coisa pela vigésima vez, isso é

patético. Mas agora pode ser legal.

Ela me deu um tapinha nas costas (eu juro) e voltoupara a sala. Aqui comigo, agradeci-lhe pela ajuda.

Logo em seguida, tomamos um café e pouco depois ostrês tinham ido embora. Meu pai e eu voltamos para a saladepois das despedidas. Por um tempo, ele comentou como

Marcus era esperto e que ele andava ensinando ao meninoporcentagem e razão. Depois, ligou a televisão e assistiu ao

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final da partida de basquete. No intervalo do último tempo,meu pai botou a TV no mudo e se virou para mim com umlargo sorriso de adolescente.

 —   Ok, prometi a mim mesmo que não contaria nada,mas vou ter que lhe contar.

 —   O quê?  —   perguntei e sorri, porque ele estavasorrindo.

 —   Enquanto eu conversava com Denise, ela pegou ocelular, ligou para o assistente e falou com ele por dezminutos. E, olhe só, o assistente dela estava no escritório

porque Denise insistiu que deveria ler o relatório ainda hoje.

Virei os olhos e sorri tanto diante do prazer com quemeu pai me contava isso como do que ele me dizia. Meu paibufou:

 —  Ela é única.

 —  É um modo de dizer.

Ele ainda sorria quando levantou o dedo para mim econtinuou:

 —  E ela sempre foi boa para a sua mãe e para mim.

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Capítulo 13

Mickey sabia que tivera toda a atenção de Jessequando lhe contara a primeira parte da história, assimcomo sabia que Jesse teria permanecido lá escutando pelotempo que ele quisesse. Mickey ainda não sentia que podiaentender Jesse tão bem quanto os outros filhos, mas naquelemomento suas expressões tinham sido fáceis de decifrar. Eletambém sabia que era importante contar o restante dahistória sobre Gina. Jesse precisava ouvir. Mas, depois daparte um, Mickey se sentia como se tivesse passado vintehoras na bolsa de valores. Por que era tão diferente falar

sobre Gina e pensar sobre ela? Qualquer que fosse o motivo,Mickey era capaz de sentir o efeito por dias e dias e somenteagora, mais de uma semana depois de ter se sentado com ofilho para conversar, é que tinha vontade de continuar.

 Jesse entrara na cozinha e saíra de lá durante a manhã,tendo preparado uma tigela com cereais e resmungadoqualquer coisa sobre o piso. Seu filho certamente escreviasobre uma infinidade de assuntos, mesmo se a maior partedeles parecesse bem inofensiva. Mickey já havia conversadocom Theresa e sabido que o porteiro do prédio tinha sofridoum ataque do coração e que Maggie tinha voltado do hospitale sentia-se tão bem que comera três pedaços da torta demaçã preparada por Theresa. Ele tinha ligado a TV, mas,como era o caso de quatro em cinco vezes, não encontravanada de interessante. Ele sempre achava um mistério que,apesar de tudo que haviam filmado desde a invenção docinema, o que valia a pena ver não passava de uma semana

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de programação na TV. Desligou o controle remoto e sesentou em silêncio por alguns minutos. Em seguida,levantou-se devagarinho do sofá e foi até o escritório de Jesse.

Bateu à porta de leve e em seguida pôs a cabeça paradentro do escritório. Jesse não se virou e parecia prestes adeletar o que tinha acabado de escrever no computador.

 —  Essa não é uma boa hora —  Mickey disse com calma.

 Jesse levantou o dedo do teclado e se inclinou para trás,sem se virar.

 —  Pai, sabe qual a coisa mais fascinante sobre os pisos?

 —  O quê? —  Mickey perguntou, entrando no escritório.

 —  Não faço ideia. Esse é o problema. Aceitei pegar esseartigo de 1.500 palavras por uma ninharia e um prazocurtíssimo porque pensei que seria moleza. Mas não existenada de bom para escrever sobre o assunto.

Mickey deu um passo para trás e pôs a mão namaçaneta.

 —  Essa não é uma boa hora —  repetiu.

 Jesse girou a cadeira para observá-lo.

 —   Não é isso, estou no meio da minha crise diária  —  

esclareceu. —  O que é?

Mickey soltou a mão da maçaneta.

 —   Pensei que, se tivesse um pouco de tempo, eu lhecontaria mais sobre o que conversamos na semana passada.

 Jesse levantou a sobrancelha e ajeitou-se melhor nacadeira.

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 —  Ok, está certo. —  Fez um gesto para o pai se sentar. —  Qualquer coisa é melhor do que o que estou fazendo aqui.

Mickey sentou-se na outra cadeira do escritório. Agora

que avisara o filho sobre sua intenção, não sabia muito bemcomo começar. Não era como da primeira vez que sesentaram na cozinha, e Jesse não fazia ideia do que viria.Havia tantas coisas que Mickey gostaria de dizer, mas nãotinha certeza do próximo passo. Sem perceber, Mickeypermitiu que sua mente divagasse por um caminho por ondenunca fora quando havia testemunhas. Ele estava na portada casa de Gina, o rosto dela afastando-se, mas ainda tão

perto que ele podia sentir o calor de sua pele.

 —  Não a beijei na boca naquela noite porque não pareciaa coisa certa —  começou do nada. —  Mas depois do segundoencontro nós nos beijamos e meus joelhos até se curvaram.De onde diabos vinha aquilo?

Manhattan foi feita para a primavera, Mickey pensou aose dirigir para a casa de Gina naquela noite. No verão, o chãofrita e você se sente fraco. No inverno, o vento corta bem àsua frente e você não consegue andar mais do que algunsquarteirões sem desejar entrar em algum lugar. Mas, naprimavera, a Park Avenue é um longo tapete de boas-vindas,convidando-o a passear pelo tempo que desejar, admirando aarquitetura e os menus dos restaurantes, tomando nota detoneladas de itens em liquidação. O tempo é bom. Não épreciso correr na primavera. A menos, é claro, que esteja acaminho de se encontrar com a mulher mais bonita e maisfascinante que já conheceu.

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Mickey havia ido à ópera somente uma vez. Logo depoisque ele chegara à QBK, saíra com uma mulher chamadaMarla (ou será que era Marsha?). Para se ambientar nacidade, ele a levara para ver La Traviata  no terceiro encontro,

acreditando que isso era algo que a pessoa que ele gostaria dese tornar faria. Passara o primeiro ato tentando se convencerde que ele se comoveria mais se transformasse aquilo empaixão e o segundo ato achando que era compreensível queele achasse tudo incompreensível. No fim do espetáculo,tinha decidido que tanto a ópera como Marla eram incapazesde prender o interesse dele. Seria o último encontro e Mickeynão perderia nada.

Porém, se ir à ópera significava um encontro com Ginavestida daquele modo, ele iria toda semana feliz. Ela traziaum vestido de seda cor de creme; seus cabelos estavampresos e ela tinha um chapéu no mesmo tom que chamava aatenção para seu olhar luminoso. Estava tão elegante quantouma estrela de cinema, mas com um sorriso e conduta que atornavam eminentemente mais acessível. Ao saírem do

apartamento, Gina pegou no braço de Mickey. Fora suaimaginação ou ela andava mais perto dele hoje, inclinando-seum pouco mais em sua direção?

 —   Conhece Pagliacci ?  —   Gina perguntou, ao entraremno táxi.

 —   É aquela sobre os palhaços, certo?  —   Mickey disse,

hesitando. Ele queria ter se informado melhor sobre a ópera aque iriam assistir, mas não conseguira sair do escritório.

 —  Sim, os palhaços —  disse Gina, divertindo-se. Mickeyse sentiu meio mal por ser ignorante, mas, ao ver que nadana expressão dela sugeria que ele devesse se sentir daquele jeito, relaxou.

 —  Eu já lhe disse que sei muito pouco sobre o assunto

 —  ele esclareceu.

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Gina deu um tapinha no braço dele:

 —  Prometo que vou facilitar as coisas pra você.

Estou certo disso, Mickey pensou. Com você, levantar oEmpire Building seria fácil.

A Metropolitan Opera House fervia com as pessoas quecelebravam algo que amavam. Embora ele não pudesse,dessa vez, considerar a si mesmo um amante dessa arte,poderia certamente apreciar o efeito que ela tinha em outraspessoas. Nesse auditório, os ricos e os bem-educados sereuniam vestidos finamente para testemunhar as

performances mais conceituadas em cada campo. Todavia,Mickey sabia que alguns membros da plateia estavam aliapenas para aplacar o oba-oba das pessoas e que algunsoutros tinham vindo exclusivamente porque acreditavam queera um ponto de referência acessório, mas a maioria vieraporque não havia melhor forma de entretenimento no mundo.

Por boa parte do primeiro ato, Mickey teve que dividir

sua atenção. O canto era comovente, mesmo em línguaestrangeira, mas ele achava difícil acompanhar. Paracomplicar, o braço de Gina ainda estava entrelaçado ao seu eela o apertava nas cenas mais dramáticas. Embora issopudesse prender sua atenção para o que acontecia no palco,ele estava com a cabeça em outro lugar; por exemplo,pensando na proximidade e na forma do tornozelo dela e nafragrância doce do perfume.

Mas, no segundo ato, talvez inspirado peloarrebatamento da expressão de Gina, a ópera começou a teralgum efeito nele. A linguagem começou a se tornar maisclara, o poder de comoção começou a penetrar seu coração.Mickey se sensibilizava com a intensidade da música e otormento na voz dos cantores. E, quando se virou para Gina eviu-a chorar compulsivamente, a performance cresceu. No

final do ato, Mickey olhou novamente para Gina. Ela se virou

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para ele, os olhos brilhantes, e sorriu. Somente aí foi quepercebeu que também havia lágrimas em seus próprios olhos.

Ao final da apresentação, Mickey se levantou como os

outros e aplaudiu, mas se sentou novamente, enquanto aspessoas procuravam a saída. Ele estava extremamentecomovido.

 —  Você gostou? —  Gina perguntou.

 —  Mais do que eu poderia imaginar —  respondeu, aindaum tanto intimidado.  —   Obrigado por ter me trazido aquihoje.

 —  Minha mãe vai adorar saber que o bilhete dela não foimal aproveitado  —   disse, contente.  —   Foi bom ver quetambém chorou naturalmente. Muitos homens na plateiapassam o tempo enxugando as lágrimas dos olhos e fingindoque entrou um cisco.

Naquela altura, Mickey enxugou os próprios olhos. Não

percebera que as lágrimas haviam rolado por seu rosto. Ginaentrelaçou os braços de novo no dele e esperaram emsilêncio, sentados, que as pessoas saíssem do teatro. No fim,ficaram apenas eles e os funcionários da casa.

 —  Gostaria de voltar logo para cá  —  disse Mickey, apósum longo silêncio.

 —   Podemos voltar quando quiser  —  Gina respondeu, o

que muito o entusiasmou.

 —   Provavelmente, eles querem que a gente vá emboraagora, certo?

 —   Provavelmente. Nunca fiquei tanto tempo depois dofim do espetáculo.

Quando botaram os pés para fora, viram que a fila do

táxi era imensa.

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 —   Acho que não deveríamos ter demorado tanto parasair  —   comentou Mickey, mortificado. Gostaria de poderalugar uma limusine para levá-la aonde ela quisesse.

 —  Vamos a pé.

 —  Você não se importa?

 —   Eu aparento ser muito delicada? Está uma noitelinda. Vamos aproveitar.

Caminharam na direção da Quinta Avenida e emseguida para o sul, com calma. Não havia dúvida de que Gina

caminhava mais junto dele. Ou era ele que estava mais pertodela? Fosse como fosse, Mickey não tinha pressa de chegar aseu destino. Seria extremamente feliz se caminhasse ao ladodela até o fim do mundo.

Enquanto se dirigiam para o sul, Gina lhe disse:

 —  Se um homem quisesse realmente impressionar umamulher, ele saberia exatamente o que fazer agora.

Mickey estava perplexo. Queria impressioná-la mais doque tudo, mas não sabia direito a que se referia. Ele deve terparecido confuso, porque Gina deu uma gargalhada e por uminstante se desvencilhou dos braços dele.

 —  Schrafft’s? —  ela disse.

 —  Sorvete? —  Mickey quis se certificar.

 —  Existe algo melhor?

 —  Na verdade, sim —  respondeu, ganhando de volta umsenso de compostura. —  Schrafft’s com você. 

Mickey ainda teria outra surpresa: Gina pediu trêsbolas, cobertura de chocolate, nozes e creme. Ele havia saídocom tantas mulheres que mal comiam qualquer coisa pormedo de parecerem deselegantes. Obviamente, Gina não

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tinha essas frescuras e, como na maioria das coisas a seurespeito, Mickey achou tudo muito charmoso. Ele seimpressionava com o fato de que era tão imprevisível e comcomo passava de um estado de absoluta seriedade para um

de descontração, dos modos despretensiosos para umainfantilidade desavergonhada.

 —  Tem um pedacinho de chocolate aí no topo. Você nãogostou? —  ele brincou.

 —  Eu adoro sorvete.

 —  Não poderia nunca adivinhar.

 —   Agora você sabe que não posso vir a nenhum lugarpróximo de Schrafft’s, na verdade, nenhuma sorveteria, semparar para tomar um sundae .

 —   Está me dizendo que sair andando do teatro foi umplano mirabolante para dar uma passada aqui?

 —  Você está começando a me conhecer muito bem. Soumuito malvada?

 —  Não dá nem para imaginar!

Quando voltaram para a rua, Mickey foi até a esquina.

 —   Suponho que queira que eu chame um táxi, agoraque terminou o sorvete.

Gina procurou o braço dele.

 —   Não, está muito agradável aqui fora e estouplenamente satisfeita depois de comer pecan  e creme. Agora,preciso apenas de um homem bonito que me acompanhe atéem casa.

Se Mickey estivesse sozinho, a caminhada até a casadela não levaria mais do que vinte minutos. Em vez disso,levou mais de uma hora: Gina apoiando-se no braço dele

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para xeretar uma vitrine; perguntando a opinião dele arespeito de chapéus e vestidos; descrevendo como ele ficariacom tal blazer ; revelando alguns segredinhos sobre seuscolegas na prefeitura e certos lojistas.

 —   Violações das Normas de Saúde  —   ela disse,apontando para um restaurante caro do outro lado da rua.

 —   Deve ter confundido o lugar  —   Mickey respondeu,lembrando-se de que comera lá poucos meses antes.

 —  Não estou me confundindo. Provavelmente, violarammais uma agora. Vamos entrar e dizer ao maître  que somos

da prefeitura, apenas para ver a cara dele.

 —  Retiro o que disse: na verdade, você é muito malvada.

Um minuto depois, passaram por uma loja debrinquedos cuja vitrine expunha um enorme urso de pelúcia.Gina deu risada e contou que havia poucos anos que insistirapara o pai comprar-lhe algo parecido.

 —   Aquilo foi uma manipulação vergonhosa da minhaparte, não foi? Mas eu adoro mesmo aquele bichinho. Pensono meu pai e me conforto toda vez que olho para ele. Acreditoque, por ser homem, você não tenha nada parecido.

 —  Não, não tenho nenhum urso de pelúcia.

 —  Algo com valor sentimental?

 —  Não sou um tipo muito sentimental.

 —  Ora, deve haver algo que faça você ficar todo mole pordentro apenas de olhar.

Mickey pensou um pouco antes de responder.

 —  Uma gravata —  disse com ternura.

 —  Borboleta?

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 —   Sim, e é bonita mesmo.  —   Mickey imaginouclaramente a gravata antes de abrir a boca e sentiu algoterno. —  Minha irmã Theresa passou por uns problemas nosúltimos anos, mas quando eu comecei a trabalhar na QBK

ela de algum modo foi às compras e me deu essa belagravata. Só a usei uma vez e deixei cair molho nela. Não voumais usar, porque acho que a mancha não vai sair. Mas todavez que vou escolher uma gravata, lá está ela. E “me faz ficartodo mole por dentro”, como você diria. 

Gina parecia emocionada com a história. Ela apertou obraço dele.

 —  Isso é fofo. Sua irmã deve ser muito importante paravocê.

 —  Sempre vai ser. Não importa o que aconteça  —  disse,quase para si.

Depois disso, eles andaram devagar e em silêncio, portalvez dez quarteirões, antes de falar de novo. Mickey quis

saber se a súbita falta de animação por parte dela era umíndice de que, ao falar de Theresa, havia coberto a noite comuma mortalha, mas ao olhar de relance para ela mudou deopinião.

Quando finalmente chegaram à casa de Gina, ela virou-se para ele e pegou suas mãos nas dela.

 —   Não tem problema nenhum em ser sentimental.Significa que é uma pessoa de coração aberto.

Mickey sorriu para ela.

 —  Talvez possa apreciar esse fato —  ele declarou.

 —   Muitos homens querem ser sentimentais e nãoconseguem. Você tem sorte de ter isso dentro de si.  —   Ela

hesitou e olhou para baixo. —  E eu também.

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Gina apertou as mãos e em seguida olhou para ele, seusolhos novamente brilhando.

 —  Então, para onde vai me levar no fim de semana?  —  

ela perguntou.

Mickey riu.

 —  Você é mesmo muito autoconfiante.

 —   Quer dizer que não quer sair comigo no fim desemana?

 —   Ah, não foi isso o que eu disse. Apenas estouacostumado a escolher as datas eu mesmo.

 —  Sinto muito. Vou morder a língua da próxima vez.

 —  Isso seria imperdoável.

Gina lançou um olhar furtivo para ele:

 —  Então, ainda não me contou para onde vamos.

Mickey considerou algumas opções e em seguida disse:

 —  Jantar dançante no Carlyle. Que tal?

 —  Adorei! Eu vou.

Ficaram quietos, um segurando a mão do outro,olhando-se por um longo tempo. Mickey considerou o fato de

que nenhum de seus namoros se comparava ao que haviasentido ao sair duas vezes com Gina. Mal podia esperar pelopróximo sábado e todos os outros dias em que a veria.

Finalmente, beijou-a. Que seus lábios fossemindescritivelmente macios e convidativos era algo esperado. Oque o surpreendeu foi a onda de emoção que o arrebatoudurante o beijo. Mickey sentiu naquele momento que soltara

algo de dentro de si, que ele atingira outro patamarsentimental, que ainda não conhecia. Queria passar o resto

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da vida assim. Eles prolongaram o beijo; nenhum queria seseparar. Quando, enfim, os lábios se descolaram, Ginaabraçou-o, o rosto colado no dele. Ao se afastar, Mickey selembrou da sensação de proximidade com ela, com a pele de

seu rosto, e soube que guardaria essa lembrança parasempre.

 —  Até sábado —  ela sussurrou.

 —  Até —  ele repetiu.

Gina deu um passo para dentro do prédio e em seguidavirou-se para Mickey, presenteando-o com outro sorriso. Ele

não tinha bem certeza se as pernas o sustentariam até emcasa.

Agora, estava sentado no escritório de Jesse,completamente imerso nas memórias. Estava esgotado.Parecia que havia caminhado meio século. Ele olhou para orosto do filho e percebeu que estava emocionado. Mas Jessese desapontaria caso pensasse que Mickey continuaria. Nãohavia jeito de ele contar mais nada.

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Capítulo 14

Depois de me apresentar o segundo capítulo dasaga,  meu pai passou muito tempo no quarto. Contar essa

história o comprometia muito. Quis saber o que na verdadelhe tirava tanta energia. Ele tinha baixado o arquivo inteirosobre seu relacionamento com Gina, antes de começar acontar, um grosso volume de memórias que requeria queinterrompesse as outras funções? Era possível que, depois defalar dela por um tempo, ele fizesse um flash forward  até orompimento e a lembrança desse momento amargo oesgotasse?

Pela primeira vez, considerei a possibilidade de quetalvez ele estivesse inventando tudo. Talvez fosse uma espéciede alegoria, cuja moral eu fosse entender no final. Talvez omotivo pelo qual não se estendesse no relato era porque nãohavia imaginado o suficiente.

Qualquer que fosse o motivo, era absolutamentefascinante. Não podia imaginar como era interessante ouvir

meu pai contar sobre um caso de amor e todas as suasperipécias. A Nova York dos anos 1940. Pagliacci  noMetropolitan. Schrafft’s (a gente tinha ido à única que restarana City quando eu era pequeno; agora, a lembrança de láteria outro significado). Sabia um pouco de todas essascoisas, mas nunca antes as havia considerado sob o ponto devista de meu pai na juventude. Um jovem apaixonado.

O motivo pelo qual sabia que meu pai estava trancadono quarto era que eu havia passado boa parte do dia

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buscando inspiração para esse maldito artigo sobre pisos eandando de um lado para o outro na casa. Lá pelo início datarde, eu me conscientizei de que esse artigo não eradiferente de nenhum outro que eu escrevera e que eu sabia

disso muito bem quando me comprometi a redigi-lo. Queaquilo me tivesse pegado de jeito —  e que eu demorasse tantopara terminar, ou mesmo começar a compor a maisrudimentar das reportagens —  não tinha nada que ver com amatéria em si, mas com o fato de que por vários meses eu sótinha pego isso para escrever. Conheço uma série de pessoasque levantam uma grana distribuindo artigos tais como essepara diversas revistas, frequentemente, várias vezes por dia.Isso requeria certa conduta e, claro, certo talento, mas eu nãopodia deixar de pensar que, para um escritor, era oequivalente a fritar hambúrgueres. Não foi por isso queescolhi esta profissão e estava ficando com medo de que, aoaceitar um trabalho que não fosse desafiador ou edificante,eu estivesse perdendo a habilidade de contar históriasdesafiadoras e edificantes. Meus artigos caíam em ouvidos

moucos. Logo, meio ano a pensar se o editor quereria fritascomo acompanhamento dos artigos.

Por fim, dei vida ao artigo sobre os pisos. Uma vez quehavia sucumbido para a realidade, segundo a qual nenhumleitor se importaria com o ritmo da escrita ou com o estilo,estando apenas preocupado em se informar claramente,acabei terminando em poucas horas.

Às 16h30, meu pai ainda no quarto (ele devia estardormindo), decidi ir à peixaria para preparar um peixe para o jantar. Eles tinham linguado, o que era bem raro, e eu decidiesbanjar.

Quando cheguei em casa, meu pai estava sentado nasala assistindo às notícias. Isso era incomum, uma vez queele costumava negociar à tarde. Os negociantes on-line

davam seus melhores lances na última hora; então, ele ficavana frente do computador até umas 18h30. Claro que o

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volume da TV estava estourando. Ainda não desistira de lhepedir que baixasse, mas simplesmente me rendi ao fato deque precisaria fazer esse pedido insistentemente. Naquelemomento, eu simplesmente não me importava com isso.

 —  Ei, pai —  chamei-o o mais alto que pude. —  Vou fazerpeixe para o jantar.

 —  Ótimo.

 —  Não vai comprar nada?

 —  O mercado pode sobreviver sem mim por um dia.

Se eu fosse mais alarmista (como meu irmão, porexemplo), teria encontrado um motivo de preocupação nessecomentário. Para mim, foi mais um sinal de que estava forado jogo.

Fui para a cozinha, pus o peixe na geladeira e comecei apensar nos vários modos como podia prepará-lo. À vinagrete,com azeite de oliva e alcaparra, com tomates picados emanjericão.

Então, pensei que, na verdade, meu pai adoravalinguado. Minha mãe preparava esse peixe com certaregularidade e era uma das lembranças mais vivas de minhainfância. Porém, quando comecei a comer fora de casa e acozinhar, fiquei desconfiado de pratos como esse. Erainsípido, desnecessariamente rico e terrivelmente fora de

moda. O fato de que meu pai adorava linguado era apenasoutro sinal de que seu gosto era unidimensional. Entretanto,considerando isso no contexto das histórias que contavasobre um homem que vivia no pós-guerra, minha percepçãomudou. Percebi que era o tipo de prato que aprendera aapreciar nos restaurantes elegantes de Nova York nos anos1940. De repente, ele não era mais um velho que gostavatanto de manteiga, mas um gourmand  de outros tempos.

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Decidi cozinhar para ele naquela noite. Usaria um livrode receitas francesas de minha mãe, que pegara em sua casaquando ela morrera. Não era assim tão difícil preparar umlinguado, mas queria ter certeza de que ficaria bom.

Quando servi, a expressão de satisfação no rosto deleme fez entender que eu tinha sido bem-sucedido. Quase o vivoltar no tempo, se não para mesas com toalhas de linhobranco e garçons formais, então para sua própria sala de jantar. Quis saber se viajar para o passado duas vezes nomesmo dia poderia fazer mal à sua saúde.

 —  Você sabe cozinhar assim? —  De vez em quando. E, como amanhã à noite vamos

ter almôndegas de soja, pimentões à mexicana e iscas depeixe, pensei em fazer algo diferente.

Ele me deu um sorriso e começou a comer. Aos poucos,estava apreciando meu modo de cozinhar e pude ver queestava aliviado e satisfeito por comer linguado. Praticamente,

colava o prato no peito.

 —   Está brincando quanto às almôndegas, não é?  —  disse, depois de umas garfadas.

 —  Sim, claro, não temos mais iscas de peixe.

Comi mais um pouco. Estava mesmo uma delícia. Pelomenos, tão bom quanto o que minha mãe preparava. E pude

ver por que alguém se apaixonava por um prato como esse,especialmente se era ingenuamente ignorante a respeito denutrição.

Pensar em minha mãe cozinhando me levou para umadireção diversa da que, por certo, meu pai estava. Tinhapequenos acessos de nostalgia imaginando minha mãe felizna cozinha, o que me trouxe de volta inúmeras conversas que

travara com ela depois da escola. Ela era inteligente, aberta eessencialmente maternal. Mesmo uns meses depois que tirei

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a carteira de motorista e pouco depois do romance louco comKaren, eu nunca me rebelei contra ela. Para mim, ela era apessoa mais confiável do Universo.

Mas de modo nenhum ela se parecia com a Ginadescrita por meu pai. Não era cosmopolita, elegante ou capazde elaborar provocações inteligentes, tudo o que o GrandeAmor da vida de meu pai era. Minha mãe era carinhosa,responsável e generosa ao extremo, mas esses atributosobviamente não somavam muita coisa ao status  de GrandeAmor aos olhos de meu pai. E, de algum modo, percebi quenem nos meus, caso eu ainda estivesse atrás desse tipo de

coisa.

De repente, me senti infiel à minha mãe pelo fato deestar tão intrigado com a história de Gina. Queria perguntara ele um milhão de coisas, a começar por como ele tinhatrocado Gina por minha mãe, mas não sabia muito bem comoperguntar, nem se queria mesmo saber a resposta. Em vezdisso, escolhi um caminho mais longo.

 —  Então, pai, por que não ficou na City depois que secasou com a mãe?

Meu pai molhou o pão no molho de manteiga e olhoupara mim.

 —   Estava cansado da City naquela época. Era só bompara trabalhar, claro. E sua mãe queria mesmo se mudar

para o campo.

A noção de que as ruas congestionadas de New Jerseyalguma vez foram consideradas “campo” me fez rir, masentendi que era assim no início dos anos 1950,principalmente em comparação a Manhattan.

 —  Mas você adorava a City, né?

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 —  Eu acatava o que sua mãe queria. Há muita coisa naCity, sabe. Ela pensava que não era um dos melhores lugarespara criar uma família.

 —  Então, vir morar aqui foi ideia dela?

 —  Sim, foi.

 —  E para você tudo bem?

Ele me olhou meio confuso.

 —  Eu confiava na sua mãe. Pensava que ela sabia o que

era melhor para nós.Palavras de um verdadeiro parceiro. O diretor de

empresas que deixa a sede para a filial. Estava tendo asrespostas que queria, mas não, eu percebi, as mais óbvias.Queria que houvesse algum romance naquela história.Sempre pensei que no início da relação eles eram românticose queria ouvir isso dele. Mas temia que, se perguntassediretamente, meu pai poderia entender que a história de Ginaestava me perturbando de algum modo e então ele decidiriaparar de contar. O que, por sua vez, me fez sentir novamenteque estava traindo minha mãe.

O jantar terminou. De modo incomum, ele se levantou elevou ambos os pratos para a pia.

 —   Então, você preparou mousse de chocolate como

sobremesa?  —  perguntou. Era outra especialidade de minhamãe.

 —  Vá sonhando. Tem melão, se quiser.

Eu sabia que o joelho de meu pai estava piorando. Também me parecia que ele flexionava os dedos com mais

frequência, tentando melhorar a circulação. Fomos aomédico, que nos informou que havia pouca coisa a fazer para

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remediar, a não ser operar o joelho. E a isso meu pai seopunha ferrenhamente.

 —  O que vai fazer, trocar pedacinho por pedacinho do

 joelho? Se eu cair, eu caí; não tem nada de mais.

Sabia que chegaria um tempo em que ele teria menosmobilidade e talvez necessitasse de um andador ou de umacadeira de rodas. Mas esses pensamentos eram aindadistantes, enquanto nossas inumeráveis trocas verbais eramconfirmadas. Tenho muitas razões para acreditar que ele eratão esperto quanto antes, excetuando aquela manhã em que

o encontrei um tanto desorientado. E na noite seguinte aorelato da parte dois da história de Gina.

Geralmente, tenho sono pesado. Provavelmente tem algoque ver com o fato de que tantas pessoas em minha famíliafalam alto. Se eu quisesse dormir, teria que mergulhar fundono inconsciente. Isso explica por que não ouvi a porta de meuquarto se abrir naquela noite e por que eu provavelmenteperdi o início do episódio.

 —  Teddy... Ted —  ouvi meu pai dizer, ao me sacudir.  —  Vamos, levante-se. Tenho que conversar com você.

Eu cambaleei de sono e me sentei devagar na cama:

 —  Pai...

 —  Ted, desculpe se acordei você. Mas é a única pessoa

com quem posso conversar sobre isso. Fiquei fora de casa atétarde, a fim de ter certeza de que o pai já estivesse dormindoquando eu chegasse. Ele está me deixando louco.

 —   Pai  —   repeti com mais firmeza. Ele ainda seguravameu ombro e olhava na minha direção, mas mesmo compouca luz dava para notar que ele não olhava para mim, masatravés de mim.

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 —  Ele quer que eu comece a trabalhar com ele na loja, Ted. Você é a única pessoa que sabe o quanto detesto aquelelugar. Não quero acabar meus dias na loja. Tem que me dizero que devo fazer.

Pensei que talvez ele estivesse tendo um ataque desonambulismo e pensei em um modo de levá-lo de volta paraa cama sem acordá-lo. Saí de debaixo das cobertas.

 —  Sei que é o caçula, mas você se dá melhor com o pai.O que acha que eu devo dizer para ele?

 —  Pai, ouça...

 —   Sim, “pai, ouça”... Como se isso realmente fosseajudar.

Aquilo me pegou de surpresa. Até onde sei, sonâmbulosnão respondem a estímulos externos.

 —  Pai, eu não sou Teddy.

 —   Você quer que eu diga a ele que não sou você? Elesabe disso. Não sou musculoso. Não vou ser um herói deguerra. A você, ele não pediria isso.

Agora eu estava cagando de medo. Estavacompletamente despreparado para esse tipo decomportamento.

 —   Quer que eu converse com ele?  —   perguntei,imaginando se seria útil entrar no jogo.

 —   Ele vai achar que sou um covarde, se falar no meulugar.

 —  Não vou deixar que ele saiba que você veio conversarcomigo. Vou só perguntar quais são os planos dele para a lojae, quando ele me revelar, vou dizer que é uma má ideia.

 —  Acha que isso vai funcionar?

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 —  Pode ser. Sabe, sempre tive jeito com o pai.

Ele me abraçou em seguida e me olhou direto nos olhos.Será que podia ver as lágrimas?

 —  Eu amo você, Ted. Não sei o que faria sem você. Nãovai deixar que ele descubra nada, né?

 —  Não vou dizer uma palavra.

 —  E acha que isso vai funcionar?

 —  Vou dar o melhor de mim.

Ele se levantou da cama e foi até a porta. Voltou-se paramim e disse:

 —  Não sei o que faria sem você, Ted. —  Ele tremia.

Ele saiu do quarto e eu me sentei na mesma posição,creio que por trinta minutos. “Meu Deus”, pensei, “e se meupai estiver enlouquecendo?” 

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Capítulo 15

Por razões óbvias, não dormi muito bem aquela

noite. Na manhã seguinte, liguei para Marina do quarto econtei a respeito do encontro com meu pai. Ela me deualgumas possíveis razões para aquilo ter acontecido e tentoume acalmar, mas dessa vez não teve sucesso.

Quando desliguei o telefone, ouvi meu pai pela casa. Fuipara a cozinha, mais hesitante do que nunca em minhaprópria casa. Só faltava o cabelo dele ter crescido horrores

durante a noite e ele declamar coisas absurdas como ospregadores do Evangelho. Em vez disso, parecia relaxado àmesa, tomando café e lendo jornal.

 —  Ei, pai —  disse, titubeante.

Ele levantou os olhos do jornal e me lançou o mesmoolhar claro e preciso que me lançava toda vez (exceto, é claro,quando evitava a troca de olhares).

 —  Ei, Jess. Dormiu bem?

 —  Na verdade, não. E você?

 —  Ah, você sabe. Sempre durmo até umas 5h30, depoisfico deitado na cama e aí decido me levantar. Se isso significadormir bem, então foi o que aconteceu.

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Nada em seu rosto indicava que estava escondendo algode mim. Claramente, não se lembrava de ter “falado” commeu tio à noite.

Servi-me de café e me sentei perto dele.

 —  Como tem se sentido ultimamente, pai?

Baixou o jornal.

 —  Eu não vou operar o joelho —  disse, firme. —  Desista.

Levantei as mãos em uma atitude de defesa.

 —  Nunca mais vou mencionar isso. Essa é a única coisaque o aborrece?

Baixou os olhos, linguagem universal para “não fuitotalmente honesto com você”. 

 —  Que mais? —  continuei.

Ele me olhou de novo e flexionou o braço direito.

 —   Não sei o que aconteceu com meu braço. Às vezes,formiga. Às vezes, sinto frio. Agora, está perfeito.

Não se lembrava mesmo de nada.

 —  Quer consultar o Dr. Quigley?

 —  E o que ele pode fazer, recomendar uma cirurgia no

braço?

 —  Você sempre gostou do Dr. Quigley, pai. Sabe que eletem o dever de lhe explicar todas as alternativas detratamento quando diagnostica um problema.

 —   E é meu dever mandá-lo para o inferno se eu nãogostar dessas alternativas.

 —  Algo do gênero.

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Ele moveu de novo o braço, como se isso prevenisse osproblemas.

 —  Eu não quero consultar o Dr. Quigley. Se piorar, nós

vamos; mas agora estou bem.

Pegou de novo no jornal. Fiz o café da manhã e observeise ele emitia algum sinal de diminuição da capacidademental. Só consegui ler o editorial do Times . Querendo metranquilizar com a ideia de que ele ficaria bem, fui para oescritório meia hora mais tarde que o normal e, quando o fiz,me convenci de que ele estava bem, pelo menos por ora.

Não esperava que esse fosse um dia de trabalhopromissor. Tinha uma entrevista com um diretor de empresaàs 13h30, que até o momento não me dava nenhuma cargade adrenalina. Não dava para começar a escrever nada antesde falar com ele. Então decidi botar o escritório em ordem:arquivar umas coisas, talvez uma reportagenzinha sobrefinanças e orçamentos, talvez telefonar para alguns editores eagendar um almoço. Depois de toda essa adrenalina, acheique não faria mal nenhum tirar uma soneca para botar osono em dia, depois daquela noite. Marina e eu iríamos a umconcerto de câmara mais tarde e acho que ela não gostaria seeu roncasse em seu ombro.

Eu estava empilhando papéis em vários espaços vaziospelo chão quando Aline Dixon ligou. Ela era editora sêniorda Foodand Living  e a gente trabalhara em conjunto em

alguns artigos ao longo dos anos, embora muito menos doque eu gostaria. Adorava escrever para aquela revista, poistanto “comida” quanto “habitação” eram assuntos pelos quaisme interessava de verdade, mas definitivamente tinha umcontrato estranho com eles, porque quase nunca meescalavam. Nunca consegui me estabelecer como umgourmet  e achava que isso dificultava o trabalho quando nãose frequenta o meio. De vez em quando, Aline meencomendava um artigo depois que todos os primeiros da

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lista tivessem recusado, estou certo disso (“Não sei direito porque os leitores querem outro artigo sobre queijo cheddar , masparece que é isso mesmo. Acha que pode render 3.500palavras?”). Assim como era verdade com a Tapestry  e com

outras revistas, gostaria de contribuir com elas com maiorfrequência, mas sempre levava os boatos a sério, sempreentregava depois do prazo e sempre dedicava a eles maisatenção do que devia.

 —   O que você sabe sobre Grant Hayward?  —   elaperguntou.

 —  O Dono de Vinhedos Rock and Roll?Ela riu diante de minha entusiasmada descrição,

sempre citada na mídia como epíteto daquele homem.

 —  Isso mesmo.

 —  Sei que ele começou em Sonoma, há mais ou menosvinte anos, cuidando de butiques de vinho bem conceituadas

e de algum modo fez nome entre as celebridades da CostaOeste. Sei que começou o negócio com um investimento de250 dólares e quando começou a sair com essas pop

stars  seguiu uma dieta rigorosa e passou a usar Versace.Depois disso, ele organizou uma série de concertos de verão eacho que aparece na Rolling Stone   com a mesma frequênciacom que aparece na sua revista. O vinho é mesmo muitobom, entretanto, e sempre ouvi dizer que ele é um cara legal.

 —   Nas poucas vezes que o encontrei, ele foi muitosimpático  —  ela completou  —   e o vinho, na minha opinião,está ainda melhor. Mas tem razão a respeito da exposição namídia. Às vezes, penso que isso atrapalha a percepção que aspessoas têm sobre o que ele faz. Já ouviu falar do NewCollective?

 —  Agora, você me pegou. Por acaso é uma nova banda

que ele descobriu?

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 —   Talvez não seja uma banda, mas um bando. Naverdade, é um pouco espantoso. Certamente você ouviu dizerque as mudanças na economia arruinaram as finanças dosvinhedos da Califórnia. Muitos dos cultivadores saíram do

negócio ou tiveram que vender para estabelecimentosvinícolas maiores. Hayward juntou um bando desses caras,subsidiou suas operações, tomou conta essencialmente desuas preocupações financeiras e mantém todos elestrabalhando juntos como uma moderna cooperativa decultivadores de vinho.

 —  Mesmo? Não dá para acreditar que essa notícia não

tenha saído em nenhum programa americano decelebridades.

 —   Muito curioso, né? Hayward está evitando fazerpropaganda disso. Não quer que os repórteres se intrometamnessa arte. Demorou seis meses para que nós oconvencêssemos a mandar um jornalista lá.

 —  Nossa!

 —  É. Típico de Grant Hayward. Então, você topa?

Quando ela fez essa proposta, comecei a suar frio. Oseditores não costumavam me ligar para me oferecer coisasassim.

 —  Eu?

 —  Hayward quer que seja você.

 —  Ele quer que seja eu?

 —  Foi porque leu sua matéria sobre “panquecas” no anopassado.

 —  Adorei escrever aquele artigo.

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 —  Bem, a gente adorou ler. Ele gostou da parte em queescreveu sobre a dedicação imensa dos confeiteiros depanqueca. Ele salientou isso.

Eu não estava acreditando! O simples fato de quealguém como Grant Hayward tivesse lido um artigo meu jáera lisonjeiro. Que quisesse que eu escrevesse sobre ele eraalgo inconcebível.

 —  Sim, acho que vou gostar disso.

 —   Ótimo! Pensamos que poderia passar uma semanacom ele e o Collective, a fim de entender bem a rotina deles.

Queremos que escreva sobre Hayward, claro, mas tambémsobre os outros produtores. É uma grande oportunidade essaque Hayward está nos oferecendo, dando acesso exclusivo, ea gente vai fazer uma baita promoção, então queremos que oartigo seja bem denso.

 —  Quando?

 —  Me desculpe por não ter avisado antes, mas ele querque esteja lá na semana que vem.

Meu primeiro pensamento foi: “Na semana que vem?Nenhum problema. Poderia pegar o primeiro voo, se elequisesse”. 

Meu segundo pensamento foi “meu pai”. Certamente,não poderia deixá-lo sozinho.

 —  Algum problema? —  Aline perguntou.

 —   Não, não, vai dar. Tenho que resolver umas coisasantes, mas dá tempo. Vou ligar para você ainda hoje paradiscutirmos os detalhes.

Desliguei, passei a mão na testa e considerei as opções.Dizer “não” não era uma delas. Essa seria a matéria de minha

vida, o tipo da coisa que eu poderia usar para negociar

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matérias em grande estilo, sem mencionar que eu meinsinuaria na equipe da Foodand Living . Liguei para oescritório de Denise e, para minha sorte, ela pôde atender.

 —   Tenho uma grande matéria para redigir  —   disse,quando ela entrou na linha.

 —  Ei, bom para você  —   respondeu com uma ponta deentusiasmo.

 —  O caso é que eu preciso ir para o Norte da Califórniapor uma semana.

 —  E como vai fazer com o pai? —  perguntou, seca.

 —  Por isso, liguei para você.

 —  O que quer dizer?

 —  Acha que pode me dar uma mão?

 —  Como dar uma mão? —  Tinha certeza de que não era

nada intencional. Ela literalmente não fazia ideia de como meajudar.

 —  De repente, o pai poderia ficar na sua casa enquantoeu estivesse fora.

 —  É uma péssima ideia.

 —  Por que péssima? Ele ama você e faria qualquer coisa

que dissesse. Vocês podem conversar sobre o mercado deações ou a fusão de duas empresas e ele vai pensar que estáde férias. Você só precisa dar-lhe de comer e um lugar paradormir.

 —  Faz alguma ideia de como é a minha vida?

 —   Claro que sim, Denise. Você me conta toda vez quenos vemos.

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 —  Bem, então você acha que dá para encaixar meu painela? Não acredito que pensou que daria.

 —  Esquece. Vou pensar em outra coisa.

 —   Ei, Jess, isso faz parte do acordo. Se tivesseconcordado conosco em botá-lo em uma casa de repouso, nãoteria esse problema agora. Fico surpresa que não tenhapercebido antes.

 —  Obrigado pelo conselho valioso, Denise. Com certeza,tem outras coisas para fazer agora.

Em seguida, liguei para Matty, mas a mensagem foiquase a mesma. Ele estava muito ocupado para largar tudo evoar de Chicago (bom, pelo menos, havia algo de razoável) eera exatamente com esse tipo de fatalidade que ele sepreocupava quando eu sugeri que meu pai viesse morarcomigo.

 —  É muita responsabilidade, Jess.

Frustrado, cortei a conversa e considerei as outrasalternativas. Era ridículo pensar em Darlene. Minha tia Theresa não estava tão bem de saúde. Deixá-lo sozinho eraarriscado e impensável, principalmente depois do queacontecera na última noite.

Por mais absurdo que pareça, não acho que tenhatomado consciência do que significava ter chamado meu pai

para morar comigo. Eu era praticamente um prisioneiro emcasa. Podia sair por umas horas, para um encontro detrabalho, ou dormir na casa de Marina, mas tudo o maisestaria sujeito à misericórdia de meus irmãos. E eles nãoestavam muito propensos a isso. Isso significava que eununca teria um fim de semana livre com Marina? Significavaque apenas poderia escrever de casa até o fim da vida?Significava que eu deveria recusar a melhor oferta de

trabalho que recebera?

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Estava fora de mim. Sentindo-me claustrofóbico. Penseique toda a minha carreira estava indo por água abaixo diantede meus olhos. Projetei-me aos 50 anos, sentado ao lado demeu pai centenário, nós dois na frente da televisão. Sua

vivacidade diminuída pelo tempo; a minha, pela falta deoportunidades.

Precisava conversar com alguém, mas não havianinguém. Meus irmãos eram tão pouco receptivos quantopossível. Não tinha nenhum amigo a quem pudesse recorrer.Marina estava dando aulas. Por instinto, sabia que deviaevitar meu pai enquanto me sentia assim, porque era quase

certo que diria algo que o machucaria. Não liguei para Alineimediatamente porque era uma ideia devastadora para mim. Tentei continuar a arquivar os papéis, mas minha cabeçaestava tão cheia que mal me lembrava da ordem alfabética.

Marina me ligou pouco depois do meio-dia. Algumassemanas antes, ela começara a me ligar no horário do almoçoe era um modo muito gostoso de fazer a passagem da manhã

para a tarde. No instante em que disse “alô”, contei a históriatoda para ela.

 —   Não acredito que vou ter que recusar  —   disse aplenos pulmões.  —  Fiz um artigo de cinco mil palavras paraela uma vez só para poder descolar uma oportunidade comoessa e agora vou ter que dizer “não, obrigado”. 

 —  Eu fico com ele —  ela disse com franqueza.

 —  O que quer dizer?

 —  Eu fico com seu pai. Você não acha que ele vai criaralgum problema, certo?

Fiquei tão entusiasmado com isso que soltei:

 —  Ele não tem poder de decisão.

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 —  Tem, sim  —  Marina disse de modo jovial.  —  Por quepensa que criaria um problema? Acho que ele gosta de mim.

 —  Ele ama você. Acho que quer se casar com você. Faria

mesmo isso?

 —  Claro que sim. Você tem um problema; eu, a solução.A menos que pense que se ele ficar sozinho durante o diaseria perigoso, depois do que aconteceu ontem.

Pensei um pouco, mas a imagem de seus olhos claroshoje pela manhã (sem mencionar que eu queriadesesperadamente que aquilo não fosse um impedimento) me

convenceu.

 —   Não. Hoje ele está ótimo. Não sei o que aconteceuontem.

 —   Então, fale com ele e se certifique de que está tudobem e daí reserve a passagem para San Francisco.

 —  Não acredito que está fazendo isso por mim.

 —  Por que não? Você faria a mesma coisa por mim, nãoé?

Não precisaria pensar nisso, muito embora nuncativesse cogitado antes.

 —   Claro que sim. Só acho estranho que me ajudeenquanto meu irmão e irmã nem se importaram.

 —   Bem, seu pai foi muito simpático comigo naquele jantar —  ela disse, dando uma risadinha.

 —  Quero que fique longe dele —  disse com sarcasmo. —  Ele é bem esperto e não quero ter que me preocupar comvocês dois enquanto estiver viajando.

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 —   Ei, você nunca pode adivinhar o que vai acontecer.Mas vou tentar me manter fiel. Acho que vai depender se elequiser um relacionamento sério comigo ou não.

 —  Pensando bem, talvez esta não seja uma boa ideia  —  brinquei.

 —  Às vezes, tem que se correr o risco.

Ri. Os telefonemas de Marina na hora do almoço semprelevantavam meu moral, mas esse fora uma verdadeiracatapulta.

 —   O que está fazendo é muito valioso, sabia?  —   eudisse.

 —  Estou certa de que vai me agradecer em grande estilo.

 —  Eu garanto.

Minutos depois, desligamos o telefone. Liguei para Alinea fim de acertar os detalhes, mas ela tinha saído para

almoçar. Fui ver meu pai. Considerando que tinha ficado deboca aberta da primeira vez que vira Marina, achei que anotícia alegraria seu dia como tinha alegrado o meu.

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Capítulo 16

O Norte da Califórnia  —  especialmente, os campos devinhedo  —  simplesmente oferece a melhor qualidade de vidaem comparação a qualquer outro lugar do Nordeste.

A Foodand Living  me colocou em um hotel relativamentemodesto diante do padrão de luxo das acomodações vizinhas,mas ainda assim havia banhos com aromaterapia, umacoleção de chá de ervas à disposição, frutas frescas, morangocom chocolate e um CD de músicos locais. Fazia muitos anosque não ia para lá e tive uma rara sensação de conforto.Como se eu pertencesse àquele lugar.

Aterrissei no início da tarde. Assim que cheguei àautoestrada, a combinação de relevo, sol, música alegre eentusiasmo pelo trabalho me inspirou. Em vez de irdiretamente para o hotel, decidi fazer um desvio. Andei porSausalito por uma hora, tomei sorvete de casquinha e entreiem diversas lojas. Daí, lembrei-me de uma loja de cerâmicasem Yountville e fui verificar se ainda existia. Comprei umacaneca para meu pai (pensando que tomar café em uma

caneca artesanal seria o próximo passo para sua evoluçãocomo degustador de café) e um anel de dedo do pé feito deestanho para Marina.

Era a quinta vez que ia para a região. A primeira tinhasido com amigos, quando Georgia estava na Europa. Comeceia apreciar o vinho da Califórnia naquela viagem e aprendi queera possível sentir-me mais sofisticado quando me

embebedava com bebidas melhores. A segunda fora com umcolega jornalista, em uma tentativa de encetar uns negócios

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com as publicações da Costa Oeste. Saí de lá tendo concluídoque eu não tinha voz para escrever para eles, mas aexperiência havia sutilmente alterado meu estilo, tornando-omais sensitivo e menos narrativo (o que, é claro, era muito

útil para a redação de fundos de investimento limitado). Aterceira fora com Karen e, como tudo mais em suacompanhia, fora um bacanal. Comida e vinho aos montes,sexo na praia, no jardim, na Jacuzzi, até na cadeira de vime.(Percebi que havia uma grande possibilidade de que Karenestivesse a menos de 200 quilômetros daquele hotel. Masnem mesmo tentei procurá-la.)

A quarta vez tinha sido poucos anos antes. Estava nomeio de uma crise profissional e pessoal e viajara sozinho.Ficara em um Bed-and-Breakfast pequeno e passara os diasdirigindo e caminhando. A viagem restaurou minhas forçasmais do que eu poderia supor. Fiz muitas descobertas comrelação a lojas e restaurantes e quase que o mesmo númerodelas sobre como estava minha vida e para onde eu iria. Foi aprimeira vez que me senti verdadeiramente bem com minha

solidão. Podia ir para um show desacompanhado. Podiapassar um dia inteiro sem conversar com ninguém. Podiafazer algo que antes só gostava de fazer acompanhado e aindaassim gostar. Voltei daquela viagem tendo concluído que,embora fosse muito bom ter amigos, amantes e parentes, elesnão eram pré-requisito para viver bem.

Foram as lembranças da última viagem que

preencheram o primeiro dia na Califórnia, sem sombra dedúvida porque eu tinha viajado sozinho. Sentia-me leveenquanto passeava, relembrando as coisas que tinha feito epensado. Pouco antes de ir para o hotel, dei uma volta emCalistoga e fui ao teatro. No último dia da viagem anterior,havia comprado um ingresso para o show de Edward Albee.Fora a primeira vez que me sentira bem de ir ao teatrosozinho, a primeira vez que não me preocupara com o fato de

outras pessoas me virem desacompanhado e pensarem

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“coitadinho, está sem namorada”. Foi uma mudançasignificativa e, como a peça era com Albee, foi tambémprofunda.

Por fim, fui para o hotel e sosseguei. Na manhãseguinte, fui pela primeira vez ao vinhedo de Hayward onde oNew Collective trabalhava. Nem o vinho nem a empresaseriam chamados New Collective, mas Hayward gostava daideia de manter segredo até que as primeiras garrafas fossempara o mercado, dali a dois anos. Tudo ali diferiadramaticamente da imagem de Hayward. Eu já visitaraaqueles vinhedos antes e lembrava que eram um monumento

entusiasta ao triunfo da arte de fazer vinhos para a elite. Osvinhos de Hayward eram razoáveis, o tipo que eu serviria emfestas e jantares. Pensei que merecia a popularidade queganhara. Mas tornava-se claro, ao observar o sistema defuncionamento, que o objetivo era que cada casa na Américativesse uma garrafa de vinho. Era uma máquina. O novocenário, ao contrário, era despojado e despretensioso.Obviamente, não receberiam o público nos dois anos

seguintes e teriam tempo suficiente para ajeitar a fachada.Mas se pensasse que Grant Hayward, o Dono de VinhedosRock and Roll, dedicaria tempo àquele local, ele insistiria queas linhas fossem mais chamativas. Claro que eu concluí queo ambiente espartano fora pensado de propósito por Haywarde sua equipe de marketing. Penso que eles passaram mesesdecidindo como simplificar o local e deixar tudo em ordem, afim de sugerir um nível de dedicação franciscano à arte

artesanal.

Havia poucas regras que eu deveria seguir ao redigir oartigo, o que me surpreendeu, considerando quanto a mídiaaçulava Hayward. Precisei admitir que, por estar muitoexcitado com a perspectiva de escrever sobre aquilo, tambémestava um tanto incerto quanto a como proceder nasentrevistas. Sem sombra de dúvida, esperava que Hayward

 jorrasse para mim dez mil palavras de autopromoção.

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Pensava que o primeiro encontro (ou mesmo os primeiros)seria com agentes e porteiros, que me explicariam tanto o queeu poderia observar como o que havia para ser observado.Em vez disso, no primeiro dia, quem veio me cumprimentar

foi Hayward em pessoa.

Ao vivo, ele era bem mais baixo do que eu esperava. Aomesmo tempo, tinha uma presença muito mais luminosa doque na TV ou nas páginas de uma revista. Tinha acabado deme sentar quando o vi entrar na recepção e juro que ele ficouna ponta dos pés quando me cumprimentou. Olhando-o nosolhos (o que requeria olhar para baixo, pois era um pouco

mais baixo que eu), notei que ele não entendia minhachegada como um fardo, mas parecia estar contente emreceber um representante da Foodand Living . Ele me guioupor uma porta num ritmo rápido.

 —   A gente tem uma sala para você...  —   ele fez umapausa, olhou ao redor e balançou a cabeça  —   ...em algumlugar por aqui. Mas, se não se opõe, gostaria de levá-lo ao

vinhedo primeiro.

 —  Sim, claro —  eu disse. —  Vá na frente.

Passamos por outra porta e em seguida entramos novinhedo. Caminhávamos no ritmo que uso somente para asruas do centro de Manhattan, muito mais rápido do que opasseio que fizera no dia anterior.

 —  Gosto do seu trabalho —  falou Hayward.

 —   Obrigado  —   respondi.  —   Aline disse que leu meuartigo sobre panquecas.

 —   Sim  —   disse e concordou com um movimento decabeça. —  Sou um pouco viciado. Às vezes, como panquecasno jantar. Diga um nome de uma cidade média americana eeu lhe direi onde comer as melhores panquecas.

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 —   Acho que teria economizado tempo se tivesse ligadopara você antes de escrever a matéria.

 —   N-não, você sempre quis escrever o artigo sozinho.

Além disso, tem absoluta razão sobre Detroit, eu teria lhedado informações erradas. E não sabia nada sobre osarredores de Portland. Mas discordo de você com respeito aKansas City.

 —  Vou abrir espaço para uma réplica, se quiser.

Ele riu:

 —  Sim, vou me lembrar disso. Gosto dos outros artigostambém. Aquele sobre a avó é sensacional.

 —  Você leu esse artigo?

Ele me lançou um olhar de homem instruído:

 —  Gosto de me manter bem informado sobre as pessoasa quem devo dar uma entrevista. É uma das vantagens de ter

uma equipe trabalhando para você.

Eu concordei. Estava impressionado. Claro que suaequipe selecionava para ele os artigos (não deveriam ter dadopara ele ler meu artigo sobre papel de parede), mas ele sedava ao trabalho de ler. E até gostava. Como a vasta maioriada população, acho incrível quando alguém me considerabom profissional; estava começando a gostar de Grant

Hayward.

Quando chegamos ao vinhedo, o ritmo de Haywarddiminuiu consideravelmente. Passamos mais de uma hora juntos, enquanto ele me explicava as escolhas do Collective,como eles irrigavam as plantações, os diversos tipos de uvaque cresciam em terrenos diferentes, mesmo as decisões maissutis que fizeram em relação ao espaço entre as videiras. O

tempo todo, a pedido dele, o gravador permaneceu desligado emeu caderno de anotações, no bolso.

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 —  Não que seja fácil roubar alguma dessas coisas, mas,como pode imaginar, faz tudo parte da propriedade  —   eleexplicou.

 —  Sabe, se você não me contasse essas coisas, eu nãoteria como saber de nada —  confessei.

 —  Eu já tinha adivinhado. Mas é importante que saibadisso. Se realmente vai escrever sobre o que pretendemosfazer aqui, tem que se aprofundar.

Pouco depois, Hayward me trouxe de volta para dentro eme apresentou à sua assistente, que me mostrou o escritório

que eles montaram para mim. Ele se despediu, dizendo queprecisava cuidar de alguns assuntos. Foi somente aí, aoconversar com sua assistente, que descobri que ele moravaali, tendo transformado a atividade no vinhedo em sua rotinadiária como diretor. Ele até mesmo passara para outrapessoa seus compromissos como empresário de festivais deverão. Claramente, aquele projeto era algo maior do queapenas a bola da vez.

Passei a maior parte do dia analisando as premissas,tendo encontros com os vários membros de sua equipe,entrevistando os responsáveis pela manutenção,os designers , mesmo a recepcionista. Por volta das 15h30,apanhei meu laptop  e saí. Hayward me pegou no corredor.

 —   Ei, Jesse. Desculpe se não tive muito tempo de

conversar com você hoje  —   ele disse.  —   A vida de umtrabalhador, você entende, né? Algumas pessoas fizeram filapara conversar com você amanhã.

 —  Isso será ótimo. Hoje, consegui algumas coisas boas.

 —   Fico contente. Quais são seus planos para o jantaramanhã?

Balancei a cabeça.

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 —  Não tenho nada marcado.

 —   Ótimo  —   ele completou, parecendo contente deverdade.  —   Acho que vai estar todo mundo do Collective. A

gente pode ir para a cidade e você pode conhecer todos.

Depois disso, ele se virou, mencionou algo sobre“detalhes” e saiu andando rápido. 

Voltei para o hotel mais ou menos às 16h15 e penseique era uma boa hora para ligar para casa. Meu pai atendeu.

 —  Oi, pai. Está tudo bem por aí?

 —   Não sei,Jess  —   ele disse, com voz fraca.  —  Não erapara a sua namorada vir aqui hoje?

Senti um calafrio e pensei nos voos de volta paraLaGuardia.

 —  O quê? Ela não está aí? Ela não ligou?Meu pai riu e então respondeu com seu tom de voz

normal:

 —  Está brincando? Acha mesmo que Marina faria umacoisa dessas? Só queria saber qual seria a sua reação. Sim,está tudo bem. Estava acabando de lavar os pratos.

 —  Lavar os pratos? —  Sim, na pia, Jess —  respondeu, como se eu tivesse 7

anos. —  Dizem que é melhor comer em pratos limpos.

 —  Você está lavando a louça?

 —  Qual é o problema? Acha que não posso fazer isso?

 —  Ah, tenho certeza de que fez um ótimo trabalho, pai.Continue trabalhando.

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 —  Então, como está se virando aí?

 —   Acho que até agora está tudo bem. Fiz umas boasentrevistas e tenho outras amanhã. Vai sair uma história

interessante.

 —  Ei, se viajou até o outro lado do país, é melhor que ahistória seja mesmo interessante. Quer falar com Marina?

Eu disse que sim e pouco depois ela entrou na linha.

 —  Ele está lavando a louça? —  perguntei.

 —  Sim. Não tive que suborná-lo nem nada. Na verdade,ele se levantou da mesa quando acabamos de comer e medisse para descansar, enquanto ele lavava a louça.

 —   Acabei de entender o quanto estava errado. Quemveio de outro planeta foi você. Você acabou hipnotizando-o,não foi?

 —  Adivinhou.

 —  É para sempre?

 —  Só o tempo pode dizer.

Eu me sentei em uma poltrona supermacia e cheireiuma caixinha de sachê.

 —  Então, acho que é dispensável perguntar se tudo vai

bem, hã? —   Parece que ele está se divertindo  —   Marina

respondeu. Imaginei que ela ajeitasse o cabelo e deixasse àmostra o pescoço. Ela fazia isso o tempo todo, quando falavaao telefone, e eu achava extremamente encantador.  —   Eleestá comendo. E penso que dormindo bem. Não fizemos nadade especial.

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 —   Isso é muito bom. Eu já disse o quanto estouagradecido por você estar fazendo isso?

 —  Umas dezoito vezes no aeroporto.

 —   Só queria ter certeza de que soubesse  —   disse econtinuei brincando com a caixinha de sachê e umas floressecas.

 —  De nada. Quando minha mãe vier me visitar de novo,você pode morar com ela uma semana. Então, como vão ascoisas por aí?

 —   Acho que ótimas. Gosto de Hayward de verdade, oque me surpreende tanto quanto meu pai lavando a louça.Ele não é nada do que aparenta ser e, o tempo todo que estivecom ele, não mencionou nenhum VIP.

 —  Vai dar para você escrever um bom artigo?

 —   Ainda não dá para saber, mas o primeiro dia foiencorajador.

 —  Ótimo. O que vai fazer hoje à noite?

 —   Bem, primeiro acho que vou tomar um banho desândalo e ouvir um CD de músicas com dulcimer.  —  Cheireium sachê mais uma vez e pus de volta no lugar.  —  Depois,devo jantar em um jardim a uns quinze minutos daqui.

 —  É tão legal que não precise fingir para mim que estáse matando de trabalhar.

Eu ri.

 —  Isso parece um luxo, né? Garanto que não vou pararde pensar no Collective enquanto estiver me ensaboando.

 —   Preferiria que pensasse que eu estou dentro dabanheira com você.

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 —  Humm, é uma ideia bem melhor. Gostaria de dar umbeijo no seu pescoço nu.

 —  Preciso corrigir mais algumas lições de casa. Depois,

prometi a seu pai que assistiria a MyrnaLoy com ele. Tive queassistir aos Três Patetas ontem à noite. Sobre o que eramesmo?

 —  Ai, o grande segredo do pai. Sim, o educado e eruditoMickey Sienna é um conhecedor de programas humorísticos.Estou surpreso por ele ter envolvido você nisso.

 —   Achei que as tripas dele iriam pular para fora, de

tanto que ele ria.

 —   Jesus! Os Três Patetas e MyrnaLoy! Você tem umlugar reservado no céu. Ei, ele não contou nada sobre a Gina,contou?

 —  Ele sabe que eu sei?

Pensei se eu havia mencionado qualquer coisa e entãoconcluí que não.

 —  Não, acho que não.

 —  Acho que ele não gosta tanto assim de mim. Qualquercoisa, aviso você.

No dia seguinte, as entrevistas foram produtivas e meforneceram dados suficientes sobre o Collective e seus planosde produzir vinho para o público. Entretanto, no jantardaquela noite, comecei a entender o que realmente estavaacontecendo com aquele grupo de viticultores e qual era ocerne daquela história.

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Enquanto comíamos pizza na chapa e massa folhada decaranguejo, bebendo as últimas garrafas de Pinot Noir dorestaurante, rótulo pertencente à recém-falida empresa deum dos integrantes da cooperativa, a conversa esquentou. O

impacto da economia na produção de vinho. O impacto daeconomia nos bens imóveis. A necessidade de um dosmembros do Collective de comprar uma propriedade agoraque nascera seu terceiro filho. A necessidade de aprender umlance de beisebol agora que outro filho completara 10 anos. Anecessidade dos jogadores do San Francisco Giants deaprenderem aquele determinado lance de beisebol porque osbatedores não deviam arremessar, mas manter a bola fora doalcance deles.

Mas um comentário sem importância fez com que eucompreendesse como o Collective na verdade trabalhava. Derepente, todos eles falavam de vinhos e suas paixões, filosofiae música. Eles não eram businessmen . Não haviam criado umproduto. Eram pessoas que podiam olhar para um armário eimaginar como o design  poderia de algum modo influenciar a

criação de um grande Cabernet. A conversa versou sobre umvinhedo três dias antes da produção de vinho. Talvez maisalgumas uvas com casca mais grossa. Talvez mais um dia navideira. Talvez mais cinco dias no barril. Um grau aqui. 15%a mais de umidade ali. Cada um desses detalhes poderiagerar um vinho diferente que alguém como eu poderiaapreciar e que seria proclamado por muitos anos.

Não era Hayward quem liderava a conversa, masparticipava dela com entusiasmo. Não importava que seuvinhedo fosse cinquenta vezes maior do que os restantes juntos. Não importava que entre seus amigos íntimosestivessem atrizes e estrelas de rock. Não importava que nãohaveria um jornalista da Foodand Living  naquela mesa se nãofosse por ele. Ele falava de vinho e falava com convicção ealegria. Todos nós sabíamos que algo grande podia nascer

dali. Ou algo inútil. Mas, em ambos os casos, haveria outra

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conversa como essa toda vez que aquelas sete pessoas sesentassem ao redor de uma mesa.

Saí de lá inspirado como nunca. Parecia que tinham me

presenteado com uma cadeira entre os cavaleiros da TávolaRedonda. Talvez, essa imagem pudesse ser a espinha dorsalpara a reportagem. A procura pela arte de fazer vinho.Embora soubesse que ainda não estava pronto para redigir oartigo em si, voltei para o quarto de hotel e escrevi por quasetrês horas. Muito daquilo eram impressões pessoais. Estavamuito mais emotivo do que normalmente era e provavelmentemuito mais ainda do que os editores da Foodand

Living   gostariam. Porém, tinha necessidade de escrever e deexpressar minha criatividade, procurar meu próprio ponto devista. Fazia muito tempo que não tinha essa sensação e, pelaprimeira vez, recentemente, me arrependia de não estarfisicamente disposto para continuar a digitar. Enfim,desliguei o laptop  e pulei na cama.

A entrevista mais importante com Hayward seria no dia

seguinte à tarde. Nós nos sentamos em seu escritório, que,para minha surpresa, era muito parecido com o quecolocaram à minha disposição, com exceção de uma centenade “entulhos”, como ele descrevera. Quis agradecer pelo quetestemunhara na noite anterior, mas achei que seria umpouco comprometedor. Mesmo assim, ria com facilidade desuas piadinhas, permitindo que ele conduzisse a entrevista, oque raramente acontecia. Cobrimos os tópicos essenciais: as

origens do Collective, uma data para o lançamento, asexpectativas para a produção, esse tipo de coisa. Deixei queele falasse sobre o que acontecia em seu vinhedo, em suaausência, para promover os talentos dos novos mestres daviticultura. Deixei que expressasse seu entusiasmo pela novaaventura, bem como contasse seus objetivos mais elevados.Era uma boa história e agora eu acreditava mais nela do queantes.

 —  Mas isso faz algum sentido? —  perguntei, por fim.

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 —   O que quer dizer?  —   ele perguntou,despretensiosamente.

 —  Qual é o sentido dessa empreitada para sua carreira?

Hayward está quase se tornando a maior marca no ramo.Você mesmo é muito semelhante a um pop star  da indústria,recebe convites para fazer propaganda de comida congelada ede confecções de camiseta. Não é um momento em quenormalmente alguém decide se tornar o empresário principalde uma empresa inteiramente nova, usando dinheiro dopróprio bolso, para financiar um bando de caras que estavamprestes a deixar o ramo, e ir atrás de uma ambição que será

foco da atenção da mídia em todos os detalhes.

Hayward riu e se ajeitou na cadeira.

 —  Nossa! Não havia pensado desse jeito. Melhor fechareste lugar agora, antes de me meter em uma encrenca.

Fiquei um pouco envergonhado e preocupado que elepensasse que eu queria dar um conselho de como viver a

vida.

 —  Desculpe, passei do ponto.

Ele levantou a mão, um sinal de que não tinha seofendido.

 —   Pensei que ultrapassar o limite fosse seu trabalho.Confie em mim: entendo perfeitamente que este não é um

movimento muito seguro, nem mesmo muito inteligente. SeHayward fosse uma empresa pública, os acionistas teriam selivrado de mim. Felizmente, não é esse o caso. E, felizmentetambém, posso lidar com os golpes financeiros queacontecerem.

 —  Mesmo os golpes morais?

 —   Refere-se a eu sair por aí dizendo “criei o melhorvinho do mundo e está todo mundo rindo da minha cara”? 

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 —  É um modo de dizer.

 —  Estou certo de que seguro a onda se isso acontecer.Quando eu conhecer você um pouco melhor, vou lhe contar

sobre o teatrinho da escola em que encenamos Jesus ChristSuperstar . Mas há algo importante que deve entender,principalmente se vai ser o primeiro cara a escrever sobreeste lugar. Isso seria ridículo, mesmo para mim. A ideia édescobrir quão bom pode se tornar um vinho quando se temmuitos recursos à disposição, mas nenhuma consideraçãosobre o mercado. Há pessoas incríveis dentro do Collective.Eric Schumpf é um dos artistas mais importantes neste

grupo, mas é incapaz de tornar seu próprio negócio de vinhoslucrativo, mesmo com tanta arte. Leanna Prine estava quasecriando fama com o SunCrest quando uma enchente destruiuseus planos. Cada uma dessas pessoas tem uma históriadiferente para contar, mas o que as une é que vivem erespiram vinho; são estudiosas dedicadas do assunto; sãotodas talentosas, mas péssimas vendedoras.

 —  Com exceção de você.

Ele riu novamente:

 —   Sim, exceto eu. Muito embora você tenha apontadoque não sou assim tão bom nos negócios quanto se pensa.Não há como afirmar isso sem insinuar que eu tenha idorápido demais. Mas em algum ponto a gente deve fechar osolhos e decidir embarcar nisso apaixonadamente. Todo

mundo do Collective sabe os riscos que corre. Todos sabemosque a mídia vai ficar muito em cima da gente, uma vez quetornemos isso público. E todos sabemos que há inúmerosmotivos para fechar o vinhedo. Mas também sabemos que émuito melhor fazer o que estamos fazendo do que qualqueroutra coisa. Que o risco vale a pena.

Deixei que as últimas palavras ressoassem no ar por um

tempo, antes de dizer:

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 —   Tem razão. Isso pode muito bem querer dizer quevocê foi rápido demais.

Hayward concordou com a cabeça.

 —  E você tem que escrever o que está vendo.

Procurei os olhos dele e sustentei o olhar por uminstante.

 —  Quando eu conhecer você um pouco melhor, vou lhecontar o que fiz ontem depois do jantar  —  eu disse.  —  Achoque estou entendendo você.

Pus mais algumas palavras na página aquela noite.Seria presunçoso se dissesse que “escrevia”. E era mesmo

presunção. Escrevi por vinte longos minutos sem respirar; emseguida, fiz uma pausa para andar pelo quarto e cheirar assubstâncias da aromaterapia e então mudei de direção.Estava muito literário. Muito estiloso. Muito florido. Eu teriaque parar, policiar minha presunção e procurar um novomodo de dizer. Porém, eu sempre guardava “os novos modosde dizer” em outros arquivos. Alguma coisa me dizia que eudesejaria uma cópia desse artigo, até mesmo as versões

descartadas.

Não me lembrava da última vez que escrever tinha sidotão significativo para mim. Em parte, era pela perspectiva demelhorar a carreira. Se isso se transformasse em matéria decapa, muitos editores de outras revistas leriam. E se amatéria fosse boa, os editores me incluiriam na lista deles,me dariam mais trabalho, artigos mais refinados. Mas,

mesmo àquela altura, percebi que não se tratava apenas deescrever coisas mais interessantes. Era sobre se comover, não

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apenas causar comoção nos leitores; era também provocaralguma reação em meus leitores.

Pela primeira vez em anos, imaginei as pessoas lendo a

última versão do artigo em que eu trabalhava. Pensava nelasvirando a primeira página e continuando a leitura. Via trêsrostos: o de Grant Hayward, o de Marina e o de meu pai.

Eram quase 22h quando parei e fui comer alguma coisa.Era claro que muito daquilo que havia escrito nãopermaneceria na versão final, mas sentia que estavachegando a algum lugar. Encontrei um local para comer um

sanduíche, então dirigi até lá. Não tinha um destino certo nacabeça, mas estava determinado a me mover. Sintonizei(muito bem, devo dizer) o rádio, mudando para uma estaçãode clássicos do rock para me certificar de que saberia quaisseriam as músicas e cantaria junto.

Ainda dirigindo, percebi que estava indo na direção deSan Francisco. Pensei em ir para lá; de repente, encontrarum lugar com música ao vivo. No entanto, ao me aproximardo Golden Gate, mudei de ideia. Estava ficando tarde, tinhamuito trabalho no dia seguinte e não estava mesmo commuita vontade de ir para a cidade.

Desviei da estrada, pouco antes de entrar na ponte. Erauma estrutura magnífica, o design   era o resultado de umaverdadeira dedicação. Abaixei o volume do rádio, semdesligar, e me sentei no capô do carro alugado por vários

minutos, admirando a vista. Fiquei fascinado ao pensar o quevocê pode conseguir se realmente se esforçar. Não pensavaapenas nos arquitetos que desenharam a ponte, mas noarquiteto que planejara a primeira ponte e no risco quecorrera e tivera que ignorar para conseguir o que queria. Eraum estímulo.

Enfim, entrei no carro e dirigi de volta para o hotel.

Mudei de estação para uma que havia escutado dias antes.

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Voltei um pouco no tempo.

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Capítulo 17

Tendo passado um bom tempo em meio àscrianças, Marina sabia o que era deixar que os outros

ganhassem o jogo. Crianças de 8 anos estão prontas paracompetir com adultos e percebem no ato se você está fazendocorpo mole. Como consequência, ela era ótima em fingir estarplenamente concentrada, enquanto ao mesmo tempo cometiaum erro grave e perdia o foco justamente na hora certa. Tinhaquase certeza de que Mickey não perceberia que ela estavadeixando-o ganhar no jogo de xadrez.

Simultaneamente, no fim da segunda partida, ela

também tinha certeza de que facilitar as coisas para Mickeynão era muito necessário. Ele a derrotara sem muito trabalhono primeiro jogo e agora tinha acabado de pegá-la desurpresa em uma jogada de três lances que liquidara apartida.

 —   Faz anos que não jogo xadrez  —   Mickey disse,orgulhoso. —  Acho que é como andar de bicicleta.

A cada dia, Marina gostava mais do Sr. Sienna. Ele erainteligente e seu sorriso se assemelhava muito ao de Jesse,mas fora isso os dois homens não tinham nada em comum.Obviamente, Mickey queria agradá-la e ela pensava que issoera charmoso. Ele exaltava suas qualidades como cozinheira(embora tivesse prometido que a levaria para jantar fora nodia seguinte), elogiava suas roupas, sua forma de trabalhar e

até seu gosto musical. Fazia isso de um modo ligeiramentecortês, mas também inequivocadamente paternal. Marina

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quis saber se Jesse se comportaria desse modo quandoatingisse a idade do pai.

E então, espontaneamente, pensou que era bem

provável que não estivesse por perto para descobrir.

 —   Mais uma partida?  —   Mickey sugeriu como umgaroto.

 —  Claro! —  Dessa vez, ela queria ganhar.

Nesses dias, Marina se sentia como nunca mais perto emais distante de Jesse. Havia detalhes sobre ele que ainda

não havia captado quando dormira naquela casa. O modocomo arrumava as coisas por categoria. O fato de que umtroféu da Liga Juvenil de Beisebol tinha o mesmo lugar dedestaque que um prêmio de jornalismo na faculdade. Afotografia de sua mãe que estava pendurada na parede doquarto de hóspedes onde ela dormia e os porta-retratos deseu irmão e das duas irmãs na cômoda do mesmo quarto. Todas essas coisas contribuíram para a imagem do homem

com quem estava havia seis meses. Mas, ao mesmo tempo,indicavam que ela ainda deveria percorrer muita estrada paraentrar de verdade na vida dele. Por que ainda não tinhaencontrado nenhum de seus irmãos? Por que não sabia nadasobre aquele troféu de beisebol?

Marina se lembrou de que provavelmente havia muitascoisas em sua própria casa que fariam com que Jesse

chegasse às mesmas conclusões que ela, caso ele observassecom atenção. Ele conhecia o toque de seu despertador, masela nunca lhe dissera por quê. Seu primo Ally tinha vindopara a cidade várias vezes naqueles meses e ela não oapresentara a ele. Isso não era preciso, considerando o tipode relacionamento que tinham. E, à exceção de tempos comoesse (quantas vezes será que isso se repetiria?), não valia apena pensar no que acontecia à margem da vida.

Ultimamente, parecia difícil se convencer de que na verdadepensava assim.

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Nos meses anteriores, Marina pensava em Jesse comoum acessório em sua vida. Deus sabia que não era a mesmacoisa que com Larry. Nunca mais seria tão descuidada. Masela parara de se perguntar o que faria quando Jesse não

estivesse mais por perto. Não que isso, em si, levasse a algumlugar, mas, ao mesmo tempo se agora ela estava morando namesma casa com o pai de seu namorado por uma semana, afim de que ele trabalhasse, algumas coisas ficavamimplícitas.

E, ainda assim, não tinha tanta certeza de que Jesse viaas coisas da mesma maneira que ela. De longe, ele era a

pessoa mais sensível e estimulante que já conhecera. E o fatode que eles pararam de falar sobre as “coisas inevitáveis”poderia sugerir o que na verdade ele pensava. Mas então elaolharia para a foto de família e se lembraria de que ele nemchegara a convidá-la para participar disso.

Embora o fluxo de pensamentos não cessasse, ela foidura na queda na terceira partida de xadrez. No final, ficou

até em vantagem, o que deu grande prazer a Mickey e fez comque ela cogitasse que dessa vez ele a deixaria ganhar. Aopensar nisso, riu.

 —   Vou pegar mais um pouco de sorvete  —   anunciouMickey, depois que a partida acabou. —  Quer alguma coisa?

 —   Você sempre repete três vezes a sobremesa?  —  Marina perguntou.

 —  N-não —  disse e gesticulou. —  Mas estamos de férias.

Marina deu risada e o telefone tocou. Mickey olhou parao relógio.

 —  Provavelmente é o seu amoreco. Quer atender?

Marina se levantou para atender o telefone:

 —  Como vão as coisas por aí? —  perguntou Jesse.

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 —   Você nunca me disse que seu pai era um excelente jogador de xadrez.

 —   É, nem sei como pude esquecer. Ele está se

comportando direito?

Marina olhou para Mickey, que estava se servindo debastante sorvete.

 —  Vai perceber que ele engordou, da próxima vez que ovir, mas, sim, nós estamos nos divertindo. Como estáprogredindo o artigo?

 —   Não poderia estar melhor  —   ele respondeu. Marinapodia imaginar seu sorriso do outro lado da linha. —  Pode serque eu volte para casa e perceba que foi tudo uma ilusão,mas tudo parece ótimo. Mal posso esperar para mostrar avocê o que escrevi.

Marina estava surpresa. Ele nunca dissera isso antes.Ela sempre tivera de pedir para ler seus artigos.

 —   Adoraria lê-lo. A qualquer hora que achar que estápronto.

 —  Acho que vai ficar bem impressionada. Deus, é o queeu espero! Espero não estar enganado. Acho até que estoufazendo amizade com Hayward. Hoje, ele falou comigo arespeito do seu primeiro casamento por quinze minutos.

 —  Bem diferente do que você esperava, não é?

 —   Eis uma conclusão precipitada: não vai dar paravoltar a escrever sobre espátulas e massa corrida depoisdisso.

Marina riu.

 —  Os artigos não eram tão ruins assim.

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 —  Não. É que às vezes não resisto. Como vão as coisasna escola? Cassie voltou a vomitar no meio da sala de aula?

 —   Felizmente, não. A boa notícia é que começaram os

ensaios para o musical. Na verdade, algumas crianças sabemcantar. Melissa Parks está no quinto ano e eu sabia quepodia contar com ela. E tem também uma aluna do segundoano que tem o timbre de voz de Ethel Merman. Devia ter vistoa cara das outras crianças quando ela começou a cantar.

 —  Nossa! A primeira diva. O empresário dela já entrouem contato com você?

 —   Ainda não. Lembrei agora que seu cunhado Bradpediu para você ligar para ele.

 —   Não vou perguntar como uma coisa fez você pensarna outra. Diga se meu pai continua lavando a louça.

 —   Toda noite. Nem finjo mais que gostaria de lavar eumesma.

 —  Você sabe que, quando eu voltar, ele não vai levantarmais nem um dedo, não sabe?

 —  Bom, eu sou bem mais legal que você.

 —  Não tenho como contrariar esse argumento.

 Jesse fez uma pausa e ela sabia que ele estavaimaginando como ela estava nesse momento. Provavelmente,com aquela blusa branca de que ele gostava.

 —   Eu preciso ir agora  —   completou, depois de umtempo. —  Vou encontrar algumas pessoas responsáveis pelomarketing no jantar. Vou ligar amanhã à noite.

 —  Pode ligar um pouco mais tarde? Seu pai vai me levarpara jantar fora.

 —  Sabia que ele tentaria algo com você.

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 —   Ei, a gente nunca disse que precisaria terexclusividade.

 —  Nem brinque com isso.

 —  Falo com você amanhã à noite. Tenha um ótimo dia.

 —  Obrigado, você também. Estou com saudades.

Os olhos de Marina pousaram no troféu da Liga Juvenilde Beisebol. Com certeza, ela perguntaria sobre isso quandoele voltasse.

 —  Sim, eu também.Marina desligou o telefone. Como era quase sempre o

caso, quando ela começava a pensar no futuro, uma simplesconversa com Jesse eliminava todas as preocupações.

Mickey tomava sorvete quando Marina voltou para amesa.

 —  Ele não quis conversar comigo? —  ele perguntou.Marina acenou:

 —  Desculpe. Eu tomei todo o tempo dele. Ele teve quesair para um jantar.

Mickey balançou a cabeça:

 —   Melhor que ele fale com você.  —   Ele pegou outra

colherada de sorvete.  —   Ainda não sei como você fez estacoisa. Já comi bons sorvetes antes, mas este...

Marina segurou a mão dele. Era tão fácil agradá-lo! Elecomeu em silêncio por um tempo e Marina brincou à toa comumas peças do jogo de xadrez.

 —  Está tudo bem com Jesse? —  Mickey perguntou.

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 —  Parece que sim. Ele está muito entusiasmado com oartigo e com o vinhedo. Nunca o vi falar assim antes.

 —   Isso é bom para ele. Espero que consiga mais

trabalhos assim.  —   Ele a observou com um olhar decompreensão.  —   Ele não se diverte muito escrevendohistórias de que não gosta.

Marina concordou:

 —  É, eu sei. Ele é sempre muito claro com relação a essetipo de coisa.

Mickey bufou:

 —  É, meu filho é muito claro!

Marina não tinha muita certeza do que ele queria dizercom isso; então, não respondeu. Por uns instantes, pareceuque ele não diria mais nada. Em seguida, ele mergulhou acolher (com pelo menos um pedacinho de sorvete sobrando) ese ajeitou na cadeira.

 —  Não sei o que posso fazer com vocês dois —  ele disse.

Marina moveu a cabeça. Não sabia aonde ele queriachegar com isso.

 —  Quero dizer: vocês dois parecem se dar muito bem equalquer um é capaz de ver uma chama entre vocês, mas, deacordo com ele, vocês não têm nenhum plano para o futuro.

Marina quis saber se Mickey tinha sido assim tão francocom Jesse. Se isso acontecera, Jesse não havia lhe dito nada.

 —   Jesse e eu nos importamos muito um com o outro.Isso é muito mais do que alguns casais têm, mesmo secomprometidos.

 —  Então, você comprou essa ideia?

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Não era a hora de confessar o que ela havia pensadominutos antes. Provavelmente, essa hora nunca chegaria,não importava quão bem ela se desse com Mickey.

 —   Por mim, está tudo bem. Acho que um dos motivospor que eu e Jesse nos damos tão bem é que ambos sofremoscom relacionamentos anteriores.

 —  Você e o resto do mundo inteiro  —  disse Mickey, desupetão. —  Todo mundo tem que lidar com dores de amor.

 —   Isso é verdade, claro. Mas Jesse e eu escolhemos omesmo modo de lidar. Ou, pelo menos, um modo parecido.

Acho que foi de grande ajuda para nosso relacionamento.

Mickey bufou:

 —  Então, nenhum dos dois acredita em relacionamentoslongos, o que lhes permite ter uma boa relação, mas nãopodem se comprometer por muito tempo porque nãoacreditam nisso.

Marina admitiu para si que, do modo como ele falara,tudo era muito simplista.

 —   Acho que você pode resumir desse jeito  —   elarespondeu.

 —  E isso não enlouquece você? —  Ele ficou agitado.

De novo, ela segurou a mão dele. Ele pareceu se acalmarum pouco.

 —  Na verdade, não.

 —   Você deveria ter mais que isso  —   ele acrescentou,contendo o fôlego. Marina não pôde deixar de perceber queele parecia mais preocupado com ela do que com o filho.

 —   Está tudo bem, Mickey, mesmo. Mais do que bem.Esse é o relacionamento mais saudável que eu tive. E não há

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nada que impeça que o que fazemos juntos hoje se torne umarelação duradoura. Sabe, vive-se um dia por vez e às vezes osdias se multiplicam.

 —   Mas meu filho está convencido de que todo amormorre.

Marina concordou.

 —  E, pelo que sabemos, ele pode estar certo.

 —  Ele não está certo.

Ele disse as palavras de modo brando, mas Marina viuconvicção nelas.

 —   Se ele estiver certo ou não, vamos descobrir com otempo. E, de todo jeito, não vale a pena gastar energia mepreocupando.

Mickey olhou para ela. Era óbvio para Marina que elesabia que era hora de mudar de assunto. Mas também que

nada do que dissera o tinha feito mudar de ideia.

 —  Vou propor um trato —  Marina continuou. —  Mesmose eu der um fora no seu filho, vou aparecer de vez emquando para lhe trazer sobremesa.

Mickey sorriu.

 —  Bem, se for assim, pode dar um chute nele amanhã.

Marina beijou-o no rosto antes que ele fosse para oquarto. Ela realmente era uma mulher e tanto. Era difícilacreditar que ela se convencera de algumas coisas que lhedissera uma hora antes. Por que uma mulher como Marinaquereria se comprometer?

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Deitado na cama, as luzes ainda acesas, Mickeyprecisou admitir que ele não era mais assim tãocompreensivo com as pessoas como fora. Ele tinha seesforçado para ficar de olhos e mente abertos, mesmo depois

que seus contemporâneos começaram a reclamar damentalidade estreita dos mais jovens. Mas, apesar dosesforços, ele tinha enfraquecido com o tempo. Primeiro, era amúsica que não suportava. Depois, a preocupação com odinheiro, e em seguida a mais chata das preocupações: como designer /gourmet /Premium não sei o quê. Havia sempreuma distinção entre o melhor e o ordinário, mas e quanto acafés, camisetas, telefones? Quem se importava? Talvez essafosse a desvantagem de ter um filho tão jovem. Você tem quetentar se atualizar com o fato de que o mundo muda muitoalém do que gostaria.

Mas algumas coisas não mudam nunca e Mickey sabiadisso, pois não era o velhinho dentro dele que assim dizia.Amor e romance não tinham mudado tanto assim emsessenta anos. Não o verdadeiro amor. Era sempre o mesmo

havia milhares de anos.

Por que a conversa com Marina o havia perturbadotanto? Podia ser que ele simplesmente os compreendera mal, Jesse e ela. Talvez eles não tivessem “aquele sentimento” queele pensava que tivessem. Era a única explicação lógica.

Embora incomum à noite, Mickey sentiu muita

necessidade de falar com Gina. Ao se contorcer na cama, elelembrou por que nunca se levantava quando já tinha ido sedeitar, mesmo se não conseguisse dormir. Dava muitotrabalho.

Ele pegou o retrato e sentou-se. Percebeu que poderiadeixar o retrato fora da caixa, agora que Jesse sabia quemera Gina. Podia até mostrar a foto para ele. Mas manter oretrato em cima da cômoda podia ser perturbador, mesmo

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que Jesse não entrasse muitas vezes ali. Jesse e Dorothyeram muito próximos.

 —  Meu filho está fazendo com que eu me sinta velho  —  

Mickey disse para a imagem de Gina que tinha em mente.  —  Depois de todo esse tempo, parece que seu velho está meiodesnorteado. Você pensou que isso pudesse acontecer? Tenhocerteza de que isso não aconteceu com você. Você sempresoube o que se passava comigo. E sempre viu as pessoas deum modo diferente. Seria ótimo se conhecesse Jesse. Talvezpudesse compreendê-lo.

 —   Essa garota é um verdadeiro tesouro. Disso eu sei.Sempre conheci as mulheres e sei que ela é muito especial.Acho que ele ainda não percebeu isso. E o que é ainda maissurpreendente é que eu fui conversar com a moça e elaparece não se importar. Pode imaginar como seria se eutivesse sido tão bobo assim com você?

 —   Tenho que contar a ele mais sobre você quando elevoltar de viagem. Isso me deixa muito esgotado, mas énecessário. Vou direto ao assunto, mas acho que ele não vaime entender. Matty talvez entendesse; Jesse, não. Claro quenão dá para contar toda a história para Matty, porque sabe-se lá qual seria a reação dele, então acho que não possoreclamar.

 —  É melhor eu ir dormir. Marina se levanta cedo para otrabalho e eu quero tomar café com ela.

 —  Eu amo você. Reserve um lugar na mesa para mim.

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Capítulo 18

Cheguei em casa bem tarde, vindo do aeroporto, eMarina e meu pai já estavam dormindo. Marina estava no

quarto de hóspedes e, por mais que eu adorasse acordá-la echamá-la para dormir comigo, ela era meio egoísta nesseponto. Se Marina se espreguiçasse no meio da sala de aula,ela se sentiria culpada por uma semana, e eu não queria sero responsável por isso. Ajustei o despertador para as 6h20,então poderia acordá-la de manhã.

 —  Você voltou —  ela disse sonolenta, quando me inclineipara beijá-la e me enfiei debaixo das cobertas junto com ela.

 —  Que horas são?

 —  É de manhã.

 —  Me perdoe. Não esperei você ontem à noite.

 —  Cheguei aqui às 2h15 da manhã.

Ela se esticou e rolou na minha direção para me beijar.

 —  Nesse caso, não peço perdão.

Beijei-a novamente e a abracei. Hayward em pessoatinha me levado ao aeroporto no dia anterior e a gente sesentou em um bar para bater papo. Fora uma pausaapropriada para uma viagem inspiradora e, durante o voo devolta, desejei ter tido mais tempo para ficar ali; eu pensaraem me mudar para um hotel modesto e simplesmenteaproveitar melhor o tempo. Mas agora, em casa, abraçando

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Marina, percebi que sentia saudades dela e, principalmente,sentia falta de abraçá-la de manhã assim que acordávamos.

 —   Presumo que não haja nenhuma chance de você

faltar hoje no trabalho, né?

Marina chegou mais perto e beijou meu pescoço.

 —   Não posso. Tenho reunião de pais de manhã e temtambém a peça. Mas, se tiver sorte, deixo você preparar um jantar delicioso para mim hoje.

 —   Você é tão boa comigo...  —   eu disse. Estava um

pouco desapontado, mas sabia que seria mesmo raro que elatirasse um dia de folga. Ela nunca era descuidada quando setratava de seu trabalho. Abracei-a em silêncio, em um esforçopara aproveitar o máximo de tempo possível antes que ela selevantasse.

 —  Seria ótimo ficar assim o tempo todo —  ela disse.

 —  Que tal deixar os pais esperando?

 —  Não posso.

Beijei-a e ela deu um gemido que sugeriu que minhaschances eram maiores do que supunha. Àquela altura,bateram forte na porta.

 —  Marina? Tudo bem? —  meu pai perguntou. —  São dezpara as sete.

 —  Tudo bem, Mickey. Já estou me levantando —  Marinagritou.

Eu reclamei:

 —  Que diabos ele está fazendo de pé tão cedo?

 —  Ele sempre toma café da manhã comigo.

 —  Acho que vou ficar enjoado.

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 —  Pare com isso. É fofo.

 —   Nós dois com certeza não vemos a coisa do mesmomodo.

Ela se espreguiçou de novo e se apoiou em um cotovelo.Deu-me outro beijo e rolou por cima de mim para sair dacama.

 —  Acho que vai rolar a tal da reunião dos pais, certo? —  perguntei.

Ela me olhou como se se queixasse. Percebi que nunca a

vira dormir de camiseta e achei-a muito sexy, principalmentecom aquela expressão no rosto.

 —  Eu não posso mesmo. Vou me encontrar com os paisde Derek. Você lembra, Derek é o menino que começou achorar no meio da aula umas semanas atrás.

 —  Ah, sim. Bem estranho, né?

 —  Ele parece estar do mesmo jeito que antes. É muitoimportante que eu converse com a mãe dele.

Eu me deitei na cama.

 —   Ok, a mãe de Derek ganhou. O que quer comer no jantar delicioso?

Com a roupa de trabalho em um dos braços, ela foi até a

cama, me deu um beijo de leve e outro mais demorado. Juroque flutuei um pouco.

 —  Use sua imaginação —  ela disse e saiu.

 —  Estou usando a imaginação em um outro projeto.

Ela se virou e sorriu, antes de sair de vista. Permanecina cama. O travesseiro ainda estava meio morno e os lençóis

exalavam um vago perfume dela. Decidi me levantar quando

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ela ligou o chuveiro. Fiquei tentado a me juntar a ela, mascom certeza ela se atrasaria. Então, fui para a cozinhaencontrar meu pai.

 —  Ah, você chegou mesmo ontem à noite! Não ouvi vocêentrar.

 —  Era bem tarde.

 —   Marina já se levantou? Fiz café para elae muffins  ingleses; eu sei que ela gosta.

Quase dei risada. Agora entendi o que era “fofo”. 

 —  Sim, ela está tomando banho. Quer que eu avise vocêquando ela terminar, assim liga a torradeira?

 —  N-não. Tudo bem. Só leva um minuto para esquentaros muffins   —  ele respondeu, cortando meu sarcasmo.

Ele parecia ótimo. Não estava andando melhor, masestava mais animado. Era difícil esquecer, que antes de

viajar, eu estava muito preocupado com ele. Deveria teradivinhado que passar esses dias com Marina o teriarejuvenescido.

 —  Então, e o artigo? —  ele perguntou.

 —   Tudo traçado, eu acho. Escrevi bastante coisa nosúltimos dias. Quando saí do avião, já tinha um bomrascunho.

Ele me deu uma xícara de café.

 —  Ah, lembrei! —  disse e voltei para o quarto. Trouxe acaneca que comprei para ele.

 —  O que é isso? —  ele perguntou.

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 —  Comprei em uma loja em Yountville. Foi feito por umartesão de lá. Achei que estava na hora de você aposentaraquela que seu corretor de seguros lhe deu.

Ele passou a mão na caneca, examinando a texturairregular e o cabo de esmalte de metal.

 —   Agora, só preciso desenvolver uma estéticade designer   —  ele disse, sorrindo.

 —  N-não. Isso você sempre teve.

Ele foi para a pia e passou o café de uma xícara

(“Joseph A. Tress: deixe tudo em nossas mãos”) para a outra. 

 —   Então, tem uma boa história  —   comentou e tomouum gole de café. —  Deve estar bem contente.

 —  E estou mesmo. Na verdade, acho que vou tirar o diapara comemorar. Talvez um passeio pela costa. Quer vircomigo?

 —  Com você? Aonde? —  Marina perguntou ao entrar nacozinha, beijando minha testa e a de meu pai. Comoesperado, meu pai foi ligar a torradeira.

 —   Vou dar um tempinho hoje e passear pela costa.Acabei de perguntar a meu pai se ele quer vir comigo.

 —  Hummm, parece ótimo. Queria me juntar a vocês.

 —   Perdeu a chance  —   brinquei.  —   Agora, as apostasestão na mesa.

Marina foi para perto de meu pai, abraçou os ombrosdele e respondeu:

 —  Mickey, você é muito mais legal que seu filho.

Parecia que meu pai tinha ficado vermelho. Então

murmurou:

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 —  Deveria ter avisado você.

Minutos depois, Marina partira. Não queria mesmo quefosse embora e a fiz parar diversas vezes para me beijar antes

de entrar no carro. Da última vez, ela teve de fechar o vidropara dar a partida no carro.

 —  Então, você vem?  —   perguntei a meu pai, ao entrarde novo em casa.

 —  Para onde você vai mesmo?  —  fez uma pergunta, emvez de responder.

 —  Para o sul.

 —  Quer dizer Miami?

 —  Acho que não vai dar tempo de voltar para o jantar,se formos para Miami. Não sei direito; acabei de voltar deviagem; não estou muito a fim de verificar os e-mails,retornar as ligações ou voltar à ativa. Quero tirar o dia defolga e dar uma volta.

 —  Você não deveria terminar o artigo?

 —   A história está terminada. Quero me distanciar umpouco para ter uma perspectiva melhor. Vou reler amanhã efazer as mudanças necessárias antes de enviar para Aline. —  Fui botar os chinelos.  —   Então, você vem ou vai me deixarsozinho com o tocador de CD?

Meu pai riu e balançou a cabeça:

 —  Está mesmo de bom humor. Está bem, eu vou.

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Capítulo 19

Por um tempinho, Mickey pensou que Jesse falariasem parar durante todo o caminho.  Ele raramente vira o

filho assim tão animado. Obviamente, tudo tinha sido muitobom naquela viagem. Ele pensava que tinha feito algumprogresso na carreira. Mickey estava contente por ele, emboraainda pensasse que Jesse estaria melhor em um emprego fixoe um salário regular. Ele poderia escrever como freelancer  devez em quando.

 —   Ei, Marina lhe contou que Brad ligou enquanto euestive fora? —  Jesse perguntou. Era a primeira vez durante omonólogo que dissera algo que requeria uma resposta.

 —  Não, ela não disse nada.

 —  Parece que vai acontecer mesmo a aquisição da Lynchpela Gruenbach. Também parece que o futuro dele naempresa acabou.

 —  Ah, isso vai ser terrível para ele e para Denise.

 —  É, não sei como eles vão se virar, sendo que Deniseganha sozinha de 400 a 600 mil dólares. Bom, não importa,porque ele vai entrar como sócio em uma nova revista.

 —  Ele entende do negócio?

 —   Ele nem sabe o que não sabe, mas tem acesso aodinheiro e uma noção estranha de que esse deve ser seupróximo passo na carreira.

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 —   Então, ele propôs um negócio a você?  —   Mickeygostou da ideia de ver seu filho e genro trabalhando juntos.

 —  Não, graças a Deus. Dá para imaginar isso? Era tudo

de que eu precisava, que Denise controlasse meus ganhos.Não, ele me ligou para que eu desse uma opinião sobre oseditores que ele poderia contatar para montar uma equipe. Sequer saber a verdade, fiquei um pouco lisonjeado. Ele nãoapenas perguntou, mas me pareceu que estava tomandonotas.

Mickey ficou contente de ver o filho orgulhoso. Ser o

caçula da família devia ser um desafio para Jesse,principalmente em uma família de pessoas bem-sucedidas, edevia ter sido bom ser consultado como expert .

 Jesse sorriu para ele:

 —  Gostei do modo como pensou, pai. Quer negociar pormim?

Mickey gesticulou algo como uma rendição:

 —  Eu não. Brad é um tubarão.

 Jesse deu um tapinha na perna do pai.

 —  Vamos lá, pai. Você poderia dar uma rasteira nele.

Mickey deu risada. Não tinha mesmo visto o filho tão àvontade.

Eles estavam se dirigindo para Turnbike, ao sul, tendoapenas passado pelo aeroporto de Newark. Mickey ainda nãofazia ideia de para onde iam e estava bem claro que Jessetambém não sabia. Depois de falarem de Brad, Jesse paroude conversar e se concentrou em dirigir. Talvez estivessepensando em como chegar a Miami e voltar no mesmo dia.

Mickey tinha pensado em contar o restante da históriasobre Gina quando seu filho tivesse voltado da Califórnia.

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Quando Jesse o convidou para passear, parecia ser a ocasiãoperfeita. Claro, agora teria que achar um jeito de tocar noassunto. Pareceu tê-lo encontrado:

 —  As pessoas não costumavam pular da cama naquelaépoca  —   começou. Jesse o olhou e não sabia muito bemsobre o que Mickey falava. Mas um segundo olhar foisuficiente para esclarecê-lo.  —   Eu não dormi com sua mãeantes do casamento  —   continuou.  —   Mas com Gina, meuDeus, desde o primeiro beijo havia algo queimando entre agente.

Era sempre assim desde o primeiro beijo. O encontro desábado levava ao de domingo, que, por sua vez, levava ao deterça e em seguida ao de quinta. A única vez que não tinham

se encontrado à noite tinha sido uma terça em que Mickeytivera um jantar de negócios ao qual não pudera faltar. Todanoite, havia conversa e diversão como no primeiro encontro.Mas agora havia algo mais: uma atração física magnética.Sempre trocavam carinhos em público, davam-se as mãos,beijinhos, abraços. E, na frente da casa dela, os beijos eramcada vez mais demorados e apaixonados, e ficava cada vezmais claro que estavam juntos. Na noite anterior,

preocupados que pudessem ser vistos por um porteiro queGina conhecia desde pequena, ela guiou-o ridiculamente paratrás de umas árvores em fila. Mickey riu, mas seu humor nãomudou.

Ainda na mesma noite, ao comerem macarrão e beberemum Chianti, em um restaurante no qual já tinham estadoduas vezes, Mickey mal podia comer ou conversar. Tudo o

que ele sabia era que a perna de Gina estava colada na dele,que ela o puxava de leve com o braço, que a cabeça dela

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pousava em seu ombro. Mickey queria agarrá-la e, embora sepoliciasse, nada detinha sua imaginação.

 —  Você não está comendo muito —  ela reparou, em um

momento mais tranquilo.

Mickey olhou para o prato e viu que estava pela metade.O de Gina também.

 —  Nem você.

 —  É que as porções são muito grandes aqui.

Mickey procurou as mãos dela e as trouxe até os lábios. —  A gente vai ter que sair logo, ou vai perder o filme  —  

ele disse.

Gina levou as mãos dele para o rosto.

 —  Acho que seria melhor se a gente fosse para um lugarmais tranquilo —  ela sugeriu.

Mickey gostou da sugestão. Não tinha a menor vontadede se distrair com um filme.

 —   Podíamos tomar um drinque no Waldorf  —   elepropôs.

Gina levou a mão dele para perto da boca e a beijou.

 —  Algum lugar ainda mais tranquilo —  ela sussurrou.

Mickey olhou dentro dos olhos dela, sem saber direito aque se referia. Ele não ligava muito para onde eles iriam,desde que ele pudesse continuar lhe fazendo carinhos.

 —   Ainda não sei onde mora, Mickey  —   ela disse, combrandura, quase tímida.

 —  Lá é bem tranquilo  —  disse. Percebeu que sua bocasecara.

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Não disseram mais nada, nenhuma palavra, dentro dotáxi. Algumas vezes, Gina olhou para ele e quase disse algo,mas em seguida pousou a cabeça no ombro dele e acariciousuas mãos.

Quando entraram no apartamento dele, Mickey tirou ocasaco dela e colocou-o sobre uma cadeira. Embora eletivesse fantasiado esse momento nas semanas anteriores,estava muito nervoso.

 —  Posso lhe oferecer algo? —  ele perguntou.

Gina sorriu de um jeito que ele nunca mais esqueceria.

Dizia tantas coisas ao mesmo tempo. Dizia que elaconsiderava a vida deles juntos uma aventura, que Mickeysignificava mais para ela do que ela poderia imaginar, que elaestava tão nervosa quanto ele. E, enquanto ela sorria, foi atéele e levou a mão a seu rosto.

 —   Só isto  —  disse e deu-lhe o beijo mais profundo detodos.

Se Mickey tinha quase desmaiado com os outros beijos,dessa vez ele se sentiu elétrico. Puxou Gina para perto de si,apertando seu corpo o máximo possível. Ele beijou seuslábios, o rosto, o queixo, o pescoço. Preocupado que estivesseindo rápido demais, retrocedeu um pouco e olhou para osolhos dela.

 —  Não acredito que o quero tanto! —  ela declarou.

Mickey se rendeu ao desejo. Beijou-a apaixonadamente,desabotoou a blusa dela, abriu o zíper da saia. De algummodo, os botões da camisa dele também foram desabotoados,embora não tivesse percebido Gina abrindo-os, de tanto quequeria vê-la nua. Eles foram para o sofá, ainda despindo umao outro com tesão. Eles se deitaram e Mickey, voraz,saboreou os ombros dela, os braços, o ventre. Enfim,

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alcançou a parte de trás do sutiã e o fecho. Abriu-o e com oslábios abaixou as alças e todo o tecido que cobria seus seios.

Ele se afastou um pouco para remover de vez o sutiã e

olhou para Gina, excitado, percebendo então que ela era maisbonita a cada segundo. Uma voz interna disse-lhe paradiminuir o ritmo, para saborear o que estava acontecendoentre eles. Sim, o desejo vinha crescendo desde a primeiraconversa. Não, nunca tinha sentido tanto tesão. Mas esse eraum momento para apreciar, para ser marcado em todos osdetalhes.

Naquele instante, ele se inclinou para que ela o beijassedemoradamente, com ternura.

 —  Você é a pessoa mais singular que já conheci  —   eledisse.

Ela o beijou e abraçou-o bem firme.

 —  Nós estamos singularmente juntos —  ela disse.

Dali em diante, tudo ficou mais lento, pois amboscompreenderam que se lembrariam de tudo o que estavamsentindo. Delicadamente, Mickey moveu os lábios ao redor dotorso dela, querendo beijar cada centímetro de seu corpo. Elamassageou os músculos do ombro dele, passou os dedosentre os pelos de seu peito. Ela o virou para desabotoar obotão da calça e despi-lo, e Mickey não se sentiu exposto,mas livre.

Por muitos minutos, eles se abraçaram bem forte, aspernas nuas explorando um ao outro, os beijos ainda maisintensos. Por fim, Mickey montou em cima dela e devagartirou a calcinha de Gina. Ele a olhou e ela estava sorrindo denovo. Era um sorriso que repetia as mesmas palavras deantes, mas também confirmava que o que faziam erainquestionavelmente certo.

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Os minutos seguintes foram um misto de sensaçõespara Mickey. Os corpos se moviam juntos e Mickey sentiamuito prazer. Nunca havia experimentado algo parecido como que sentia agora por Gina. A excitação física associada à

imagem de uma mulher que levava esse tesão para as alturaso arrebatou. Ele queria que esse momento durasseeternamente e sabia, de muitos modos, que isso seria parasempre verdade.

Depois que a paixão abaixou, eles se deitaram juntospor um bom tempo sem se falarem. Silêncios como essehaviam se tornado interlúdios bem-vindos nas semanas

anteriores. Dizer nada e tudo ao mesmo tempo. Por fim, Ginase virou para beijá-lo e olhou para o teto.

 —  Acabamos de alcançar a eternidade —  ela disse.

 —  Toda vez era a mesma coisa  —  Mickey disse a Jesse. —  Toda vez, sempre.

 Jesse não sabia ao certo se havia algo para dizer. Eletinha se comovido com a profunda emoção na voz do paienquanto falava, mas sabia que qualquer resposta seriabanal.

Quis saber se haveria mais histórias sobre Gina naqueledia, mas, ao olhar para o pai, deduziu por experiência quenão voltaria a tocar no assunto por um tempo. Pelacentésima vez, Jesse desejou conhecer o passado misteriosodo pai.

Mickey estendeu a mão, ligou o rádio e eles continuaram

o passeio de carro.

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Capítulo 20

Na noite seguinte de meu retorno da Califórnia, meupai lavou a louça. Eu estava convencido de que ele parariacom a farsa assim que Marina se fosse, mas descobri que não

havia motivo para procurar pelo em ovo. Pelo tempo em quevivera comigo, a gente se habituara a ligar a TV depois do jantar. Tendo passado o dia lendo e escrevendo, eu estavamais que propenso a descansar, e ele ligava a TV mesmo sópor ligar. Mas, nessa noite, depois que terminou de lavar alouça, ele veio para a sala trazendo um baralho.

 —   Alguém quer jogar uma partidinha de pôquer?  —  

sugeriu. Marina estava sentada no sofá. —  Partidinha de pôquer? —  eu disse.

 —   Sim.  —   Ele olhou para Marina.  —   O que mais tempara fazer, assistir à TV? Não tem nada de bom até as nove,certo, Marina?

Olhei de relance para ela, que já estava se levantando e

andando para a mesa da sala de jantar.

 —  Jogo melhor pôquer do que xadrez —  soltou para ele.

 —  Bem, isso seria um progresso. —  Meu pai continuou: —   Espero que seja melhor em pôquer do que no BancoImobiliário.

 —  Azar nos dados, Mickey. —  Marina levantou a mão na

frente dele, fingindo recriminá-lo. —  Azar nos dados.

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 —  Claro, os perdedores sempre arranjam uma desculpa —  disse, sorrindo.

Observei-os conversar, muito embora a gente tivesse

ligado a TV depois do jantar. Quando é que eu me tornaravizinho de Fred MacMurray? Quando é que ficara claro que oconvite de meu pai não era uma sugestão, mas uma ordem?E que Marina sabia de cor a agenda do dia? Por fim, juntei-me a eles.

Meu pai jogou com vontade, gabando-se de suas vitóriase narrando nosso desempenho como se a ESPN o tivesse

contratado como comentarista. Nunca me dei bem em jogosde apostas, mas, como estávamos apostando fichas e nãodinheiro de verdade, joguei sem prestar atenção. Fiz meu paimostrar as cartas quando eu tinha apenas um par de quatrosna mão, e, quando fiz um straight  e derrotei Marina, elaacabou jogando as cartas na minha cara. Meu paiconsiderava essa uma forma refinada de divertimento.

Pouco depois das 21h, a gente voltou a se sentar nosofá. Na HBO passava Beleza Americana   e meu pai prestouuma atenção incrível no filme, mesmo que condenasse seusvalores. Sei que ele era esperto o suficiente para entender asironias e quis saber se, ao criticá-lo, estava me mandando umrecado que não entendi bem.

Uma hora mais tarde, Marina se inclinou para me beijarna testa e disse:

 —  Eu deveria ir para a cama.

Fiquei tão contente quando ela disse isso que, se eutivesse dito antes, revelaria minhas verdadeiras intenções.Mas, como fora ela, meu pai interpretaria como senso deresponsabilidade.

Embora tivesse escutado o relato de Gina naquele dia,

era hora de parar de ficar preocupado com o que meu pai

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pudesse pensar sobre eu dormir com Marina debaixo de seunariz. Embora não quisesse pensar na imagem de meuspróprios pais na cama, a imagem de Mickey Sienna (que naverdade ainda era, para mim, uma pessoa bem diferente de

meu pai) transando com a misteriosa Gina eraestranhamente fascinante. Naquela tarde, eu tinha sugerido aMarina que passasse a noite em casa.

 —  Acho que vou ter que comprar uns jogos de tabuleiropara que meu pai se divirta à noite  —  disse, enquanto eu eela escovávamos os dentes.  —  O que você sugere: Strategos,Life ou Candy Land?

 —  Foi divertido jogar cartas com ele hoje.

 —  Sim, tem razão. Foi um dia cheio de surpresas.

Ela largou a escova de dentes e me beijou.

 —  Acha que podemos ter uma noite cheia de surpresas? —  disse, tentando me seduzir.

 —  Estou pensando nisso desde as 6h30 da manhã.

Eu a abracei e fomos devagar do banheiro para o quarto.

Embora o tempo que eu tivesse ficado longe dela tivessecriado em mim um desejo maior do que poderia supor, nãohavia pressa de transar. Sempre tive muito prazer em despi-la, em explorar com luxúria cada pedacinho de pele exposto.

Conhecia todos os seus “pontos Gs”, onde tinha mais prazercarnal, e com certeza ela também sabia onde ficavam osmeus. Embora meus sentidos tremessem de ansiedade poruma descarga esperada havia mais de uma semana, nãoqueria apressar nada.

Não sei quanto a história de meu pai havia meinspirado, ou mesmo o fato de eu tê-la recontado a Marina.

Ela e eu sempre intuímos que transar era ao mesmo tempocasual e final. Mas, naquela noite, muitas coisas agiram

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simultaneamente. Termos sentido saudades um do outro,termos ouvido primeiro a história de uma paixão alheia, ofato de eu ainda estar excitado com o que acontecera naCalifórnia e muito agradecido pelo que Marina havia feito por

mim. E mesmo o pensamento maldoso de que meu pai via TVali em casa contribuía. Era uma carga de energia no quarto.Fez com que cada beijo fosse mais suave, cada carinho, maisintenso. E, quando finalmente estávamos quase lá,parecíamos haver começado de um lugar diferente.

Não falamos por vários minutos depois. Geralmente, umdos dois dizia algo romântico ou picante imediatamente

depois, mas agora parecia desnecessário e inapropriado. Teros corpos colados, sentir a respiração um do outro, isso erasuficiente. Por fim, Marina se apoiou em um braço e acaricioude leve os pelos de meu peito.

 —   Este é o meu favorito  —   disse, referindo-se a umninho pequeno em volta do peitoral.

 —  E por quê?

 —  Porque vai na direção oposta de todos os outros. E éde uma cor levemente diversa, mais clara. É o seu pelorenegado. Sabia que tinha um?

 —  Não tinha certeza.

Ela beijou meu peito e em seguida minha boca.

 —   Você tem algumas coisas assim. Tem umamanchinha nas costas que é mais vermelha que as outras. E,claro, aquilo na sua unha do pé.

 —  Eu não tenho nada na unha do pé!

 —  Ué, não reparou, não? Não percebeu que a unha dodedo perto do seu dedão direito é redonda e que as outras são

quadradas? —  E, para ilustrar, inclinou-se para meus pés edeu um beijinho no dedo.

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 —  Você tem a pele mais macia um pouco à esquerda doseu joelho direito —  eu disse.

 —  Eu sei.

Eu me sentei e fui para trás dela.

 —  Sabia que tem uma falha de cabelo na nuca?

 —  É?

 Toquei-a de leve.

 —  Você nunca tinha me provocado assim antes.

 —  Claro que sim, só não sabia o que estava fazendo.

Beijei a falha de cabelo e em seguida o pescoço eombros, depois virei-a para mim e beijei-a na boca.

 —  Eu amo essa marquinha —  eu disse.

 —  Obrigada —  respondeu, quase um tanto pasmada.

Ela se ajeitou para ficar por cima de meu peito e a genteficou assim por mais um tempo, sem dizer nada.

 —  Eu amo você, Jess —  disse, quase aos sussurros.

Fazia muito tempo que uma mulher não me dizia isso.De fato, acho que fora em outra vida que isso acontecera. Daúltima vez, fora verdade, mas eu tinha compreendido mal seu

significado. Da última vez, pensara que quisesse dizer o nívelsuperior de devoção, bem como que fosse infinito. Dado orelacionamento que eu tinha agora com Marina, e os muitosgraus em que estávamos ligados, era notável quehouvéssemos chegado a essa altura sem dizer aquelaspalavras. Não que eu não tivesse pensado no assunto, porémachei que sua hesitação em expressar vinha do mesmo lugarque a minha: que, fazendo isso, poderíamos lutar contra o

inevitável.

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Eu a abracei bem firme e dei-lhe um beijo na nuca.Queria que ela soubesse quanto significava para mim que elativesse dito aquilo. Queria que soubesse que eu me importavamuito com ela, que a amava. Claro que a amava. Qualquer

definição lógica de amor revelava que eu estava apaixonadopor Marina já havia algum tempo. Embora eu ainda nãoestivesse certo e consciente do que dizia, era importante paramim que ela soubesse.

 —  Eu amo você também, Marina.

Ela se inclinou para trás e me beijou com ternura,

vagarosamente. Em seguida, se ajeitou para me olhar nosolhos. Queria que o que ela visse deixasse claro que eu erasincero. Não sei bem se ela entendeu. Depois de um instante,ela se apoiou no meu peito e eu a abracei. Permanecemosassim por vários minutos.

 —  A gente deveria dormir —  ela disse.

 —  Sim —  concordei e ambos nos movemos debaixo dos

lençóis. Eu me estiquei para apagar a luz. —  Eu amo você —  repeti e me ajeitei perto dela, sem saber por que tive derepetir as palavras.

Na manhã seguinte, depois que Marina saiu, pudepensar um pouco mais. Lembrei-me da primeira vez que umamulher tinha dito aquilo para mim. O nome dela era Lisa enós namoramos um mês no colegial. Quando ela meconfessou seu amor, senti que todos os meus nervostremiam. Imediatamente, disse que também a amava e entãofiquei brincando com as palavras o restante do dia. Liguei

para um amigo. Escrevi um texto sobre estar apaixonado emmeu diário. Repeti as palavras em voz alta, em meu quarto,

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uma dúzia de vezes, embora ninguém, nem mesmo Lisa,estivesse ali para ouvir.

Quis saber por que não tinha tido vertigens dessa vez.

Por que não me alegrava com o fato de que uma mulher comoMarina me dissera que me amava? Claro que tinha algo quever com o fato de que Lisa e eu nos separamos depoisdaquela noite, bem como com as declarações semelhantes deGeorgia, Karen e das outras mulheres. Mas isso não era tudo.Ao me dizer que me amava, Marina tinha me mostrado ofantasma no quarto. Havíamos conversado inúmeras vezessobre nossa crença comum de que poucos  —   ou quase

nenhum  —  relacionamentos tinham o poder de vencer. Mas,ao fazer isso, evitamos perceber que nossos sentimentoscresciam. Ao proclamar em voz alta, Marina tinha anunciadoque essas duas noções precisariam ser reconciliadas. Se nosamávamos e acreditávamos que todo amor morre, o queexatamente estávamos dizendo?

Achava que isso era intensamente irreconciliável. Até

agora, estávamos apaixonados, mas tínhamos escolhido nãonomear os sentimentos. Não que eu tivesse de algum modotido consciência disso, mas era como se, ao agir assim, o queexistia fosse outra coisa, algo que era unicamente nosso. Algoque simplesmente não se esvai com o tempo. Como escritor,tentei me manter consciente de que a possibilidade de meapossar das palavras era algo que eu levava mais a sério doque a maioria das pessoas, que eu dava a elas um valor

maior e mais concreto do que a maioria das pessoas, e queisso era algo a ser evitado. Era um desafio para mim etambém um alívio. Mas não demorou muito para eu ter outranoção bem clara, que não tinha nada que ver com palavras:meu relacionamento com Marina estava mudando. Tínhamosentrado em território novo e a travessia não seria tão fácilquanto a ilha na qual tínhamos plantado as raízes.

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E ainda outro pensamento: eu havia sido muito feliznessa ilha. Não tinha certeza de que queria voltar para acivilização.

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Capítulo 21

Não ter Marina ali na noite anterior tinha sido meio

estranho para Mickey. Ela ficara na casa por quase duassemanas e ele se acostumara a vê-la sentada do outro lado damesa, jogando com ele, ele brincando com ela. Na verdade,ela trouxera uma luz para a casa, e algum dia seria acompanheira ideal para um cara  —  mesmo se não fosse seufilho emocionalmente limitado. A noite anterior, restaramsomente ele e Jesse. Parecia uma reunião de sócios. Ele tinhaque dar um crédito a Jesse, por ter feito um bom jantar e tersugerido uma partida de xadrez. Era muito agradável, masnão dava para dizer que era a mesma coisa.

Algumas vezes, durante a noite, pensou em perguntar a Jesse sobre Marina. As coisas pareciam um pouco diferentesdesde que ele chegara da Califórnia. Talvez a ausênciafinalmente tivesse feito com que seu filho percebesse que nãopoderia viver sem aquela mulher. Ou talvez aqueles olhares

fossem apenas sexo. Às vezes, era difícil saber a diferença.

Qualquer que fosse a razão, Mickey sentia-se inspiradopara falar de Gina essa manhã. Havia apenas alguns dias queele contara a Jesse sobre sua primeira noite com ela e antesnão tinha sido capaz de voltar atrás no tempo. Mas pareciaque era a coisa certa para fazer agora. Quando Jesseapareceu na cozinha para tomar a terceira xícara de café,

Mickey o seguiu.

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 —  Como vai o trabalho? —  ele perguntou.

 —   De volta à labuta  —   Jesse rosnou.  —   Entreguei oartigo sobre Hayward ontem para Aline; então, agora voltei a

escrever outro artigo sobre as chatices de uma reforma emcasa. Tenho que parar de escrever essas coisas.

 —  Você pode se dar esse luxo?

 —  Não —  Jesse respondeu, seco. Em seguida, tomou umgole de café e relaxou:  —  Não sei. Depois que o artigo sobreHayward for publicado, talvez tenha mais propostas deartigos mais longos. Mas isso vai acontecer daqui a muitos

meses. Com sorte, Aline vai me dar outra matéria antes disso.Entretanto, não há como eu conseguir algo melhor tão cedo.

Na verdade, Mickey não queria mais café, mas se servirnovamente era um modo de continuar na mesa da cozinha eisso era a coisa justa a fazer naquele momento.

 —   Tenho bastante dinheiro, você sabe  —   ele disse.  —  

Certamente, mais do que suficiente para nós dois até quevocê receba as comissões.

 Jesse olhou para ele de modo estranho e Mickey nãoconseguiu adivinhar o que se passava pela mente dele. Eleestava pensando na oferta? Tinha se ofendido? Tinha dúvidasquanto à sinceridade do pai? Por uns bons quinze segundos,ele não disse nada, mas aí balançou a cabeça.

 —  Obrigado, pai, mas não. Tenho que me virar sozinho.

Mickey concordou.

 —  Sabia que diria isso. Mas, se voltar atrás, não hesiteem me dizer.

 Jesse parecia paralisado, incapaz de se mover, e aindasem ter certeza do que mais teria que fazer. Mickey pensou se

o filho não tinha uma resposta pronta para ele, e que de

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algum modo ele havia tocado em um assunto um tantoquanto intocável.

 —  Escute, se tiver um tempinho, queria lhe contar mais

sobre Gina.

 Jesse sorriu diante dessa possibilidade.

 —   Hummm, é isso ou cair no sono na frente docomputador no meio de uma frase incompleta. Sim, acho quetenho um tempinho  —  afirmou, movendo-se para a mesa dacozinha e sentando-se. Mickey se sentou a seu lado.

 —  Você é um bom ouvinte  —  disse, sem ter certeza deque era inteiramente verdade.  —   Então, de qualquer modo,não vamos fingir que não lembramos onde paramos. Depoisdisso, Gina e eu nos víamos sempre que possível. Enquantoisso, Gina deveria viajar à Itália por duas semanas, em ummês. Ir sozinha para a Toscana por quinze dias. Tão típicodela. Mas eu não suportava a ideia de me separar dela poresse tempo. Então, dei um jeito e inventei um subterfúgio  —  

você sabe, casais de namorados não viajavam juntos para aEuropa naquela época —  e acabei indo com ela.

Gina dormiu no ombro dele nas duas últimas horas devoo. Antes disso, haviam conversado sem parar sobre osplanos em comum para as férias: o que veriam, o quecomeriam, que vinho degustariam. Gina tinha um jeito umpouco menina de falar, comparável ao que empregara naprimeira visita deles ao Rumplemeyer’s (eles foram outrasvezes). Como de resto, ele se inebriava com isso.

Ao aterrissar em Roma, Mickey viu sinais de que acidade grande ainda se recuperava da guerra. Muitos dos

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cartazes no aeroporto falavam de reconstrução e os jornaistambém colaboravam com esse esforço. Parecia estranhopara Mickey que as férias tão esperadas fossem para um paíspara o qual ele havia contribuído minimamente, defendendo-

o, poucos anos antes. Que esse país fosse também a terranatal de seus ancestrais fazia-o sentir-se mais estranhoainda. No entanto, ele se lembrou de que, no tempo em quetrabalhava no Brooklyn para os norte-americanos em guerra,não era o país que ele e seus amigos defendiam, mas osopressores a quem tentavam vigorosamente destituir.

Gina escolheu um hotelzinho na cidade murada de San

Gimignano. Mickey nunca vira nada igual: uma paisagemíngreme que se abria para grandes construções em pedra, umarco que dava para ruelas pavimentadas e repletas delojinhas e história. Tiveram que estacionar o carro longe dohotel. Mickey reparou, enquanto carregava as malas, que erauma bênção que a rua fosse uma descida. Concluiu que teriaum motivo a mais para não querer sair dali na volta. Jáestava encantado com a vista, bem como Gina.

Como em um cenário de conto de fadas, ao chegar,confirmou-se que Mickey e Gina haviam começado um jogoelaborado de faz de conta que duraria pelas duas semanasseguintes. Ao atravessarem a porta com as malas, ofuncionário do hotel os cumprimentou como “Sr. e Sra.Sienna”. Gina falava italiano e Mickey entendia algumaspalavras, graças ao que ouvira em dialeto carregado quando

criança em casa, mas o homem falou em inglês.

 —  Como descobriu quem somos? —  Mickey perguntou.

 —   Vocês são os únicos americanos esta semana  —   ofuncionário respondeu com um sorriso. Mickey hesitou dianteda ideia de ser inequivocadamente americano, mas ficoulisonjeado com o tratamento “Sr. e Sra. Sienna”. Quando eledecidira se juntar a Gina na viagem, ela cancelara a reservaque fizera em um hotel para reservar um quarto nesse outro.

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Não dava para declarar que não eram casados. Podia ser quese recusassem reservar para eles. E eles preferiam a ilusão deum casamento à ilusão de dormirem em quartos separados.Mickey sabia de tudo isso, mas era a primeira vez que ouvia

aquele tratamento. O coração dele bateu forte e ele olhoupara Gina, que admirava as redondezas. Quantas vezes já osimaginara casados? Agora, e pelo menos pelas duas semanasseguintes, eles seriam.

O quarto em si era um pouco espalhafatoso para seugosto, mas Gina parecia ter gostado e, por ele, tudo bem. Eleolhou pela janela para a rua abaixo. Tanto movimento, tantos

lojistas chamando a clientela, dizendo bom-dia aos fregueses,conversando com os funcionários. Tudo aquilo em um volumeque podia reconhecer do bairro em que tinha crescido.

Quando se virou, percebeu que Gina caíra na cama esorria para ele. O vestido da viagem estava acima dos joelhose, naquele instante, a visão  —   a mulher que ele adorava,deitada irresistível na cama de um hotelzinho italiano  —  

pareceu-lhe a coisa mais sexy que já tinha visto. Ele foi paraa cama, tocou imediatamente o joelho dela à mostra e seinclinou para beijá-la de modo apaixonado e terno, como setornara hábito nas semanas anteriores. Deitou-se ao ladodela.

 —   Chegamos  —   ela disse.  —   Mal posso acreditar queestamos aqui de verdade!

 —  Só você e eu.  —   Ele completou:  —  Com um mundointeiro para explorar.

Eles se beijaram de novo e Mickey a desejou de modoquase incontrolável. Ele sempre a quisera, desde o primeiromomento em que a vira, para falar a verdade. Mas, naqueleexato instante, tudo que pensava era em sua pele, e noslábios, e nos tornozelos lindos de morrer.

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Por fim, desceram à rua para vasculhar uma loja decerâmicas e jantar em um restaurante recomendado pelopessoal do hotel. Na metade do jantar, Mickey se deu contade que tinham feito uma longa viagem e começou a se sentir

cansado. Até aquele momento, a excitação de tudo o quefaziam tinha funcionado como um estímulo para não parar.

Caminharam devagar de volta ao quarto, o vinhofazendo um efeito um tanto quanto surpreendente, segundoMickey, no modo com que andavam. Uma música tranquilavinha de uma taverna perto do hotel e eles pararam por uminstante para escutar. Gina pousou a cabeça no ombro dele.

Nos tempos do Brooklyn, Mickey sempre conversavasobre sexo com os amigos e vizinhos, informando-se com osmais velhos e, por sua vez, repassando a informação para osmais novos, quando era chegada a hora. Mas, em nenhumadessas conversas, ou outra sobre o mesmo assunto, alguémhavia mencionado a satisfação absoluta que derivava de estarabraçado a noite toda com a mulher que se ama. Toda vez

que transavam em casa, Gina se aninhava a ele e ele dormiaem um instante. Mas sempre havia o pensamento de que elesprecisariam se levantar logo depois e Gina deveria voltar paraa casa dos pais. Todavia, nessa primeira noite na Toscana,essa condição desaparecera. Eles tinham a noite toda para sie mais outras doze. Por diversas vezes, Mickey acordou parase esfregar no braço de Gina ou beijar sua cabeça. Por fim,caiu em um sono profundo, que durou até a manhã seguinte.

Quando, finalmente, acordou, Gina ainda estava ali, olhandopara ele.

 —  Bom dia —  ela disse, aproximando-se para beijar-lheo queixo. —  A gente ainda está na Toscana. Acho que não foium sonho.

Mickey puxou-a para perto de si e também deu-lhe umbeijo na boca.

 —  É um sonho. Mas um sonho verdadeiro.

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Ela o beijou e deu um tapinha no rosto dele:

 —  Você dormiu bem? —  ela perguntou.

 —  Foi a melhor noite de sono da minha vida. —  Deve ser o ar da Toscana —  ela concluiu, sorrindo.

 —  Acho que tem algo a ver com a companhia.

Poucos dias depois, eles dirigiram para o campo até acidade de Chianti, onde pararam para almoçar. Embora acomida italiana em Nova York fosse excelente, nada secomparava ao que eles comeram nessa viagem. O almoço deGina foi macarrão com manteiga,  funghi   porcini   e sálvia,enquanto Mickey comeu salsicha de carne de javali com

batatas assadas. Primeiro, saborearam uma entrada comsalame que era melhor do que qualquer embutido que elestinham comprado no Brooklyn, pão italiano e azeitonas tãoencorpadas e perfumosas como nunca antes Mickey provara.Mas foi o último prato que realmente arrasou. Ele quasedesmaiou de êxtase. O sabor era quase tão inebriante quantoo sorriso de Gina. A Toscana era conhecida por seu bomazeite, mas isso era dos deuses. Depois de experimentar

várias vezes, Mickey chamou o garçom. Em vão, tentou secomunicar com ele, mas não dominava o italiano. Por fim,Gina traduziu.

 —   Ele disse que o Sr. Uzzano fabrica o azeite na suapropriedade  —   ela esclareceu.  —   Não é uma grandeprodução, mas ele vende para os restaurantes da região.

 —   Pergunte-lhe onde podemos encontrar mais. Vamos

ter que ir a todos esses restaurantes.

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Gina perguntou; o garçom sorriu e respondeu.

 —   Ele disse que, se a gente quiser, ele pode organizaruma visita ao Sr. Uzzano.

 —   Você gostaria?  —   Mickey perguntou, embora jáestivesse entusiasmado com a oferta.

 —  Se isso for manter este seu sorriso besta, eu acho quetudo bem  —  ela disse, rindo. Ela se voltou para falar com ogarçom, que balançou a cabeça e beijou-lhe a mão.

 —  Acho que ele está contente em nos fazer esse favor —  

ela afirmou para Mickey.

Uma hora mais tarde, eles estavam aos pés dos degrausde um castelo construído no século XVII. Uma cidade tinhaaparecido havia cerca de dois quilômetros, mas Mickey tinhaa sensação de que esse lugar era separado por algo além dadistância. Não fossem os carros estacionados à beira daestrada, Mickey teria se convencido de que tinha viajado

trezentos anos no tempo. Nos dias anteriores, ele se comoveracom a história daquela terra. Em casa, nada parecia ter maisde cinquenta anos, e ele tinha a sensação de que um prédionovo surgia a cada dia na City. Mas ali um mundopermanecia como prova do tempo e, ainda que a idadehouvesse removido algo do brilho, era incapaz de alterar suamagnitude.

O Sr. Uzzano em pessoa era uma figura lendária. Eraelegante e falava um inglês perfeito com sotaque aristocrático.Parecia ter imenso prazer em mostrar suas terras. Oresultado foi um pouco intimidante para Mickey, mas logo elese surpreenderia com o olival. Lá, rodeados pela fragrância dofruto, o Sr. Uzzano explicou-lhes como contratava pessoaspara colher as azeitonas e então extrair o óleo do mesmomodo que o pai dele fizera, e também seu avô e bisavô antes

dele. O ar aristocrata desaparecera e dera lugar aoentusiasmo de um homem devotado a seu ofício.

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Depois do tour , o Sr. Uzzano convidou-os para visitar ocastelo. Mickey mal podia acreditar no que acontecia. Duashoras antes, eles estavam em uma praça moderna. Agora,perambulavam em meio a tapeçarias feitas à mão, móveis

confeccionados artisticamente e escadas pomposas. Mickeyobservou Gina e o já familiar sorriso estonteante em seurosto. Não havia dúvida de que tudo aquilo fora possívelporque fora ela quem magicamente o criara.

Eles se sentaram em uma varanda, sorveram um vinho(“uma safra feita por mim nas terras abaixo da colina”) ecomeram mais pão com azeitona. Quando Gina pediu licença

para ir ao banheiro, ambos os homens a seguiram com oolhar.

 —  Sua esposa é muito bonita —  disse o Sr. Uzzano paraMickey.

Ouvir alguém se referir a Gina como “sua esposa” deu aele um pequeno estímulo. Quase se sentiu culpado porenganar seu anfitrião e pensou que alguém sábio como elecertamente entenderia. Mas não disse nada além de“obrigado”. 

 —   E ela o ama do fundo do coração  —   o homemcontinuou.  —   É evidente. Minha esposa morreu há algunsanos, mas ela me olhava da mesma maneira. Você é muitosortudo. Goze dessa felicidade.

Mickey se inflou:

 —  Eu sei. Eu sei.

O sorvete foi uma revelação. Tendo crescido noBrooklyn, é claro que Mickey já havia experimentado sorvete.Mas, por alguma razão, nada do que serviam na velha

vizinhança se assemelhava à riqueza de sabor que continhacada casquinha que eles tomaram todo santo dia ali. A rotina

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era parar em uma sorveteria às 16h, onde quer queestivessem.

Sentados em duas cadeiras de ferro forjado, Mickey

passou a casquinha para Gina antes de ela pedir, como elasempre fazia. Gina emitiu um sorriso de surpresa antes dedar uma lambida e depois uma segunda, para então devolvê-la a ele.

 —  Suponho que queira experimentar o meu também  —  ela disse.

Mickey lambeu o próprio sorvete e gesticulou:

 —  Só se você quiser dividir —  ele afirmou.

Gina deu uma risadinha:

 —  Hummm, acho que não. Está muito bom.

Mickey riu e se ajeitou na cadeira.

 —  Você faz um ótimo papel de falso marido —  ela disse. —  Assim, deixando que eu seja egoísta ao saborear o sorvete.

 —  Obrigado. Eu ensaio todas as noites quando você estádormindo.

 —   Verdade? Nesse caso, eu ordeno que trabalhe duro,mesmo quando suas pernas e braços e tudo o mais estiverembem juntinho de mim.

 —  Isso a incomoda?

Gina abaixou ligeiramente a cabeça.

 —  Desculpe. Pareceu que eu estava reclamando?  —  elaperguntou, esboçando um sorriso.

Mickey descobriu que tinha um apetite voraz por ela.

Mesmo uma insinuação dos dois na cama o excitavaloucamente. O tesão aumentava cada vez mais. Em muitas

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ocasiões naqueles dias, a expressão dela ou um gesto sutil oinspiraria a abraçá-la, beijar-lhe a testa, envolvê-la. Elequeria desesperadamente que ela sentisse seu amorclamando por ela, mas também sua afeição imensurável.

Nunca antes sentira algo tão forte por alguém.

 —   Já que tocou no assunto, você também finge muitobem ser minha mulher.

 —   Obrigada. Claro, eu não preciso praticar toda noitecomo você. As mulheres costumam imaginar essas coisasdesde a mais tenra idade.

 —   Verdade? Mesmo uma mulher independente e “prafrente” como você? 

 —   Ah, sim, com certeza. Eu “me casei” com TommyStrassi quando tinha 4 anos. E nos meus sonhos entrei naigreja com diversos garotos da escola.

Mickey riu, mas se admirou por ter descoberto que na

verdade não queria ouvir isso.

 —  Ah, então esta brincadeira de marido e mulher é cafécom açúcar para você.

 —   Algo assim  —   ela disse, tomando um pouco desorvete. —  É como sorvete.

Mickey lambeu outro tanto e percebeu que tinha

derramado um pouco na mesa. Obviamente, sabia que Ginaestava provocando, mas essa conversa o tinha perturbado.Alguns minutos depois, eles se levantaram para andar pelarua.

Gina já tinha segurado a mão dele, mas agora ela omantinha bem perto de si, ao passear.

 —  Não é nada disso —  ela corrigiu. —  Nunca senti nada

parecido na vida. Nem poderia imaginar isso.

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Mickey parou e a beijou. Eles se abraçaram forte pormuitos minutos no meio da rua, até que uma mulher idosasorridente passou por eles, dizendo algo alto que Mickey nãoconseguiu entender.

 —  O que foi que ela disse? —  Mickey perguntou, de testacolada com ela.

 —  Ela disse algo como “recém-casados, tão bonito”. 

 —  Acho que a gente é bem convincente no papel.

 —  Com você, fica fácil atuar.

Eles recomeçaram a andar. Mickey não conseguiapensar em outra fase da vida em que se sentira tão satisfeito.Ele se lembrou de que na véspera de viajar, considerara porum instante que as coisas poderiam não andar bem entreeles enquanto estivessem fora. Afinal, eles não haviampassado tanto tempo juntos. Nunca tinham acordado demanhã juntos. E se eles se irritassem um com o outro? E se

as manias dela, que até então eram encantadoras, setornassem repetitivas e cansativas em duas semanas? Agora,ele percebia que essas eram preocupações frívolas. O queacontecia após estarem tanto tempo juntos era que elesqueriam ficar ainda mais tempo juntos. E, mesmo sabendoque estavam vivendo uma fantasia, em um cenário desonhos, ele instintivamente percebeu que sempre quereriamais. Por um momento, imaginou os dois caminhando lado a

lado pela rua, aos 70 anos, e soube que teria que ser comGina, sempre.

Dois dias depois, foram passar um dia em Florença.Passaram a manhã explorando a paisagem e logo perceberamque precisariam de mais tempo se quisessem fazer aquilodireito. Foram para o Duomo e por uma hora e meia

admiraram a estrutura majestosa, imponente e artística.

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Subiram a torre, para ver a cidade do alto, e em seguidapassearam às margens do Arno.

À tarde, antes do sorvete, foram em direção às ruas do

mercado. Mickey nunca tivera necessidade de uma jaqueta decouro, mas agora que estava lá teve compulsão por compraruma. Ainda assim, segurou-se para não comprar bolsas,sapatos e peças de cerâmica. Uma rua lateral trouxe-lhes umartista que fazia pequenas esculturas em ferro forjado.Mickey nunca tinha visto nada igual e não tinha certeza deque gostava.

 —  Não são incríveis? —  Gina disse, ao entrar na loja. —  O que é isso? —  Mickey perguntou.

Gina se aproximou de uma que se curvava e retorcia emvárias direções. Ela levantou a mão para tocá-la, mas parouuns centímetros antes.

 —  Elas são o que são. Você não é uma dessas pessoas

que pensam que só é arte o que se parece com uma maçã ouuma mulher na cadeira, é?

Mickey pensou consigo que provavelmente ele eraexatamente assim, mas não queria que Gina descobrisse.

 —   Só perguntei para que você me desse suainterpretação.

 —  É bela.

Ela se virou para o dono da loja, que naquele momentotrabalhava em outra peça.

 —   São magníficas  —   ela afirmou. Mickey ainda olhavapara aquela que Gina quase tocara. Aos poucos, começou aachar belas as formas e as distorções. Era porque Gina quasea tinha tocado?

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 —   Obrigado  —   disse o artista, com um sotaquecarregado em inglês. Gina e ele conversaram em italiano porvários minutos. O artista se animava à medida que aconversa progredia. Mickey tinha certeza de que não havia

fregueses tão elogiosos e entendidos como Gina. Com ela,tudo era sempre melhor.

Mickey analisou detalhadamente aquela primeira peça.Ao fazê-lo, notou que dois fios de ferro se emaranhavam e seencontravam no meio e novamente na ponta da estátua. Derepente, pareceu-lhe muito romântica. Ele apanhou-a daestante e mostrou-a ao artista.

 —  Vamos levar esta.

Gina olhou-o, espantada.

 —  Quer comprar?

 —  Claro que quero comprar. Você não a adorou?

Gina reparou na peça outra vez.

 —   Sim, adorei. Pensei em comprar, mas  —   elasussurrou —  é um pouco cara.

 —  Vou comprar para você. Para nós.

Só depois de ter declarado isso e ter visto a expressão norosto de Gina foi que Mickey percebeu a importância do quetinha acabado de dizer. Notou que as palavras caíram muito,muito bem e pensou que Gina segurava o braço dele aindamais forte quando saíram de lá. Eles continuaram acaminhada, parando em incontáveis lojas.

 —  Estou quase com medo de reparar em qualquer coisae você acabar comprando para mim  —   ela afirmou. Mesmoassim, ao passarem por uma loja de calçados, ela demorou-seum pouco na frente de um par de botas de couro preto, antes

de prosseguir.

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As joalherias estavam um pouco mais à frente.Enquanto Gina namorava os broches de prata feitos à mão,os olhos de Mickey iam para outra direção. Passaram daspedras semipreciosas para outras que subitamente lhe

pareceram muito preciosas. Poucos minutos depois, aosaírem de uma loja, Mickey virou-se para Gina e falou:

 —  Você quer mesmo aquelas botas, não é?

Gina mexeu o nariz.

 —   O couro era tão macio. Dá para imaginar como sãoconfortáveis.

 —  E por que não as compra?

Ela balançou a cabeça.

 —  Seria uma extravagância.

 —  Vou comprá-las para você.

 —  Não vai, não. Está pagando muita coisa nesta viagem. —   Ela deu um sorriso malicioso.  —   Você não pode mecomprar, sabe, Sr. Sienna?

 —  Eu tremo só de pensar. Além disso, sei que você nãotem preço. Mas também sei que quer aquele par de botas.

 —  Sim.

 —  Então, vá buscá-las.Gina olhou em direção à loja de calçados.

 —  Acho que posso pagar. Vamos lá.

Mickey levantou a mão.

 —   Na verdade, acho que vou esperar você aqui.  —   Elemostrou-lhe um banco. —  Estou um pouco cansado de fazercompras.

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Gina deu-lhe um tapinha no peito.

 —   Ah, olhe só, meu homenzarrão não consegueacompanhar meu ritmo. Vou ter que levar isso em

consideração.

 —  Vá comprar as botas!

Mickey foi andando para o banco e acenou para ela,enquanto ela o observava. Assim que ela se foi, ele correupara a joalheria. Sabia exatamente que diamante escolher.

Agora que tinha o anel, a questão era como presenteá-loa Gina. Mickey pensou que era curioso como ele estava muitomais nervoso em relação a achar o cenário apropriado parapedir Gina em casamento do que com a ideia de se casar. Ele

tinha amigos casados e todos eles diziam que consideraramponderamente o assunto antes de fazer o pedido. A ideia emsi parecia ridícula a Mickey. Não havia dúvida nenhuma deque se casar com Gina era a coisa certa a se fazer.

Ele decidiu que falaria com ela em um piquenique nasmontanhas ao redor de San Gemignano. Pegaria emprestadoum cobertor no hotel. Mais pão, queijo parmesão e

embutidos. E, claro, uma garrafa de Chianti. Do alto,poderiam ver a cidade murada e as colinas da Toscanaabrindo-se diante deles. Eu poderia morar aqui, ele pensou.Bem aqui. Morar aqui só com Gina e o restante do mundobem distante.

 —  Você está quieto —  ela comentou, enquanto comiam.

Mickey percebeu que realmente estava muito calado.

Em parte, era porque aquele cenário transmitia paz. Mas, em

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grande parte, era porque estava ensaiando como fazer opedido de casamento.

 —  É que é muito agradável aqui.

 —  É bonito, não é?

 —  A gente vai voltar aqui algum dia. Em um aniversário,talvez.  —   Mickey percebeu aonde queria chegar. E Ginatambém.

 —  Aniversário? Está tentando me dizer alguma coisa?

Por um momento, Mickey não teve certeza do que fazer.Certamente, não havia planejado e falava sem pensar. Elepensava em se casar com ela incessantemente desde quecomprara o anel e as palavras vieram naturalmente. Nem delonge era o discurso romântico que pensara. Ao mesmotempo, pareceu ridículo voltar atrás agora e dizer algo maisromântico mais tarde. Ele fez a única coisa em que podiapensar. Desatou a rir.

 —  Do que está rindo? —  Gina perguntou, ao ver que elenão parava mais.

Mickey enxugou os olhos.

 —   Estou tentando lhe dizer uma coisa e não acreditoque estou fazendo desse jeito.

Ainda rindo, ele levantou o olhar para Gina. Havia tantaânsia naquele rosto. Naquele momento, Mickey percebeu queo modo como ele a pediria em casamento não tinha a menorimportância. Só importava que ele fizesse isso e ela dissessesim. Ele levou a mão ao bolso, respirou fundo e então serecompôs. Quando mostrou o anel para Gina, ela suspirou.

 —   Comprei isto para você ontem. Tinha ensaiado umdiscurso no qual diria tudo que já lhe disse antes.  —  Ele se

ajoelhou. Pelo menos aquela parte sairia direito.  —   Eu amo

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você, Gina. Quero ficar com você para sempre. Quer se casarcomigo?

Gina, antes mesmo que ele terminasse, já concordara

com a cabeça. Ela se jogou nos braços dele, fazendo-o cair,montou em cima dele e encheu-o de beijos. Então, Mickeypercebeu que não previra como seria a reação dela. Não sabiase ela seria fria e ponderada ou mesmo se ironizaria umpedido formal com anel. Ele gostava que ela o surpreendessede vez em quando.

 —  Quero meu anel agora  —  ela disse, quando, por fim,

saiu de cima dele. Mickey deu-lhe o diamante, uma únicapedra oval, de 18 quilates.

 —  É inacreditável! —  exclamou e colocou o anel no dedo.

 —  Fico contente que tenha gostado.

 —   Estou sendo supersincera. Sobre tudo o queaconteceu entre a gente. Alguns meses atrás, estava lutando

no mundo sozinha e agora tenho você.

 —  Ainda está lutando.

Gina sorriu.

 —  É. Mas não sozinha. Você não faz ideia de como estoufeliz agora.

Mickey abraçou-a e fechou os olhos. Ao abri-los de novo,a primeira coisa que viu foi a paisagem da Toscana. E, emseguida, virou-se para ver sua noiva e pensou em algovergonhoso:

 —  Tive uma ideia.

Mickey estava em um canto da cozinha.

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 —  Você pegou o mundo pelas mãos, Gina, de verdade —  ele disse, com a voz fraca. —  Queria ter estado perto de vocênessa hora. Deveria estar lá com você. —  Ele baixou os olhospara a mesa.  —   Espero que tenha aproveitado tudo o que

queria.

 Jesse estava se acostumando a ficar um poucodesorientado cada vez que o pai terminava de contar umaparte da história, mas dessa vez parecia que estavacaminhando sobre a superfície da Lua.

Seu pai e Gina haviam sido noivos? Nunca pensara

nessa possibilidade.

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Capítulo 22

Não sei bem por que ainda não havia percebido queas cargas emotivas são muito mais intensas que as

físicas.  Nas últimas semanas, estava treinando aeróbica. Aviagem para o Norte da Califórnia. A história das aventurassexuais entre meu pai e Gina. Marina me dizer que meamava. E então saber que meu pai e Gina tinham sidonoivos. Já estava na hora de diminuir os exercícios. Nãoqueria falar, nem escrever, nem comer. Estava exaurido.

Marina ter-me contado que me amava me atingiu comouma cápsula do tempo. Daquela manhã em diante, fiquei

cada vez mais pensativo quanto ao que aquilo implicava. Eraimpossível levar aquilo numa boa. Não importa o que mais eufizesse, nunca banalizaria nada a respeito de meurelacionamento com ela. Ao mesmo tempo, era ainda maisimpossível receber aquilo tudo de braços abertos.Simplesmente não sabia como aquilo influiria em nossarelação dali para a frente. E ela não estava me dandonenhuma ajuda.

Por outro lado, saber que meu pai tinha sido noivo deGina foi como uma dose de uísque (ou talvez um antigripal).O que há no casamento, ou na intenção de se casar, quemodifica tanto um relacionamento? Por que consideramos orompimento de um casamento de três anos muito mais tristedo que a separação de duas pessoas que viveram juntas porcinco anos?

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Meu pai ter pedido Gina em casamento mudou adimensão da história. Não importava que eles não tivessem secasado (pelo menos, até aquele momento, eu pensava que eraisso que tinha acontecido, mas quem é que pode prever quais

outras surpresas viriam?). O que importava era que orelacionamento deles era sério. Claro que havia chances deque as lembranças de meu pai tivessem sido ofuscadas pelotempo. É bem possível que os sentimentos de um pelo outronão fossem assim tão intensos. E mesmo que ele não tivesseme contado sobre suas dificuldades, desentendimentos,discórdias. Mas a riqueza de detalhes com que narrava orelato  —   ele não poderia fazer o mesmo sobre a partida dexadrez da noite anterior —  sugeria que Gina o tinha marcadotão profundamente que tudo o que haviam feito juntos não seapagara de sua mente.

Ou será que ela estava inventando tudo? Não havianegligenciado inteiramente o fato de que esse relato pudesseser produto da mente de um idoso. Entre outras coisas, haviaaquele incidente recente em que ele “falara” com seu irmão.

Porém, à medida que ele continuava a narração, aquiloparecia cada vez mais inconcebível.

O que significava que uma vez meu pai amara umamulher chamada Gina, que eles haviam tido umrelacionamento eletrizante e que tinham tido umaimportância vital na vida um do outro.

E mesmo assim tinha acabado.Sua excelência, a acusação permanece.

O que quer que Gina e meu pai tiveram não durou.Aquilo havia afetado meu pai de tal modo que, no diaseguinte à última parte do relato, ele voltara no tempo econtara a versão etérea dela, ainda procurando responder àssuas perguntas. Aquilo o tinha afetado tanto que ele havia

irradiado anos ao falar sobre ela.

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Mas o romance tinha acabado.

Não posso imaginar qual a intenção dele, mas não pudeevitar de fazer-me uma pergunta: se um relacionamento como

aquele, estupendo, havia terminado, que chances eu eMarina tínhamos?

E então, exaurido emocionalmente, me sentei à mesa doescritório e olhei para o nada. Eu havia vivido muitos diasiguais àquele no passado, mas não esperava que houvessemuitos outros depois de ter escrito o artigo sobre Hayward.Aline havia me ligado tarde no dia anterior para dizer quanto

havia gostado do que eu escrevera e que por consequênciahaveria mais trabalho. Aquilo deveria ter me dado maisestímulo para escrever, mesmo se fosse apenas paracompletar um artigo rudimentar, enquanto eu sonhava comalgo mais ambicioso. Entretanto, não mudei nada. Mal podiadigitar.

Quando o telefone tocou, fiquei contente em atender.Era um daqueles dias em que seria simpático com umvendedor de telemarketing . Até mesmo com um cara quequisesse fazer uma pesquisa por telefone.

Nem mesmo me importei com o fato de que quem meligava era meu cunhado Brad.

 —  Ei, Jess, como Mickey tem tratado você?

 —  Como umas férias prolongadas.

 —  É, posso imaginar. Daqui a alguns anos, vai ter queme contar em que diabos estava pensando ao trazê-lo paramorar com você. Não sei o que faria se Denise tivesse tido amesma ideia.

Você teria avisado ao The New York Times  que umbando de porcos estava cagando em cima de seu telhado,

pensei. Mas, na verdade, disse-lhe:

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 —  O que há de novo?

 —  Lembra que se referiu a Mark Gray da última vez queconversamos?  —   Brad perguntou, mudando de assunto,

dando a entender que não estava mais conversando com ummembro da família, mas com um empresário da mídia.

 —  Sim, ele é ótimo.

 —   Andei me informando sobre ele e muitas pessoaspensam como você. Sabe por que não está empregado comoeditor no momento?

 —  Bom, sei que com certeza não é por falta de ofertas.Sei também que não é porque não queira se juntar a ninguémda City . Acho que ele está sendo exigente. É jovem, ganhabem, tem uma reputação fabulosa e, quando estiver prontopara mudar, haverá inúmeras oportunidades para ele.

Fez-se silêncio do outro lado da linha. Parecia que Bradestava escrevendo algo.

 —   Acha que se interessaria pela nossa revista?  —  Quando Brad mencionou “nossa”, ele se referia a ele e aosinvestidores. Definitivamente, não estava sugerindo que eraalgo dividido entre mim e ele.

 —  Vai ter de oferecer a ele algo irrecusável.

 —  Acho que temos grana suficiente.

 —  Não estou falando de dinheiro. —  Não me surpreendiaque Brad ainda não tivesse entendido tudo o que disseraantes. —  Ele tem como arranjar dinheiro de diversas fontes.Até mesmo da City ; como disse, estou certo de que não é issoque falta para ele. Para que Mark se envolva no projetoeditorial de uma nova revista, ele precisa acreditar que vocêssão muito ambiciosos, que não vão quebrar em nove meses,

que vão lhe dar uma liberdade de imprensa e editorial que elenão teria em nenhum outro lugar.

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 —  Nós não vamos quebrar em nove meses  —  ele disse,inflexível.

 —  Bem, não é a mim que você precisa convencer.

 —  Não entendi direito a parte sobre liberdade editorial.O que quer dizer?

 —   Bom, ninguém, muito menos alguém com o ego deMark, vai pensar que alguém lhe daria carta branca assim donada. Ele vai querer saber quais são seus parâmetros básicose em seguida vai querer saber se ele poderá fazeressencialmente qualquer coisa que desejar, desde que

respeite esses parâmetros básicos.

Era difícil para mim acreditar que Brad pudesseentender o que eu estava falando. Para ele, o conteúdo deuma revista era o que você incluía entre os anúncios. Queuma coisa como essa pudesse afetar uma decisão de carreira,mais do que o dinheiro, não era algo que ele pudessecompreender facilmente.

 —  E esse cara é um nome e tanto, certo?

 —  Acho que todo mundo sabe disso.

 —   Então, penso que nós poderíamos dar-lhe bastanteespaço, bem como um ótimo salário, é claro.

 —  Olhe, vai valer a pena. Ele pode aceitar o desafio.

Brad ficou em silêncio outra vez. Sem sombra de dúvida,fazia anotações.

 —  E se você fizesse a proposta para ele?

 —  O quê?

 —  Ele é seu amigo, não é?

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 —   Eu o conheço desde que comecei a escrever, masnunca fui a nenhum churrasco na casa dele.

 —  Acha que pode lhe vender esta ideia da revista?

Pensei em duas coisas simultaneamente. A primeira eraque não estava inteiramente seguro de que pudesse venderqualquer coisa, nem mesmo uma revista. Na verdade, nãotenho certeza nem de que sei o que é uma revista. A outra eraque meu pai diria: “Então, se ele contratar um cara comoesse, você vai ganhar alguma coisa?”. Não estava parecendoque eu ganharia nada com aquilo, muito embora fosse uma

conversa de negócios. —   Eu acho que tenho que me preparar muito antes

disso.

 —  Mas acha que poderia fazer?

 —  Se está me perguntando “se eu faria”, acho que possotrazer Mark Gray para você, quem sabe? Como disse antes,

ele recebe um monte de propostas. Se está me perguntando“se posso ser agressivo”, sim, claro, desde que saiba sobreque estou falando. Mas por que precisa de mim?

 —  Ele disse que é seu amigo. E acho que vocês falam amesma língua. Acredite se quiser, percebi que eu não faloessa língua.

Aquela confissão me desconcertou. Talvez o mundo

estivesse desmoronando ao seu redor e com isso ele tivesseadquirido certa humildade.

 —   Ficaria contente de me sentar ao lado de Mark emseu lugar —  anunciei. —  Mas, como já lhe disse, vou precisarme informar melhor sobre a revista; caso contrário, não vaiter nenhuma chance com ele.

 —  Isso é muito viável —  ele respondeu. —  Que tal jantarcomigo e com meus sócios na...  —   ele hesitou por um

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instante, provavelmente porque verificava a agenda —  quarta-feira?

Fingi que consultava minha agenda também, embora

soubesse que Marina sairia com uma amiga do colégionaquela noite. Ela tinha me convidado para ir com ela, eurecusei, ela insistiu, até que tive que convencê-la de que nãoestava mesmo a fim.

 —  Sim, quarta é um bom dia.

 —  Vou combinar com meus sócios —  disse e pude ouvi-lo escrevendo do outro lado da linha. —  E, Jess, obrigado por

não perguntar o que ganharia com isso. Fico grato que tenhaentendido que isso será um favor, mas nós vamos conversarsobre isso na quarta.

O jantar prometia ser interessante. Claro que asubsequente conversa com Mark requeria de mim umdesempenho de campeão olímpico. Seria, no mínimo,divertido. E diversão era tudo que eu queria

naquele momento.

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Capítulo 23

Há um monte de coisas que nunca quis fazer navida. Nunca me interessei por ser médico, advogado ouanalista de sistemas. Não queria ser pedreiro, goleador de

hóquei no gelo ou caubói. E claro que eu não queria ser serial

killer , molestador de crianças ou político. Mas, mais doque tudo, eu não queria ser um clichê.

E, mesmo assim, nas semanas seguintes ao meu retornoda Califórnia, estava me tornando um deles. O homemencontra a mulher, eles passam um bom tempo juntos, eladiz que o ama —  o homem começa a evitá-la. É a terceira ou

quarta definição de clichê no dicionário.

Claro que não foi bem assim, e claro que eu tinhaavisado inúmeras vezes, mas não me senti nem um poucomelhor. Não queria ouvir Marina dizer que me amava (nem eudizendo isso a ela) e com isso arruinar o que nossorelacionamento tinha sido até então, um dos mais naturaisde minha vida. Mas a verdade é que era só nisso que eu

pensava quando estava com ela. E pensar nisso meentristecia profundamente: que esse evento tivesse marcado oúltimo ato do relacionamento. A gente estava enamorado. Oamor morre. A grande baladinha melosa estavaprovavelmente a menos de meia hora de acontecer.

Como sinal de como estava confuso, ainda não tinhacontado a Marina sobre o noivado de meu pai com Gina. Não

havia como contar isso a ela sem dizer-lhe quanto eu haviaficado perturbado com essa informação. E, se fizesse isso,

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teria que confessar o que me perturbava realmente e nãoestava nem um pouco preparado para isso. Então, dei paratrás e não fui correndo contar tudo a Marina como costumavafazer.

Que clichê!

 —   Então, ele não lhe contou mais nada?  —   elaperguntou, enquanto descíamos umas escadas na rua, depoisde um jantar.

 —  Não, nada —  disse, com voz fina.

 —   E você não está ficando louco? Eu estou ficandolouca. Quero saber o que aconteceu. Aposto que a próximaparte da história vai ser longa e que ele está poupandoenergia para isso. Como será que vai continuar?

 —  Não sei —  repeti — , ele não me contou nada de novo.

Andamos em silêncio por um tempo. Paramos em umaloja de conveniência, pois Marina se lembrou de queprecisava comprar um cartão de aniversário para uma colegaprofessora. Lá, vimos uma foto de uma atriz na capada Rolling Stone , o que foi motivo para conversar sobre osmelhores e piores papéis das atrizes. Era muito fácil manteressa conversa, e percebi que estava gostando daquilo. Nãoprecisava me sentir inseguro. Podia ter a opinião que tivesse,podia discordar completamente de Marina, e ela não farianada além de questionar meu gosto. Ambos adorávamoscinema e respeitávamos a opinião do outro, portanto,poderíamos discutir horas e horas sem desanimar. O mesmoaconteceria se estivéssemos falando sobre a pena de morte, ouso abusivo de força ou o papel da religião. A verdade é queisso também ocorreria se estivéssemos conversando sobre adelicadeza e a durabilidade dos relacionamentos afetivos. Eusimplesmente tinha desistido de entender essas coisas. Antes

de confessar, não importava se nos amávamos ou não. Era ofato de que havíamos dito que me intrigava. Que isso em si

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me incomodasse era algo que eu estava longe de entendernaquele momento.

A conversa sobre as atrizes continuou até a gente chegar

ao carro. Eu lhe disse que meu filme preferido era um que elatinha feito havia uns cinco anos, sobre um drama entre mãee filha.

 —   Ai, meu Deus, lembra daquilo?  —   ela disse comvivacidade. —  Aposto que você estava chorando feito um bebêquando, no fim, ela decidiu se mudar para Nova York.

 —  Para falar a verdade, eu me lembro mais das sainhas

que ela usava em quase todas as cenas.

Marina me deu um tapinha no ombro.

 —  Sim, é claro. Bem típico de você mesmo. O que maisgosta no filme são as pernas dela —  disse, com sarcasmo. —  Você começou a chorar antes ou depois que ela se despediudo irmão?

 —  Não disse que não chorei no filme?! Só que me lembrodas saias.

 —   Claro, e Bogart tinha músculos incríveisem Casablanca . —  Ela pôs as mãos em meu rosto. —  Sei quegosta de filmes bem complicados e esse é um dos motivos porque amo você.

Eu pus as mãos na nuca dela e a aproximei um poucomais de mim, mas não disse nada. Quando recuei, Mariname lançou um breve olhar de curiosidade e entrou no carro.

Não falamos nada por um tempo, enquanto eu dirigia.Não tinha pretendido evitar dizer a Marina que a amava,naquele momento antes de entrarmos no carro, mas nãopude agir de outro jeito. Eu estava tão perplexo quanto ela,

tenho certeza. Mas um dos motivos por que a amava é queela não deixava nada no ar.

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 —  O que aconteceu? —  ela perguntou, quando paramosnum sinal.

 —  O que quer dizer? —  Virei-me para ela. Ela inclinou a

cabeça.

 —  Você não sabe fingir —  ela disse a seco.

 —  Não é o que você está pensando. Só ficou preso nagarganta, só isso.

O sinal ficou verde e segui em frente. Marina virou-separa olhar a rua.

 —  E o que você achou que eu tivesse pensado?

 —  Pensei que tinha pensado que eu não amo você.

 —  Jess, não preciso que não me diga que me ama parasaber que não me ama. Eu sei que me ama. E também que aspalavras ficam presas na sua garganta.

Eu me virei para ela rapidamente: —  E como sabe disso?

 —   Porque está um pouco mais reticente com tudoultimamente. Descobri que você admite isso, mas agora éuma boa hora para lhe dizer uma coisa.

 —  O quê?

 —   Pare com isso. Nada mudou. Eu sei que pensa quealgo mudou, mas não é verdade. Acha que eu comecei a amarvocê da primeira vez que lhe disse isso? Acha que foi aí quecomeçou a me amar? Claro que não. Isso aconteceu há muitotempo entre a gente. E está tudo bem. Nosso relacionamentoestá a mesma coisa. Ainda estamos vivendo um dia depois dooutro. E conscientes do que pode acontecer. Poderia ter-lhedito que amava você depois de um mês de namoro, mas acheique ficaria apavorado. Talvez tivesse que esperar mais um

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pouco. Eu amo você. Não pedi que se case comigo nem querevisse seus pontos de vista. Mas amo você de verdade. Bolapara a frente.

Eu segurei a mão dela. Naquela hora, não tinha certezase estava me sentindo um idiota por ter pensado tudo aquiloque pensara nos últimos dias, aliviado por Marina terquebrado o gelo ou mesmo contente por ter sido honesto comela mais uma vez.

 —   Eu amo você  —   eu disse.  —   Você simplesmente mesurpreende.

 —   Sim  —   respondeu.  —   Você é um homem de muitasorte.

 —  Tenho plena noção disso —  falei e beijei a mão dela.

No dia seguinte, eu lhe contaria o restante da história demeu pai.

Naquele sábado, Marina saiu de casa bem cedo para ir auma reunião de professores, em Long Island. Eu dormi atéumas 9h30 e, quando apareci na cozinha, vi meu pai sentadono pátio. Era o meio de março e o sol entrava pela janela dacozinha, esquentando a temperatura consideravelmente.Bem, não muito, mas estava quente o suficiente para meu paitomar café lá fora.

 —  O primeiro dia mais espetacular do ano  —   ele disseao me ver. E estava certo. A temperatura já havia baixado umpouco, mas não havia nuvens no céu e o sol emitia seusraios. Eu não tinha saído para o pátio desde a última

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tempestade de neve, um mês antes, e era legal saber que opiso estava seco e que as flores começavam a brotar.

 —   A gente deveria fazer alguma coisa  —   disse e me

sentei do lado dele.

 —  Estou pensando em fazer um jardim  —  ele anunciou,os olhos fixos em um canto encoberto da propriedade.

 —   Acho que a gente poderia almoçar em algum lugarcom mesas ao ar livre.

Ele me lançou um olhar breve e inexpressivo e, em

seguida, voltou a vista para o outro lado.

 —  Acho que aqui precisa mesmo de um jardim.

 —  Quando foi que você incorporou Walt Whitman? E porque nunca construiu um jardim? Você morou naquela casapor mais de quarenta anos. Entende alguma coisa de jardinagem?

 —   Da última vez que ouvi algo sobre jardinagem, eramais simples que ciência nuclear. Acha que é algo diferente?

Eu ri. Não sabia de onde vinha essa inspiração.

 —   E da última vez que eu ouvi algo sobre jardinagem,significava fazer esforços como se inclinar e se abaixar. Não ébem o que mais gosta de fazer. Não tenho certeza se podecom esse esforço físico, pai.

Ele soltou um suspiro profundo, enquanto olhava parafora da propriedade, e depois voltou-se para mim:

 —  Eu vou conseguir, se tiver alguma ajuda —  ele disse.

Não seria nada difícil ter dito não. Poderia relembrá-lode que não tinha tempo para me dedicar a todas as tarefasque aquilo implicava e que por certo se tornariam minharesponsabilidade. Poderia ter mencionado que havia

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inúmeros lugares onde conseguir verduras e legumes frescos.Poderia ter-lhe dito que não gostava de sujar as mãos (o queera bem verdade). Entretanto, minha voz, em um dia queantecipava a primavera, lhe disse que era o tipo de coisa em

que eu estava justamente pensando quando lhe pedi queviesse morar comigo.

 —  Não muito grande, tá? —  propus.

 —   Apenas algumas hortaliças e temperos. Coisas quevocê usa para cozinhar.

 —  Você faz alguma ideia do que está fazendo?

 —   Nenhuma. É para isso que existem pessoas quetrabalham em lojas de produtos para jardinagem. Elas sabemexatamente o que falar para a gente.

Algumas horas mais tarde, a gente estava remexendo aterra. Durante a primeira hora, enquanto eu cavava, meu painão fez nada além de se sentar em uma cadeira de jardim,

supervisionar e me trazer um refresco. Mas, depois que seabriu um buraco, ele entrou em ação. Revolveu e fertilizou aterra exatamente do modo como o vendedor da loja haviaexplicado. E, quando me ajoelhei para plantar, ele se ajoelhoua meu lado.

 —  Isso não está acabando com você?

 —   Após ter revolvido a terra? É como se ajoelhar em

cima de um travesseiro.

 —  Posso fazer isso por você se estiver com muitas dores.

 —  Estou bem. Eu disse que faria minha parte.

Meu pai teimava que começar com as mudas era uma“trapaça”, então plantamos sementes. Ganhei a discussão arespeito de manter a simplicidade a fim de ter mais chances

de sucesso. A gente escolheu tomate italiano e tomate-caqui,

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pimentão (apenas porque me certifiquei de que não faríamosa colheita até que os pimentões ficassem vermelhos),abobrinha (o vendedor da loja disse que teríamos que sermesmo péssimos jardineiros para errar com as abobrinhas),

manjericão, coentro e alecrim. Eu cavei todos os buracos emeu pai jogou as sementes, cobriu com terra e bateu de levepor cima. Embora eu o tenha visto se contorcer algumasvezes, ele se manteve firme.

Ao voltarmos da loja de produtos para jardinagemnaquela manhã, imaginei se meu pai contaria mais sobreGina. Ele não me dissera mais nada desde a viagem para a

 Toscana, e aquelas eram as condições ideais. Por um tempo,também pensei que poderia lhe falar sobre o que estavaacontecendo com Marina. Ela tinha me tranquilizado naqueledia dentro do carro, mas eu não parava de pensar aonde tudoaquilo nos levaria. No fim, nenhuma das duas mulheres foimotivo de conversa. Em vez disso, falamos sobre a família.

 —  Eu vou almoçar com Mark Gray na terça —  disse-lhe.

 —  Ele é aquele editor de que Brad falou?

 —  Sim, é o cara que Brad está louco para contratar.

 —  Acha que essa revista de Brad tem alguma chance?

Eu olhei para ele, surpreso:

 —  Você disse que é provável que não. Mas eu pensei que

achasse que Brad era um gênio.

Meu pai despejou mais algumas sementes na terra edeu de ombros:

 —   Brad é um cara bom com os números. Pelo que eusei, ele é um sujeito que trabalha bem em corporações. Masnão sei se pode se dar bem em uma revista. Tem uma

diferença.

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Claro, eu sabia que havia uma diferença. Estava umpouco surpreso de descobrir que meu pai entendia doassunto.

 —  Preciso admitir que comprei sua ideia, de certa forma —  afirmei. —  A primeira parte do jantar foi típica de Brad: elefalou dos dados demográficos, do apelo publicitário, esse tipode coisa. E os caras que vieram com ele fizeram com que odiscurso de Brad parecesse poesia. Porém, quando finalmentepressionei para que me esclarecessem que raios de revistaera, eles responderam sob um ponto de vista editorial.Principalmente Brad. Fiquei um pouco impressionado.

 —  É melhor que ele não fale desse jeito na frente da suairmã. Ela vai dispensá-lo por ter quebrado o contrato.

Eu ri.

 —   Ei, pai, por mais que eu quisesse defender Denise,você sacou tudo.

Ele deu de ombros, como se confessar tivesse lhecustado algo a mais.

 —   Eu amo minha filha, mas também a conheço bem.Então, você fez como eu lhe disse e perguntou para ele o quevai ganhar com isso?

 —   A gente conversou sobre isso  —   afirmei. Não sentinecessidade de dizer que quem tocara no assunto fora Brad.

 —   Brad insinuou qualquer coisa sobre “estar grato”. Euentendi que haverá alguma espécie de compensação, caso euconsiga um milagre e convença Mark a assinar um contrato,e, caso não consiga, Brad vai tentar não ser hostil comigodurante os jantares em família.

 —  Tinha razão, deveria ter feito as negociações em seulugar.

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 —  Ei, ainda há tempo. 12h30 no café da Union Square.Vou deixar meu celular ligado.

Meu pai não disse nada. Em vez disso, concentrou-se

em plantar uma fileira de sementes de coentro.

 —  Você não vai se chatear se tudo o que conseguirmosfor um punhado de ervas daninhas, vai? —  perguntei.

Ele revolveu a terra com uma das mãos e se virou paramim.

 —   E por que isso aconteceria? Estamos fazendo

exatamente como o vendedor da loja de produtos para jardinagem nos ensinou.

 —  É que a gente nunca fez isso antes. A gente não temnenhuma plantinha em casa. Só tem alguns arbustos poraqui.

 —  Bom, um pouco de otimismo não faz mal a ninguém.

 —  Só não quero que fique desapontado.

Ele se levantou, chegou perto de mim e beijou minhatesta.

 —  Obrigado, Anna, por se preocupar comigo —  ele disse. —  Agora, saia do meu caminho. Vou regar as plantas.

Despejei o resto das sementes de pimentão no chão e

revolvi a terra por cima. Sua referência à minha avó eraobviamente uma ação proposital para que não agisse comomãe dele. Na verdade, eu fiquei um pouco encabulado.

Ele virou o regador e espalhou água em toda a áreaplantada, irrigando como o vendedor havia explicado. Fiqueiobservando, até que ele veio em minha direção e regou meussapatos. Não estava prestando atenção e fui pego de

surpresa, pensando se algo dera errado. Quando percebi que

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não era nada daquilo, dei dois passos largos para me livrarda água.

 —  Ei, isso é injusto!  —   exclamei.  —   Sabe que não vou

me vingar de você porque está velhinho e com os joelhosrangendo.

Ele jogou água direto em minha cara.

 —   Isso é para não me chamar mais de “velhinho” —  disse e largou o regador no chão.

Enxuguei o rosto com as mãos. A água estava fria, mas

não queria entrar e procurar uma toalha. Ele foi até o fim do jardim para verificar se tinha regado bem. Quando chegueiperto dele, ele recuou um pouco, provavelmente porquepensou que eu fosse tomar o regador dele.

 —   Não tenha medo  —   disse, levantando as mãos. Elecaminhou pelo jardim e eu também.

 —  Não está muito úmido, né? —  ele perguntou.

 —   N-não. Acho que está como o vendedor disse parafazer.

Ele concordou com a cabeça. Parecia bem surpreso como elogio.

 —  Se não der nada, a culpa foi sua —  acrescentei.

Mark Gray me fez esperar por cerca de vinte minutos naterça. Não perdi muito tempo, já que tinha um artigo paraeditar, mas me vi em uma situação na qual teria que agirconforme a etiqueta e não dominava muito bem o código.Pedir água mineral enquanto se espera por alguém norestaurante é, claro, aceitável. Mas e quanto ao pão na mesa?Era permitido comer antes de o convidado chegar? Ficariatudo bem desde que não houvesse metade de um pão em

meu prato quando ele chegasse? Em todos os anos em que

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frequentei restaurantes (muitas vezes, tive que esperareditores), nunca tive uma resposta para aquelas perguntas.Decidi deixar de lado o pão e me concentrar na edição domanuscrito.

Se não o conhecesse tão bem, facilmente teria tido aimpressão de que Mark era alguém que se preocupava emmanter a imagem de uma pessoa que alarga seus horizontes.Cabelos ligeiramente compridos. Roupa alinhada, masdecididamente casual. Ele assinava as matérias do 24-Hour

City  (conhecido como um dos cadernos da City ) e Jeff Mingusera o editor. O trabalho de Mingus era fazer um último

esforço ao revisar a revista que tinha começado no final dosanos 1960 e que acabara caindo nas graças de Ed Koch. Jefffizera um trabalho impressionante tocando o barco, lançandoescritores de alto nível e criando uma boa oportunidade paraos anunciantes. Mas fora Mark quem criara todo o fuzuê.Com o apoio de Mingus, ele se arriscara, investira em jornalistas para se aprofundarem em áreas que não eram suaespecialidade, para que depois escrevessem algo que ou

resultaria em um tremendo fracasso ou faria um barulhão.Os primeiros artigos foram logo esquecidos. Os artigosseguintes concorreram ao Pulitzer (um dos artigos ganhara oprêmio havia dois anos). A circulação da revista aumentara50%, mas, sobretudo, a publicação estava na moda de novo.As páginas dos anunciantes tinham triplicado desde queMingus ingressara no negócio, e comecei a pensar que eupoderia comer a cereja do bolo.

Na grande mídia, Mingus ficou com boa parte do crédito.Mas, no meio industrial, as pessoas sabiam o quanto MarkGray contribuíra para aquilo. Como consequência, pareciaque um novo boato surgia a cada duas semanas a respeito deuma revista qualquer fazer uma proposta para ele. E, mesmoassim, fazia cinco anos que estava sentado no mesmoescritório no leste da cidade.

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 —  Desculpe o atraso —  Mark disse ao se sentar à mesae pegar um pedaço de pão.  —   Estava no meio de um jogobarulhento com um escritor bom demais para dispensar.  —  Ele pegou a garrafa de água mineral, serviu-se e, em seguida,

a mim. —  Bom ver você. Já faz um tempinho.

 —   Sim, acho que a última vez foi num coquetelda Tapestry .

 —   Certo, naquele local de comida cubana e japonesa.Fechou há uns meses. Foi uma aventura arriscada. Então, oque anda fazendo? Seu pai tinha acabado de se mudar para a

sua casa, da última vez que nos falamos. Como vão ascoisas?

 —  Acho que está tudo bem.

 —  Você é um homem bom. Se fosse comigo, meu pai nãopermaneceria mais que 37 minutos em casa.

 —  A gente teve uns momentos delicados.

 —   Bem, e quem não tem? Estou muito contente quetenha me ligado. Tem algo que quero conversar com você.Falei com Aline Dixon outro dia e ela me contou sobre amatéria com Hayward.

 —  Não sabia que conhecia Aline.

 —  E quem não a conhece? Ela é ótima. E, se gostar de

você, vai convidá-lo para um daqueles tira-gostos que sempreacontecem. Bom, de qualquer modo, ela me mandou um e-mail com seu texto. Você arrasou. Li um monte de artigoscom Hayward ao longo dos anos. Acho que até mesmo nóspublicamos alguma coisa quando tínhamos aquele projetoexperimental da Academia de Música do Brooklyn. Mas essafoi a primeira vez que li algo sobre ele como ser humano.Você tem um futuro como romancista.

 —  Tudo o que escrevi é verdade.

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 —   Na verdade, adivinhei que fosse. Mas é uma coisabenfeita. Muito boa mesmo. Não me leve a mal, mas estámuito melhor do que as outras coisas que escreveu.

 —  Agradeço o elogio e vou considerar a crítica.

 —   Então, depois de tê-lo lido, queria lhe fazer esteconvite.

Fazia anos que eu esperava que Mark me dissesse umacoisa como aquela que acabava de dizer. Eu escrevera umasmatérias para a City  e outras publicações, mas nuncachegara no nível de estabelecer uma colaboração constante

com ele. Claro que o convite dele não poderia ter vindo empior hora. Se eu o convencesse a trabalhar para Brad, elenem pensaria em me passar nada por causa de meurelacionamento com meu cunhado. Pareceria nepotismo deprimeiro grau. Não era algo que teria me ocorrido porque euperdera as esperanças de trabalhar com ele. Pensei um poucoem trair meu cunhado e decidi que não era capaz.

 —   É melhor que saiba primeiro por que convidei vocêpara almoçar.

 —  Vai se mudar para o Norte da Califórnia?

 —  Não, embora a ideia tenha me passado pela cabeça.

 —  Decidiu abrir um restaurante em Newark?

 —  Acertou, porque quero trabalhar menos.

 —  Não está pensando seriamente em virar romancista,está?

 —  Não, não. Não tem nada a ver comigo. Quero falar devocê. Tem uma pessoa que me pediu para conversar com vocêa respeito de uma proposta de trabalho editorial em umarevista com grande investimento financeiro.

Os olhos dele cresceram:

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 —  Um trabalho? Você quer que eu me una a vocês?

 —   Parece até que você está falando de uma propostapara integrar um culto religioso.

Mark riu e se acomodou na cadeira pela primeira vezdesde que chegara ao restaurante.

 —   Eu acabei de assinar um contrato novo com umarevista. Um ótimo negócio, devo acrescentar.

 —  Então, rasgue o contrato. O que é?

 —  Hummm, talvez eu tenha que repensar essa comissãoque estava para oferecer a você. A questão não é o contrato,mas o trabalho. Não sei por que as pessoas não param de mefazer ofertas. Pensei que tivesse deixado bem claro que nãoestou aberto a nada.

 —  Sim, mas todo mundo acha que é pose sua.

Ele balançou a cabeça.

 —   Pense bem: se eu estivesse fazendo pose, ninguémiria me querer. Não estou jogando. Tenho um trabalho quaseperfeito. Consigo fazer praticamente quase tudo o que quero. Trabalho para pessoas que me adoram. E não preciso mepreocupar com chatices como orçamento, porque dessa parteé Mingus quem cuida. Não tenho nenhuma desvantagem.

 —  Então, não vai nem querer ouvir minha proposta?

 —   Você se sente na obrigação moral de me contar,mesmo sabendo que não há absolutamente nenhuma chancede eu aceitar?

 —   Bem, não quando você coloca as coisas dessamaneira.

 —  Então, deixe-me dizer mais uma coisa.

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Quando Mark se moveu na cadeira em minha direção,considerei a expressão de Brad quando lhe contasse que nemmesmo chegara a propor o negócio a Mark.

 —  O que você sabe sobre ensino à distância?

 —  Absolutamente nada —  respondi.

 —  Excelente. Suponho que nunca tenha ouvido falar noque Anna Lee Layton está fazendo com um bando de garotosem Yonkers.

 —  Não.

 —   É uma coisa maravilhosa. Um dos garotos ganhouuma competição de ciência de nível estadual, outro ganhouuma pontuação espetacular nos testes de aptidão3  e umaoutra aluna teve o ensaio publicado numa revista local. E elasó tem 8 anos.

 —  Nossa!

 —  Ela é muito impressionante. Escolas do país inteiro aestão procurando para que diga o que sabe e ela não temtempo. Entretanto, ela concordou em fazer uma matériaconosco. Você quer fazer?

 —  Eu realmente não sei nada sobre o assunto.

 —  E qual é o problema?

 —   Estou namorando uma professora. Pode ser algumimpedimento?

 —   Está tentando arranjar um modo de me dizer não?Posso lidar muito bem com a rejeição, Jess.

O SAT é um teste norte-americano equivalente ao ENEM. (N. T.)

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 —  Não, parece uma ótima ideia. Estava apenas cobrindotodas as coisas.

 —   Ótimo. Então, mãos à obra. Vai ser divertido

trabalhar com você.

Brad não ficaria contente. Mas haveria de superar.

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Capítulo 24

Quando Mickey pensou no assunto, deu-se conta deque fazia alguns anos que não ia para a cidade. Eleadorava passear com Dorothy. Ela tinha paixão peloRockfeller Center e de algum modo sempre ia parar na Sacks.Para uma mulher comum, ela tinha uma fascinaçãoincontrolável por lenços de seda. Era mesmo sua únicaextravagância inviável, e Mickey estava mais do que contenteem satisfazê-la.

Uns meses antes, eles descobriram que ela estavadoente, e Dorothy não tivera mais vontade de ir para o centro

de Manhattan. Ela havia até mesmo recusado convites deMickey algumas vezes. Ele ainda não entendia bem o que era,uma vez que não havia sinal de doença. Denise morava naCity, mas, quando ela queria vê-lo, simplesmente apareceria,e ele nunca pensara em se convidar para sua casa. Depois deum tempo, nem mais pensava no assunto.

Quando Jesse mencionou o almoço na Union Square,

aquilo ficou martelando na cabeça dele. O antigoapartamento ficava a pouca distância de lá e ele poderiapercorrê-la a pé sem problemas. Fazia bem uns vinte anosque não caminhava por aquela região. Com certeza, estariairreconhecível, embora, claro, algumas coisas não tivessemmudado.

 Jesse estava regando o jardim. Tinha se tornado um

hábito após o café e antes de ele começar a trabalhar. Mickeypensou que aquilo era sua responsabilidade, uma vez que era

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ele quem havia proposto ao filho cuidar de um jardim, mas Jesse insistiu em que era uma tarefa que requeriaconcentração. Aquele filho usava tantas técnicas diferentespara se distrair que era incrível que não passasse o dia

inteiro se preparando para algo.

 —   Já dá para ver alguma coisa nascendo?  —   eleperguntou ao se aproximar do filho. Fazia cinco dias quetinham plantado as sementes.

 —  Sim, pretendia chamar você assim que acabasse. Seolhar os coentros bem de perto, vai ver um botãozinho.

Mickey olhou por cima. Se se esforçasse, veria talvez umoitavo de centímetro de qualquer coisa verde brotando daterra em um ou outro pedaço do jardim.

 —  Provavelmente, são ervas  —  disse Jesse. —  Mas pelomenos não esterilizamos a terra.

 Jesse continuou a regar. Devia ser fruto de sua

imaginação, mas para Mickey parecia que o filho tinha jogadomenos água em cima dos brotinhos, como se quisesse sermais delicado. Ele terminou e deixou o regador em um cantodo quintal.

 —  Meu apartamento era em Grammercy Park —  afirmouMickey, enquanto caminhava com Jesse. O filho lançou-lheum olhar que significava que ele não fazia ideia de por queMickey pensara ser importante mencionar algo como aquilonaquele momento.  —   Eu tinha uma chave do portão doparque —  acrescentou.

 —   É mesmo? Você deve ter sido um cara popular naárea.

 —   Era uma grande coisa na época, mas não tantoquanto hoje. Significava apenas que eu tinha acesso a um

lugar agradável para sentar e ler o jornal no domingo demanhã.

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 Jesse concordou com a cabeça e colocou o regador naprateleira.

 —   Já faz algumas décadas que não volto para lá  —  

comentou Mickey.

 —   De vez em quando eu vou lá. Tem alguns bonslugares onde comer ali por perto.

 —  Foi o que ouvi dizer.

Eles entraram de novo na casa e Jesse pôs mais umpouco de café na xícara.

 —  Quer ir? —  Mickey perguntou.

 —  Ir para onde?

 —   Para Grammercy Park. Se quiser dar uma volta porlá, não me importo de ver o velho apartamento.

 Jesse fez uma careta.

 —  Tenho um montão de trabalho para fazer e preciso mepreparar para a entrevista com Anna Lee Layton.

Mickey estava decepcionado. Estava quase convicto deque iria para a City e não iria sozinho. Jesse deve terpercebido a reação do pai, porque minutos mais tardeacrescentou:

 —  Olhe, desde que a gente volte no meio da tarde, nãotem problema.

Não disseram muita coisa dentro do carro. Jesse faloumais outras coisas sobre a professora, tema de suareportagem, eles ligaram o rádio e discutiram uma propostanova de impostos que ouviram nas notícias, mas de restoMickey não disse muito. Ao saírem do túnel que ia para oEastSide, ele percebeu que estava nervoso de verdade. Nãosabia o que esperar daquela situação.

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 Jesse entrou em um estacionamento a um quarteirão doparque. Os prédios da vizinhança eram de tijolo marrom,nada muito diferente. Os velhos moradores continuaram aviver naquela região, o que fora algo esperto, considerando

quanto pagavam para morar ali. Mickey se acalmou enquantoandavam pelo quarteirão. E então ele percebeu que faziamesmo muito tempo que não voltava para o coração deManhattan. As ruas estavam muito diferentes. Havia bemmenos pessoas, e a maioria delas sabia para onde ia. Nadaem particular lhe era familiar —  com certeza, nada lhe saltouà memória — , porém havia certa familiaridade, considerandotudo em geral. Talvez fosse porque ele tivesse passado muitotempo relembrando aquela vizinhança nos dias anteriores.Parecia um pouco sua casa.

Quando chegaram à esquina do parque com a rua quedava para a zona sudoeste da cidade, Mickey tinha setransportado perfeitamente. Devia haver uma dúzia ou algoassim de pessoas dentro do parque naquele instante. Umhomem de sua idade lia as notícias. Um rapaz de vinte e

poucos anos com fone de ouvido dançava enquanto andava.Uma mulher de trinta e tantos anos sentava-se à beira de umbanco e falava, concentrada, ao celular. Um cara sentado emoutro banco adiante com o laptop   aberto levantava os olhosfechados para o céu em busca de inspiração. Com exceção dohomem que lia o jornal, nenhum dos outros personagens separecia com as pessoas que frequentavam o parque na épocaem que ele morara lá. Mesmo assim, Mickey sentiu algo bom

por eles. Talvez a mulher do celular viesse no domingo demanhã e se sentasse de mãos dadas com o namorado nobanco.

 —   Muito chato que a gente não possa entrar  —   disse Jesse.

 —   N-não  —   Mickey respondeu.  —   De fora, sempre

parece melhor do que de dentro. Vamos continuar passeando.

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E, ao fazê-lo, Mickey apertou o passo. Os joelhos nãodoíam tanto e na verdade ele teve mesmo vontade decaminhar. Eles passaram por uma lavanderia e Mickeypensou se ainda era do mesmo proprietário que lavava seus

ternos no passado. Havia uma delicatéssen  no fim doquarteirão com um letreiro que poderia bem ter uns 50 anos.Mickey quis saber se os moradores de hoje achavam queaquilo era esquisito ou feio. Chegaram à esquina da Dezoitocom a Lex e Mickey simplesmente parou e olhou ao redor.Não importava que nada daquilo fosse familiar, Mickey sabiaque era o cenário de um dos beijos mais significativos de suavida. O beijo que dera em Gina ao ar livre na manhã seguinteà festa de noivado.

 —  Estou com fome  —  disse para Jesse.  —  Quer comeralgo?

 —  Tem alguns bons restaurantes indianos mais adiante —  Jesse respondeu.

 —   Está brincando, certo?  —   disse e lançou um sorrisomalicioso para o filho.

 —  Estava mesmo. Tem um ótimo restaurante italiano apoucos quarteirões daqui.

O restaurante não se parecia com nada de que elepudesse se lembrar daquela época. Muito dourado e mármoree linhas firmes. Muito espalhafatoso para o gosto de Mickey,

mas Jesse disse que a comida era boa, e algo que haviaaprendido era que, quando o assunto era comida (pelo menoso que o pai gostava de comer), Jesse sabia do que estavafalando.

Mickey passou os olhos pelo menu rapidamente e ficoucontente de que o garçom fosse atencioso. O passeio pelavelha vizinhança deu-lhe vontade de conversar.

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A mãe de Gina nunca o abraçara antes. Ela quasequebrou as costelas dele quando Gina e ele anunciaram o

noivado. Ele estava quase certo de que a Sra. Ceraf receberiaa notícia com entusiasmo, mas não daquele jeito. No diaseguinte, ainda doía um pouquinho.

Claro que Gina não poderia ter voltado da Itália noiva,pois seus pais não sabiam que Mickey tinha viajado com ela.Primeiro, eles pensaram em uma desculpa, como se eletivesse que pegá-la no aeroporto, e então fora ali que ele a

tivesse pedido em casamento, mas por fim Mickey afirmouque naquele cenário faltava algo crucial. Embora uma mulherbastante anticonvencional tivesse sido pedida em casamentode um modo também bastante anticonvencional, ele gostariade manter algumas tradições. Deveria pedir a mão dela emcasamento a seu pai.

 —  Se ele negar, isso significa que preciso lhe devolver oanel? —  Gina perguntou.

 —  Você acha que ele vai negar?

 —   Claro que não. Acho que ele pensa que você é umbom partido. Mas, se ele dissesse não, o que faria?

Mickey fingiu pensar um pouco antes de responder.Então, deu de ombros:

 —  Eu acho que pediria outra pessoa em casamento.

Gina deu um soco no braço dele e então olhou maisuma vez para o anel no dedo:

 —  Acho que não haveria problema algum, desde que eupudesse ficar com isso.

 —   E as pessoas consideram você uma socialista. Vai

tirá-lo antes de voltar para casa, não vai?

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 —  Só desta vez.

Falar com o Sr. Ceraf foi uma formalidade muito maiordo que ele esperava e, três dias depois que Gina havia voltado

da Itália, a futura sogra dele quase lhe quebrou as costelas.Duas semanas depois, os Ceraf deram, no apartamento deles,uma recepção pródiga para comemorar o noivado.

Seria a primeira vez que a família Ceraf encontraria afamília Sienna, uma ocasião que daria o que falar, segundoMickey. Havia diferenças culturais enormes entre eles.Mickey não sabia muito bem como eles se entrosariam.

Entretanto, Mickey não precisou se preocupar com o pedidoformal de casamento. Os pais de Gina receberam muito bema família Sienna. Quando Mickey viu sua mãe trocar com atia de Gina dicas sobre costura, ele percebeu que tudo estavabem.

Havia pelo menos 25 pessoas na recepção que Mickeynunca havia visto. Ele tinha ido a algumas reuniões defamília nos meses anteriores, mas nessa ocasião ele ficouconhecendo um ramo inteiro da árvore genealógica, e cadaum deles deu sua bênção. Mickey achou um tanto divertidoque todos lhe relembrassem o quanto Gina era uma pessoaespecial, como se ele não soubesse, mas acabou aceitandotudo bem.

 —  Ela é nossa joia —  disse a avó por parte de pai.

 —   Uma encrenqueira desde pequenininha  —   afirmouum dos tios.

 —  Se sabe o que é bom para você, vai deixar que ela sigaseu próprio caminho  —   aconselhou uma prima bem-intencionada.  —   Nós percebemos isso há um bocado detempo.

 —   Tenho certeza de que se deu conta de quanto é

sortudo, meu jovem  —  falou outro tio.  —  Deixe-me dizer-lhe

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agora mesmo que não sabe da missa a metade. Gina é umaem um milhão. Queria que meu filho tivesse uma pequenaparcela do interesse dela pela vida.

Mickey sorria e olhava de soslaio para sua futuraesposa, que, naquele momento, estava a dez passos dele,sendo alvo de alguma brincadeira de um dos primos maisvelhos.

 —   Entendo o que quer dizer, senhor. Eu me digo amesma coisa todo o dia desde que a conheci.

Naquele instante, o pai de Gina se aproximou deles:

 —   Você está enchendo a cabeça de meu futuro genro,Malcolm?

 —   Apenas me certificando de que ele sabe que tirou asorte grande, Dan.

O Sr. Ceraf deu um tapinha no ombro de Mickey e disseao irmão:

 —  E quanto ao prêmio que minha filha ganhou? Algumavez viu Gina tão entusiasmada com algo? Digo que ou Mickeya hipnotizou ou vai ser um marido e tanto.

Mickey percebeu que enrubescera. O Sr. Ceraf estavasendo muito elogioso desde que ele fizera o pedido decasamento. Mickey sentia um pouco de culpa por não ter

confessado a real situação a respeito daquele pedido. Porém,ao mesmo tempo, sabia que faria tudo que estivesse a seualcance para ser o marido que o Sr. Ceraf esperava para afilha. No fim das contas, aquilo importava muito mais.

Mais para o fim da festa, Mickey foi para o bar pegar umdrinque para Gina. Carl estava lá e levantou o copo parabrindar com ele, enquanto Mickey se aproximava.

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 —  Cunhadinho —  propôs Mickey, ao fazerem tintim.  —  E quem diria que faríamos parte da mesma família?

 —   Eu, não  —   disse Carl, negando com a cabeça.  —  

Pensei que você teria mais chances com minha mãe do quecom minha irmã.

 —  Nossa! Obrigado!

Carl pôs o braço no ombro do amigo e guiou-o para umcanto vazio da casa.

 —   Não é nada pessoal, Mickey. Nem por um segundo

pensei que Gina teria um relacionamento sério tão rápido.Mesmo que vocês dois se encontrassem quase todas asnoites, achei que seria algo passageiro. Gina nunca deu aentender que queria se casar.

 —  Acho que foi o caso de ela ter encontrado o homemcerto.

Carl deu uma risadinha:

 —  Eu realmente não havia pensado nisso antes. Sempreachei que ela faria da vida dela algo maior. Sei lá, a primeirasenadora mulher, por exemplo. Ou a primeira presidentemulher. É difícil imaginar que ela vá para a cozinha ou cuidede crianças. Vai ter que entender que essa não é a naturezadela.

Mickey se surpreendeu de que Carl falasse nessestermos. Ele pensara que o cunhado conhecia a ele e à irmãmelhor.

 —  É com isso que se preocupa? Acha que vou enchê-lade filhos?

 —  A vida muda para a mulher depois do casamento  —  Carl afirmou.  —  Penso que saiba disso melhor do que Gina.

Gosto de você, Mickey, e acho que vou gostar que seja meu

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cunhado. Mas não vai ser capaz de deter Gina. E, mesmo seela deixar que você faça isso, seria imperdoável seacontecesse.

 —  Vai ter que pagar para ver, Carl. Não tenho nenhumaintenção de deter Gina. E ainda nem conversamos sobrefilhos. Acredite em mim: a última coisa que quero no mundoé impedir que ela faça o que quiser. A gente vai fazer tudo junto.

De repente, o macarrão no prato não pareceu tãoapetitoso. Mickey olhou para Jesse e sentiu as lágrimasrolarem em seu rosto. Era a primeira vez que isso acontecia.Essa história estava ficando cada vez mais difícil de contar.

 —  Primeiro, a gente conquistaria o mundo. Depois,teríamos tempo de ter filhos —  ele disse. —  Era para a genteconquistar o mundo juntos.

Mickey baixou os talheres e tomou um gole d’água. 

 —  Vou tomar um pouco de ar —  disse, ao se levantar. —  Peça a conta.

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Capítulo 25

 —   Ele quase chorou  —   disse à Marina naquelanoite.  —  A única vez que o vi chorar foi no enterro da minhamãe, mas hoje à tarde ele estava quase aos prantos, ao mecontar sobre o noivado com Gina.

Estávamos na sala de cinema, devorando um pacotão depipoca no lugar do jantar. Não era muito nutritivo, mas haviaum grande prazer naquilo e era bem necessário,considerando que tínhamos trabalhado até tarde.

 —  Parece que a cada vez ele está se emocionando mais

ao falar sobre ela. O que acha que pode ser?

 —  Não sei  —   respondi.  —   É tudo um grande mistério.Foi muito estranho vê-lo transformar-se diante dos meusolhos, enquanto relatava essa história. E agora isso.

Não estava sendo totalmente honesto com Marina, algoque, apesar de minhas intenções contrárias, estava serepetindo nos últimos dias com certa frequência. Havia

alguns assuntos que deveria resolver em minha cabeça antesde conversar com ela.

Estava quase certo de que o fato de meu pai seemocionar mais a cada vez se relacionava com o fim de seucaso com Gina. Pela primeira vez, tive raiva de Gina,culpando-a diretamente por ter partido o coração de meu pai.Isso era paradoxal, de diversos modos, mas não podia evitar.

Só de olhar para ele lutando contra as lágrimas, na hora doalmoço, tive vontade de atacar alguém.

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Passei a tarde toda —  tempo que pretendia me dedicar ame preparar para a entrevista  —  preocupado com meu pai. Oque será que ela tinha lhe dito? A conversa com Carl Cerafera uma pista? Ela havia deixado um bilhete na mesa da

cozinha, dizendo-lhe que tinha coisas urgentes para fazer,tais como lutar pelos direitos das mulheres no Quênia? Outudo viera à tona em um momento explosivo quando meu paitentou segurar as pontas e ela deu no pé? Nada do que eupensasse naquele momento me faria desistir da ideia de quefora ela quem tinha rompido com ele.

 Também pensei que talvez o objetivo geral de meu pai

me contar aquela história não fosse me passar umamensagem, mas simplesmente se livrar daquele peso. Claroque a mensagem, se é que havia uma, servia para pontuarconversas que eu já tinha tido com ele, nas quais sua posiçãoera totalmente contrária à minha. Porque o que sobressaía norelato de sua vida com Gina era a ideia segundo a qual nãoapenas o amor mais intenso morre, mas também que, se vocêse dedica de corpo e alma a ele, vai sair ferido para o resto da

vida.

Eu estava distraído, comendo pipoca, quando voltei amim dentro do cinema com Marina.

 —  De qualquer modo, a viagem para a cidade estragoumeus planos. Não pude nem começar a trabalhar no artigosobre Anna Lee Layton.

 —  E isso é um problema?

 —  Bom, só vou encontrá-la amanhã às três horas. Achoque está tudo bem. Só que eu detesto deixar as coisas para oúltimo minuto.

Marina concordou com pena.

 —  Ela quebrou a perna por causa do meu papel na peça

 —  ela disse.

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 —  Isso é uma metáfora?

 —  Quem me dera! Jerry e eu passamos a maior parte datarde reescrevendo os papéis e mudando as coisas de lugar.

Acho que fui punida por pensar que este ano o públicoprestaria atenção à peça mesmo se seus filhos não estivessemno palco.

 —  Vou interpretar isso como uma lição pessoal.

 —   Enquanto isso, acho que vai estragar nossos planospara o fim de semana. Jerry insistiu bastante para que agente se reunisse e trabalhasse nos novos detalhes.

 —   Parece que ele tem complexo de Bob Fosse. Naverdade, se arranjasse as coisas para o domingo à tarde,seria ótimo. Surpreendentemente, Denise vem aqui com afamília de novo.

Marina ficou em silêncio por um instante e olhou para atela de cinema.

 —   Então, não se importa se a gente se reunir nodomingo? —  ela perguntou.

 —   Não, absolutamente. Seria perfeito, na verdade. Vaiser bom para mim e para você.

Marina concordou com a cabeça e continuou a comerpipoca. Estava bem claro que algo que eu dissera caíra mal.

Digo isso com toda a certeza porque vivi isso uma centena devezes com outras mulheres, embora não me recordasse deisso ter acontecido com Marina.

Antes que eu pudesse perguntar-lhe o que a estavachateando, as luzes diminuíram e começaram a passaros trailers . Ofereci pipoca e ela pegou o pacote todo. Aquilonão parecia ser bom sinal.

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O filme era daqueles que seriam esquecidosrapidamente, o que era uma pena, porque estava ansiosopara vê-lo. Era um desses conceitos que dariam um bomparágrafo, traduzido em um trailer  intrigante, mas depois

prosseguia sem grandes surpresas. Entretanto, hoje, eracerto que não gostaria nem mesmo de Cidadão  Kane . O quetinha acabado de acontecer com a gente, na sala de cinema,estava me intrigando.

 —  Acha que dá para me levar para casa hoje?  —  disseMarina, ao entrar no carro.

 —   O que aconteceu?  —   perguntei, preocupado. Desdeque eu voltara da Califórnia, nós havíamos passado a maioriadas noites juntos em minha casa e, evidentemente, eu nãotinha sido convidado para passar a noite em seuapartamento.

 —   Nada  —   ela disse.  —   É que tenho um monte deexercícios para corrigir e outra reunião de pais amanhã demanhã. Deveria ter avisado você antes.

E, nesse caso, a gente teria combinado passar a noite nacasa dela.

 —  Está tudo bem com você? —  perguntei.

 —  Sim, tudo bem —  respondeu e me olhou de um modoque não parecia muito convincente.

 —  Não parece.

 —  Estou bem, Jess. Sabe que a gente não precisa fazertudo junto.

Decidi desistir, pois não sabia como lidar com aquilo, eMarina estava estranhamente fechada. Considerando o tempoem que estávamos juntos, isso era um território perigoso.

Levei-a para casa, beijei-a de modo bem parecido com o quesempre fazia (o que é que desequilibra uma das partes do

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casal e na verdade deixa a outra tão insegura?) e voltei paracasa. Estava quase chegando quando percebi o que a tinhachateado. Eu não a convidara para o jantar com Denise. Defato, não apenas não a tinha convidado como havia

enfatizado que era conveniente que ela fizesse outra coisa.

Enquanto em parte eu me punia, em parte meperguntava como pudera tê-la excluído tão naturalmente deuma reunião de família. A gente tinha passado pelo Natal semmaiores problemas, porque ela tinha viajado para a casa dospais. Mas não houvera muitas outras ocasiões em que algumde meus parentes tivesse aparecido. Matty viera por uns dias,

alguns meses antes, eu não vira Darlene desde o EncontroDepois do Incêndio e Denise aparecia com a mesmafrequência dos equinócios. Marina não tinha estado presentenessas vezes e eu não estava habituado a contar com ela.

Era uma explicação conveniente, mas não verdadeira.Se tudo estava correndo bem, eu deveria tê-la convidado coma maior naturalidade. Se tudo estava correndo bem, eu

pensaria que ela estaria presente simplesmente porquepassávamos todo domingo juntos. Na real, se tudo estavacorrendo bem, teria me certificado de que ela não tinha outrocompromisso naquela tarde, antes de confirmar com Denise.

Mas nem tudo estava correndo bem. Não poderia estar,porque ou eu fizera de propósito (o que era bem desagradável)ou não, e eu estava reagindo sob a influência do relato de

meu pai sobre Gina e eu procurava pelo em ovo norelacionamento com Marina. O que será que nos afundaria?Ela se tornaria muito carente? Eu me cansaria de ser francoe me ressentiria se ela agisse assim comigo? Algum eventoinesperado aconteceria e cada um reagiria de um jeito,causando nossa separação?

Não queria ser tão ligado a ela a ponto de, décadasdepois, se tivesse que falar sobre ela, me viessem lágrimasnos olhos. Não queria viver uma história de saudades ou

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mesmo um caso de amor em que tudo dava certo até que umpouco de amargura se instalasse entre nós. A verdade é que,por eu estar consciente (ou, para ser mais preciso, por euacreditar piamente que estava tudo claro diante de meus

olhos), atingira o ponto exato em que eu tinha prometido amim mesmo que não haveria outra mulher. Aquele pequenogesto de Marina pouco antes de o filme começar era o tipo decoisa que eu pensara que, com ela, nunca ocorreria. Tinhaaté acreditado que poderia me apaixonar e ainda assim nãome preocupar se as coisas dessem errado. Eu eraextremamente ingênuo.

Dirigindo pela pista, percebi que estava na hora de fazeralgo definitivo. Não importava o que raios fosse.

Meu pai insistiu em jantar tendo como pano de fundoas plantinhas que germinavam no jardim.

 —   Tenho quase certeza de que as pessoas queplanejaram este quintal pensaram que a mesa de jardimficaria bem ali —  disse, ao sentarmo-nos ao lado do canteiro.

 —  Sua imaginação não é fértil.

 —  E não se esqueça de que estamos em abril. Agora estáagradável, mas pode esfriar bastante lá pelas quatro ou nahora do jantar.

Meu pai pôs no chão a cadeira que tinha mudado delugar, veio até mim e pousou a mão em meu peito.

 —  Viva a vida, Jess.

Ele estava de bom humor, o que era ótimo, porquedesde o episódio com Marina eu não ficava bem-humorado.

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Na noite seguinte, conversáramos apenas um pouquinhosobre o fato.

 —   Olhe, não acredito que fui tão estúpido de não ter

convidado você para o jantar com Denise no domingo  —  disse, ao pegá-la na escola.

 —  Não tem problema —  respondeu.

 —   Claro que tem! E sei que está assim porque ficouchateada na noite passada.

Ela me olhou firmemente até chegarmos ao carro.

 —   Exagerei um pouco por causa do espetáculo. Vocênão precisa me convidar para o jantar.

 —  Gostaria que viesse.

 —  Isso é legal da sua parte. De verdade. Mas agora nãodá mais. Vou me encontrar com Jerry e ele vai ficar furioso seeu mudar de ideia.

 —  Não estou bem certo de que está mesmo tudo bem.

Ela parou em frente da porta do carro e olhou para mim:

 —   Jess, às vezes você faz suposições erradas  —  disse,antes de entrar no carro. Quando me sentei a seu lado, elacontinuou:  —   Provavelmente, não vai dar para vir depois. Jerry e eu devemos acabar tarde e é mais fácil ficar em casa.

A gente seguiu adiante. Depois da conversa, parecia queeu tinha comido um prato cheio de isopor, mas nãoconseguia pensar em um modo melhor de tocar de novo noassunto. Dirigi para o cinema. Ver dois filmes na mesmasemana não era exatamente nosso estilo, mas Marina disseque era só aquilo que ela queria fazer. Ela passou a noite emcasa, mas era como se aquilo fosse uma desculpa para não

ter que explicar por que não ficaria em casa comigo.

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Na manhã de domingo, tomamos café com meu pai elemos um pouco de jornal. Eu precisava adiantar algumascoisas para o jantar, mas não quis fazer isso na frente dela,pois pensei que se ofenderia. Nunca antes pensara tanto em

ser educado com ela.

Quando comecei a cogitar quanto tempo demoraria parapreparar tudo, ela largou a seção Artes e Lazer  do jornal,beijou minha testa e disse:

 —   Tenho que voltar para casa. Preciso fazer algumascoisas antes de Jerry chegar.

Em seguida, foi até meu pai, beijou sua testa e apanhouas chaves. Acho que o máximo que eu disse foi “tchau”. Semeu pai tinha percebido uma tensão entre nós, não feznenhum comentário. Provavelmente porque estava muitoconcentrado no beijo que ela lhe deu.

Não tinha certeza de como seria a visita de Denise. Deum modo esquisito, eu culpava minha irmã pelo que

acontecera com Marina. Afinal, se ela não tivesse se autoconvidado para jantar, nunca viveria aquela saia-justa comMarina. E, para não falar de outra coisa, não sei bem comoseria rever Brad. Ele tinha aceitado as notícias sobre MarkGray civilizadamente e até tinha me dado os parabénsquando lhe contei sobre o artigo que me havia encomendado.Mas não sabia direito quanto daquilo era reflexo das boasmaneiras aprendidas na escola. Agora que tivera tempo de

pensar melhor, ele me consideraria um fracassado, oumesmo um vendido?

Se havia um clima entre nós, entretanto, meu pai odissipou. Possivelmente era a primeira vez que ele fazia isso.Assim que Denise, Brad e Marcus chegaram, ele os levou atéo jardim. Animado, falou sobre como tínhamos cavado eplantado e até se agachou para explicar a Marcus as várias

espécies de sementes que plantamos.

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 —   Ele não está se abaixando muito para cuidar dessacoisa, está? —  Denise disse aos sussurros.

 —  Às vezes, sim.

 —   Com os joelhos desse jeito?  —   Ela baixou o tom devoz. —  Você tem que trazê-lo até aqui e depois levá-lo de voltapara dentro de casa?

 —  Ficaria surpresa se soubesse.

 Tinha preparado uma lasanha, seguindo uma receita deminha mãe. Com tudo que acontecera naqueles dias, sentia

muitas saudades da velha Dorothy Sienna. Algo daquilo eraprevisível, uma vez que meu pai começara a contar suashistórias com Gina. Haveria momentos (às vezes, um diainteiro) em que eu me entregava ao romantismo daquelashistórias. Tinha uma imagem perfeita de como Gina fora ecomo poderia ter sido meu pai quando jovem. Esse casaldançava em minha mente, reencenando alguns eventosdaquele drama. Em algum ponto, entretanto, o rosto de

minha mãe despontava de alguma foto que havia guardado eeu me sentia como se a estivesse traindo, e bem feio, porqueela não estava mais conosco. Desde a última parte do relato,sentia muito mais a falta dela. Queria que ela fosse tãopalpável quanto Gina e meu jovem pai tinham se tornadopara mim. Assar uma lasanha era um modo de invocar seuespírito através do cheiro.

 —   Que delícia, Jess  —   comentou Denise à primeiramordida. —  Parece muito com a da mãe.

 —   E tem que parecer mesmo: fiz do jeitinho que elafazia.

 —   Quer dizer que não tem nenhuma semente deabóbora, nem arroz integral, nem matinho aqui?  —   Isso erauma referência aos pratos que costumava fazer, pois, se eu

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escolhesse alguma receita tradicional, teria que acrescentarum toque pessoal.

 —  Não. É a receita da mamãe.

 —  Bom, você não preparou a massa, preparou?

 —  Claro que sim. Como é que poderia fazer?

 —  Como? Eu pegaria as sobras do forno no dia seguinte,depois que voltássemos da Carmela.

 —  É por isso que a gente nunca aparece para jantar na

sua casa —  meu pai interveio e sorriu. Acho que todo mundona mesa sabia que a razão pela qual não íamos à casa deDenise era porque ela não nos convidava, mas aquilo nãovinha ao caso.  —   Quem comeria um prato de segunda sepudesse comer isto aqui?

 —   E diante de um jardim  —   acrescentei, apontandopara o canteiro verdejante e sujo. Denise riu, mas lançou umolhar confuso para meu pai e eu quis mudar de assunto oquanto antes. Não podia me lembrar da última vez que fizeraalgo parecido, a fim de quebrar o clima.

Lá pelo fim da tarde, Brad me puxou de lado:

 —  Como vai o artigo para o 24-Hour City ? —  perguntou.

 —  Ainda não sei ao certo. Fiz a primeira entrevista coma professora há uns dias. Vou voltar na semana que vem.Espero que ela se abra mais desta vez, porque da primeiravez ela definitivamente não quis.

Brad concordou com a cabeça. Eu devo ter dito mais doque ele esperava.

 —  Eu consegui contratar Ed Crimmins.

 —   Jura?  —   Estava bem surpreso. Ed era umprofissional com vinte anos de carreira. Nos últimos doze,

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fora editor da Contemporary Man, uma revista mensal degrande circulação.

 —  Parece que todo o trabalho que fez para Mark Gray foi

útil. Ed ficou impressionado com nossos planos para arevista. Também acredito que se impressionou com nossaoferta. Ele vai pedir demissão amanhã de manhã e vaicomeçar a trabalhar para nós no fim do mês.

 —  Ótimas notícias. Meus parabéns!

Brad abriu um largo sorriso. Por um momento, pareciauma criança.

 —   Obrigado. Com um nome como Ed Crimmins emnosso editorial, o resto das finanças vai ter um bomrealocamento. A gente vai lançar a primeira edição emoutubro, outras seis vão sair no ano seguinte e doze daqui adois anos.

Fiquei contente de verdade por ele. Isso não era apenas

escapar numa boa quanto ao caso de Mark Gray (emborahouvesse algo disso também), mas também começar a verBrad de outro jeito. Minha impressão mudara depois do jantar com os patrocinadores e agora eu descobria que, naverdade, eu o tinha encaminhado para o sucesso.

 —  De qualquer modo, Ed e eu queremos nos encontrarcom você em um futuro próximo para falar sobre algumascoisas.

Ed Crimmins fora um dos muitos editores em Nova Yorka quem meus artigos não tinham causado nenhuma boaimpressão.

 —  Claro, quando quiser.

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Claro que Denise e seus homens partiram de casa lápelas 18h. Tanto para fazer e tão pouco tempo. Eu osacompanhei até o carro e esperei pelo beijo de despedida deminha irmã, enquanto ela instruía Marcus quanto ao modo

correto de colocar o cinto de segurança. Isso porque aquelacriança provavelmente havia feito uma redação sobre osistema de freios durante as férias só por divertimento. Ela sevirou e eu lhe dei um beijo no rosto.

 —   Então, quando é que nós vamos conhecer amisteriosa Marina? —  ela perguntou de um jeito jocoso.

 —  Você entende, ela foge toda vez que sabe que você vaiaparecer. Não sei por quê. Só falo coisas boas de você paraela.

 —  É, conte outra. Se ela se dá bem com o pai, ela podelidar com qualquer um.

 —   O pai? Ele é uma maria-mole perto dela, um joão-bobo.

Ela deu um sorriso malicioso.

 —  Sério. Acho que você e o pai inventaram uma pessoaque não existe. —  Ela entrou no carro.

 —  Talvez eu esteja esperando um convite para ir ao seuapartamento fabuloso e então mostrar a Marina os círculosque minha família frequenta.

Denise levantou o queixo de leve.

 —  Sim, vamos ter que pensar nisso.

Enganar todo mundo era algo fácil.

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Capítulo 26

Mickey beijou a foto e se levantou devagar da camapara guardá-la dentro da caixa. Sentia muitas dores no

 joelho naquela manhã. Das duas, uma: ou ia chover, ou eleestava mesmo ficando velho. Ajoelhar-se era um inferno e,além do mais, tinha dor de cabeça quando se abaixava. Teriaque ir ao médico logo, mesmo que isso fosse inútil.

Ao abrir a caixa e colocar a foto no topo da pilha, Mickeypensou em Jesse. Na verdade, era a primeira vez que aquiloacontecia. Ele não havia pretendido estender-se tanto aocontar a história. Quis saber o que Jesse pensava daquilo

tudo e por que eles não conversavam diretamente sobre oassunto. Mas algo acontecera com ele quando começara afalar sobre Gina. Coisas que antes pareciam lógicassimplesmente perdiam todo o sentido. Não importava. Logo,chegaria ao clímax. Talvez hoje mesmo, caso ele tivesse achance.

Olhando de novo para a foto, percebeu que ainda não a

tinha mostrado para Jesse. Por que ele ainda a guardavadentro da caixa era algo que escapava à sua compreensão,mas não havia nenhuma razão para não deixar que o filhodesse uma olhada no rosto de Gina.

 —   Ei, Jess! Jess, venha aqui  —   gritou. Não houveresposta, o que significava que Jesse tinha ido para oescritório. —  Jess! —  gritou mais alto. —  Jess, pode vir aqui

um instante? —  Escutou a porta do escritório se abrir.

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 —  Onde você está? —  Jesse perguntou alto.

 —  No quarto. Venha aqui um instantinho.

Ainda ajoelhado no closet , Mickey virou a cabeça aoouvir Jesse se aproximar, justamente a tempo de ver aexpressão de espanto no rosto dele.

 —   Pai, está tudo bem?  —   Jesse perguntou, correndopara o closet  e pondo o braço debaixo dos ombros do pai, afim de levantá-lo.

 —  Estou bem. Quer me levantar?

 —  Está tudo bem mesmo?

 —  Já disse que estou bem. Quero lhe mostrar algo.

Mickey lutou para se erguer. Jesse ajudou-o novamentee Mickey olhou para ele. O pai se sentou na cama, fez umgesto para o filho se sentar também e pegou a foto.

 —  Esta é ela —  ele disse. Jesse quis pegar a foto, mas Mickey não a soltou. Jesse

aproximou o rosto.

 —  Nossa! Ela é mesmo bonita. Parece muito com o queeu havia imaginado. Você a descreveu bem.

É, talvez Mickey devesse ser escritor.

 Jesse olhou de relance para o pai e em seguida de novopara a foto.

 —  Quem tirou essa foto foi um fotógrafo profissional?

 —  Foi tirada na prefeitura. Logo depois de o prefeito tê-la nomeado para o Comitê de Jovens Mulheres por uma NovaYork Melhor.

 —  Nunca ouvi falar nessa organização.

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 —  É outra história.

 Jesse quis pegar de novo a foto e Mickey a soltou comrelutância.

 —  Então, você guarda esta foto na caixa?

 —  Às vezes. Quase sempre. Achei que iria gostar de vê-la.

 —   Sim, claro. Se bem que, como disse, não é muitodiferente do que havia imaginado.

Mickey pegou de volta a foto das mãos de Jesse elevantou-se para colocá-la na caixa. De novo, sentiu umapontada na cabeça e precisou sentar-se logo na cama.

 —  Está com dores nos joelhos?

 —  Sim, acho que vou passar uma parte do dia deitadona cama, lendo. —  Mickey colocou a foto de Gina na mesinhaimprovisada que servia de cabeceira desde que se mudara

para a casa de Jesse.

 —  A gente escolheu junto, sabia?

 —  Escolheu o quê?

 —  A mesa.

 —  Que mesa? Aquela que ficava na sala? A mãe sabia

disso? —   Sabia que era um móvel que me pertencia e que

significava muito pra mim e nós não o jogamos fora, mesmoquando compramos móveis novos.

O toque da campainha quase não acordou Mickey.

Quando tocaram pela segunda vez, ele rolou na cama paraolhar o despertador. Eram 8h18. Ninguém tocava a

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campainha àquela hora da manhã em um sábado. Um dosprivilégios conquistados por quem trabalhava duro eacordava cedo durante a semana era não ter que trabalharaos sábados. Quando tocaram pela terceira vez, Mickey

percebeu que ignorar não adiantaria. Enfiou o robe e foi paraa porta da frente. Era Gina, que sorria para ele.

 —  Hora de ir —  disse, entrando no apartamento.

 —   Ir para onde?  —   ele perguntou, como se tivesse seesquecido de que marcara um compromisso. Não se lembravade nada. Com certeza, ele se recordaria de um encontro no

sábado de manhã. —   Vamos comprar móveis. Demora pelo menos três

meses para que entreguem e a gente vai se casar daqui a trêsmeses mais uma semana.

 —  A gente precisa de móveis?

Gina abriu os braços.

 —   Acha que não? Em primeiro lugar, você não temmuita coisa; em segundo lugar, o que você tem...  —   elarevirou os olhos.  —   Olhe, eu trouxe café e donuts   —   disse,entregando-lhe um saquinho.

 —  As lojas de móveis estão abertas às oito da manhã? —  perguntou, embora já houvesse decidido que iria com ela.

 —   Não, mas vão estar assim que terminar o café damanhã, tomar banho, se barbear e fizer o que mais precisefazer antes de sair de casa.  —  Ela foi até ele e beijou-o nopescoço.  —   Está esquecendo que esse é um dos seussegredos que já conheço, desde nossa viagem ilícita para aItália.

Mickey riu, abraçou-a e deu-lhe um beijo demorado.

Eles haviam estado juntos naquele apartamento menos de

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oito horas antes e ele ansiava pelos dias  —   não muitodistantes —  em que não teriam que se separar à noite.

 —   Eu me arrumo em meia hora; do contrário, pode

escolher toda a mobília.

 —  Eu vou escolher tudo do mesmo jeito —  Gina disse esorriu.  —   Mas, se estiver pronto em meia hora, deixo vocêescolher um lustre.

Mickey não se arrumou em menos de 45 minutos. Comoé que ainda não havia percebido que demorava um tempãopara sair de casa toda manhã? Talvez ele fosse uma pessoa

normal e Gina fosse muito eficiente. Não devia ser o caso.Gina deveria saber que ele era mesmo lento. Prometeu a simesmo que melhoraria para sua futura esposa.

 —   Não que eu me importe muito  —   Gina começou,lançando um olhar de brincadeira para Mickey  — , mas temalguma preferência?  —   Eles tinham acabado de entrar naBloomingdale’s e andavam pelos corredores lotados  em

direção à sessão de móveis.

 —  Gosto de marrom-escuro.

 —  Marrom-escuro?  —  perguntou, soltando uma risada. —  Queria saber se tem um estilo preferido.

 —  Tenho certeza de que tenho um estilo preferido, masnão sei o nome. Sei que gosto de marrom-escuro.

 —  Vou me lembrar disso. —  Ela parecia se divertir.

Na hora seguinte, Mickey percebeu algumas diferençasno relacionamento deles. Enquanto ela azucrinava o vendedorcom perguntas como “como os móveis foram fabricados?”,“qual a qualidade da madeira?”, “qual o tipo de acabamento,os modelos e os tecidos?”, Mickey notou que estava bem

longe de entender aquilo tudo. Por alguns minutos, ficouperturbado, mas em seguida pensou que o conhecimento de

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Gina sobre aquele assunto era uma ótima vantagem. Porqueele se casaria com uma mulher de gosto refinado e olho paraas coisas, e então eles teriam uma bela casa. O fato de elenão contribuir muito para as escolhas era secundário.

 Já tinham selecionado os móveis do quarto e da sala de jantar e examinavam os da sala de estar. Gina parou nafrente de um sofá com dois lugares e uma mesinha de café demogno.

 —   Gosta disso?  —   ela lhe perguntou.  —   É marrom-escuro.

Mickey concordou com a cabeça. Claro que era lindo, eclaro que ficaria bem na sala de estar. Ele se sentou no sofá epediu para ela se sentar ao lado dele. Ele a abraçou eacomodou-se.

 —   Sim, é absolutamente perfeito  —   Mickey afirmou eapertou o ombro dela.

 —  Mickey —  disse Gina, recompondo-se, mas dando umsorrisinho apaixonado.  —   Tenho certeza de que o Sr.O’Donnell não quer nos ver pulando no sofá. —  Ela falou comcerta ênfase o último verbo para sugerir a Mickey que elafaria exatamente isso quando o móvel chegasse em casa.

 —   Peço desculpas, Sr. O’Donnell —   disse Mickey,olhando para cima. Então, reparou em uma mesa pequena demadeira trabalhada e ornamentos de metal. Ele se lavantou efoi em sua direção. —  Gosto muito disso —  disse. Gina andouaté ele.

 —  É linda, mas o que faremos com ela?

 —  A gente põe umas bugigangas em cima. Coisas comoa escultura que compramos na Toscana e outros trecos quecompraremos nas futuras viagens.

 —  Não faz parte do jogo de móveis.

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Mickey se inclinou para examinar a mesa mais de perto.

 —   Está vendo o modo como a madeira foi trabalhadaaqui? Bem retorcida? Somos eu e você.

Ele reparou que Gina se ajoelhava perto dele, os olhosternos. Ele olhou para o vendedor.

 —   É uma peça única  —   disse O’Donnell — , o quesignifica que não faz parte do jogo. Mas é de mogno ecombina com o resto dos móveis.

Gina olhou para o vendedor, correu os dedos por sobre o

entalhe na madeira e então virou-se para Mickey.

 —  Vamos ficar com ela —  Gina disse.

Depois de preencher os papéis e de pagar um sinal, osdois foram almoçar no restaurante da loja.

 —   Mal posso acreditar que compramos móveis para acasa toda em apenas poucas horas —  disse Mickey, enquanto

esperavam pelos pratos.

 —  Não são todos lindos?

 —  Não tão lindos como uma peça a mais que vai chegarem três meses e uma semana.

Gina sorriu, tímida. Mickey adorava o fato de que aindaconseguia reações como essa, mesmo depois de nove meses

 juntos. Eles marcaram o casamento para exatamente um anodepois que se conheceram. Ele mal podia esperar.

 —  Não gastamos muito, não é? —  Gina perguntou.

 —  Este foi o cheque mais alto que passei em minha vida.Mas não quebramos o banco.

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 —  É tudo de excelente qualidade. O Sr. O’Donnell disseque os móveis podem durar cem anos, se cuidarmos bemdeles.

Mickey tomou um gole d’água e ficou imaginando aspeças novas em sua casa por anos a fio.

 —   Bom, acho que sabemos o que vamos ganhar deaniversário de nossos netos daqui a cem anos.

Gina sorriu e procurou a mão dele.

Eles se separariam naquela tarde, pois Gina tinha um

compromisso. Ela não sabia ao certo do que se tratava, masseria uma cerimônia conduzida pelo alto escalão dosfuncionários da prefeitura e tinha que ver com algum comitêque o prefeito criara. Mickey odiava passar o sábado longedela, mas daquela vez havia um bom motivo.

 —   Então, está nervosa com o encontro de hoje com oprefeito?

 —  Não vou me encontrar com o prefeito. Só com algunsfuncionários. Já conheço a maioria deles.

 —  Mas o prefeito pode aparecer, não é?

 —  Acho que ele foi passar o fim de semana em Montauk.E, pelo que sei, não fomos convidados para ir com ele.

 —   Ah, mas quando ele conhecer você, vai convidá-lapara um monte de coisas.

Gina riu.

 —  Obrigada por botar tanta fé em mim, mas duvido deque o prefeito saiba da minha existência.

 —  É mesmo? Acha que ele não vai dar a mínima quandovocê se tornar governadora?

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Gina riu ainda mais alto.

 —  Essa é uma das muitas razões por que vou me casarcom você.

Mickey beijou a mão dela com delicadeza. Quandoterminaram de almoçar, caminharam devagar, descendo arua até a casa de Gina. Mickey não tinha pressa nenhuma dedeixá-la, mesmo sabendo que ela tinha um compromissoimportante. Quando chegaram, o porteiro os cumprimentou ediscretamente virou a cabeça de lado, para que eles dessemum beijo de despedida.

 —  O jantar é às sete horas? —  Mickey perguntou.

 —  É a hora em que meus tios devem chegar. Não está secansando desses encontros?

 —  Quer dizer se eu preferiria levar você para dançar derosto colado? Claro que sim! Mas acho simpático que suamãe esteja tão contente que a gente vai se casar.

 —  Ela apenas quer apresentar você à família toda e segabar do partidão que a filha dela arranjou.

Eles se beijaram novamente, sem pressa, negando quehouvesse qualquer coisa no mundo que pudesse aconteceralém desse beijo. Por fim, Gina se afastou.

 —  Eu amo você —  disse Mickey. —  Reserve um lugar na

mesa para mim.

Gina sorriu. Ele repetia essa frase toda vez que iaembora, nos últimos meses. Tudo começou numa quarta-feira, depois de várias semanas seguidas, quando Gina disseque queria apenas passar uma noite tranquila em casa ecomer uma comidinha simples.

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 —  Apareça às 18h30. Minha mãe vai fazer algo delicioso,sei disso, e aí meus pais vão fazer uma “grande encenação” enos deixar sozinhos na sala.

 —  Acha que podemos nos livrar de Carl também?

 —  A gente o expulsa. Já está na hora de ele saber quevocê já sabe a respeito do escândalo do caso da roupa debailarina. Ele vai ficar arrasado quando souber que não podemais nos chantagear.

Quando Mickey chegou, quem atendeu a porta foi a Sra.Ceraf.

 —  Mickey, que prazer em vê-lo!  —   exclamou e beijou-ono rosto. —  Mas estou um tanto surpresa, porque Gina disseque viria jantar em casa.

 —  Bem, ela vem.

A Sra. Ceraf pareceu confusa.

 —  Vocês vão para algum lugar?

Dessa vez, foi Mickey quem se sentiu inseguro sobre oque estava acontecendo.

 —  Pode ser.

Mas naquele momento a Sra. Ceraf pôs a mão na boca eenrubesceu:

 —  Ai, meu Deus, você também veio para o jantar!

Então, Gina chegou e beijou o rosto de Mickey.

 —   Gina, você me deixou em apuros!  —   a Sra. Cerafexclamou.

 —  Do que está falando?

 —  Você não me avisou que Mickey vinha para o jantar.

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Gina olhou para sua mãe com um misto de descrédito econsternação:

 —  Mãe, Mickey e eu passamos todas as noites juntos de

agora em diante. Quando disse que ficaria em casa, penseique soubesse o que queria dizer.

A Sra. Ceraf ficou ainda mais encabulada. Mickeypensou ver lágrimas nos olhos dela.

 —  Mickey, sinto muito —  ela disse. —  Vou pôr mais umprato na mesa.  —  Ela correu para a sala de jantar e Mickeynão a viu mais até a hora da refeição. Mesmo àquela hora,

ainda parecia constrangida. Mickey achou tudo muitodivertido.

 —  Está tudo bem, Carla? —  Dan Ceraf perguntou ao sesentar e perceber que sua esposa estava meio embaraçada ehavia dado poucas garfadas no peixe. Mickey percebeu que acomida era suficiente apenas para seu marido, os filhos e elamesma. Ele quis oferecer a ela algo de seu próprio prato, mas

não sabia qual seria a reação dela.

 —  Não, não está tudo bem, Dan  —  ela afirmou, com osolhos baixos.  —  Acho que passei a nosso genro a impressãode que ele não faz parte da família.  —   Ela levantou o olharpara Mickey. —  Mickey, me desculpe.

 —   Foi um erro compreensível, Sra. Ceraf  —   disseMickey.

 —  Não, Mickey, foi algo impensado. Você sempre vai terum lugar à nossa mesa. —  E em seguida começou a chorar.

O Sr. Ceraf pôs a mão nos ombros dela e se virou paraMickey:

 —   Não vou fingir que sei o que está acontecendo,

Mickey, mas você já faz parte da família. Espero que saiba

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disso. Uma vez que esteja no coração de Gina, você semprefará parte desta família.

Mickey teve vontade de gargalhar diante do modo

extremo como seus futuros sogros estavam reagindo, mas aomesmo tempo sentiu-se emocionado. Mesmo assim, nãoconseguia parar de tirar um sarro da situação toda vez que sedespedia de Gina. Era um jeito divertido de dizer que eladeveria pensar nele enquanto estivessem longe.

Gina virou-se para a porta de entrada e jogou-lhe umbeijo.

 —  Você vai sempre ter um lugar à minha mesa —  disse,antes de se arrumar para o encontro com os funcionários daprefeitura.

Mickey havia observado o retrato por alguns minutossem dizer uma palavra. Por fim, disse:

 —  Eu amo você. Reserve um lugar na mesa para mim.

 Jesse não fazia ideia do que aquilo significava, mas eraóbvio que era importante para seu pai, porque ele sorriu econtinuou a olhar amavelmente para a foto. Por fim, trouxe-apara perto do peito, olhou para Jesse e não disse nada. Jessese levantou da cama e beijou a testa do pai.

 —  Descanse o máximo que puder e não force os joelhoshoje, pai.

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Capítulo 27

Diz-se que os matemáticos podem alterar qualquerdado para incluir um caso dentro das estatísticas. Diz-seque os assessores de políticos podem usar qualquer dadosobre o candidato oponente a favor de seu candidato. Diz-seque um cínico pode fazer uma afirmação qualquer e aquilo seconfirmar em uma crença de que o mundo é um lugarhorrível.

Não sei, mas suponho que no final eu estava fazendoquase a mesma coisa: manipulando a informação disponívelpara apoiar minhas ideias teimosas. Claro que havia outros

modos de interpretar o que meu pai estava dizendo com seurelato sobre Gina. Mas eu tinha um modo de ler nasentrelinhas e voltar à minha velha conclusão segundo a qualo amor não é eterno, e foi o que escolhi fazer. Ainda não sei oque isso revela sobre mim.

Ver a foto de Gina naquela manhã fez com que cadacoisa a respeito do relacionamento deles se tornasse mais

concreta para mim. Embora eu já tivesse uma imagem delaem 3D em minha cabeça  —   e embora não diferisse da fotoreal  — , ver o retrato me deu outra dimensão. Era como seGina, até aquele momento, existisse em outro universo, equando meu pai me mostrou a foto ela entrou em nossomundo. Enquanto eu supunha que era possível imaginar queele havia pegado aquela foto de um lugar qualquer einventado uma alucinação complicada a respeito dela, era

quase inconcebível para mim, àquela altura, duvidar de que

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Gina fosse uma pessoa de verdade. Ela havia cativado meupai de tal forma que, por mais de cinquenta anos, mesmocom outra mulher e filhos, ela ainda vivia em seuspensamentos. E ainda podia fazê-lo chorar ou ficar sem fala

porque o havia abandonado.

As coisas se tornaram esquisitas entre mim e Marinadesde a última conversa naquele domingo do jantar comDenise. Não que antes não tivéssemos tido momentos detensão. Claro que houvera vezes em que discutíramos umacoisa ou outra. Não era muito frequente e, na maioria dasvezes, estávamos ou cansados ou com fome, ou

descartávamos alguma história que tivesse que ver conosco.Mas esses momentos aconteceram. A diferença agora era quehavia algo fundamental que eu escolhera ignorar, ou pelomenos evitar. Ambos sabíamos que não havia modo deresolver esse conflito sem fazer alguns ajustes de base emnossa relação. Então, aquilo tudo permanecia parado até quefizéssemos outra tentativa de dar nova pele a ela.

Enquanto isso, eu passava inúmeras horas pensando.Do fundo do coração, sabia que a situação estranha entremim e Marina era sinal de que alguma mudança estava porvir. Uma das ideias principais de minha teoria sobrerelacionamentos era que não apenas o amor morre, mas quenunca envelhece de modo são. Sempre cria rugas e no fim sedeforma. Não há nunca um ponto em que, à semelhança deum superastro do esporte, depois do último ano de carreira,

você possa reverenciá-lo antes de ele pendurar as chuteiras.

Agora eu desejava que não estivesse passando por esseprocesso, mas sim que fosse uma nova fase com Marina. Elacuidava muito de mim —  aquilo não poderia durar. Ela tinhamuita vontade de me agradar —  ela nunca manteria isso. Ascoisas que eu considerava mais agradáveis eram aquelas quese acabariam com o tempo e me deixariam completamente

vazio. Eu me pegava tecendo comentários sarcásticos a ela ecriticando-a por ter compaixão e otimismo, muito embora

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pensasse que aquelas qualidades fossem admiráveis. Emboraainda não fosse inteiramente claro para mim naquelemomento, havia começado a me afastar dela. Estava desu-manizando o inimigo.

Pela primeira vez desde o início de nosso namoro, nãofazia ideia do que Marina pensava. Eu não perguntava nada,nem ela me dizia. Ela havia chegado às mesmas conclusõesque eu? Ou simplesmente estava magoada com o episódio do jantar e confusa com os longos silêncios que agorasobrevinham entre nós? Ela ainda se entusiasmava,especialmente quando falava de seus alunos. Ainda podia

bajular e estimular meu pai. E também me envolver emdebates estimulantes sobre tantos “assuntos seguros”. Mas,ao se aproximar o fim da noite, quando estávamos só nósdois, ela andava pisando em ovos como eu, e em uma direçãooposta. A gente não transava desde a noite em quediscutíramos, mas ela ainda me abraçava forte na cama edizia que me amava antes de apagar a luz.

Passara-se uma semana desde a conversa no cinema e agente decidiu comer fora. Sugeri determinado restauranteitaliano para o qual tínhamos ido diversas vezes, porqueachei que manteria tudo em certa normalidade. Mas nãohavia nada de normal então. Na verdade, havia umaeducação agonizante entre nós. Nós sorrimos um para ooutro, conversamos sobre assuntos sem importância; nãohavia nenhum desafio, nenhuma brincadeira. A certa altura,

achei tudo tão frustrante que saí da mesa e fiquei um tempãono banheiro. Claro que, ao voltar, eu simplesmente sorri eperguntei a Marina se ela tinha gostado do azeite de oliva.

Havia adquirido uma postura eternamente neutra. Nãoqueria dizer nada que provocasse um confronto o qual, sabia,só havia um modo de solucionar. Mas também não queriamelhorar nada, pois acreditava, com absoluta convicção, que

não duraria por muito tempo.

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Como sempre, quando íamos para o centro, dávamosuma volta a pé. Pensei em fazer algo que havíamos feitotantas vezes antes como sinal de que a normalidade nãoestava tão longe assim. Entretanto, estávamos apenas sendo

educados de novo. Ninguém queria sugerir uma quebra derotina.

 —   Então, como vai a peça?  —   perguntei, enquantocaminhávamos.

 —   Acho que vai ser um sucesso  —   ela disse, comentusiasmo. Isso era fácil.  —   As mudanças que fizemos no

roteiro depois que Patty se machucou ajudaram muito.Provavelmente não vamos convidar o crítico do The New York

Times , mas os pais vão se divertir e as crianças também.

 —  Que ótimo. Você se dedicou tanto que seria uma penase não estivesse contente com o resultado.

 —   Ah, eu ficaria contente de qualquer jeito. Trabalheibastante nos ensaios, mas, na hora do espetáculo, quero que

todas as crianças se divirtam e que ninguém fique fora dopalco.

Caminhamos em silêncio por um tempo, parando navitrine de uma loja para ver algumas cerâmicas. Notei algunsbrincos no canto da vitrine e a primeira coisa que pensei foique ficariam bem em Marina. A segunda coisa que pensei foique não tinha certeza se aquela ideia voltaria à minha

cabeça.

 —  Queria que viesse —  Marina disse, quando voltamos apassear.

 —  Aonde?

 —  Para a peça, na quarta-feira que vem.

Não sei por que aquilo não me havia ocorrido, mas fiqueisurpreso com o convite. Sabia, para além do que dizia, que o

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espetáculo era importante para ela e que deveria ter pensadoque ela gostaria que eu fosse. Mas, ao mesmo tempo, aquiloera romper os limites. Os namorados das professoras não asacompanham em peças encenadas na escola. Com

frequência, os maridos, sim. Se eu fosse, seria apresentado acolegas que suporiam que eu era alguém muito importantena vida de Marina. Não se trazem namoradinhos para essetipo de evento.

Isso parecia estar acontecendo na pior época possível.Era uma fase em que muito do que eu pensava me eliminavade um futuro com Marina e agora ela pedia que eu me

envolvesse em algo que sugeria que teríamos um futuro juntos. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que eladeveria ter pensado melhor antes de me convidar,considerando o quanto as coisas tinham sido esquisitas essasemana. Mas talvez fosse por isso mesmo que estava meconvidando. Bom, minha reação foi não ter nenhuma reação.

 —  Isso é um problema? —  ela perguntou. —  Tem algum

outro compromisso nessa noite?

 —  Não, não, acho que não. Acho que vou me sentir meioestranho no meio de tantos pais.

 —  Vou apresentar você a alguns dos outros professores.Não precisa se sentar sozinho, se é isso que o estápreocupando.

 —  Não, na verdade eu adivinhei que me apresentaria aoutras pessoas.

Ela se virou para mim e pendeu a cabeça.

 —  O que há de errado nisso? —  ela questionou.

 —  Não há nada de errado nisso  —   respondi, sem olharpara ela.

 —  Claro que pensa o contrário.

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Olhei para ela um instante e, em seguida, de novo paraa rua.

 —   Não é grande coisa, mas seria um pouco esquisito.

Quero dizer: como me apresentaria? “Este é Jesse. A gentecostuma sair bastante junto.” 

 —  “A gente costuma sair bastante junto”? 

 —  Você entendeu.

Ela voltou a andar.

 —  Acho que estou começando a entender. —  O que quer dizer?

 —  O fato de eu dizer que o amo, a vez que não quis saircomigo e uma amiga da escola, quando não me convidoupara o jantar em família, e agora mais isto. Acha que todasessas coisas o prendem a um contrato não assinado. Estátudo indicando que mudamos as regras do jogo sem termos

concordado com elas.

 —  Sim, acho que é isso mesmo.

Ela parou novamente para me encarar. Naquele breveinstante, acho que não dava para ter evitado o olhar.

 —  Realmente pensa assim?

Olhei para baixo e em seguida de novo para ela: —   A gente teve grandes momentos. Foram fortes e a

gente se divertiu e não pensou nas consequências.

 —   Você pensou mesmo que nosso relacionamentopoderia continuar assim indefinidamente?

 —   Eu realmente pensei que nosso relacionamento

poderia continuar assim indefinidamente. Achei que você erada mesma opinião.

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 —  Sem nunca progredir?

 —   Não queria pensar em progresso. Sei como issotermina.

 —  Em algo mais permanente que isto.

 —  No fim. Vamos, Marina, veja o caso de meu pai comGina.

Marina virou de costas para mim. Achei que ela voltariaa andar, mas ela simplesmente ficou parada.

 —  Você não vai fazer isso comigo —  ela disse, depois deum momento.

 —   Do que você está falando?  —   perguntei, emborasoubesse muito bem do que se tratava.

 —  Você não vai me enrolar para sempre. Já passei porisso.

 —   Isso não é justo. Não sou Larry e nossorelacionamento não é igual ao seu com o dele.

Ela se virou de costas outra vez.

 —   Não, você não é Larry, Jess. Mas de algum modo oque está fazendo é ainda mais difícil de aceitar. Você não estáesperando pelo Grande Amor da Sua Vida. Está apenaspassando o tempo. Quer estar apaixonado e quer que alguém

esteja apaixonado por você sem ter nenhuma implicação ouresponsabilidade.

 —  Não pedi para se apaixonar por mim. E não esperavame apaixonar.

 —   E não muda nada o fato de que realmente seapaixonou?

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 —   Sim, muda  —   disse e olhei para a rua.  —   Piora ascoisas.

Marina deu um suspiro e em seguida pareceu se

recompor rapidamente.

 —   Obviamente, eu estou mais envolvida que você  —  afirmou.  —   Vamos parar logo com isso, antes que se tornemuito dolorido.

Por mais que eu tenha pensado na inevitabilidade de umrompimento, não estava nem um pouco preparado. Emminha cabeça, amenizaríamos as coisas por um tempo e,

como sempre, deixaríamos as decisões importantes paraoutro dia.

 —  A gente não precisa terminar —  afirmei. —  Não queroterminar.

Marina me olhou com tamanha determinação nos olhosque eu jamais vira antes.

 —  Não estou perguntando se você quer terminar  —   eladisse. —  Tenho que fazer o que é melhor para mim. Gostariaque me deixasse em casa agora.

Ela caminhou em direção ao carro e eu a segui. Minhaspernas estavam bambas. Era difícil compreender o que estavaacontecendo. Se eu tivesse dito: “Claro, na quarta, a quehoras?”, teria sido tudo completamente diferente? Os

romances realmente começam e terminam desse modo? Claroque sabia que não era assim. Mas a resposta de Marina tinhame deixado transtornado e eu não sabia o que dizer paraconvencê-la a voltar atrás.

Quando chegamos mais cedo ao estacionamento,naquela noite, desliguei o carro sem desligar o som, o que eraalgo que nunca fazia. Eu estava inconscientemente pensando

que precisava de uma trilha sonora para levá-la para casa?Certamente, me ajudou a aliviar o que teria sido um silêncio

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pesado. Desliguei o som quando chegamos à casa da Marina,mas não desliguei o carro. Eu me aproximei um pouco delaquando ela soltou o cinto de segurança.

 —  Eu queria muito dizer adeus a seu pai  —  afirmou — ,mas não sei se aguento.

 —   Provavelmente, ele vai procurar você. Vai seaproximar mais de você agora.

Marina sorriu e em seguida olhou para o outro lado.

 —   Ele é um cara legal, Jess. E vocês dois começaram

uma grande coisa juntos.

 —  Você e eu também temos uma grande coisa juntos.

 —   Tínhamos, eu sei. Mas acho que saiu do rumo.Ambos sabíamos que mais dia, menos dia isso aconteceria.Você tinha razão.

Eu concordei com a cabeça. Novamente, as palavras que

acabariam com essa eventualidade me iludiram. Nãoconseguia juntá-las, muito embora minha consciênciaimplorasse que eu fizesse isso. Havia essa outra voz dentro deminha mente. Uma voz mais forte. Que dizia que era assimque deveria ser.

Marina abriu a porta do carro e saiu sem dizer umapalavra. Olhei-a entrar em casa, antes de virar o carro.

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Capítulo 28

Nas duas semanas seguintes, o jardim pareceuflorescer na proporção inversa de meu ânimo, que murchava.

Os brotos tomaram forma, os talos cresceram, as folhasgerminaram, as primeiras plantinhas surgiram. Obviamente,a natureza não discriminava. Se o solo fosse fértil, sehouvesse água suficiente, se o sol aparecesse, as plantascresceriam. Mesmo se elas tivessem sido cuidadas por MickeySienna, o jardineiro sem jeito, e por Jesse Sienna, onamorado sem jeito.

Desde que me separara de Marina, sentia uma dor

persistente. Era como um começo de resfriado, uma agitação,uma redução de apetite, uma falta de sensibilidade na pontados dedos. Aquele sentimento de que você está para trás nomundo. Eu liguei para ela uma vez. Não tinha planejado dizernada, mas esperava que algo acontecesse simplesmente,como sempre acontecia quando estávamos juntos. Ela foimuito fria ao telefone. Não indiferente, mas fria. Decidida.Como se dissesse: “se não tem nada importante para medizer, então permita que eu deixe você ir embora”. E, como eunão consegui pensar em nada importante para dizer, aconversa acabou rápido. Não havia ligado para ver se a gentepoderia voltar. Porque me sentia fora de sintonia com ela,sabia que, se voltássemos, isso só nos levaria para um lugaronde teríamos os mesmos sentimentos seis, nove, onze mesesadiante. Fazer um movimento como aquele para evitar o

inevitável não era apenas desaconselhável, mas também seriaum abuso.

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Por uma série de razões, não consegui confessar a meupai que tinha terminado com Marina. Sabia que eledesaprovaria, me faria um sermão e também sentiria pesar.Meu pai havia acolhido Marina de maneira inédita e sabia

que não seria fácil para ele deixar que ela fosse embora.Imaginei mesmo que ele a procuraria e continuaria a vê-lacomigo por perto. Mas por um motivo qualquer eu nãoconsegui dar-lhe a notícia. Dei várias desculpas para justificar sua ausência, aproveitando-me do fato de que elenão sabia que a peça tinha sido encenada na semanaanterior. A farsa atingiu o pico absurdo quando passei umanoite em um motel para que ele pensasse que eu dormia nacasa de Marina. Não sei bem o que queria com isso. Ele nãose esqueceria dela. Chegaria o momento em que eu precisariacontar para ele. Mas parecia não ser ainda a hora certa.

Ele deve ter percebido algo, pois seu comportamentoregrediu um pouco quanto a nosso relacionamento. Fosseporque sentisse falta de Marina ou porque se aborrecesse queeu o tivesse privado de sua presença, não sei bem.

 Trocávamos apenas alguns monossílabos agora e ele nãocontou mais nada sobre Gina por um bom tempo. Issoaumentava meu mal-estar. Eu havia atingido um bom ritmocom ele e não esperava que decaísse. Fiz de tudo paraagradá-lo  —   propor jogos no fim da tarde, cozinhar seuspratos favoritos, tentar planejar passeios. O fato de ele nãoaceitar nada fez com que me sentisse punido, como por maucomportamento.

Mesmo assim, continuei tentando.

 —  Ei, pai, olhe só isto —  disse, ajoelhando do lado do péde abobrinha. A gente tinha cuidado e regado e, quando fuiver, percebi uma pontinha amarela brotando.

Meu pai rastejou. Percebi que, como o solo do jardimestava meio duro, ele estava tendo mais problemas em ficar

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um tempo ajoelhado. Por fim, inclinou-se perto de onde euestava agachado e examinou o brotinho.

 —  Hummm —  resmungou.

 —  Este é um grande momento  —  eu disse, animado. —  Nossas primeiras flores de abobrinha. Não acha incrível?

 —  A gente fez tudo que o vendedor nos disse para fazer.Você achava que não brotariam?

 —  Mesmo assim, acho excitante. Não acredito que nãoesteja animado. Ei, você já comeu flores de abobrinha? Elas

ficam ótimas com tempurá .

 —   Não sei dizer. Também não comi flores de narciso.Isso me faz uma pessoa ruim?

Eu olhei de relance para ele. Como me sentia culpadopor não ter sido verdadeiro com ele, acho que merecia sermaltratado, mas ele tinha atingido o limite muito rápido. Elemanteve os olhos fixos em mim por um segundo ou outro eem seguida se moveu. Ao se levantar, vi que cambaleava epareceu um tanto desorientado por um instante.

 —  O que foi? —  perguntei.

 —  O que foi o quê?

 —  Isso que acabou de acontecer. O que há de errado?

Ele virou os olhos para mim como fazia sempre que euquestionava sua saúde.

 —  Não há nada errado.

 —  Quero que vá ver o Dr. Quigley.

 —  Então, marque uma consulta.

 —  Você vai?

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Ele me olhou com mais raiva ainda.

 —  Eu disse para marcar uma consulta.

Ele entrou na casa e eu o segui. Ele parecia bem, masqueria me certificar de que não estava acontecendo nada.Quando chegou à cozinha, pegou uma xícara e a encheu decafé.

 —   Quando você acha que sua namorada vai aparecerpara jantar conosco?

 —   Ela tem andado bem ocupada, pai. Nunca a vi tão

ocupada. Não tenho certeza de quando as coisas vão acalmarpara o lado dela.

Ele simplesmente olhou para mim.

 —  Vou ver o que posso fazer, ok? —  eu disse.

Ele não me respondeu. Depois de um minuto, repeti oque dissera e saí da cozinha.

Naquela tarde, eu tinha um almoço marcado com Brad eEd Cummings. Eu deveria estar curado do “resfriado” por

pelo menos duas horas. Mesmo que eu não fizesse ideia doque eles gostariam de conversar comigo, sabia que nãopoderia jogar no time de Ed caso estivesse distraído.

O artigo sobre Anna Lee havia sido a única pausa emrelação às minhas preocupações por ter perdido Marina. Aospoucos, Anna Lee fora se abrindo mais durante as entrevistase, no final, pensei ter escrito um artigo importante quechamaria a atenção de alguns editores, quem sabe? MarkGray parecia ter gostado e, como Aline Dixon antes dele,

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sugeriu que teria outra encomenda para mim logo. Depoisdisso, escrevi um artigo rápido sobre exercícioscardiovasculares que havia pego um mês antes e então penseique precisava de um tempo para pensar em minha carreira.

A viagem para a Califórnia e o tempo que passara com opessoal de Hayward me fizeram repensar o modo como euescrevia. Eu havia feito algo diferente nesses dois últimosartigos, algo que não havia feito antes. Ao mesmo tempo,coisas que aconteceram em minha vida nesse ano meinfluenciaram bastante. A ascensão e a queda de meu casode amor com Marina, as mudanças no relacionamento com

meu pai, a história de Gina, todas essas coisas que havia umano não existiam estavam em minha mente agora. E, comoescritor, seria tolo se ignorasse o efeito que surtiram emminha vida.

Acho que artigos sobre a prevenção de gengivite etecidos para cortina eram coisa do passado. Eles eram oequivalente em jornalismo a trabalhar como garçom, servindo

as mesas, e estava na hora de me livrar daquilo. O problemaera que era um pouco irreal pensar que Mark Gray e AlineDixon teriam a maravilhosa ideia de que eu era o jornalistaideal para suas matérias. Eu teria que desenvolver minhaspróprias pautas, procurar minhas próprias histórias. E haviauma complicação: por um motivo qualquer, eu era terrívelnisso. Quase nunca tinha inspiração.

Dirigindo pela cidade, pensei no porquê de Brad e Edterem marcado aquele almoço. Supus que eles meencomendariam um artigo ou dois como forma deagradecimento por tê-los apresentado um ao outro. Tinhacerteza de que Brad poderia envolver Ed o suficiente, masduvidei de que Ed estivesse particularmente interessadonessa espécie de nepotismo. Talvez eles me passassem algunstextos de colunas laterais, uma lauda ou duas de redação.

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Nós nos encontramos em um restaurante indiano emChelsea, perto do escritório da nova revista. Tanto orestaurante quanto a localização do escritório foram escolhasinteressantes e eram bem menos elegantes do que costumava

ser o gosto de Brad. Isso dava a entender que ele sabia adiferença entre trabalhar para uma corporação e trabalharsozinho, mas também que ele estava levando a sério ahistória de uma revista lucrativa. De novo, me impressioneicom sua dedicação.

O tráfego sob o túnel estava mais intenso que o normal efui o último a chegar. Vi Brad e Ed antes que eles me vissem.

Estavam rindo de algo e falando um com o outro como sefossem velhos conhecidos. Não esperava que se dessem tãobem, embora estivesse me acostumando à ideia de que nãosabia o que esperar de meu cunhado. Com isso, fiqueicurioso a respeito dele e minha irmã. Sempre pensei quefossem um casal decente porque eram tão cheios de manias.Se na verdade Brad era mais tridimensional, o que aquilosignificava para o casamento deles? Era possível que

houvesse mais coisas rolando quando estavam sozinhos doque eu poderia perceber de fora? Ainda era incapaz de verminha irmã como uma mulher calorosa e dedicada a alguém(ela era, afinal, uma mulher que tinha voltado a trabalharuma semana depois de ter dado à luz Marcus), mas ver Bradcom novos olhos implicava que eu deveria pensar em Denisediversamente também.

Ao me aproximar da mesa, Brad me viu chegar e selevantou para me cumprimentar.

 —  Desculpe o atraso. Foi o túnel.

 —  Também peguei. Conhece Ed, não é mesmo?

Estiquei o braço para cumprimentá-lo.

 —  Oi, Jesse, prazer em vê-lo —  ele disse. —  Já faz algumtempo.

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 —   Sim, acho que sim. É bem legal ver que vocês doisestão juntos nessa nova empreitada.

 —   É, estou animado. Seu cunhado tem planos

ambiciosos. É bom poder fazer parte deles.

Brad levantou os ombros em um gesto de modéstia esugeriu que déssemos uma olhada no cardápio antes de“começar a reunião”. Depois disso, Ed pegou um dos pãestipicamente indianos que estavam em um cestinho e meofereceu outro.

 —   Brad me contou dos artigos que escreveu

recentemente para a Foodand Living  e a 24-Hour City . Então,arranjei cópias deles.

Como nenhum deles havia sido publicado ainda, issosignificava que havia conseguido por fontes internas. Sempreme surpreendia quando sabia que aconteciam essas coisas.Acho que nunca tinha havido um motivo para que issoacontecesse comigo antes.

 —   Fez um bom trabalho  —   Ed continuou.  —   Cresceucomo escritor.

 —  Queria que levasse em consideração uma proposta detrabalhar para nós —  Brad afirmou.

Estou certo de que demonstrei espanto, pois Ed logocomentou:

 —  Nós sabemos aonde queremos chegar com a revista.Estamos tentando cobrir muitos terrenos e de um jeito quenão vai desapontar as pessoas. Vai haver muito trabalho naredação e precisamos contar com pessoas com seu gabarito,que possam escrever sobre assuntos diversos e ainda assimmanterem a qualidade.

Eu estava encabulado. E aturdido. Nem por ummomento pensara que me fariam a proposta de me integrar à

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equipe deles. Certamente, se Ed estava preocupado com oaparente nepotismo, a última coisa que desejaria eracontratar o cunhado de Brad. O que significa que elerealmente acreditava que eu tinha algo para contribuir com a

revista.

 —  Nossa! Que surpresa! —  disse.

Brad se moveu para a frente na cadeira.

 —  Você vai ser bom com a gente. Ed quer mesmo abrir onegócio rápido e fazer tudo de um jeito novo. Vai ser tudofrenético o tempo todo. Acho que você vai gostar. E acho que

vai se dar bem.

Sorri e olhei para baixo por um instante. Essa conversaera incongruente de diversas maneiras.

 —  Estou emocionado de verdade —  respondi. —  Mesmo.E tenho certeza de que vocês dois juntos e a equipe quemontaram vão transformar a revista em um ótimo lugar para

trabalhar. —   Parei para considerar um instante:  —  Mas umlugar na equipe não é para mim.

Brad levantou a mão.

 —   Não responda agora. Deixe-nos contar mais sobrenossos planos. Sei que precisa ficar com Mickey, maspodemos achar um modo de resolver isto.

 —   A situação de meu pai é uma parte da questão  —  esclareci  — , mas não a mais importante. Eu não sou o tipodo cara que quer aparecer.  —  Olhei para Ed. Percebi que eleestava decepcionado, mas não surpreso. Uma vez freelancer ,sempre freelancer . Baixei os olhos novamente e então encareiEd.  —  Tenho outra ideia  —   disse, muito embora ela tivesseapenas acabado de se formar na minha mente. Ed se viroupara mim para que eu notasse que estava prestando atenção.

 —  Quero fazer uma série de dez reportagens  —  continuei. Foia vez de Brad demonstrar surpresa, bem como certo

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desconforto. Imaginei que ele estivesse pensando em como elerejeitaria educadamente o grande projeto de seu cunhado.  —  Quero fazer uma série de reportagens sobre pessoas que seaventuram. Quero traçar o perfil de gente como Grant

Hayward e Anna Lee Layton, que enfrentam grandes riscos efazem algo que consideram importante, que adoram.

Esperava que Ed me apresentasse um motivo pararecusar a proposta. Conhecia seu olhar de desaprovação, euo havia testemunhado algumas vezes no passado. Mas naverdade ele não demonstrava isso agora.

 —   Pode ser que não encontre dez pessoas que valha apena entrevistar —  ele afirmou.

 —  Não creio —  disse com uma confiança que não sabiapossuir.  —   Não existem dez pessoas no país todo queacreditem em uma ideia e lutem por ela, a despeito de todasas contrariedades? Se não houver, vou para a Inglaterra. Voupara Nairóbi, caso seja necessário.

 —  E a mensagem é “lute por isso”? —  Ed perguntou.

 —  Não, “lute por isso” é muito banal. A mensagem é quehá um motivo pelo qual devemos enfrentar tantasdesavenças. É um momento no qual há um milhão de coisasque podem dar errado e provavelmente darão. A única coisaque faz as pessoas não desistirem é a absoluta convicção emsua inspiração e um amor incondicional pelo que fazem.

 Tanto Ed quanto Brad não disseram nada por uminstante; e então a comida chegou. Eu amaldiçoei o garçomporque sua aparição quebrou a magia do momento e deu aeles a oportunidade ideal de formular uma razão para nãoprosseguir. Ambos experimentaram a comida. Continuei aolhar de um para o outro, com muito menos interesse emcomer do que normalmente tinha.

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 —   De muitos modos, isso diz respeito à revista  —   Edfalou.

Brad concordou com a cabeça e disse:

 —   Certamente. Uma série de reportagens como essapoderia mandar mensagens de todo tipo e não tão sutis arespeito de nossa pauta. —  Ele levantou o garfo no ar e dissepara Ed: —  O que foi que você pediu?

 —  O mesmo de sempre. É meio sem graça, eu sei, masadoro frango à vindaloo 4 .

 —  Vindaloo , eu também adoro! Posso provar?

Ed gesticulou que sim e Brad pegou uma lasquinha.Não podia acreditar em quanto se davam bem. Ao mesmotempo, pensei que o molho curry  estava atrapalhando o lance.

 —   Acho que seria meio óbvio que uma das pessoasentrevistadas fosse Ed, hein?  —   disse Brad, depois de umamordida.

Ed riu. Eu ainda não havia tocado no prato. Também ri.

 —  Só um pouco —  Ed acrescentou e se virou para mim. —  Há quanto tempo está se dedicando a esse trabalho?

 —   Poderia mentir para você e dizer que estoutrabalhando no tema há meses. Mas a verdade é que a ideiame passou pela cabeça agora, quando estávamosconversando.

 —  Mas acha que pode desenvolvê-la?

 —   Sim, eu sei que posso. Sei onde encontrar essaspessoas. E como falar com elas. Penso que nasci paraescrever essa história.

4  Trata-se de uma iguaria indiana. (N. T.) 

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Ed se virou para Brad, que fez um gesto que dizia “paramim, vale a pena”. 

 —  Vou querer saber quem são as pessoas antes de você

começar a escrever —  Ed anunciou.

 —  Sim, claro —  eu disse.

Ed tomou um gole d’água e falou: 

 —   Acha que o primeiro artigo sai para o primeironúmero da revista?

 —  Com certeza. —  Então, comece agora mesmo.

Sorri, dei uma olhada para Brad, que pareciaverdadeiramente contente com os fatos, e por fim provei acomida.

 —   Então, conhece alguém que queira ser contratado

para a equipe? —  Ed perguntou.

Nos despedimos cerca de meia hora depois. Brad e Edestavam mais do que querendo conversar sobre os planos

para a revista e eu, de minha parte, mais do que querendoouvi-los. Curiosamente, embora tivesse declinado o convitepara ser um jornalista fixo, de muitos modos senti-me comose estivesse me juntado à equipe. Aquela era minha revistatambém. O trato financeiro que fizemos permitiria que eu meconcentrasse quase exclusivamente nessa série dereportagens até o fim do ano. Era muito claro que eu estavaenvolvido em uma publicação que o público não conheceriaantes de nove meses. Se isso acontecesse em outra época de

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minha vida, eu morreria de medo. Mas, por algum motivo,agora era a coisa certa a ser feita.

Quando os dois me deixaram na rua e voltaram para o

escritório, eu me dirigi ao estacionamento. Agora que elesestavam fora de alcance, podia pular de alegria. Não fiz nadaridículo, como gritar ou dar um salto no ar, mas pensei nisso.Eu queria mesmo era comemorar. Queria comprar umagarrafa grande de vinho e brindar ao fim dos meus dias comoescravo das palavras. Entrei no carro e não notei omovimento no túnel.

Foi somente quando já estava de volta a New Jersey quepercebi que a pessoa com quem queria comemorar deverdade era Marina. Fora ela, de fato, quem sempre mepedira para ler o que andava escrevendo durante todo otempo que ficáramos juntos. Mesmo as coisas que nãopoderiam interessar a mais ninguém se não a mim. Tambémfora ela quem me ajudara a praticar e me botara para cimaquando os artigos não saíam como eu queria. E, então, claro,

havia aquilo: ela era sempre a primeira pessoa em quempensava quando queria comemorar qualquer coisa.

Pensei seriamente em ligar para ela. Se não houvessemotivo, então seria porque pensei que ela ficaria contentecom a notícia. Ela sabia o quanto esse trabalho eraimportante e eu sabia que ficaria feliz por mim. Mas aí melembrei de nossa última conversa logo depois que nos

separamos. Que Marina tinha deixado bem claro, ao não medizer nada, que ela não tinha o menor interesse em manteruma conversa casual comigo. Claro que ela ficaria contentepor mim e com certeza não faria nada que qualificasse comoimpróprio meu telefonema. Mas, de algum modo, do outrolado da linha, ambos iríamos nos dar conta de que aquilotudo era artificial e sentiríamos um vazio. Pela primeira vez,comecei a entender que, embora o namoro pudesse ser

reatado (até mesmo florescer) debaixo de uma noção segundoa qual o futuro era indefinido, não poderia sobreviver se

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pensássemos que não havia futuro. Eu fizera papel de boboao acreditar que o namoro pudesse se transformar em umaamizade duradoura.

Era sensato pensar aquelas coisas e eu saí do estado dedevaneio. Claro que havia outras pessoas com quem poderiaconversar. Amigos, colegas escritores, pessoas que conheciano meio. Havia mesmo o velho em casa. Porém, o pensamentode que eu não poderia incluir Marina entre essas pessoasmudou o teor das coisas para mim.

Quando saí da autoestrada e comecei a dirigir de volta

para casa, já estava melhor. Passei perto de minha lojafavorita de vinhos e decidi comprar algo que me fizesse bem,como o Barolo que o dono da loja recomendou. Passei nomercado perto de casa e comprei alguns cogumelos, tomatese, em seguida, fui até a peixaria e escolhi um atum fresco.Mesmo que não fosse a mesma coisa, Mickey e eu nosdivertiríamos naquela noite.

O único problema era que meu pai parecia ter passadoas horas em que eu estivera fora de mau humor. A verdade éque, depois daquele almoço, eu havia me esquecido do climaentre nós antes de sair de casa. Infelizmente, enquantoestava tentando escalar um degrau na carreira,provavelmente ele tinha falado com tia Theresa por telefone etambém com Matty, fofocando sobre algo que eu fizera e queo ofendera, embora não tivesse me dito nada.

 —  Ei, pai —  chamei, ao entrar em casa — , tenho ótimasnotícias!

Não houve reação da parte dele. Então, fui caminhandoaté a sala. Ele estava lá, trabalhando no computador, e malviu que eu havia entrado em casa.

 —  Acabei de ter aquele almoço com Brad e o editor que

ele contratou, Ed Crimmins. Eles queriam que eu fizesseparte da equipe de jornalistas da revista.

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Com isso, ele olhou para mim. Foi quando percebi o queandava acontecendo naquela casa na última semana.

 —   Eu disse não  —   revelei, e ele se virou da tela do

computador para mim com um sorrisinho na cara.  —   Masagora é que vem a melhor parte. Eu propus escrever umasérie de dez artigos e eles toparam.

Ele levantou a mão do mouse e se dirigiu para mim.

 —  Isso é bom —  disse, secamente.

 —  Quer dizer ótimo, pai.

 —  Vai receber alguma grana?

Eu bati a mão na testa. Essa resposta desdenhosa eraprecisamente o que não precisava naquele momento.

 —   Dinheiro. Merda, sabia que tinha esquecido algumacoisa —  disse, com sarcasmo. Ele se virou para o computadore digitou alguma coisa.  —  Claro que vou receber. Muito boa

grana, por sinal. Não tanta quanto se fosse trabalhar paraa Vanity Fair , mas isso é um plano para o ano que vem, nãopara este ano. Você pode até pensar em fazer algunsinvestimentos para mim.

 —   Meus parabéns  —   disse com um traço mínimo deemoção.

 —  Sabia que você se animaria —  comentei, sentindo-meum pouco diminuído.  —   Escute, sei que você pretendiasugerir que a gente comemorasse indo comer fora, em umrestaurante fabuloso, com champanhe e cozinha quatroestrelas, mas não quero que se dê a esse trabalho.

 —  E por que não vai comemorar com Marina?

Parei. Realmente, aquela não era hora para contar a ele

sobre a separação. Sua reação já não era como eu esperava, e

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realmente não precisava de um discurso sobre meusromances fracassados.

 —  Pelo mesmo motivo pelo qual ela não tem aparecido:

os ensaios da peça.

Sabia que isso não colava mais (e, se por acaso nãosoubesse, a cara que ele fez depois de ouvir meu últimocomentário deixou tudo bem claro), mas parecia que pelomenos ele não faria um sermão.

 —   Olhe, pai. Trouxe um ótimo vinho, umas postas deatum e mais umas outras coisas. Estou mesmo contente com

esse negócio e gostaria que comemorasse comigo a ocasião.

 —   Então, vamos comemorar  —   ele disse e clicou emoutra página na rede.

Passei o restante da tarde ligando para alguns amigos ecolegas de profissão, bem como fuçando na rede algunsnomes de futuros entrevistados. Telefonar me permitiu dividir

minha alegria e receber alguns aplausos. A pesquisa me deua chance de começar a cavar informação e de perceber oquanto aquilo me satisfazia. Essas atividades levavam meuespírito para perto de onde estava quando entrara em casaalgumas horas antes. O que foi bom, porque o jantar, depois,foi um tanto quanto fraco. Tentei encetar uma conversa commeu pai, mas ele não estava a fim. Acabei bebendo quasetodo o vinho enquanto sentávamos em silêncio à mesa.

Meu pai se ofereceu para lavar a louça. Enquantolavava, eu lia uma revista na sala. Quando ele terminou, juntou-se a mim.

 —  Vou ver o que tá passando na televisão. Quer ver TV? —  ele perguntou.

Suspirei e pus a revista de lado.

 —  Ei, não precisa ver TV.

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Olhei para ele. Havia uma amargura em seu rosto, quedizia que o convite fora mera formalidade, algo que fizera porhábito. Eu peguei a revista de novo.

 —  Acho que vou ficar aqui —  declarei.

Ele deu de ombros e foi embora. Outra vez, pensei emligar para Marina. A última coisa que eu esperava em um diacomo aquele era ter pena de mim, mas era assim que ascoisas tinham saído. Não tinha ninguém com quemcomemorar o grande evento em minha carreira. Quis saber seera esse um dos motivos pelos quais as pessoas continuavam

em uma relação, mesmo sabendo que ela não levaria a lugarnenhum. Em caso de alguma coisa boa acontecer, pelomenos elas se divertiriam de algum modo, mesmo que só poruma noite. Com certeza, casais como Darlene e Earl, Matty eLaura (não tinha mais tanta certeza quanto a Denise e Brad),davam bastante espaço para isso. Tenho certeza de queminha cunhada Laura fizera um ótimo trabalho aocomemorar a última promoção de Matty, mesmo que ela

costumasse ir para a cama logo depois das comédias na TV.

Nos últimos tempos, eu percebera que a combinaçãoentre melancolia e três quartos de uma garrafa de vinhoresultaria em uma conversa com Marina da qual meenvergonharia por pelo menos uma década. Disse a mimmesmo que ligaria para ela no dia seguinte e, se nãohouvesse nenhum motivo para isso, seria porque na verdade

ela gostaria de saber da notícia. Li por mais uma hora e emseguida decidi que ligaria à noitinha. Passei por meu pai nasala e disse-lhe que ia dormir. Ele simplesmente mexeu acabeça para mim.

Cerca de dez minutos depois, já indo me deitar, eleentrou em meu quarto.

 —  Não sei o que acontece —  ele disse. —  Você acha que

sou muito delicado? Ou estúpido? Ou pensa que eu não ligo?O que você acha?

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 —  Vou precisar de uma pista sobre o que está falando.

 —  Acha mesmo que eu acreditei nessa lorota de que aMarina está muito ocupada para vir até aqui?

Eu me levantei da cama e pus uma camiseta. Não teriaessa conversa com meu pai só de cuecas. Esperava que otempo que levaria para me vestir fosse suficiente para quealguma ideia coerente me viesse à mente, mas aquilo nãoaconteceu.

 —  Não acho que seja estúpido —  respondi.

 —  O que leva a uma das outras duas opções.

 —   Não necessariamente. Eu apenas não sabia o quedizer. Sei que você gosta dela de verdade e sei que não levarianuma boa.

Ele fez uma cara que eu não via desde quando tinha 10anos de idade. Preparei-me para o chumbo grosso.

 —  Bom, o que diabos aconteceu? —  ele perguntou.

 —  Coisas aconteceram, pai. Diversas coisas. Chegamosao ponto em que não dava mais para continuar e nosseparamos.

 —   Você rompeu com ela ou foi ela que rompeu comvocê? —  fez a pergunta direta.

 —  Que diferença faz?

 —   Quero saber quanto você contribuiu para esse erroinacreditável.

Levantei as mãos:

 —  Nossa! Obrigado pelo apoio. Quer saber de uma coisa,pai? Você contribuiu significativamente para esse “erro

inacreditável”. 

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 —  O que está querendo dizer?

 —  Toda essa história sobre Gina, o grande amor da suavida. É mais uma prova de que não importa o que se faça,

não se pode manter a chama de um romance viva parasempre.

Ele me olhou como se eu tivesse declarado que o céu eralaranja.

 —  Você é incorrigível —  disse, com amargura.

 —  Por que incorrigível? —  gritei em resposta. —  Entendi

a pequena alegoria, pai. Gina era uma mulher especial.Marina é uma mulher especial. Os nomes delas até rimam,então deve haver algum sentido cósmico nisso. Mas você seesquece de que sei como suas histórias terminam. Tem essedetalhe sobre minha mãe que revela a verdade. A menos queo objetivo fosse me contar que manteve uma vida escondidanos últimos cinquenta e tantos anos.

Ele olhou para mim com absoluto desprezo.

 —  Você não faz ideia de qual foi o fim da minha história —  disse e saiu do quarto.

Deveria ter ido atrás dele, para lhe explicar os motivospor que terminei com Marina. E também para forçá-lo a mecontar o restante da maldita história, esclarecer por queestava demorando tanto para fazê-lo, para revelar sua

mensagem para o tempo. Deveria tê-lo seguido para que eleexpressasse a falta que sentia de Marina.

Deveria ter feito qualquer outra coisa, em vez de voltarpara a cama e permanecer agitado por mais algumas horas.

Assim como deveria ter feito outra coisa na manhãseguinte, em vez de dizer:

 —  Vou para a biblioteca. Vejo você depois.

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Capítulo 29

Encontrei meu pai no chão perto do computadorquando voltei para casa naquela tarde. O médico afirmou

que ele deveria estar inconsciente havia menos de uma hora.Ele internou meu pai na unidade de terapia intensiva, certode que ele tinha sofrido um derrame, e me disse que nãosabia quando ou se ele sairia do coma. Eu liguei para odr.Quigley, o médico pessoal dele, para avisar que ele nãocompareceria à consulta do dia seguinte.

Avisei Darlene, Denise e Matty. Darlene e Mattydisseram que viriam em alguns dias. Denise me surpreendeuao aparecer naquela mesma noite. Ela entrou no quarto dohospital em que eu e tia Theresa estávamos sentados ao ladode meu pai. Ela lançou um olhar para ele, que estava deitado,inconsciente, e começou a chorar. Não me lembro de tê-lavisto chorar antes, nem mesmo no enterro de minha mãe.

 —  O que eles dizem? —  ela perguntou.

 —   Eles não sabem o que vai acontecer. Ele ficou bemmachucado e não há muito que podem fazer por ele. Elesplanejam passá-lo para um quarto particular amanhã demanhã.

Ela pegou a mão de meu pai e deitou a cabeça no peitodele por um momento. Em seguida, sentou-se e fez um nítidoesforço para se recompor. Olhou para mim e deu um tapinha

em minha perna.

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 —  Brad me contou sobre o contrato com a revista  —  eladisse, com um meio sorriso. —  Meus parabéns.

 —  Obrigado. Eu tinha saído para fazer umas pesquisas.

Foi por isso que não estava em casa quando aconteceu.

Denise pendeu a cabeça para um lado e disse:

 —  Você não está se culpando por isso, está?

 —  Não —  disse, com a voz trêmula. —  Não por isso.

 —  Não faça isso. Nunca. Não faz ideia de quanto fez bem

a ele.Não me lembro de ela ter dito qualquer coisa parecida

antes para mim. Fiquei com lágrimas nos olhos. Apertei amão dela e ambos nos viramos para meu pai.

Nós dois nos sentamos com ele até que fossem quase23h. Disse à minha tia que a levaria de volta para casa. Aome despedir de Denise na recepção do hospital, ela me

perguntou a que horas eu pretendia chegar na manhãseguinte.

 —   Eu fico de vigília  —   eu disse para ela.  —   Venhaquando puder, mas faça as outras coisas que tem de fazer.Aviso, caso aconteça alguma coisa.

Ela concordou com a cabeça.

 —  Ainda é um pouco estranho para mim que tenha setornado o guardião de papai. Quem diria, hein?

Nas semanas seguintes, meus irmãos vieram e foramembora. A situação de meu pai não progredia, mas tambémnão piorava. Estava ficando claro que ele poderia permanecerentre esses dois mundos por um período mais longo, e nãofazia sentido que eles revirassem a vida do avesso à espera de

meu pai. Na maioria dos dias, éramos somente eu e tia Theresa. Trazia meu laptop  e escrevia ou lia o que havia

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pesquisado, mas então eu me pegava ao lado de meu pai nacama, sentindo necessidade de olhar para ele.

 Tia Theresa e eu almoçávamos separados na cantina do

hospital. Como o tempo de vigília se esticou, ficou evidenteque poderíamos sair do quarto juntos e que tudo ficaria bem.Não sei direito quantas palavras troquei com minha tiadurante toda a minha vida, mas foram poucas, mesmocontando com as visitas que ela fizera depois de meu pai semudar para casa. Mesmo antes, sabia o porquê: sempre tive opressentimento de que algo lhe faltava. A única pessoa quealiviava sua dor fora minha mãe. Muito embora meu pai a

adorasse, era bem claro que ele andava pisando em ovos comela quando minha mãe não estava por perto. Nunca houveraum assunto que pudesse ser discutido por mim e por ela pormais de 45 segundos. Nada disso parecia incomodá-la nasala do hospital. Ela pareceu contente por meditar ao lado demeu pai, e mesmo quando eu não estava trabalhando nósnão dizíamos muito.

Frequentemente, quando minha tia fazia os intervalos,eu “conversava” com meu pai. Sempre escutei que pacientesem coma podem ouvir tudo o que se passa ao redor e acheique talvez ele gostasse do que eu dizia, muito emboraevitasse fazê-lo na frente de tia Theresa. Falava com ele sobrediversos temas: sobre a comida ruim da cantina, sobre omercado de ações, as notícias ou as pesquisas para meuartigo. Por um longo período, evitei falar de Marina, pois

mesmo depois de todo esse tempo, e sabendo que ele nãopoderia responder, eu ainda não sabia o que dizer.

Não havia avisado Marina da hospitalização de meu pai.Embora soubesse que ela quereria saber, não gostaria quefosse um apelo por solidariedade. Mas certamente eu nãoparava de pensar nela. Nem em Gina. A última coisa que meupai me dissera antes do acidente fora: “Você não faz ideia de

qual foi o fim da minha história”. O pensamento de que talvez

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nunca descobrisse era quase tão frustrante quanto aperspectiva de nunca mais falar nada com meu pai.

Depois de evitar tocar no tema por um bom tempo,

comecei a falar-lhe sobre Gina. Na verdade, pensei que haviaum valor terapêutico nisso. Havia visto que ele setransportava para o passado ao contar o relato, e pensei que,de repente, ele pudesse voltar no tempo e, de algum modomístico, sair do coma. Comecei a especular em voz alta sobrecomo eles tinham terminado. Algo em mim imaginava que euacabaria acertando a resposta e que meu pai abriria os olhose diria: “Você está certo, mas não deixa de ser um

incorrigível”. 

 Tinha acabado uma dessas “conversas” durante ointervalo para jantar de minha tia quando ela entrou, sorriu eme deu um tapinha na mão. Esse era o sinal de que eraminha vez de descer para a cantina. Ao comer o mesmosanduíche de peru com o nome eufemístico de rolinho duro,que eu já tinha comido uma dezena de vezes nas últimas

semanas, de repente pensei que talvez tia Theresa soubessealgo sobre Gina. Em minha cabeça, o personagem da históriaera alguém completamente diferente de meu pai e por issonão me dera conta de que quem passava horas e horascomigo agora era na verdade sua irmã.

Quando voltei para o quarto, como de hábito, minha tiasegurava a mão dele. E também, como de hábito, ela sorriu

para mim quando entrei, mas os olhos estavam voltados paraa outra cadeira. Dessa vez, no entanto, virei a cadeira paraela, o que a perturbou.

 —  Tia Theresa, você conhece Gina?

Ela me olhou surpresa por um segundo, antes de voltarao estado de perturbação.

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 —  O pai me contou sobre uma mulher chamada Gina,de quem foi noivo, e eu pensei que talvez você soubesse algosobre ela.

Ela se virou para meu pai e em seguida girou na cadeirapara me encarar:

 —   Por que ele lhe contaria isso?  —   perguntou,parecendo bem intrigada.

 —   Essa é uma das coisas que ele não esclareceu.Parecia importante para ele que eu soubesse dela, mas elesempre se envolvia tanto nas histórias que nunca chegou a

esse ponto.

 —   Eu nunca mais ouvi o nome dela, nem pensei nela,em pelo menos cinquenta anos.

 —  Mas você a conheceu?

 —   Claro que a conheci. Seu pai e eu não tínhamossegredo um para o outro e, quando ele namorou Gina, nãofalava sobre outra coisa.

 —  Então, você sabe como foi que eles romperam. Fiqueiesperando que ele me contasse essa parte da história, masnão deu tempo.

Ela pareceu ainda mais confusa com isso.

 —  Seu pai e Gina nunca romperam. Eles ficaram juntosaté o dia em que ela morreu.

Foi minha vez de me sentir desorientado. Claro quepensara na hipótese de ela ter morrido, mas havia descartadoisso por conta do modo como ele “falava” com ela logo depoisde terminar uma parte da história, e como ele falara dela aome mostrar a foto. Para mim, não havia dúvida de que Ginaainda estava perambulando por aí, ou, caso contrário, havia

morrido muito depois de ter abandonado meu pai.

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 —  Ela morreu?

 —   Foi terrível  —   disse Theresa.  —   Foi apenas algumassemanas antes de eles se casarem. Meu Deus, faz muito

tempo que não me lembro disso! Espero que eu esteja certa.Gina tinha sido chamada para integrar um comitê daprefeitura. Com isso, ela precisava ir a várias reuniões emtoda a cidade, incluindo alguns bairros violentos. Seu pai —  emesmo o prefeito  —   disseram a Gina para não ir a esseslugares sozinha, mas sei que seu pai o preveniu de que Ginanão era o tipo de mulher que gostava de receber ordens. Elanão queria pensar que houvesse algo com que não pudesse

lidar diretamente. Então, ela foi para esse pedaço terrível doBronx e acabou se envolvendo em uma briga entre marido emulher. Seu pai estava no apartamento dos pais de Gina,esperando-a para o jantar, quando um policial bateu à porta.

Minha tia se virou para meu pai e pôs a mão no peitodele. Queria fazer a mesma coisa, mas não consegui memover.

 —  Seu pai sofreu muito. De um momento para o outro,tinha passado do estágio de homem mais sortudo do mundopara o de criatura arrasada. Por alguns anos, pensei que elenão ia se recuperar. Como deve saber, eu também sofri nopassado, mas mesmo eu era preocupada com ele. Aospoucos, ele voltou a trabalhar, mas nunca mais pensou em seenvolver com outra mulher. Ele tinha se fechado. Um dia,

porém, ele encontrou sua mãe em um mercado no bairroonde morava. Ela era amiga de um amigo, ou qualquer coisaassim. Demorou bastante tempo, mas devagar as coisasacabaram acontecendo entre eles. Não era nada parecido como que houvera entre ele e Gina. Nunca vi um casal que segostasse tanto como seu pai e Gina. Mas sua mãe era umamulher muito boa. Uma santa, posso dizer. Acho que seu paipensou que ela pudesse cuidar dele e ele deu uma chance ao

coração.

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Ela fez uma pausa e em seguida se inclinou para beijá-lo no rosto.

 —   Acho que, entretanto, ela não conseguiu totalmente

 —  ela disse, virando-se para mim — , se pensar que, depois detodos esses anos, ele contou a você sobre ela.

Outra vez, ela acariciou o peito dele e se girou nacadeira. Olhou para mim a fim de confirmar que contara tudoo que eu queria saber a respeito do assunto e em seguidapegou uma revista.

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Capítulo 30

Tive um sono cortado por poucas horas naquelanoite. Não podia me acalmar depois do que minha tia mecontara. O caso de amor entre meu pai e Gina nunca tinhaterminado. Ela não o tinha abandonado, nem se cansadodele, nem ficado amarga com ele. Pelo que pude entender, ocaso de amor deles ainda continuava em outra esfera. Peloque pude entender, nunca teria terminado.

 Tantos pensamentos passaram em minha mente. Claroque havia uma boa chance (antes daquela noite, diria que eraquase certa; e ainda não sabia direito por que havia mudado

de ideia) de que meu pai e Gina teriam vacilado, com odecorrer do relacionamento deles. Certamente, não haviapossibilidade de que eles não encontrassem nenhumadificuldade ou complicação nos sonhos deles, ou umasituação que faria com que ficassem em lados opostos. Queisso não tivesse ocorrido no ano em que namoraram sugeriaque eles tinham tido mais sorte que a maioria. E, de fato, eleseram mimados pela boa sorte e completamente

despreparados para lidar com as dificuldades.

Por outro lado, eles não haviam topado com umobstáculo que os levaria a um declínio, pois eram tão unidose gostavam tanto um do outro que conseguiram afastar todosos problemas. Talvez pensassem mesmo que, quando serespeita e se quer bem ao outro, pode-se manter a chama e avitalidade.

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Que eu tivesse curiosidade por essa ideia significava quemeu pai tinha tornado seu mundo real para mim. Achava queconhecia Mickey e Gina, que tinha passado um bocado dehoras com eles. Que tinha ficado impressionado com o amor

deles.

Claro que um subproduto dessa vivência foi que saberda morte de Gina teve um efeito pessoal em mim. Considereimuito mais intensamente a perda dessa mulher do que haviasentido raiva dela ao pensar que tinha ferido meu pai. Meussentimentos estavam com os pais dela, na dor deles, e em seuirmão, que provavelmente morava ainda em algum lugar em

Nova York e ainda se condoía ao lembrar de uma irmã vivaz eidolatrada.

Mas sentia a perda de meu pai, sobretudo. Vi doishomens com os olhos da mente. Um era o jovem edeslumbrante rapaz, de vinte e poucos anos, que tinha tiradoa sorte grande ao se apaixonar por uma mulher como Gina.Outro era um senhor corcunda, com oitenta e tantos anos,

cuja voz tinha enfraquecido e cuja expressão voltava a ser ade uma criança, quando comentava sobre essa mulher quetinha embelezado sua vida. Nutria simpatia pelos doishomens de modos distintos. Pelo jovem, a quem tinhamtirado o amor e mal podia compreender como a vida poderiase transformar tão rapidamente. E pelo ancião, que aindapoderia se encantar com o passado, mesmo tendo sidomarcado definitivamente por ele.

Podia, enfim, entender por que meu pai se transtornavacom a presença de Marina. Ele sabia que ela era uma mulherque se importava com as pessoas e era marcante, mesmo quecom certeza ele houvesse encontrado outras mulheresimpressionantes. Ele sabia que eu estava apaixonado por elae que ela me trazia leveza e também me expunha, muitoembora eu soubesse que ele havia visto seus filhos

apaixonados antes. Porém, ele também viu como éramos juntos, o modo como nos dávamos tão bem. E, claro, era algo

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que ele não via com tanta frequência. Acho que não tinhavisto nada assim em cinquenta anos.

E agora podia entender os motivos por que me contara

aquela história. Era fácil. Era o único modo que ele tinha deme passar a mensagem de que eu não deveria negligenciarMarina. Que, não importava quão cínico eu havia me tornadocom relação a amor e relacionamentos, seria um erro gravesubestimar o poder desse romance. Na certa, uma série desermões não teria surtido efeito. O único modo que elepoderia abrir meus olhos era me trazer para perto de suaexperiência pessoal, revivendo os jovens Mickey e Gina para

mim tanto quanto possível. Eu entendi até por que era-lhetão difícil contar e por que tivera que dividir tudo emepisódios. Deve ter sido agonizante para ele reviver o passadoquando sabia o que esperar no final.

E ainda assim consegui ferrar meu relacionamento comMarina. Ao me deitar na cama, pensei em ligar para ela epedir para vê-la. Quase tirei o fone do gancho, mas pensei

que era melhor não acordá-la no meio da noite. Quando otelefone tocou às 3h37 da manhã, a primeira coisa que penseifoi que a gente era ainda tão ligado que ela na verdade haviafeito o telefonema em meu lugar.

Mas a ligação era do hospital. Meu pai havia falecidopoucos minutos antes. Acho que ele fora capaz de nos ouvirnaquele quarto, afinal.

Eu me vesti e fui diretamente para o hospital, muitoembora, obviamente, não houvesse pressa nenhuma. Queriaver o corpo de meu pai antes que o levassem. Ele pareceuartificial para mim, deitado na cama onde havia morrido.Embora não tivesse se movido por algumas semanas, agoraparecia que havia bem menos dele. No caminho da ida,pensei no que diria a ele, mas, uma vez lá, a ideia de dizerqualquer coisa pareceu boba. Fiquei um tempo no quarto eem seguida saí para fazer outras coisas. Fui tomar um café

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na cantina. Pensei que meu pai teria gostado do café, porqueera muito fraco e quase sem sabor. Não, ele não gostava maisde café fraco. Pelo menos aquilo eu tinha dado para ele.

As horas seguintes voaram. Liguei para Darlene, Matty,Denise e tia Theresa. Combinei um funeral em casa e resolvivárias outras coisas, assinando papéis. Eram quase 10hquando parei e pensei no que eu tinha pela frente. Aí, percebique não havia ligado para Marina. Ela estaria na escolaàquela hora, e é claro que não gostaria de interromper asaulas, então deixei uma mensagem na secretária eletrônicade sua casa.

Na primeira hora da vigília, dezenas de pessoasapareceram, muitas delas eu não via fazia muitos anos oumesmo nem conhecia. Parentes distantes, vizinhos da velhacasa, membros de um clube de idosos a que meus paistinham pertencido enquanto minha mãe ainda era viva. Mattye sua família chegaram no começo da tarde e Darlene e osseus, pouco antes de a vigília começar. Embora o quarto

estivesse à meia-luz, e o cenário às sombras, parecia tudo umalvoroço para mim. As pessoas conversavam, ajoelhavam aolado do caixão, paravam para dizer algo agradável sobreMickey e então perguntavam sobre cada um de nós.

Quando a função terminou, nós quatro, além doscônjuges e dos filhos, nos sentamos em cadeiras econversamos sobre meu pai. As lembranças de meus irmãos.

Eles falaram sobre como meu pai era bom e quantasegurança passava para eles. Disseram que agora ele se juntaria à minha mãe e viveria na eternidade. E ainda sobre aherança que receberam dele.

Não disse muita coisa. Não que meu silêncio não fossepeculiar. Mas não pude deixar de pensar que o homem sobreo qual falavam era de algum modo distinto daquele que euconhecia. Houve um tempo em que tinha ciúmes deles e que,depois que meu pai se mudara para minha casa, eu

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conversava com meus irmãos sobre coisas que me foramnegadas a vida toda. De modo infantil, acreditei que teria algodele que somente a mim pertenceria e que eu me gabaria decontar isso a meus irmãos. Mas meu pai tinha me dado algo

tão precioso, tão valioso, que a noção de banalizá-lo,repassando tudo às outras pessoas da família, erainconcebível para mim. Soube então que nuncacompartilharia a história de Gina com Darlene, Matty ouDenise. Não era preciso e não teria o mesmo efeito neles queteve em mim.

 —   Ele adorou ter ficado com você  —   Matty me disse,

quando eu mal podia prestar atenção à conversa. Virei e vique Darlene concordava.

 —   Ele me ligou diversas vezes para dizer que nãoacreditou que nós queríamos interná-lo numa casa derepouso —  disse Darlene.

 —  Não seria assim uma “casa” —  disse Denise.

Matty riu e bateu na perna dela:

 —   Definitivamente, estávamos errados, hein?  —   E mecontou:  —   Depois de um mês que ele se mudou para suacasa, ele parou de tentar me fazer me sentir culpado por nãovê-lo tanto e tentou me fazer ter ciúmes de você com ascoisas que cozinhava e fazia para ele.

Eu ri, mas estava me sentindo meio sufocado. Meu painunca me contara aquilo. Embora soubesse que o clima tinhamelhorado entre nós, eu nunca parara de cogitar se ele haviase arrependido da mudança. E, então, quando as coisasvoltaram a ficar tensas entre nós, tive certeza de que elepreferiria estar em qualquer outro lugar. Que ele pintasseoutro quadro para os meus irmãos era algo bem forte desaber.

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Decidi dar um passeio sozinho. Quando fui para o fundoda sala, vi Marina entrar.

Não hesitei. Nem por um momento analisei a situação.

Não titubeei em nenhum instante. Simplesmente corri paraos braços dela. Ela me abraçou sem dizer uma palavra e, porum segundo, achei que entregaria os pontos. Mas quantomais eu a abraçava, mais seguro ficava, como se ela estivesseme alimentando, me fortalecendo. Sabia que sentia faltadisso. Mas até aquele momento não tinha me dado conta doquanto, porque não tinha certeza de que aquele sentimentoviria outra vez.

Depois de um tempo, ela recuou, embora aindaestivéssemos de mãos dadas. Marina olhou ao redor da sala epara o caixão.

 —  É difícil acreditar que ele se foi  —   ela afirmou. Seusolhos estavam vagos e não soube bem se eram por minhacausa ou por meu pai.

 —  Ainda não entendi direito. Tinha um pressentimentode que ele não sairia do coma, mas queria que ele saísse.

 —  Você está bem?

 —   Sim, vou ficar. Vou sentir saudades dele. Mas pelomenos não vou mais precisar manter os ovos fora do alcancedele.

Ela sorriu e eu tive uma vontade louca de beijá-la. Achoque ela teria retribuído, mas havia coisas que eu queria dizerprimeiro. Eu a levei para um canto tranquilo da casa e nósnos sentamos um diante do outro.

 —  Finalmente ouvi o final da história sobre Gina  —  eudisse.

 —  Ele lhe contou?

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 —  Na verdade, o finalzinho foi minha tia quem contou.Não terminou como eu imaginava. Foi um final triste. Epercebi o motivo de tudo aquilo.

Marina apertou minha mão.

 —  E o que é?

 —   Que a gente tem muita sorte quando é presenteadocom um caso de amor raríssimo e que deve tratá-lo como a joia da coroa.

Ela fungou e apertou mais minha mão.

 —   Quer dizer que vai manter em um caixa-forte e vaibotar guardas ao redor.

Sorri e beijei a mão dela.

 —  Não iria tão longe. Olhe, tenho alguns problemas emcaptar as sutilezas, mesmo quando não são assim tão sutis,mas acho que finalmente compreendi que existem algumas

pessoas no mundo que valem a pena. O amor nem sempremorre. Às vezes, transcende tudo.

 —  Está parecendo música brega.

 —  Em outras circunstâncias, eu me envergonharia. Masàs vezes você tem que se arriscar a repetir a mensagem deum cantor pop.

Ela sorriu.

 —  E qual é essa mensagem?

 —  Que a gente tem a chance de transcender tudo. Essaé a razão pela qual o que fazia a gente se sentir diferente eraporque era diferente. Mas eu tinha um velho modo de pensar.Meu pai estava certo quando me chamou de incorrigível.

 —  Deveria ter ouvido do que eu chamei você.

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Eu me aproximei dela.

 —  E você também tinha razão —  disse. —  Mas a coisa éque esses relacionamentos podem ser um em um milhão,

mas não são tão raros que um pai e um filho não possam tersido presenteados.

Ela pôs a mão em meu braço estendido.

 —  Eu sei —  ela disse.

Eu me aproximei mais e a beijei. Era o tipo de beijo quepedia por perdão (que achei que ela já tinha me dado),

compreensão (que sabia que ninguém fazia tão bem quantoela) e que ficássemos juntos para sempre (que era algo que eudeveria reiterar todos os dias). Quando paramos de nosbeijar, colamos a testa um no outro, como fizemos um milhãode vezes antes. Depois, ela beijou meu nariz e nos levantamose fomos para a parte da frente da sala.

Ao chegarmos à primeira fila de cadeiras, eu a

apresentei à minha família. Até mesmo Marcus quiscumprimentá-la. Depois, eu me sentei e Marina se ajoelhouperto do caixão. Ela pendeu a cabeça como se conversassecom meu pai.

Não dava para ouvir o que dizia, mas eu podia ter umaideia.