tupi guarani a origem da lingua

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uando os colonizadores portugueses aportaram em solo brasileiro e bateram de frente com cinco milhões de índios, logo perceberam que a comunicação seria praticamente impossível. Os “selvagens”, predominantes sobretudo no litoral, na faixa que vai do Ceará até Cananéia, em São Paulo, falavam o tupinambá, um dialeto do tupi- guarani essencialmente sonoro. Monossilábicos, os índios pronunciavam coisas como “caa” (que significa mato, planta), “soo” (animal, bicho) e “y” (qualquer tipo de líquido) ou palavras que, para o europeu, significavam uma frase inteira, como “paranapiacaba” (lugar de onde se vê o mar). Em uma carta datada de 22 de outubro de 1560, o padre Antônio Pires desabafa: “A mim me envergonha que 12 anos que cá ando, não sei nada [sobre o tupi]”. O pessimismo de seu superior, o padre Manoel da Nóbrega, também era evidente. Logo após desembarcar por aqui, declarou: “São eles [os índios] tão brutos que nem vocábulos têm”. A preocupação com a língua local girava em torno da dificuldade que seria europeizar o novo mundo conquistado sem se fazer compreender por seus moradores. O sucesso da empreitada você aprendeu nas aulas de História: em menos de meio século, os jesuítas ganharam a confiança dos nativos e transmitiram os preceitos e comportamentos cristãos – para isso, usaram principalmente a música e a dança. Tornaram-se, assim, “a mais potente organização a serviço da Igreja Católica”, nas palavras do estudioso em Ciências da Comunicação Luiz Beltrão, no livro Folkcomunicação (2001). O êxito se deveu em grande parte ao esforço descomunal do padre José de Anchieta (1534-1597), que por décadas observou as festas e rituais de tupinambás e tamoios com olhos de antropólogo. O missionário, na época com apenas 19 anos, fez parte da segunda leva de jesuítas a pisar em terras brasileiras, depois que o padre Manuel da Nóbrega pediu reforço de pessoal na atividade de evangelização da colônia. Anchieta chegou em 1553, a bordo do veleiro que também trazia de Portugal o segundo governador-geral do Brasil, Duarte da Costa, recém-nomeado pelo rei dom João III. Alguns meses depois de desembarcar na Bahia, Anchieta já era dos mais requisitados evangelizadores jesuítas. Recebeu, por exemplo, a incumbência de ajudar a fundar um colégio da Companhia de Jesus no planalto de Piratininga, embrião do que é hoje a cidade de São Paulo. Além de se dedicar à alfabetização dos filhos dos europeus e dos índios, o missionário estudou com afinco a língua tupi e formulou a primeira gramática brasileira, a Artes de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil, impressa em 1595 em Coimbra, Portugal. Escrita em apenas seis meses, a cartilha descreveu e sistematizou no papel uma língua “nova”, até então apenas oral, baseando-se no modelo estrutural do latim. Foi o pontapé inicial dos estudos lingüísticos na América portuguesa e a segunda gramática de uma língua indígena (a primeira tinha sido a Arte de la Lengua Mexicana y Castellana, do frei Alonso de Molina, publicada no México em 1571). “Anchieta, graças a seu magnífico trabalho, realizou um dos princípios básicos da Companhia de Jesus, o de que todos os missionários deviam aprender a língua da terra onde

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origem tupi guarani

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uando os colonizadores portugueses aportaram em solo brasileiro e bateram de frente com cinco milhes de ndios, logo perceberam que a comunicao seria praticamente impossvel. Os selvagens, predominantes sobretudo no litoral, na faixa que vai do Cear at Canania, em So Paulo, falavam o tupinamb, um dialeto do tupi-guarani essencialmente sonoro. Monossilbicos, os ndios pronunciavam coisas como caa (que significa mato, planta), soo (animal, bicho) e y (qualquer tipo de lquido) ou palavras que, para o europeu, significavam uma frase inteira, como paranapiacaba (lugar de onde se v o mar).Em uma carta datada de 22 de outubro de 1560, o padre Antnio Pires desabafa: A mim me envergonha que 12 anos que c ando, no sei nada [sobre o tupi]. O pessimismo de seu superior, o padre Manoel da Nbrega, tambm era evidente. Logo aps desembarcar por aqui, declarou: So eles [os ndios] to brutos que nem vocbulos tm. A preocupao com a lngua local girava em torno da dificuldade que seria europeizar o novo mundo conquistado sem se fazer compreender por seus moradores.O sucesso da empreitada voc aprendeu nas aulas de Histria: em menos de meio sculo, os jesutas ganharam a confiana dos nativos e transmitiram os preceitos e comportamentos cristos para isso, usaram principalmente a msica e a dana. Tornaram-se, assim, a mais potente organizao a servio da Igreja Catlica, nas palavras do estudioso em Cincias da Comunicao Luiz Beltro, no livro Folkcomunicao (2001). O xito se deveu em grande parte ao esforo descomunal do padre Jos de Anchieta (1534-1597), que por dcadas observou as festas e rituais de tupinambs e tamoios com olhos de antroplogo.O missionrio, na poca com apenas 19 anos, fez parte da segunda leva de jesutas a pisar em terras brasileiras, depois que o padre Manuel da Nbrega pediu reforo de pessoal na atividade de evangelizao da colnia. Anchieta chegou em 1553, a bordo do veleiro que tambm trazia de Portugal o segundo governador-geral do Brasil, Duarte da Costa, recm-nomeado pelo rei dom Joo III. Alguns meses depois de desembarcar na Bahia, Anchieta j era dos mais requisitados evangelizadores jesutas. Recebeu, por exemplo, a incumbncia de ajudar a fundar um colgio da Companhia de Jesus no planalto de Piratininga, embrio do que hoje a cidade de So Paulo.Alm de se dedicar alfabetizao dos filhos dos europeus e dos ndios, o missionrio estudou com afinco a lngua tupi e formulou a primeira gramtica brasileira, a Artes de Gramtica da Lngua Mais Usada na Costa do Brasil, impressa em 1595 em Coimbra, Portugal. Escrita em apenas seis meses, a cartilha descreveu e sistematizou no papel uma lngua nova, at ento apenas oral, baseando-se no modelo estrutural do latim.Foi o pontap inicial dos estudos lingsticos na Amrica portuguesa e a segunda gramtica de uma lngua indgena (a primeira tinha sido a Arte de la Lengua Mexicana y Castellana, do frei Alonso de Molina, publicada no Mxico em 1571). Anchieta, graas a seu magnfico trabalho, realizou um dos princpios bsicos da Companhia de Jesus, o de que todos os missionrios deviam aprender a lngua da terra onde exerciam seu ministrio, para empreg-la em vez de sua prpria lngua, declarou Carlos Drummond, professor de tupi da Universidade de So Paulo (USP), na apresentao da ltima edio da Gramtica, publicada em 1990 como forma de catapultar o movimento pr-canonizao do beato. uma verso fac-similada da obra original (incluindo a folha de rosto com o emblema da Companhia de Jesus), acrescida de uma atualizao com a grafia atual, para facilitar a compreenso dos no-estudiosos em lingstica. No total, foram lanadas sete edies. Da primeira remessa, sabe-se da existncia de ao menos trs exemplares: um na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, outro na Biblioteca Vittorio Emanuele, de Roma, e o terceiro no Arquivo da Companhia de Jesus, tambm na capital italiana. para esse arquivo que iam as cartas e os relatrios que os jesutas eram obrigados a fazer, contando a situao das misses em todos os continentes onde atuavam.Embora liberada oficialmente apenas 40 anos depois de sua produo (na poca, havia censura rgia em Portugal e qualquer obra tinha que primeiro ser autorizada pela realeza), a Gramtica era consultada no Brasil desde 1556 nesse perodo, os primeiros rascunhos da obra serviam de texto para o ensino do tupi no colgio da Bahia, conforme observa o lingista Augusto Magne no prefcio da quinta edio, impressa em 1946. Em 1560, o padre Lus de Gr tornava obrigatrio o seu estudo, Magne complementa.Aprendizado difcilAprender o tupi, coisa que at aquele momento poucos tinham feito, valia para todos os que exerciam os servios catequtico-missionrios, desde simples pregadores at reitores. Rui Pereira, educador cristo, registra o fato em uma carta da poca: O padre Gr ordenou em casa que houvesse uma hora de lio de lngua braslica. Tambm em carta, o padre Joo de Melo revela: Vai a coisa to veras que h quem, dentro de um ano, se obriga a falar a lngua. Reconhecidamente, somente mais trs jesutas, alm de Jos de Anchieta, eram fluentes em tupi: Pero Correia, Antnio Rodrigues e Joo de Aspicuelta Navarro. Aspicuelta, alis, foi o primeiro a aprender as pronncias e at cogitou criar uma gramtica. Mas esperava que lhe sobrasse tempo, j que naquele momento, em 1553, ele acompanhava como capelo as expedies dos invasores em busca de pedras preciosas pelo interior do pas. O jesuta morreria dois anos depois, sem conseguir iniciar o projeto.Mesmo os mais inbeis com a lngua fizeram esforo de aprender o tupi. No fosse assim, o idioma teria se limitado aos ndios e aos poucos catequistas que usavam a fluncia como estratgia de aproximao. Graas a essa tentativa de aprendizado em massa, o tupi triunfou como a lngua mais importante dos primeiros dois sculos da colnia. s vezes, at mesmo os mestios (filhos de mulheres ndias dos portugueses) necessitavam de intrpretes durante as peregrinaes e confisses, pois no falavam o portugus, que era restrito aos contatos formais com a Corte Real ou s lies que os meninos aprendiam na escola.Quando o tupi foi suplantado e a lngua portuguesa condecorada? Isso aconteceu graas a uma sucesso de fatores: a expulso dos jesutas do Brasil no sculo 18 pelo marqus de Pombal, a chegada da corte portuguesa no incio do sculo 19 e o acelerado processo de urbanizao pelo qual o pas passou a partir desse momento. Ainda assim, o portugus ensinado aqui acabou sendo marcado para sempre pelo tupi. At hoje, centenas de palavras que ns falamos no Brasil tm origem indgena.Entre os estudiosos contemporneos, a Gramtica de Anchieta sofre elogios e crticas. A principal reclamao se relaciona ao fato de a cartilha ser organizada de forma considerada confusa, por causa da influncia exagerada do latim em detrimento do portugus. Tal caracterstica teria feito o autor usar categorias que no existem na lngua indgena. Anchieta obteve um resultado to desorganizado quanto o do primeiro gramtico portugus, opina a professora de Lngua Portuguesa da Universidade de So Paulo (USP) Edith Pimentel Pinto, uma das maiores conhecedoras da produo literria do padre, na introduo da stima edio da obra. Ela ressalva que Antonio de Nebrija, autor de uma gramtica do espanhol em 1492, e o portugus Ferno de Oliveira, que escreveu a primeira cartilha do portugus, tambm seguiram o modelo latino para construir suas bases de sustentao. Era o procedimento normal da poca, justifica a professora.Edith acredita que, considerando-se a nova realidade lingstica que se impunha, Anchieta foi inovador por reunir as diversas variantes regionais do tupi, principalmente com relao pronncia. Por exemplo: os ndios kamayurs, guaranis e os urubus falam seis vogais orais (i, e, y, a, u, o), cada uma com uma contraparte nasal. Por outro lado, a tribo guajajara usa sete vogais orais e no tem nasais.Se existe algum mistrio ainda no solucionado pelos historiadores, ele saber se Anchieta chegou a ter em mos sua Artes de Gramtica formalmente editada. A primeira impresso saiu alm-mar em 1597; o jesuta morreu dois anos depois na aldeia de Reritiba, que ele prprio fundou e que hoje a cidade de Anchieta, no interior do Esprito Santo. De uma coisa, porm, o Apstolo do Brasil, como ele ficou conhecido, tinha certeza: alm de descrever a lngua dos nativos, o padre dedicou a vida tentando riscar do vocabulrio indgena a palavra tapuia, que tem o sentido de inimigo e significa aquele que no fala a nossa lngua.Por que tupi-guarani?A lngua era falada em regies importantesTupi-guarani somente um termo genrico criado para englobar as diversas lnguas indgenas faladas ao longo do tempo na Amrica do Sul. O idioma ancestral desse grupo de lnguas o proto-tupi, surgido na regio onde hoje fica o estado de Rondnia. Nas dcadas seguintes, desenvolveram-se dezenas de famlias lingsticas, divididas pela regio onde eram faladas. O tupi-guarani era fundamental por ser um dos mais usados em algumas das regies mais importantes para os colonizadores.As verses do tupi se concentravam mais no litoral brasileiro, entre o norte do pas e o sul do atual estado de So Paulo. Mais ao sul, era falado o guarani, vivo at hoje principalmente no Paraguai, onde, ao lado do espanhol, se tornou a lngua oficial em 1967. Do lado brasileiro, uma adaptao do tupinamb, ou tupi moderno, ainda falada por tribos da regio da floresta amaznica. Denominada nheengatu, foi a lngua mais usada entre brancos e ndios a partir do sculo 17, depois que os jesutas e os bandeirantes a difundiram para padronizar a comunicao e eliminar os dialetos.A obraArtes de Gramtica da Lngua Mais Usada na Costa do Brasil, Jos de Anchieta, Edies Loyola, 1990. R$ 37