tudo que faço ou medito

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1 AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE SAMPAIO PORTUGUÊS 12.º ANO «TUDO QUE FAÇO OU MEDITO» FERNANDO PESSOA TUDO QUE FAÇO OU MEDITO Tudo que faço ou medito Fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada é verdade. Que nojo de mim me fica 5 Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica, E eu sou um mar de sargaço Um mar onde boiam lentos Fragmentos de um mar de além... 10 Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem. Fernando Pessoa, Cancioneiro egundo Amélia Pinto Pais 1 , o tema desta composição poética, escrita em 1933 (dois anos antes da morte do poeta), «é a dor que resulta da distância imensa entre o que se quer o Tudo, o Infinito e o que se realiza o Nada, o aquém do sonho.» O sujeito lírico começa por afirmar que tudo o que faz ou pensa fica sempre incompleto («na metade»), ou seja, é inconsequente a sua ação, mas também o é a sua reflexão, embora por motivos 5 inversos, realçados pelo pleonasmo («Querendo, quero») e pela antítese («tudo», «infinito» / «nada»). Assim, o pensamento, demasiado ambicioso, aspira ao «infinito»; a vontade, improdutiva, «nada» realiza que se torne «verdade». Entre o infinito e o nada, situa-se esse mediano mundo da «metade», espaço de vida que parece suscitar no sujeito lírico sentimentos de frustração e de dúvida. Na quadra seguinte, ele vai apodar o seu estado de espírito de «nojo», repugnância por si próprio, porém 10 identifica (através do «olhar») como principal causa dessa náusea não o pensamento, mas sim a capacidade de o pôr em prática («o que faço») 2 . Tanto assim que a sua «alma é lúcida e rica», por oposição 1 Amélia Pinto Pais, Para compreender Fernando Pessoa, 1.ª ed., Porto, Areal Editores, 1999. 2 «A náusea e o tédio existenciais, bem como a incapacidade para a concretização, constituem um dos vetores temáticos da poesia do ortónimo, dominado pela indecisão e pela melancolia. Poemas como “Náusea. Vontade de nada” ou “ A aranha do meu destinorevelam a dor desse S

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AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE SAMPAIO

PORTUGUÊS — 12.º ANO

«TUDO QUE FAÇO OU MEDITO» — FERNANDO PESSOA

TUDO QUE FAÇO OU MEDITO Tudo que faço ou medito Fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica 5 Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica, E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde boiam lentos Fragmentos de um mar de além... 10 Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem.

Fernando Pessoa, Cancioneiro

egundo Amélia Pinto Pais1, o tema desta composição poética, escrita em 1933 (dois anos antes da morte do poeta), «é a dor que resulta da distância imensa entre o que se quer — o Tudo, o Infinito — e o que se realiza — o Nada, o aquém do sonho.»

O sujeito lírico começa por afirmar que tudo o que faz ou pensa fica sempre incompleto («na metade»), ou seja, é inconsequente a sua ação, mas também o é a sua reflexão, embora por motivos 5 inversos, realçados pelo pleonasmo («Querendo, quero») e pela antítese («tudo», «infinito» / «nada»). Assim, o pensamento, demasiado ambicioso, aspira ao «infinito»; a vontade, improdutiva, «nada» realiza que se torne «verdade». Entre o infinito e o nada, situa-se esse mediano mundo da «metade», espaço de vida que parece suscitar no sujeito lírico sentimentos de frustração e de dúvida.

Na quadra seguinte, ele vai apodar o seu estado de espírito de «nojo», repugnância por si próprio, porém 10 identifica (através do «olhar») como principal causa dessa náusea não o pensamento, mas sim a capacidade de o pôr em prática («o que faço»)2. Tanto assim que a sua «alma é lúcida e rica», por oposição

1 Amélia Pinto Pais, Para compreender Fernando Pessoa, 1.ª ed., Porto, Areal Editores, 1999. 2 «A náusea e o tédio existenciais, bem como a incapacidade para a concretização, constituem um dos vetores temáticos da poesia do ortónimo, dominado pela indecisão e pela melancolia. Poemas como “Náusea. Vontade de nada” ou “A aranha do meu destino” revelam a dor desse

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ao seu ser (a sua vontade, a sua determinação), que é «um mar de sargaço», oceano pantanoso, labiríntico, em que é difícil seguir uma rota definida para chegar a um porto seguro.

A metáfora do mar prolonga-se na última estrofe, onde se diz que nessas águas «boiam lentos / 15 Fragmentos de um mar de além». A expressão citada apresenta uma estreita afinidade com as imagens expressas no poema «Boiam leves, desatentos», de acordo com as quais os pensamentos, morosos e fragmentados, andam à deriva na indefinição do ser, impossibilitando não só a unificação das pulsões contrárias do indivíduo, como ainda o encontro do sujeito consigo próprio. Mas a referência a «um mar de além», um mar «maior e distante»3, se pode aludir à unidade do ser de que o sujeito dividido se afastou, 20 constitui, também, um indício da «crença esotérica num mundo anterior, das ideias, de que o mundo real, que conhecemos, não passaria de reflexo — neste caso “baço”, indefinido...»4, realçado pelo emprego de vocabulário de conotação negativa.

O poema termina com uma interrogação retórica e sua esfíngica resposta. Pergunta o sujeito lírico se esta fragmentação marinha resulta de uma pulverização da vontade ou do pensamento, isto é, se afinal a 25 culpa da sua insignificância ontológica reside na passividade existencial ou na excessiva intelectualização da vida, que representam os dois polos de dilaceramento do eu. A solução é enigmática e paradoxal — «Não o sei e sei-o bem.» —, o que pode ser interpretado como a afirmação de um desconhecimento que é bem conhecido (não sei e sei bem que não o sei), um pouco à maneira socrática do «Só sei que nada sei». O oximoro final esclarece que o autoconhecimento pessoano consiste no reconhecimento de que é 30 impossível conhecermo-nos a nós próprios e, portanto, à realidade que nos envolve, e isso dói-nos. A única alternativa que resta ao homem é encantar-se com o estado melodioso da sua impotência instaurando em si o espaço do sonho, da arte, da poesia, onde a suprema contradição da existência se converte em harmonia.

Prof.ª Catarina Labisa

sujeito lírico que afirma ser “uma vida baloiçada / Na consciência de existir”.» (vide http://mym-pt.blogspot.pt/2011/11/fernando-pessoa-tudo-que-faco-ou-medito.html). 3 Amélia Pinto Pais, ibidem. 4 Amélia Pinto Pais, ibidem.