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O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS JOANA MADALENA TAVARES MARTINS GUEDES DISSERTAÇÃO APRESENTADA À UNIVERSIDADE DO PORTO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

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O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

JOANA MADALENA TAVARES MARTINS GUEDES

DISSERTAÇÃO APRESENTADA À UNIVERSIDADE DO PORTO PARA A

OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

2007

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JOANA MADALENA TAVARES MARTINS GUEDES

O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Dissertação de Candidatura ao grau de Mestre em Ciências

do Serviço Social – Gerontologia Social, submetida ao

Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar da

Universidade do Porto

Orientador – Prof. Dr. António Joaquim Esteves

Afiliação – Faculdade de Economia da Universidade do Porto

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À MEMÓRIA DOS MEUS AVÓS, MADALENA E BALTAZAR, JOSÉ E ARMINDAA estes últimos, particularmente, pelo amor incomensurável que,

à sua maneira, me dedicaram ao longo de toda a sua existência e

que guardo dentro de mim como a maior de todas as heranças,

como o maior de todos os tesouros. Eles são, na verdade, a

origem deste caminho por mim traçado.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos residentes do lar pelo acolhimento, pelas aprendizagens que me

permitiram, pelo carinho imenso que sempre me transmitiram; aos funcionários e madres;

à assistente social, em particular, pela abertura imediata, apoio e disponibilidade.

Ao Professor Doutor António Esteves, pelo tempo disponibilizado, pelos estímulos e

partilha de conhecimentos que em muito permitiram o meu crescimento neste processo.

Aos meus pais, que sempre perseveraram comigo, ao Pedro e aos amigos que me deram

apoio e alento.

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INDICE

0. Introdução 8

PARTE IENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO DO ESTUDO REALIZADO

1. Envelhecimento e transformação de laços sociais – a transição da residência de família para o lar de idosos 16

1.1. Emergência da velhice enquanto problema social – processos de transformação

das estruturas económicas e familiares nas sociedades industriais 16

1.2. Desafios e consequências da revolução demográfica na reconfiguração das

relações intergeracionais – solidariedades comprometidas (?!) 22

1.3. O processo de envelhecimento, situações de vulnerabilidade e o progressivo

confronto com a dependência: problemas e desafios adaptativos 32

1.4. Alternativas possíveis ao modelo de família alargado: o papel do Estado na

institucionalização da velhice – o exemplo da emergência dos lares de idosos 39

2. O Envelhecimento enquanto objecto interdisciplinar 48

2.1. Abordagem introdutória às perspectivas tradicionais de envelhecimento versus

gerontologia crítica 48

2.2. Contributos das perspectivas interaccionistas e construtivistas 58

2.2.1. A pertinência da abordagem de “instituições totais”para o estudo dos lares 60

2.2.2. Entre as exigências da vida institucional e a preservação das especificidades

biográficas/culturais dos sujeitos 63

2.3. Contributos da psicologia ambiental 70

2.3.1. Os espaços institucionais e o lugar dos sujeitos 73

2.4. Abordagens ao conceito de identidade como produto inacabado e reformável –

vivência em lar e desafios identitários 76

2.4.1. Identidade pessoal e social – a construção de si na relação com os outros 82

2.4.2. A entrada em lar e a reconstrução identitária - a vivência em grupo como

ameaça à identidade pessoal 85

2.4.3. Estratégias de adaptação positivas e negativas 87

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3. Procedimentos metodológicos seleccionados para o estudo do lar 96

3.1. Justificação por um modelo de investigação qualitativa 96

3.1.1. Procedimentos e instrumentos de pesquisa/de recolha de dados: a observação

participante, entrevistas semi-estruturadas a idosos, conversas informais,

consulta de documentos institucionais 99

3.2. Breve contextualização dos grupos humanos em presença no lar 108

3.2.1 A Direcção e Funcionários 108

3.2.2 Os Residentes 116

Parte IIExploração do trabalho empírico realizado no lar

4. Diversidade e qualidade dos espaços colectivos e privados na preservação das identidades pessoais e sociais 128

4.1. O edifício do lar e seu enquadramento nos recursos e espaços envolventes 132

4.2. Espaços destinados aos vários serviços 139

4.3. Espaços colectivos 150

4.4. Espaços privados 158

4.5. Características gerais dos espaços e preservação do bem-estar e identidade dos

idosos 166

5. A carreira moral dos idosos no contexto institucional – diferentes fases da integração e repercussões no “eu” identitário 172

5.1. A institucionalização – experiências de transição para o lar 172

5.2. Processo de admissão 187

5.3. Entrada e processo de adaptação inicial 199

5.4. A estruturação do quotidiano e o lugar do idoso na vida do lar como condicionantes

da preservação da sua identidade e do seu bem-estar 206

5.4.1. O despertar e a higiene pessoal 210

5.4.2. As refeições e os serviços no lar 217

5.4.3. As normas, regras e as actividades quotidianas regulares 224

5.5. Preservação de identidade e estratégias de adaptação à vida quotidiana no lar 234

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6. O lar como uma teia de redes relacionais, de papéis, poderes e representações – narrativas que produzem e transportam sentido 247

6.1. Como os idosos se representam e interagem 250

6.2. Como os idosos consideram a família e os amigos anteriores 264

6.3. Como os idosos analisam as relações de cuidado e os cuidadores constroem a

realidade dos idosos 280

7. Representações sobre o lar, a vida futura e a morte 302

7.1. Os utentes e as representações sobre o lar 303

7.2. Os idosos, o futuro e a morte 314

8. Reflexões finais 333

9. Bibliografia 348

10. Anexos 361

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0. INTRODUÇÃO

É amplamente reconhecida a importância que o fenómeno do envelhecimento assume, nos dias de hoje, em Portugal, tal como em outros contextos europeus e

mundiais. Apesar de se ter iniciado um pouco mais tarde do que na generalidade dos

países da Europa, a intensidade com que se tem processado e os desafios que tem

colocado à sociedade portuguesa no geral, e ao Estado, particularmente, enquanto

instância responsável pela formulação de políticas sociais, têm transformado este

fenómeno numa prioridade incontornável. O envelhecimento traduz-se, como é sabido,

por um decréscimo continuado da população jovem, em resultado de uma diminuição da natalidade, e por um aumento significativo da população mais idosa, dado o aumento da esperança de vida que condiciona também a intensidade e os

contornos do fenómeno. Vive-se até mais tarde, não obstante esta condição não ser

sinónimo de qualidade de vida e bem-estar.

Por outro lado, assistimos, concomitantemente, a modificações nas estruturas económicas, sociais e familiares que limitam, claramente, a capacidade de acompanhar e cuidar das gerações mais velhas, o que implica, pois, a reestruturação

de toda a organização social e das relações entre as gerações. Não deixando de admitir

que a família em Portugal ainda é o grande suporte dos idosos, importa reconhecer que,

em boa medida, muitas das responsabilidades que outrora se situavam no domínio

familiar passam a pertencer ao Estado, exigindo-se que este crie medidas e

equipamentos de resposta aos vários problemas e necessidades dos idosos.

Nesta sequência surgem, a partir da década de 70, variadas estruturas de apoio aos idosos, nas quais se incluem os lares, considerando que “os asilos oficiais

representavam na altura as únicas respostas sociais públicas que albergavam inválidos,

diminuídos, mendigos e idosos. O idoso permanecia até à morte neste tipo de

instituições, o que contribuiu para a construção de uma imagem social negativa, que

ainda hoje surge em relação aos lares, muitas vezes conotados simbolicamente com uma

velhice solitária, triste, sem autonomia e pobre” (ISSS, 2003:6). Se neste período os lares

representavam a resposta social mais comum, a partir de meados da década de 70 começam a surgir novas alternativas, em termos de respostas sociais dirigidas à

população envelhecida. Desenvolve-se, por parte do Estado, uma certa sensibilidade no

sentido de renovar, por um lado, as características dos lares existentes, de estrutura

e funcionamento muito próximos aos das “instituições totais”, e, por outro lado, a

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configuração de outro tipo de respostas sociais, que, enquanto alternativas à institucionalização procuravam manter o idoso no seu domicílio, tais como centros de

dia e serviços de apoio domiciliário. Não obstante esta evolução, fruto em parte do

crescimento de uma progressiva consciência crítica por parte do Estado e dos vários

actores colectivos, o número de lares continua a aumentar regularmente e continua a reconhecer-se a sua importância sempre que não é possível manter o idoso no seu domicílio. Sobretudo a passagem da década de 80 para a década de 90 mostra o

crescimento significativo dos lares: 487 que se construíram neste período. Em 20011, o

número total de equipamentos legais de alojamento colectivo para idosos ascendia a 1

2302 (ISSS, 2003). Ainda assim, é frequente, nos tempos que correm, encontrar lares completamente lotados e enfrentar sérias dificuldades quando se pretende o

internamento de algum idoso, sobretudo se nos estivermos a referir a equipamentos que

celebram acordos de parceria com a Segurança Social. De acordo com a mesma fonte

existiam, em 2001, 50 671 idosos institucionalizados e 63 864 idosos em lista de espera para internamento, o que nos faz pensar no elevado número de idosos que

aguarda pela possibilidade de internamento.

Apesar destes dados, foi assumido pelo Estado, a partir dos finais da década de 90, a importância de responder às necessidades sociais deste grupo etário não só em termos de quantidade mas sobretudo em termos de qualidade dos equipamentos sociais e serviços prestados, melhorando as condições de funcionamento das

instituições, no sentido da promoção da autonomia e da qualidade de vida das gerações

mais velhas.

Considerando o objectivo da qualificação das medidas de política social, torna-se relevante o estudo dos lares, das condições que proporcionam e das suas lógicas

de funcionamento, tendentes, ou não, à preservação ou até reforço da identidade dos idosos. Neste enquadramento, interessa, pois, apreciar se os lares contribuem para

contrariar situações de marginalidade, exclusão e isolamento social, às quais muitos

idosos estão votados, antes do processo de internamento, ou, ao contrário, contribuem

para a reprodução dessas condições de precariedade. Pensando na qualidade de vida destes idosos, importa analisar, entre outros aspectos, se, e em que medida, o

funcionamento dos lares favorece a inserção dos residentes na comunidade; a

1 In, “Equipamentos de Alojamento Permanente para Idosos em Portugal: Avaliação Qualitativa das Condições de Instalação e das Dinâmicas de Funcionamento”, Lisboa, Departamento de Investigação e Conhecimento, ISSS, Março, 20032 De entre estes 1 189 são lares e 41 são residências. Encontram-se localizados sobretudo no Continente, espacialmente nas Regiões Centro, Norte e Lisboa e Vale do Tejo, tendo as Regiões Autónomas uma expressividade reduzida (ISSS, 2003).

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preservação da sua autonomia; a participação na gestão institucional e na definição das

regras de funcionamento do lar; o contacto e a criação de laços afectivos com vários

grupos e gerações, incluindo o grupo familiar e de amigos anteriores dos idosos; a

conservação de seu sentimento de utilidade social e do seu valor, enquanto pessoa com

experiências de vida e saberes próprios, por via da implicação na vida da comunidade

residencial e da vida social em geral. Acredita-se que tais condições favorecem,

indubitavelmente, a manutenção, por mais tempo, das condições de saúde física e mental dos idosos, assim como o seu desejo de viver e formular projectos.

À luz do que referenciamos, pareceu-nos pertinente, por via do estudo de um lar, analisar as modificações que se operam nas estruturas identitárias dos idosos internados em lar. Paralelamente, a opção por este tema esteve também relacionada

com a experiência de observação de muitos idosos institucionalizados que vivenciam

diferentes experiências de institucionalização e utilizam diferentes estratégias de

adaptação, sobretudo por via do acompanhamento de estágios de serviço social, na área

da gerontologia. Constatou-se, pois, através da ligação a estes contextos profissionais,

que a experiência do internamento e da vida em lar não teria certamente o mesmo

significado, do ponto de vista identitário, para todos os internados.

Na verdade, ao longo desta experiência, nunca foi possível escutar nenhum idoso a expressar vivamente a sua alegria e contentamento por viver num lar, mesmo

quando as anteriores condições de vida eram bastante penosas, fazendo-nos reflectir

acerca dos desafios que são colocados a cada novo residente que se vê a entrar para um

lar. Não obstante a diversidade de condições que possam oferecer, os lares não substituem a família, nem são uma solução desejável para a maioria dos idosos em

situação de fragilidade.

Pelos motivos apresentados, torna-se importante desenvolver trabalhos de reflexão e avaliação no que concerne à realidade do internamento, sendo o presente trabalho

um contributo nesse sentido.

O trabalho de análise empírica aqui apresentado ocorreu, pois, num lar inserido no Grande Porto, localizado num centro urbano, numa zona comercial e residencial repleta

de múltiplos recursos e munida de transportes públicos variados. Este lar funciona como

tal desde meados da década de 80, tendo anteriormente existido com outros nomes e um

carácter de actuação bastante assistencialista. O lar em análise é considerado, neste

momento, uma Instituição Privada de Solidariedade Social.

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A selecção do mesmo, para a realização deste trabalho, esteve relacionada com a disponibilidade demonstrada pela assistente social e pela encarregada geral, em termos do processo de integração da investigadora, na sequência de um

conhecimento prévio que já havia sido construído por via da integração de estagiárias

em serviço social no lar em causa. A integração da investigadora fez-se, desde o início,

com o apoio da assistente social, tendo sido referido aos vários agentes institucionais e

de forma simplificada, o objectivo do trabalho a desenvolver: realizar um estudo sobre o

funcionamento dos lares, pensando em estratégias para que no futuro funcionem ainda

melhor.

A não referência ao nome do lar, assim como a atribuição de nomes fictícios aos

funcionários e residentes, faz parte da garantia de confidencialidade assegurada às

responsáveis aquando da negociação do trabalho a desenvolver, de acordo com o código

de ética do trabalho de terreno. O trabalho desenvolveu-se entre Dezembro de 2005 e

Julho de 2006.

No trabalho em análise, de estudo qualitativo do lar, pretende-se avaliar os efeitos específicos que a instituição produz sobre a identidade dos internados. Entendendo

a identidade como o produto de sucessivas socializações (Dubar, 1997), é de supor que

ela esteja em permanente reestruturação, ao longo da vida, dependendo das orientações

dos indivíduos, assim como das perspectivas e julgamentos que os outros lhes conferem.

A identidade é, pois, o resultado de uma construção quer individual, quer social. Neste

sentido, torna-se importante reflectir sobre o mundo construído pelo indivíduo a

partir da sua experiência social e das suas representações individuais e subjectivas,

sobretudo porque quando o universo relacional do indivíduo se transforma, coloca-se em

causa a sua existência enquanto individualidade. Neste processo de construção

permanente de si, a atribuição da identidade pelas instituições e pelos outros com quem

o indivíduo interage assume uma importância decisiva. A consciência de si depende,

então, das interacções e dos olhares dos outros. Acredita-se, pois, que as reconfigurações da identidade dos idosos institucionalizados sejam, em grande parte, produto das interacções com os outros agentes institucionais e produto do funcionamento da instituição, que determina um modo de vida e uma estruturação do

dia-a-dia aos residentes.

Considerando que o processo de internamento em lar pressupõe uma certa perda de autonomia e a ruptura, pelo menos parcial, com os modos de vida anteriores e

com a sua residência, espaço estruturador das experiências passadas e da própria

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identidade dos sujeitos, importa perceber até que ponto a instituição do Lar poderá

contribuir para a "mortificação do eu" do indivíduo, através de algumas técnicas

accionadas, consciente ou inconscientemente, para o efeito, e, ao mesmo tempo, poderá

contribuir para preservar, e até reforçar, a sua estrutura identitária. Neste sentido,

apresentamos uma questão central que orientou a investigação: em que medida o lar com as suas regras e normas de funcionamento, o clima relacional que propicia e produz, os espaços que oferece e as oportunidades e actividades que proporciona contribui para a preservação e reforço da identidade dos idosos ou, ao contrário, para a sua aniquilação e mortificação?

Neste sentido, interessa-nos analisar a carreira moral do idoso internado em lar, isto

é, “a sequência regular de mudanças que a carreira provoca no eu da pessoa” (Goffman,

1996:112). Valemo-nos de um uso crítico do “modelo de expropriação”, proposto pelo

mesmo, onde as relações, direitos, liberdades existentes à partida se vão diluindo e

conduzindo à quase inexistência das mesmas e ao despojamento do indivíduo (Goffman,

1996). Como base para uma grelha de análise relativa à experiência dos idosos no lar

utilizou-se o conceito de instituição totalitária (Goffman, 1996). Procurou-se observar, na e através da participação, os procedimentos, as rotinas, as actividades que o idoso

desenvolve, as relações que estabelece ao longo das várias etapas da carreira moral. Foi

assim possível, ao longo de oito meses, captar acontecimentos no momento em que

estes se produziram, recolhendo material de forma relativamente espontânea, bem como

privilegiar a autenticidade dos acontecimentos por relação às palavras e aos escritos.

Em complemento da observação participante, foram realizadas entrevistas aos idosos com a finalidade de captar a estrutura de significados construídos pelos próprios idosos.

Assumiu-se, pois, a realização de um trabalho interpretativo, pretendendo-se incluir as

perspectivas e “vozes” das pessoas estudadas, com o objectivo de compreender as

acções dos actores individuais ou colectivos estudados (Strauss & Corbin, 1994).

Não pretendendo generalizar as análises e os resultado que irão ser aferidos neste

estudo, estando certos da diversidade de lares existentes e das variadas condições que

proporcionam, parece-nos lógico, contudo, que estes resultados expressem o que se passará com muitos residentes, sujeitos a condições de internamento semelhantes.

Assim, esperamos, pois, através da análise e compreensão profunda do funcionamento

do lar e das estratégias de adaptação identitária desenvolvidas pelos sujeitos que lá

residem, poder contribuir para destacar domínios de vulnerabilidade relacionados

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com o funcionamento do lar e, assim, o aperfeiçoamento dos modos de actuar da instituição e das práticas profissionais condicionadoras do bem-estar dos seus

residentes.

Resta-nos, por fim, apresentar as várias partes que constituem este trabalho. Assim,

podemos destacar a divisão do trabalho em duas partes principais. Na primeira parte

pretende-se desenvolver uma exploração teórica do fenómeno em estudo, assim como

uma apresentação das opções metodológicas seleccionadas. Parte-se de uma

abordagem às principais transformações familiares e sociais que condicionaram, em boa parte, o surgimento e a expansão das instituições especializadas no alojamento colectivo dos idosos. Lançam-se igualmente, alguns eixos de reflexão quer

em torno da questão demográfica, quer em torno das situações de vulnerabilidade dos

idosos, nomeadamente o confronto progressivo com a dependência, que colocam, de

forma clara, desafios à solidariedade intergeracional.

No segundo capítulo desenvolve-se uma abordagem ao envelhecimento enquanto objecto interdisciplinar, colocando em confronto as perspectivas mais tradicionais de leitura do fenómeno com as perspectivas da gerontologia crítica, que dão importante

relevo quer à problemática desigualdades sociais, ligadas à questão da idade, quer ao

sentido da vida para os idosos, à construção subjectiva do “eu” do indivíduo, através da

interacção com os outros e com os sistemas sociais. Dar-se-á sequência a estas

análises, destacando os contributos quer da perspectivas interaccionistas e construtivistas, quer das perspectivas da psicologia ambiental. No primeiro caso,

particularizar-se-á a abordagem ao modelo de “instituições totais”, concebido para

analisar os estabelecimentos especializados na guarda de pessoas, procurando

evidenciar as potencialidades deste modelo para o estudo dos lares, ao considerar os

efeitos da instituição sobre a identidade dos internados. Do ponto de vista das

perspectivas da psicologia ambiental, abordar-se-á quer as condições de congruência dos espaços, por relação às necessidades do público alvo, salientando a relação

recíproca entre indivíduo e meio ambiente, quer as lógicas e regras de organização desses espaços, que definem o lugar ou “não lugar” do idoso no espaço, assim

como condicionam a sua apropriação do mesmo e a formulação de “territórios do eu”.

Este ponto termina com uma exploração ao conceito de identidade, enquanto produto em permanente reformulação. Não obstante se tomar em consideração a

existência de elementos relativamente estáveis, ao nível das características identitárias,

elas também se vão moldando aos contextos, interacções e desafios aos quais os idosos

estão sujeitos. Entende-se particularmente relevante a ameaça ao sentimento de

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identidade decorrente da vivência, mais ou mesmo imposta, com um colectivo

desconhecido. Serão ainda enumeradas uma diversidade de estratégias, negativas ou positivas, que poderão ser mobilizadas cada vez que os residentes sentam a sua

identidade ameaçada.

O último capítulo deste ponto irá expor os procedimentos metodológicos seleccionados, designadamente a justificação por um modelo de investigação qualitativa

optando-se, neste trabalho, por uma aproximação à grounded theory methodology,

uma vez que é objectivo desta metodologia a compreensão das experiências e dos

significados que os seres humanos atribuem aos seus processos de interacção, assim

como admite e incorpora as interpretações do investigador em torno da realidade

estudada. Serão ainda abordados os instrumentos de recolha de informação mobilizados, assim como uma breve caracterização do grupo de funcionários e residentes em presença no lar para que se possa ficar com uma ideia aproximada

acerca dos principais atributos que caracterizam estes grupos.

No que diz respeito à parte de exploração do trabalho empírico, esta inicia-se com um

capítulo relativo aos espaços institucionais. São abordados, de forma sucinta, os

espaços e os recursos em redor do lar, os espaços destinados aos serviços, os espaços

colectivos e os espaços privados. Tenta-se entender em que medida a diversidade e qualidade dos espaços existentes pode contribuir para a preservação da identidade e

do bem-estar físico e subjectivo dos seus residentes.

O quinto capítulo destina-se à análise da carreira moral dos idosos internados no lar.

Por via da abordagem das experiências de transição para o lar, pretende-se analisar

os principais motivos que estão na origem desta transição, assim como o grau de

autonomia dos idosos na tomada de decisão relativa ao internamento. Analisa-se o processo de admissão, da entrada e adaptação inicial, dando particular relevância

aos principais agentes envolvidos, à natureza da informação recolhida pelos profissionais

sobre a vida e a situação do idoso, ao processo de acolhimento, ao grau de liberdade

para o idoso se fazer acompanhar de objectos e bens que lhe conferem identidade, ao

processo de acompanhamento e adaptação inicial, assim como ao processo de

apresentação do internado à comunidade residencial. Neste ponto, far-se-á ainda

referência ao quotidiano no lar, concretamente às rotinas diárias e ao tratamento

proporcionado aos residentes; às actividades regulares e pontuais; à definição das regras

institucionais. Por relação a todos estes aspectos pretende-se averiguar o lugar dos idosos na vida do lar e na definição de regras e normas implantadas, e as várias

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estratégias de adaptação dos mesmos a este modo de vida, com vista à preservação da

sua identidade.

O sexto capítulo visa abordar a natureza das relações entre idosos, entre estes e funcionários e entre estes e sua família. Perceber como constroem relações

significativas, de afinidade, de poder ou controlo, de proximidade ou superficialidade

ajudar-nos-á a apreender melhor os sentimentos por relação à vivência em lar.

O sétimo, e último capítulo do trabalho, pretende apresentar, resumidamente, a concepção que os utentes constroem sobre o lar, o seu futuro e a morte, enquanto

fenómeno inexorável. A forma como o indivíduo perspectiva ou não o seu futuro, tem

sonhos e é capaz de fazer projectos é condicionada, em muito, pela forma como se sente

tratado e considerado pelos outros no presente, pela sua capacidade de ainda se

interessar pela vida, aceitando determinadas limitações e traçando diferentes objectivos.

Para finalizar, apresentam-se algumas reflexões onde, a par de um resumo das

principais conclusões do estudo realizado, se procuram apontar algumas implicações práticas com vista ao aperfeiçoamento dos lares de idosos.

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PARTE IENQUADRAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO DO ESTUDO

1. Envelhecimento e transformação de laços sociais – a transição da residência de família para o lar de idosos

1.1. Emergência da velhice enquanto problema social – processos de transformação das estruturas económicas e familiares nas sociedades industriais

Abordar a questão do envelhecimento implica, desde logo, uma definição dos critérios

que são retidos para seleccionar um determinado conjunto de pessoas e proceder à sua

classificação na categoria dos “velhos”. Trata-se, afinal, de cumprir a exigência básica da

investigação científica que aconselha a objectivar a linguagem, de forma a controlar as ambiguidades de sentido que as designações de terceira idade ou de envelhecimento podem comportar.

Uma das flutuações de sentido que interessa controlar é a que remete para as

interpretações que identificam, redutoramente, envelhecimento com idade. Ora, como foi

assinalado por Maurice Halbwachs3, a idade não constitui um princípio de formação de

grupos dotados de alguma consistência social. Dito de outro modo, a idade não é o

fundamento da organização de agentes sociais em torno de objectivos e práticas

comuns, agentes esses com a consciência de serem distintos de outros grupos e com

uma acção conscientemente direccionada para a afirmação colectiva da sua identidade.

Reduzir a questão do envelhecimento à idade equivale a ignorar que estamos em presença de um processo de classificação social, cujo início, no séc. XVI, foi

determinado por necessidades da prática administrativa4. É curioso registar que as

primeiras categorizações segundo a idade (1384) estabeleceram uma linha de

3 Citado por Remi Lenoir – Object sociologique et problème social. In CHAMPAGNE, Patrick [et al.] - Initiation à la Pratique Sociologique. Dunod / Bordas: Paris, 1989, p.604 Remi Lenoir (1989), p. 61

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diferenciação entre os homens com menos e mais de 14 anos em função de dois critérios

que nada têm a ver com a natureza: o pagamento de impostos e o porte de armas.

A distinção entre “útil” – população masculina dos 15 aos 60 anos – e “inútil” – o resto da

população – foi um outro critério adoptado para proceder à dita categorização da

população.

Interessa, então, notar que os critérios de classificação variam consoante a época, as instituições e a própria composição da população, de tal modo que as linhas de

fronteira que separam a juventude, idade adulta, infância e a velhice são sujeitas a

evoluções que traduzem uma modificação do significado destas categorias.

Se analisarmos o fenómeno do envelhecimento, tal como o fez Esteves (2003), partindo

da sua representação tradicional, que o associa ao limiar etário de entrada aos 65 anos,

logo nos apercebemos da visão duplamente etnocêntrica que essa fronteira encerra.

Tomando este padrão etário como universal e inconscientemente aceite, poderíamos

falar, no limite, de ausência de velhice em alguns espaços mundiais. Senão atentemos

aos valores do quadro que nos demostram que em alguns períodos temporais e contextos geográficos nem poderíamos falar de envelhecimento.

Quadro nº 1 – Esperança de vida de 1975 a 1995 e projecção para 2000-2010

1975-1980 1980-1985 1985-1990 1990-1995 1995-2000 2005-2010

MUNDO 59,7 61,3 63,1 64,3 65,6 68,3

África 48,0 49,5 51,3 51,1 51,4 53,2

América Latina 63,1 64,9 66,7 68,1 69,2 71,4

América Norte 73,3 74,7 75,2 75,9 76,9 78,2

Ásia 58,5 60,4 62,5 64,5 66,3 69,4

Europa 71,2 71,9 73,0 72,6 73,3 75,0

Oceania 68,2 70,1 71,3 72,9 73,8 75,6

CORDELIER, S.; DIDIOT. B. (dire.) – L´État du Monde. Annuaire économique géopolitique mondial, Paris. La Découverte & Syros, 1999, in ESTEVES, António Joaquim - Envelhecimento: Contas da Idade e a Contas com Modos de Viver e Morrer, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 43 (1-2), Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 2003

Um exemplo do que acima se disse, é referido por Maurice Halbwachs5 ao demonstrar,

no seu estudo sobre “a nupcialidade em França no pós guerra”, que a definição social

das idades varia em função da composição numérica das gerações. Assim, foi na

sequência da diminuição drástica da população masculina dos 23 aos 38 anos que

ocorreu a redefinição da idade legítima de casamento e de acesso ao estatuto de adulto.

5 Citado por Remi Lenoir (1989), p.62/63

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Não menos ilustrativo é o exemplo referido (Lenoir, 1989) a respeito do bloqueamento do

acesso da juventude burguesa e pequeno burguesa (em 1830) às carreiras de profissões

liberais e da alta administração pública, em virtude da presença de homens recrutados

nas gerações anteriores, facto que retardou a sua entrada nestas carreiras e os

precipitou numa espécie de adolescência prolongada. Em suma, a idade dos indivíduos só adquire pleno sentido no quadro das relações sociais, pelo que está longe de poder ser considerada uma propriedade biológica independente. Esta constatação é

tanto mais pertinente quanto a fixação de uma idade é produto de uma luta das diferentes

gerações. Segundo Lenoir (1989), as categorias de idade são, pois, um bom exemplo

da luta de interesses que sempre está envolvida em qualquer processo de classificação.

E, muito em especial, um bom exemplo da definição de poderes associados aos

diferentes momentos do ciclo de vida. Por outras palavras, as categorias de idade

expressam a competição em torno de certos trunfos socialmente valiosos, nomeadamente a actividade profissional e o trabalho.

Feita esta demarcação relativamente às definições das idades como propriedades

dependentes das relações sociais, interessa, então, conceder atenção ao modo

específico da abordagem sociológica do envelhecimento.

Seguindo a reflexão do autor em estudo, o que é específico do trabalho sociológico é a

análise das relações de força entre as gerações, em cada fase histórica do

desenvolvimento das sociedades, com vista a aceder legitimamente a certos bens e

posições sociais. Analisar os agentes que conduzem essas lutas, as armas que utilizam,

as estratégias que põem em prática, é o caminho para compreender como são

produzidas as representações dominantes das práticas legítimas associadas à definição

da idade.

No interior de cada classe social, é possível observar uma disputa entre gerações pelo

acesso a bens e posições sociais, de tal modo que a definição da idade a partir da qual

se é considerado velho para exercer uma dada actividade, ou para aceder a uma posição

social pode sofrer uma certa variação. No fundo, a determinação da idade em que se é

considerado velho depende sempre dos bens que estão a ser disputados e do momento

em que as gerações mais jovens constrangem as gerações mais velhas a afastar-se das

posições de poder a fim de, por sua vez, o ocuparem6. Em suma, a manipulação das 6 Um exemplo de competição entre gerações pelo acesso à propriedade é o que nos é apresentado por Richard Trexler e Daniel Herlihy quando analisam o aparecimento da noção de adolescência em certas cidades italianas da renascença na sua relação com as transformações das relações entre as gerações no seio da burguesia. Para não serem despojados dos seus bens e do poder, os pais atrasavam a idade de casamento dos filhos, uma vez que, nessa época, o casamento se acompanhava, nesta categoria social,

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classes de idade está sempre associada a uma redefinição de poderes ligados aos diferentes momentos do ciclo de vida próprio de cada classe social.

Como argumenta o autor, a determinação da idade não é, pois, um dado natural7, nem

um princípio de constituição de grupos sociais, nem um factor explicativo de

comportamentos, mas é sim o resultado de lutas entre gerações em cada momento

histórico, interessando conhecer o processo a partir do qual os indivíduos são

socialmente designados como tal. Quer nos reportemos à maioridade, os 18 anos, ou à

idade de reforma, os 65 anos, estas categorizações tendem a transformar-se num género

de normas sociais às quais estão associadas direitos.

Concretamente a velhice não é algo que instantaneamente surja com a idade mas resulta das relações de força que se estabelecem entre classes e gerações, isto é,

da distribuição do poder e dos privilégios entre as classes e entre as gerações. Assim, da

mesma forma, a manipulação da idade da reforma reflecte lutas inerentes aos grupos

sociais e ao confronto entre gerações, dado que o valor social dos indivíduos é em

grande parte definido por relação ao peso da sua actividade profissional. Os princípios da

divisão do trabalho estruturam a repartição das tarefas entre os grupos sociais a as

categorias de percepção e avaliação dos mesmos, reflectindo a luta entre grupos para

impôr uma visão do mundo social contribuindo para manter ou transformar a sua posição

no espaço social e os direitos que lhe estão associados, como por exemplo o direito à

reforma (Lenoir, 1989:67/68).

A realidade social é, pois, o resultado de todas estas lutas de classificações e manifesta-

se de várias formas: “no estado dos direitos, de equipamentos colectivos, de categorias

de pensamento, de movimentos sociais, etc.”(Lenoir, 1989:68).

O estudo da emergência de um problema social é uma das melhores revelações deste trabalho de “construção social da realidade” (Lenoir, 1989:68), devendo ser

duma transferência do património familiar. Diante da pressão exercida pelos jovens (os parricidas não eram raros na época), os pais faziam prova de uma grande tolerância no que respeitava à sexualidade, a fim de não ceder no essencial, a preservação e conservação do poder sobre a gestão do património familiar até à sua morte. Um outro exemplo da luta entre gerações pelo acesso ao poder, por via do domínio de saberes técnicos, é relatado pelos mesmos autores a propósito da evolução, na segunda metade do séc. XIX, das relações entre gerações nos artesãos vidreiros, decorrente da transformação das técnicas de produção neste sector (Idem, p.64/65).7 Como mostra G.I.Jones a propósito de uma população africana, os IBO, a idade do indivíduo resulta de três factores: primeiro do metabolismo demográfico que depende das taxas de fecundidade e de mortalidade e cujas variações contribuem para definir o estado da concorrência entre as gerações pela ocupação das posições de poder; da relação de forças entre os pais e os filhos na família e mais largamente no seio da linhagem; enfim, a capacidade dos jovens para demonstrarem que possuem as qualidades socialmente requeridas para passar de uma classe de idade a outra. (idem, p. 66)

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objecto de pesquisa do investigador o processo através do qual se constrói e institucionaliza o que num determinado momento do tempo é constituído como tal.

Assim, por exemplo, para compreender plenamente os problemas que se colocam no

seio de um lar de idosos, é preciso, antes de mais, entender as transformações que

ocorreram ao nível das relações de poder entre as gerações ou, por outras palavras,

ao nível da natureza dos laços que unem os indivíduos na sociedade e nos grupos. Por

outro lado, é inquestionável a importância e a atenção social que este fenómeno implica

no momento actual, advinda da própria expressão numérica do fenómeno. Mas quererá

isto representar que o envelhecimento se torna, pela sua intensidade, num problema

social? Por outras palavras, o crescimento do número de pessoas idosas, centrado na

noção de envelhecimento demográfico, significará estar-se perante um problema social?

Na verdade, a velhice não é por natureza própria um problema social. A condição de

se ser velho é que pode ser bastante diferente de contexto para contexto. Assim

podemos constituir a velhice enquanto problema social na medida em que a vivência

nesta etapa da vida provoque mal estar e sofrimento a um número significativo de indivíduos, decorrentes de transformações nos subsistemas familiares, económicos,

demográficos, políticos... Na sequência desse mal estar, torna-se fundamental que haja

um reconhecimento pelos poderes públicos dessa situação, por forma a que intervenham e promovam soluções. Para tal se justifica a implicação de certos indivíduos ou grupos em tornar a situação problemática em causa visível. Em

suma, a transformação de um dado fenómeno em problema social implica três

momentos: formulação pública, legitimação e institucionalização do problema social, já

quando se tomam medidas legais em função da sua resolução/minimização.

Assim, como refere Fernandes, “com o passar dos anos, as transformações que

ocorreram nas sociedades industrializadas e o gradual envelhecimento das suas

populações, proporcionaram as condições para que socialmente se começasse a

considerar a velhice como situação problemática a necessitar de apoio social. A velhice

tornou-se um problema social e passou a mobilizar gente, meios, esforços e atenções

suficientes, para que qualquer um disso se aperceba. A ela está vulgarmente associada a

ideia de pobreza ou, pelo menos, da escassez de meios materiais, de solidão, doença e

também, de alguma forma, de segregação social, corte com o mundo...” (1997:10).

Este problema foi, nas sociedades pré-industriais, entendido como um problema individual e privado, vivenciado no contexto da própria família, sendo que era esta

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que tomava a cargo os idosos, incapazes de assegurarem a sua sobrevivência. Nessas

economias tradicionais a família era unidade de produção e consumo, sendo que o trabalho não era perspectivado como estando separado de outras funções sociais. No entanto, “ a partir do momento em que, com o desenvolvimento do salariado e a

imposição da definição do trabalho como actividade produtiva e rentável, a

interdependência dos membros do grupo familiar tende a desfazer-se, constituindo-se

uma nova visão de actividade, aquela que é remunerada e valorizada, o trabalho, e

aquela que não é e que é depreciada até não ser mais considerada como trabalho (a

inactividade) ” (Lenoir, 1989).

As transformações económicas, decorrentes do período industrial e do desenvolvimento

do capitalismo, conseguiram-se impôr a todo o planeta e afectaram, decididamente, as

estruturas familiares. Que fazer com os velhos, sobretudo os da classe operária, quando

se encontravam incapazes de produzir? Sabe-se, por exemplo, que “no final do séc. XIX,

mais de metade da população das cidades com 65 anos e mais não tinha pensão nem

salário, ficando a cargo dos filhos ou das instituições de assistência. Podemos lembrar

que mais de 43% dos hospícios foram construídos no séc. XIX...” (Lenoir, 1989).

Como a família deixa de ser uma unidade de produção, bem como de regulação dos

problemas, nas cidades constrói-se uma lógica de vida e relações que não permite

manter a família alargada. Externalizam-se, assim, alguns problemas relativos ao cuidado prestado aos velhos, que anteriormente eram confinados à família. Nesta

medida, inicia-se um trabalho político de reconhecimento oficial de certas necessidades

associadas aos idosos, permitindo-lhes, progressivamente uma expressão legítima e

legal materializada através dos sistemas de protecção social que os Estados foram

pondo em prática desde o fim do séc. XIX.

A nova sociedade industrializada, passando a ser uma sociedade defensora de princípios

como o economicismo, produtivismo, consumismo, urbanicismo... vai acabar por produzir

o que se designou por “questão social”, dando visibilidade, à escala pública, de problemas que até aqui estavam basicamente dentro da esfera privada. É o caso de

situações de pobreza, exclusão, relações entre gerações...

Os velhos problemas de pobreza, habitação, falta de condições de vida generalizadas

concentradas nas cidades ganharam nova intensidade e amplitude. A par destes criam-

se novos problemas relacionados com o mundo do trabalho operário e das indústrias.

Novos e velhos problemas deixam de ter resposta no quadro de regulação da família.

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Os novos valores prevalecentes deram origem a outras consequências, tais como à

predominância do quantitativo sobre o qualitativo (defesa das economias de escala),

ao produtivismo e tecnologismo, sendo que a obsessão produtivista e o endeusamento

tecnológico marginalizam as pessoas que não são consideradas produtivas.

Esta visão preponderantemente material e monetarista, centrada no crescimento económico, vai deixando para segundo plano outras dimensões importantes. Como nos

refere Pimentel, “numa sociedade caracterizada por fenómenos de globalização, em que

cada vez mais os espaços de relacionamento humano se desenvolvem numa dimensão

em que o ser individual se dilui nas decisões e nas opções tendencialmente

generalizantes e despersonalizadas, torna-se imperativa uma reflexão sobre o espaço que as solidariedades primárias e informais ocupam no enquadramento das necessidades de cada indivíduo, em especial dos idosos. Será particularmente

importante analisar os condicionalismos que envolvem as relações sociais em geral e as

relações familiares em particular... A incapacidade de olhar para as necessidades

individuais e de encontrar formas de gestão do social que promovam a justiça social, leva

a uma despersonalização das relações entre os seres humanos” (Pimentel, 2001: 27).

Os contactos afectivos perdem preponderância por relação à elevação do nível de

vida dos sujeitos, muito relacionada com a capacidade de adquirir bens materiais que

satisfaçam as tendências hedonistas das sociedades actuais. Coloca-se, inevitavelmente,

a questão das solidariedades familiares, relacionais, bem como do suporte comunitário

e do papel do Estado enquanto garante do bem-estar e fomentador de respostas sociais

de qualidade.

1.2. Desafios e consequências da revolução demográfica na reconfiguração das relações intergeracionais – solidariedades comprometidas (?!)

O envelhecimento populacional é hoje um fenómeno incontornável e bem característico

das sociedades actuais, sobretudo do mundo ocidental. Face à revolução demográfica e do envelhecimento societal torna-se necessário estarmos atentos à amplitude das

mudanças que se têm vindo a operar, sobretudo nas últimas décadas. Estas mudanças

traduzem-se numa modificação inquestionável das pirâmides por idade e sexo, tendo em conta sobretudo a redução significativa da mortalidade e natalidade, o aumento

da esperança de vida e, ao mesmo tempo, a diminuição da fecundidade, dando origem a

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uma “transição demográfica” marcada, irrevogavelmente, por um envelhecimento

demográfico. O fenómeno do envelhecimento vai corresponder “às alterações que,

relativas à estrutura etária da população, se traduzem por um aumento da importância

relativa dos idosos (envelhecimento no topo), por uma diminuição da importância relativa

dos jovens (envelhecimento na base) ou por ambas as situações (duplo envelhecimento)”

(Rosa, 1996:9).

Obviamente que a conjugação destes fenómenos não pode assegurar senão um

equilíbrio demográfico precário, relativo à proporcionalidade entre o número de

nascimentos e de mortes. Esta ideia fica perfeitamente ilustrada quando Loriaux refere

que “toda a população caracterizada por um declínio durável da sua fecundidade está

inelutavelmente condenada a termo a envelhecer” (1995:10). Paralelamente, este

fenómeno originou uma mudança na forma de conceber as relações entre gerações assumindo, as classes idosas, uma importância decisiva por relação às classes mais

jovens. Neste sentido, a intensidade do envelhecimento tem vindo a criar novos desafios às sociedades. Este fenómeno ocorreu, numa primeira fase, em todos os

países desenvolvidos, sendo que actualmente se tem intensificado nos países em

desenvolvimento.

Em rigor, e se atendêssemos à análise histórica de longo prazo, no que concerne à

reflexão sobre este processo de transição demográfica, verificar-se-iam várias transições demográficas8, tal é a diversidade de ritmos e características evolutivas de

que se revestem.

Não podemos deixar de referenciar, no entanto, e dando sequência às reflexões de

Loriaux (1995), alguns dados que nos ilustram as enormes conquistas que se têm

operado desde o século XVIII até ao século XX. Assim, a mortalidade (indicador por

vezes secundarizado pelos demógrafos a favor das variações de fecundidade que

reflectem uma resposta adaptativa ao declínio da mortalidade) diminui muito, tendo a esperança de vida passado dos 25 anos no século XVIII para os quase 80 no século XX. Da mesma forma, a mortalidade infantil baixou, ao longo dos anos,

8 O autor aponta-nos, contudo, quatro momentos distintos, por referência à situação média dos países europeus, apresentando-nos, simultaneamente, alguns dados utilizados pelos demógrafos: (1) - séc. XVIII – alta fecundidade (média 6/7 filhos por casal) e mortalidade (esperança de vida não ultrapassava os 25 anos), bem como mortalidade infantil (1 em 4 crianças morria antes do 1º ano de vida); (2) - 1800 – transição, nos países mais avançados, caracterizada por uma diminuição progressiva da fecundidade e mortalidade; (3) - 1965 – transição caracterizada pelo declínio significativo da fecundidade, acompanhado de mudanças na organização da família; (4) - 1985/90 – momento relacionado com uma revolução epidemiológica (que assegura condições de saúde que facilitam o prolongamento da vida) que prioriza as pessoas idosas e os adultos, mais que as crianças (Loriaux, 1995:10).

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exponencialmente e a fecundidade tem atingido níveis tão baixos que colocam já em causa a própria substituição das gerações (os nascimentos médios de crianças

passam de 6,5 crianças no séc. XVIII para 1,5 em 1995). A idade média em que uma criança ficaria órfã de pelo menos um dos pais era de 15 anos no séc. XVIII e é de 45/50 anos no séc. XX. A duração média de vida do homem após a reforma era de 12

anos em 1945 e passa a ser actualmente de 25/30 anos. A acrescentar que os casais não poderiam, outrora, esperar sobreviver em conjunto mais de 25 anos e agora podem contar com uma vida partilhada por mais de 55 anos.

Estas conquistas não nos podem, contudo, impedir de considerar o envelhecimento demográfico como um fenómeno heterogéneo e desigual, quer em termos mundiais, quer em termos do país, ou mesmo das várias regiões do país.

Considerando uma dimensão sobretudo mais mensurável e quantitativa do

envelhecimento, diríamos que, de acordo com Esteves (2003)9, à escala mundial e num

espaço de apenas 25 anos (1979-1997) se assistiu a um aumento da esperança de vida de 7,6 anos, sendo certo que estes ganhos são mais significativos nos países

desenvolvidos do que nos países “não desenvolvidos” ou “pouco desenvolvidos”, onde

até se chegaram a verificar evoluções negativas, em termos deste indicador. Sobretudo

os países da América Latina, Ásia e Africa continuam a deter valores bastante baixos à

escala mundial. As projecções para o período entre 1995-2010 ascendiam a valores de

71.4, 69.4 e 53.2 respectivamente. Já a Europa se assume como uma região com altas

esperanças de vida, não obstante as variações significativas entre os países. As mesmas

projecções previam os 75 anos como a média em termos de esperança de vida na

Europa. A esperança de vida nas mulheres é também, e por regra, mais elevada que nos

homens.

Contudo, dados publicados pela OCDE indicam que em 2003 a esperança de vida média em Portugal era já de 77.3, ligeiramente abaixo da média dos países da OCDE,

77.8.10 Uma análise segundo o género permitiu-nos reforçar, mais uma vez, que em

Portugal as mulheres assumiam valores mais elevados que os homens, de acordo com as

tendências gerais. Os valores médios eram de 80.6 para as mulheres e de 74.0 para os

9 O autor utilizou, para a sua análise, dados contidos na obra Cordelier, S.; Didiot, B. (direc.) – L´État du Monde. Annuaire économique géopolitique mondial, Paris, La Découverte Syros, 199910 De acordo com a mesma fonte, podemos salientar o Japão (81.8), a Austrália (80.3), a Islândia (80.7), a Espanha (80.5), a Suécia (80.2) e a Suiça (80.4) enquanto países com esperanças de vida médias superiores a 80 anos. Por outro lado, com valores inferiores a 75 anos situam-se a Hungria (72.4), o México (74.9), a Polónia (74.7) e a República Eslovaca (73.9). Os restantes países da OCDE situam-se no intervalo intermédio (OCDE, 2006).

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homens (OCDE, 2006). O processo de envelhecimento é, pois, mais evidente nas

mulheres, dada a sobremortalidade masculina.

Verifica-se um acentuar do duplo envelhecimento que caracteriza Portugal, a Europa e até os E.U.A, mas que não é, contudo, generalizável à escala mundial, porquanto as

regiões da África, Ásia e América Latina incluem, na sua estrutura etária, um grupo jovem com grande peso, proporcionalmente ao grupo idoso11. Este duplo envelhecimento traduz-se por um envelhecimento na base (redução da população

jovem em consequência dos baixos níveis de natalidade e de fecundidade) e no topo (acréscimo de idosos como resultado do alargamento da esperança de vida, aproximando

o nosso país aos países mais envelhecidos da União Europeia).

Ainda assim, as estruturas tendencialmente envelhecidas da Europa do pós-guerra não caracterizam o espaço europeu de forma homogénea. Assim, Fernandes

distinguia “ a Europa do Norte e Ocidental, com altos níveis de envelhecimento na base e

no topo, a meio caminho, a Europa do Sul e, no outro extremo, a Europa de Leste ainda

com valores acima dos valores médios (Fernandes, 1997). Se, de facto, dados da OCDE

apontam, relativamente a 2005, países como a República Checa ou República Eslovaca

com percentagens de população com 65 ou mais anos na ordem dos 14.1 e 12.0

respectivamente, a verdade é que se torna cada vez mais difícil separar os elevados

índices de envelhecimento pelas restantes áreas enunciadas. Tal facto deve-se à

circunstância de países como a Bélgica (17.3), a Alemanha (18.8), a Grécia (18.3), a Itália

(19.7) ou a Suécia (17.2) tornarem cada vez mais difícil a distinção entre as partes

envelhecidas do Norte e do Sul da Europa. Portugal e a Espanha assumem ambos valores de 16.8 de população com 65 ou mais anos e as projecções para 2020

sugerem que estes valores tendam a aumentar progressivamente até atingirem

percentagens na ordem dos 18.7 e 18.6 respectivamente. As excepções a estas

tendências centram-se na Islândia (11.7) e Irlanda (11.2) que se apresentam como os

países europeus mais jovens (OCDE, 2006).

A tomar em consideração estas tendências de envelhecimento e de aumento de

esperança de vida, associado à baixa natalidade na Europa, afigurasse-nos a

necessidade de abertura aos movimentos migratórios, a qual se apresenta como um

11 Recorrendo a Esteves, que utiliza como fonte Brinkerhoff & White, Sociology, St Paul, West Publishing Company, 1991:529, é possível constatar que a população jovem (0-14 anos), em 1991, representava 45% da população Africana, 34% da Asiática e 38% da América latina. Nestes mesmos contextos, a população com mais de 65 anos representava 3,0%; 5,0% e 5% respectivamente. Já nos EUA e Europa, a população jovem representava, no mesmo período, 22% e 20% do total da população. Já a população com mais de 65 anos representava à época 12% e 13% dos respectivos contextos em análise (Esteves, 2003).

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desafio às democracias europeias, bem como à gestão humana das suas fronteiras, de

modo a que se procure construir um desenvolvimento mais sustentado de países

exteriores ao seu espaço.

Relativamente a Portugal, e apesar de todas as regiões do país, com maior ou menor

intensidade, reflectirem esse fenómeno do duplo envelhecimento, desencadeado na

década de oitenta e mantido nas décadas seguintes, a distribuição da população idosa pelo país não é homogénea.

Assim sendo, e de acordo com dados do INE relativos a 2005 mantém-se a tendência de crescimento e envelhecimento da população que já se vem evidenciando há alguns

anos, com percentagem de idosos na ordem dos 17%, por relação à população jovem, com menos de 15 anos, que representava 15.6% do total, prevendo-se mesmo

que a população idosa possa vir a representar 32% da população em 2050. Perante a

percentagem de população idosa, interessa destacar a longevidade feminina, onde a

percentagem de mulheres com mais de 65 anos é de 19,3% contra 14,8% de homens.

O índice de envelhecimento12 aumenta, por consequência, para 110 idosos por cada 100 jovens (em 1991 era de 68 idosos por cada 100 jovens, em 2001, 102 idosos para

cada 100 jovens e em 2004 aumentou para 109 idosos por cada 100 jovens), traduzindo o

envelhecimento populacional. Este valor encerra, no entanto, algumas disparidades em

termos regionais. O índice mais elevado situa-se na região do Alentejo (171) enquanto que o mais baixo se situa na Região Autónoma dos Açores (63). Tal ilustra

a tendência de maior incidência de idosos no Alentejo, seguido do Algarve e do Centro.

Ao mesmo tempo reforça a tendência das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira

preservarem os níveis menos elevados de envelhecimento, assim como as mais elevadas

taxas de natalidade, 12,5 e 12,1 respectivamente, contra 10,0 no Norte, 9,1 no Centro,

11,7 em Lisboa, 9,0 no Alentejo e 12,0 no Algarve (INE, 2006).

De acrescentar ainda o fenómeno do envelhecimento da própria população idosa,

dado o crescimento acentuado entre a população com 75 e mais anos. Esta ideia justifica,

de alguma forma, o aumento que se tem verificado ao nível do índice de longevidade13.

Embora não tenhamos acesso a dados mais recentes, entre 1960 e 2001 o seu valor

12 De acordo com a definição apresentada pelo INE, este indicador corresponde à relação entre o número de idosos e o de jovens, definido habitualmente como a relação entre a população com 65 ou mais anos e a população com 0-14 anos (INE, 2002).13 Tratando-se de um indicador adicional de medida de envelhecimento de uma população, pode definir-se como a relação existente entre a população com 75 e mais anos e a população com 65 e mais anos (INE, 2002).

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aumenta de 34 para 42 indivíduos. Prevê-se mesmo que entre 1950 e 2020 as pessoas com 80 ou mais anos tenham quadruplicado em importância numérica e tenham dobrado o seu peso relativo no contexto da população idosa. Aliás atingir os 100

anos torna-se um acontecimento cada vez mais frequente. Alguns investigadores mais

audaciosos conseguem mesmo prever uma esperança de vida que atinja os 90 anos,

podendo-se supor, “(...) em função das novas perspectivas abertas pela medicina e pela

biologia, que o objectivo dos 90 anos poderá ser esperado daqui a três ou quatro

decénios, salvo catástrofes ou obstáculos imprevistos (Loriaux, 1995:14).

Por outro lado, em termos de índice de dependência total, caracterizado pela relação

entre o número de jovens e o de idosos e a população em idade activa, este valor tem

vindo a decrescer. De 1960 para 2001 este valor baixou de 59 indivíduos para 48. Em

2005 este valor mantém-se idêntico, 48,6 indivíduos.

Todavia, estes dados fazem-nos reflectir em torno de um outro indicador: o índice de juventude da população em idade activa que baixou, em 2005, para 110 indivíduos

entre os 15 o os 39 anos por cada 100 dos 40 aos 64 anos. Este valor era de 120

indivíduos no início da década (2000). O rácio de idosos na população potencialmente activa passou de 25,2 em 2004 para 25,4 em 2005 (INE, 2006).

Estas alterações começam a influenciar o grupo populacional em idade activa (15-64

anos), com consequências inequívocas ao nível sócio económico.

A par destes fenómenos, muda igualmente a estrutura da instituição familiar, na

sequência da mudança de outras estruturas sociais, habitacionais, económicas, culturais.

A composição da família portuguesa ilustra e reforça a tendência de envelhecimento

populacional, desde logo pelo facto dos seus membros tenderem a diminuir ao longo das

últimas décadas. Como salienta Rosa, “após os anos 70, a dimensão média da família

diminui em Portugal, aumentando a importância relativa das famílias compostas por uma

pessoa e declinando a importância relativa das famílias com três e mais membros” (Rosa,

1996:16).

Apesar de em Portugal em mais de 30% das famílias viverem pessoas com mais de 65

anos, havendo até distritos em que essa percentagem quase atinge os 50%, muitas

pessoas com mais de 65 anos vivem sós, o que nos faz reflectir sobre o isolamento a que

está sujeito este grupo etário, sobretudo nos concelhos onde se situam as cidades

capitais de distrito, na sequência das alterações da estrutura etária da população.

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Na verdade, mudanças de comportamento da fecundidade, associadas às mudanças de regime de mortalidade podem, segundo Loriaux (1995), ter incidência nos modos de vida e pensar dos indivíduos bem como nas relações que estabelecem entre si. Desde logo se destaca o papel da mulher na estrutura social. Se até aqui o destino da mulher passava, incontornavelmente, pelo casamento e

educação dos filhos, na actualidade, e com as baixas de fecundidade, os seus destinos

podem diversificar-se muito, quer pela sua concorrência, a par do homem, no mercado de

trabalho, quer mesmo pelas mudanças ao nível da estrutura familiar, que passam a

implicar formas alternativas de vida em comum, como as uniões livres, ou outras

modalidades de família, como a família monoparental.

Por outro lado, também podemos considerar que as incidências de mortalidade têm

influenciado os modos de vida e pensar dos indivíduos, na medida em que a morte e a angústia a ela associada não regulam, de forma tão veemente como outrora, a vida dos indivíduos, dado que é possível ampliar o horizonte cronológico de cada indivíduo, permitindo-lhe assegurar e sustentar projectos de longo curso. Como nos

refere Loriaux, “a imortalidade assume-se sempre como um sonho inacessível, mas a

ilusão da imortalidade pode ser durante muito tempo sustentada.” (1995:13). Na

sequência das suas ideias, entende que as mudanças relativas ao recuo da mortalidade

se reflectirão mais ao nível das relações entre classes de idades. O envelhecimento

demográfico eleva a importância relativa das pessoas idosas na pirâmide de idades e a maior parte dos coeficientes demográficos do envelhecimento têm progredido no

sentido de reforçar a intensidade desse processo.

As transformações que ocorreram nas dinâmicas demográficas, não nos colocaram

apenas o desafio da longevidade, mas também o da transformação das condições de coabitação entre as gerações que constituem uma sociedade, dado que as nossas

sociedades são mais multigeracionais que nunca!

Loriaux (1995), assumindo que toda a sociedade é multigeracional, entende que é

necessário dar conta dos processos de cruzamento e de interpenetração das gerações. A trama geracional de uma sociedade cruza a dimensão horizontal (gerações

sucessivas que compõem a evolução histórica) com a vertical (colocando gerações em

relação). Digamos que as gerações se têm sucedido no tempo/história como também se

relacionam dentro da família alargada, onde trocam bens e serviços, e ambas as

dimensões se condicionam reciprocamente.

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É, no entanto, dentro desta última dimensão que a evolução tem sido mais notória, dado

que nos dias de hoje é possível que no mesmo espaço temporal coexistam quatro ou cinco gerações em filiação directa, fazendo-nos reflectir sobre a natureza das

relações que se poderão estabelecer entre a família, quer ao nível das ligações de

cooperação, competição, distribuição do poder, repartição de recursos económicos,

simbólicos... Como gerir o tempo livre de indivíduos que têm perspectivas de vida de

20/30 anos após a reforma? Como encarar estas mudanças no ciclo de vida que tendem

a favorecer, inclusive, a coexistência e a inter-relação de duas gerações de reformados?

Curiosamente, os filhos tenderão a herdar as heranças de seus pais num momento em que os próprios também estão na reforma e as suas necessidades financeiras e projectos são menores. Se cada vez mais a rentabilidade da herança é menor, ela

deixa também der ser um trunfo de poder por parte da geração que a possui...

A par disto, e sendo o horizonte de vida cada vez mais alargado, o discurso sobre a

morte parece cada vez mais distante e tendente à sua própria negação, daí a

importância de instituições destinadas a atendê-la, como hospitais geriátricos e

espaços funerários, tornando mais suportável os momentos a ela associados, sobretudo

para os familiares vivos. A negação da morte justifica, em certa parte, e seguindo Loriaux,

“uma certa tendência à marginalização das pessoas idosas (...)” (1995:18).

Convém, ainda assim, não esquecer que, segundo o mesmo autor, são as mulheres casadas que correm o risco de se tornarem as “reféns familiares da intergeracionalidade”, dado que são solicitadas a prestar apoio quer aos seus

descendentes, quer aos seus ascendentes.

Um outro desafio apresentado é o de gerir a diversificação de situações e de condições de vida dos membros de diversas gerações, bem como as suas

necessidades, tanto mais que as políticas sociais tendem a ser uniformes e a não

contemplar as desigualdades14 entre os diferentes grupos populacionais. A grande

questão é a de saber se o ritmo das medidas de adaptação societal absorverá o fluxo

geracional, respondendo assim à complexificação das estruturas colectivas.

14 O autor chama a atenção para as consequências ao nível das mudanças das estruturas de população, por idade e sexo, bem como para a importância da desconstrução das categorias estatísticas, por vezes pouco reveladoras dessas disparidades. Por exemplo, tem-se verificado uma descida na mortalidade ao nível das estruturas sócio-profissionais. No entanto, certas categorias profissionais de pendor mais manual têm índices de mortalidade mais elevados que as categorias dos chamados profissionais de colarinho branco. Do mesmo modo, o nível médio dos rendimentos não nos pode fazer esquecer as disparidades e as variâncias que caracterizam a nossa sociedade (Loriaux, 1995).

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Se é certo que, de uma maneira geral, os idosos são dotados de uma melhor formação,

de um status social mais elevado, de superior poder de compra e de um melhor estado

de saúde, por outro lado, não basta ter em atenção somente os níveis médios dos

principais indicadores, mas é necessário atender às disparidades que ainda marcam e nos ajudam a compreender as nossas sociedades e a tomada de decisões políticas.

Uma outra mudança, que justifica a reflexão do autor, tem a ver com a conversão do património económico em património cultural e social, sendo que trabalhadores

independentes, ligados ao pequeno comércio e agricultura, constituem classes em

declínio. Também a feminização da população activa pode contribuir para modificar as

imagens e os desafios do trabalho, da reforma, da vida social e económica.

Para todos estes desafios é preciso pensar em políticas sociais ajustadas e justas.

Associada à transformação dos ciclos de vida, surge-nos, ainda, a reflexão sobre a

transformação dos ciclos biológicos. Ao prolongar-se substancialmente a idade adulta

será possível transformar o ciclo biológico, de forma a que as mulheres possam organizar

a sua vida reprodutiva por um período bastante longo (40 ou 45 anos), podendo dissociar

no tempo os desafios da vida profissional dos da vida familiar, assumindo o seu papel

maternal em plena posse das suas capacidades físicas e mentais.

Perante a complexidade de todas estas mudanças associadas aos progressos em termos

de longevidade, Loriaux (1995) propõe-nos uma visão global e sistémica das nossas sociedades, uma vez que há permanentes descontinuidades e variações ao longo dos tempos, tornando o futuro indeterminado. Se era possível, classicamente,

distinguir causas de consequências dos fenómenos, hoje elas estão interdependentes.

A par do capital de vida, o tempo destinado ao lazer tem progredido, preparando o

acesso progressivo à “era da geritude”, associada a uma nova concepção de velhice. Ao

desenvolver uma abordagem entre lazer e aposentação, Simões define sumariamente o

lazer como um “tempo em que se está livre para se fazer outras coisas do seu agrado”

(2006:95). Não esquece, porém, de criticar a visão compartimentada do ciclo de vida em

tempo de educação, tempo de trabalho e, por fim, tempo de lazer. Associa esta rigidez a

uma visão inaceitável de idosos desvinculados, com a sua identidade ameaçada e

sentimentos de inutilidade pelo facto de não desenvolverem o seu potencial produtivo e

os seus recursos inestimáveis. Entende que este tempo designado vulgarmente por

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“tempo de lazer” pode ser aproveitado para a prática de actividades que produzam bens

e serviços, remunerados ou não. Contrariando os sistemas de aposentação inflexíveis e

rígidos, destaca a relevância do trabalho produtivo enquanto recurso para a resolução de

importantes problemas da sociedade e para o favorecimento de sentimentos de

satisfação e realização dos idosos, sempre que daqui decorra significado para a sua

existência (Simões, 2006).

Nesta sequência, não podemos negligenciar ainda, tendo em conta a presença cada vez

mais numerosa de pessoas idosas, a questão do financiamento da segurança social que está intrinsecamente ligada à da equidade intergeracional. O autor refere o risco

que pode significar o investimento das transferências sociais para certas gerações em

detrimento de outras. No entanto, adverte que a riqueza de umas e a pobreza de outras

não se deve a uma injusta repartição do proveito colectivo, mas a circunstâncias sócio-

económicas temporais. Além disso, não podemos esconder a acentuação das

desigualdades, nomeadamente entre os reformados, os quais mascaram, muitas

vezes, a “pseudo-riqueza” que em alguns momentos lhes é atribuída.

Perante este panorama, o autor chama-nos à atenção para a importância da

solidariedade entre as gerações (Loriaux, 1995). A este respeito, Nazareth apela à

necessidade de mudar estratégias e atitudes perante a população portuguesa

envelhecida, adoptando medidas para minimizar os riscos de desagregação do tecido

social e da saudável convivência entre as gerações. Estas devem passar por novas

formas de solidariedade e de convivência entre idades, grupos, gerações e culturas,

tornando possível a existência de um capital social mínimo na sociedade, sem o qual

todos os outros tipos de capital podem deixar de fazer sentido (Nazareth, 1999).

A solidariedade entre gerações pode evidenciar-se, quer entre as gerações que são

chamadas a se apoiarem mutuamente, quer no contexto das próprias empresas que,

transformando indivíduos em desempregados ou pré-reformados, tendem a entrar em

conflito com as lógicas de integração das gerações. Estas situações de exclusão precoce

do mercado de trabalho, para além de acentuarem a perda das competências e

qualificações dos indivíduos, secundarizam o papel e o estatuto dos mesmos, fazendo-os

entrar nas fileiras dos inadaptados, excluídos e doentes. Tal situação poderá originar a

criação de associações ou sindicatos com a preocupação da defesa de interesses

corporativos dos idosos, o que seria lamentável, pois ao contrário da tão desejada

solidariedade se produziria uma “guerra de gerações”. A importância do diálogo e da relação entre as gerações, bem como da repartição equilibrada e equitativa do

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produto colectivo, que não tenha apenas como base de repartição o trabalho ou a

pertença a classes ou a categorias sociais, mas também a solidariedade, constituem um

desafio delicado e difícil mas absolutamente necessário para garantir o real progresso da

civilização.

1.3. O processo de envelhecimento, situações de vulnerabilidade e o progressivo confronto com a dependência: problemas e desafios adaptativos

Envelhecer pressupõe, como sabemos, uma adaptação a uma nova fase de vida, feita de desafios, crises, aprendizagens e reestruturações, à semelhança do que

acontece com outras fases do crescimento humano. Este desafio seria melhor

ultrapassado não fosse a ideia de declínio, decrepitude e todos as outras ideias pré-

concebidas associadas ao envelhecimento e que contribuem para que se construa uma

representação colectiva, que perpassa as várias gerações, bem negativa sobre esta

etapa. Mas se é inegável que há desafios a enfrentar, não é tão certo que todos os

idosos os vivenciem de forma penosa, sofrida e irremediável. Na verdade há até

exemplos verdadeiramente contrários que definem esta como uma fase de realização plena, de reconstruções e realização de tantos sonhos alimentados e até então ainda

não concretizados. Se, neste sentido, o envelhecimento pode ser um processo bem

sucedido, sabemos que há limites a partir dos quais não se consegue vencer, há perdas

que não se consegue compensar, conduzindo a fases de doença e dependência muitas

vezes na origem dos processos de institucionalização.

Torna-se, assim, importante explorar alguns desses principais desafios. Sousa,

Figueiredo e Cerqueira, definem como principais desafios a reforma, as alterações nas relações familiares: conjugal, filial e fraternal, a condição de se ser avô, a redução das redes sociais, a dependência e doença, as perdas e a morte (Sousa, Figueiredo

e Cerqueira, 2004:30-58).

Um outro desafio associado à entrada na velhice prende-se com a reforma. Na verdade,

a passagem à reforma, quer traga subjacente factores de carácter individual,

institucional e/ou social, implica a desvinculação de papéis sociais activos, mormente

associados ao poder social, económico e simbólico. Assim, exigirá por parte do sujeito

uma readaptação à vida e uma reestruturação do seu quotidiano.

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Não obstante o seu carácter tão recente, em Portugal “de facto a reforma já assumiu o

carácter de ritual de passagem ao estatuto de idoso, representa, a transição das pessoas da categoria dos activos à dos reformados, inactivos e improdutivos. Na

sociedade ocidental onde impera a valorização extrema do trabalho, ser colocado à

margem do processo das actividades remuneradas pode provocar grandes dificuldades

individuais e sociais” (Sousa, Figueiredo e Cerqueira, 2004:31).

Estas tarefas poderão ser ainda mais exigentes se atendermos ao facto de que em

Portugal a reforma não é planeada15, o que pode dificultar a adaptação àquele ciclo de

vida. Os programas de preparação para a reforma, já utilizados noutros países,

preocupam-se com aspectos relativos à manutenção ou melhoria da qualidade de vida no

pós-reforma, ajudando os sujeitos a manterem o sentido para a vida, quer no âmbito

social, quer no psicológico.

Por regra, a reforma é sempre abordada tendo em conta várias dimensões como a

ausência da participação no trabalho; a perda de alguns rendimentos; a aceitação de

uma pensão; redução do horário de trabalho; a percepção subjectiva de encontrar-se

reformado; a perda de redes de sociabilidade provenientes do trabalho; o abandono

permanente do trabalho ou da própria carreira profissional.

Há diferentes paradigmas16 que explicam as consequências do processo da reforma, como as teorias da desvinculação (desligamento), da actividade, da

continuidade e da consistência. Atendendo à variabilidade individual dos mais velhos e à

multiplicidade das interacções entre os indivíduos e os contextos em que estão inseridos,

15 Desconhecem-se iniciativas nesta área com eventuais excepções existentes, como é o caso do recente programa, Recriar o Futuro, que pretende, precisamente, a preparação para a reforma, como meio de promover o desenvolvimento social, pessoal e empresarial, inscrevendo-se num contexto de promoção de inclusão. Alguns dos eixos de intervenção passam por acções de informação, sensibilização e divulgação; assim com apoio à criação e dinamização de associativismo com e para reformados (Instituto para o Desenvolvimento Social).16 Assim, segundo Tomás Agulló, quanto à Teoria da Actividade “as premissas fundamentais que a definem são: a) a maior parte dos idosos mantêm níveis bastante constantes de actividade; b) o nível de actividade ou de inactividade é influenciado por anteriores estilos de vida e por factores sócio-económicos, mais que por processos universais inevitáveis; c) para ter um envelhecimento com êxito é necessário manter, ou mesmo aumentar, determinados níveis de actividade nas diferentes esferas vitais: física, mental, social, principalmente” (Tomás, 2001: 216). Ainda de acordo com o mesmo autor a Teoria da Desvinculação ou Desligamento assenta nos seguintes pressupostos: “a) o processo de desvinculação das pessoas que envelhecem e a atitude da sociedade perante elas é algo de natural; b) este retraimento que se produz é recíproco; c) este processo é algo de inevitável; d) esta desvinculação, que pode ser iniciada pela pessoa ou pela sociedade, torna-se gratificante e benéfica porque contribui para manter o equilíbrio e a ordem social, para diminuir o conflito intergeracional e e) é necessário para um envelhecimento com êxito ao nível pessoal (maior tranquilidade e liberdade para o idoso) e social” (Tomás, 2001:220). De acordo com Paúl & Fonseca, “a passagem para a reforma” “assenta num quadro de referência em que se cruzam, quer uma perspectiva de ciclo de vida (life-span), quer uma perspectiva construtivista” (1999: 378).

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defende-se que as diferentes teorias se aplicam mais ou menos às diferentes fases da

aposentação e, por isso, todas elas podem servir de suporte teórico explicativo.

Há, pois, factores múltiplos que poderão influenciar esta etapa. Desde logo, a um nível

mais macro, as políticas públicas que podem incentivar ou retrair as tendências para reformas precoces ou, como assistimos agora, a reformas com uma tendência

cada vez mais tardia, pelas questões demográficas sobejamente conhecidas. A um nível

mais individual assumem uma influência cada vez mais decisiva as atitudes perante o ócio e o trabalho, aspectos remuneratórios do trabalho, o lugar de residência, a rede social de apoio, etc. Atcheley (1989), menciona que o nível educacional e o tipo de trabalho variam na razão inversa do desejo da reforma. Por outro lado, factores como

a saúde (condições físicas), situações económicas, planeamento e ocupação de tempo livre interferem, de forma satisfatória, na vivência da reforma. O autor realça

a importância da preparação para este tempo ainda na meia-idade.

O processo de adaptação à reforma dever-se-á, sobretudo, à forma como nos formos

preparando para esse momento. A variabilidade inter-individual existe como em

qualquer outra experiência de vida, agravada pela inexistência de modelos que nos

apoiem na transição e preparação para uma reforma mais adequada.

O grande desafio é, pois, o de encontrar novos papéis, que não exclusivamente o profissional, que contribuam para a preservação do sentimento de utilidade social e para a vivência de um envelhecimento activo e produtivo. Esses novos papéis podem

ser desempenhados nomeadamente no seio da própria família, sendo mais difícil para o

homem que tradicionalmente está mais afastado das responsabilidades da casa. Para a

mulher, a saída do mercado de trabalho fá-la romper com o emprego, mas não a impede

de manter o sentido de continuidade na concretização das tarefas de casa. Na verdade

homem e mulher terão que se habituar a conviver juntos em casa e a dividir papéis e

tarefas.

A este propósito convém referir os desafios que a nível familiar se colocam, à medida que a idade avança. Há diferentes tarefas e desafios que caracterizam cada etapa do

ciclo vital da família, também designada por “carreira familiar” (Relvas, 2000). Na fase do

envelhecimento, qualquer que seja a categorização proposta pelos vários autores, todos

apontam como tarefas relevantes o ajustamento à reforma, o que pressupõe manutenção

de interesses próprios, e/ou de casal, ou a exploração de novos interesses; a

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necessidade de aprender a lidar com as perdas e a viver sozinho, a preparação para a

morte , revisão e integração/aceitação da própria vida.

Sousa, Figueiredo e Cerqueira (2004), chamam a atenção para a dependência e proximidade que tende a acentuar-se entre os casais, centradas essencialmente em

termos do cuidado e atenção. Este momento permite ainda vivenciar sentimentos que

outrora eram colocados num outro plano de importância.

Verifica-se também uma aproximação entre pais idosos e filhos adultos, desenvolvendo-se uma relação de ajuda mútua, apoio instrumental e emocional, especialmente em situação de doença. Não obstante os recorrentes desentendimentos

entre as famílias, relativos à responsabilidade inerente ao cuidado dos seus idosos, a

verdade é que o envelhecimento não corresponde a abandono por parte da família, pelo

menos no nosso país. No entanto, tal premissa não significa que esta não seja uma fase

especialmente vulnerável ao isolamento, sobretudo para as mulheres viúvas que

constituem uma maioria. Ora, a viuvez significa a vivência de uma circunstância difícil e perturbadora. Porventura a pior experiência porque alguns indivíduos passam.

Como refere Simões, “para além do impacto emocional muitas vezes prolongado e com

repercussões na saúde física e mental, a viuvez pode significar também redução de

recursos materiais, restrição dos contactos sociais e, sobretudo para a mulher, limitações

nas perspectivas de voltar a constituir um lar” (Simões, 2006:21).

No entanto, o envelhecimento não é experenciado da mesma forma por todos os indivíduos nem em toda a parte. Sabemos, desde já, que em bom rigor não podemos

falar de velhice mas sim de velhices. A velhice não é encarada por todos da mesma

forma, sendo que este processo está relacionado com o percurso, condições de vida e o

contexto sócio-cultural em que os indivíduos se inserem.

Da mesma forma, envelhecer em Portugal não será exactamente igual a envelhecer num outro país qualquer. Nenhum contexto é inócuo e, como defende Bruto da Costa,

(1998), o problema social dos idosos será certamente um dos mais graves problemas da

sociedade portuguesa. Desde logo, porque os idosos estão mais vulneráveis à pobreza. Como nos refere o autor, “num estudo realizado com base em dados de 1989-

90, verificava-se que a taxa de pobreza era de cerca de 22% para o conjunto das famílias

e de 39% (quase o dobro) para as famílias que tinham como representante uma pessoa

idosa” (1998: 85). No entanto, adoptando a perspectiva do autor na definição de exclusão

social, este termo abarca a noção de pobreza e inclui outras situações que, embora não

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sendo de pobreza, implicam rupturas ao nível das relações sociais e, portanto,

comprometem o exercício pleno da cidadania, traduzido no acesso a um conjunto de

sistemas sociais básicos, tais como o económico, social, cultural, institucional...

Analisando alguns indicadores, podemos constatar domínios de vulnerabilidade da população idosa portuguesa. Desde logo, e como já pudemos verificar, vivemos numa

sociedade muito centrada na economia e na produção, tomando como valores

fundamentais os do lucro, consumo e rentabilidade, remetendo para uma situação de

inutilidade e de marginalização as pessoas com mais de 65 anos, já sem capacidade de

competir no mercado de trabalho. São consideradas, por isso improdutivas, inúteis,

dependentes... De salientar que a actividade profissional, mais do que uma fonte de

rendimentos, assume-se também como uma forma de integração social, daí que os

indivíduos vejam o seu lugar na sociedade a mudar e se sintam deslocados. De forma

geral vêm ainda os seus ganhos reduzidos, pois as suas reformas são inferiores aos seus anteriores rendimentos.

Para além de factores económicos, outros podem contribuir para a exclusão das

pessoas idosas como sendo o nível de instrução e formação. Apesar de constituir um

direito humano e constitucional e uma condição fundamental para o exercício da plena

cidadania, o direito à formação nem sempre tem encontrado espaço de actualização na

sociedade, nomeadamente, na portuguesa (Matos, 2000).

Tendo em conta os dados dos censos 1991, relativos ao nível de instrução da

população com 15 ou mais anos, em Portugal Continental, constata-se 12,1% não sabem ler nem escrever; 13,9% sabem ler e escrever mas sem grau de formação formal; 36,4% possuem o 1º Ciclo do Ensino Básico; 15% o 2º Ciclo do Ensino Básico;

10,2% o 3º Ciclo do Ensino Básico; 7,6% o Ensino Secundário; 1,2% Curso Médio e

3,6% Curso Superior.

No que diz respeito às pessoas idosas, a taxa de analfabetismo literal era de 38,92% entre os indivíduos com 65 ou mais anos. No entanto, se tivermos em conta os

indivíduos que referiram saber ler e escrever mas sem grau de formação formal, este

valor sobe para 64,1% (Matos, 2000).

Níveis de instrução %

Não sabe ler nem escrever 12,1

Sabe ler e escrever mas sem grau de formação formal 13,9

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

1º ciclo ensino básico 36,4

2º ciclo ensino básico 15,0

3º ciclo ensino básico 10,2

Ensino Secundário 7,6

Ensino Médio 1,2

Curso Superior 3,6

Total 100

Fonte: Censos de 1991

Relativamente às pessoas idosas, é necessário continuar a investir na educação e na formação, na medida em que assim se contribui para “ (...) aumentar a sua auto-estima e

autoconfiança; para actualizarem e adquirirem os conhecimentos e as competências de

que carecem para continuarem a participar activamente na comunidade e sociedade em

que se inserem; para manterem a autonomia; para compreenderem a mudança e nela

participarem construtivamente, por exemplo, colaborando na educação dos netos; para

adquirirem novos valores (ambiente, tolerância...); para exercerem e reivindicarem os

seus direitos; para desenvolverem a criatividade e o sentido estético; para usufruírem dos

bens simbólicos a que nem sempre tiveram acesso; enfim, para enfrentarem a solidão

individual, ainda que partilhada com outras solidões” (Matos, 2000:117/118).

Continuando com a análise de alguns indicadores, verifica-se que a maioria da população “dita idosa”, com 65 e mais anos, era inactiva (81%) em 2001. A

população idosa activa, que representa 19% do total, encontra-se maioritariamente a

exercer actividades na área da agricultura, produção animal e silvicultura, o que nos

revela a pouca diversidade das actividades, bem como a pouca qualificação por elas requeridas.

Em relação à ocupação do tempo, um inquérito de 1999 permite confirmar “ as

diferenças entre os sexos no que respeita a actividades domésticas e concluir que a

herança de uma cultura baseada no modelo paternalista, com a responsabilidade das

tarefas respeitantes ao lar a pertencer quase exclusivamente às mulheres, está bastante

presente nas gerações idosas” (cit in INE, 2002, p.22). Por outro lado, a participação em organizações culturais ou sociais, clubes desportivos recreativos, associações de bairro ou partidos políticos regista valores pouco significativos: 18,7% nos homens

e 5,2% nas mulheres. Já a frequência de relações sociais e de vizinhança é significativa, pois a maior parte dos idosos conversam todos os dias quer com vizinhos,

quer com amigos ou familiares.

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No que respeita a actividades de lazer, a quase totalidade das pessoas vê televisão diariamente. Já em relação a idas ao cinema, a frequência é irrisória; a leitura dos

jornais é realizada por quase 50% dos homens contra 23% das mulheres; a leitura de

livros apresenta taxas muito baixas; é igualmente baixa a percentagem de idosos que

passam férias fora da sua residência habitual, apontando como principal motivo

justificativo a falta de recursos financeiros; a maioria também não pratica exercício

físico... Assim, “estes valores, que reflectem uma participação sociocultural relativamente baixa entre a população com mais idade, contrastam com outras

formas de convívio com amigos ou familiares (...) a maior parte dos homens e mulheres

respondeu ter visitado ou ter sido visitado por amigos ou familiares (...) contudo não se

pode descurar os cerca de 14% de homens e 16% de mulheres que afirmaram tal não ter

acontecido (idem, p.27/28). É por este motivo que se considera a solidão entre os idosos como um problema grave e actual!

Em relação às condições de conforto verifica-se uma melhoria em termos gerais no que

respeita às infra-estruturas básicas dos alojamentos. No entanto, os agregados com idosos continuam a apresentar resultados que reflectem piores condições quando

comparados com a população em geral.

Diz-nos este relatório que “a população idosa acumula baixos níveis de instrução, baixos

rendimentos, isolamento físico e social, baixa participação social e cívica, a que se

juntam condições de saúde, habitação e conforto desfavoráveis” (INE, 2002).

Acrescenta-nos Pimentel que “a crescente instabilidade das formas familiares, a

indisponibilidade da família para dar apoio efectivo aos idosos, (em especial aos

dependentes), a crise dos sistemas de protecção social, a despersonalização das

relações sociais, agravam as condições de vida dos mais velhos, excluem-nos dos

sectores produtivos, da sociedade, e, consequentemente, remetem-nos para uma

posição e um estatuto social desfavorável” (2001: 51).

Obviamente que o objectivo desta análise foi evidenciar as fragilidades associadas a este

grupo, por via de regularidades estatísticas evidenciadas. Nem todos os idosos viverão

em condição de pobreza ou exclusão. Nem todos acumularão todas as fragilidades

detectadas... No entanto, para muitos as respostas do Estado e do apoio formal ainda

servirão como o único garante de uma velhice digna.

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1.4. Alternativas possíveis ao modelo de família alargado: o papel do Estado na institucionalização da velhice – o exemplo da emergência dos lares de idosos

A evidência dos dados quantitativos, relativos às estruturas e dinâmicas populacionais,

facilita-nos a tomada de consciência e um (re)conhecimento mais notório dos fenómenos

sociais, por forma a estudá-los, definindo planos de intervenção contundentes com os

diagnósticos elaborados. Por outro lado, torna-se necessário perceber o que está por trás da linguagem dos números e das classificações administrativamente formuladas (Desrosières, 2000)17.

Assim, e relativamente à primeira questão, podemos afirmar que o processo de

envelhecimento em curso, pelo seu carácter actual, visível e galopante, se reveste

simultaneamente de uma certa problematicidade e complexidade (Esteves, 2003). No

entanto, esta complexidade é, não raro, reduzida à emissão de respostas que se

destinam às manifestações dos problemas e não tanto às suas causas. De igual modo se

enviesam essas soluções, porquanto são procuradas sem se identificar, de forma total e

multidisciplinar, as causas desses problemas, tratando-se assim de pseudo-soluções.

Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que vivemos numa sociedade longevital, apesar das significativas diferenças na distribuição mundial dos ganhos em termos de

esperança de vida. Este facto faz-nos pensar na forma como vamos cuidar das gerações dos mais velhos que tendem a ser mais instruídos, mais urbanos, mais

independentes e informados... O que fazer com os idosos que envelhecem na cidade?

Como construir respostas que contrariem o isolamento, tantas vezes acentuado pela

própria natureza das habitações em altura que mais parecem “câmaras de morte”? Que

soluções encontrar para os novos velhos que, apesar de toda a evolução da medicina,

não conquistaram resiliência biológica face às doenças? Como garantir experiências

prazerosas nesta etapa da vida, assegurando aos idosos o acesso a recursos culturais,

17 A este propósito, e se as estatísticas nos procuram traduzir com precisão e objectividade a realidade em estudo, somos obrigados a reflectir sobre a legitimidade das próprias regras a que a estatística está sujeita, bem como sobre a fiabilidade do conhecimento que através delas se produz. Assim mesmo se entende que esses instrumentos estatísticos sejam produto de uma evolução histórica atravessada de hesitações, retraduções, conflitos de interpretação... e que se possam ir aperfeiçoando à medida que não vão sendo capazes de resistir às críticas. A sistematicidade do debate acerca da “razão estatística” é, assim, condição sine qua non para a busca de caminhos inovadores em prol do desenvolvimento do conhecimento. A própria ciência será, assim, o produto de posições flutuantes através do tempo, de interacções entre o mundo do saber e do poder, do resultado de metamorfoses e de sucessivos debates, permanentemente intermináveis e inconcludentes. A “autoridade” da ciência que se pretende reivindicar de incontestável e universal, não deixa de não ser apenas uma ilusão... (Desrosières, 2000).

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económicos, relacionais... e a conhecimentos e experiências que lhes permitam desfrutar

do património cultural mais valorizado e enriquecer as suas competências? Como

assegurar o cumprimento do conceito de envelhecimento activo, criado pela OMS em

1997, que assenta no princípio de que os idosos devem poder permanecer integrados e

motivados na vida laboral e social. A este propósito basta atentarmos às contradições da própria política social que embora defenda um envelhecimento activo, cria, de forma paradoxal, uma política de emprego claramente anti-gerôntica e excludente,

no que toca a esta população! De igual forma, como é que o tipo de actuação político-

institucional promove a manutenção de redes de relacionamento intergeracionais, o

reconhecimento da dignidade através da implicação no funcionamento das instituições e

da prestação de serviços comunitários?

Na verdade, como estas, tantas outras perguntas similares poderiam ser formuladas,

sendo que todas elas nos levam a reflectir sobre o mesmo aspecto: para reconhecer a

problemática dos idosos em toda a sua amplitude, pugnando por uma sociedade solidária

e com rosto humano, não basta analisá-la apenas de um ponto de vista meramente

estatístico. Não basta analisar de forma inquestionável as classificações administrativas,

designadamente acerca do envelhecimento, cuja representação tradicional toma, nas

sociedades contemporâneas, como limiar etário os 65 anos (curiosamente há partes do

planeta onde a esperança de vida nem atinge este limiar, fazendo-nos tomar consciência

da visão claramente etnocêntrica que subjaz a esta construção!). Estabelecendo-se este

patamar, ignora-se a diversidade de condições reais e de performances ao nível biológico, físico e psicológico dos indivíduos.

Acresce que a análise relativamente genérica que formulamos sobre alguns indicadores,

não nos deve permitir, contudo, absolutizar esses números, uma vez que nem sempre ilustram com fidelidade as particularidades dos contextos em análise, dadas as

assimetrias mundiais, regionais, distritais… Como chegar até uma média de esperança de

vida mundial de 68 anos, quando em alguns países nunca se chega a atingir essa idade?

Será legítimo servirmo-nos de uma visão claramente etnocêntrica para estabelecermos

comparações entre países com níveis de crescimento económico discrepantes? Os

conceitos, tal como o de “desenvolvimento económico” têm que ser percebidos nesta

dinâmica de construção dos próprios conceitos, a qual não é indiferente à conjuntura

económica, política, social... do contexto a partir do qual estes indicadores emergem.

Assim sendo, universalizar os fenómenos não será certamente a forma mais adequada para a sua verdadeira compreensão.

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Às análises estatísticas escapam, muitas vezes, a história, as vivências, as dinâmicas culturais e características sócio-económicas dos contextos e objectos em análise.

Daí que as soluções construídas em resposta aos diagnósticos devam contemplar, “a

diversidade e a especificidade de cada pessoa, de cada comunidade, de cada região”

(Pereira, 1999). Do mesmo modo, importa perceber o que está por trás de formas de intervir que, ainda que pouco reflectidas ou ditas espontâneas, trazem subjacente algum

tipo de visão/representação/perspectiva socialmente construída (algumas vezes

tendentes à naturalização e individualização dos fenómenos) e certamente moldada por

um conjunto de lógicas diversas.

Assim, para reflectir criticamente sobre a qualidade e pertinência das respostas sociais de tipo “lar”, ou outras, torna-se necessário institucionalizar a prática da vigilância e autoreflexividade permanente, por forma a desenvolver modos de intervir

inspirados em problemáticas teóricas, podendo estes ser susceptíveis de verificação de

acordo com procedimentos sistemáticos. Mas as próprias problemáticas teóricas que

devem informar a acção, não são ingénuas, nem estáticas. Trazem consigo concepções,

lutas de poder, ideologias, reflectem os valores predominantes numa determinada

sociedade e num determinado momento histórico. Porque são socialmente construídas

podem ser aperfeiçoadas, não fosse a complexidade do social moldada por este vaivém

de re(construções)...

Vimos atrás que embora a velhice não seja homogénea, há motivos que nos levam a

acreditar que esta categoria social está associada a alguns factores de vulnerabilidade. Nesta sequência, as redes de apoio social vêm contribuir, do ponto de

vista afectivo ou instrumental, para o bem-estar dos idosos. Como nos refere Paúl, “o

apoio psicológico está ligado à satisfação de vida e ao bem-estar psicológico e o apoio

instrumental pressupõe a ajuda física em situações de diminuição das capacidades

funcionais dos idosos e perda de autonomia física, temporária ou permanente” (1997:

92). Elas podem dividir-se em redes de apoio informal, constituídas pela família, amigos

e vizinhos do idoso e redes de apoio formal, que auxiliam/substituem a família na sua

função de protecção da velhice, onde se incluem os serviços estatais de segurança social

e os organizados pelo poder local, a nível de concelho ou freguesia, tais como os lares,

serviços de apoio domiciliário, centros de dia e centros de convívio.

Apesar do papel da família ter vindo a modificar-se, como nos refere Fernandes (1997),

com a entrada da mulher no mundo do trabalho, aumento das taxas de divórcio, descida

da taxa de fecundidade, aumento do número de nascimentos fora do casamento, esta

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instituição ainda é, pelo menos na sociedade portuguesa, o centro da tradição da

responsabilidade colectiva pela prestação de cuidados. É na família que a maior parte dos idosos procura apoio para solucionar as suas necessidades afectivas e instrumentais.

Como se sabe, é a mulher que assume o papel preponderante neste processo. Ao

acumular o papel de cuidadora principal com todos os outros papéis sociais, é possível

que venha a sentir-se sobrecarregada, pondo em causa a sua estabilidade pessoal,

profissional e familiar. De salientar ainda o facto deste trabalho não ser reconhecido nem

recompensado em termos materiais. Assim, “se a afirmação da mulher no espaço público

e a sua postura cada vez mais forte em termos sociais e económicos vem pôr em causa

os seus papéis tradicionais (de mãe e dona de casa) e diminuir drasticamente o seu

envolvimento nas tarefas ligadas à reprodução social, afigura-se como um contra-senso

esperar que a mesma abdique do espaço conquistado para reassumir esse papéis. A

participação da família como único garante do bem-estar do idoso está assim

comprometida. Daí que a aposta em respostas coordenadas que se baseiem na complementaridade entre os vários actores sociais, passe a ser uma via para que a

família se envolva, prestando um apoio que não comprometa a sua estabilidade, mas que

complemente, essencialmente a nível expressivo, as respostas institucionais” (Pimentel,

2001:94).

O apoio de amigos e vizinhos é igualmente importante, não obstante e com o avançar

da idade estas relações se irem perdendo. Como refere Wenger, “as escolhas de amigos

são mais fluídas e livres do que as dos vizinhos que, apesar de tudo, se baseiam mais na

relação de proximidade e instrumental” (cit in Paúl, 1997:108). Contudo, há que

considerar que ambos, amigos e vizinhos, contribuem para o alargamento da rede

relacional dos idosos, e assim para a sua independência e bem-estar psicológico.

No entanto, o apoio da família e dos amigos e vizinhos nem sempre é suficiente para

atender à problemática dos idosos e às várias formas de envelhecer, sobretudo no contexto de uma sociedade pós-industrial. Neste sentido, e na sequência do

reconhecimento da necessidade de intervir face ao problema social da velhice, coube ao Estado criar respostas de apoio a este grupo populacional, nomeadamente por via

de respostas institucionais.

Se até ao séc. XIX este apoio era garantido pela família, pela caridade de alguns particulares ou por instituições religiosas, nomeadamente as Misericórdias, o mesmo

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já não acontece nos dias de hoje devido às mudanças estruturais que ocorreram na

família. A partir de meados do séc. XIX, começaram a surgir as primeiras instituições,

nomeadamente os asilos cujo objectivo era atender os problemas deste grupo

populacional. No entanto, é só após a II Guerra Mundial que se constata a generalização

dos seguros obrigatórios e dos sistemas de segurança social, como forma de minimizar

os problemas de equilíbrio e de coesão social que afectavam os operários, incapazes de

produzir e garantir a sua subsistência. O Estado foi assumindo, assim, um papel cada vez

mais activo e interventor, através da criação e apoio a todo o tipo de serviços e

equipamentos, de modo particular para os idosos.

Ao procurar traçar uma síntese sobre a evolução da protecção social em Portugal, Maia

(1985) deixa perceber que a reforma é, desde logo, uma conquista importante e recente na sociedade portuguesa. De facto, foi no contexto da Revolução Industrial na

Europa, ensombrado por forte precariedade e tensões, que quer o movimento mutualista,

quer o movimento associativo em Portugal, sobretudo de iniciativa operária, se começou

a impôr, procurando, de alguma forma, fazer face aos riscos de doença, morte,

desemprego, acidentes de trabalho, invalidez, velhice, que até meados do século XIX não

tinham qualquer cobertura. Ainda assim, o carácter limitado destas acções de protecção

e a insuficiência das respostas assistenciais acabou por permitir, umas décadas mais

tarde, o surgimento da Caixa de Aposentações dos Trabalhadores Assalariados, em

1896, sob a administração da Caixa Geral de Depósitos e Instituições de Previdência.

Esta e outras caixas não viriam a funcionar, sendo que apenas em 1919 surge o regime

dos primeiros seguros sociais obrigatórios, o qual também estaria voltado ao fracasso

dado que nem as entidades patronais, nem os trabalhadores aceitavam as condições

instituídas.

Uns meses após a Constituição Política de 1933 foi publicado o Estatuto do Trabalho18

Nacional que procurou definir, entre outras coisas, a organização das instituições de

previdência, o alcance das mesmas ao nível da protecção aos trabalhadores, assim como

o seu financiamento, estando o Estado excluído de qualquer responsabilidade. Claro está

que só com a transição para a organização de um sistema de segurança social, na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, a reforma passa a ser entendida como um direito real e generalizável ao conjunto da população portuguesa.

18 Decreto-Lei nº. 23 048, de 23 de Setembro de 1933, sendo de destacar que aos representantes das duas partes contribuintes (entidades patronais e trabalhadores) cabia de direito a administração das instituições de previdência, excluindo o Estado de responsabilidades de financiamento e administração directa das mesmas.

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Segundo Lenoir (1979) “hoje, os sistemas de reforma e as instituições constituem uma nova forma de cuidar, caracterizada pela medição anónima entre gerações por parte de instâncias que se impõem com uma lógica própria, implicando a criação de

instituições e de agentes treinados e especializados no tratamento da velhice” (in

Pimentel, 2001:65).

O Estado assumiu-se como o grande promotor de bem-estar social, com o objectivo

de proporcionar melhores condições de vida às pessoas idosas, principalmente, àquelas

cujas redes de solidariedade primária são inexistentes ou ineficientes. Surgiu, então, um

conjunto de serviços e equipamentos diversificados, de modo a abranger as

diferentes necessidades e carências – redes de apoio formal.

Os equipamentos de maior implementação têm sido os Lares de Terceira Idade.

Estes constituem um dos equipamentos mais antigos do mundo, sendo que o

internamento definitivo do idoso foi durante muito tempo a única hipótese de apoio formal.

Apesar dos asilos e os hospícios que albergaram, durante muito tempo, os indigentes,

mendigos e velhos terem sofrido profundas alterações nos seus modos de

funcionamento, população acolhida e tratamento das problemáticas envolvidas, percebe-

se, nos dias de hoje, que aos lares de idosos ainda está associado um valor simbólico marcado pela imagem negativa do asilo. Como nos refere Fernandes, “a

segregação social a que estão sujeitos aqueles que se submetem, voluntariamente ou

não, a uma instituição que possui as características específicas para agregar pessoas

acima de determinada idade, os idosos, contribui para a construção e o reforço de uma

identidade do que é ser velho” (1997: 146).

A propósito dos lares, Paúl (1996) tenta fazer-nos um enquadramento histórico-social destas instituições. Refere-nos, por exemplo, que nos anos 40 estes equipamentos,

designados por Hospitais Menores ou Asilos, tinham uma lotação prevista de 220 pessoas que se distribuíam por imensas camaratas. Os critérios de admissão,

relativamente às condições de pobreza e abandono, eram atestados pelas

Conferências S. Vicente de Paulo, Organização Nacional de “Defesa da Família” ou pelo

Pároco. As regras eram bastante rígidas e os castigos bastante severos para quem

não as cumprisse. No entanto, volvidas várias décadas, muita coisa ainda permanece

“num peso de séculos, difícil de ultrapassar” (1996: 61).

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Apesar das alterações mais profundas, relacionadas com a lotação dos espaços, que

reduziram para menos de metade a população acolhida; com a quantidade e qualidade

dos serviços, como as refeições, limpeza e cuidados pessoais e com as normas de

conduta, bem mais livres e fluídas, ainda muito se mantém. De acordo com Paúl, “ainda foi feito muito pouco para enriquecer o quotidiano sócio-recreativo e criar alternativas ocupacionais para estes idosos, excepto no que se refere a acções

pontuais, festas, comemorações e férias” (1996: 63). As rotinas e relacionamentos ainda são muito centradas na inactividade, enclausuramento, monotonia, passividade (sobretudo dos mais dependentes), escassas trocas verbais, visitas quase inexistentes...

No entanto, refere-nos Pimentel (2001) que devido à inexistência de alternativas e à

ausência de capacidade reivindicativa, quer da parte dos idosos quer da família, assiste-

se a algum desinteresse pelo bem-estar do idoso. Assim, a institucionalização surge, normalmente, para a família ou para o idoso, como a última alternativa . No entanto,

os lares, “… depois do aumento de 600 (1994) para 657 (1995), conheceram um salto

quantitativo de grandes proporções entre 1995 (657) e 1996 (895), situando-se o seu

número em 848 em 1998, depois da filtragem ocorrida entre 1996 e 1997 (em que se

contabilizaram 726) ” (Esteves, 2003:30).

De acordo com Pimentel, a consciência de que este internamento implicava para muitos

um corte radical e penoso com o seu meio, tendo como consequência situações de

desespero e, ainda, a incapacidade das grandes estruturas de apoio, desumanizantes e

comportando custos elevados, originou a criação de um conjunto de serviços de

proximidade. Neste sentido, “importa salientar a crescente diversidade de medidas e de respostas concretas, de maior proximidade, que têm sido criadas no sentido de

facilitar o quotidiano dos idosos e dos seus familiares e de proporcionar um conjunto de

serviços de âmbito comunitário e domiciliário que retardem ou evitem o recurso à

institucionalização” (Pimentel, 2001:66).

Assim, entre 1991 e 1998 assistiu-se a uma evolução gradual do número de equipamentos sociais e serviços nomeadamente, no sector dos serviços (Apoio

Domiciliário, Centro de Dia e Centros de Convívio), com incidência nas respostas de Apoio Domiciliário e Centro de Dia, cujo crescimento rondou os 27,8%, como se pode

constatar no quadro abaixo apresentado (I.N.E., 1999).

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Evolução de Equipamentos Sociais e Serviços, Continente, 1991-1998

Anos Lar ResidênciaApoio

DomiciliárioCentro Dia

Centro Convívio

Acolhimento Familiar

1991 566 22 575 811 171 0

1992 572 25 607 852 180 0

1993 591 32 671 941 185 0

1994 600 51 784 951 203 0

1995 657 56 921 1054 222 38

1996 895 56 1069 1148 237 29

1997 726 55 1192 1213 282 27

1998 848 56 1329 1314 287 52

Fonte: Direcção Geral de Acção Social (INE, 1999:61)

Apesar desta evolução e diversidade de serviços, o que se verifica é que estes não são

suficientes para atender a todas as situações. As listas de espera para os Lares são extensas e os outros serviços são ainda pouco conhecidos, sendo que a sua eficácia por vezes não é das melhores, isto porque depende do envolvimento de outros

agentes, nomeadamente, a família, vizinhos e amigos. Não obstante, é de salientar que todos os serviços referenciados obrigam a uma articulação e complementaridade entre os agentes (serviços de saúde, familiares,...).

Assim, alguns factores tais como o progressivo envelhecimento da população associado

à alteração da estrutura familiar, mobilidade geográfica, degradação das condições de

habitação, a desadequação das casas às necessidades dos idosos, continuam a ser

factores que provocam insuficiências, nomeadamente, no que diz respeito a garantir a

manutenção do idoso no seu domicílio.

Refere-nos Pimentel (2001) que devido à inexistência de alternativas e à ausência de

capacidade reivindicativa, quer da parte dos idosos quer da família, assiste-se a algum

desinteresse pelo bem-estar do idoso. Assim, a institucionalização surge, normalmente, para a família ou para o idoso, como a última alternativa.

Deste modo, vários são os factores que determinam a opção pelo internamento,

nomeadamente, os problemas de saúde e a consequente perda de autonomia, o

isolamento, a inexistência de uma rede de interacções que facilite a integração social e

familiar do idoso, a falta de recursos económicos bem como habitacionais. É um facto

que o internamento definitivo das pessoas idosas implica uma ruptura com o quadro de

vida do quotidiano, sendo uma situação inevitável (Pimentel, 2001).

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Torna-se então necessário perceber quais os factores que estão na base da recusa ou

relutância em aceitar a “ajuda” dos vários tipos de serviços da comunidade, muito

particularmente dos lares de idosos.

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2. O Envelhecimento enquanto objecto interdisciplinar

2.1. Abordagem introdutória às perspectivas tradicionais de envelhecimento versus gerontologia crítica

Analisar o fenómeno do envelhecimento pressupõe, desde logo, entendê-lo como um

fenómeno social total, isto é, um fenómeno envolvido em múltiplas dimensões de

análise: demográfica, sócio-económica, psicológica, biológica, sociológica, antropológica,

legal… O próprio envelhecimento em contexto de lar não pode ser analisado como um

fenómeno em si mesmo, alheio às circunstâncias societárias que o condicionaram, nem

as leituras sobre o processo de envelhecimento num lar podem ser realizadas se não

tomarmos em conta a diversidade de enfoques de natureza psico-social que lhe estão

associadas. Do ponto de vista de Barenys (1993), alguns dos enfoques da sociologia e da

psicologia social acerca do envelhecimento são triviais, não devendo, por isso, ser

considerados como teorias: “não constituem um corpo de preposições, nem sequer

mediamente articulado, acerca do que é envelhecer na nossa sociedade industrial”

(1993:19). Férnandez-Ballesteros (2004) reforça esta ideia de que nenhuma teoria isolada

é capaz de explicar adequadamente o envelhecimento, portanto “nenhuma teoria

biológica, psicológica ou social, em exclusivo, permitirá dar conta do produto interactivo e

talvez sinergético das mudanças complexas [que ocorrem ao longo do envelhecimento] ”

(2000: 43). Por serem abordagens por vezes descritivas, por vezes parcelares, não

reúnem isoladamente a diversidade de elementos necessários para fazer leituras sobre o

envelhecimento. Mesmo assim iremos abordar alguns desses enfoques, claramente

complementares, certos de que esta leitura do fenómeno nunca fica acabada, mas

convictos, igualmente, que seria impraticável estender a análise a todas as perspectivas

possíveis.

Dando início pelas abordagens de carácter biológico, surge-nos, de imediato, uma

questão crucial: porque é que o indivíduo envelhece? Que mecanismos biológicos

predispõem esse processo de decrepitude física? Férnandez-Ballesteros (2004) chama-

nos atenção para dois processos dificilmente separáveis no envelhecimento: o declive

fisiológico e a maior frequência de doenças. Fazendo um apanhado das principais teorias

biológicas do envelhecimento, salienta as teorias genéticas, as teorias celulares, as

sistémicas e as teorias dos acontecimentos vitais biológicos.

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

As primeiras chamam-nos a atenção para as bases genéticas do envelhecimento,

considerando a existência de genes programados que determinam quanto é que um

indivíduo vai viver. A perspectiva da Biologia Evolucionista permite determinar que cada

espécie alcança uma longevidade máxima. Supõe-se que essa esperança de vida está

geneticamente determinada, demonstrando tendência para evoluir. Da mesma forma se

assume a possibilidade de erros genéticos que actuam sobre o funcionamento celular

patogénico, interferindo no normal funcionamento de estruturas e funções. O próprio ADN

do sujeito diminui ao nível da sua capacidade de transcrição da informação e de

reparação dos vários sistemas biológicos. A acumulação de agentes ambientais nocivos

pode produzir mutações e, assim, dano genético. De uma forma bastante simples

Barenys, em termos genéticos, refere-se a uma “deterioração do ADN nuclear por efeito

das radiações naturais, por acumulação de erros nas replicações celulares ou por ocasião

da formação das proteínas necessárias para a manutenção dos tecidos orgânicos”

(1993:18).

As teorias celulares assentam no pressuposto de que as células não se duplicam

eternamente, perdendo os cromossomas o fragmento da repetição, sendo que se

convertem em instáveis e não operativos. Dentro destas, as teorias dos radicais livres

supõem que o mecanismo oxidativo celular e algumas sínteses são os responsáveis pela

produção de radicais livres. A teoria da desdiferenciação celular afirma que através do

tempo as células perdem a habilidade de especialização e, assim, a sua necessária

diferenciação. Por seu lado, Barenys avança com a hipótese de que, a nível celular “há

um possível desgaste de origem metabólico com diferentes causas: excesso/falta de

oxigénio, falta de substâncias nutritivas, acumulação de toxinas”(idem).

A propósito das teorias sistémicas, Férnandez-Ballesteros (2004), afirma que “existem

teorias biológicas que comprometem os grandes sistemas de regulação biológica: o

sistema nervoso, o sistema endócrino, o sistema imunológico e até mesmo o equilíbrio

intersistémico” (2004, p.45). Com o tempo, verifica-se um declive hormonal prejudicial

para os diferentes sistemas do organismo. Por fim, as teorias dos acontecimentos vitais biológicos defendem como principal tese a ideia de que a “acumulação de eventos

vitais biológicos (traumatismos craneanos, anestesias, etc.) produz stress nos sistemas

vitais e, a longo prazo, a falha desses sistemas” (idem).

Ainda a respeito das teorias ou pressupostos de natureza biológica, Shock adverte que “a

busca de uma causa única a nível orgânico da senescência está tão condenada ao

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fracasso como a da patologia que a certa altura pretendia que as doenças infecciosas

tivessem agentes únicos e claramente detectáveis” (cit in Barenys, 1993, p.19).

Paúl, procurando defender que mesmo num processo de envelhecimento primário a

probabilidade de morrer aumenta com a idade cronológica, apresenta, com base nos

pressupostos de Yates, oito factores que podem contribuir para aumentar ou diminuir a vulnerabilidade dos idosos. Assim, aumentam a vulnerabilidade dos idosos os

resíduos metabólicos, radicais livres e acumulações entrópicas; os acidentes e stressores

independentes da idade; as doenças e a situação de incapacidade. Poderá aumentar ou

diminuir a vulnerabilidade o ambiente físico (clima, atitude, poluição da água e do ar,

radiações); o ambiente social (família, amigos, cultura, economia, religião, envolvimento

social); o estilo de vida (dieta, exercício, drogas, sono, actividade sexual, lazer,

actividades de risco); experiência (aprendizagem, sabedoria, comportamento adaptativo,

emprego, rendimento) e a atitude ou perspectiva de vida. A autora acrescenta e reforça

que “mesmo quando partimos de um perspectiva biológia é inevitável, como acabamos de

ver, integrar variáveis psicológicas e sociais do ambiente do indivíduo na explicação do

processo de envelhecimento” (Paúl, 2005, 28/29).

Do ponto de vista da análise sociológica, destacam-se alguns contributos

relativamente às leituras possíveis face à temática específica do envelhecimento e que

ajudam a clarificar a construção social deste fenómeno. Iremos, pois, destacar a

abordagem estruturo-funcionalista, o enfoque da economia política, a perspectiva do

interaccionismo simbólico e a teoria da subcultura da velhice.

O paradigma estruturo-funcionalista, sobretudo assente na ideia de consenso, sugere

que “a idade actua como um nivelador das diferenças de classe e estatuto entre os

idosos”(Kehl e Fernández, 2001, p.145). Parte de um sistema social em que tudo tem um

lugar específico. Assim, quer a teoria do desligamento (“desengache”), centrada na

ideia de que os indivíduos se têm que afastar progressivamente dos seus papéis para que

a sociedade continue a funcionar, quer a teoria da actividade, salientando a necessidade

de os idosos se manterem activos e com isso integrados na sociedade, se enquadram

claramente neste paradigma. Na verdade, o que está em causa, ora na situação de

afastamento, ora na situação em que se veicula a manutenção da actividade, é um critério

funcional, garantindo que a sociedade continue a funcionar adequadamente.

Definido pelos seus fundadores, “o desligamento é um processo inevitável no qual

muitas das relações entre uma pessoa e outros membros de uma sociedade resultam

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difíceis e a qualidade das que permanecem é alterada”(Cumming e Henry, in Kehl e

Fernández, 2001, p.145). Propõem, ainda, que o declinar biológico se traduz numa

dificuldade em manter contactos e desempenhar papéis sociais.

Nesta perspectiva de integração funcional dos indivíduos nos sistemas sociais, a

própria sociedade e os indivíduos se encarregam, à medida que envelhecem, de criar

mecanismos de afastamento e, quando não respeitam esta tendência natural, vão

certamente dificultar a adaptação ao processo de envelhecimento. Este processo de

desligamento progressivo traduz-se, assim, no “método através do qual a sociedade

prepara os seus membros para que a chegada do inevitável não perturbe o

funcionamento ordenado da sociedade” (Kehl e Fernández, 2001, p.145). A reforma

funcionaria, assim, como um desses mecanismos facilitador do afastamento do indivíduo

da sociedade e dos papéis até então desempenhados. Ballesteros (2000) acrescenta

ainda que esta desvinculação tem como principal finalidade preparar o indivíduo para a

morte e preparar a substituição geracional. Barenys, ao abordar esta teoria traduz a ideia,

ainda mais individualizada, de que “o idoso pouco a pouco e quem sabe

inadvertidamente, presta cada vez menos atenção e interesse ao cenário social. Em certa

medida desliga-se do tecido social, limita a sua participação, se auto-marginaliza” (1993:

21).

Procurando desenvolver uma análise crítica a esta teoria, Shanas, Towsend et al (1968)

consideram que “não existe a expressão funcional de velhice como um papel social, mas

a actuação de forças sociais que mantêm algumas pessoas idosas integradas enquanto

que marginalizam outras e estigmatizam a velhice como fenómeno social” (in Kehl e

Fernández, 2001: 146), porquanto as estruturas políticas, económicas e sociais têm um impacto na construção e experiência da velhice. O afastamento dos indivíduos

poderá dever-se, então, a constrangimentos de natureza social e ao estado de saúde e

não ser entendido como um acto voluntário, uma escolha pessoal ou um comportamento

pseudo-universal. Os mesmos autores chamam, ainda, a atenção para o facto de que

tornar esta teoria desejável poderá significar uma política de indiferença face aos

problemas dos idosos. Da mesma forma, o desligamento e a falta de compromisso dos

indivíduos, ao longo da velhice, não são inevitáveis, reflectindo muitas vezes padrões de

interacção social que algumas pessoas já haviam mantido durante toda a vida.

A teoria da actividade, disputada quer pela psicologia, quer pela sociologia, envereda

por uma perspectiva diferente na explicação do envelhecimento. Um dos principais

defensores desta teoria, Havighurst (1963) argumentava que “para conseguir um

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envelhecimento satisfatório é necessário manter na velhice os padrões de actividade e os

valores típicos da idade madura” (idem), como se a felicidade se conseguisse através da

negação da própria velhice, fazendo perdurar tudo o que caracterizou a fase de vida do

indivíduo anterior à da velhice. Num estudo que apresenta, aplicado a sujeitos entre 50 e

90 anos, Havighurst, conclui que as pessoas que melhor se adaptam ao envelhecimento

são as que mais actividades realizam, mantendo ou modificando as suas tarefas e papéis,

de acordo com os seus gostos (Ballesteros, 2000). Num esforço de síntese relativamente

às principais teses desta teoria, Moragas refere que: ”a redução das actividades laborais

do idoso (reforma) deve substituir-se por actividades compensatórias; quanto maior for o

número de actividades assumidas pelo idoso, melhor será a sua adaptação à perda das

suas obrigações laborais normais” (cit in Barenys, 1993: 20).

Apesar de haver autores, situando-se numa perspectiva bastante optimista, que

defendem que ao longo do envelhecimento o nível de actividade se mantém e persiste,

Kehl e Fernández (2001) desenvolvem uma crítica a esta mesma perspectiva

sustentada no facto de entenderem quase utópico e irrealista que os idosos mantenham esse nível de actividade como se as transformações biológicas não se verificassem. Por outro lado, alertam para a situação de afastamento do trabalhador

idoso do emprego produtivo, por constrangimentos das estruturas sociais, o qual

caracteriza a principal actividade da idade adulta.

Nas sociedades contemporâneas, a felicidade está muito associada à produção de

rendimento e à utilidade para os outros, traduzindo, as actividades desta natureza, o

sentimento de que são um imperativo intransponível para um envelhecimento satisfatório.

Neste seguimento, a inexistência de um trabalho produtivo e socialmente válido

transforma o idoso num ser pouco solidário e condú-lo ao seu próprio isolamento e

inutilidade. Não se pondera, pois, a realização de outras actividades que, da mesma

forma, o mantenham activo e lhe satisfaçam outros gostos e interesses.

De facto, até aos anos 60, as concepções dominantes sobre a velhice eram de natureza pseudo-universais, tratando-a como fenómeno homogéneo, centradas em

conceitos como desligamento e actividade. Apagavam-se as diferenças e ignorava-se o

efeito das estruturas e sistemas sociais na origem das desigualdades sociais. “O

problema não era a reforma, a pobreza, as doenças relacionadas com a idade ou o

isolamento social; estas eram as condições que lhe pareciam “naturais”. Sendo naturais,

eram aceites pelos investigadores como fazendo parte da vida dos idosos” (Lynott and

Lynott, cit in Phillipson, 2000:15).

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A teoria do desligamento, como já referenciamos, centrava-se na ideia de que o

envelhecimento seria caracterizado por um desencontro inevitável, fruto de um

decréscimo de interacção entre a pessoa idosa e os outros, do sistema social ao qual

pertence, havendo assim uma maior preocupação com o próprio.

Apesar de ser predominantemente psicológica, esta teoria teve algumas virtualidades

quando procurou explorar a relação entre o indivíduo e os aspectos sociais da idade, pelo

facto de ter estimulado a emergência de teorias complementares e alternativas, apelando

a conceitos pertencentes às ciências sociais, e por ter permitido que as teorizações

convencionais na gerontologia se tornassem, elas próprias, parte do problema/objecto da

investigação, criando margem para questionamentos e o surgimento de uma gerontologia

crítica.

Phillipson (2000) procura justamente abordar a questão da emergência e do

desenvolvimento da gerontologia crítica, identificando teorias e correntes que se

enquadram nas perspectivas críticas. Para tal, apresenta três correntes teóricas que,

desde os anos 90, têm contribuído para a construção dessa gerontologia crítica,

debruçada sobre a construção do conhecimento acerca do processo de envelhecimento

nas nossas sociedades.

De acordo com a sua perspectiva, os elementos críticos desta gerontologia provêm de

três áreas: (1) economia política – abordando a problemática das desigualdades

sociais, ligadas à questão da idade e aos constrangimentos e divisões que surgem

associados à classe, género e etnicidade; (2) perspectiva humanista – que se vai

centrar na questão da existência humana e do sentido da vida para os idosos; nas

dúvidas e fragilidades que esta fase da vida comporta e que dominam as rotinas e as

relações e (3) perspectiva biográfico/narrativa – salientando a imagem do idoso

enquanto sujeito que subjectivamente constrói o seu “eu”, a sua identidade, através da

interacção com os outros, ao longo do curso da sua vida.

Por outro lado, pretende salientar que “no centro da ideia de uma gerontologia crítica está

a ideia da idade como um acontecimento socialmente construído (...) a ideia de vidas

socialmente construídas é talvez o tema-chave da gerontologia crítica, com diferentes

pontos de destaque dependendo da abordagem utilizada” (Phillipson, 2000:14).

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O autor afirma que “ das três perspectivas se destaca a necessidade do

“empowerment”, quer através da transformação da sociedade (por exemplo, através da

redistribuição do rendimento e riqueza), quer através do desenvolvimento de novos rituais

e símbolos que facilitem as mudanças ao longo do curso de vida (Komimksy, cit in

Phillipson, 2000:14). O autor tenta, assim, colocar-nos em condições de entender uma

perspectiva crítica em termos de “empowerment”, sendo que esta noção está

obviamente, associada ao reforço das capacidades e à conquista de poder por parte das pessoas e grupos socialmente desfavorecidos ou vulneráveis.

Neste enquadramento, alerta-nos para o facto de o Estado e de a economia

influenciarem, com as suas determinações e políticas, as experiências de

envelhecimento, da mesma forma que estas são influenciadas pelo papel (eis) que o

indivíduo activamente constrói, designadamente por via da relação recíproca que

estabelece entre ele e a sociedade.

No que respeita à economia política19, dir-se-á que ela corresponde “ao estudo da

interrelação entre estrutura política, estrutura económica e estrutura social ou, mais

especificamente, entre as organizações governamentais, o mercado de trabalho, as

classes sociais e os grupos de estatutos” (Kehl e Férnandez, 2001: 147). Esta

perspectiva desenvolveu-se no contexto da crise dos anos 70, a qual implicou cortes nos

gastos públicos, designadamente com os idosos, dando origem a uma mudança de

percepção no que concerne à população idosa. Assim, a abordagem alternativa tomada

em consideração ia no sentido de considerar os idosos como um grupo socialmente

construído, mais que uma construção biológica. Este modelo da economia política pôs em causa a ideia de idosos enquanto grupo homogéneo, destacando a existência de

diferentes experiências da velhice de acordo com a classe social, género, etnia, assim

como destacou o papel do Estado enquanto elemento decisivo na gestão das relações

entre indivíduo e sociedade e na distribuição equilibrada dos recursos, no sentido de

contrariar as desigualdades sociais. A preocupação central gira em torno do acesso aos recursos económicos, sociais, culturais que permitam viver a velhice com qualidade. O envelhecimento não pode, pois, dissociar-se dos processos e estruturas

que configuram a sociedade industrial. Nesta perspectiva, muitas das experiências

relativas a idosos podiam ser vistas como produto de uma divisão particular do trabalho e

da estrutura de desigualdade, em vez de uma parte natural do processo de

19 “A aproximação teórica da economia política foi aplicada à gerontologia social por alguns sociólogos que interpretam a velhice como uma construção social em termos da sua dimensão tanto material como ideológica (Guillemard, 1981, 1983; Walker1981; Phllipson, 1982; Fennell e tal. 1988, cit in Kehl e Fernández, 2001, p, 177).

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envelhecimento” (Phillipson, 2000: 18). Kehl e Férnandez, reforçam, precisamente que “a

terceira idade se mostra como uma categoria socialmente construída, produto das

estruturas sociais do capitalismo social avançado, mais que uma explicação das

capacidades naturais relacionadas com a idade, e sujeita à mudança face às variantes

circunstâncias económicas e sociais, tal como qualquer outro produto” (2001: 148).

O envelhecimento deve ser também considerado como um facto biográfico uma

experiência com significado. Moody, preocupado com o desenvolvimento de uma

gerontologia crítica, defende uma aproximação humanista ao estudo do envelhecimento, que valorize o significado e interpretação na construção da vida social

(cit in Phillips, 2000). A gerontologia crítica toma em linha de conta a experiência humana

e subjectiva, veicula uma noção de envelhecimento como uma “experiência vivida”, que

deve implicar um diálogo entre pessoa idosa, comunidade académica, profissionais e

outros grupos relevantes. Dito de outra forma, e reportando-nos à variável que mais nos

interessa no estudo em curso, “o ponto – chave de uma teoria crítica da identidade

assenta no reconhecimento que as pessoas podem tomar uma posição, um lugar em

função das identidades disponíveis para elas, e que estas não são apenas aceites como

dados adquiridos” (Estes, Biggs e Phillipson, 2003: 152). Pode mesmo ocorrer uma

distância entre o que dizem sobre as pessoas e o que elas experenciam e podem

escolher para si próprias, construindo alternativas possíveis que impliquem tomar o

controle sobre o seu próprio destino. Há elementos de continuidade e estabilidade na

identidade dos indivíduos idosos mas também se podem produzir mudanças, implicando

uma postura crítica dos mesmos na configuração da sua identidade social.

Trazer a subjectividade humana para o estudo do envelhecimento, permitiu salientar

o interesse das perspectivas biográficas. Estas, assentes em exemplos como o do

interaccionismo simbólico, têm permitido o desenvolvimento de conceitos como o de

“carreira biográfica”, e assim a reconstrução de biografias/histórias de vida como

abordagens metodológicas na investigação social. Torna-se fundamental compreender

como é que os indivíduos, ao longo do curso de vida, constroem as suas vidas e qual o grau de influência das instituições sociais, do trabalho e da família nessas

construções. Da mesma forma, torna-se necessário atender à reflexividade do indivíduo, isto é, à maneira como os indivíduos influenciam o mundo à sua volta e, por

sua vez, modificam os seus comportamentos em resposta à informação desse mundo. As

histórias dos sujeitos, expressando significados de vidas particulares, podem ir sendo

reconstruídas, alteradas, dotadas de novos significados... de acordo com as suas

necessidades.

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A maneira como a experiência é contada, com as continuidades e descontinuidades,

expressa-nos sentimentos de como o indivíduo vê o seu processo de envelhecimento

(contrariamente à gerontologia tradicional que defende acerrimamente que as mudanças

sociais e físicas que acompanham o envelhecimento são forças primárias que

influenciam e se impõem ao indivíduo), a sua experiência nesta fase e o modo como

constrói esse processo.

Dentro desta perspectiva interaccionista, destacaram-se, na análise da velhice, a teoria

da rotulagem e a teoria da subcultura da velhice. A primeira, que iremos desenvolver

mais à frente, seguindo o contributo de um dos seus principais impulsionadores –

E.Goffman-, está preocupada com o conceito que os indivíduos têm de si mesmos, das

suas acções e das dos outros com quem se relacionam. A imagem que têm de si próprios

é, no entanto, condicionada pelas interpretações que os outros fazem de si. Assim

mesmo terá interesse perceber como se poderão construir, a partir destas formulações,

rótulos a um qualquer indivíduo, colocando-o fora da norma supostamente previsível. A

propósito da velhice, Laslett, (1989) refere que “a velhice aparece frequentemente como

uma situação desviada numa sociedade que celebra a juventude e que não se

acostumou, ela própria, à revolução demográfica” (cit in Kehl e Fernández, 2001: 151).

Uma outra imagem que é incontornavelmente associada ao envelhecimento é a de

dependência, transformando, não raro, o idoso em crianças, alimentando-lhes um

estatuto de humilhação e gerando situações de depressão e aniquilação do auto-

conceito. Os próprios idosos, imbuídos neste emaranhado de estereótipos a propósito da

sua condição, contribuem muitas vezes para os reproduzir, assim como as próprias

instituições cuja função seria a de promover o bem-estar dos indivíduos.

A teoria da subcultura da velhice postula que o seu surgimento estaria relacionado “com

o facto das pessoas idosas manterem uma afinidade positiva entre si ao mesmo tempo

que são excluídas, em grande medida, das interacções com outros grupos sociais

(Ibáñez, in Kehl e Fernández, 2001: 154) Assim, factores como as reformas antecipadas,

a diminuição dos contactos familiares, o desenvolvimento de comunidades de reformados

e a extensão dos cuidados de dia poderiam contribuir para fomentar uma certa afinidade grupal e desenvolver uma subcultura da velhice. Por outro lado, a solidez

das redes familiares, o prolongamento da idade da reforma e a resistência em tornar-se

velho podem inibir o desenvolvimento de uma subcultura da velhice (Kehl e Fernández,

2001).

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Ao nível da abordagem psicológica, as teorias do desenvolvimento, o enfoque do ciclo

vital e a teoria da continuidade dão-nos também pistas interessantes para entender o

envelhecimento. Às primeiras, associamos de imediato o contributo de Erikson (1950) que

apresenta uma visão evolutiva dos indivíduos, do nascimento até à morte. Para ele os

indivíduos cultivam uma atitude predominante em cada fase da vida. Na etapa da velhice,

o desafio que nos apresenta está inerente ao conflito entre integridade e desespero,

sendo as virtudes principais as da prudência e sabedoria. Isto implica aceitar a vida tal

como ela foi, aconteceu, com a sua ordem e significado. Interessa pois notar que a

“integridade do eu consegue-se através da superação das crises que existem em cada

fase da vida. Crises não resolvidas podem atitudes conducentes à desintegração da

pessoa (Barenys, 1993: 22).

O enfoque do ciclo vital transporta-nos para o fenómeno do envelhecimento como um

processo evolutivo, como um contínuo. Inaugurado por Neugarten (1975) este enfoque

centra-se em duas questões decisivas: os acontecimentos que implicam uma transição na

vida do indivíduo e os papeis que este vai assumindo, os quais implicam mudanças na

própria identidade. Baltes (1987) resumiu os pontos decisivos deste enfoque: ao longo da

vida existe um balanço entre crescimento/ganhos e declives/perdas. Ambos ocorrem ao

longo de todo o ciclo vital mas durante a velhice o declive assume maior proporção;

existem funções psicológicas que declinam com a idade (inteligência fluida) e outras que

não declinam (inteligência cristalizada); através do ciclo vital desenvolve-se a

variabilidade interindividual, sendo que as pessoas idosas são, por isso mesmo, mais

diferentes entre si; existe uma capacidade de reserva ao longo de todo o ciclo vital,

permitindo compensar o declive através de treinos ou manipulações externas; a

variabilidade entre os idosos reflecte-se em três formas de envelhecer: normal, patológica

e com êxito. Este último pode obter-se através de mecanismos de selecção, optimização

e compensação (in Fernández-Ballesteros, 2000).

Por fim, a teoria da continuidade não faz mais que propôr o contínuo desenvolvimento

do indivíduo, mesmo tendo que se adaptar a situações negativas. Como refere Atchley

(1999), “o ponto de partida centra-se na alta probabilidade de associação entre o passado

e o presente e os padrões que podem ser antecipados sobre as formas de pensar, actuar

e relacionar-se” (Fernández-Ballesteros, 2000: 48). O desejo de continuidade serve de

base ao processo de adaptação e motiva as pessoas a se prepararem para as grandes

mudanças.

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Sem descurar a importância de cada um destes contributos para o entendimento do

processo do envelhecimento, parece-nos que ele deve ser considerado sobretudo em

função de um dado contexto material, geográfico relacional, social, cultural…que o

condiciona, assim como em função da forma subjectiva como cada um o percepciona.

Barenys, (1993) não se esquecendo de advertir que a envolvência molda o

comportamento, salienta a noção de construção psicológica pessoal associada ao

envelhecimento. A pessoa, em função de um contexto e de um conjunto de recursos e oportunidades, vai sentir-se parte do tecido social. Assim mesmo, é importante

dominar e controlar suficientemente as fontes de recursos à disposição, tanto mais que

com o envelhecimento a competência pessoal tende a declinar-se e a sensibilidade face

às mudanças no ambiente se intensifica. Nesta medida, todas as intervenções a

desenvolver, sobretudo quando se verifica a transição para um lar de idosos, devem

contribuir para suavizar o impacto negativo na identidade do sujeito e reforçar o seu

sentimento de controlo percebido. São estas inquietações que nos apoiarão nas reflexões

que de seguida exploraremos

2.2. Contributos das perspectivas interaccionistas e construtivistas

As perspectivas do construcionismo social não pretendem apresentar as explicações

causais do mundo social, mas antes focalizar-se em problemas de significado do quotidiano, providenciando orientações sensibilizadoras para experiências socialmente

construídas, tais como o fenómeno do envelhecer (Gubrium & Holstein, 1999).

Parte-se de uma orientação subjectiva da realidade social destacando-se a perspectiva dos agentes que investigamos e não a dos investigadores. A este

respeito, Berger e LucKmann (2004) defendem que a interacção social quotidiana é

construída, isto é, que a relação entre a percepção e o objecto não é passiva, mas antes que a consciência humana constrói de modo activo a experiência dos objectos. A subjectividade impera, cabendo ao observador afastar-se do mundo

objectivo e compreender como os objectos se tornam significativos e as coisas se

tornaram reais e distintas.

Estas perspectivas tiveram origem na obra dos autores acima referidos, Berger &

Luckmann (1966), “A Construção Social da Realidade”, cuja tese principal assenta na

ideia de que a realidade é construída socialmente, na base das representações

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sociais, e das concepções de conhecimento construídas pelo homem comum (Castañon,

2005)

Em segundo lugar, as perspectivas partilham a compreensão de que o mundo da experiência é um mundo composto por significados e não por coisas. Formular

teorias para explicar coisas é tratá-las como objectos constituídos num espaço e distinto

das nossas acções (Gubrium & Holstein, 1999).

Um mundo construído de significados implica uma relação estreita entre as coisas e os seus significados subjectivos. Será, pois, interessante perceber o porquê de tais

mundos e os significados que os participantes constroem para si, num determinado

contexto sócio-temporal particular. Neste sentido, “a conceptualização por parte do

investigador é menos uma questão de teorizar e mais uma questão de formular de modo

analítico ou sensibilizar os conceitos que tornam o mundo sensível nos seus próprios

termos” (Gubrium & Holstein, 1999:291). Os construcionistas tentam, por estes motivos,

evitar a teoria extensa, impedindo que o trabalho de análise seja aprisionado por

concepções à priori, sendo que tal conduz a um orientação mínima para a teoria. A

utilização da “grounded theory methodology” ilustra bem estes pressupostos.

Em terceiro lugar, estas perspectivas partilham a ideia de que o contexto organiza o significado. Assim, o significado não é aquilo que o observador pretende. Mesmo

quando a coisa estudada já tinha um significado prévio, esse significado vai ser

complementado em parte pelo contexto onde de verifica (Gubrium & Holstein, 1999).

Procurando estudar o “eu” do indivíduo, o seu “self”, podemos defini-lo como um

sistema dinâmico e multifacetado de estruturas interpretativas, que regula e modera

o comportamento, contemplando representações e rotinas cognitivas, afectivas e

somáticas, ou seja, caracterizando todo o processamento de informação, condicionando

a postura do sujeito no mundo que deriva das experiências, actividades e bem-estar,

passadas, presentes e futuras (Herzog & Markus, 1999: 228). Grande parte das

perspectivas actuais do “self” derivam das teorias do construcionismo social que

entendem o “self” como o sujeito da experiência e, como tal, continuamente modelado e modelador dos contextos em que se insere. O “eu” do indivíduo, ainda

que possua significados idiossincráticos é, pois, simultaneamente, construtor e construído

pelo meio, atendendo aos diferentes contextos em que se insere (idem). O “eu” integra as

diferentes mensagens enviadas por esses contextos nos pontos de referência do sujeito,

que os interpreta e integra com suas motivações, sentimentos e cognições, resultando

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então em comportamentos adaptados ou desadaptados. As características do “eu”, construídas na base de uma negociação permanente entre o sujeito e o seu contexto, ajudam-nos a compreender a adaptação ao envelhecimento (Herzog &

Markus, 1999: 228/229).

As perspectivas interaccionistas, iniciadas com o contributo do George Mead, com a

obra Mind, self & Society, o autor inicia o estudo desta perspectiva estabelecendo a

distinção entre as formas de comportamento dos infra-humanos e as formas dos

comportamentos humanos, entendendo que “a especificidade da realidade humana resulta da singularidade da actividade social, que radica na existência de símbolos”

(Ferreira, et al, 1996). A sociedade desenvolve-se por via de um processo

comunicacional desenvolvido pela interacção simbólica dos seus participantes no

contexto das várias instituições.

Na sequência da evolução e dos vários contributos, no âmbito desta linha de

pensamento, Goffman desenvolve um relato acerca do modo de funcionamento das instituições totais, que deixa registado na sua obra Asylums. Pela pertinência destes

contributos e da abordagem que construiu e torno do que designara “instituições totais”,

entendemos pertinente abordar, com um pouco mais de pormenor. o seu modelo.

2.2.1. A pertinência da abordagem de “instituições totais”para o estudo dos lares

O fenómeno do envelhecimento é objecto da sociologia, entre outros aspectos,

enquanto estudo das racionalizações colectivas que suscita e das instituições que a

sociedade cria para enfrentar o problema.

Abordar o fenómeno do envelhecimento, numa perspectiva ao mesmo tempo psicológica

e sociológica, implica fazer uma ruptura com a concepção que associa estritamente a terceira idade a um estádio psicológico, determinado em função de uma evolução

natural, ruptura esta que obriga a dar atenção à organização social que institucionaliza a

velhice – o lar com as suas tradições, a sua organização, o seu pessoal e as suas

funções sociais.

À semelhança do que fez Goffman em Asylums (1963), também aqui faz sentido avaliar

até que ponto a instituição “lar” pode ser um exemplo mais ou menos próximo do

modelo teórico de instituição totalitária, concebido para analisar os estabelecimentos

especializados na guarda de pessoas. Trata-se, aqui, de substituir os problemas

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psicológicos individuais por um enfoque centrado nos efeitos específicos da instituição sobre a identidade pessoal e social dos internados. Até que ponto a instituição

poderá contribuir para a “mortificação do eu” do indivíduo, através de algumas

técnicas associadas ao isolamento; às cerimónias de admissão; ao despojamento; à

degradação da imagem de si; à contaminação física; à contaminação moral; utilizando

conceitos do autor.

Interessa-nos, pois, descrever e analisar a instituição tal como os idosos a vivem: como comem, dormem e trabalham; como tecem intrigas para humanizar aquilo que os

rodeia, tentando obter pequenos privilégios; como se fazem e desfazem as amizades e

os ódios; como se constituem os grupos na promiscuidade das salas ou nas equipas de

trabalho; que relações, de cumplicidade ou antagonismo, unem ou opõem os idosos ao

pessoal do lar. Parafraseando Robert Castel, no seu prefácio a esta obra, tratar-se-á de

analisar até que ponto a “existência quotidiana dos serviços no tempo parado do

enclausuramento, apenas ritmado pelas raras festas, rituais da instituição, tais como

quermesses, bailes, Natal dos doentes, chás de caridade, assembleias” se aproxima

daquilo que Flaubert chamava a “carruagem do quotidiano que se vive aqui em toda a

sua monotonia” (in Goffman, 1968: 9 e 10).

Um trabalho desta natureza implicará um estudo completo da instituição, para que se

compreenda a diversidade de comportamentos captados do interior e inseridos no seu

contexto, sendo que a instituição representará, portanto, a unidade real de análise. Procura-se contrariar as visões parcelares e, como mais uma vez nos afirma R.Castel,

“reconstruir a racionalidade mascarada pela adaptação a um universo coerente, o de um

estabelecimento social que, legislando autoritariamente sobre todos os domínios da

conduta do internado, rompe com a maneabilidade dos ajustamentos e a cadeia

harmoniosa dos papéis da vida normal e rouba a todas as iniciativas o seu sentido

autónomo” (in Goffman, 1968:10).

Tomando em consideração que a instituição “lar” existe para responder a necessidades

sociais e humanas, interessa-nos, simultaneamente, analisar de que forma é que as

práticas de intervenção social podem legitimar os princípios caracterizadores das

instituições totalitárias ou, ao contrário, serem promotoras de “empowerment”. Será que

estes agentes de intervenção não serão, já por si, portadores de uma representação de

velhice altamente desvalorizada? Tenderão a desenvolver relações com os idosos de tipo

“colonial”, quase como se os próprios não tivessem existência? Como nos alerta

Phillipson et al, “... a experiência da velhice é essencializada e problematizada como se

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as pessoas idosas fossem invariavelmente incapazes e fisicamente dependentes” (cit in

Shakespeare 2000:54), ignorando a sua individualidade, capacidades e potencialidades.

Assim sendo, afiguram-se algumas questões, tais como: quem, na instituição, se preocupa em investir nos afectos e na criação de laços sociais fortes, fomentadores de um sentido de vida em comunidade? Criar-se-ão mecanismos de ampla participação, de tal modo que o sentido de pertença colectiva e de utilidade social seja preservado? Tenderão, este tipo de instituições, a fomentar a participação dos sujeitos na delimitação das regras de funcionamento colectivo, nas actividades a organizar, fazendo com que a vida nestes contextos se assemelhe o mais possível à sua vida anterior?

Por outro lado, interessaria ainda perceber se as instituições mobilizam, ou não, um

conjunto diversificado de recursos socialmente valorizados, que facilitem a possibilidade

de aceder a vivências e experiências novas, enriquecedoras, potenciadoras das

capacidades dos idosos, ou, ao contrário, se a sua actuação concorre predominantemente

para a reprodução de rotinas e/ou a simples ocupação dos utentes, e assim também para

a precipitação do seu processo de envelhecimento. Em suma, que lugar é garantido aos idosos residentes no lar?

Para fazer avançar o pensamento e a acção, é necessário perceber quais as rotinas institucionais para depois reflectir sobre como produzir mudança. Estarão as rotinas

institucionais condicionadas pelas representações desfavoráveis que os profissionais

constroem sobre os idosos, ou, sobretudo, por modos de fazer rotinizados que é preciso

conhecer para contrariar?

Partindo do princípio de que há leis do funcionamento estrutural que é possível modificar

(pondo de lado a visão conservadora e positivista, muitas vezes reduzindo a instituição à

mera gestão dos conflitos diários), a resposta a estas questões permite-nos conhecer e

perceber os “determinismos sociais” que envolvem os funcionamentos institucionais e

assim elaborar um bom diagnóstico. Como nos refere Gaulejac, Bonetti e Fraisse, “da

forma como se colocam os problemas depende, em grande parte, o seu modo de

resolução. O olhar construído sobre a realidade condiciona, portanto, o tratamento que

será proposto” (1989:101).

Em suma, esta perspectiva Goffmaniana, claramente veiculada às teorias

interaccionistas, ajudou-nos na elaboração de instrumentos de observação e até de um

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guião de entrevista aos residentes, e parece-nos particularmente importante para a

análise dos efeitos específicos do funcionamento da instituição – lar – sobre a identidade

pessoal e social dos internados, captando a estrutura social do lar e o sistema de

relações que se estabelece entre os indivíduos que dela fazem parte. Dito de outra forma,

pretende-se perceber se se põem em prática, ou não, técnicas de mortificação e despersonalização que despojem o indivíduo da sua personalidade anterior, imagem,

estatuto e papéis.

Partindo do princípio que nestas instituições o idoso perde, em parte ou na totalidade, o

seu estatuto e papéis anteriores, interessará analisar que estratégias de adaptação e/ou resistência desenvolve o indivíduo, face a esse contexto potencialmente adverso,

com vista a garantir a estruturação do seu “eu”. De igual forma, importa analisar que rituais ou cerimónias, claramente de carácter funcional, contribuem para a salvaguarda da coesão da instituição, reduzindo os riscos de conflito aberto,

naturalmente indesejável para a equipa de profissionais da instituição.

Por outro lado, e partindo do pressuposto que aos profissionais da intervenção cabe um

papel privilegiado no que concerne à inclusão dos idosos na delimitação da vida colectiva

da instituição, pretende-se perceber se são mais os condicionalismos de gestão

institucional ou as representações desfavoráveis sobre a velhice que justificam práticas de intervenção contundentes com a relegação do indivíduo para a mera categoria de espectador de dinâmicas institucionais instituídas.

2.2.2. Entre as exigências da vida institucional e a preservação das especificidades biográficas/culturais dos sujeitos

Para iniciar a abordagem que nos propomos desenvolver vamo-nos socorrer do apoio de

Barenys, (1990) a qual procurou, igualmente, avançar com um ângulo de abordagem

dirigido para as residências de idosos assente no modelo de Goffman das “instituições totais”. Fê-lo na base de uma análise de dados secundários previamente recolhidos na

sequência de um estudo mais amplo visando todas as residências para idosos da cidade

de Barcelona.

Sendo certo que se torna complexa a aplicação do modelo do autor às instituições de

idosos, dado o facto de estas se encontrarem envoltas das coordenadas culturais dos

nossos dias, e algo distanciadas do contexto cultural em que Goffman produziu a sua

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obra “Asiles” (1968), onde desenvolvia uma abordagem ao funcionamento dos hospitais

psiquiátricos, a verdade é que as potencialidades das suas análises se têm verificado

incontornáveis para a análise de instituições encarregues da “guarda de pessoas”.

Obviamente que se entende que este trabalho deverá ser objecto de alguma ponderação.

Como defende Amouroux (1995), para obedecer ao rigor de análise, é importante

salientar algumas reservas que nos ajudem a reflectir melhor sobre os limites do seu

trabalho. Neste sentido, o autor chama-nos a atenção para a particularidade da

composição da obra, dado que, em rigor, são abordados três estudos distintos tratando-

se de investigações sem carácter de continuidade: a relação da doença à psiquiatria

institucional, a instituição totalitária e a vida hospitalar clandestina. Por outro lado, em

França a importância da obra deveu-se ao interesse suscitado com o que se relacionava

com a instituição repressiva. A obra surge traduzida para francês em 1968, nas vésperas

de 1969 e, quer a sociologia francesa, quer o espírito vivenciado na época favoreciam as

análises que se prendessem com descrições de opressões sociais experimentadas pelo

homem. Por outro lado ainda, segundo o autor, Asiles é marcado pela situação norte

americana dos grandes hospitais psiquiátricos públicos, caracterizados por um fundo

policial e carceral bastante diferente do que se experimentava nos hospitais psiquiátricos

franceses. Nestes últimos, não era, por exemplo, habitual falar-se em reposição da

justiça, de doentes em liberdade condicional ou de guardas e vigilantes ao invés de

cuidadores ou enfermeiros. Em consequência disto mesmo, percebe-se que o que mais é

lembrado e retido da sua obra são as análises das instituições totalitárias e não as

descrições da vida hospitalar clandestina.

Feitas as devidas ressalvas, e não nos furtando a uma análise relativizada e crítica à

abordagem do autor, sempre que isso nos pareça pertinente, iremos procurar rentabilizar

o enfoque particular que Goffman atribuiu à caracterização das instituições totalitárias para desenvolvermos a nossa problematização sobre o funcionamento dos lares e seu

impacto na identidade dos indivíduos, concordando com Barenys (1990) quando afirma

que é difícil medir o grau de intensidade de algumas variáveis chave que caracterizam as

organizações, segundo a perspectiva de Goffman, nomeadamente o grau de

“totalitarismo”.

Antes de prosseguir, torna-se imprescindível apresentar a definição, construída por

Goffman, acerca deste tipo de instituições, definindo-as como “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos em situação semelhante,

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separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (1996:11).

O autor tem como principal objectivo estudar o mundo do internado, no sentido de chegar

a uma versão sociológica de estrutura do eu. Advertindo-nos que todas as instituições

têm tendência a um certo fechamento, simbolizado por barreiras ao contacto com o

mundo exterior, como arame farpado, paredes ou portas altas, enuncia-nos alguns

desses exemplos como as cadeias, os campos de concentração, as escolas internas, os

conventos ou até os hospitais para doentes mentais, que tanto procurou retratar.

Acrescenta, no entanto, que apesar deste tipo de instituições apresentar um perfil

genérico e coincidente, cada uma delas apresenta, com uma intensidade particular,

várias dessas características subentendidas no perfil. Essas características,

sobejamente apresentadas por Goffman (1996), definem-se, sobretudo pelo facto de

todos os aspectos da vida serem realizados no mesmo local e sob uma única autoridade; por outro lado, cada fase da actividade diária do sujeito está sujeita à observação de um grupo grande que é tratado da mesma forma e obrigado a fazer as

mesmas coisas em conjunto; todas as actividades são estabelecidas em horários rígidos e seguem uma sequência imposta de cima para baixo, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários; estas mesmas actividades

obrigatórias estão reunidas num plano racional único, supostamente planeado para

atender aos objectivos oficiais da instituição. Por outro lado, muitas das necessidades

humanas são controladas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas,

personalizados pela equipa de supervisão, sendo certo que entre esta e o grupo

controlado existe uma divisão clara (consequência básica da direcção burocrática de

grande número de pessoas), configurando-se uma grande distância social entre ambos,

traduzida em dois mundos sociais e culturais com pouca interpenetração.

Entre estes dois grupos constroem-se mutuamente, visões estereotipadas. A equipa, que

se tende a sentir superior, “vê os internados como amargos, reservados e não

merecedores de confiança; os internados muitas vezes vêem os dirigentes como

condescendentes, arbitrários e mesquinhos” (Goffman, 1996:19). Estes últimos,

mantendo pouco contacto com o exterior, privilégio apenas da equipa dirigente, tendem a

sentir-se inferiores e culpabilizados.

De igual forma, o processo de comunicação é limitado, havendo uma clara restrição na

transmissão de informação quanto aos planos dos dirigentes para os internados – não

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têm conhecimento das decisões que dizem respeito ao próprio. O mesmo se passa com

a gestão do tempo e das necessidades dos indivíduos que são exclusivamente colocadas

à mercê da equipa dirigente, conduzindo à alienação do “eu” do indivíduo.

Campenhoudt, desenvolvendo uma análise à obra de Goffman, afirma justamente que “o

pessoal e os supervisores exigem dos reclusos uma atitude de submissão e de deferência, sob pena de verem recusados certos confortos, como fumar um cigarro,

beber um copo de água ou utilizar o telefone, aos quais se tem facilmente acesso na vida

corrente” (2003:53). Assim mesmo se percebe a incompatibilidade entre as instituições

de tipo totalitária e a vida familiar normal. O autor considera a instituição total como um

híbrido social (parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal),

onde cada um pode ser considerado como um objecto sobre o que se pode fazer ao “eu”.

Tal como Goffman, Barenys (1990) entende a instituição total como uma mistura entre “comunidade residencial e organização regulamentada”, considerando o grau de

internamento (frequência e intensidade de intercâmbios com o mundo externo) e a

regulamentação os pólos fundamentais de articulação do modelo a partir dos quais

derivam as outras características.

Na verdade, toda a organização delimita as fronteiras com o exterior, sendo que a sua

riqueza também depende dos intercâmbios com outros âmbitos. Se a pessoa passa toda

a vida na instituição, ela assume-se como “total” e isso acentuar-se-á quanto mais

deteriorados física e psicologicamente estiverem os residentes. A saúde precária,

dificuldades psicomotoras ou de autonomia ou até o esquecimento da família contribuem

para a segregação face ao mundo extra-residencial.

No entanto, no entender da autora, estes efeitos não se devem à política organizativa da

instituição, propriamente dita, mas ocorrem porque os idosos já estão marginalizados antes da entrada na instituição residencial. O afastamento, mais ou menos transitório

na primeira fase de internamento, será porventura uma das estratégias de adaptação à

vida institucional.

Segundo Goffman, no colectivo dos internados produz-se uma subcultura, um universo

de significações e normas tanto mais peculiares quanto mais afastado estiver o colectivo

do universo cultural circundante e dominante. Como nos refere a autora, “toda a versão

de subcultura que nasce num enclave social de marginalizados configura-se, em geral,

como resposta adaptativa às condições de vida que se produzem e às relações e

intercâmbios com a cultura circundante” (Barenys, 1990:78). Estabelece-se para que os

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indivíduos sobrevivam no contexto de uma colectividade solidária. No entanto, seguindo a

reflexão da autora, nas residências de idosos não há uma consciência colectiva

solidária, sendo que as modalidades de adaptação dos idosos são soluções pessoais. Uma das razões que mais justifica este comportamento deve-se ao facto de

ser muito difícil converter numa família pessoas com uma história de vida e um passado único.

Por outro lado, uma subcultura implica a orientação de esforços do grupo em função das

expectativas de todos, o que é difícil verificar nos idosos dada a situação recorrente de

inexistência de projectos de futuro e de redução drástica em actividades socialmente

válidas. De acordo com a perspectiva Goffmaniana, o motivo central que contribui para o

surgimento da referida subcultura é a resistência dos internados às imposições do staff

que os dirige. Na verdade, e dada a dimensão de oposição a considerar, estar-se-á a

falar de contracultura e não de subcultura. “A cultura dos internados é pois uma arma

simbólica de resistência e de identificação de grupo” (Barenys, 1990:79).

Contudo, a autora é de opinião que todas estas circunstâncias se verificam de forma

muito ténue junto dos idosos internados nas residências tradicionais e que, de facto, o

processo verificado é de “desculturização” dada a diminuição de capacidades verificadas na fase de envelhecimento que atrofiam a capacidade de assimilar as transformações culturais que ocorrem no mundo extra-residencial.

Nas residências, ou instituições totais, como Goffman as designa, ocorrem ainda

processos de “adaptações secundárias” que permitem aos indivíduos obter satisfações

marginais e que consistem num desafio às limitações do regulamento e do controlo na

instituição. “Na medida em que o afã secreto de toda a instituição residencial é definir um

modo de ser – através de como cada um se pode e deve comportar ali dentro – as

adaptações secundárias devem contemplar-se como uma reacção saudável da

personalidade e uma manifestação (mais simbólica do que real) de que o indivíduo

controla alguma parte da sua situação (Barenys, 1990:80).

A autora admite que as adaptações secundárias existem nas instituições de idosos mas

enquanto respostas individuais ou de um pequeno grupo. Dado o seu carácter pontual, considera não poderem fazer parte de uma subcultura.

A segunda dimensão da vida residencial consiste na imposição de um regulamento que, como refere Goffman, “aplica às pessoas um tratamento estandardizado e promove

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a satisfação das suas necessidades mediante um sistema de organização

burocratizado”(cit in Barenys, 1990:80).

A autora reconhece que toda a organização necessita de uma regulamentação para

funcionar, por muito mínima que seja. No entanto, chama-nos a atenção para a origem de

tal regulamentação, a força que exerce e o segmento da vida da pessoa que abarca. Na

verdade, os papéis dos indivíduos estarão tanto mais focalizados na organização quanto

esta estiver segregada do mundo envolvente. Apesar dos seus efeitos negativos, tais

objectivos podem mesmo fazer parte de organizações como prisões ou hospitais

psiquiátricos. Relativamente aos lares, alguns dos efeitos da sua regulamentação podem impedir os indivíduos de organizarem as actividades mais triviais de acordo com a sua vontade, limitando-os em termos de autonomia de acção. Entre outras

situações, impõem-se horas de refeições, de dormir, de aceder à residência, actividades

de ócio e TV a horas determinadas, saídas… Talvez se permitam excepções na condição

de uma prévia permissão. Em termos colectivos, a regulamentação manifesta-se ao nível

da devassa da privacidade, São exemplos disso o convívio com estranhos em situações

“íntimas”, a dificuldade em demarcar simbolicamente o seu próprio “território” dentro de

um espaço comum (decoração pessoal no quarto, uso de toalhas e guardanapos

próprios…), a própria exigência regulamentada de indagar a vida, os antecedentes, o

nível económico prévio à admissão (Barenys, 1999).

Esta forma de tratamento comum, enquanto imposição burocrática e não fruto de um

consenso entre residentes, é, de acordo com a autora, humilhante e assume-se como um atentado à personalidade e à singularidade dos indivíduos.

Uma outra questão a salientar diz respeito às “justificações racionais” que servem de sustento às normas e que reflectem quer a representação que se tem do que é um velho, quer a mentalidade burocrática vigente. Como nos refere Barenys, “muitas das

normas que regem as residências são para “proteger” os idosos das carências inerentes

à sua velhice: as habitações não têm chave para que não se fechem nesses espaços;

não lhes é permitido ter comida mas que comam bem a horas e não desordenadamente;

não lhes é permitido saírem sozinhos para que não sofram acidentes; quando saem

levam pouco dinheiro para que não lho roubem ou não gastem mal; dissuadimo-los de ir

ao médico porque são maníacos das suas doenças (incuráveis), etc, etc” (1990:81).

De forma manifesta, os cuidadores nas residências determinam estas regras pelo facto

de se assumirem, face a famílias e autoridades, como os responsáveis pelos idosos,

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apesar da função latente das normas ser a de reduzir ao mínimo a incerteza da conduta

de pessoas que convivem em grupo e manobrá-las com comodidade e com o mínimo

esforço. Como no caso dos idosos a resistência ao regulamento não pode ser muito forte,

dado o seu estado de saúde vulnerável e a sua dependência, o staff goza de muito mais

margem para o impôr e exigir. É, pois, vulgar que os idosos internados revelem um

estatuto de pessoa diminuída, assumindo uma representação de “eu” degradado.

Este sentimento é intensificado quando os cuidadores os chamam por um apelido,

diminutivo, por “avô/avó”. Perdem o direito às cortesias mais elementares assim como o

direito à contestação, dado que tudo é para o bem do residente. Seguindo a perspectiva

de Goffman, a autora afirma que “o internamento desemboca numa remodelação do “eu” de tal maneira que a pessoa acaba sendo o que a instituição pede que seja através

das suas práticas de vida e aplicações regulamentares…” (1990:82). Pode-se, assim,

analisar as modificações que se produzem na sua personalidade e no sistema de

representação sobre si mesmo/a, seu “eu” e os outros. Apesar de Goffman nos descrever

a carreira de internado no hospital psiquiátrico como um conjunto de humilhações,

despojamentos, depreciação da sua personalidade, aniquilando a imagem de si em

função de uma imagem que a instituição projecta, a autora questiona-se se o mesmo

acontecerá em lares de idosos, se a trajectória desses idosos será um cúmulo de humilhações e de atentados à identidade original dos indivíduos.

Para responder a essa dúvida serve-se de um estudo de um canadiano, John F. Myles,

que sustenta que os idosos canadianos que ele estudou, residentes em lar, não têm uma

imagem de si próprios enquanto diminuídos, como seria de esperar. Para chegar a essa

conclusão elegeu uma amostra de idosos institucionalizados e não institucionalizados,

analisando a apreciação subjectiva do seu estado de saúde. Paralelamente avalia esse

mesmo estado de saúde perante parâmetros objectivos. Nesta sequência, vai verificar

que “a igual grau de doença e incapacidade física idosos residentes numa instituição

consideram-se a si próprios menos doentes e menos diminuídos fisicamente do que os

que vivem sós. A sua tese é, em definitivo, que viver numa instituição melhora a percepção que o idoso tem do seu estado real de saúde” (in Barenys, 1990:82/83).

Na verdade, ele relaciona o sentir-se mais ou menos doente ou incapacitado com o

conceito de “satisfação de vida”, permitindo que se conclua que viver em instituição de

idosos conduz a uma maior satisfação de vida do que não viver institucionalizado, dado

que na primeira situação os idosos declaram sentir-se melhor de saúde. Dizer então que

se recomendam as instituições residenciais para desfrutar de uma maior satisfação de

vida parece ser, de acordo com a autora, uma conclusão abusiva dado que este conceito

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é aqui analisado de forma muito restrita. Além de que, quando o idoso se preocupa, em

primeira instância, com a saúde torna-se lógico que a sua satisfação de vida gire em

torno da saúde/doença e assim outras dimensões, em contexto residencial, passem para

um segundo plano de interesse. De qualquer forma, a autora adverte para a importância

de não extrapolar as suas conclusões, designadamente que a apreciação subjectiva de

“boa saúde” melhora em contexto institucional, até porque se desconhecem as condições

de atenção e meios técnicos utilizados.

Em suma, a apreciação da autora vai no sentido de que outros aspectos, como o grau de burocratização da instituição e o controlo exercido são igualmente importantes para avaliar a “satisfação de vida”, sendo assim apressado apresentar uma visão

optimista do internamento residencial apenas com base nessa apreciação subjectiva de

saúde por parte dos idosos

2.3. Contributos da psicologia ambiental

Procurando fazer um enquadramento histórico relativo à emergência da psicologia ambiental, torna-se necessário remontar ao período do pós-Segunda Guerra Mundial,

em que emerge20. A partir dessa altura aumenta progressivamente o interesse por temas

ambientais, afirmando-se a psicologia ambiental como uma área distinta de estudo

sobretudo a partir da década de 70, podendo ser definida como o estudo do interrelacionamento entre comportamento e ambiente, uma vez que se parte do

princípio que todo o comportamento humano acontece em interacção com o ambiente

(Gunter & Rozestraten, 2005).

Tentando delimitar algumas características da psicologia ambiental, Fisher, Bell &

Baum (1984) apresentam seis aspectos importantes, característicos desta disciplina: a

sua abordagem holística, analisando o efeito do ambiente no organismo não de forma

isolada do seu contexto, nem de maneira unidireccional; estuda sempre os fenómenos

dentro do seu contexto, portanto, numa vertente ecológica (ambiente influencia o

comportamento e vice-versa); estar intrinsecamente ligada ao social e à psicologia social, dada a similitude de temas e de procedimentos metodológicos que abordam; ser

interdisciplinar, uma vez que estudar a inter-relação entre ambiente e indivíduo exige

20 De acordo com Lévy-Leboyer (1980), esta área adquiriu estatuto científico a partir de três publicações: (1) um número espacial do Journal of Social Issues (Kates e Wohlwill. 1966), (2) o artigo The emerging discipline of envoronmental psychology (Wohlwill, 1970) e (3) a primeira das revisões de literatura da área no Annual Review of Psychology (Craik, 1973) (in Gunter & Rozestraten, 2005).

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

um trabalho de colaboração entre especialistas de múltiplas áreas; utilizar uma

abordagem multi-metodológica, dado o facto de também ser interdisciplinar e em

função dos problemas a ser estudados, selecciona um ou vários, de entre uma

pluralidade de métodos; assumir um posicionamento de pesquisa-acção, pois toda a

pesquisa se orienta para um problema ou visa ajudar na resolução de algo prático,

tentando contribuir para a teoria e prática em determinado campo (in Gunter &

Rozestraten, 2005).

Esta área, ao prestar atenção à variável lugar, isto é, à localização do indivíduo diante

dos elementos do seu ambiente, contesta a possibilidade de estudar os fenómenos

psicológicos de maneira abstracta, assim como as abordagens descontextualizadas do

seu comportamento. Está antes preocupada em estudar os problemas locais e

específicos numa perspectiva ecológica, salientando a relação recíproca entre indivíduo e

meio ambiente.

O interesse concreto pela interacção ambiente-indivíduo na velhice surgiu, de acordo

com Izal & Fernandéz-Ballesteros (1990) na década de 60, uma vez que à data se colocavam em relevo os efeitos negativos da institucionalização das pessoas

idosas, uma vez que vários estudos indicavam a ocorrência de perdas de saúde e um

aumento da mortalidade entre a população idosa em consequência da entrada para uma

instituição. Inicia-se, assim, o estudo do impacto das instituições sobre os velhos, ou seja,

o estudo da interacção pessoa-ambiente na velhice. Na década seguinte começam a

estudar-se diversos factores ambientais que podiam afectar o comportamento das

pessoas idosas, emergindo distintos modelos teóricos21 com o objectivo central de clarificar a natureza das relações entre ambiente e comportamento na velhice. Neste

contexto, as autoras vão apresentar os principais modelos que tratam de identificar as

componentes pessoais e ambientais intervenientes na explicação das relações ambiente-

velhice.

O primeiro modelo explorado, o modelo ecológico da competência (Lawton y

Nahemow, 1973; Lawton, 1975,1977) privilegiando, justamente, o conceito de

21 As autoras situam algumas aproximações teóricas sobre o estudo do comportamento na velhice, que surgiram anteriormente à incorporação da perspectiva ambiental, como os antecedentes teóricos da abordagem a este campo. De entre as conceptualizações mais tradicionais destacam a teoria da desvinculação (Cumming y Henry, 1961) e a da actividade (Havighurst, 1963). A primeira afirma que o envelhecimento normal implica um processo de separação entre o indivíduo e ambiente. Assim sendo, o melhor meio é aquele que favorece a dita separação. A segunda teoria postula uma relação positiva entre a actividade e o mantimento do funcionamento geral e o nível de satisfação na velhice, tornando o ambiente mais ou menos adequado de acordo com o nível de actividade que é capaz de produzir. Estes modelos podem, assim considerar-se os antecedentes dos modelos ambientais sobre a velhice (Izal & Fernandéz-Ballesteros, 1990).

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

competência definida pelo autor como “o limite teoricamente superior da capacidade do

indivíduo para funcionar nas áreas da saúde biológica, a sensação-percepção, a conduta

motora, e a cognição” (Lawton, 1975). Da mesma forma, o autor define a pressão

ambiental como sendo o grau de exigência do ambiente sobre o indivíduo. Assim, a

qualidade positiva ou negativa da interacção só pode ser determinada em função do grau

de competência do indivíduo. A principal tese do modelo assenta na ideia de que a conduta é uma função da competência do indivíduo e da pressão ambiental. Neste

sentido, se a pressão ambiental é excessiva por relação ao nível de competência do

idoso o resultado será o stress do mesmo e seus efeitos negativos. Nas situações

contrárias, em que a exigência ambiental é escassa, diminui a competência do indivíduo

devido à falta de prática e estímulo. Para Lawton (1975), o ambiente mais favorável seria

aquele cujo nível de exigência se situa no limite do máximo nível de competência (in Izal

& Fernandéz-Ballesteros,1990).

De acordo com o modelo, existe a tendência do indivíduo manter o nível de adaptação perante a pressão ambiental que se produz num determinado momento,

assim como o nível em que o estímulo resulta neutro está parcialmente determinado pelo

grau de competência do indivíduo. Nestas circunstâncias o seu comportamento

subsequente torna-se habitual e adaptativo. No contexto da transacção entre pessoa-

ambiente e o resultado condutual e afectivo, interferem quer o estilo de personalidade, quer a cognição ambiental. O estilo de personalidade representa a forma na qual se

convertem os estímulos ambientais em informação com significado e em consonância

com as metas, desejos e competência do indivíduo. A cognição ambiental refere-se ao

conteúdo ambiental personalizado e específico (Lawton, 1975, 1977, in Izal & Fernandéz-

Ballesteros,1990). O autor utiliza ainda a hipótese da docilidade ambiental que prevê

que quanto menor é o nível de competência dos indivíduos, mais os factores do ambiente

influenciam o comportamento (Paúl, 2005).

Podemos enunciar o modelo de congruência pessoa-ambiente, entendida como

semelhança entre as necessidades pessoais, que dependem do estatuto económico,

do sentimento de competência, do estilo de copping, acontecimentos no trajecto de vida

recente e do estado de saúde, e as condições ambientais. No essencial, este modelo

proposto por Kahana (1975), defende que o comportamento varia como resultado da interacção entre as necessidades pessoais de um indivíduo e a capacidade do ambiente para promover a satisfação de tais necessidades. O ambiente óptimo é,

assim, definido na medida em que é congruente com as necessidades do indivíduo (Izal

& Fernandéz-Ballesteros,1990).

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O modelo de congruência/complementaridade proposto por Carp e Carp (1984) define

que a congruência corresponde ao grau de complementaridade verificado entre as competências do indivíduo e dos recursos/barreiras do meio relevantes para as AVD. Maior competência, assim como um ambiente que exerce pressão positiva favorece

a adaptação, enquanto que baixa competência e/ou meio negativo dificultam a

adaptação. Na verdade, segundo o modelo, as pessoas com baixas competências e num

ambiente pobre são as que estão em maior risco de não poderem manter a sua vida

independente (Paúl, 2005:254).

O modelo da ecologia social, proposto por Moss e Lemke (1980, 1984) procura

relacionar quatro grandes dimensões dos equipamentos especializados em fornecer

serviços a idosos, aspectos físicos e arquitectónicos, características organizacionais, características dos residentes e do pessoal e características de clima social, com os níveis de bem-estar e satisfação expressos pelos idosos. Os

resultados entre estes domínios mostram que a percepção de bem-estar e satisfação

depende tanto das características da população residente como das dimensões

relacionadas com as características do ambiente (Ballesteros & Rodríguez,

2004:256/257).

2.3.1. Os espaços institucionais e o lugar dos sujeitos

Considerando a dimensão socioespacial das instituições, elas podem ser consideradas,

de acordo com Goffman, como instituições parciais e instituições totais. As primeiras só

acolhem uma parte das actividades quotidianas dos indivíduos, sendo que estas

habitualmente se desenrolam em várias instituições parciais, de acordo com as várias

actividades que temos necessidade de desenvolver diariamente. As instituições totais,

como já havíamos referenciado, implicam a realização de todo o tipo de actividades dos

indivíduos no mesmo local, durante um tempo prolongado. Neste contexto, o indivíduo

encontra-se imerso num universo onde é tratado de maneira igual à de todos quanto com

ele partilham esse espaço (Fisher, 1994:138). Assim sendo, e para que seja possível ao

observador construir uma grelha de leitura dos espaços institucionais, torna-se

necessário conhecer as lógicas, regras e princípios de organização desses espaços, assim como conhecer as configurações subjectivas que os indivíduos constroem face aos espaços organizados à sua volta. A referida congruência entre

pessoa-ambiente resulta em bem-estar e qualidade de vida. Neste sentido, a psicologia

ambiental não busca medidas padronizadas de qualidade de vida, mas torna necessário

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que se examinem as necessidades de cada um em matéria ambiental, sendo que

“somente por meio do conhecimento das representações sociais de bem-estar e

qualidade de vida das populações específicas em contextos ambientais particulares,

seremos capazes de perceber os valores das pessoas, significados e visões de mundo e,

portanto, compreender e explicar o impacto destes sobre a relação individual daquelas

pessoas em seu ambiente”(Moser, 2003: 332/3).

Se atendermos à visão do observador, interessa perceber os princípios de organização desse espaço. Concretamente, a divisão que comporta entre o fora e o dentro, em

termos de barreiras ou fronteiras, uma vez que estes sistemas de delimitação são

sistemas de regulação com o mundo exterior e de controlo sujeitos a rituais de passagem

aquando das entradas e saídas; o sentimento de encerramento, ainda que provisório,

por parte de quem vive nesse espaço fechado por relação ao exterior; a divisão e concepção do interior segundo um modelo funcional, onde as componentes

espaciais estão claramente relacionadas com a natureza das actividades lá

desenvolvidas, tornando estreita a relação entre espaço, actividades, indivíduo; a

organização do espaço institucional enquanto espaço de controlo, enquanto

expressão de uma estrutura de poder, enquanto espaço que obedece a regras de

vigilância (Fisher, 1994: 139/140).

O autor sugere-nos, ainda, a análise de um conjunto de regras de organização dos

espaços, dividindo-as entre regras de afectação, pressupondo que cada coisa e

indivíduo se situem no seu lugar, facilitando os processos de controle e tornando

indesejáveis os processos errância e mobilidade; regras que se prendem com a fruição pontual dos espaços, pressupondo um controle sobre os espaços modelado em função

da natureza das actividades; regras de divisão do espaço segundo o nível hierárquico, podendo-se usufruir de determinados espaços reservados em função do

estatuto, estabelecendo-se uma diferenciação entre as várias categorias de pessoas que

ocupam determinado espaço; a regra da proibição de acesso, excluindo pontual ou

parcialmente certos grupos de certos espaços, reforçando o controlo exercido e a

atribuição de privilégios, como maior conforto ou tranquilidade, a alguns.

Assim sendo, e partindo destas regras, urge questionar a concepção que o espaço institucional constrói acerca do indivíduo, sendo que se este espaço apenas se

concebe como um lugar de liberdade vigiada, o papel do indivíduo é definido e modelado pela instituição, devendo este conformar-se e adaptar-se aos espaços em

que é instalado. Nestas circunstâncias, o espaço institucional “impõe-se como uma

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ordem a respeitar, o que implica indivíduos suficientemente maleáveis para se adaptarem

às “exigências” da organização” (Fisher, 1994:142).

Por outro lado, e de acordo com a perspectiva do autor em análise, é indubitável que os espaços institucionais organizam as relações por via do jogo de distribuição dos ocupantes no espaço. As interacções são moldadas em função do número de

ocupantes, do espaço disponível, do tipo de actividades, da colocação dos símbolos de

autoridade. Esta organização funcional dos espaços tenta, pois, apoderar-se do indivíduo

e conformá-lo face aos espaços programados.

No contexto dos espaços e das relações que produzem, não podemos esquecer a

importância dos objectos que os indivíduos possuem e que assume, para eles um

profundo significado. Lunt & Livingstone chamam-nos igualmente para a atenção para a

natureza social da relação das pessoas com os objectos, uma vez que a relação entre

pessoas é condicionada pelo contexto material no qual elas estão localizadas. Não

podemos ignorar que os objectos materiais adquirem significados sociais, até porque

prontamente tiramos conclusões acerca das pessoas pela natureza dos objectos que

possuem (Lunt & Livingstone, 1999).

Se atendermos à análise dos espaços institucionais, ao ponto de vista do indivíduo,

teremos que considerar sobremaneira não tanto a forma como a instituição tenta moldar

e tratar o indivíduo, mas o modo como o próprio se sente22, como apreende de forma subjectiva a organização e a divisão dos diversos espaços da instituição. Como

sugere Fisher, “todo o espaço institucional é estruturado em conchas psicológicas,

determinadas, num grande número de casos, pela relação controlo/liberdade” (1994:147)

e não tanto segundo a lógica da adequação espaço/actividades prescritas. A existência

de zonas subjectivas ultrapassa o critério da adequação. Está mais relacionada com o

espaço vivido e com a procura de liberdade encetada pelos indivíduos que habitam esses

espaços.

Neste enquadramento, e com o intuito de apreendermos as configurações subjectivas

que os indivíduos atribuem aos espaços que o circundam, o autor sugere que

consideremos três tipos de espaços institucionais: de socialização, intersticiais e refúgios.

Os primeiros, espaços de socialização, são espaços onde se efectuam agrupamentos

sociais diversos. São reservados a alguns e interditos a outros e são “objecto de

22 Podemos considerar duas concepções de espaços institucionais que coexistem, dois registos que são concomitantes mas conflituais e opostos (Fisher, 1994:146).

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reconhecimento social pelos outros grupos, que aceitam e de algum modo legitimam uma

tal ocupação; por outro, esses territórios podem ser objecto de reivindicações e defesas

contra diversas formas de intromissão, a fim de proteger e preservar as relações e as

actividades que nelas se desenvolvem” (Fisher, 1994:147). O espaço intersticial, é,

habitualmente, um espaço solto, deixado à deriva pela organização funcional, não

programado. Normalmente periférico face às zonas centrais, serve de suporte às redes

informais. Segundo o autor, os espaços-refúgios, normalmente não percepcionados

numa primeira abordagem, prefiguram zonas de isolamento, nichos psicológicos, ninhos

que o indivíduo organiza por si mesmo distanciando-se do colectivo a que está exposto

quotidianamente. São espaços pessoais que salvaguardam a intimidade e o conforto

psicológico, uma vez que não são partilhados por mais ninguém.

O autor apresenta vários motivos que subjazem à escolha e procura destes vários

espaços, tais como, escapar à visibilidade social imposta pela organização dos espaços

institucionais, permitir uma certa autonomia e luta contra o controlo exercido no interior

desses espaços, assim como uma apropriação psicológica de um território. Em rigor,

“quanto mais os espaços funcionais forem inadaptados às necessidades expressas pelos

utentes, mais esses espaços são objecto de investimentos fortes e variados, porque

quanto mais o sentimento de frustração, ligado ao sentimento de desapropriação, for

grande, mais elevada é a probabilidade de se criarem espaços de isolamento” (Fisher,

1994:149).

Se até aqui se falou, em bom rigor, do lugar dos indivíduos no contexto dos espaços

institucionais, poderíamos falar igualmente dos não-lugares. Como tão bem ilustra Auge

“se um lugar pode definir-se como identitário, relacional e histórico, um espaço que não

possa definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá

um não-lugar” (Auge, 1994:83). Estes são os espaços de passagem, que não criam

identidade, nem relação mas sim solidão.

2.4. Abordagens ao conceito de identidade como produto inacabado e reformável – vivência em lar e desafios identitários

A noção de identidade está claramente relacionada com os conceitos de estabilidade, permanência, totalidade e singularização e é utilizada como um conceito

que define um estado da pessoa ou do grupo ao qual nos podemos referir na explicação

de comportamentos individuais ou colectivos. De acordo com Kastersztein, e numa

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perspectiva bastante diferente, pode definir-se como “uma estrutura polimorfa, dinâmica,

cujos elementos constitutivos são os aspectos psicológicos e sociais em relação à

situação relacional num dado momento, de um agente social (indivíduo ou grupo) como

actor social” (1990: 28).

Já não se trata tanto de estudar o conceito à luz da tendência das ciências sociais, que o

relaciona com as questões da conformidade e controlo social, enquanto garantes da

ordem social mas, na nossa sociedade, o apelo a este conceito está mais relacionada

com o apelo à criatividade, liberdade, e contra os papéis sociais estabelecidos.

Assim sendo, Kastersztein (1990), chama-nos a atenção para os conceitos de

“identidades circunstanciais” e “identidades sincrónicas”, não obstante salientar que

a estrutura identitária não é de uma plasticidade completa, dado que há um conjunto de

elementos relativamente estáveis ao nível das características identitárias.

No entanto, quando o universo relacional se transforma radicalmente e se põe em causa

a existência do actor enquanto individualidade, produz-se uma ruptura, a qual necessita

da elaboração de uma nova estrutura. Na verdade, podemos considerar, à semelhança

de Dubar (1997), que a identidade de um indivíduo corresponde ao que ele tem de mais precioso. Ora, a perda dessa identidade causará sentimentos de alienação, angústia, sofrimento. Nessa medida, e entendendo a identidade como o resultado de

uma construção quer individual, quer social, é de supor que ela esteja em permanente

reestruturação, reelaboração, dependente das orientações dos indivíduos, assim como

das perspectivas e julgamentos que os outros lhes conferem. Não contrariando a ideia de

que a identidade se constrói na infância, ela é, igualmente, produto de sucessivas socializações, porquanto se encontra em permanentes reconstruções ao longo da vida

(Dubar, 1997:13). Seguindo, pois, o raciocínio deste autor, vamo-nos situar numa

perspectiva que contraria as abordagens culturais e funcionais, centradas na ideia de que

a socialização dos indivíduos pressupõe a integração, por via de um condicionamento

inconsciente, de valores, normas, disposições, modos de ser, sentir e agir de um grupo

de pertença ou de referência. Esta visão de sociedade está relacionada com a condição

inconsciente da unidade do mundo social, pressupondo uma sociedade tradicional e de

carácter pouco evolutivo.

Contrariamente, Dubar (1997:79) vai colocar a interacção e a incerteza no seio da

realidade social, pressupondo o confronto entre lógicas de acção heterogéneas que, de

alguma forma, caracterizam a dualidade do social. A este propósito, o autor vai reunir m

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conjunto de teorias que não admitem este pressuposto unificador. Primeiramente vai

fazer referência a Habermas23 que, por sua vez, partindo de Hegel, faz emanar uma

definição filosófica de socialização, entendendo-a como processo de formação do espírito

a partir de três mediações entre sujeito e o objecto: a dialéctica da interacção e do

reconhecimento recíproco resultante de um processo social, entendendo como ponto de

chegada do processo de socialização; a representação simbólica como meio que permite

a apropriação subjectiva do objecto pelo sujeito através da linguagem, enquanto primeiro

pressuposto de qualquer interacção com outro; a dialéctica entre o trabalho e a

interacção, sendo que os processos de trabalho ocupam uma posição central na

construção identitária e na “institucionalização do reconhecimento recíproco” nas

sociedades modernas.

Em segundo lugar, Weber também recusou considerar a sociedade como totalidade

unificada e funcional, entende a “socialização concebida como construção de formas sociais significativas mas diferenciadas” e o social como “actividade humana dotada

de um sentido subjectivo” (in Dubar, 1997:86). Esta actividade humana concebe duas

formas de orientação dos comportamentos: a acção comunitária, baseada nas

expectativas fundadas num sistemas de valores partilhados por um colectivo ao qual se

pertence e a acção societária, baseada em regras estabelecidas de forma puramente

racional. A acção comunitária está, pois, mais afecta aos domínios afectivos, emocionais,

de proximidade e intimidade enquanto que a acção societária pressupõe tudo o que é

público, mais racional, regulamentado e contratual. Weber faz referência ao processo de

passagem de uma socialização comunitária dominante para uma socialização societária

dominante, na sequência de um processo de modernização que leva à racionalização

social e a uma forte diferenciação das identidades, tendo em conta as possíveis

combinações entre lógicas de actividade, formas de poder e níveis culturais, contrariando

assim um tipo de individualidade única e estereotipada.

Foi George Mead quem, pela primeira vez, descreveu a socialização como construção de uma identidade social na e pela comunicação com os outros. A sua abordagem

dá particular ênfase à comunicação no processo de socialização e coloca a tónica nas

formas institucionais de construção do eu e nas relações comunitárias entre

socializadores e socializados, e não tanto societárias, como defendia Weber. No agir

comunicacional, Weber enumera os gestos reflexos (que podem não implicar nenhuma

intenção comunicacional em relação a outra pessoa) e os gestos simbólicos, designados

23 Habermas, J. (1967), “Travail et Interaction. Remarques sur la Philosophie de L´Esprit de Hegel à Iéna”, in La Téchnique et la Science comme “Idéologie”, trad. Gallimard, Les Essais, 1973, pp.152-187

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por linguagem e que produzem reacção naqueles a quem se dirigem). Assim, é possível

definir o comportamento social como uma reacção significativa ao gesto do outro e

entender a “socialização como construção progressiva da comunicação do Eu como

membro de uma comunidade que participa activamente na sua existência” (Dubar,

1997:92).

Este processo de socialização passa por etapas e inicia-se com a tomada em conta pela

criança dos papeis desempenhados pelos “outros significativos” através dos jogos livres

que, progressivamente, passarão a jogos com regras, com papéis organizados,

pressupondo que se aceda a uma nova compreensão do outro, da equipa, da

comunidade, do grupo. Numa última fase, o reconhecimento do “eu” implica que o

indivíduo não seja apenas um membro passivo do grupo, que interiorizou as regras e os

valores, mas desempenhe no grupo um papel útil e reconhecido. A consolidação da

identidade social e o sucesso do processo de socialização dependerão deste equilíbrio

entre o “eu” que interioriza o espírito do grupo e o “eu” que me permite afirmar

positivamente no grupo. Este duplo movimento quer de apropriação subjectiva de um

mundo social, da comunidade à qual se pertence, quer de identificação com os papéis

desempenhados é decisivo neste processo. No entanto, pode sempre ocorrer o que

Mead designa por “dissociação do Eu” ao longo do processo de socialização,

“dissociação entre a identidade colectiva, sinónimo de disciplina, de conformidade e de

passividade e a identidade individual, sinónimo de originalidade, de criatividade, mas

também de risco e de insegurança” (Dubar, 1997:94).

Peter Berger e Thomas Luckmann introduzem uma distinção entre socialização primária e socialização secundária. A primeira, caracterizada pela incorporação de um”saber de base” por via da aprendizagem da linguagem. Estes saberes de base

estão sobretudo dependentes da relação que se estabelece entre a família e a escola e

da relação que as próprias crianças estabelecem com os adultos que asseguram a sua

socialização. A criança valorizará, certamente, de forma diferenciada os diferentes

saberes possuídos pelos adultos. A segunda, a socialização secundária, caracterizada

pela incorporação de saberes especializados, os saberes profissionais, definidos por

relação a um campo especializado de actividades. A socialização secundária pressupõe

a socialização primária anterior e pode significar a ocorrência de diversas situações,

desde “o simples prolongamento da socialização primária por uma socialização

secundária cujos conteúdos concordam, simultaneamente, com o “mundo vivido” pelos

membros da família de origem e, portanto, com os saberes construídos anteriormente,

até à transformação radical da realidade subjectiva construída aquando da socialização

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primária” (Dubar, 1997:96). Nesta situação dir-se-ía que ocorre como que uma ruptura

em relação à socialização primária. Os autores referem que, nestes casos, “são

necessários graves choques biográficos para desintegrar a sólida realidade interiorizada

na primeira infância” (Berger e Luckmann, 2004:150). Pressupõe-se, assim, uma

inevitável reestruturação da identidade, por vezes mesmo, transformações totais da

identidade.

A socialização secundária, apesar de não apagar totalmente a identidade construída na

socialização primária, permite uma conversão da identidade e do mundo social, a

reconstrução de uma identidade mais satisfatória ou consistente, sobretudo quando as

identidades anteriores se configuram como problemáticas, por via da articulação entre as

identidades especializadas que se vão produzindo (profissionais, culturais, políticas…) e

a identidade global, individual e social. Torna-se, pois, possível considerar a socialização numa perspectiva da mudança social e não apenas da reprodução da ordem social, das relações e identidades anteriores. Na verdade, tudo dependerá da relação entre

socialização primária e secundária, entre saberes de base e saberes específicos. Pode

sempre verificar-se o risco de confrontação entre os saberes, da mesma forma que a

hierarquização dos saberes, cada vez mais dissociados, passa a ser definida pelos vários

aparelhos de socialização como a família, a escola, a empresa…, sendo certo que estes

processos ocorrem sempre por relação aos conflitos sociais que opõem grupos sociais

distintos.

Não podemos, efectivamente, dissociar a mudança social da transformação das

identidades, sendo que “só a socialização secundária pode produzir identidades e actores

sociais orientados pela produção de novas relações sociais e susceptíveis de se

transformarem, elas próprias, através de uma acção colectiva eficaz, isto é, duradoura”

(Dubar, 1997:99).

Ao entendermos o fenómeno identitário como produto da socialização torna-se

necessário analisar o mundo construído mentalmente pelo indivíduo a partir da sua

experiência social pois é na “compreensão interna das representações cognitivas e

afectivas, perceptíveis e operacionais, estratégicas e identitárias que reside a chave da

construção operatória das identidades”(Dubar, 1997:101).

Torna-se imprescindível partir das representações individuais e subjectivas dos próprios

actores, pois estas constituem os melhores indicadores das identidades sociais, ainda

que possam ser provisórias, e reflectem o próprio percurso e processo de socialização.

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Assim, e ao pretendermos analisar as configurações identitárias despoletadas com a entrada em lar e com a consequente participação num novo contexto socializador, interessa-nos compreender em que medida o indivíduo se identificou com

esse contexto, o interiorizou satisfatoriamente ou apenas o procura manipular por via do

desempenho de um papel onde representa aquilo que é suposto ser.

Berger e Luckmann sugerem-nos a possibilidade do indivíduo estabelecer relações com

mundos discordantes, na socialização secundária, não sendo obrigatório que a

interiorização desses mundos se faça acompanhar pela identificação repleta de

afectividade. Como referem, “o indivíduo pode interiorizar diferentes realidades sem se

identificar com elas. Por conseguinte, se um mundo diferente aparece na socialização

secundária o indivíduo pode proferi-lo de forma manipulativa (…) na medida em que isto

implica o desempenho de certos papéis, o indivíduo conserva o distanciamento subjectivo

vis à vis estes, e “veste-os” com deliberada intenção”. (Berger e Luckmann, 2004:178).

Interessa-nos, pois, perceber, entre outras coisas, como é que o indivíduo representa a

relação com a instituição, com os detentores dos poderes relativos à gestão da vida

quotidiana; como participa ou contesta, como se envolve ou desinteressa no contexto

dessa instituição; como concebe o seu futuro; como aprecia as suas capacidades e

oportunidades para fazer usos delas; como conjuga as suas expectativas, iniciativas,

projectos e desejos pessoais com os constrangimentos e as obrigações exteriores; como

aproxima ou afasta a identidade verdadeiramente reconhecida pelos outros com uma

identidade virtualmente reivindicada para si.

Partindo destes pressupostos, podemos questionar até que ponto é que o lar não se pode tornar numa rede de manipulações recíprocas. Provocando, ou não, a

desidentificação do indivíduo a esse contexto, em que medida o indivíduo não interioriza

a experiência da vida em lar sem fazer dela a sua experiência de vida? Até que ponto

não desempenha um papel, por via de um controlo manipulativo desligando-se desse

papel na sua própria consciência?

È neste vaivém de experiência que a identidade se pode considerar como dinâmicas

práticas e não dados objectivos, como produto precário e provisório e não estável e

duradouro.

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2.4.1. Identidade pessoal e social – a construção de si na relação com os outros

Num esforço de definição do conceito, Lipiansky (1990) evidencia duas significações

principais para a noção de identidade. A primeira, mais objectiva, reporta-se ao conjunto de características pertinentes que definem um sujeito e permitem a sua identificação do exterior, incluindo elementos como estado civil, profissão, papéis

sociais, idade, nacionalidade, pertença étnica, etc. Na verdade, corresponde ao conceito

de identidade social. A segunda, diz respeito à percepção subjectiva que um individuo constrói da sua individualidade, a consciência e definição de si, entendendo-se geralmente como identidade pessoal.

A identidade pessoal constitui a apropriação subjectiva da identidade social, isto porque é

marcada quer pelas categorias de pertença objectiva, quer pela situação de relação com

outros. No entanto, nem sempre há uma correspondência imediata entre a identidade

objectiva e subjectiva. Como nos refere o autor, “a identidade resulta portanto de relações

complexas que se tecem entre a definição exterior de si e a percepção interior, entre o

objectivo e o subjectivo, entre si e os outros, entre o social e o pessoal” (Lipiansky,1990:

174).

O autor privilegia a abordagem de certos aspectos da identidade pessoal, mais

precisamente as implicações recíprocas entre o sentimento subjectivo de identidade e a

comunicação, partindo da hipótese de que a consciência de si depende da interacção com outros na sua essência. Inúmeros autores da sociologia à psicologia e psiquiatria

se esforçaram por mostrar os fundamentos sociais da identidade, no sentido de que a

consciência de si se constrói progressivamente através da interacção social, como

resultado de relações com os processos sociais que envolvem o indivíduo. Com efeito, o

indivíduo cria uma imagem de si através do olhar dos outros, reconhecendo-a como sua,

daí que a construção da identidade requeira a existência de um “outro” e se defina

através dele.

Na verdade, os indivíduos procuram através da comunicação com os outros uma certa definição de si. No entanto, neste processo de interacção está inerente o risco de

não ver confirmada a identidade reivindicada pelo indivíduo.

Apesar disto, a identidade subjectiva não resulta apenas da identidade presente mas também das interacções passadas e de todo um contexto sócio cultural. Dir-se-ia

que ela está permanentemente a ser influenciada por cada relação e comunicação novas.

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

A dualidade associada à identidade para si e identidade para o outro pode, então, querer

significar que nunca sabemos se a identidade para “nós”corresponde à identidade que o

“outro” nos atribui. Estamos a falar de um conceito que se constrói e reconstrói e por

isso mesmo está permanentemente envolto numa grande incerteza. Como Dubar tão

bem o definiu, “a identidade não é mais do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições” (1997:105).

A dimensão vivida, subjectiva está bastante presente nesta definição permitindo-nos

compreender as identidades não apenas como relação entre indivíduo e o seu eu ou

mundo mais interior, como reforçam as visões psicanalíticas, mas em compreender “as

identidades e as suas eventuais fracturas como produtos de uma tensão ou de uma

contradição interna ao próprio mundo social (entre o agir instrumental e o

comunicacional, o societário e o comunitário, o económico e o cultural, etc.) e nunca em

primeiro lugar como resultados do funcionamento psíquico dos seus recalcamentos

biográficos” (idem).

A este propósito o autor refere que, associada a esta dualidade do social, estão os

mecanismos de identificação por via de categorias socialmente disponíveis aos

indivíduos. Designa de “actos de atribuição” os que partem dos outros e que pretendem

definir a identidade para o outro e “actos de pertença” os que partem de “nós” e que

pretendem definir a identidade para si. Entre a identidade de si e as identidades

atribuídas por outro não tem de haver necessariamente uma correspondência, como já se

enunciou, mas é através deste processo que um indivíduo aceita ou recusa as

identificações que recebe dos outros ou das instituições24.

Convém realçar que este processo de atribuição da identidade pelas instituições e pelos outros com quem o indivíduo interage não pode ser dissociado das relações de força nem dos sistemas de acção onde o indivíduo se inclui, nem tão pouco das

categorias utilizadas e legitimamente aceites que se impõem colectivamente aos agentes

implicados.

24 Sobre esta questão o autor estabelece um paralelo com o pensamento de Howard Becker que, estudando a génese do comportamento desviante, conclui que a identidade se constrói no decurso de um processo de transacção entre um grupo e um indivíduo considerado pelo grupo como tendo transgredido uma norma. Defendendo que o desvio é sobretudo produzido pela etiquetagem pelos outros, a identidade desviante é o produto de uma transacção entre a identificação imposta por outro e a subcultura do grupo desviante (Becker, H.S., Outsiders. Études de la Sociologie de la Déviance, Paris, Éd. A.M. Métailé, 1963).

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O segundo processo em causa diz respeito à incorporação da identidade pelos próprios

indivíduos. Esta interiorização activa das identidades para si está intimamente

relacionada com as trajectórias sociais percorridas pelos indivíduos e onde eles próprios

puderam construir o que pensam sobre o que são, na base de categorias legitimamente

aceites por si e pelo grupo de referência a partir do qual define a identidade para si. Este

pode não ser, na verdade, o seu grupo de pertença objectiva mas será, porventura, o

grupo a que subjectivamente atribui credibilidade e importância.

Acerca destes dois processos heterogéneos de atribuição e incorporação da identidade,

Goffman (1963) designa por “identidades sociais virtuais” aquelas que são atribuídas

pelos outros na base das categorias utilizadas por eles e em “identidades sociais reais”,

as que são construídas pelos indivíduos na base de categorias legítimas para o próprio

indivíduo. O autor salienta, igualmente, a descoincidência que pode ocorrer entre a

identidade emprestada a uma pessoa e a identidade que ela atribui a si próprio,

despoletando-se as estratégias identitárias como mecanismos que visam reduzir o

desvio, repor este desacordo. Estas estratégias podem assumir duas formas: “ou a de

transacções “externas” entre o indivíduo e os outros significativos que visam acomodar a

identidade para si à identidade para o outro (transacção chamada “objectiva”), ou a de

transacções “internas” ao indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte das

suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir para si

novas identidades no futuro (identidades visadas) procurando assimilar a identidade-

para-outro à identidade-para-si. Esta transacção chamada subjectiva constitui um

segundo mecanismo central do processo de socialização concebido como produtor de

identidades sociais” (Dubar, 1997:107 e 108).

A construção das identidades faz-se, pois, do jogo permanente entre as identidades herdadas, que podem ou não ser aceites ou recusadas pelos indivíduos, e das identidades visadas, as quais podem ocorrer em continuidade com as identidades

anteriores ou instalar uma ruptura com estas, o que obrigaria a conversões subjectivas

dos sujeitos. Do resultado destas duas transacções surgem as configurações identitárias,

relativamente estáveis mas ao mesmo tempo em permanente evolução. Assim, não

podemos falar de identidades pré-construídas mas sim de identidades em permanente

negociação, o que nos leva a contrariar os mecanismos de pseudo-etiquetagem

autoritária ou de imposição absoluta de uma identidade predefinida, como se não se

tratasse de uma construção conjunta que inclui as confirmações objectivas e subjectivas

dos indivíduos. Como Dubar (1997:110) reforça, a dualidade do funcionamento social é

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irredutível a qualquer postulado de harmonização funcional. Assim, nenhuma harmonia

preestabelecida, nem nenhuma instância simbólica reguladora pode assegurar a

continuidade das identidades. Como o próprio autor enuncia não se pode fazer a

identidade das pessoas sem elas, todavia, não se pode dispensar os outros da

construção da sua própria identidade, sendo que o que ontem reconhecemos como

identidades não corresponde forçosamente ao que iremos reconhecer amanhã. Por este

mesmo motivo, não podemos ignorar que as categorias utilizadas para identificar os

outros e a si mesmo vão variando de acordo com os espaços sociais onde se exercem as

interacções e as temporalidades biográficas e históricas em que ocorrem. Podemos falar

de uma dispersão de identidades dependentes das idades de vida e dos cenários onde

os indivíduos se encontram. As próprias categorias pertinentes de identificação social

evoluem no tempo.

Se, de alguma forma, a primeira identidade experimentada (identidade individual) se

constrói na relação com a mãe, só através das categorizações dos outros a criança

experimenta a sua primeira identidade social. Dubar destaca a esfera do trabalho,

emprego e formação como domínios essenciais às identificações sociais dos indivíduos.

No entanto, a construção biográfica das identidades nunca é definitiva e é sempre, ao

mesmo tempo uma construção relacional, pois implica a ligação aos outros e às

experiências relacionais e sociais de poder.

2.4.2. A entrada em lar e desafios identitários – a vivência em grupo como ameaça à identidade pessoal

Quando os indivíduos percepcionam que as suas particularidades e a sua singularidade

são ameaçadas ou a sua actuação se torna fruto de uma repetição, desencadeiam-se

forças psicológicas no sentido da mudança desta situação. A ameaça ao sentimento subjectivo de identidade é particularmente relevante quando nos reportamos às experiências e à vivência em grupo. O grupo é sentido como uma ameaça à identidade

de cada um e provoca uma diversidade de sentimentos nos seus interlocutores. Lipiansky

(1990) refere-se ao anonimato inicial que provoca a sensação de não existência face a

um colectivo desconhecido e do ritual de apresentação inicial, enquanto resposta a esta

situação, apesar da incerteza quanto à impressão que se vai causar nos outros. A

anteceder qualquer comunicação verbal, prevalece o medo face a um julgamento

negativo e a uma imagem desvalorizante, desinteressante, antipática.

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A pressão associada à situação grupal, caracterizada pelo “primado do grupo face ao

indivíduo”, faz com que os indivíduos se definam por relação aos outros e aos seus

julgamentos e respondam a essa pressão através da conformidade ao grupo e do

anonimato, não obstante esta postura ser vivida como uma negação da sua identidade.

De facto, os elementos do grupo sentem que a sua identidade no grupo será o resultado

dos processos de comunicação, nos quais estão envolvidos mecanismos de defesa que

estimulam a situação grupal. Assim, a situação é vivida numa espera ansiosa face a

alguma ameaça à imagem que se deseja transmitir. Na verdade, todos desejam assegurar reconhecimento perante o colectivo. Este desejo surge como uma das

motivações e dimensões fundamentais de comunicação e é tanto mais acentuado quanto

os indivíduos se situam em posição de insegurança, inferioridade ou exclusão. De acordo

com o que nos sugere Lipiansky (1990), esta procura pode exprimir-se de várias formas e

responder às necessidades de existência, inclusão, valorização e individualização.

Primeiramente, a necessidade de existir, de se tornar visível aos olhos dos outros, de ser

escutado, tomado em consideração, apesar de uma certa apreensão que acarreta

reacções de defesa. Depois, a necessidade de fazer parte do grupo, ter o seu lugar, estar

incluído na comunidade grupal. Esta necessidade está acompanhada de uma aspiração a

uma unidade grupal e coerência identitária (expressa através de reacções como a

importância atribuída às faltas a algum acontecimento, a espera dos indivíduos que estão

em atraso, repugnância pela cisão do grupo em sub-grupos, esforço pela integração dos

desviantes e marginais). Neste contexto de identificação recíproca, torna-se desejável a

procura das semelhanças e o conformismo face às normas do grupo. Cria-se então o

conformismo, a dependência, a necessidade de se ser reconhecido como “conforme”

pelos outros.

Por outro lado, a necessidade de valorização através da apresentação de uma imagem positiva de si, de força e coerência. Trata-se de um desafio fundamental de

comunicação social que vai despoletar a utilização de um conjunto de estratégias

(apresentação de uma imagem entendida como socialmente valorizada, dissimulação do

que pode ser entendido como fraqueza, defeito ou vulnerabilidade).

Esta necessidade de valorização positiva está associada a um processo de comparação

social e conduz a perceber as relações interpessoais como relações de força e de

competição. Assim, interessa pois ser reconhecido pelas pessoas já valorizadas pelo grupo, tal como os leaders. A necessidade de transmitir uma imagem positiva de

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si está associada a um desejo de sedução, nem sempre bem aceite pelos participantes

do grupo que podem manifestar uma reacção agressiva por se sentirem inferiorizados.

Por fim, a necessidade de individualização, de ser reconhecido na sua própria identidade,

singularidade, diferença. Contudo, o grupo é frequentemente entendido como um

obstáculo à individualização, sendo necessário lutar contra uma pressão uniformizante,

criar oposição face à dinâmica grupal para se conquistar a singularidade.

Em suma, a necessidade de reconhecimento, que implica a procura de identidade, pode

expressar-se através de uma dinâmica complexa, indo da conformidade à singularidade,

da fusão à individualidade (Lipiansky, 1990).

É através da palavra25 que se exprime o reconhecimento e se constitui a imagem de si.

Ela assume, pois, um lugar central na problemática identitária. A palavra é

entendida, em termos subjectivos, como a manifestação e exteriorização de si para os

outros, como um prolongamento do indivíduo e da sua identidade.

Consoante a receptividade dos outros à sua palavra, o indivíduo sentir-se-á valorizado ou

depreciado. A experiência mais negativa, neste contexto, é vivenciada quando o indivíduo

tem a sensação da sua palavra ser totalmente ignorada. Por outro lado, a manifestação

de um desacordo, conflito ou opinião pode ser entendida como um ataque, uma forma de

pôr em causa as pessoas.

Se cada um se identifica com as suas palavras, é também tocado pela palavra do outro

nos seus pontos sensíveis e vulneráveis, sendo que o que os outros dizem atinge quem

ouve nos pontos onde prevê falhas, defeitos ou risco de desvalorização.

A palavra surge com o fim de traduzir a identidade do sujeito na interacção. Mas “é

através da recepção da sua palavra que o sujeito vê confirmada, e se reconhece, na sua

identidade, na representação que expressa sobre ele próprio ou, ao contrário, ignorado,

rejeitado ou negado”(Lipiansky, 1990:186).

2.4.3. Estratégias de adaptação positivas e negativas

Quando se utiliza uma estratégia pretende-se accionar um conjunto de acções coordenadas, no sentido de resolver positivamente determinada situação de

25Como nos refere o autor, não exclusivamente pois o pedido de reconhecimento também se faz pela gestualidade, proxémica (LIpiansky, 1990:184).

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tensão individual ou colectiva, que possa ser posta em causa. Pretende-se aceder a

uma recompensa, “vitória identitária”, face a uma situação complexa originada pelo

próprio indivíduo, na interacção com os outros como a família, os amigos… ou o sistema

social.

Interessa, pois, conhecer as formas de adaptação dos sujeitos, ou seja, a táctica utilizada

no processo interactivo face à representação do que está a ser posto em causa em cada

momento. Como nos refere Kastersztein “a análise estratégica é o complemento indispensável da análise descritiva a partir do momento em que estudamos as condutas humanas ou colectivas” (1990, p.31). Isto porque os comportamentos

observados/respostas dos indivíduos, não são apenas conjunturais ou fruto de estímulos

internos ou externos mas são sempre respostas finalizadas, pois a antecipação dos

efeitos determina e estrutura a acção. A estratégia depende, assim, das finalidades.

Estas finalidades, e os desafios a elas inerentes, negoceiam-se constantemente em

interacção com o ambiente e são fruto de uma avaliação do indivíduo em função das

suas capacidades de acção e dos constrangimentos exteriores.

Assim, se por um lado as estratégias de resposta dos indivíduos aos problema são diversificadas, tendo por fundamento a heterogeneidade das suas histórias de vida, das

suas formas de sentir e agir, por outro lado obedecem a algum padrão, alguma

regularidade, não sendo portanto inúmeras nem ilimitadas. Com base em tipologias é

pois possível relacionar comportamentos observados, finalidades e os mecanismos

psicológicos que sustentam esses comportamentos, entendidos frequentemente como

reacções inadaptadas às situações (Gaulejac & Léonetti, 1994). Os sentimentos de

humilhação, revolta e até vergonha, vivenciados pelos indivíduos em situação social

desfavorecida, submetidos frequentemente a uma identidade negativa ou desvalorizada,

originam o desenvolvimento de estratégias que respondam a essa situação. O autor situa

a vergonha, a culpabilidade que lhe está associada e o sentimento de agressividade para

com o próprio indivíduo, como a consequência dos desfasamentos entre a imagem que

ele tem de si próprio e a imagem que lhe é devolvida pelos outros. Ao mesmo tempo que

o indivíduo se culpabiliza por esta imagem que produz, não sabe como actuar nem o que

fazer para a contrariar. Por outro lado, a humilhação acontece pelo facto do indivíduo se

sentir impotente numa relação estabelecida entre forças desiguais. Sentindo que não é

responsável pela situação vai libertar toda a sua agressividade para os outros. Por fim, a

revolta ocorre na sequência de uma situação social vivenciada como injusta e dá origem

a acções individuais ou colectivas diversas, tais como o desejo de vingança, identificação

com o dominante, etc. (Gaulejac & Léonetti, 1994: 185).

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Perante o sofrimento de despersonalização vivido, Gaulejac & Léonetti expõem-nos três

cenários possíveis que se apresentam ao indivíduo. Assim, ele poderá tentar modificar o

sentido atribuído à situação, modificar a situação que lhe provoca sofrimento ou actuar

sobre o próprio sofrimento sentido. Em resposta a cada uma destas situações

corresponderão estratégias de actuação diferentes.

O indivíduo utilizará estratégias de contornamento cada vez que pretender contestar

uma imagem negativa atribuída pelos outros. Como não pode modificar determinada

situação vai procurar modificar o sentido atribuído a essa situação, o que passará por

“invalidar o olhar do outro que o designa como excluído ou desprezível, negar a sua

legitimidade para julgar, referir-se a outros sistemas de valores em relação aos quais a

sua identidade não seria desvalorizada” (Gaulejac & Léonetti, 1994:186). Se, por outro

lado, o indivíduo tentar sair da situação que lhe provoca sofrimento, alterando os factores

que lhe estão na origem, então falamos de estratégias de saída. O indivíduo poderá

tentar revalorizar a sua identidade, procurando sair da situação de exclusão e

encontrando a dignidade e o estatuto social desejados. Por fim, e na impossibilidade de

mobilizar recursos pessoais, afectivos para agir sobre a situação ou para lhe atribuir outro

significado, resta ao indivíduo, e como forma de resistir à interiorização de uma imagem

negativa de si próprio, mobilizar estratégias que lhe permitam dissimular ou esquecer o

seu sofrimento “pelo evitamento da situação geradora de sofrimento, pela negação, ou

pela apropriação antecipadora da sua desinserção, ele pode agir sobre a vivência da

situação” (idem). Trata-se de estratégias de defesa implementadas por via da

mobilização, consciente ou inconsciente, de mecanismos psíquicos de defesa.

De salientar que uma das finalidades estratégicas dos indivíduos, considerada mais

importante para Kastersztein (1990) é o reconhecimento da sua existência no sistema

social, é o sentimento subjectivo de pertença e especificidade/singularidade, elementos

fundamentais na compreensão dos comportamentos identitários finalizados. Assim,

pertencer a uma cultura ou grupo implicará reconhecer-se, pelo menos em características

essenciais, parecido com os outros. Há, por isso, uma pressão no sentido do respeito de

regras específicas a um sistema social. O indivíduo é assim chamado a definir objectivos

que lhe permitam provar o seu grau de pertença e integração. Esses objectivos podem

estar relacionados com a conformização que consiste em avaliar, consciente ou

inconscientemente, o grau de similitude entre um actor e o seu ambiente em termos de

comportamentos, opiniões, atitudes, motivações ou desejos.

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

O autor sugere que quando o hiato é bastante grande, com a pressão social a ajudar , o indivíduo vai começar a assumir comportamentos de acordo com as expectativas, o que não quer dizer que psicologicamente os aceite. Assim, pode dizer-se que existe

uma contradição/tensão entre comportamentos e opiniões externas, fazendo com que os

indivíduos procurem todas as ocasiões para manifestar as suas mais profundas

convicções. A conformização funciona assim como um meio de controlo privilegiado em

todos os sistemas sociais, não obstante a existência de espaços de liberdade individual

ou colectiva que permitem que os indivíduos não se confundam.

Por outro lado, os indivíduos podem recorrer ao anonimato como forma de provar a sua

integração. O recurso ao anonimato é, de alguma forma, a estratégia habitual dos

sistemas burocráticos, onde toda a avaliação de risco pode causar/acarretar

consequências nefastas para os actores. Assim, passar despercebido pode ser uma forma de mostrar que se respeita as regras estabelecidas, tal como todos os outros indivíduos.

Estes grupos de indivíduos tentam fazer-se esquecer, no sentido de manterem uma

situação socialmente confortável. Apesar de pouco estudada, esta estratégia parece ter

consequências fortes nos comportamentos dos indivíduos que a utilizam. Funciona como

um factor desresponsabilizante e, ao mesmo tempo, como revelador das potencialidades individuais.

Por fim, através da assimilação, como reforça o autor, os indivíduos vão tentar mostrar a sua pertença de forma muito forte, vincada, não deixando que ela possa ser posta em causa. Para tal, abdicam das características históricas e culturais que os

tornaram distintos e aceitam o conjunto de normas e valores dominantes. Historicamente

esta estratégia permitiu que numerosas minorias escapassem a tratamentos

discriminatórios. No entanto, estudos mostram que isto causará ao indivíduo um

sancionamento por parte da cultura de origem, sendo que muitos destes indivíduos tão

pouco tiveram aceitação por completo por parte da cultura de acolhimento. Quando nos

reportamos à dimensão grupal, a assimilação pressupõe que os indivíduos se procurem

aproximar dos que são parecidos, criando um sentimento de ligação aos outros. “A

procura de similitude pode aparecer, com efeito, como um mecanismo de defesa contra a

ansiedade provocada pela diferença e contra o desejo de distinção. Num ambiente social

mal conhecido, podendo ser percebido como ameaçador, a assimilação cria um

sentimento de ligação aos outros e evita o perigo do isolamento ou da rejeição. Distinguir-

se dos outros é, pois, ocupar um lugar de visibilidade social e é também “colocar-se

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adiante”, correndo o risco de ver contestado o lugar que se pretende” (Lipiansky,

1990:190).

Estas três finalidades são fortemente valorizadas positivamente, na medida em que

procuram resolver os conflitos identitários em prol do sistema social dominante, no

caso em estudo, em prol do funcionamento da própria instituição lar, favorecendo uma

interacção entre indivíduo-ambiente de carácter puramente funcional, não pondo em

causa as lógicas nem as práticas instituídas e cristalizadas. A grande dúvida é se esta

experiência será favorável ao indivíduo na sua vivência relacional, dado que dessa forma

se vê remetido e subjugado ao que lhe pré-existe. A sua singularidade estaria assim

completamente anulada.

Todavia, para que a sua singularidade e diferença seja preservada, dado que todos nos

desejamos afirmar como únicos e seres idênticos a nós próprios, tendemos a usar

estratégias identitárias que nos ajudem a buscar o reconhecimento. Apesar da percepção

de si poder ser, muitas vezes, fonte de angústia, a imagem que pretendemos transmitir

aos outros procura estar associada a características ideais, de indivíduo com identidade

forte e coerente. Muitas vezes é do contacto com o grupo, e dos conflitos e desafios que

daí decorrem, que resulta esse desejo de afirmação de si.

Neste sentido, e contrariando um pouco as estratégias do anonimato e do retraimento,

muito indivíduos ousam a estratégia da afirmação de si, implicando, frequentemente,

a quebra do silêncio a que estiveram voltados. Esta estratégia pressupõe,

simultaneamente, tomar a palavra, expor-se aos outros e até assumir posturas de

oposição face aos líderes.

A esta estratégia está claramente associado o objectivo de se tornar visível e reconhecido aos olhos dos outros, de ser tomado em consideração. No entender de

Kastersztein (1990), a procura de visibilidade é um tipo de comportamento estratégico

identitário que indivíduos “inexistentes” utilizam para se afirmarem, com base nos

aspectos da sua diferença que são julgados negativamente.

Por outro lado, apesar da assimilação e sentimento de semelhança favorecerem,

sobretudo numa fase de conhecimento inicial, a identificação e aproximação entre

indivíduos, necessária às relações que se pretendem securizantes e de confiança, o

indivíduo vai sentir o desejo narcísico de, a certa altura, se afirmar como pessoa distinta,

se expressar de forma mais autêntica, vai querer diferenciar-se, vai desejar ser

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reconhecido na sua singularidade. Com efeito, “a diferença é procurada quando acarreta uma mais valia para o indivíduo, lhe permite afirmar a sua individualidade e a sua originalidade; ou quando o ajuda a escapar de uma comparação social

desfavorável, a tornar-se “incomparável” definindo-se como outro em terrenos onde é (ou

pode ser) inferiorizado” (Lipiansky, 1990: 192). A procura dos particularismos passa a ser uma estratégia contra a indiferenciação. No entanto, como nos adverte o autor, a

operacionalização desta estratégia é bastante complexa, porquanto se ela parecer

programada e se mostrar demasiadamente explícita pode fazer recair sobre o indivíduo a

suspeita de vaidade ou presunção.

A busca pela singularização/individualização pode atingir pontos mais extremos, quando

os indivíduos se sentem desvalorizados, implicando muita energia por parte das pessoas

que a protagonizam. Quando um indivíduo em comparação com outros percebe uma

desvalorização, tenta tornar-se incomparável para não ser julgado como inferior. No

entanto, se não houver critérios de comparação possíveis o indivíduo não pode ser

julgado como inferior.

A dialéctica entre ambas as estratégias, diferenciação e assimilação, está na base da

construção da identidade, de forma a que elas devem ser utilizadas em diferentes

contextos, de acordo com o valor que aí possam conferir à imagem do indivíduo.

Há ainda um conjunto de outras estratégias, referenciadas por Lipiansy (1990:195 e

seguintes), que procuram restaurar a unidade e consistência identitárias. O autor

designa-as de categorização, clivagem e projecção.

A categorização permite classificar os indivíduos e grupos, dando origem a uma

diferenciação. Quando se manifesta, nas relações grupais, origina uma diferenciação

intergrupos e uma homogeneização intragrupo. Permite também ao indivíduo diferenciar-

se dos outros e procurar a sua unicidade. Esta estratégia contribui, portanto, para a

definição de si a partir das categorias de pertença e para o sentimento de identidade colectiva. De salientar que a procura de singularidade dá origem a um

processo de distinção produtor de novas categorias de diferenciação.

O mecanismo da clivagem interfere na constituição da identidade grupal e pressupõe a divisão do grupo em duas partes antagónicas (ex: velhos/novos; faladores/calados…).

Cada um pode partilhar com outros uma identidade, numa situação de diferenciação

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valorizada, permitindo uma personalização dos laços entre os membros do grupo, dando

relevo à abordagem dos problemas de identidade colectiva.

A clivagem permite também aos que são portadores de uma “identidade negativa”, a

criação de uma certa identificação que lhes permite contestar essa identidade negativa,

até então atribuída. A este mecanismo de clivagem se associa a intolerância que se

exprime por vezes face à ambiguidade. Perante essa intolerância os participantes

reagem tentando estabelecer categorias dicotómicas.

Através do mecanismo de projecção o outro é investido de aspectos negativos da sua própria identidade que são rejeitados ou negados. Certas categorias mais ou

menos presentes em cada um são projectadas e reproduzidas na clivagem. Atribuindo

elementos negativos aos outros, os indivíduos procuram demarcar-se dos mesmos.

Quando os participantes se libertam do processo de clivagem e projecção, segue-se uma

fase de sentimentos depressivos e de medo que a agressividade manifestada na

clivagem possa ter sido destrutiva para os protagonistas. Se estes mecanismos

assumem, numa primeira fase, a defesa da identidade dos indivíduos, pode aparecer,

num segundo momento, uma imagem de conflito e espartilhamento colocando em causa a unidade do “eu”, percebendo-se assim a ligação entre a necessidade de uma

unidade grupal e a procura de um sentimento de unidade identitária.

As estratégias de oposição, envolvendo habitualmente na sua génese a problemática

do poder e do controle, afiguram-se para muitos como necessárias na constituição do

sentimento de identidade e afirmação de si. Como afirma Lipiansky, “o indivíduo sente

toda a manifestação do poder como uma pressão exercida sobre si para que se conforme

a um certo modelo e portanto como uma ameaça de alienação; ele reage nestas

situações através da submissão ou da oposição” (Lipiansky, 1990:199). Esta estratégia,

como enuncia o autor, pode manifestar-se de forma passiva (retraimento ou negativismo)

ou activa, que se traduz por uma atitude de ataque (resposta ao sentimento de agressão

e ameaça identitária que implica a situação grupal), normalmente direccionada para os

que assumem situação de poder. O ataque surge como forma de fuga face à situação de submissão e de alienação, sendo assim uma das formas de afirmação de si. No

entanto, pode ser também fonte de angústia e de reacções de defesa pelo facto de ser

entendida, quer por si, quer pelos outros, como um perigo para a integridade pessoal.

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A última estratégia, referenciada pelo autor, está relacionada com os processos de

identificação recíproca, no seio dos grupos, que permitem que os indivíduos se definam

por relação aos outros. Os indivíduos exprimem-se por identificação a outro(s), sendo

“frequentemente a partir do momento em que um participante encontra um “duplo”

(alguém de quem se sente próximo, que reage como ele, exprime os mesmos

sentimentos…) que se sente autorizado a existir e a exprimir-se no grupo” (Lipiansky,

1990:200). Esta identificação mútua torna-se evidente em situações como: quando um

indivíduo fala e outro intervém também; se nos dirigimos a um, outro responde; sentarem-

se lado a lado… Por vezes a identificação é de tal forma forte que outros indivíduos do grupo se confundem no reconhecimento dos que se identificam em profundidade. Estes últimos vêm-se mesmo forçados a reivindicar as suas identidades

respectivas. Em casos limites, o outro, representando o objecto de projecção do ideal do

“eu”, pode significar alguém que retira ao sujeito a sua identidade. Verifica-se, nestas

circunstâncias, sentimentos de profunda ambiguidade uma vez que ao desejo de se

parecer com o outro junta-se a vontade de o aniquilar, eliminar.

Fruto de um processo de evolução pessoal, a individualização pode surgir como o

resultado de um caminho de auto-conhecimento e de aceitação das várias facetas da sua

identidade. No entanto, e como isto nem sempre acontece, poderão ocorrer estratégias negativas, através das quais os indivíduos se fecham face aos outros. Chegam mesmo a

colocar em causa a busca pelo seu reconhecimento e a experiência de um sentimento

coerente e satisfatório de identidade. Isto verifica-se quando os indivíduos são negados, condenados pelo grupo à “não-existência”, ao seu isolamento. Situações

de deficiência física, mas sobretudo psíquica, ou de falta de autenticidade podem reforçar

a falta de reconhecimento pelo grupo. Outras estratégias há que conduzem a formas de

rejeição e exclusão, sobretudo quando o grupo deseja marginalizar indivíduos que

parecem difíceis de integrar, principalmente após tentativas falhadas. As dificuldades de

um reconhecimento mútuo podem culminar na agressão e negação recíprocas entre

indivíduos. Já referenciamos anteriormente que uma outra estratégia negativa é a

desvalorização, conduzindo a que o sujeito retire das suas interacções com outros, uma imagem de si próprio não valorizante ou mesmo negativa. Muitas vezes o sujeito

não consegue transmitir a imagem que desejaria de si, produzindo-se um hiato entre o

seu ideal de “eu” e o seu “eu” vivido. A desvalorização pode resultar também de uma

representação negativa de si, provindo quer das atitudes da sua envolvência mais

próxima, quer da cultura que o caracteriza, em função da pertença social ou étnica do

indivíduo. Em última instância, pode chegar a identificar-se com a imagem que os outros

lhe devolvem ou que ele pensa que os outros lhe devolvem, sendo este um mecanismo

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particularmente alienante. Mesmo que essa imagem seja negativa, ela será a única forma

de identificação disponível, sendo preferível à ausência de identidade.

Estas estratégias negativas, como afirma Lipiansky, “têm um carácter paradoxal no

sentido em que conduzem ao resultado contrário do que é desejado e trabalham sobre o

não-reconhecimento, a negação, a rejeição, a exclusão, a desvalorização e a perda de

identidade. A responsabilidade deste insucesso não pode ser imputada completamente

nem à pessoa que a experimenta, nem aos outros, nem ao grupo mas ao modo de

interacção que se estabeleceu entre os diferentes actores” (1990:202).

Resumindo, os comportamentos dos indivíduos podem elucidar as suas escolhas e os

objectivos que pretendem atingir em torno da sua integração, conformação, diferenciação. Por outro lado, a realidade dos comportamentos identitários individuais ou colectivos pode ser complexa, polarizada ou até mesmo ambivalente. Dito de outro modo, os indivíduos podem desejar simultaneamente

conformar-se ou diferenciar-se, sendo que a tensão gerada pela incoerência de

comportamentos, pode levar a uma crise endógena da identidade que é, muitas vezes,

reflexo de uma crise exógena criada pela pressão do meio. No entanto, a situação grupal

que se pode comparar à circunstância decorrente da vivência numa comunidade

residencial, favorece um processo “catártico” em que cada um descobre, através dos

outros, mecanismos afectivos e sociocognitivos onde se enraíza o seu sentimento de

identidade. Pode dizer-se, pois, que há uma relação de correspondência entre a

problemática identitária subjectiva e os processos interactivos. As estratégias identitárias

que o indivíduo desenvolve no grupo, resultam da busca de reconhecimento e dos

mecanismos de defesa. Assim, as relações afectivas de simpatia ou antipatia, atracção

ou rejeição são comandadas por mecanismos de identificação onde se actualiza uma

faceta de identidade do indivíduo. Na verdade, os outros não são vistos sempre da

mesma maneira. “Os outros aparecem, segundo os momentos, próximos ou distantes,

confiantes ou ameaçadores, parecidos ou diferentes” (Lipiansky, 1990: 208).

Na verdade, a situação de partilha num grupo poderá ser sinónimo de uma oportunidade

de evolução pessoal, porquanto nos permite adquirir uma consciência mais precisa da

dependência do olhar dos outros na imagem que temos de nós próprios. Assim, o

reconhecimento de si passa pelo reconhecimento dos outros, o que poderá numa

perspectiva optimista, contribuir para que os indivíduos se aceitem melhor a si próprios,

se valorizarem e sintam reconhecidos.

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3. Procedimentos metodológicos seleccionados para o estudo do lar

3.1. Justificação de um modelo de investigação qualitativa

Quando falamos em metodologia, falamos em estratégias adequadas para produzir o

conhecimento. Visando uma aproximação aos desenvolvimentos mais recentes da investigação qualitativa, que se afasta de uma concepção positivista da ciência,

segundo a qual existe uma realidade externa que pode ser objectivamente estudada por

um sujeito conhecedor/observador distante e externo, através de metodologias rigorosas

e precisas, optou-se, neste trabalho, por uma aproximação à “grounded theory methodology”26 (GTM). Referimos “aproximação” pois estamos certos da exigência dos

seus pressupostos, difíceis de cumprir rigorosamente.

Procurou-se, pois, optar por procedimentos metodológicos que, afastados da

preocupação em construir modelos abstractos de conhecimento, permitissem uma

análise mais flexível do material recolhido, assim como a “compreensão das experiências e dos significados que os seres humanos constroem em interacção”, afirmando-se, da mesma forma, que “não existe produção de conhecimento

independentemente do sujeito conhecedor assumindo-se que o investigador deve incorporar e assumir na sua produção científica a sua própria subjectividade

(Fernandes & Maia, 2001:50). Pretendia-se, de facto, ampliar a compreensão acerca de

como o internamento em lar pode contribuir para modificar a estrutura identitária dos

indivíduos.

Neste sentido, não se parte de uma visão neutral e objectiva da realidade externa,

nem se pressupõe que o conhecimento da mesma possa ser efectuado sem tomar em

consideração as características do observador que se encontra envolvido no processo de

investigação, colocando-se claramente em causa a noção de “verdade absoluta” associada à produção de conhecimento. No trabalho desenvolvido procurou-se, por outro

lado, valorizar “as condições contextuais em que os fenómenos ocorrem, ou seja, a

teoria é enacted num processo em que co-existem interpretações de múltiplos actores”

(Fernandes & Maia, 2001:53).

26 A “grounded theory methodology” surgiu nos finais dos anos 60 e foi proposta por Glaser e Strauss, na obra The Discovery of Grounded Theory: Strategies for Qualitative Research, 1967

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No caso concreto, e visando, em síntese, estudar os efeitos específicos do funcionamento da instituição – lar – sobre a identidade dos internados, captando a

estrutura social do lar e o sistema de relações que se estabelece entre os indivíduos que

dela fazem parte, parece-nos acertado mergulhar numa lógica qualitativa. O paradigma

qualitativo permite assim, ao investigador, apreender a variabilidade de práticas e

interacções que possam ter impacto na estrutura identitária dos indivíduos, e os

significados que, no contexto do lar, lhe são atribuídos pelos actores através das suas

interacções sociais.

Ao estudar-se a identidade dos idosos num lar está-se a tomar em consideração o objecto em estudo em ligação com o seu “meio natural”, por via de um processo

interactivo entre observador/observados, privilegiando-se as expressões e os discursos

dos vários actores, sejam idosos ou elementos da equipa técnica ou operacional. O conhecimento é, pois, fundamentado e enraizado na especificidade da realidade dos investigados, criando-se uma ligação próxima entre a teoria e a realidade estudada.

Neste enquadramento de investigação qualitativa, a investigadora assume, pois, a “responsabilidade do seu papel interpretativo, e inclui as perspectivas das vozes que são estudadas” (Fernandes & Maia, 2001:53). Dito de outro modo, os

investigadores da GTM não acreditam que é simplesmente possível relatar ou dar voz

aos pontos de vista das pessoas, grupos ou organizações estudadas, antes assumem

responsabilidade pela interpretação do que observam, ouvem ou lêem” (Strauss &

Corbin, 1994:274).

Com base nesta metodologia, a teoria vai sendo gerada a partir dos dados, e das

relações entre os dados, sistematicamente recolhidos e analisados. As teorias baseadas

em investigações prévias podem ser utilizadas, desde que se verifique uma

correspondência entre estas e os novos dados recolhidos. Na verdade, esta metodologia

concebe a “produção da teoria e a realização da investigação social como duas partes do

mesmo processo” (Glaser, 1978, in Strauss & Corbin, 1994:273).

Procurou-se, pois, ao longo do trabalho, ir construindo reflexões em torno dos dados observados e dos dados contidos nas conversas e discursos dos idosos, retratando, sempre que se demonstrou pertinente, as várias visões em presença nomeadamente da investigadora, utentes, equipa técnica e operacional. Paralelamente,

foram sendo colocadas questões sistemáticas em torno das várias dimensões em

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análise, antecedidas de uma questão central que orientou a investigação: em que medida

o lar com as suas regras e normas de funcionamento, o clima relacional que propicia e

produz, os espaços que oferece e as oportunidades e actividades que proporciona

contribui para a preservação e reforço da identidade dos idosos ou, ao contrário, para a

sua aniquilação e mortificação?

As questões que foram sendo colocadas sistematicamente permitiram a comparação

constante entre as reflexões elaboradas e os dados recolhidos. A este respeito pode

referir-se que o “método de comparação constante é o princípio central da GTM e

consiste num movimento contínuo entre a construção do investigador e o retorno aos

dados, até esse processo ficar saturado” (Fernandes & Maia, 2001: 53), contribuindo para

que as reflexões do investigador se mantenham próximas dos dados.

De referenciar ainda, na óptica da escolha metodológica efectuada, algumas críticas.

Primeiramente, poder-se-á referenciar a falha de rigor na fase analítica, uma vez que se

torna necessário fazer apelo à capacidade integrativa do investigador, face à vastidão dos dados recolhidos. De salientar, ainda, a dificuldade de transmissão do conhecimento íntimo que o investigador possui acerca do fenómeno em estudo. A outra

crítica prende-se com a impossibilidade de generalização e de representatividade dos resultados obtidos.

No entanto, como referem Strauss e Corbin (1990, cit in Fernandes & Maia, 2001) o poder explicativo dos fenómenos significa também e nessa medida, capacidade preditiva e não generalização dos resultados. Estabelecendo uma comparação entre

os fenómenos sociais e os de laboratório, podemos dizer que os primeiros não são

replicáveis como os segundos, onde se pode controlar todas, ou pelo menos boa parte,

das variáveis, de acordo com a cláusula “caeteris paribus”. No entanto, se se encontrar

contextos onde se verifiquem um conjunto de condições semelhantes, deverá aplicar-se

uma compreensão teórica equivalente, podendo-se, assim, fazer previsões dos fenómenos sociais (Fernandes & Maia, 2001:71). Isto reforça o facto de os

investigadores desta metodologia estarem muito mais interessados em estudar padrões

de acção e interacção, em descobrir os processos de mudanças nesses padrões e não

tanto em tanto em criar teorias sobre actores individuais enquanto tal.

Nesta linha de pensamento, Castel adverte que a instituição totalitária “enquanto instituição social, reúne a maior parte dos traços estruturais que caracterizam um grupo de estabelecimentos especializados na função de “guardar homens” e no

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controle totalitário do seu modo de vida: o isolamento em relação ao mundo exterior

num espaço fechado, a promiscuidade entre os reclusos, o tomar a seu cargo o conjunto

de necessidades dos indivíduos, a observância obrigatória de um regulamento que se

imiscui na intimidade do sujeito e programa todos os pormenores da sua existência

quotidiana, a irreversibilidade dos papéis de membro do pessoal e de pensionista, a

referência constante a uma ideologia definida como único critério de apreciação de todos

os aspectos de condutas, etc., todas estas características convêm tanto ao hospital

psiquiátrico como à prisão, ao convento, ao quartel ou ao campo de concentração” (cit in

Goffman, 1968:11).

3.1.1. Procedimentos e instrumentos de pesquisa/recolha de dados: a observação participante, entrevistas semi-estruturadas a idosos, conversas informais, consulta de documentos institucionais

Enquanto que podemos definir o método como um procedimento sistemático a adoptar

na investigação, comparando-o a um plano geral ou estratégia a implementar, a técnica permite a aplicação específica do plano metodológico, assumindo-se como a táctica ou a forma especial de a executar. Assim, a técnica encontra-se subordinada

ao método e é-lhe auxiliar, sendo que “…a natureza do objecto de análise é que deverá

determinar a escolha dos instrumentos de pesquisa” (Lima, 1995: 18).

A “grounded theory methodology” partilha pontos comuns com outros modos de desenvolver investigação qualitativa, designadamente no que diz respeito às fontes de

dados que são as mesmas: entrevistas, observações de campo, documentos de todos os

tipos (diários, cartas, autobiografias, biografias, relatos históricos, jornais, etc) (Strauss &

Corbin, 1994:274).

Para o estudo em causa, a observação participante27 parece ser a única técnica capaz

de captar “… os comportamentos no momento em que eles se produzem e em si

mesmos, sem a mediação de um documento ou de um testemunho” (Quivy e

Campenhoudt, 1998: 196). Apesar do campo de observação de um investigador ser

aparentemente infinito, ele deve reger-se pelos objectivos do trabalho, os quais

contribuirão para a construção prévia e preliminar de uma grelha de observação teoricamente sustentada que oriente o próprio processo de observação.

27 Para analisar a grelha de observação, por favor, consultar o anexo.

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Tal como fez Goffman em Asiles (1968), também neste trabalho se pretende utilizar o

conceito de instituição totalitária como a base para uma grelha de análise relativa à

experiência dos idosos no lar. Procurou-se, pois, observar, os procedimentos, as rotinas,

as actividades que desenvolve, as relações que estabelece ao longo das várias etapas

da carreira moral do idoso em lar, desde que ele lá entra até que sai, sendo este

momento, por regra, coincidente com a sua morte. Como o respeitam, salvaguardam a

sua intimidade e história de vida, protegem a sua imagem, preservam as suas vontades e

acatam as suas decisões foram outras tantas dimensões de análise privilegiadas,

permitindo-nos entender como o lar, seus agentes, práticas e seus funcionamentos podem, ou não, mortificar o indivíduo e remetê-lo para uma condição de respeito ou subalternidade.

Campenhoudt, ao desenvolver uma análise sobre a obra de Goffman, referencia-nos que

“é pela própria estrutura da instituição totalitária, formalizada pelo conceito, que ele vai

dar conta dos comportamentos observáveis, incluindo os mais aberrantes à primeira

vista, e poder ordenar uma série de observações desencontradas numa visão de

conjunto coerente” (2003: 52).

De salientar também contributos da psicologia ambiental para a construção da grelha de análise o que nos possibilitou estar atentos às dimensões físicas e relacionais

associadas aos vários espaços institucionais. A respeito da grelha, não pode deixar de

ser referenciado que a mesma foi sofrendo alterações e acréscimos ao longo do

trabalho, fruto do próprio processo de análise no terreno e da contemplação de

dimensões inicialmente não previstas, correspondendo ao próprio teor da GTM.

As observações efectuadas foram registadas em diários de campo, implicando um

registo descritivo e analítico de momentos e contextos diversificados relativos à vida

institucional, nas suas múltiplas roupagens. Estas observações foram de tipo etnográfico,

uma vez que se pretendeu, durante um período de tempo significativo, estudar a vida colectiva num lar de idosos, participando no seu dia-a-dia. Tentando perturbar o

menos possível o seu quotidiano, pretendeu-se assegurar o máximo de rigor nas

observações, através da convergência entre as diversas informações obtidas,

confrontando-as permanentemente com as reflexões construídas. Naturalmente que este

tipo de investigação, de duração limitada, não permite a aplicação da observação

etnográfica com toda a sua exigência, dado que não é possível uma presença permanente nem durante longos meses ou anos no lar de idosos, com vista à

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recolha de material empírico, daí também se utilizar a entrevista como técnica complementar.

Referenciamos, já, que a observação participante permite a captação dos

acontecimentos no momento em que se produzem. Além desta grande virtualidade é de

destacar a recolha de material relativamente espontâneo, bem como a autenticidade dos acontecimentos por relação às palavras ou aos escritos. Contudo, podem

sempre surgir dificuldades em se ser aceite como observador pelo público-alvo. Este

constrangimento não ocorreu de forma significativa no trabalho em análise, uma vez que

a integração na instituição foi feita por via da colaboração em tarefas precisas da vida institucional e contou com o apoio permanente de técnicos que funcionam como “outros significativos” para os idosos e que utilizaram o seu poder simbólico para

atenuar o eventual impacto negativo da presença de um elemento ”estranho” à vida

institucional.

Outro problema da técnica diz respeito ao registo da informação recolhida, na medida

que implica a transcrição de comportamentos imediatamente após a observação,

dado que a memória é limitada e selectiva. Depreende-se que a exaustividade desta

tarefa possa, em alguns momentos tornar o trabalho esgotante. De acrescentar, por fim,

o problema da interpretação das observações. Se a existência de uma grelha de

observação formalizada pode facilitar a interpretação dos dados, por outro lado, pode tornar-se superficial e impedir que o sujeito que observa esteja tão disponível e atento para captar a riqueza e complexidade dos processos estudados.

A realização de entrevistas aos idosos visou captar a estrutura de significados

construídos pelos próprios idosos. Tratou-se de entrevistas semi-directivas ou semi-

estruturadas, uma vez que se partiu de um guião a partir do qual se estabeleceram

perguntas relativamente abertas. O próprio guião foi sendo realizado em consonância

com o objecto de estudo seleccionado e à medida que o próprio processo de análise

evoluiu. O entrevistado pode responder abertamente pela ordem que quiser e com as

palavras que escolher. Aliás, os grandes objectivos desta técnica são “a análise do sentido que os actores dão às suas práticas e aos acontecimentos com os quais se

vêem confrontados: os seus sistemas de valores, as suas referências normativas, as

suas interpretações de situações conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias

experiências (…) os sistemas de relações, o funcionamento de uma organização…”

(Quivy e Campenhoudt, 1998:193).

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Se podemos apontar como grandes vantagens o grau de profundidade da informação recolhida, bem como a captação das interpretações dos interlocutores, respeitando

a sua linguagem e os seus quadros de referência, também será justo salientar alguns

limites. De entre estes, a possibilidade de se conversar de qualquer maneira, assente

na relativa flexibilidade que a técnica comporta, e a crença na completa espontaneidade do entrevistado e na neutralidade do entrevistador. Como nos

chama a atenção Bourdieu (1993), a relação entre investigador e investigado é uma

relação social que exerce efeito nos resultados obtidos. Por si só, não é possível ignorar

a natureza das interacções que se estabelecem nem os efeitos das estruturas objectivas,

daí que seja necessário dominar as distorções por via de uma prática reflexiva e

metódica. Uma vez que o entrevistador produz a regra do jogo na entrevista, dando lugar

a uma relação claramente assimétrica, é imprescindível que desenvolva a capacidade de

controlar no terreno os efeitos da estrutura em que se concretiza, obrigando-o a trabalhar

os seus próprios pressupostos e a controlar os efeitos inevitáveis da interrogação.

O processo de interacção social na entrevista implica que “o entrevistador não deve

somente tentar conhecer o significado real das respostas dadas pelo entrevistado como

deve também ter presente o facto de que, por sua vez, o seu informante está tentando

conhecer os motivos do entrevistador, respondendo ao embaraço deste. Mesmo à sua

falta de insight” ( Goode & Hatt, 1968: 241).

Para procurar obviar os riscos inerentes ao próprio processo de interacção social

presente nas entrevistas e, simultaneamente, permitir que alguns temas das entrevistas

decorressem de dimensões interessantes emanadas da própria observação no lar, estas entrevistas só foram realizadas após cinco meses de presença assídua na instituição, momento em que se entenderam reunidas as condições quer de conhecimento razoável do lar, quer de proximidade e confiança com os utentes que

garantissem a fiabilidade e qualidade desejada ao trabalho.

Na impossibilidade de entrevistar o universo dos utentes do lar, quer por limitações

inerentes ao próprio trabalho, quer pelo facto de uma parte significativa dos mesmos não

apresentar condições físicas e/ou psicológicas que lhes permitissem perceber o que

estava a ser abordado ou permanecer em atenção o tempo necessário, e dado que não

estávamos movidos por preocupações de representatividade estatística, foi necessário seleccionar uma amostra desse universo, não obstante ter sido possível, ao longo de

todo o trabalho desenvolvido, contactar e conhecer todos ou quase todos os idosos

institucionalizados. Dada a sobrerepresentação feminina, foram seleccionados 22

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utentes, dos quais 6 eram homens e 16 eram mulheres. No entanto, problemas

decorrentes da gravação impediram que duas entrevistas fossem consideradas. A

amostra final saldou-se em 20 utentes, 14 mulheres e 6 homens.

De salientar o facto de os profissionais do lar, de uma maneira geral, incluindo equipa

técnica e operacional, entenderem não haver condições para fazer entrevistas aos idosos

pelo facto de a generalidade apresentar défices mentais graves, rotulando-os de incapazes e dementes. A demência é atribuída a uma percentagem elevadíssima de

residentes, ainda que não existam diagnósticos médicos que o comprovem. Qualquer

cansaço, esquecimento ou lentidão são rotulados, imediatamente, como défices

cognitivos. Se, de facto, tivéssemos atendido às recomendações destes profissionais,

este trabalho de entrevistas não teria sido realizado.

Os principais critérios que presidiram à selecção dessa amostra, pensados e decididos à

medida que se foi tendo mais conhecimento da realidade em estudo, visaram, sobretudo,

permitir destacar distintas experiências e representações acerca da entrada e vida no lar.

Os critérios estiveram, então, relacionados com a proximidade e facilidade de contacto; serem, como já ficou claro, residentes de ambos os sexos; residirem no lar por períodos de tempo distintos; se encontrarem capazes de estabelecer uma conversa por um período prolongado; apresentarem diferentes estatutos de saúde e autonomia na realização das actividades de vida diárias e terem demonstrado

diferentes graus/níveis de adaptação ao quotidiano do lar.

O guião de entrevista28, de utilidade imprescindível neste processo, foi dividido em três grandes partes, seguindo uma ordem cronológica em função das várias etapas de vida,

cada uma dos quais contemplando diferentes temáticas relativas à vida dos sujeitos

entrevistados: temas acerca do percurso de vida no decorrer da infância, juventude, vida adulta; temas acerca da situação de vida na idade madura (quando existam, após

a saída dos filhos da casa de família) e temas acerca do período que se inicia com a entrada em lar.

Esta abordagem pretendeu lançar os temas mencionados, não como questões fechadas mas como elementos que pudessem sustentar a construção do diálogo a

manter com os idosos, sendo certo que se pretendia sobrevalorizar o período coincidente com a entrada em lar. De entre as várias dimensões aqui tratadas,

pretendia-se captar os sentimentos e representações em torno do dia da entrada;

28 Para analisar o guião de entrevista, por favor, consultar o anexo.

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lembranças relativas ao acolhimento e recepção no lar; enquadramento no próprio lar,

implicando o conhecimento e as relações estabelecidas com o espaço físico, com os

outros residentes, pessoal e direcção, as representações e práticas relativas ao

quotidiano e aos serviços prestados no lar. Foi ainda solicitado aos utentes que se

pronunciassem acerca das principais mudanças estabelecidas nas suas vidas. De entre

várias mudanças enumeradas, desejava-se percepcionar a forma como a imagem sobre

os outros era construída e a percepção adquirida em torno da imagem que os outros

pudessem ter construído acerca de si próprios. O último objectivo e tema da entrevista

centrou-se na forma como ainda perspectivavam o futuro, tendo como referência um

passado reinterpretado e o presente vivido.

Estamos certos de que os discursos dos idosos, situando-se num tempo presente, mais

não são do que interpretações distantes acerca do que foi a sua vida, permitindo uma

reinterpretação e reavaliação dos acontecimentos vividos e da imagem construída em torno do seu “eu”. Desejava-se, pois, identificar essas mudanças identitárias na base das apreciações subjectivas formuladas pelos próprios idosos inquiridos, mais

do que pelas apreciações formuladas pala investigadora, permitindo que os próprios

pudessem destacar o que mais se tornava importante para si. O passado reconfigura-se

a partir do presente, por isso mesmo assumimos que “as narrações retrospectivas são

questionáveis a partir do presente, dado este se instituir num princípio de relevância e de

ordem de valores ao que vai sendo narrado. O valor da narração no presente é tributo da possibilidade de se organizar o sentido da vida para o «eu que hoje sou», na

base de uma identificação com a imagem construída desse «eu» - do «eu» que sou ou

deixei de ser” (Pais, 2006:168).

Este tipo de narração permite, igualmente, destacar o que hoje se afigura como mais

relevante para si e a identificação com o “fluir do tempo”. Como Pais reforça, “é essa

confluência entre identidade e temporalidade que caracteriza a narratividade

retrospectiva (2006:169).

No que diz respeito às principais dificuldades que tivemos que superar, de salientar a

tendência massiva que os utentes demonstravam em se situar no tempo passado.

Foi necessário bastante esforço por parte da entrevistadora no processo de condução da

maior parte das entrevistas, tal era a necessidade em relatar o passado e episódios da

história de vida. Em alguns casos, notou-se uma necessidade veemente em fazê-lo

porque havia que refazer alguns acontecimentos, a fim de que estes fizessem sentido no enquadramento geral da vida. Como nos ilustrou Pais, na sequência das

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entrevistas que realizou a idosos institucionalizados em Lisboa, o reencontro com o

passado, mesmo que de forma nostálgica e melancólica, permite construir um sentido de

vida para o presente: “expressar dores do passado permite aliviar dores do presente. As

angústias do presente são relativizadas quando inscritas na amargura do ciclo de vida”

(2006:156).

Para outros idosos, porém, o relato do passado servia quase como uma estratégia terapêutica de enfrentamento das vivências actuais. Falavam quase como se o

presente não existisse e apenas aquilo que foram outrora fazia sentido e tinha validade

quando se tratava de se auto-caracterizarem. Uma certa necessidade em anular o

presente e uma desesperança no futuro ficava evidente quando tudo parecia ser motivo

para recordarem o passado. A verdade é que “muitos vivem do passado e para ele

continuam a viver” (Pais, 2006:156), eufemizando muitas vivências desse tempo, como

se à distância tudo parecesse mais grandioso e com sentido.

Em sintonia com o autor, reforçamos a ideia de que “as memórias são metáforas da

imaginação, lembranças emolduradas pelo tempo que arrastam um efeito de

encantamento”(…) sendo que “só em comparação com o presente, muito mais turvada por efeito do referido contraste de temporalidades, [entre os tempos recordados e o

tempo em que a memória revive as recordações] é que a memória sobrevaloriza as vivências passadas” (2006:157 e 155).

Houve alguns utentes, ainda que se tivessem tratado de situações pontuais, que

optaram por responder às entrevistas de forma lacónica e elementar, quase como se

não tivessem muito a dizer sobre a sua vida nem sobre a sua passagem e vivência no lar.

Já aprenderam a viver assim e, por isso mesmo, estão resignados, adaptados à vida. Por

outro lado, e porque a maior parte destes relatos provieram de idosos que já residem há

alguns anos no lar, notava-se uma adaptação funcional ao lar e à sua vida presente.

Estes eram os mesmos idosos que, no dia-a-dia, nada tinham a dizer e dificilmente

participavam nas actividades a realizar. Não se tratava propriamente de desconfiança,

nem tão pouco do desejo consciente de não colaborar no decorrer do trabalho de

investigação em curso no qual sabiam, de antemão, que estavam a participar. Havia,

inscrita nos seus rostos, uma imagem de extremo cansaço, uma atitude de conformação absoluta, em alguns casos mesmo, de tristeza e desistência da vida, aguardando

passivamente aquilo que o “senhor lhes tem destinado”.

Para além da dificuldade genérica em se fazerem remontar para o tempo passado,

alguns utentes, ainda que em minoria, não demonstraram uma disponibilidade

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imediata em participar na entrevista. Notava-se algum receio de que os seus

desabafos fossem desvendados e contados a funcionários e direcção, ainda que fosse

sempre reforçada a total confidencialidade dos dados e explicada a finalidade do trabalho

a ser desenvolvido. No entanto, após se certificarem que outros residentes da sua

confiança o faziam e terminavam a entrevista com agrado, prontificavam-se, da mesma

forma, a participar.

Apenas um residente que inicialmente havia sido seleccionado para a entrevista foi

rejeitado pelo facto de termos notado que sucessivamente encontrava pretextos para não

poder participar nas entrevistas, fazendo-nos crer da sua indesejabilidade em participar.

No entanto, após ter percebido que não mais era abordado nesse sentido, foi curioso

constatar o quanto ele manifestava necessidade em contar a sua vida, sobretudo os seus

desaires e reveses familiares, particularmente o afastamento das suas filhas. A situação

de se deslocar para uma sala à parte, especificamente para conversar com a

investigadora causava-lhe ansiedade e receio, não obstante e imensa necessidade de

alguém que ouvisse as suas mais profundas tristezas, resumidas, claramente, no seu

expresso desejo de morrer.

De salientar que todas as entrevistais foram realizadas em espaços reservados que garantissem confidencialidade: ora numa pequena sala, junto à sala de convívio, onde

frequentemente se guardavam os materiais das actividades realizadas pelos idosos,

sempre que estes apresentavam dificuldade em se locomover; ora numa outra pequena

sala, de aproveitamento de um espaço interior, junto à entrada do lar, que não tinha

finalidade atribuída e estava habitualmente fechada.

Foi utilizado um gravador para registar os vários discursos dos utentes. Alguns idosos

mostravam-se algo intimidados com a presença deste objecto; outros, porém, sentiam-se

ainda mais valorizados na sua condição de interlocutores privilegiados da investigadora,

assumindo uma pose mais concentrada, atenta, chegando a recompor a sua postura na

cadeira denotando a importância atribuída ao momento.

Ainda assim, foram várias as vezes em que os utentes perguntavam: “ai, menina, tem a

certeza que elas isto não vão saber?” ou “veja lá na encrenca em que me vai meter, que

eu não quero confusões”. Em escassas ocasiões, e por motivos de força maior, ouve a

necessidade de a animadora sócio-cultural entrar na sala, interrompendo o curso da

entrevista. Mesmo sendo ela a pessoa, ou uma das pessoas mais próximas dos idosos,

era curioso notar que estes interrompiam o seu discurso durante a sua permanência ou

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arrastavam a voz, como que a fazer perdurar o que estavam a acabar de dizer até a

animadora de ausentar do espaço. Estas situações denotam alguns receios em se exprimirem livremente no espaço do lar, em manifestarem com autenticidade o que

sentem e pensam acerca das várias dimensões da vida institucional, situação à partida

constrangedora e limitadora da sua livre opinião.

A informação das entrevistas foi, posteriormente, sujeita a uma análise de conteúdo,

uma vez que “a escolha dos termos utilizados pelo interlocutor, a sua frequência e o seu

modo de disposição, a construção do «discurso» e o seu desenvolvimento são fontes de

informação a partir das quais o investigador tenta construir um conhecimento” (Quivy e

Campenhoudt, 1998:226). Uma vez que se pretendeu tratar informações, com um certo

grau de profundidade e complexidade, com rigor metodológico e evitando as

interpretações espontâneas, sobretudo da investigadora, procedeu-se a uma análise temática do discurso: a análise de avaliação. Segundo os autores referidos, esta

análise incide sobre os juízos formulados pelo locutor, sendo calculada a frequência dos

diferentes juízos (ou avaliações), mas também a sua direcção (juízo positivo ou negativo)

e a sua intensidade (Quivy e Campenhoudt, 1998:228).

Todo o material recolhido, proveniente quer da observação, quer das entrevistas, foi posteriormente analisado e utilizado para ilustrar o pensar e os sentires dos idosos, no

que diz respeito às várias dimensões em análise, permitindo-nos apreciar o impacto das

mudanças decorrentes da entrada em lar, sobretudo na capacidade de adaptação dos

idosos e nas suas estruturas identitárias. Apesar de se destacarem as perspectivas proveniente dos utentes, procurou-se, sempre que possível confrontá-las com a análise reflectida da investigadora, proveniente da observação participante. Por outro

lado, ouviram-se igualmente percepções de técnicos e equipa operacional e que nem

sempre fizeram coincidir discursos com práticas observadas. Analisaram-se, de igual

modo, vários documentos institucionais pré-existentes, como o regulamento interno,

planos de actividades, documentos identificativos dos funcionários, plantas dos idosos

por quartos, processos individuais dos utentes, etc. Esta diversidade de fontes de

informação e o confronto de perspectivas contribuíram, sem dúvida, para o

enriquecimento do trabalho.

3.2. Breve contextualização dos grupos humanos em presença no lar

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3.2.1 A direcção e os Funcionários

Para analisarmos qualquer instituição torna-se necessário analisar os vários agentes/actores individuais e colectivos que nela interagem. Estes actores podem

categorizar-se em utilizadores de serviços, produtores de serviços, direcção e

fornecedores de recursos (Gaulejac & Bonetti, 1995). Interessa-nos, neste trabalho,

analisar o papel da direcção, caracterizar os profissionais, enquanto produtores de

serviços, e os residentes, enquanto utilizadores de serviços. Importa, ainda, analisar as

várias categorias de pessoal, suas funções desempenhadas e a sistema hierárquico ao

qual se devem submeter.

No que diz respeito à direcção, o órgão máximo da instituição, não nos é muito fácil

caracterizá-la, uma vez que os seus elementos raramente ou nunca estão presentes no lar ou interagem como os residentes. Sabe-se que é composta por pessoas

voluntárias da comunidade, com um certo prestígio (médico, advogada…), e que o

presidente da direcção é o pároco da comunidade. Sabe-se ainda que compete à direcção tomar as decisões relativas às questões mais importantes do lar, como a

entrada de um novo residente, alguma obra ou alguma compra mais avultada, apesar de

nunca estar em ligação directa com o lar a não ser em datas festivas. Para colmatar, de

salientar que a responsável máxima pelo lar, madre superiora, está presente nas

reuniões de direcção, funcionando como a mediadora entre o lar e a direcção e a

transmissora de informações ou problemas que devem ser solucionados pela direcção.

Em relação à caracterização dos profissionais, vamos começar por apresentar a

comunidade religiosa que dirige o lar e que lá trabalha, exercendo funções de

coordenação de vários serviços. A comunidade é composta por cinco madres, cada uma

das quais com uma tarefa de responsabilidade específica. Uma das madres é a responsável pela portaria e pela manutenção da capela. Controla quem entra e sai do

lar, conhece e interage com as famílias, embora a sua dificuldade numa correcta

pronúncia do português29 dificulte o estabelecimento de diálogos muito prolongados.

Assume também funções de telefonista, apoiando os idosos cada vez que manifestam

necessidade ou vontade de telefonarem para algum amigo ou família, recebendo as

várias chamadas telefónicas da instituição. A posição que ocupa, permite-lhe ir estando a

29 A Congregação Religiosa em causa tem origem espanhola e é em Espanha que se encontra a Responsável máxima pela congregação. Quatro das cinco madres são espanholas e têm uma pronuncia um pouco espanholada, umas mais que outras, fazendo com que nem sempre seja muito fácil compreender o que dizem.

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par de todos quantos entram e saem, funcionando como informadora privilegiada quando

se trata de saber informações sobre utentes, funcionários ou, até, família. Por isso

mesmo, estabelece alguma proximidade com os vários agentes institucionais e todos se referem a ela de forma positiva, embora seja de personalidade fechada, pouco expressiva, e estabeleça interacções limitadas.

Uma outra madre está responsável pelo refeitório. Decide os alimentos que é

necessário comprar, controla a confecção dos alimentos, decide sobre as regras acerca

do consumo de bebidas alcoólicas e decide os lugares dos utentes nas mesas de

refeição. É ainda responsável por dirigir as breves orações que se realizam antes das

refeições e por apresentar um novo residente aos restantes, quando a sua entrada

coincide com o momento de uma refeição. Participa regularmente nas refeições,

ajudando as funcionárias do refeitório a servir as refeições. É conhecida pelos idosos e funcionárias como uma pessoa um pouco ríspida, de modos não muito simpáticos.

Foi possível observá-la várias vezes a fazer recomendações aos idosos e funcionárias,

com um tom de voz não muito agradável, cada vez que um idoso comia algo não muito

adequado face à sua situação de saúde ou uma funcionária se atrevia a dar algum

alimento não adequado mas que era do seu desejo. Uma das funcionárias do refeitório

mais queridas pelos idosos comentava, a certa altura: “oh filha eu estou sempre a ver quando ela

vem… quando posso dou-lhes qualquer coisinha para os desconsolar. Já não lhes basta estar aqui e ainda

sem poder comer o que gostam… é uma chatice. Mas o meu medo é que ela me apanhe. Levo logo uma

rabecada… [risos]”. Eleva a voz facilmente, fala de forma rápida, num português não muito

perceptível, num discurso corrido, visivelmente sem ter a noção de que, muitas vezes,

não a estão a perceber.

Há uma madre responsável pelos serviços de enfermagem. Ainda que com uma

formação muito antiga, que ninguém sabe bem a que corresponde, é a responsável pela

enfermagem, controlando assim os serviços prestados pela enfermeira licenciada que lá

se encontra todas as manhãs. É uma pessoa que todos os idosos e funcionários apreciam pela sua simpatia permanente e contagiante. Presta todos os cuidados

relativos à enfermagem, como medir tensões, fazer pensos, preparar e administrar

medicação e acompanhar a situação dos utentes mais vulneráveis, decidindo quando

necessitam de ir ao hospital ou de alguma consulta médica.

Uma outra madre, mais afastada dos serviços directos ao lar, é responsável pelas

missões e pela angariação de recursos para enviar para África. Não costuma interagir

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muito com os utentes e funcionários. Conta com a ajuda de algumas residentes nesse

processo de angariação de recursos mas de forma pontual.

Por fim, resta referir a madre superiora, responsável máxima pelo lar e pelos recursos humanos. É ela que internamente decide tudo que diga respeito a idosos,

funcionários, e organização geral do lar, embora tenha em consideração as opiniões e

recomendações profissionais da assistente social.

Em algumas situações, na instituição, a qualificação não parece ser um meio valorizado para se aceder aos cargos de chefia, sendo o exemplo mais evidente o da

pessoa que desempenha as funções de encarregada geral, não tendo qualquer formação

nem qualificação na área da gerontologia.

Na verdade, podemos considerar que a comunidade religiosa assume, na prática, funções da direcção, enquanto que a direcção “administrativa”, afastada do quotidiano

do lar, se reúne pontualmente e se limita a tomar decisões relativas aos domínios que lhe

estão consignados, por sinal importantes para o funcionamento da instituição.

Por via de conversas informais foi possível perceber que nenhuma tinha formação superior, mas cursos profissionais ou formações pontuais sobre temáticas relacionadas

com a área de trabalho em causa. Apesar de receberem um vencimento pelo seu trabalho não beneficiam pessoalmente do mesmo, de acordo com os seus relatos,

uma vez que este é enviado na íntegra para a direcção da comunidade religiosa à qual

pertencem. Trabalhar a favor dos pobres, sem auferir nenhum rendimento, é uma valor

da comunidade religiosa que fazem questão de salientar.

No que diz respeito aos restantes funcionários que trabalham na instituição,

podemos apontar algumas características, através da análise do quadro que se segue.

Tabela n.º1 – Caracterização dos funcionários

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Nº de Indivíduos e Formação Função Afectação

(1) Licenciatura em Serviço Social Técnica de Serviço Social Tempo Inteiro

(1) Licenciatura em Enfermagem Enfermeira Tempo Parcial

(1) 12º Ano Terapeuta Ocupacional Tempo Inteiro

(1) 12º Ano Escriturário Tempo Inteiro

(3) 9º Ano Ajudante de Acção Directa Tempo Inteiro

(6) 6º Ano Ajudante de Acção Directa Tempo Inteiro

(3) 4ª Classe Ajudante de Acção Directa Tempo Inteiro

(1) 6º Ano Trabalhadora Auxiliar Tempo Inteiro

(6) 4ª Classe Trabalhadora Auxiliar Tempo Inteiro

(1) 6º Ano Cozinheira Tempo Inteiro

(1) 4ª Classe Cozinheira Tempo Inteiro

(2) 4ª Classe Ajudante de Cozinha Tempo Inteiro

(1) 4ª Classe Empregada Refeitório Tempo Inteiro

(1) 6º Ano Brunideira Tempo Inteiro

(1) 4ª Classe Costureira Tempo Inteiro

(1) 4ª Classe Lavandaria Tempo Inteiro

(1) 6º Ano Motorista Tempo Inteiro

Verificamos que se trata de 32 funcionários, sendo que apenas a enfermeira se

encontra a tempo parcial.

Podemos distinguir, de entre o grupo de funcionários, o pessoal afecto às tarefas de cuidado, que supostamente estabelece relações de maior proximidade com os

residentes, e o pessoal afecto às tarefas administrativas e de manutenção.

O motorista estabelece relação pontual com a generalidade dos utentes, aquando

de deslocações a serviços de saúde ou algum outro local. Com alguns homens,

sobretudo mais dependentes, estabelece mais proximidade pelo facto de ajudar as

funcionárias de acção directa nalgumas tarefas mais pesadas ou então a fazer a barba a

esses utentes. Costuma ainda conduzir a encarregada geral e alguns residentes que

ajudam na realização das compras para o lar. Apoia nesta tarefa assim como na carga e

descarga dos produtos.

A escriturária, a quem cabe todo o trabalho administrativo, assim como o pagamento de

salários aos funcionários, também contacta com alguma frequência com os utentes,

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sobretudo os mais autónomos, principalmente no final do mês, momento em que lhes

devolve a quantia da reforma que lhes pertence após retirar o relativo à sua estadia e

serviços no lar. Alguns dependentes queixam-se, porém, de não lhes ser entregue o

montante remanescente da reforma, alegando esta profissional a necessidade de

arrecadar algum montante de dinheiro para alguma emergência, situação que não ocorre

com os autónomos. Por outro lado, como a sua sala de trabalho se encontra próxima da

sala da assistente social e da madre superiora, estabelece regularmente conversas com

os residentes que aí se deslocam.

A técnica de serviço social interage com os utentes, na medida do que ela considera possível. Lamenta a pouca disponibilidade para os utentes alegando o

excesso de trabalho que tem. Aos mais autónomos é mais fácil a deslocação ao seu

gabinete sempre que têm alguma necessidade particular ou problema. Para os mais

dependentes, a acessibilidade à profissional encontra-se dificultada, embora haja

bastante cooperação entre esta profissional e a terapeuta, que, sempre que algum utente

pede ou a própria entenda necessário, chama a assistente social à sala de convívio, local

onde habitualmente estas pessoas se situam. Desenvolve o seu trabalho voltado para a

resolução de conflitos ou situações-problema que surgem com idosos ou funcionários,

entrevistas para efeitos de inscrição de novos residentes, articulação com as entidades e

instituições do exterior, negociação e articulação com a família, mais nas situações de

necessidade pontual e não com a regularidade que manifestamente gostaria. Assegura

ainda o acolhimento de novos residentes.

A terapeuta ocupacional, designada como tal na distribuição do trabalho profissional da

instituição, desempenha, na verdade, funções de animadora sócio-cultural. É, sem

qualquer dúvida, a pessoa que mais tempo dedica às tarefas de cuidado aos utentes e a profissional de referência à qual os utentes mais se referem. Passa todo o dia de

trabalho a dirigir e coordenar a realização de actividades manuais, ainda que algumas

sejam rotineiras e realizadas apenas por alguns idosos. Contudo, é a pessoa que

estabelece a ponte entre os idosos e os dinamizadores das restantes actividades que se

realizam: canto e ginástica. Estimula e incentiva os idosos para a participação nas

actividades no lar e no exterior, acompanhando-os sempre que necessário. Escuta e está

atenta às necessidades dos idosos e funciona, muitas vezes, como porta-voz junto da

assistente social e encarregada geral. Procura amenizar conflitos entre residentes e

fomentar um clima de alegria, solidariedade e inter-ajuda entre residentes.

A enfermeira presta serviços semelhantes aos da madre responsável pela enfermagem.

Pela natureza dos serviços que presta, está em contacto directo com os utentes,

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sobretudo com os que se encontram doentes ou necessitam de cuidados de

enfermagem. Na verdade, e dada a idade avançada dos residentes, todos vão passando

alternadamente pelos seus cuidados. Como só está no lar da parte da manhã e o trabalho a realizar é muito, tem de o fazer a correr, como ela própria diz. Menciona a

dificuldade em apoiar os utentes que, alegando algum problema de saúde, se dirigem a ela apenas para conversar, para terem um apoio, alguém que os escute.

Refere mesmo que, quando se “distrai” um pouco a conversar com algum utente, o seu

trabalho fica todo descontrolado.

Apesar de estes profissionais contactarem regularmente com os idosos, podemos referir

que são as auxiliares de acção directa que diariamente mais contactam com os residentes e lhes prestam cuidados. Distribuem-se por três turnos: manhã, tarde e

noite e as suas tarefas prendem-se mais com o auxílio directo dos idosos, sobretudo ao

nível da prestação de cuidados de higiene. Tocam, portanto, naquilo que é mais íntimo

e privado os indivíduos: o seu corpo. Interagem com os idosos principalmente de manhã,

ao acordar, e à noite, ao deitar. No caso dos mais dependentes, acompanham ainda as suas refeições, auxiliando-os, de acordo com as suas incapacidades. Durante o dia,

estão mais destinados à distribuição das roupas lavadas dos residentes e apenas

pontualmente interagem em alguma actividade especial dentro ou fora do lar. Como se

pode constatar pela análise do quadro, não obstante a importância das funções

desempenhadas junto dos idosos, este profissionais têm pouca escolaridade, abaixo mesmo da escolaridade obrigatória, assim como formação específica. A maior parte

tem apenas a 4ª classe ou o 6º ano. Muitas auxiliares de acção directa foram contratadas

sem qualquer formação inicial, sendo a sua integração nas tarefas profissionais garantida

por colegas de igual categoria. Apenas as funcionárias mais recentes têm formação

específica na área da gerontologia/geriatria, dando-lhes equivalência ao 9º ano. A formação não é valorizada pelas funcionárias que resistem, sempre que podem, a

qualquer sugestão ou proposta de formação.

Os auxiliares da limpeza também estão em contacto directo com os idosos,

sobretudo pela manhã quando vão limpar os quartos dos residentes. Em algumas situações o trabalho das auxiliares de limpeza é feito em parceria com as auxiliares de acção directa, ajudando-se mutuamente, por exemplo a pegar em idosos mais

dependentes. Pontualmente observou-se algumas situações de conflito entre estas profissionais e os residentes, sobretudo quando estes insistem em deixar nas mesas-

de-cabeceira objectos pessoais em grande quantidade ou outros objectos no quarto, em

seu entender supérfluos, que dificultam a limpeza. Por sua vez, em situações igualmente

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pontuais, também se percebeu o descontentamento de utentes por verem alguns dos

seus objectos pessoais deitados ao lixo, como se nenhuma importância tivessem.

Também estas profissionais apresentam uma baixa escolaridade: a generalidade tem somente a quarta classe e uma ausência de formação para saberem lidar com a

realidade dos idosos institucionalizados.

Seria, pois, fundamental apostar na formação contínua de todos estes profissionais que estabelecem proximidade com os idosos, não entendendo a formação apenas

como uma ampliação geral de conhecimentos, mas sobretudo como uma possibilidade

para a modificação de atitudes e reacções muito arraigadas no tratamento e cuidado ao

idoso, permitindo aos profissionais uma melhor integração e compreensão da cultura de

velhice, atendendo de forma mais adequada e global às necessidades, pedidos e

fragilidades das pessoas idosas (Trinidad, 1999). Não investir na formação implica não

actualizar conhecimento, uma obsolescência de métodos empregues e um

empobrecimento profissional com repercussões no trabalho profissional realizado e na

relação estabelecida com os idosos,

No que diz respeito às profissionais da cozinha e refeitório, embora os idosos as

conheçam e identifiquem todas pelo nome, com quem mais convivem é com as funcionárias que prestam serviço no refeitório. De entre estas, as que se demonstram

mais solidárias com eles e os deixam escolher, ainda que pontualmente, os alimentos

que preferem, mesmo que não sejam tão recomendados para a sua saúde, são as

preferidas. A capacidade de ultrapassar as regras e o controle da madre responsável pelo refeitório é apreciada pelos utentes, sobretudo os mais limitados em

termos de escolha alimentar. De quando em vez, fazem comentários mais ou menos

abonatórios, relativamente às cozinheiras, de acordo com o seu grau de satisfação pelo

prato confeccionado: “não sei que lhe aconteceu hoje, não devia estar bem disposta para

nos carregar a comida com tanto tempero, ui não se consegui comer, nem sei como é

que alguns comeram…”; “…o feijão estava mesmo bom, menina, sabe como é, é muito

tempo nisto, ela por acaso tem muita mão p`ra comida, tem sim senhor, muita mão…”.

Com excepção de reuniões pontuais, entre responsável e auxiliares de apoio directo e

limpeza, não se verifica um verdadeiro trabalho de equipa entre estes profissionais.

Algumas funcionárias, cujo trabalho se articula ou relaciona mais directamente, como é o

caso da assistente social e terapeuta, ou da cozinheira e auxiliar de cozinha, ou ainda

das auxiliares de apoio directo e auxiliares de limpeza, ainda se ajudam e tentam

coordenar mutuamente em benefício próprio (ex: evitando esforços físicos prejudiciais) ou

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benefício dos utentes (ex: situações em que estes não estão capazes de fazer valer a

sua opinião ou suas necessidades). No entanto, não há um plano global de trabalho para

o qual todos sintam que têm um contributo positivo a dar. Cada um trabalha à sua

maneira e articula-se se, quando consegue ver nisso algum benefício próprio ou para os

utentes. O principal objectivo do trabalho em equipa num lar de idosos pressupõe a

resposta às necessidades e pedidos do idoso, por via de um trabalho grupal, traduzindo-

se numa melhor qualidade dos serviços prestados (Trinidad, 1999).

Por fim, as funcionárias da lavandaria responsabilizam-se por todas as tarefas relacionadas com a roupa dos residentes: lavam, passam a ferro, cosem quando

necessário, numeram as peças quando entra um novo residente. Mais uma vez, embora os idosos as conheçam, não interagem com elas directamente no dia a dia. Pontualmente estas funcionárias são visitadas por alguma utente que tenha necessidade

de conversar e se desloque até à cave, onde se encontra a lavandaria, para trocar

algumas palavras e fazer alguns desabafos. De outro modo, os residentes interagem com

estas funcionárias em dias festivos, ou em alguma actividade pontual para a qual elas

tenham sido convidadas, ou ainda de passagem quando as funcionárias entram ou saem

do lar ou se deslocam para o refeitório. Embora no geral o trabalho relativo ao tratamento

da roupa seja considerado de forma bastante positiva, algumas vezes, aquando do desaparecimento de algumas peças de roupa, foi possível escutar alguns comentários de desagrado face às funcionárias, atribuindo-lhes a culpa pelo

sucedido.

A instituição conta ainda com o apoio de duas voluntárias que visitam regularmente os

idosos, de um padre que aí realiza missa diária, de uma cabeleireira e de uma calista que

vêm quando solicitadas pelo lar, auferindo pelo seu trabalho valores mais baixos dos que

são praticados no mercado.

3.2.2 Os Residentes

A caracterização do grupo de utentes será feita por relação aos dados contidos nos

processos individuais, tendo em conta as observações, os seus relatos e informações

fornecidas pela assistente social e animadora.

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Para fins da caracterização a desenvolver consideraram-se 69 residentes, não obstante

este número ter oscilado entre os 68 ou 70, ao longo do período em que decorreu o

estudo, de acordo com os falecimentos e novas entradas no lar.

O grupo dos idosos e as relações que estabelecem entre si serão objecto de análise

posterior, sendo que aqui interessa apenas a realização de uma breve caracterização sócio-demográfica do grupo em análise, atendendo, sobretudo, às variáveis relativas à

idade, sexo, naturalidade, estado civil, escolaridade e profissões mais prevalecentes,

desenvolvidas ao longo da vida, tempo de permanência no lar e estatuto de saúde.

Dos 69 idosos que já referimos, 46% são homens e 54% são mulheres. A média de idades é de 77 anos, sendo a idade máxima verificada de 93 anos e a mínima de 55.

Verifica-se, no lar, um envelhecimento mais evidente nas mulheres, devido à

sobremortalidade masculina. Esta longevidade feminina associada a um envelhecimento

da população idosa seguem a tendência do nosso país, como já tivemos oportunidade de

analisar (INE, 2002).

Quanto à naturalidade, podemos referenciar que, dos 69 idosos, 33 pertencem ao concelho da instituição e 20 ao concelho do Porto. Os restantes 16 residentes têm

proveniências diversas: 1 de Lisboa, 3 de Vila Real, 1 do Algarve, 1 de Aveiro, 1 de

Viseu, 1 da Madeira, 1 de Viana do Castelo, 4 de Braga e 2 do estrangeiro. Para estes últimos, pressupõe-se uma maior dificuldade de adaptação, uma vez que se trata de um novo local de residência com o qual não têm afinidades, nem mantêm relações

familiares ou de amizade. Ainda assim, para um grupo bastante significativo, a ida para o

lar significou a mudança de residência mas não um total afastamento das suas origens.

Por terem vivido nesse concelho, mantêm-se enraizados e preservam laços de amizade e familiares. Para estes a mudança não foi tão radical, favorecendo a ligação

mais próxima a contextos anteriores de vida que podem jogar favoravelmente no

processo de adaptação ao quotidiano.

No que diz respeito ao estado civil, pudemos constatar que 6 residentes ainda se

encontram casados, 10 estão separados/divorciados, 37 são viúvos e 16 são solteiros.

Pelos dados apresentados podemos aferir o elevado número de idosos que estarão mais propensos ao isolamento e privados de relações significativas. Muitos já viram

o seu cônjuge falecer, outros, que nunca casaram, tenderão a ver as suas redes

relacionais cada vez mais diminuídas. Enquanto que para os primeiros, a visita dos filhos

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é razão de grande alegria, para estes últimos, a visita de algum sobrinho, irmão, quando

exista, ou amigo de longa data assume uma importância muito grande.

Em relação aos níveis de instrução dos residentes, não foi possível obter informação

relativa a todos os residentes pelo facto de não haver registo nos processos individuais.

Podemos afirmar, no entanto, que a maioria dos idosos é analfabeta ou possui a 3ª ou 4ª classe. Com o ciclo preparatório só detectamos três residentes, um com o nono

ano e apenas um residente com o ensino secundário. Estes baixos níveis de

escolaridade confirmam a pertença a classes sociais extremamente desfavorecidas. A

maior parte dos residentes relata percursos de vida claramente centrados na sobrevivência material da família. Não houve, para a maioria, grandes oportunidades

de evolução ou formação, pertença a grupos sociais e comunitários ou possibilidades de

usufruir do património cultural em seu redor.

Igualmente em relação às profissões desempenhadas se verificou a ausência de

muitos dados, que se procurou colmatar por via das conversas estabelecidas com alguns

idosos ou com a assistente social. Uma grande parte destes residentes foram operários ou trabalhadores não qualificados da indústria e dos serviços. Um

número menos significativo dedicou-se às actividades de pesca e agricultura, foram

empregados de balcão ou vendedores. Muitas mulheres foram domésticas ou

trabalharam como serventes na casa de famílias abastadas. Uma minoria foi empregado

de escritório ou desempenhou profissões intelectuais.

Podemos então concluir que, na generalidade das situações, a actividade profissional desempenhada pelos idosos era não qualificada. Tratava-se de

actividades profissionais precárias, que não implicavam grande formação ou

competências dos indivíduos. Estes, por sua vez, eram trabalhadores dependentes e

assumiam funções de subalternidade que não obrigavam a grande evolução nem ao uso

das suas capacidades intelectuais.

O facto de terem assumido profissões pouco qualificadas e mal remuneradas deu

origem a que, na reforma, os seus rendimentos fossem também escassos. Vimos já que

os idosos são uma categoria social vulnerável à pobreza (INE, 2002).

Baixas reformas ou pensões, associadas ao acréscimo de despesas relativas à assistência médica e medicamentosa de que necessitam contribui para que, retirado o

valor do pagamento a lar, muitos idosos fiquem apenas com escassos euros para uns

cafés ou telefonemas, condicionando o acesso a bens de consumo, a participação na

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comunidade e, de forma mais ampla, a sua qualidade de vida. Baixas qualificações

escolares e profissionais dão origem a baixos salários e a baixos rendimentos na reforma

que, associados à inexistência de rendimentos alternativos, conduzem os idosos a

situações de pobreza. Para alguns a situação de pobreza significa uma continuidade por

relação a uma vida de privações e dificuldades; para outros, porém, a passagem à

reforma implica mesmo um decréscimo acentuado de rendimentos, tornando esta fase da

vida bastante mais vulnerável.

Para ilustrar estes percursos de vida marcados pela privação e luta pela sobrevivência, nada melhor que considerar alguns extractos dos relatos dos idosos.

A D. Fernanda, que tem 85 anos e vive no lar há 3 anos, viveu sempre com muitas

dificuldades. Viu-se privada da mãe, que falecera cedo com doença nos pulmões, e nem

a 1ª classe consegui concluir, pois a fome com que ia para a escola não a deixava

aprender. Com 8 anos já trabalhava numa fábrica para garantir alguma comida. Mais

tarde viu-se privada do pai e teve que continuar a lutar com a ajuda de seus irmãos.

Quando casou teve uma filha que morreu com pouco mais de um mês. Falecera

também o seu marido e ainda um segundo marido com quem se havia juntado. Sem

marido e sem filhos ficou bastante sozinha numa fase da vida já avançada. Sem qualquer tipo de apoios e numa situação de saúde cada vez mais frágil, ingressou no lar, estimulada e aconselhada pelo seu médico e auxiliada pelo seu enteado.

No lar esta senhora passa os seus dias na sala de convívio. Gosta de cantar, pois diz que

era o que também gostava de fazer em nova. Tem uma personalidade difícil e está permanentemente a provocar outros residentes no lar. Transmite agressividade e dureza, talvez semelhante àquela com que teve que conviver toda a vida para

sobreviver. No lar, poucos residentes estabelecem relação ou conseguem conviver com

ela.

“O meu tempo de menina pequenina, olhe o meu pai era pescador. Eu nasci para lá…a minha mãe depois teve, ficou doente dos pulmões, o meu pai teve que me trazer para cá que eu não podia estar presa à minha mãe. Éramos seis. Eu depois vim, fazia mais convivência com o meu pai do que a minha mãe. Mas o meu pai era muito amigo, o que é bebia a pinga de vinho dele mas não tratava mal ninguém, nem pegava com ninguém, bebia, chegava a casa deitava-se…Ele andava ao mar aqui, na traineira. A gente vivia com dificuldade, não é? Eu tinha oito anos quando fui ali para a fábrica que se chamava…que agora é um supermercado lá em baixo, quem vai para a praia. Eu andava na escola mas passava muita fome. E não tinha para fazer nada, a gente não comendo, o cérebro…Não fiz, [a 1ªº classe] eu fugia à escola porque não, eu não comia, a minha mãe mandava-me, não tinha, não comia…Eu a fazer os deveres, não sabia fazer…ela dava-me muitos bolos, um dia ela foi ter com ela, ralhou com ela, minha mãe doente, a gente passa fome e a minha irmã…A senhora não

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bata mais nela porque se bater eu viro-me à senhora, a minha irmã disse, porque a minha mãe infelizmente…a gente se tiver come e se não tiver não come. Não fazemos divida, quando há come-se, quando não há...Então…eu deixei de ir à escola, fui trabalhar com oito anos, fui limpar latas, cabaz de latas que limpava era um cruzado, tinha oito anos, depois ganhava 30, 40, 50 já dava para fazer uma panelinha da sopa ao menos à semana. O meu pai tinha muita pena, peninha de mim que era pequena mas tinha que ser. E tinha o meu irmão, que era solteiro, também andava ao mar, não sei se era moço, ainda era novo e tínhamos um que andava na fábrica, na conserva, esse morreu novo, com 27 anos, lindo como uma flor, parecia um artista de cinema…O meu pai morreu, eu tinha já para aí 14 anos ou 15…Um dia eu passei pela rua e vi o meu homem, eu conhecia aquele rapaz, passava por mim na rua, eu tinha 17 anos, ele era mais velho que eu 6 anos, ele casou com 26 e eu casei com 20 e foi assim, olhe este moço é muito jeitoso, é ele e Deus…se ele me pedisse em namoro, com ele namorava (risos)…Bem, casei, mas foi um bom homem tive sorte. Eu depois tive uma menina, e a menina morreu aos ataquinhos e nunca mais tive filhos. A menina nasceu como se fosse tolinha e dava-lhe ataques e eu ia para o Dr.: “eu não te vou receitar nada porque esta menina vai morrer”. Ela morreu com um mesinho e tal. Mas era muito linda. Bem, morreu, morreu, foi para o destino dela olhe então anda aqui um tolinho que eu tenho muita peninha dele porque esta gente tolinha que anda por aqui, a minha avó dizia que o mundo andava amparado por eles…Vivi, mas depois o meu homem passado uns aninhos adoeceu, eu andava na fábrica, adoeceu, não podia andar ao mar… das hemorróidas, nesse tempo as hemorróidas era muito perigoso…Depois o meu marido morreu e eu fiquei viúva, depois apareceu-me um senhor que é o pai desse meu enteado, eles eram 4 filhos mas estavam casados e eu tive pena dele. Eu ia ao cemitério enfeitar a campa e ele ia atrás de mim; uma vez disse: oh senhor o que anda aqui a fazer? Vá-se embora; Eu queria falar consigo que eu ando a dormir nas pensões… Eu tive pena do homem e disse: está bem, fui viver com ele, não foi mau homem, o que é não tinha o feitio do meu homem…Quando eu fiquei sozinha o meu enteado tinha uma chave e eu não sabia, ele tinha-lhe dado, ele pega vai um dia, eu estava em casa, ele abriu a porta…Mas ele achou-me muito doente e levou-me, eu fui para as urgências e a senhora disse: esta senhora tem que ir já, já, já imediatamente para o Hospital porque ela está muito fraquinha do coração, tem o coração como uma peneira…o Pires da Silva era meu Dr. e um dia foi ter comigo e disse assim: oh D. Fernanda você não queria ir para um lar? Eu disse: eu ia, eu gostava do lar XXX, ouço falar muito, que é muito bom e ele disse: então está bem, ele falou com o meu enteado e disse: ela disse-me a mim que gostava do lar XXX…”

O senhor Guilherme é mais um exemplo de alguém que viveu uma vida dura.

Conseguiu, no entanto, galgar a pulso. Em criança passou fome ao ponto de andar a

pedir. Não pôde estudar, pois tinha que ajudar a família a sobreviver. Começou a trabalhar com sete anos numa fábrica e desde aí foi-se esforçando por conseguir

melhor. Conseguiu ir a exame para conduzir barcos e passou mesmo sem saber

escrever. Daí em diante a sua vida foi melhorando.

Casou e com a ajuda do seu vencimento e do da sua mulher, que era costureira,

conseguiu fazer a sua casa e teve duas filhas a quem diz ter ajudado muito na vida. A

partir do momento em que a sua esposa falece vai viver com uma das filhas e depois

com outra. Questões de ciúmes e receio de que este favorecesse mais uma filha fazem como que ceda ao pedido da filha com quem estava a viver e levanta o seu dinheiro. A filha, porém, gasta-o na compra de um carro sem ter pedido ou consultado o

seu pai. O Sr. Guilherme sente-se desiludido e defraudado. A outra filha deixa de falar

consigo e, relativamente à filha com quem vive, perde toda a confiança. Perante um

golpe tão duro que nunca esperava, decide tomar uns comprimidos pois preferia morrer a

viver naquela situação. O lar que conhecia por estar situado próximo do local onde vivia, pareceu-lhe a melhor solução para viver o resto dos seus dias, sem se sentir

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desrespeitado ou subjugado pela família. O senhor Guilherme tem 86 anos e está no

lar há apenas três meses.

“Novo, fui sacrificado. Eu nasci em Ovar, em 1910, faço 67 anos, 87 anos a 14 de Outubro, eu nasci em Ovar, no Furadouro, tem a praia e depois tem a Vila, que é cá em cima, que leva uma hora e tal a andar a pé e como nasci em Ovar fiquei com os meus avós, a minha mãe estava em Espinho mas eu fiquei com os meus avós até à idade de sete anos e de maneira que eu necessitava como todas as crianças necessitavam de saber ler e ter escola, só que no Furadouro não havia escola, havia na vila e para ir para a vila, uma hora a pé, quer chovesse quer fizesse sol que não havia meio de transporte, é claro deixei de ir para a vila.Vim para Matosinhos, que a minha mãe já estava em Matosinhos com o meu pai, que o meu pai andava ao mar…desde sempre comecei a passar fome porque os pescadores naquela altura não ganhavam dinheiro quando estava vento, quando estava o mar ruim, não iam ao mar, não se ganhava dinheiro. Era andar a pedir, se queria comer alguma coisa. De maneira que…Tinha mais irmãos, éramos nove. Eram sete, o meu pai e a minha mãe 9.Os meus irmãos também não foram à escola.…tinha um irmão que andava por cima do cais, aonde os vapores atracavam, vinham do Brasil com a farinha de pau e o meu irmão ia para o cais, dava-se muito bem com os empregados do cais, o meu irmão já era mais velho do que eu ano e meio e trazia então umas sacas de farinha de pau e a minha mãe punha aquilo ao lume com água e a gente comia farinha de pau, como os porcos comem a lavagem, era a mesma coisa. E assim fomo-nos criando…Eu cheguei aos 7 anos e qualquer coisa, cheguei aos sete anos e meio, tive que…fui para uma fábrica de conservas trabalhar, com sete anos e meio. Fui limpar latas de conserva com serrim, que elas vinham sujas de azeite e a gente tinha que limpar aquilo muito bem limpinho e ganhava dois tostões por dia, dois tostões por dia, que ganhava naquele tempo e esses dois tostões já dava para a minha mãe fazer uma panela de sopa e assim fui passando a minha vida, fui passando a minha vida, roupa não havia, era difícil comprar umas calças por cinco tostões ou dois tostões, roupa de dentro ninguém tinha, cuecas, de família ninguém tinha, vivíamos assim num quarto como este, as pessoas todas, não havia casa de banho, não havia nada.Depois comecei a crescer, desenvolvi, comecei a trabalhar nas máquinas, na fábrica de conservas, trabalhei numa fábrica, depois saí daquela fábrica e fui para outra. E na outra fábrica que eu fui, comecei a desenvolver muito, que eu tinha muita força, muita coragem, mesmo a passar fome, eu tinha muita força e muita coragem e queria ser um dia alguém, esse alguém que fui valeu-me muito…Depois casei, namorei com uma rapariga que era costureira e eu já ganhava mais dinheiro na fábrica, já ganhava 20 escudos. E o meu patrão por fora dava-me outros 20 e aqueles 20 eu dava ao meu namoro e ela comprava roupa, pano e fazia cuecas, fazia camisas, calças e eu já não me faltava nada, já eu era um homem, não me faltava nada.…dá-se o caso, eu então estava a pintar a casa e um primo meu chegou à minha beira, que andava ao mar e diz ele: “oh Valdemar tu podias vir para o mar, pá, ganhavas mais do que estar em terra”, eu nunca me lembrei que o mar, que o mar era tão ruim e tão mau como isso e eu não sabia nadar nem sei nadar. Eu resolvi, arranjei a cédula e fui, fui a exame, sem saber ler nem escrever, eu fui a exame à frente do comandante para ele me dar a cédula para me matricular para ir para o mar, não tive problemas.…fiquei a trabalhar, trabalhei 23 anos sem ter a mínima avaria no motor, 23 anos. O meu patrão mandava-me arranjar os mestres para trabalhar, eu era o dono daquilo. E depois, ganhei muito dinheiro… A minha mulher também ganhava que como modista e depois ganhava muito dinheiro.…Tinha essa filha, e eu já andava há um ano, já andava há um ano e passado treze anos, treze aparece outra filha, aparece outra filha e não queria… Bem eu gostava muito das minhas filhas, nunca trabalharam, eu não deixava, não queria as minhas filhas a trabalhar, ou numa fábrica ou num armaTóm, não tinha dinheiro para elas estudarem, a que nasceu cinco anos depois, fez a 4ª classe, a segunda passado treze anos, já eu tinha dinheiro já a pus a estudar, já tem estudos, está a trabalhar aí na câmara. De maneira que é claro…De maneira que eu tive uma vida de cabeça para poder viver. A minha mulher comprou um terreno, a minha mulher comprou um terreno e depois desse terreno vem um senhor a casa passado uns meses e qualquer coisa, e deu 30 contos de ganho à minha mulher por esse terreno, ela é que fazia negócio, que eu não queria saber daquilo para nada, na minha vida o que eu queria era descansar para de noite estar sempre alerta. Depois de vender esse terreno comprou um à beira da praia, comprou à beira da praia…já mais dinheiro, com vantagem. Um dia lembrou-se e foi comprar um aqui perto…e então mandei fazer uma casa aí, eu é que quis ali fazer a casa, se não a mulher vendia o terreno e comprava mais (risos).Andava assim, e para ela não andar assim eu disse: quem vai mandar fazer a casa sou eu, vamos lá ver quanto é que o homem quer por ela, fui ter com o mestre de obras, o mestre de obras levou 1150 contos naquele tempo, quem tivesse 1000 contos era milionário, hoje nem se sabe.E custou-me então 1150 contos, quem me ajudou a pagar, a que já era casada, a minha filha, ajudou-me a pagar a casa mas eu dei-lhe o dinheiro que ela me emprestou, dei-lhe o dinheiro que ela me emprestou. Ora bem a casa foi feita rés de chão e primeiro andar, foi rés de chão e primeiro andar. O primeiro andar, morava a minha filha mais velha e no rés do chão ainda era muito cedo para a outra

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casar. Aluguei, a um engenheiro de máquinas e ele esteve lá pouco tempo, pagou-me e foi-se embora e eu não quis mais alugar a casa que era para deixar para a filha. A filha lembrou-se de namorar… Essa filha mais nova olhou pelo meu dinheiro e a mais velha também e eu fiquei sozinho na minha casa, eu não me importava que eu não tinha problemas em comer, em tratar de tudo, elas é que levavam a roupa, é que lavavam e passavam a ferro. De maneira que claro, eu dava-lhes tudo, elas iam juntando dinheiro, houve uma que juntou 10 mil contos no banco, daquilo que eu dava. E a outra não juntou tanto, a mais nova porque o homem o que queria era passear e isto e aquilo.Ah, depois da minha esposa falecer, eu fui para casa da mais nova um tempo. E depois, é claro fiquei em casa da minha filha um tempo, da mais nova mas como o filho já era grande e jogava o basquet eu não quis lá ficar porque o rapaz dormia no chão e eu dormia na cama; disse assim: eu vou-me embora para minha casa, o teu filho que vá para a cama, que ele joga o basquet e o rapaz vem cansado e ele não…não quero, vou para minha casa e fui então para minha casa. Agora aqui é que foi aquela. Fui para minha casa e houve ciúmes, como eu tinha dinheiro no banco, houve ciúmes, que podia tirar do banco e dar à mais velha e não dar à mais nova, mas eu não fazia issoE depois, a minha filha mais velha foi-me lá buscar para ir para casa dela, que um dia podia-me dar alguma coisa e tal e levou-me e eu fui para casa dela. E como eu tinha muito dinheiro no banco, e estava no nome das duas, a mais velha aproveitou-se, a mais velha aproveitou-se, e disse: paizinho você tire o dinheiro do banco que se não ela vai levantar o dinheiro e fica com ele. E eu virou-me o capacete, fui tirar o dinheiro, não foi tão pouco como isso, foram 7500 contos e levou para casa e desapareceram, desapareceram…Eu um dia perguntei-lhe assim, não sabia que tinha desaparecido, querida, não sabia mas eu andava desconfiado porque já havia uns zumzum que eu não gostava. Eu desconfiei que o meu dinheiro que andava fugido, compraram um carro por 6 mil contos, a mais velha e eu disse assim: olha que eu vou precisar do dinheiro para comprar uma coisa que tinha que comprar; que dinheiro? você não tem dinheiro nenhum; então o meu dinheiro onde é que está? o seu dinheiro, o seu dinheiro foi para comprar um carro; mas o carro não é meu, para comprar um carro, então é meu; não o carro é seu; não, não é meu, não está no meu nome, eu não assinei, o carro é vosso, o dinheiro é que é meu; diz ela: tenha paciência…ela já tinha comprado o carro antes de eu ir buscar o dinheiro, que ela já tinha dinheiro. E eu chocou-me aquilo, peguei numa quantidade de comprimidos sem eles ver, botei na boca, fui buscar um copo de água, bebi mas ela deu fé, ainda estava a beber a água…você que está a fazer? Estou a beber água e aí comecei a cair para o lado, pegaram em mim levaram-me ao hospital, no hospital deram-me lá qualquer coisa e os comprimidos ao sair, ou derreteram não sei, não morri mas eu antes queria morrer. De maneira que como me faltou esse dinheiro eu fiquei na minha coisa e disse assim: roubaste-me bem roubado, eu agora vou-me pôr no lar que se me aceitarem no lar eu ainda pago bem pago para lá estar e não preciso de vós para nada…”

A D. Rosa não teve também uma vida fácil. Nunca foi para a escola e desde nova começou a servir em casa de família abastadas. Engravidou nova e não pôde contar

com o apoio do namorado para criar o seu filho. Continuou a trabalhar para ajudar no sustento do filho que vivia com os seus pais. Mais tarde, quando o filho já havia

terminado a 4ª classe, arranjou-lhe um emprego pois não havia maneira de o colocar a

estudar. Percebe-se bem, nesta situação, a tendência de reprodução intergeracional da

pobreza. O seu percurso desqualificado transferiu-se para o filho que se inicia a trabalhar

muito cedo.

Após o casamento do filho, continuou a trabalhar a “dar dias”e consegui arrendar um rés-

do-chão de um prédio onde vivei até ser obrigada a sair de lá.

Sem local para viver e sem grande suporte familiar, marcado por uma relação difícil

com a nora, situação agudizada por problemas de saúde, contribuíram para o internamento no lar. A D. Rosa tem 80 anos e vive no lar há 2 anos.

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“Olhe menina a minha vida em catraia foi um bocado foleira (risos). Porque os tempos eram como a menina sabe, era tudo muito pobre. E nem os ricos, também não havia o que há, mesmo há uns anos para trás. Nunca fui para a escola, não menina nunca fui. Nunca fui pelo seguinte, nós éramos três irmãs, só que a mais velha foi criada pelos meus avós, foi para lá com a idade de um ano, a outra minha irmã, que era mais velha dois anos e meio do que eu andou na escola três anos e nem tão pouco chegou a aprender a fazer o nome dela porque dizia que ia para a escola e não ia, e a menina sabe que os pais naquele tempo não tinham vida para andar em cima dos filhos se iam para a escola se não iam. Conclusão: quando a minha mãe chegou a saber ficou chateada, chegou a altura de eu ir para a escola, já não me puseram na escola. Então o meu falecido pai dizia que as raparigas não precisavam de saber ler…O meu falecido pai trabalhou muitos anos em Espanha e a minha mãe ajudava os lavradores lá na aldeia. Depois as minhas irmãs foram servir. Foram para Guimarães, lá arranjaram namoro e lá casaram e lá morreram, já morreram as duas. Eu também fui para Guimarães, passado um tempo também fui para Guimarães. Eu fui servir para Guimarães aos meus 16 anos, lá estive uns tempos. Depois, claro cai na esparrela tive o meu filho, estava grávida, toca a ir para a aldeia, para os meus pais claro, acabei o tempo tive o meu filho, estive um ano em casa, ao fim de um ano, ainda o meu pai era vivo nessa altura, ficaram com o miúdo e eu fui outra vez servir.O meu namorado menina, ele era de Guimarães também, eu fiquei grávida no fim do tempo, o meu filho nasceu no dia 15 de Abril e no dia 3 de Abril tinha ele embarcado para a África do Sul. Pronto escrevemos ainda uns tempos, depois eu acabei por saber, por pessoas amigas, que ele ia casar com uma rapariga cá do Porto. E eu pus-me a pensar assim, olha grande história, e vou então andar a escrever a gastar dinheiro, não, não escrevo. Deixei de escrever, as cartas que tinha rasguei tudo, fotografias que tinha dele rasguei tudo, dei cabo de tudo e pronto esqueci aquilo, esqueci nunca mais liguei. Pronto nem ele ligou porque eu deixei de escrever.Ora bem, e depois eu tinha de ganhar para ajudar a sustentar que os meus pais também não podiam. Quando o meu pai morreu tinha o miúdo 7 anos, estava com os meus pais, claro ficou com a minha mãe até fazer a 4ª classe, fez a 4ª classe e depois eu fui para o Porto para o empregar para ele trabalhar, eu não o podia pôr a estudar, a avó muito pior, ele tinha que trabalhar como eu…Quando o meu filho fez a 4ª classe eu já estava no Porto e então lá o mandei vir, para onde é que eu lhe arranjei trabalho? Para uma mercearia, que antigamente andavam os miúdos a entregar as comprinhas às senhoras às casas……Aluguei então um quarto para mim e para ele. Ele ia para o trabalhinho de manhã, eu arranjei trabalho a dias, já não podia ser dentro, tinha que ser aos dias para a hora eu estar em casa por causa do rapaz. Andei assim nessa vida até ele casar. Quando ele casou, depois tive a sorte de me aparecer um rés de chão pequenino mas como estava sozinha, para mim chegava muitíssimo bem. Então fui para ali, pagar na altura menina 450 escudos e pronto até estava bem, até me sentia bem, estava muito bem… E continuava a trabalhar aos dias e estava ali. Tudo no Porto. É está a conclusão porque é que eu vim parar aqui. Eu já estava nessas cavezinhas, que era assim um rés-do-chão há 30 anos, já estava ali há 30 anos…”

A D. Maria representa um exemplo contrário ao que temos referenciado. Teve uma

vida, como ela dizia, “cor-de-rosa”.

Seria impossível retratar aqui todas as experiências de vida dos idosos, até porque não é

esse o objectivo do trabalho. No entanto, para percebermos se o lar responde às

necessidades dos seus residentes torna-se importante conhecer as características sócio-

culturais do público-alvo. Embora a quase totalidade tenha tido uma vida marcada pela

pobreza e precariedade, uma pequena minoria teve uma vida com mais oportunidades,

vivendo até com uma certa estabilidade financeira.

A D. Maria representa um caso extremo e único. As distâncias por relação às características do restante grupo de residentes fazem-na sentir completamente deslocada. Como fica claro pela leitura dos seus relatos, viveu uma vida repleta de

estímulos de vária ordem: social, relacional, cultural… Estudou línguas e aprendeu piano. Nunca teve que trabalhar para sustentar a casa ou a si própria. Tinha

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empregadas para todas as tarefas e convivia com pessoas da sociedade. Ia a bailes,

clubes, ópera, jantares e concertos. Após o seu casamento ter falhado, em grande parte

por não conseguir engravidar, encontrou outro companheiro com quem viajava e gastava

o seu património. Perdeu o marido e o companheiro que, uns vinte anos depois,

falecera. Sem família e com dois sobrinhos que se afastaram assim que ela se desfez do património, acabou por ficar sozinha, profundamente deprimida, ao ponto

de tentar o suicídio. Passou a receber tratamento psiquiátrico e, com o apoio de uma

prima, entra para um primeiro lar. Após algum tempo, é transferida para o lar onde se

encontra agora. Tem 72 anos e está no lar há quase quatro anos.

“Vivi sempre com os meus pais e uma irmã. Os meus pais eram de origem nobre, era duque, mas era advogado. Andei sempre com pessoas de sangue real. O meu pai era muito rico e além disso ganhava muito bem, o meu pai era primo da minha mãe que também era rica, juntaram-se duas fortunas.Tinham uma…como se chama? Estas casas muito grandes…? Solar! Ia para lá passar as férias, era pequenina e assim cresci. A mãe era dona de casa. Depois a minha irmã morreu com 25 anos. Ela tomou conta dos netos e encarreirou para a vida. E eu era bebé. Vivia bem a minha família, porque há famílias arruinadas (risos).… Sim, sim, sempre na Foz, na Marechal Gomes da Costa, mas depois o pai em vez de fazer três casas fez duas, sempre na Marechal Gomes da Costa e fomos para a que estava a fazer. E assim vivemos.…Para um colégio de freiras, na Nossa Senhora do Rosário (risos). Estive lá muito pouco tempo. Estive lá até aos 9 anos porque as meninas de lá ganharam a tuberculose. Nessa altura a tuberculose era uma coisa muito má. Sai de lá e vim para cá com 15 anos, e não tinha feito a 4ª classe, fiz a 4ª classe depois com professores em casa…até aos 20anos. …Línguas, todas as línguas, todas as línguas não, alemão, francês, inglês. Tinha lições em simultâneo, naquele tempo, agora não sei se há raparigas que façam. Gostava de literatura. Gostava muito!Eu queria casar…Eu queria casar. Íamos a bailes, a festas, muitos rapazes. Sim muito [convivia muito], num clube.…Sim iam lá jantar [a casa], as senhoras faziam os chás para as meninas e os maridos iam trabalhar, depois vinham buscar as senhoras e os bebés. Depois, depois andava a aprender piano. Eu não larguei o curso, fiz até ao 9º piano. Gostava muito… Eu gosto muito de música sabe, ia a muitos concertos, quando havia ópera aqui no Porto, eu ia à ópera, muitas vezes ia a Lisboa, cheguei a ir a Lisboa. … Casei, com um fidalgo. (risos). O meu pai, como ele era muito simpático, lá foi vendo que podia dar, ele andava a estudar muito cedo, mas depois quando chegou a anatomia, olhe desmaiava e não podia ver a medicina, começou o curso de direito, depois já não tinha tempo para a acabar o cursito e foi para solicitador e ficou. Casei, olhe não sei. Eu casei porque os pais arranjaram, não foram os meus pais que arranjaram… Com o meu marido não fui assim lá muito feliz. Era bom rapaz, parado.…Eu abortava sempre, depois fiz tratamentos, mas ele também tinha os espermatozóides muito mortos, também é difícil, era mais difícil para mim, tornava a sair. Ah fiquei com uma neura. Fiquei, fiquei, muito doente, não podia ver uma mulher de barriga (risos).…Conviver muito não. Estava em casa, fazia as minhas coisas, lia, tocava piano, e sempre ia à cozinha ver o que as criadas estavam a fazer. Tinha uma empregada de fora e uma de cozinha, e uma costureira. Fazia marmelada em casa, marmelada caseira, ginja, cerejas.Tinha, tinha muitos amigos porque havia muitas festas, muitos bailes, muitos chás dançantes, muito cocktail, era engraçado. Se eu tivesse tido filhos ficava tudo melhor, a mãe gosta sempre de levar a filha para o colégio, ensinar… Fiquei mesmo avariada da cabeça. Sem filhos muito mal, olhe experimentei com outro homem a ver se tinha filhos (risos).…Depois ele arranjou outra, era de medicina……Uma colega de medicina, que se tinha separado do marido, que era médico de nutrição. Pediu o divórcio. Tive uma depressão, ele fazia-me falta, era uma companhia, comprei cães (risos), eu dormia sozinha, nem saía à noite porque não dava para sair, eu tinha o carro mas mesmo assim…O meu pai morreu, a minha mãe já tinha morrido, o meu pai arranjou uma governanta para a casa dele, porque a casa dele era muito grande e a minha também, tinha o andar de cima, sótão…Eu vivia lá e o meu pai viveu com os netos e com a governanta, e eu disse pai deixe-me ir para o pé de si, “não, tu segues a tua vida”. Entretanto ele faleceu, eu não fazia nada, o meu pai tinha capital no banco, em vários bancos e fez aquele compromisso, olhe recebi 200, outra vez recebia menos de 200,

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outra vez recebia mais 500, fazia os meses todos do ano, não demais para eu não acabar com o capital. Antigamente os juros estavam muito altos. Agora…Depois eu tive, gostei muito de um homem espanhol. Isto é que é um homem mas não era nada nobre nem nada, era gente do povo, classe média, e gostei muito dele. Ele era divorciado, tinha filhos espanhóis, muito agarrados à família. Eu como tinha pouca família…andava sempre com ele em viagens.Depois ele morreu, e eu fiquei tresloucada de todo, já fiquei com o meu pai, eu nunca tinha visto ninguém morto nem nada. Fiquei, fui para o psiquiatra, fiquei a viver sozinha. Depois fiquei sem dinheiro, e fui parar o lar XXX … Foi uma prima, que teve agora uma trombose, ela era minha amiga…”

Relativamente ao tempo de permanência dos idosos no lar podemos dizer que é muito

variável. Dos 69 idosos, 7 estão no lar de um a seis meses; 3 de sete a doze meses; 2

entre um e dois anos; 32 entre dois a cinco anos; 13 entre cinco e dez anos e 10 há mais

de dez anos. É curioso notar que uma grande parte dos utentes reside no lar há pelo menos cinco anos. Este facto leva-nos a pensar que, quaisquer que sejam as

estratégias utilizadas, estes indivíduos já devem ter encontrado as suas estratégias de adaptação ao lar.

No que diz respeito ao estado funcional dos residentes, podemos dizer que, no geral,

os residentes do lar parecem ser bastante dependentes do apoio total ou parcial das funcionárias.

Segundo D`Épinay, o envelhecimento pode ser perspectivado como uma sucessão de três fases correspondentes a três estatutos. Subjacente a estas fases está o conceito de

autonomia, a qual se vai perdendo ou deteriorando ao longo do processo: «a vida a

inventar ou a autonomia a conquistar», quando cessa o constrangimento quotidiano

resultante do papel profissional; «a vida a reordenar ou a aprendizagem do

envelhecimento», quando o corpo emite sinais de cansaço e faz apelo a diversas

modalidades de ajuda; «a negociação da dependência», quando a vida é dominada pela

exigência do apoio de outros para compensar os factores que comprometem a autonomia

do indivíduo (D`Épinay, 1991)

Para utilizar esta distinção entre as três fases recorre a três noções básicas: a

dependência, fragilidade e autonomia.

A dependência é definida como a incapacidade de o indivíduo cumprir por si próprio uma ou várias das seguintes actividades da vida diária, designadas como AVD de

base: fazer a sua higiene pessoal completa; vestir/despir-se; comer; levantar-se/deitar-se;

deslocar-se no interior da sua habitação A fragilidade é uma realidade que requer uma

identificação mais subtil. É definida como a diminuição de reservas fisiológicas e

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sensório-motoras, sendo que esta diminuição afecta a capacidade de o indivíduo

preservar uma relação equilibrada com o meio envolvente e, mais ainda, de a

restabelecer após a ocorrência de perturbações (por outras palavras, a capacidade de

resiliência fica comprometida). As principais dimensões da fragilidade remetem para os

domínios sensorial, neuro-locomotor, do metabolismo energético, cognitivo e da

morbilidade. Segundo o autor, uma pessoa é considerada frágil logo que duas destas dimensões estejam afectadas. Por fim, a independência, ou boa saúde relativa, é

definida por uma dupla ausência de fragilidade e de incapacidade em matéria de AVD de

base.

Em relação à população do lar cerca de apenas 20 idosos apresentam as suas capacidades físicas e psíquicas preservadas, considerando-se, pois, independentes.

Os restantes idosos têm necessidade de recorrer à assistência nas tarefas de vida

quotidianas, ainda que de forma muito desigual. Dividem-se entre estados de dependência ou fragilidade.

Em relação à saúde mental, e embora não possamos afirmar peremptoriamente que no

lar existam idosos deprimidos, pois não há dados rigorosos nem diagnósticos

confirmados, a verdade é que existem muitos idosos que vivenciam sintomas depressivos que são facilmente verificáveis para um observador atento.

Utilizando critérios do DSM-III ou DSM-III-R, em estudos nos EUA e vários países

europeus, 1% a 2% dos idosos demonstraram tendência para uma perturbação depressiva major, percentagem mais baixa do que noutros grupos etários. No entanto, a percentagem de sintomas depressivos clinicamente significativos é maior nos idosos quando comparados com jovens adultos (16/100, de acordo com 9 estudos que

utilizam o CES-D como instrumento de diagnóstico), (Nordhus, VandenBos, Bery, &

Fromhdt, 1998)

As percentagens de depressão em idosos institucionalizados, variando de acordo

com os estudos, reflectem sistematicamente valores mais elevados do que os idosos na comunidade. Visões mais extremas estimam que 80/100 de idosos

institucionalizados mostram sintomas depressivos (Hyer e Blazer, 1982 in Nordhus,

VandenBos, Bery, & Fromhdt, 1998).

Assim, é relativamente comum observar idosos com um humor deprimido e/ou com variações, muitas queixas, ansiedades, insónias, isolamento, choro fácil, e até manifestações de desejo de morrer, sobretudo nas situações em que se verificam

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perdas pessoais ou materiais, baixos níveis de satisfação vital, existência de problemas

com a família, problemas de saúde e de mobilidade.

Ao nível das situações de demência é igualmente difícil distinguir quais os idosos que,

efectivamente, se encontram numa situação de défice cognitivo. Para as funcionárias, qualquer manifestação de esquecimento ou até lentidão no discurso e sinónimo de Alzheimer, como se o diagnóstico desta patologia fosse imediato. Ainda assim, há

alguns casos conhecidos de Parkinson e de Alzheimer clinicamente determinados.

Verifica-se ainda a situação de dois ou três idosos esquizofrénicos, segundo a animadora

sócio-cultural, mas que estão, de momento controladas.

Pelo que foi exposto é possível ficar com uma ideia genérica dos residentes do lar em estudo. São pessoas com uma média de idade avançada e percursos de vida, em geral,

marcados pela dificuldade e pela luta pela sobrevivência. Como tiveram poucas

oportunidades de frequentar a escola, começaram a trabalhar cedo e desenvolveram

profissões pouco qualificadas, por conta de outrem. As profissões mal remuneradas que

desenvolveram deram origem a que os seus rendimentos na reforma também não

fossem muito elevados. Como a vida foi centrada na sobrevivência, muitos idosos não

tiveram oportunidade de usufruir de oportunidades culturais e sociais, nem

desenvolveram o hábito de participar em instâncias de carácter cívico, social, político ou

cultural. Alguns ainda beneficiaram de uns bailes e de umas sessões de cinema na sua

juventude, actividades frequentes e bastante apreciadas.

A maioria encontra-se em situação de saúde frágil ou mesmo dependente. Acredita-se

que os baixos recursos, associados às limitações físicas acabem por ser condicionantes

de um processo de inactividade. Dado haver muitos utentes solteiros, viúvos ou

divorciados e de ter havido uma ruptura, ainda que parcial, com a rede de amigos e

vizinhos, é de supor que as relações significativas dos idosos tendam a esbater-se,

senão mesmo a desaparecer. Por seu lado, vários utentes alegaram, como se verá

adiante, problemas e desentendimentos familiares como motivo principal para o ingresso

no lar.

À partida, este perfil vulnerável de idosos faz-nos pensar se, e em que medida, o lar desenvolve estratégias para compensar tantas fragilidades e reforçar as histórias, mais sofridas ou vitoriosas, que os idosos tanta necessidade têm em verbalizar, como

se o seu “eu” vivesse apenas de passado. Que mecanismos desenvolve o lar para tentar

contrariar as representações negativas em torno da vida e da velhice, tendo em conta

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que estes idosos viveram vidas difíceis, em torno da sobrevivência, e que essa situação

os parece ter paralisado na velhice? O que faz a instituição para reparar as dificuldades

individuais? Que estratégias são usadas para contrariar a inactividade e a passividade

decorrente de uma aparente desistência pela vida? O que se faz para reforçar

positivamente os saberes e as histórias destes idosos, contrariando a desvalorização

para a qual parecem estar voltados?

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PARTE IIEXPLORAÇÃO DO TRABALHO EMPÍRICO REALIZADO NO LAR

4. Diversidade e qualidade dos espaços colectivos e privados na preservação do bem-estar e das identidades pessoais e sociais

Pretendemos aqui analisar o impacto que a vivência no espaço lar origina no indivíduo,

partilhando, com os construcionistas, a visão de que o contexto organiza o significado.

Os significados não estão “lá fora”, esculpidos em pedra, prontos a ser submetidos a

hipóteses ou avaliados, nem, no extremo oposto, se adaptam a tudo e todos. O

significado não é aquilo que o observador pretende (Gubrium & Holstein, 1999).

Se são atribuídos pelos idosos diferentes significados às experiências que vivenciam no

lar, estes significados estarão também influenciados pelos espaços em que ocorrem

e percepções que despertam. Desde logo, o espaço lar pode assumir-se como um

contexto de tensões complexas porquanto implicou a saída da casa/residência de família,

espaço este estruturador das experiências passadas e da própria identidade dos sujeitos.

É então importante tomar em conta o contexto físico e social em que o indivíduo

envelhece, pois as várias circunstâncias em que se envelhece vão condicionar todo esse

processo. Mais ainda do que conhecer a envolvência objectiva e material, interessa

conhecer como essa envolvência é percebida pelos idosos (Barenys, 1990).

Conhecer a envolvência ecológica do indivíduo supõe, entre outras coisas, conhecer os

processos e experiências mais significativas que se efectivam em espaços de vida. No

caso concreto dos idosos sobressai o espaço habitacional, “experenciado em geral

como espaço de defesa e segurança, região propícia ao reencontro consigo próprio e à

capacidade de afirmação e construção da vida através do corporal” (Esteves, 2003:27). A

este espaço habitacional, e todo o ambiente social que se produz em seu redor, estão

associados lugares de história individual, familiar e de permuta com uma rede de vizinhos

e conhecidos, aos quais se associam comportamentos e acontecimentos vividos em

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cada momento da vida dos indivíduos, que contribuem para a manutenção da identidade do eu.

No entanto, quando o ambiente físico, social e humano se transforma radicalmente, os

indivíduos vêem-se a braços com desafios adaptativos susceptíveis de lhes provocar

sofrimento. Como salienta Paúl, “com as alterações da paisagem e dos comportamentos

a ela associados – o baldio onde se brincava que virou urbanização, o campo de cereais

que foi atravessado por uma estrada – o idoso perde inevitavelmente parte da sua

identidade pessoal histórica, da mesma forma como quando morre mais um dos seus

pares e com ele as memórias partilhadas da vida” (Paul, 2005:247). Com efeito, a

identidade do Eu que se vai reconstruindo de forma dinâmica na base das trocas com o

meio, será tanto mais abalada quanto possamos falar de uma mudança residencial que

afasta os indivíduos de todas as vivências com significado identitário, na sequência de

processos múltiplos de sucessiva perda de autonomia. Quaisquer que sejam as razões

da perda da autonomia, é desejável que as alternativas de residência institucional preservem e, preferencialmente, reforcem essas referências identitárias prévias,

assim como garantam o bem-estar do idoso e a sua qualidade de vida. De entre essas

referências identitárias destacam-se os objectos que os idosos possuem na sua

residência. Sejam de uso prático ou decorativo, estejam eles investidos de um valor

económico, sentimental, utilitário ou estético, os objectos são entendidos como elementos

caracterizadores da história de vida e, igualmente da identidade dos indivíduos (Manoukian, 2001). A partir do momento que certo objecto é adquirido ou oferecido, deixa

de ser anónimo, torna-se pessoal, familiar, implicando uma ligação particular ao mesmo.

A frequente tendência de se criar um sobrenome ao carro ou baptizar uma casa com um

nome repleto de sentido impõe que esse objecto passe a adquirir, ele próprio, uma

singularidade. Por outro lado, todos já vivenciamos a perda ou destruição de um objecto

especial que nos deixa profundamente tristes como se de uma perda irreparável se

tratasse, nem sempre pelo valor material que comporta, mas sobretudo pelo valor

sentimental a ele associado.

Este afastamento dos objectos familiares acaba por ser frequente logo que uma pessoa

idosa deixa a sua residência para ir viver para um lar, porquanto os limites impostos em

termos dos materiais e objectos a levar para o lar são, regra geral, bastante severos.

Quebra-se o laço íntimo mantido com esses objectos familiares e privam-se os sujeitos

das suas referências identitárias exteriores. Esta perda de objectos de toda uma vida equivale a um despojamento ou um pôr-se a nu, podendo gerar-se sentimentos de

abandono, de roubo ou de traição (Manoukian, 2001). É, pois, determinante

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compreender, valorizar e preservar a relação que se estabelece com os objectos no espaço doméstico, tentando que a mudança para o lar não implique uma ruptura

abrupta com os mesmos e que o espaço lar também valorize no seu seio a permanência,

se não de todos, pelo menos de alguns desses objectos marcantes para os seus

residentes.

Tratar a dimensão do espaço implica atender a uma multiplicidade de indicadores que

poderão ser preditivos de um maior bem-estar e adaptação ao lar, ajudando a

compreender de que forma a quantidade e qualidade dos espaços interferem no

envelhecimento bem-sucedido dos idosos e na preservação da sua dignidade e

identidade. Como salienta Paúl, os vários modelos da psicologia ambiental debruçam-se

justamente sobre a importância do contexto físico e humano nos resultados diferenciais

do processo de envelhecimento, sendo a tese central destes modelos a maximização do envelhecimento bem-sucedido ou óptimo a partir de uma relação adequada entre o idoso e o meio (Paúl, 2005).

Também Hall se preocupou em analisar o homem e as suas relações com o meio

ambiente, com os numerosos mundos sensoriais e mundos perceptivos diferentes,

preocupando-se assim com as necessidades proxémicas a ele associadas. Afirma

convictamente que a experiência será percebida de forma muito distinta de acordo com a

diferença de estrutura dos filtros perceptivos por entre as várias culturas. Entende pois,

que o espaço social e pessoal, e sua percepção pelo homem, estão associados ao uso que o homem faz do espaço enquanto produto cultural específico (Hall, 1986).

Desde logo o lar, ao estabelecer barreiras com as várias esferas anteriores da vida dos

residentes, tende a congregar todos os aspectos da vida dos indivíduos no mesmo local e

na presença de um grande grupo de pessoas, aproximando-se do modelo de instituições

totais de Goffman (1996:17/18). Por tal motivo, interessa-nos analisar o grau de

diversidade e qualidade dos espaços residenciais.

Vamos igualmente analisar os indicadores que nos poderão retratar os índices de

conforto, comodidade e atractividade que os espaços oferecem. Por outro lado,

importa analisar a diversidade e dimensões dos espaços que efectivamente estão

disponíveis aos residentes, quer na vertente mais colectiva de convivialidade,

potenciando a sociabilidade e a realização de actividades recreativas, quer na

dimensão mais pessoalizada e íntima, permitindo o desfrute de momentos de privacidade

individual e/ou de ligação mais estreita à família. Os aspectos de segurança designadamente associados à prevenção de acidentes e à vigilância dos espaços,

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nomeadamente através do controlo das entradas e saídas do lar, configuram-se como

uma outra área de relevância para a qualidade de vida dos utentes. Num esforço

encetado para operacionalizar este conceito, que entende como complexo30 e

pluridimensional, Esteves refere-se a cinco parâmetros objectivos do meio de vida dos

idosos cuja existência tenderá e favorecerá a qualidade de vida dos mesmos: um meio seguro, que garanta que a vida física, o território de vida e os bens do idoso estejam a

salvo, tanto mais que a progressiva fragilidade física do idoso o torna mais vulnerável a

ameaças; um meio fiável, pautado pela relação de confiança com os meios tecnológicos

e com um universo de objectos complexos que atravessam o quotidiano dos idosos e

podem provocar dúvidas e incertezas quanto ao seu funcionamento, gerando

instabilidade; meio que garanta a acessibilidade – em termos de espaço a percorrer,

tempo a despender, esforço físico e mental, preços financeiros – a bens e serviços que

satisfaçam as necessidades dos idosos; meios ricos em termos da multiplicidade de

estímulos desejáveis, de centros de interesse mobilizadores da atenção e imaginação

dos indivíduos, de fontes de gratificação; meio sustentável, do ponto de vista da

concretização de projectos de vida com sentido que não comprometam as gerações

seguintes nem se pautem pela insegurança perante a velocidade das transformações e

das experiências de mudança (Esteves, 2003:26).

A qualidade de vida proporcionada pelos espaços impõe que se observe em que medida

a instituição proporciona ajudas visuais que facilitam a orientação dos residentes e se

esta se organiza como um meio livre de barreiras arquitectónicas, favorecendo a

independência física e a mobilidade dos residentes. Por outro lado, e considerando a

importância do parâmetro da acessibilidade, será de toda a utilidade percepcionar a

acessibilidade à comunidade envolvente e o grau de adequação dos serviços e

recursos que esta disponibiliza aos residentes. Todas estas dimensões, consideradas em

paralelo, permitirem-nos atestar os esforços desenvolvidos em matéria de promoção de

bem-estar para os utentes.

A par de todas estas considerações, o lar deve ser igualmente um espaço de criatividade e de promoção de estimulações variadas que favoreçam a qualidade

estética da residência e, acima de tudo, a diferenciação dos espaços habitáveis e a personalização dos espaços privados. De notar que o nível de influência dos

30 O autor atribui a complexidade do conceito ao facto de a ele estarem associadas duas coisas fundamentais: a análise do meio que envolve o indivíduo na diversidade das suas realizações (cidade, campo, hospital, escola, família, empresa, viagem, etc.) e, paralelamente, o “juízo” que os indivíduos fazem, na diversidade dos grupos a que pertencem e das culturas a que se reportam, acerca do grau em que aquele meio de vida contribui para a realização do seu “projecto de vida” (Esteves, 2003:25).

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residentes na decoração e definição desses espaços tenderá a uma maior apropriação

dos mesmos, favorecendo o clima de familiaridade desejado no contexto do lar.

4.1. O edifício do lar e seu enquadramento nos recursos e espaços envolventes

O lar encontra-se situado muito próximo de um centro urbano31, bastante desenvolvido,

sobretudo no sector dos serviços, e com grande acessibilidade a recursos variados. O

seu edifício encerra no mesmo espaço duas construções agregadas, uma de origem

mais antiga32, outra de construção recente, sendo que, sobretudo na parte antiga, é

possível detectar algumas falhas de construção, facto que denota ainda uma concepção

algo limitada e desactualizada do que são as necessidades das pessoas idosas. Apesar

de algumas manchas escuras na parede exterior, denotando o desaparecimento

progressivo da tinta, a imagem que prevalece é de uma construção atraente, de cores claras acompanhadas de um tijolo alaranjado e linhas simples, não havendo marcas

muito acentuadas que o identifiquem como um lar para idosos, com excepção de uma

placa discreta junto a uma das entradas do lar, virada para a rua central, onde está

contida a designação do lar. Essa entrada não é, porém, frequentada com regularidade

pelos utentes, familiares ou funcionários, mas mais uma outra entrada voltada para uma

rua interior que dá acesso a um parque de estacionamento gratuito que também está

disponível a funcionários e visitantes do lar, tornando o acesso ao mesmo facilitado e, ao

mesmo tempo, mais discreto, uma vez que se encontra bastante mais afastado da rua

principal. Esta entrada, voltada para a estrada principal, funciona quase como uma

entrada fictícia, pois na verdade não é utilizada, uma vez que não apresenta condições

de acessibilidade ajustadas às especificidades da população em estudo, sobretudo pelas

suas imensas escadas íngremes que dificultam a deslocação.

A entrada utilizada é precedida de um pátio exterior que faz ligação entre o portão de

acesso ao lar, que se encontra aberto ao longo do dia, fechando apenas ao fim da tarde,

e a própria porta de acesso à entrada. A entrada e saída do portão é dificultada por um

degrau difícil de ultrapassar por quem se desloca de cadeira de rodas. A porta inicial

31 De acordo com dados do INE (2001) trata-se de um dos municípios mais populosos do país e com maior índice de poder de compra per capita. 32 O Lar antigo que existe já há largas décadas com a designação inicial de albergue, depois de Casa dos Pobres e só há pouco mais de vinte anos com a designação que permanece actualmente, teve na sua origem a acção de um benemérito dessa terra que deixou em testamento os seus bens para ajudar os pobres de ambos os sexos, da sua terra, que não tivessem quem os socorressem e que, pela sua idade ou doença não pudesse garantir a sua subsistência.

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é de abertura fácil, movimentada através de sensores, facilitando a entrada e saída de

pessoas dependentes. No entanto, a uns escassos metros a seguir encontra-se uma

outra porta, mais estreita, já de abertura manual, que dá acesso imediato ao hall de

entrada, dificultando a mobilidade dos utentes em cadeira de rodas que não conseguem,

ao mesmo tempo, abrir essa porta manual e empurrar a sua cadeira. Se houvesse uma melhoria deste sistema e da acessibilidade desde o exterior até à entrada do lar, os indivíduos poderiam mover-se mais livremente até ao exterior do lar, preservando

durante mais tempo a sua autonomia. Apesar das preocupações evidentes, em termos da

promoção do bem-estar dos utentes, verifica-se que, na construção mais recente do lar,

vão-se constatando, com o uso desses espaços, alguns pormenores deficitários, que não

deixam de contribuir para que se limite a margem de manobra e de movimentação dos

residentes e a sua conformação face a essa circunstância.

Nesse espaço intermédio entre o exterior e o hall de entrada encontra-se um tripé

com o organigrama do lar e a publicitação de algumas actividades, curiosamente

ligadas às actividades religiosas promovidas pela paróquia, e não tanto às actividades promovidas pelo lar as quais seria importante dar a conhecer aos utentes e, sobretudo,

aos familiares e visitantes. O hall, propriamente dito, é um espaço amplo, luminoso,

com um balcão de madeira clara, onde se encontra a funcionária encarregue de receber

os visitantes e controlar a entrada. Qualquer indivíduo que se identifique como familiar ou amigo entra livremente, sem ter que deixar ficar nenhum tipo de

identificação formal e sem que se avise previamente o idoso dessa visita, independentemente de ser, ou não, do seu agrado. Quanto aos visitantes que

desejam ser recebidos pela assistente social ou responsável do lar, estes aguardam de

pé, no hall, que as responsáveis os contactem ou num prolongamento do hall, onde se

encontra um relógio antigo, uns sofás e uma pequena mesa da apoio com revistas. Neste

mesmo espaço também é frequente observarmos, sobretudo ao domingo, alguns utentes

que aguardam pela chegada dos seus familiares que os visitam ou vêm buscar para

almoçar fora ou nas suas casas. Aqui existe também uma sala, de dimensões muito pequenas, no interior da qual se encontram uns sofás de verguinha e uma mesa. Apesar

desta sala normalmente estar fechada e não cumprir com nenhuma função específica, no

interior do lar, ao longo do tempo de observação ela foi utilizada no período de Natal

como sala destinada à venda dos produtos realizados pelos utentes, assim como foi

possível observar pontualmente o uso dessa sala para que alguns utentes recebessem a sua família. No fundo do hall existe ainda uma sala, dotada de uma mesa

e de cadeiras de madeira muito bem cuidadas e conservadas, a qual funciona como

sala de recepção e reuniões. Esta sala está habitualmente fechada e é vedada ao uso

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dos residentes. Quanto ao interior do edifício, ele é composto por dois andares, com

espaços, decorações e funcionalidades distintas entre si, mais a cave. Na cave situam-se

os serviços de lavandaria e costura, a garagem para as carrinhas do lar e espaços vários

para arrumação de materiais do lar inutilizados, alimentos que necessitam de estar ao ar,

sobretudo quando existem ou são oferecidos em grandes quantidades, como batatas ou

cebolas, uma arca frigorífica de apoio ao refeitório e aos serviços de alimentação e

espaços onde se guardam múltiplas ferramentas de trabalho utilizadas sempre que é

necessário fazer obras ou reparos no lar. Uma parte significativa desses materiais foi

doada por um utente que exerceu a profissão de picheleiro, embora com apetência

para outras áreas como a carpintaria e a serralharia, e ainda hoje dá apoio ao lar sempre

que é necessário. Quando se mudou para o lar houve receptividade da parte da direcção

para acolher também todos esses instrumentos de trabalho que, se por um lado,

poderiam ser úteis ao lar, por outro, permitiriam que o utente trouxesse parte da sua vida agarrada a si e preservasse o seu sentimento de utilidade para com a comunidade. Mantendo-se assim activo na medida em que apoia o lar em todos os

reparos de manutenção necessários. Como ele próprio referencia,

“Eu aqui nesta casa faço de tudo, de tudo, desde a minha profissão, à serralharia, electricidade, carpintaria, tinha jeito para tudo, e como trouxe a minha oficina cá para casa, tenho a oficina montada lá em baixo na garagem, eu faço de tudo. Portanto para lhe dizer que fui um bom artista…” Sr. Mateus

Na cave existe ainda um grande portão, igualmente de acesso ao exterior. No entanto,

dada a existência de uma rampa íngreme que encaminha quem a percorre para o exterior, esta apenas é percorrida pelo motorista na carrinha ou pelas funcionárias da

cozinha quando transportam os caixotes do lixo até ao exterior.

O rés-do-chão é destinado sobretudo aos serviços e espaços colectivos, apesar de aí

existir também um quarto, designado de enfermaria de senhoras da parte velha33, que

acolhe cinco senhoras todas em estado de dependência física ou mental.

Destacam-se, no rés-do-chão, para além de amplos corredores de ligação entre os

vários espaços, a cozinha e o refeitório de utentes e funcionários; o refeitório social; a

residência das madres à qual apenas as próprias têm acesso; a capela; alguns quartos

duplos; uma sala destinada aos funcionários; uma sala polivalente, que funcionou outrora

como quarto; a barbearia, que funciona como sala de estética; o consultório médico e de

33 Designa-se de “enfermaria da parte velha” pelo facto de se encontrar inserida nas instalações mais antigas do lar, não oferecendo as mesmas condições de conforto e estética presentes nas outras enfermarias entretanto construídas.

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enfermagem; a zona dos escritórios, com três pequenas salas destinadas à gestão

material e humana do lar; uma sala pequena de espera, em frente aos gabinetes; uma

outra sala pequena de apoio aos trabalhos manuais, onde se guardam quer os materiais,

quer os objectos realizados pelos utentes no âmbito deste atelier; a sala de convívio,

onde se inclui o bar e, por fim, três casas de banho colectivas: uma casa à entrada, para

apoio aos visitantes e técnicos, que normalmente se encontra fechada à chave, sendo

necessário solicitar a chave à funcionária da entrada cada vez que se deseja utilizá-la, e

duas casas de banho destinadas exclusivamente a funcionários que possuem chave para

a elas acederem. Quando questionadas as responsáveis acerca desta divisão das casas de banho, foi-nos dito que desta forma era possível preservar alguns espaços limpos durante mais tempo, não tendo que sujeitar os funcionários a partilhar estes espaços juntamente com os idosos!

Por fim, existem dois elevadores, situados estrategicamente, um no hall de entrada do

lar e outro no corredor de acesso à sala de convívio, facilitando a deslocação dos utentes entre os vários pisos, sobretudo dos mais dependentes, não obstante estes

necessitarem, na generalidade das situações, de alguém que lhes abra a porta do

mesmo, pelo facto de ser bastante pesada. O elevador da entrada destaca-se pela sua

dimensão, facilitando as deslocações de várias pessoas ao mesmo tempo ainda que em

cadeira de rodas. É também por este elevador que se deslocam as macas dos utentes

que entram ou saem normalmente para o hospital. O elevador junto à sala de convívio é

mais pequeno fazendo com que, sobretudo nas horas dos dependentes serem deslocados para os seus quartos, se forme uma fila de cadeiras de rodas aguardando pela sua vez de ascender ao piso superior. Existem ainda, em vários

pontos do lar, escadas de ligação entre o primeiro e o segundo piso, que são os mais

frequentados pelos utentes. Nas escadas de madeira não existem protectores nos degraus, tornando mais fácil que os utentes escorreguem e caiam, ao contrário das

escadas de mármore/granito onde esses protectores se verificam. Em todas se verifica a existência de corrimãos, de um dos lados, para apoio dos residentes e demais

pessoas que as utilizem.

O primeiro andar é destinado sobretudo aos quartos. Estes oferecem aos seus

residentes melhores ou piores condições, consoante se localizem na parte nova ou mais

antiga do lar. Existem ainda dois quartos, designados de enfermarias, destinados aos

utentes que requerem mais cuidados e uma sala de jantar, com televisão, onde tomam

as suas refeições e permanecem cerca de seis a oito utentes física e mentalmente

dependentes. Neste piso, existe ainda um pequeno quarto, junto das enfermarias,

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destinado a acolher algum utente moribundo, que necessite de privacidade para

poder passar os últimos momentos de vida com a sua família, ou que já tenha falecido e

seja necessário vestir e preparar para o funeral. De salientar que todo este piso está

arquitectado de forma a que a parte interior do mesmo conflua toda para um pequeno

jardim interior envidraçado, permitindo que o sol entre abundantemente, inundando de luz e calor todo o piso. Era frequente observar algumas utentes, sobretudo de

manhã, quando o sol mais batia naquelas vidraças, sentadas a conversar nuns sofás colocados num corredor de acesso à sala de jantar aí existente, desfrutando do calor e do sol que aí penetrava.

Já no interior do lar, não havendo propriamente uma superfície de relvado, nem uma

área de cultivo que possa ser rentabilizada a favor do lar, existe um espaço verde, nem

sempre totalmente cuidado, entrecruzado com pequenos pátios onde permanecem uns bancos de pedra já algo envelhecidos. Sendo o único local exterior do lar, é sobretudo frequentado pelos utentes no verão e mais pontualmente nas outras épocas do ano.

No entanto, mesmo no período de Verão,34 muito raramente se organiza uma actividade de ar livre, como ginástica ou jogos, ou refeição mais informal, tipo churrasco

ou sardinhada, nesse espaço, não se rentabilizando a devida potencialidade do mesmo.

A não rentabilização total desse espaço é, de alguma forma, compensada por outros

espaços verdes aprazíveis que os utentes frequentam no exterior do lar.

Existem pelos menos dois jardins nas proximidades do lar. Um situa-se logo nas

traseiras do mesmo. Costuma estar bem cuidado e apetrechado com bancos que alguns utentes utilizam para repousar após uma breve caminhada depois do almoço.

Existe também um café voltado para esse jardim que alguns utentes frequentam com

regularidade. O edifício do lar está situado numa rua bastante movimentada, próxima da

Igreja Matriz, símbolo incontornável da terra, até pelo facto de aí se realizar anualmente

uma festa em honra do Santo Padroeiro, que se prolonga por alguns dias e é muito

apreciada por visitantes de muitos concelhos limítrofes. No seguimento dessa rua é

possível encontrar inúmeros estabelecimentos comerciais do tipo cafés, mercearias,

supermercados, frutaria, etc. Da mesma forma, Igrejas ou outros lugares de culto,

correios, biblioteca pública, bancos consultórios médicos, etc. Existe, a escassos metros

do lar, um centro de saúde e a cerca de dois ou três quilómetros um hospital.

34 Apesar do período destinado ao trabalho de observação ter decorrido mais durante o Inverno e Primavera, os contactos, ainda que mais pontuais, permaneceram, fazendo com que o investigador pudesse percepcionar a não rentabilização desse espaço exterior.

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Alguns metros adiante do lar, existe o edifício da Câmara Municipal, junto do qual se

encontra um belíssimo e aprazível jardim, bastante cuidado e movimentado, diariamente,

por adultos, seniores e crianças que deitam milho às pombas e brincam no parque infantil

que lá existe. É, sem dúvida, um local privilegiado, repleto de vegetação e com inúmeros

bancos onde todas as tardes é possível observar sobretudo idosos isolados, a descansar

e a passar um pouco de tempo, ou em grupo, a jogar cartas.

“Tem aqui sempre muitos velhotes a jogar, menina…não têm que fazer e vêm para aqui jogar às cartas. Assim sempre se passa o tempo…” Sr. Afonso

A partir destes locais existem transportes públicos variados assim como uma paragem de metro facilitando a acessibilidade a outros recursos e as deslocações a

outros locais. No entanto, apesar da existência desses transportes, não nos pareceu que fosse habitual o seu uso, quer porque se trata de uma população bastante

dependente, quer por não saber como utilizar esses transportes35, ficando mais limitada

aos espaços que possam ser percorridos a pé, já que a disponibilidade da carrinha do lar para os levar a algum lado é bastante limitada. De alguma forma, uma boleia da

carrinha funciona como um privilégio que não existe para todos, mas apenas para

aqueles utentes com os quais se estabelece um relacionamento mais próximo ou de

maior empatia. Como nos relatou a D. Margarida, esta apenas conseguiu uma boleia do

motorista pelo facto de este simpatizar consigo.

“Em noutro dia disse assim: oh Tó você quando é que vai ao Hospital? Diz ele assim: tem que ir? Não. Porquê? Tenho lá a minha prima gostava de a ir ver; …. Tenho medo. Como caía muito e assim, ainda não me sinto assim. E se for acompanhada vou, não me custa nada. E depois ele disse: eu levo-a lá. E levou-me lá e disse: eu não faço isto a toda a gente, e foi-me buscar; faço isto porque gosto de si”.

Os restantes utentes ou desconhecem que podem solicitar ao lar o apoio em determinada

deslocação ou não querem pedir favores que impliquem ficar em dívida.

Para além de todos os recursos referenciados e de se tratar de uma zona comercial, a

área em redor do lar é, também, uma área residencial, o que permite a visualização constante de pessoas a percorrer aquelas ruas circundantes ao longo das várias

horas do dia. O barulho permanente do tráfego, o corre-corre das rotinas de tantas

pessoas nas redondezas, contribui para que os que saem do lar se sintam menos

solitários e mais envolvidos numa trama social, atenuando os efeitos perversos da

35 Apesar da existência do metro nas proximidades, a maioria dos utentes que se desloca para o exterior só andou pela primeira vez nesse transporte aquando algumas saídas e pequenos passeios organizados pelas estagiárias finalistas de serviço social.

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institucionalização. Sem dúvida que o lar desfruta de um enquadramento urbano bastante rico e diversificado, com potencial para despertar nos idosos o interesse em

explorá-lo. No entanto, nem sempre o piso da estrada é favorável sobretudo aos mais dependentes.

O senhor Pedro gosta de ir todas as tardes até à Junta de Freguesia, local onde aprecia

passar uma parte da tarde com outros idosos que lá se encontram. No entanto, apesar da

distância até lá não ser muita, o piso mostra-se por vezes traiçoeiro. Além disso, como

lhe falta a força nas pernas, o senhor Pedro necessita de parar várias vezes até lá

chegar, necessidade esta difícil de garantir uma vez que não existem assim tantos

bancos ou locais de paragem que funcionem como muletas nos percursos percorridos

pelos idosos.

“Olhe eu vejo-me à rasca para ir daqui à Junta de Freguesia. Qualquer dia vou ter de deixar de ir porque já estive para cair duas vezes, foi por um triz que não me aleijei à séria. Eu paro duas ou três vezes pelo caminho para me assentar. Mas no outro dia as pernas iam-me a faltar e não tinha aonde me agarrar. Tropecei num paralelo…”

As ruas padecem do mal habitual, em termos da impreparação comum das nossas

cidades face às condições dos mais dependentes ou idosos. São frequentes os obstáculos no caminho, tipo caixotes do lixo ou sinais de trânsito mal colocados,

inexistência de passeios, colocando em risco a segurança dos transeuntes, piso

composto por paralelos bastante irregulares, inexistência de bancos que, de quando em

vez, permitam a realização de pequenas paragens no decorrer da marcha. Por outro

lado, se é certo que a agitação da vida em cidade e os recursos que ela tem disponíveis

podem compensar a quebra de uma série de actividades que o indivíduo desenvolvia

antes do seu ingresso no lar, esse meio também pode ser entendido como um meio ameaçador. A rapidez e a tecnologia associadas à modernidade tornam o meio mais ameaçador para quem já não consegue, com a fluidez necessária, executar um

conjunto de tarefas exigidas. Exemplificando, são os multibancos que ainda não se

dominam e o medo que se instala de ser assaltado, o tempo escasso de sinal verde nas

passadeiras que dificulta a passagem com segurança para o outro lado da rua, a

dificuldade em perceber a rota dos transportes, o medo de cair na rua a qualquer

instante, o barulho e a poluição sonora que perturbam, a dificuldade em manipular o

andante, cuja complexidade na atribuição de zonas torna a informação escrita num

obstáculo incontornável, diga-se, para mais velhos e mais jovens!

Claramente que estão aqui comprometidos, para uma maioria dos utentes, as

características referentes a um meio seguro e fiável, de acordo com os critérios de

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qualidade de vida acima apresentados (Esteves, 2003). Por outro lado, e seguindo o

critério da acessibilidade que o autor igualmente referencia, multiplicam-se as situações em que os utentes não podem aceder aos recursos que necessitam ou desejariam, pois não têm possibilidade para tal. Se atendermos às condições

económicas dos utentes, são muitos os que recebem parcas pensões, das quais restam

apenas escassos euros após pagamento da prestação no lar. São os lanches com as

amigas que se têm que evitar, as idas ao cabeleireiro, a compra de uma peça de roupa

ou outro qualquer bem pessoal, fazendo com que os apelos do meio não possam ser satisfeitos, aumentando assim o sentimento de frustração e resignação.

A D. Beatriz, bastante enraizada e conhecida na comunidade onde se insere o lar,

comentava o quanto a sua vida económica e o acesso a bens de consumo se tinha

alterado desde a entrada no lar, condicionando até a sua participação na vida familiar e

social.

“… no outro dia tive o casamento de uma sobrinha. Estive mesmo para não ir. Sabe como é a gente tem que dar prenda e eu agora onde é que tenho dinheiro para isso? Também não tinha o que vestir. Noutra altura eu fazia a minha roupa, mas agora já nem tenho vistas para estar a costurar, já não consigo. O meu filho mais velho é que me deu dinheiro para eu ir: tome lá mãe, não é por isso que vai deixar de ir… Agora tem que ser tudo muito tenteado. Dantes ia ao cabeleireiro todas as semanas, agora vou de quinze em quinze dias; dantes ia lanchar muitas vezes fora, agora vou menos mas tenho que ter sempre um dinheirinho para ir lanchar com esta ou com aquela que me convide, tenho que poder pagar porque nunca estou à espera que ninguém me pague…” D. Beatriz

A inclusão espacial num meio rico de estímulos não pressupõe ou contribui, por si só, como se percebe, para que os utentes participem mais na comunidade ou estejam verdadeiramente inseridos, desfrutando plenamente dos recursos

económicos, culturais, relacionais, que esse meio tem ao dispor.

4.2. Espaços destinados aos vários serviços

No lar em estudo encontramos uma variedade de espaços diferenciados destinados à promoção dos vários serviços fundamentais para responder às necessidades dos utentes, assim como também a cantina social que dá apoio a um máximo de 20 pessoas.

Podemos referenciar os Serviços Administrativos e Técnicos; os Serviços de Saúde; os

Serviços Alimentares; Serviços de Limpeza; os Serviços de Lavandaria e os Serviços de

Manutenção e Armazenamento.

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As áreas destinadas aos Serviços Administrativos e Técnicos são circunscritas a três

pequenas salas: uma destinada à Madre Superiora, que assume funções de directora do

lar; outra destinada à assistente social; e a terceira destinada aos serviços de

contabilidade, onde trabalha apenas uma funcionária.

Estas pequenas salas estão situadas junto ao corredor de acesso à sala de convívio,

assegurando bastante proximidade com os utentes. Existe uma entrada sem porta e

um pequeno hall, para onde confluem as três portas correspondentes às três salas

referenciadas. É frequente observar os utentes a olharem para a porta da sala da assistente social, a mais visível cada vez que se passa no corredor, no sentido de se

assegurarem se essa porta está aberta para a cumprimentarem. Muitas vezes ainda

param para estabelecer um pequeno diálogo com ela, sobretudo quando a madre

superiora não se encontra no seu gabinete logo ao lado, para fazer uma queixa relativa a

algo que não vai bem com a sua saúde ou com o funcionamento do lar. Apesar da ligação relativamente próxima que alguns estabelecem com a assistente social, dificilmente se queixam ao ponto de solicitarem a mudança de quarto ou mesa, não

obstante termos percebido que seria o desejo de alguns. O senhor Guilherme é um

desses exemplos. Consegue dirigir-se à assistente social para reclamar da sopa que há

dias não estava a ser do seu agrado. No entanto, recusa-se a acusar o colega do quarto

de comportamentos que o perturbam, solicitando a mudança de quarto ou de colega de

quarto. Pelo seu discurso, fica claro o receio em ser rotulado como alguém intolerante ou

indesejável e o receio em ser “sacrificado”pelos outros.

“ (…) O colega é que me põe em baixo, é rara a noite que eu durma cinco horas porque chegando a uma idade, a gente não dorme mais de cinco horas, não dorme mais (…) Porque não me deixa dormir. Não sei, começa ai, ai, e vai com as portas, da mesinha de cabeceira, tumba e dá com a porta tumba (…) Não, não chamo ninguém, não acuso ninguém, não acuso ninguém, não quero acusar ninguém, podia ir ter com a madre e fazer-lhe ver, mas não quero que ninguém diga nada. Não tenho coragem para fazer mal a ninguém (…). Eu nunca fui chamado à polícia, nunca fui preso, eu nunca levei roda de preso, eu nunca tive ninguém que me batesse, eu não tenho nada, nada, nada, que diga assim: eu fui sacrificado por isto ou por aquilo, porque fiz isto ou fiz aquilo, e como eu nunca fui sacrificado, também pelo resto da vida, a esse respeito não quero ser sacrificado. Podem muito bem mudar o homem ou outro e calhar pior, e eu não quero, eu não me importava de vir para esta parte nova sabe (…) Queria por exemplo, se fosse para lá um companheiro que eu visse, que era diferente, não me importava. Se fosse para lá um companheiro que eu visse que era bom companheiro, eu não me importava (…)” Sr. Guilherme

Os motivos das queixas prendem-se habitualmente com a alimentação, sopa ou algum

prato que não gostaram, alguma peça de roupa que desapareceu, a ausência de um

membro familiar, alguma consulta médica que é necessário planear, algum papel ou

questão burocrática que se impõe resolver, ou até alguma briga, distúrbio ou conflito com

outro residente ou funcionário que é necessário apaziguar. Contudo, são muitas as vezes

em que os utentes olham em vão, pois a porta se encontra fechada, inibindo-os de lá

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bater. Isso só acontece se houver algum assunto de força maior a ser tratado com esta

profissional e não de forma espontânea. A profissional em causa alega que, se não o

fizer, não se consegue concentrar em muitas tarefas que tem que assegurar, dadas as

vezes que é interrompida.

O hall de entrada e as portas de acesso aos gabinetes funcionam assim como barreiras separadoras entre o mundo dos idosos e o dos técnicos.

Nos seus estudos, Gubrium apercebe-se de que a existência também era assegurada por

mundos separados entre administração, staff e residentes, aquilo que designa de

“lugar”. De um modo geral, a administração desenvolvia as suas tarefas nos seus

escritórios e reuniões, o que mantinha o seu mundo e decisões separados dos restantes.

O staff, especialmente as ajudantes de enfermagem, passa grande parte do tempo junto

dos residentes, enquanto que os residentes estavam essencialmente nos seus quartos,

nas salas de convívio ou na cantina. Dentro dos residentes, existiam ainda divisões em

círculos informais de amigos e díades de suporte mútuo, o que constituía os seus

pequeninos mundos de interacção. Sendo que os mundos do staff e dos residentes

estavam mais próximos, a sua colisão era mais provável do que a administração,

causando os costumeiros incidentes e queixas (Gubrium & Holstein, 1999:296). Estes

diferentes lugares contribuem, assim, para produzir interacções distintas e pequenos

mundos separados entre estes vários grupos de actores, originando, por sua vez,

mundos de significado distintos.

Por outro lado, apesar das três pequenas salas da equipa técnica e administrativa

usufruírem de luz directa e de um ambiente acolhedor, as áreas destes espaços, sobretudo do gabinete da assistente social e da madre, são muito limitadas, não cabendo lá uma cadeira de rodas com a porta fechada. Na verdade, em todo o tempo

de permanência na instituição nunca se observou um utente de cadeira de rodas a dirigir-

se para qualquer uma destas salas para tratar de qualquer assunto, o que por si só,

retratará a situação de maior inibição e exclusão a que estarão voltados. No entanto, a

animadora sócio-cultural alerta a assistente social e reclama a sua presença sempre que

algo não vai bem com os utentes que se encontram em cadeira de rodas. A D. Alice, por

exemplo, um certo dia queixava-se de uma comichão permanente e acentuada em

algumas partes do corpo. Ao chamar-se a assistente social para ter conhecimento da

situação, de imediato se suspeitou que se podia tratar de uma alergia a algum alimento

ou medicamento, providenciando-se, de imediato, uma consulta médica.

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No espaço destinado à assistente social estão também contidos os processos dos utentes, fechados à chave num armário para que ninguém caia na tentação de os consultar quando a assistente social não está. Só esta profissional e a madre36

conhecem o paradeiro da chave desse armário. Por isso mesmo, sempre que a

assistente social se ausenta do seu gabinete, fecha-o à chave, alegando que já houve

auxiliares do lar que cairam na tentação de ir consultar os processos dos utentes, à

revelia da própria e da madre responsável. Existem, ainda, na sua sala todo o tipo de

documentação institucional e de ligação interinstitucional.

A sala da madre superiora costuma estar habitualmente fechada, funcionando

também como um entrave à entrada e comunicação com os utentes, reforçando entre

estes e ela uma certa distância referenciada muitas vezes por eles.

Quanto à sala da contabilidade, ela é mais frequentada pelos utentes no final do mês:

isto é, quando se trata de pagar a mensalidade ou, na maioria das situações, de levantar

o dinheiro que resta da sua pensão após ter sido paga a mensalidade ao lar, uma vez

que a maioria das pensões não são levantadas pelos utentes directamente mas vêm

dirigidas ao lar.

Quanto a esta questão foi possível perceber, mais uma vez, que esse montante,

remanescente das pensões, era mais acessível aos utentes autónomos que se deslocam

mais ao exterior e o podem gastar. Aos dependentes era dito, não raras vezes, que o

sobrante das pensões era acumulado numa conta do utente destinada a alguma

emergência ou algum bem que necessitassem a qualquer momento. Noutros momentos

era-lhes dito que, pelo facto de tomarem muitos medicamentos e usarem fralda, ainda

que apenas para dormir, as despesas eram muitas e o dinheiro tinha que reverter para as

mesmas, havendo uma certa disparidade de critérios em termos da distribuição de

dinheiro, sobretudo quando se tratavam de dependentes ou pessoas que, pela sua

condição de vulnerabilidade, já tinham alguma dificuldade em se deslocarem para o

exterior. A D. Piedade, que se encontra bastante dependente e permanece a maior parte

do tempo na cadeira de rodas, conta a dificuldade que tem em receber esse dinheiro, a

que tem direito, e que muita falta lhe faz para pagar à sua irmã os bens que esta lhe traz

de fora semanalmente.

“O dinheiro é pouco que eu tenho. Ás vezes o dinheiro que eu tenho a maior parte das vezes é para dar à minha irmã porque é ela que me traz as roupas, me traz coisas e elas passam meses sem me

36 Assim como a investigadora, durante o tempo de permanência no lar, a quem foi dada autorização para a livre consulta dos processos, no âmbito do trabalho a desenvolver.

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dar dinheiro nenhum. E quando é o mês que pertence a nós, que é o mês de férias, que vai ser agora em Julho e o mês de Natal, que é dobrado, nunca me dão dinheiro. Aquele dinheiro havia de ser para a pessoa. Sabe o que é que elas dizem? Isto é para uma urgência que pode ter, pode ser uma coisa que eu precise de repente, tem de estar aqui e pronto (…) pois haviam de dar, mas não dão. Até já disse à coisa, à Teresinha e ela disse: “olhe, sabe que você tem muitos remédios, e pouco lhe cresce. Eu não lhe posso dar assim dinheiro. Tem muitos remédios, tem as fraldas…”As fraldas é só à noite que eu não posso. Quando era a cama baixinha, agora é muito mais alta e então uso uma fralda, agora como não me levanto, uso uma fralda, para não estar a levantar-me. Eu dantes até estava mais perto do quarto de banho e agora estou mais cá no fundo. E isso é pouco, tá a ver?! “Tem as fraldas, tem as fraldas…” Mas se eu só lhe gasto uma fralda! “Tem as fraldas, tem os remédios”. Mas mesmo assim acho que me roubam, acho que me roubam [baixinho]. E eu disse, olhe, ela apresentou-me isto, e disse-lhe mas não é justo. Olhe, deu-me no dia 23 de Fevereiro, nunca mais me deu, portanto não sei, isto não pode ser assim. Ahh, começa logo a dizer, “ah é porque você tem estas despesas e assim estas despesas”. E eu… e abafa-me assim, e aquele dinheiro que vem assim… e então a última vez não me queria dar, não me queria. Não sei, a minha irmã traz-me as coisas, roupas e tudo, e eu preciso de dinheiro que a minha irmã também não pode. São duas irmãs a sustentar e têm as coisas delas e também não pode! Ah pronto, e então da última vez que me deu agora foi notas e moedas, quer dizer deixou na mesinha de cabeceira, não gosto nada porque alguém pode ir lá e… porque as portas nunca estão fechadas. Qualquer pessoa pode entrar, e ela disse: “mas aqui não vem nada…” Não vem nada?! Pronto, as portas não estão fechadas, não gosto nada disso, não queria nada deixar assim…”

A sala de contabilidade funciona, também, como secretaria: aí guarda-se todo o tipo de

papeladas e para aí todos se dirigem cada vez que precisam de uma fotocópia, pois é o

único espaço do lar que possui fotocopiadora.

As três salas encontram-se devidamente equipadas com computadores37 e Internet, que, salvo raras excepções, não estão acessíveis aos utentes.

Quanto aos serviços de saúde, a entrada para as salas onde estes são prestados

encontra-se situada no mesmo corredor que dá acesso à sala de convívio. Uma porta

sem qualquer indicação, o que dificulta a identificação desse espaço por parte dos novos

residentes, permite a entrada para duas pequenas salas, separadas ao meio por uma

porta que costuma estar habitualmente aberta, tornando aqueles dois espaços num

único. A primeira sala, a de enfermagem, é mais pequena e é equipada por uma

secretária e por um armário, pregado à parede, com pequenas prateleiras onde se

distribuem os medicamentos referentes a cada utente, a fim de que não haja trocas

possíveis. A sala seguinte, um pouco maior, considerada o consultório médico, possui

uma secretária bem maior, cadeiras supostamente para o médico e pacientes, uma

balança, uma marquesa, um enorme armário rústico de uma parede à outra da sala,

repleto de medicamentos e uma mesa de apoio onde se colocam os materiais

necessários, como: pensos e betadin, para fazer os curativos que diariamente lá se

realizam. Na verdade, como não existe médico na instituição, nem nenhum médico que a 37 Pelo facto de não haver, pelo menos numa fase inicial de contacto com a instituição, computadores disponíveis aos idosos, a assistente social, de quando em vez, disponibilizava o seu para que uma utente que demonstrava muito interesse nesta actividade, pudesse passar as ementas do refeitório a computador. Posteriormente foram oferecidos pela Câmara Municipal, a pedido das estagiárias de Serviço Social, uns computadores que lá tinham sido substituídos, para que os utentes pudessem utilizar. Veio-se a constatar posteriormente que os computadores eram bastante antigos e com programas desactualizados, não sendo ideais para as actividades que se pretenderiam desenvolver.

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visite regularmente, o consultório médico funciona como sala de enfermagem onde

diariamente as duas enfermeiras do lar, uma em part-time, outra a tempo inteiro, realizam

os tratamentos e curativos necessários.

Se é certo que estas salas, destinadas à prestação de cuidados e à guarda de medicamentos, se encontram próximas da sala de convívio, frequentada por uma

grande parte dos utentes, assim como do refeitório, onde várias vezes por dia é

necessário proceder à distribuição assistida da medicação, elas estão, ao mesmo tempo,

afastadas das enfermarias feminina e masculina que se encontram no piso superior e

que acolhem os utentes em situação de maior fragilidade.

Por outro lado, se atendermos ao facto de que, ao mesmo tempo dificilmente se

encontram a trabalhar duas enfermeiras, torna-se difícil que os serviços prestados pelas

mesmas respondam com a celeridade desejada às necessidades sentidas. A falta de

proximidade espacial face aos mais dependentes deixa-os mais isolados e mais tempo

sozinhos ou na presença das auxiliares de lar, nem sempre preparadas para atender às

suas solicitações, sobretudo quando se trata de um doente em estado terminal ou em

sofrimento.

Como não existe nenhum espaço específico para os utentes aguardarem pela sua vez de

fazerem tratamento, junto a essas salas, é frequente, sobretudo de manhã, observar

alguns utentes sentados em cadeiras improvisadas para o efeito no corredor.

Quanto aos espaços destinados aos serviços alimentares, estes são constituídos: no

primeiro piso, pela despensa, cozinha, refeitório para os utentes e funcionários do lar e

refeitório social. No segundo piso, pelo refeitório destinado aos mais dependentes e, na

cave, algum espaço, onde existe um frigorífico e arcas suplementares e espaços destinados ao armazenamento de alguns alimentos, oferecidos ou comprados em

maior quantidade, e que precisam estar arejados e expostos ao ar, como batatas ou

cebolas. A despensa é constituída por uma sala, embora autónoma, que se localiza

dentro do espaço da cozinha, facilitando o transporte de alimentos destinados a cada

refeição. Dispõe de múltiplas prateleiras no decorrer das quais se encontram os

alimentos que não necessitam do frigorífico. Dispõe ainda de frigorífico e arcas

congeladoras onde se armazenam quantidades elevadas de alimentos, pois

habitualmente a madre superiora só vai às compras e ao banco alimentar uma vez por

mês. Há, ainda, espaço para colocar caixotes com fruta da época comprada ou oferecida

ao lar, assim como uma balança grande onde se pesam os alimentos para cada refeição.

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A cozinha, por seu lado, é constituída por uma área significativa onde se distribuem

todos os materiais e objectos necessários à preparação dos alimentos. Está apetrechada

com fogões, tachos, panelas e armários de tipo industrial, fáceis de limpar e adequados à

preparação de refeições para números elevados de pessoas. Alguns desses armários,

tipo estufas, estão preparados de forma a que possam receber alimentos já prontos,

sobretudo quando se trata de refeições mais elaboradas e que contemplam várias

operações, obrigando a que uns alimentos confeccionados aguardem por outros que se

estão a confeccionar, mantendo-os a uma temperatura quente e constante. Procura-se,

assim, salvaguardar a qualidade da refeição, na medida em que não se corre tanto

risco de os alimentos chegarem ao prato dos utentes já frios. No entanto, como são

servidos em travessas que, colocadas em carrinhos apropriados para essa tarefa, ainda

percorrem alguns metros até chegarem aos utentes, nota-se que em algumas situações,

sobretudo nos últimos utentes a serem servidos, os alimentos já estão mornos.

Na cozinha é muito raro entrarem os idosos. Esse espaço quase que é

simbolicamente vedado por questões de higiene. Percebe-se que os próprios utentes não

gostam quando alguns colegas lá entram, sobretudo se se trata de alguém a quem não

reconhecem higiene. Por outro lado, embora as cozinheiras recebam os utentes com

simpatia, nota-se alguma dificuldade em lhes prestar muita atenção pois o trabalho é

sempre muito intenso naquele lugar por relação ao número de pessoas que preparam as

refeições. Apesar disso, sempre que um utente se dirige lá para fazer um pedido

especial, como kiwis para a prisão de ventre, uma omeleta ou um bifezinho grelhado que

mandou comprar, as funcionárias acedem imediatamente ao pedido.

À saída, existe um pequeno corredor que faz ligação ora para a cantina social, ora para o

refeitório do lar. A cantina social é de pequenas dimensões, proporcionando o almoço

sete dias na semana a um máximo de 25 utentes em situação desfavorecida social e

economicamente que solicitam ajuda directamente à assistente social ou vêm

encaminhados por algum organismo oficial. Embora a comida seja a mesma, todos os

materiais e louças usadas não se misturam nem são lavadas junto com as dos utentes de

lar, nem estes convivem com os utentes que usufruem da cantina, uma vez que o seu

funcionamento tem horário muito restrito e existe, nesse espaço, uma porta de ligação

directa ao exterior, fazendo com que os indivíduos nunca se cruzem. Nunca se observou

nenhum utente do lar a entrar nesse espaço, vulgarmente designado pelos funcionários

do lar como refeitório dos “sem-abrigo”, estigmatizando e acentuando, ainda mais, a

dimensão de exclusão a que os sujeitos que o frequentam estão voltados. Talvez seja

uma estratégia de defesa face a um estigma que não desejam ver transportado para si.

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Quanto ao refeitório destinado a utentes e funcionários do lar, trata-se de um amplo

espaço, com uma forma rectangular, no interior do qual se dispõem variadas mesas

redondas onde partilham as refeições um máximo de seis pessoas por cada uma delas.

Estão dispostas de forma a garantir que se preserve um espaço considerável, que

atravessa o refeitório de uma ponta à outra, para que seja funcional a deslocação dos utentes em cadeira de rodas assim como a deslocação dos próprios carrinhos que

suportam as travessas da comida que as funcionárias se encarregam de servir.

O refeitório é um local cheio de cor e luz, com uma das paredes laterais repleta de

amplas janelas que permitem uma entrada calorosa de luz natural. A parede que se

vislumbra ao fundo, quando entramos no refeitório, é preenchida por um enorme armário

onde se guardam louças, talheres, galheteiros, guardanapos e outros objectos

necessários à toma das refeições. Estes objectos obedecem a alguma preocupação estética. Os pratos são todos iguais e apresentam bom estado de conservação. Os

copos, não sendo todos iguais, fruto de se irem partindo com frequência, são parecidos.

No entanto alguns dos talheres já mereciam ser substituídos, assim como as toalhas que

são de plástico para que seja mais fácil a sua manutenção, cuja textura se torna algo fria

e desagradável sobretudo no Inverno. De salientar, porém, que estas condições e

objectos são proporcionados da mesma forma a idosos e funcionários, não havendo para

estes últimos condições especiais.

Embora o refeitório seja um lugar onde se providenciam os serviços alimentares quatro

vezes por dia, este deveria poder ser enquadrado nos espaços colectivos, uma vez que,

porque dispõe os utentes em pequenos grupos, deveria apelar à convivialidade, à partilha

de um espírito de grupo e do próprio espaço colectivo. No entanto, salvo raras

excepções, é um local cujo uso obedece a uma lógica funcional. Pretende-se que os

utentes entrem apenas quando toca a campainha de alerta, se organizem e sentem em

tempo útil, tomem a refeição e saiam do espaço permitindo que este seja limpo o mais

rápido possível. Esta prática distancia-se do que acontece muitas vezes em família, onde

os momentos de refeição são privilegiados para a partilha, a conversa e o convívio.

Nunca se observou os utentes a entrarem ou frequentarem este espaço que não fosse

para a toma das refeições e nas circunstâncias em que, querendo-se adiantar ao grupo,

se atreviam a entrar um pouco antes da hora eram imediatamente repreendidos,

diminuindo em relação a estes a sensação de controlo sobre o espaço envolvente.

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Apesar de possuírem um lugar próprio, que é sempre o mesmo, esta aparente

individualização do espaço não parece favorecer a ligação ao grupo de colegas da mesa.

Por um lado, essa escolha de lugar é imposta pela madre responsável pelo refeitório, logo desde a entrada do utente. Por outro lado, o grupo com que se está à

mesa não é porventura o grupo de pessoas no lar com quem mais se convive ou se tem

afinidades, obedecendo esta organização antes a critérios funcionais. Os utentes menos

capazes, mais conflituosos ou em cadeira de rodas têm que ser dispersos pelo espaço,

para que haja uma certa compensação e apoio dos mais autónomos para com estes.

Assim, não funcionam as teias de amizade e cumplicidade. Não obstante esta

circunstância, há mesas em que os utentes falam entre si e constroem um clima bastante

agradável. Outros, com efeito, deixam transparecer o seu ar de repugnância e nojo com

alguns comportamentos de certos idosos. É o que se passa na mesa de uma senhora

que todos os dias come um imenso prato de arroz branco, para o qual faz verter uma

chávena de leite a ferver e come aquele preparado à colher, salientando-se a nata do

leite que às vezes escorrega pelos lábios, ou situações de utentes que vertem o resto da

água contida nos seus copos para o jarro comum, ou ainda utentes que simplesmente

não usam o guardanapo e deixam cair e permanecer restos de comida no rosto e na

roupa.

O contacto e a partilha de refeições com funcionários também não acontecem, uma

vez que os funcionários só almoçam após os idosos. As madres almoçam sempre, salvo

em dias festivos, na sua própria residência, não estabelecendo qualquer contacto com os

utentes ou funcionários.

Apesar da luz que reaviva o espaço e dos seus azulejos em tons de verde e salmão, não

se observam objectos decorativos, com excepção de algumas plantas, que se reportem a

alguma especificidade biográfica dos utentes.

Em dias especiais como o Natal, a Páscoa ou dias de festa, como o dia do festejo dos

aniversariantes do mês, a disposição das mesas é a mesma, não havendo nenhum

esforço para que a mesma, simbolicamente, transmita um espírito de maior partilha e

comunhão, como seria esperado de uma disposição em U ou em roda.

Seguindo o mesmo raciocínio, a sala do primeiro piso destinada aos mais dependentes, e que necessitam de ajuda para as suas actividades de vida diária, não é

considerada um espaço colectivo, na medida em que a principal actividade que lá se

realiza são as refeições que são administradas aos utentes pelas funcionárias. A comida

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para estes idosos é transportada no carrinho e as funcionárias do piso encarregam-se de

a dar na boca à maioria dos utentes. Não se entende correcto que estes idosos comam

junto com os restantes, pois a imagem de dependência que transportam poderia

perturbá-los e dificultar ainda mais o seu próprio processo de envelhecimento.

Na verdade, neste espaço pouco se convive e, para além da televisão, de algumas visitas

esporádicas da madre enfermeira e de utentes autónomos que lá acedem com o

objectivo de poderem ver alguma novela naquela televisão, e da companhia das

funcionárias quando administram a alimentação, estes utentes não têm mais nenhuma

distracção. Pontualmente lá aparece alguma visita, mas, regra geral, estes utentes muito

dependentes física e mentalmente permanecem passivos e resignados todo o dia,

sentados várias horas nas suas cadeiras, escutando o som da televisão. À noite, esta

sala funciona mais como um espaço privilegiado para algumas senhoras assistirem às

telenovelas que andam a seguir. Por ser um espaço mais pequeno que a sala de

convívio, é possível assistir com atenção a essas novelas, não atrapalhando outras

pessoas, sobretudo os homens, que normalmente não apreciam tanto esses programas.

Existem ainda duas copas equipadas com frigorífico, micro-ondas, mesa e cadeiras,

banca para lavar a loiça e loiça variada (talheres, canecas, copos…) junto da zona dos

quartos. O objectivo deste espaço era o de proporcionar aos idosos um local onde

pudessem fazer, quando desejassem, um prato de comida, um chá, um café para si ou

suas visitas. Embora este seja o verdadeiro objectivo das copas, na prática elas

funcionam como locais para os funcionários tomarem o pequeno-almoço e lancharem.

São também espaços utilizados por estes para preparem os chamados “lanches

nocturnos”, compostos por um chá ou um copo de leite e algumas bolachas, ou uma

bebida quente que o utente solicite durante a noite. Apesar de também servirem para

satisfazerem as necessidades dos idosos, estes espaços não são utilizados nem

apropriados por estes como sendo espaços cujo domínio lhes pertence.

Referenciamos já que os espaços destinados aos serviços de manutenção e armazenamento se situam na cave do lar, espaço este frequentado apenas pelas

funcionárias da lavandaria, o motorista, que também executa, juntamente com o Sr.

Mateus, muitos trabalhos de manutenção no lar, alguns utentes que costumam ir na

carrinha para ajudar nas compras, e alguma funcionária da cozinha cada vez que é

necessário ir buscar alimentos. É pouco frequente ver outros utentes a frequentar estes

espaços. De quando em vez lá vão algumas senhoras trocar algumas palavras com as

funcionárias da lavandaria, o que não deixa de ser muito pontual. Já referenciamos que

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para além da lavandaria, estes espaços funcionam como garagem das carrinhas,

armazenamento de alimentos, arrumos e oficina de apoio às reparações de carpintaria,

pichelaria, pintura, etc.

O espaço da lavandaria é bastante grande, separado por áreas consoante as tarefas a

desenvolver e equipado de máquinas de lavar, secar e engomar com características e

dimensões industriais. As três funcionárias que lá trabalham não têm mãos a medir no

momento da separação da roupa em programas adequados, tendo especial cuidado com

as roupas sujas, com fezes ou urina, colocando-as em programas especiais e com

detergentes mais eficazes na tarefa de limpeza e desinfecção. A secagem faz-se, na

maioria das vezes, através de máquinas apropriadas para o efeito, pois, segundo o que

as próprias relataram, tornava-se muito difícil transportar as dezenas de quilos de roupa

que todos os dias se lavam para um local exterior onde a roupa pudesse ser seca ao ar

livre, uma vez que a lavandaria se situa na cave do lar. Por outro lado, as condições

climatéricas nem sempre o permitiriam. Apesar de este ser um procedimento bastante

funcional, é factor de um imenso gasto energético no lar.

Após estes processos, procede-se à separação e engomação da roupa e, quando

necessário, à elaboração de pequenos arranjos de costura. Apesar do imenso trabalho

diário, não são diárias as situações de troca de roupas, nem é frequente ouvir-se os

utentes a queixarem-se quanto à qualidade da limpeza da sua roupa. Quando ingressam

novos utentes no lar, é também este serviço o responsável pela marcação de toda a

roupa desse utente, bordando discretamente cada peça de roupa com um número que

doravante lhe é atribuído para que se personalize a roupa e se evite, tanto quanto

possível as trocas entre peças de utentes.

Por fim, quanto aos serviços de limpeza do lar, existem em vários pontos da residência

pequenos arrumos onde todos os materiais e produtos de limpeza são guardados, não

estando acessíveis aos utentes. Na parte nova do lar, alguns materiais são mesmo

guardados em armários embutidos nas paredes. Ao longo de todo o lar, a imagem que

prepondera é de uma regular e eficaz limpeza dos seus espaços. Logo pela manhã,

todos os quartos são arejados, é feita a cama pelo funcionário ou pelo utente se este

desejar. Estes comportamentos, embora benéficos para os utentes, nem sempre são

encorajados, uma vez que, não obstante o esforço de alguns em fazer a cama o melhor

possível, há funcionários que não toleram uma dobra, a colcha um pouco enrugado ou

uma ponta de lençol descaído e a notar-se. Da mesma forma não toleram que o utente

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tenha muitos papéis ou outros objectos, ainda que no seu quarto, a atrapalhar o processo

de limpeza.

Depois limpa-se o chão do quarto e as casas de banho privativas ou colectivas. Mesmo

nas enfermarias dos utentes mais dependentes e, muitas vezes, incontinentes é muito

difícil sentir-se qualquer cheiro desagradável quando se entra lá em qualquer momento

do dia, criando-se um ambiente mais apelativo à visita de outros residentes ou familiares

que não têm que se expor, nem ao idoso, ao constrangimento de um ambiente repleto de

cheiros desagradáveis.

Os espaços colectivos também apresentam elevado cuidado com a limpeza. O

refeitório é limpo várias vezes por dia, após cada refeição, de forma que na refeição

seguinte o utente nunca tenha que se confrontar com as mesas ou o chão com restos de

comida. A sala de convívio apresenta-se sempre bastante cuidada, até porque é um dos

espaços mais expostos às visitas quem vêm de fora.

A casa de banho que se situa próxima do refeitório, e que é frequentada por um maior

número de pessoas, representará, porventura, o ponto mais frágil na preservação da

higiene. Sendo frequentada por utentes com dificuldades de mobilidade, é algo frequente

encontrá-la com vestígios de urina no chão e excesso de papel nos caixotes. Os cheiros

desagradáveis fazem-se sentir, por vezes, desde a porta38, inibindo alguns utentes de aí

entrarem, fazendo com que tenham que se deslocar a uma casa de banho mais afastada.

Por outro lado, nunca se observou nenhum funcionário do lar, estagiário ou mesmo

visitante a frequentar aquele espaço, denotando uma certa repulsa face às condições de

limpeza que oferece.

4.3. Espaços Colectivos

O espaço que mais apela à sociabilidade dos idosos é a sala de convívio, local do lar

onde mais pessoas permanecem ao mesmo tempo, onde se desenrolam quase todas as

dinâmicas da vida no lar e todas, ou quase todas, as actividades organizadas. Utilizamos

o termo “permanecem”, pois apesar de estarmos perante um espaço que acolhe muitas

38 A investigadora confrontada com os cheiros e a repulsa dos idosos em utilizarem esse wc, tomou a iniciativa, algumas vezes, de solicitar materiais de limpeza, alertando para o facto de esses espaços já não oferecerem condições de higiene para que os utentes os utilizem. Nessas alturas, as funcionárias tomavam a iniciativa de proceder à limpeza, justificando a situação na base de comportamentos menos conformes dos utentes demenciados.

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pessoas, “nem sempre se estabelecem relações de grupo mas simplesmente se

congrega os residentes no mesmo lugar” (Barenys, 1990:98).

Trata-se de uma ampla sala que precede o refeitório, no seio da qual quase poderíamos

estabelecer uma divisão em duas partes. A parte voltada para a rua principal é

sobretudo destinada às mulheres. A divisão entre sexos é claramente perceptível nesta

sala. É como se no mesmo território existissem espaços puramente femininos e espaços puramente masculinos. Existe, assim, uma barreira cultural estabelecida entre

sexos e que, de alguma forma, se torna intransponível. Pais refere-nos que no passado

“as atitudes sexuais eram uma mistura complicada de puritanismo e irreverência. Havia

uma dupla moralidade que colocava as mulheres do lado do puritanismo («meninas

honradas», «tímidas») e os homens do lado da irreverência («muita sabedoria»). Se a

mulher se mostrava mais sabida do que devia era logo olhada com desconfiança, mulher

com «cisma», perversa, pecaminosa. O «saber» da mulher devia estar subordinado ao

controlo do marido…” (2006:151). Talvez esta tradição cultural, de subserviência das

mulheres perante os homens, associada aos valores religiosos da própria instituição que

pretende salvaguardar uma conduta marcada pela moral e os bons costumes, contribuam

para esta separação marcada entre homens e mulheres. Embora não seja explícito,

manifesto, percebe-se o receio, sobretudo das madres, de que em algum momento se

produzam comportamentos de aproximação física e sexual entre residentes que possam

pôr em causa a reputação da instituição.

No decorrer da parede da sala que estabelece a ligação com o exterior existem várias

janelas tapadas com cortinados que quebram um pouco a entrada de luminosidade. Apenas há mais luz num extremo desta parte onde costumam estar

alguns idosos a fazer trabalhos manuais. Aqui as senhoras dispõem-se em roda a fazer

malha ou tapetes tradicionais. Um pouco atrás existe uma mesa onde também é usual

observar dois ou três utentes a fazer trabalhos de modelagem, pintura, ou outro tipo de

trabalhos manuais. Existe ainda um armário de madeira onde se guardam alguns

materiais e utensílios. Por cima deste armário encontra-se um grande trabalho decorativo

realizado pelos utentes com serapilheira e colagens alusivo ao Outono. A preencher o

formato de rectângulo, dispõem-se na sala um vasto conjunto de cadeiras onde os

utentes se sentam. Na parede das janelas está colocado um televisor pendurado a uma

altura significativa para que os utentes mais distantes também possam ver, assim como

um relógio de parede antigo em madeira, contribuindo para que os utentes se possam

localizar no tempo. Apesar das cadeiras em que os utentes se sentam serem

alcochoadas e forradas, todas com o mesmo tecido, em tons de salmão e verde,

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conferindo uma certa alegria e estética ao espaço, o seu conforto não é semelhante ao

de um sofá, sobretudo se atendermos ao facto de que alguns utentes lá passam muitas

horas por dia sentados. Os lugares nas cadeiras são sempre os mesmos e funcionam

como o espaço mais individualizado dentro daquele território colectivo. Para marcar

esse espaço como um espaço pessoal, as utentes39 penduram as suas malas ou sacos

nas cadeiras, pousam casacos seus, as bengalas, xailes ou até pequenas almofadas de

que se fazem acompanhar para acréscimo do seu conforto. Muitos destes objectos,

designados de recipientes ou esconderijos portáteis, “podem representar uma extensão

do eu e de sua autonomia, tornando-se mais importantes à medida que o indivíduo perde

outros reservatórios do seu eu” (Goffman, 1996:204).

As cadeiras são, assim, na linguagem de Goffman, importantes territórios do “eu” que se tenta defender veementemente cada vez que alguém, propositada ou

inadvertidamente, se tenta apropriar do mesmo. Assim sendo, os novos utentes têm que

se adaptar aos lugares que não estão ocupados ou que algum funcionário improvisa para

o efeito. Como referiu a D. Matilde, “quando eu vim para cá disseram-me qual era o meu

lugar e eu aqui fiquei até hoje. Gosto assim, assim não há confusões. Fui habituada

assim, a muito respeito…”.

É visível que não gostam de ver outros sentados nos seus lugares, quer porque lhes

cria repulsa, sobretudo quando se trata de idosos incontinentes, quer porque tal atitude é

entendida como uma devassa do seu espaço de conforto e identidade pessoal. Esta

invasão do seu espaço pessoal funciona quase como uma contaminação40 do seu

território por parte de companheiros indesejáveis (Goffman, 1996:35). Esta situação é

tanto mais acentuada quanto se trata de utentes que passam todo o seu dia sentados

nesta sala, com excepção dos momentos em que vão tomar as refeições ou dormir.

Todavia, não se nota falta de higiene nas cadeiras. Mantêm-se cuidadas e não estão

degradadas.

A D. Joaquina relatou o desconforto que sentiu no primeiro dia de entrada em lar quando,

ao sentar-se numa cadeira livre, foi confrontada com uma outra residente que, segundo

ela, lhe disse: “ó senhora, saia daí que esse lugar é meu”. Refere como se sentiu

traumatizada e desprezada com essa frase que nunca teria esperado ouvir e enfatiza o 39 Esta prática foi mais visível nas mulheres. Os homens, embora se sentem mais ou menos nos lugares habituais, são um pouco mais tolerantes face à situação de verem um outro residente a sentar-se temporariamente na sua cadeira. 40 Goffman defende que nas instituições totalitárias os indivíduos sofrem processos de mortificação do seu “eu” por exposição contaminadora face a determinadas situações, tais como, contaminação de ficar deitar perto do moribundo; contaminação por contacto social imposto; contaminação advinda por via de alimentação forçada, etc. (Goffman, 1996).

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quanto esse momento contribuiu para dificultar a sua adaptação. Refere que esse

momento nunca lhe saiu da memória.

No outro extremo desta parte da sala, e já fazendo segunda fila por relação aos

utentes que se sentam na fila correspondente ao rectângulo, encontram-se umas quantas

pessoas, entre quatro e oito, em estado mais dependente. Este espaço, mais sombrio

e afastado do centro, é aquele que mais dificulta a visualização da televisão e é aquele

onde se encontram as pessoas que mais horas lá passam sem terem qualquer hipótese

de daí se deslocarem a não ser com a ajuda das funcionárias. É como se depois do elo

que une todos em torno das mesas centrais da sala existisse uma segunda fila, mais

afastada, composta pelos que simbolizariam a imagem da degradação humana mais

profunda. Estes utentes são também aqueles que menos participam nas actividades

promovidas e que menos convivem com a comunidade, uma vez que a própria

disposição do espaço não fomenta o estabelecimento de diálogos nem de convivência.

Limitam-se a ouvir o que se passa em seu redor e a observar, quando a visão ainda lhes

permite, as rotinas, entradas e saídas dos outros residentes e pessoal. Por detrás destas

pessoas, apenas existe um grande armário rústico de madeira decorado com louças

antigas possivelmente doadas por utentes.

Quase poderíamos considerar estas pessoas como bibelots, tratadas de forma

robotizada. Não interagem, não dialogam, não participam, a não ser passivamente, no

que se passa em seu redor. Às horas certas são levados para as refeições e para a

cama.

Sempre que nos dirigíamos para cumprimentar a D. Cândida, invisual e fisicamente

dependente, sentíamos a mesma angústia, a mesma tristeza, a mesma solidão que a

consumia: “…ó menina, a minha irmã também esteve aqui mas morreu [fazendo pausa e chorando

compulsivamente], agora estou sozinha, não tenho ninguém, ninguém, não tenho família…”.

As actividades promovidas pela animadora costumam ocorrer nesta parte da sala, deixando a ala masculina um pouco mais à sua sorte. Como não existe o hábito dos

homens se misturarem muito com as senhoras, então eles ficam normalmente mais

excluídos da realização das actividades, acentuando-se essa tendência culturalmente gerada de separação entre sexos. Dir-se-ia que o próprio funcionamento do lar acentua

essa tendência.

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Na parte da sala destinada aos senhores, existe de um lado o bar, onde os utentes

tomam café de manhã ou depois de almoço ou compram alguma bebida a preços

controlados. Durante o resto do dia está praticamente inactivo. A animadora só lá entra a

pedido de algum utente que deseje alguma bebida. Não existem bolos, chocolates,

batatas fritas ou outros alimentos que normalmente existem nos cafés, impedindo os

dependentes de terem acesso aos mesmos, já para não dizer que a maior parte dos

fisicamente dependentes não possuem dinheiro consigo. Normalmente o interior do bar

não é um espaço acessível aos utentes, apenas à animadora, algum profissional ou uma

utente que lá se dirige para lavar as chávenas. Em frente ao bar existem umas mesas

com revistas antigas, jogos, como cartas ou damas, e o jornal diário que alguns utentes

lêem regularmente. Em redor das mesas existem cadeiras apenas destinadas aos

senhores. Apesar de permanecer a tendência para os lugares fixos, os senhores

costumam ser mais tolerantes cada vez que um colega se senta no lugar de um outro,

pelo facto das cadeiras estarem lotadas.

No seguimento do bar existe uma parede em vidro, com uma porta que roda dando

acesso a uma marquise com ligação ao jardim da instituição. Aqui costumam juntar-se os

utentes que fumam e um outro senhor que constrói barcos em madeira e outros materiais

aproveitados, e que encontrou naquele local um espaço privilegiado para realizar os seus

trabalhos. Na outra parede, oposta à do bar, estão afixados alguns trabalhos realizados

pelos utentes, assim como um placar com os vários meses do ano em destaque e o

nome dos aniversariantes do mês. Junto ao nome encontrava-se também um pequeno

objecto em miniatura caracterizador do indivíduo. Por fim, existe uma porta de ligação ao

corredor que se costuma encontrar com uma parte aberta e a outra fechada. Esta

disposição permite a passagem dos utentes em cadeira de rodas, não funcionando como

entrave à sua deslocação para outros pontos do lar. Na parte da porta fechada costumam

estar afixadas várias folhas onde se enumeram todas as actividades do mês. O local,

pelo menos para os utentes que se deslocam e sabem ler, não podia ser mais apelativo.

Neste espaço realizam-se todo o tipo de actividades e, apesar de ser o local do lar com maior concentração de idosos, a mesma também varia de acordo com as horas do dia

ou as actividades a desenvolver. À hora das refeições os utentes acumulam-se nesta

sala e a sua permanência vai variando consoante a preferência face às actividades que

se realizam em cada dia.

Os corredores que estabelecem a passagem entre as várias partes do lar variam

consoante estivermos a falar da parte nova ou antiga do lar. Na parte antiga os

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corredores são interiores, sombrios, mais desconfortáveis. De quando em vez, e como se

trata de uma construção mais antiga, surgem uns declives ou rampas acentuadas, ao

longo desses corredores, que obstaculizam bastante o percurso quer das pessoas que se

deslocam sozinhas com alguma dificuldade, quer, sobretudo, das pessoas em cadeiras

de rodas que, não fosse o apoio de terceiros, corriam o risco de cair abruptamente ao

descer essas rampas. Apesar disso, não existem mais obstáculos nem escadas que

dificultem a mobilidade. Na parte nova estas situações não ocorrem. Os corredores

existentes são bem mais airosos, luminosos, voltados para amplas janelas

envidraçadas por meio das quais entram, grande parte do dia, rasgos de sol que

iluminam e alegram o espaço.

De uma maneira geral existem nos corredores quadros com imagens religiosas, talvez

reforçando o carácter religioso da instituição, e outros, não com aspecto de terem sido

realizados pelos utentes. É também possível observar, no decorrer dos corredores da

parte nova, existência de armários embutidos que funcionam como apoio àquelas áreas.

Dentro dos mesmos existem cobertores, almofadas, toalhas, lençóis e outros objectos de

uso diário na instituição. Em alguns corredores da parte antiga existem umas arcas

antigas, possivelmente doadas por utentes, com carácter sobretudo decorativo. Não

poderemos considerar que obstaculizam a passagem pelo facto de se tratarem de

corredores largos e com corrimões de ambos os lados.

A sala que originalmente estava prevista para ser a barbearia, passou a funcionar como

uma sala de estética, à qual sobretudo as mulheres recorrem para cortar e pintar as

unhas das mãos, cortar o cabelo quando lá vai a cabeleireira, retocar o penteado, tirar os

pêlos que vão crescendo no buço e no rosto. Apesar desta sala ter uma função específica, que é a de promover uma imagem mais cuidada dos utentes, contribuindo

para uma auto-estima também mais elevada, o ambiente que aqui se produz é de intenso convívio e partilha entre os utentes que aguardam pela sua vez. Aqui todos

têm oportunidade de ir falando sobre os assuntos mais diversos, pois todos têm um

pouco de tempo da animadora dedicado só a si. Enquanto se discute qual a cor do verniz

a seleccionar, pergunta-se pela família, pelo fim-de-semana, fala-se de alguma

telenovela, de algum assunto relativo ao quotidiano do lar, de uma dor nova que surgiu,

da vida familiar da animadora ou da investigadora, enquanto assistia a estas sessões,

fazendo com que as utentes se sintam especiais ao partilharem um pouco do universo

das pessoas “de fora”, que acabam por funcionar, muitas vezes, como substitutos

funcionais da família. Apesar das potencialidades associadas ao convívio neste espaço,

ele não possui todas as condições necessárias para que vários serviços se

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pudessem prestar com mais qualidade e higiene. Para dar alguns exemplos, os

materiais são sempre os mesmo não havendo desinfecção após o uso de uns para os

outros, não existem lavatórios a funcionar naquele espaço, nem locais onde se possa

lavar a cabeça dos utentes antes de se pentear ou cortar o cabelo.

A capela é um outro espaço que os utentes frequentam diariamente para ir à missa

diária, às nove da manhã, ou para se recolherem nos seus momentos de reza e

meditação. Embora seja um espaço aberto e disponível aos residentes, não tem outra

funcionalidade que não seja a de se assumir como espaço de religiosidade, e meditação. Assim, salvo nos momentos de eucaristia, é apenas frequentado

pontualmente por uma minoria de utentes que a ele recorrem nos seus momentos de

reza ou introspecção. No entanto, entendendo a eucaristia como um momento de partilha

colectiva da palavra de Deus, se bem que esta perspectiva possa ser muito criticável,

pois normalmente o protagonista e interveniente principal é o padre, podemos considerar

este espaço como um espaço colectivo.

Ao sábado, a capela funciona, paralelamente, como um espaço de convívio e encontro com pessoas da comunidade que a ele recorrem para assistirem à eucaristia. É, por

isso mesmo, uma eucaristia mais animada e permite, para muitos, o encontro com

pessoas conhecidas do exterior. A capela apresenta-se sempre cuidada, com uma jarra

de flores naturais cuja responsabilidade do arranjo é da madre responsável pela portaria.

Existe no rés-do-chão uma sala polivalente que noutras épocas funcionou como quarto.

Situa-se um pouco antes do quarto/enfermaria que existe no rés-do-chão e funciona

como uma sala para desenvolver algumas actividades específicas como as sessões

temáticas que as estagiárias organizam quer para utentes, para funcionários ou para

ambos ao mesmo tempo. Às vezes também se realizam lá as aulas de ginástica, sendo

uma estratégia para mobilizar os utentes para um outro local e diferenciar locais e

actividades que se organizam. Como habitualmente tudo se realiza no mesmo espaço,

que é a sala de convívio, optou-se, a certa altura, por começar a diferenciar-se os espaços e assim tornar bem claras as actividades que se realizam em cada um dos locais. Se o facto da actividade física se desenvolver no seio de uma sala de convívio

mobiliza mais utentes ou mantém distraídos aqueles que por regra nunca participam nas

actividades, por outro lado, obriga a que permanentemente toda a sala seja preparada

para o efeito, interrompendo outras actividades que pudessem estar a ocorrer em

simultâneo. Esta adaptação advém do facto de existirem poucos espaços diferenciados de acordo com as actividades a desenvolver. Limita-se o campo

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espacial dos residentes pelo facto de não haver ginásio, sala destinada aos trabalhos

manuais, à informática ou à música, entre outros. Esta sala serve ainda de espaço de

acolhimento e trabalho para os estagiários sempre que não está a ser usada para outros

fins. Existe ainda nesse espaço uma porta de ligação a uma casa de banho que apoia as

utentes da enfermaria e um armário embutido onde se guardam roupas sobretudo toalhas

de casa de banho.

Por fim, existem vários quartos de banho colectivos cuja utilização é destinada a um

grupo ou à totalidade dos utentes. No rés-do-chão e primeiro andar existem vários wc

públicos. Com excepção do wc que serve o quarto/ enfermaria do rés-do-chão, os

restantes apenas estão munidos de sanita e lavatório. Regra geral apresentam-se cuidados e limpos, até porque não são utilizados por todos os idosos ao longo do dia.

Sobretudo os utentes que têm wc no quarto fazem questão de o frequentarem, não se expondo nestes espaços de uso colectivo. Os wc colectivos de apoio aos quartos no

primeiro andar são maiores, preparados com chuveiros e ajudas em matéria de

segurança, onde habitualmente os utentes tomam banho assistido pelas funcionárias. Em

alguns destes espaços, a funcionária vai buscar alternadamente os utentes na hora do

banho, evitando que se forme uma fila de espera, até porque os utentes em cadeira de

rodas não se podem deslocar facilmente. Noutros wc colectivos, os utentes formam fila e aguardam vestidos ou semi vestidos pela sua vez de tomar banho assitido pela

funcionária. Chegam mesmo a estar sentados em bancos, com uma toalha em torno da

sinta. Ao mesmo tempo que aguardam a sua vez estão a assistir ao banho dos colegas, pois o campo visual o permite. Se alguns dos utentes que estão há mais tempo

no lar já se habituaram a esta situação, ela é tanto mais constrangedora para os que ingressaram no lar há menos tempo. Vejamos como o senhor Guilherme, um utente

recente no lar, se reporta à situação de estar na parte antiga do lar e ter de tomar banho

assistido:

“…eu não me importava de vir para esta parte nova sabe, porque nesta parte nova tenho o seguinte: tem ar e tem casa de banho, e lá eu levanto-me ás cinco e meia, seis horas para tomar banho sozinho, que eu não quero tomar banho acompanhado. Ainda hoje me levantei a essa hora para tomar banho sozinho, não quero tomar banho acompanhado e é outra coisa, diz que é outra coisa, eu nunca vi, mas dizem-me que é outra coisa. Daqui em diante é que começam as pessoas a ir para lá para tomar banho de uma vez, está a perceber? (…) mas aqui, a parte nova, tem casa de banho, tem tudo e para mim é que era bom, prometeram-me mas não, não compreendo, eu pago bem. A menina sabe quanto eu pago por mês? Não sabe pois não? No nosso dinheiro antigo pago cento e quarenta contos, faça a conta, ao fim do ano quanto é, a menina faça a conta quanto é ao fim do ano. Quantos estão outros a pagar uma bagatela e estou eu a pagar essa importância”

O senhor Guilherme não compreende porque o colocaram na parte antiga do lar, tanto

mais que no seu entender ele paga muito mais para o lar que a maioria dos residentes. A

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única hipótese para não ter que se cruzar com outros residentes no momento do banho é

acordar muito mais cedo e frequentar a casa de banho quando ainda não está lá

ninguém. Na verdade, uma vez que nas instituições é impossível o isolamento total face

aos outros, que muitas vezes personificam o fantasma da degradação e da decadência

temida, os idosos evitam os espaços ameaçadores, tais como WC colectivos. Evitam

assistir à dependência e perda de domínio dos que necessitam de ajuda para ir à casa de

banho, ao duche... ainda que isso implique a frequência desses espaços em horários

menos frequentados ou uma higiene pessoal feita por si, ainda que com custo superior. A

título de síntese, Mallon refere que a diminuição da independência física cria dois efeitos:

“...o de tornar difícil uma solidariedade de conjunto, o desenvolvimento de um sentimento

de pertença a um mesmo grupo; o de encorajar indirectamente as pessoas de saúde a

serem donos do seu corpo durante o mais longo tempo possível” (Mallon, 2000:252).

4.4. Espaços privados

No lar em análise, os espaços que podem ser considerados de maior pertença individual

são os quartos, apesar de não existirem quartos individuais que garantam a total

privacidade a cada um dos utentes.

À semelhança de muitas outras instituições, este lar existiu durante longas décadas

enquanto instituição asilar, mantendo, ainda, alguns traços característicos, sendo o mais

evidente o facto de ainda haver quartos dirigidos a quatro e cinco pessoas e sem casa de banho privativa (na parte antiga) próximos das antigas camaratas. A questão

da privacidade coloca-se aqui de forma premente. Como salvaguardá-la quando um

indivíduo se vê obrigado a partilhar o seu espaço mais íntimo, a vestir-se e despir-se na

companhia de outros indivíduos com quem nunca estabeleceu nenhum tipo de afinidade?

Existem no lar vinte e sete quartos, dezoito duplos, quatro dirigidos a três pessoas e

dois dirigidos a quatro pessoas. Existem também três quartos, designados de enfermarias, destinados aos utentes mais dependentes e que requerem mais atenção

quer do pessoal de enfermagem, quer das auxiliares de lar, sendo que podem ocorrer

mesmo situações de utentes em estado terminal que aí permanecem à espera da morte.

Duas das enfermarias, da parte nova, acolhem quatro utentes, e a antiga, do rés-do-

chão, acolhe cinco.

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As dimensões dos quartos não são, obviamente, todas iguais, assim como existe alguma

variação na sua forma, colocação do mobiliário e decoração.

Em relação aos quartos de duas pessoas, com algumas excepções, são quase todos

situados na parte nova do lar, proporcionando melhores condições aos seus residentes,

desde logo porque possuem casa de banho privativa. As suas áreas, permitindo que os

utentes circulem com alguma facilidade, não são suficientes para que estes possuam

mobiliário próprio ou demasiados objectos pessoais de grande volume. Nestes espaços

não há, pois, mobiliário disperso. Os roupeiros, de dimensões relativamente pequenas,

são embutidos e individualizados. Porém, os utentes que possuem mais roupa alegam

que não conseguem ter consigo toda a sua roupa, estando esta repartida entre os

armários do tipo arrumos que se localizam acima do roupeiro, inacessíveis aos utentes a

qualquer momento que desejem, e os armários complementares existentes na

lavandaria. Sempre que muda a estação, os funcionários têm o cuidado de ir substituindo

essas roupas. Por outro lado, apesar das casas de banho possuírem lavatório com

armário e espelho (importante para que os utentes possam verificar a sua imagem antes

de saírem do quarto), sanita, bidé e polivã e estarem apetrechadas com ajudas

protésicas de promoção da autonomia e de segurança, como protectores antiderrapantes

nas superfícies sujeitas à humidade e barras em redor de um dos lados da sanita e

chuveiro, não dispõem de dimensão suficiente para que se possa movimentar livremente

uma cadeira de rodas, nem dispõem de campainhas de chamada para o caso do idoso

cair ou se sentir mal no duche. Estas campainhas existem, contudo, junto das camas.

Não existem no lar quartos individuais, não havendo a possibilidade de se ficar

sozinho num quarto. Essa condição não foi pensada certamente por questões

económicas, dado não ficar muito rentável atribuir um quarto apenas a um idoso. Como

não se trata de um lar privativo e lucrativo, os idosos que nele ingressam não possuem,

regra geral, condições económicas que lhes permitissem pagar uma mensalidade que

suportasse os custos elevados inerentes a este “privilégio”. Aqui se percebe a

sobreposição clara da lógica económica face ao primado do bem-estar e da preservação

da identidade do indivíduo. Como achar razoável que um indivíduo se veja obrigado a

coabitar, no final da sua vida, com alguém que não conhece? Alguém com quem nunca

conversou, alguém que potencialmente poderá ter hábitos de vida tão diferentes de si?

Como será adormecer, acordar, vestir… ao pé de alguém com quem não se tem

afinidade nenhuma?

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Os quartos existentes na parte velha do lar acolhem normalmente mais do que duas

pessoas. O espaço dos quartos é extremamente exíguo de cama para cama. Embora os

espaços não estejam degradados, não possuem as mesmas condições de estética e

luminosidade que a parte nova oferece. Os roupeiros são antigos, não embutidos, criando

a sensação de um espaço mais pesado e preenchido. Por outro lado, não cabe neles

tanta roupa, sendo mais difícil distribuir o espaço dentro do armário que cabe a cada

indivíduo, uma vez que alguns são partilhados.

Aqui também não é possível frequentar casas de banho privadas, mas sim colectivas,

abordadas no ponto referente aos espaços colectivos.

A enfermaria do rés-do-chão acolhe três senhoras em situação de fragilidade física e

apenas uma com as suas capacidades cognitivas em processo de deterioração. Uma

quinta senhora reside nesse quarto por razões estratégicas, uma vez que é conhecida no

lar pelo seu “mau feitio” e se entende que no grupo em causa a sua personalidade, algo

conflituosa, fica mais controlada. No entanto, e apesar do estado de lucidez de quase

todos os elementos que aí residem, este quarto não possui casa de banho privativa nem grandes condições de espaço ou salvaguarda da intimidade. Não há biombos a

separar os espaços individuais e como se tratam de senhoras todas elas dependentes,

torna-se extremamente constrangedor partilhar, inclusivamente, alguns momentos de

higiene. Como uma das residentes do quarto referia a certa altura, “vestem-se duas e três

pessoas ao mesmo tempo, assim nunca nos podemos sentir à vontade! De início custou

um bocado porque não estava habituada a isto, agora já me habituei...”. Neste quarto,

designado de enfermaria, assim como nas outras duas enfermarias, as funcionárias

sentem-se mais tentadas a entrar sem bater à porta, talvez porque inconscientemente

aquele espaço lhes transmita a sensação de colectivo, de um espaço que não é privado.

Na verdade, quanto mais o idoso for dependente, mais o pessoal parece não respeitar

esta regra, o que reflectirá, ainda que inconscientemente, a relação de domínio e poder

exercida dos segundos sobre o primeiro. Nestas situações, as pessoas são menos

respeitadas no seu direito à intimidade corporal e à propriedade de um espaço pessoal.

Não será difícil, pois, que as pessoas independentes possam associar aumento de

problemas físicos e psíquicos à diminuição do respeito (De Singly &Mallon, 2000).

Também aqui a preservação de algum espaço pessoal é quase inexistente. A D.

Piedade, que reside nesta enfermaria, contava-nos, condoída, a forma como algumas

funcionárias tinham arremessado para o lixo coisas que ela gostava, inclusivamente os

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poemas que ela própria escreve e que regista em folhas de papel soltas, sem lhe pedirem

autorização para tal, alegando que as madres não queriam que se tivesse nada nos

quartos.

“Eu já tenho recebido muitas decepções. Não depende de nós. Muitas decepções [em tom baixo, dolorosamente]. Decepções de muitas maneiras. Muitas vezes eu tenho coisas como aquelas que me deram, num saco que tinha, não sei se foi a professora Joana, que me deu um livro que era para pôr os versos todos… Ela pôs-me isso fora, que depois falaram lá em baixo e a Sandrinha [animadora] não acredita. E eu disse “oh Sandrinha, acredite, que eu não tenho nada. Puseram-me fora!”. E então, ela disse mas eu não acredito, vou lá ver. Vou à sua mesinha de cabeceira e vou ver. E foi e realmente não estava nada. São pessoas que assim são capazes de pôr tudo fora, sem ver. A Sandrinha foi assim, até podia ter lá dinheiro junto. Essas coisas não se fazem (…) Já me têm feito chorar, chorar da maneira que às vezes me põem coisas que não haviam de pôr fora, pôr coisas que às vezes não deviam…”

Assim, algumas funcionárias de vez em quando arremessam para o lixo revistas ou

outros objectos que, do seu ponto de vista, para nada servem a não ser prejudicar o

andamento do seu trabalho, não havendo um total respeito pelos espaços privados dos

utentes e objectos aí contidos.

As outras duas enfermarias encontram-se no primeiro andar, uma é masculina, outra é

feminina. Como nestes espaços só se encontram utentes dependentes das funcionárias

para todas as actividades de vida diária, não são consideradas algumas necessidades de afeição ao espaço, até porque alguns desses idosos já quase não estão conscientes.

Apenas na mesa-de-cabeceira pode haver algum objecto pessoal, mas na maior parte

das vezes nem existe. Ambas as enfermarias têm acesso a casas de banho colectivas,

amplas e apetrechadas com material próprio para dar banho a utentes dependentes, o

que se justifica sobremaneira, dada a condição de dependência destes idosos. As

enfermarias são espaços muito limpos e arrumados, com enormes janelas que deixam

entrar muita luz, com cores claras nas paredes e chão, fazendo com que as condições do

espaço ajudem a confortar utentes que muitas vezes passam lá o dia inteiro deitados.

Nos quartos, de uma maneira geral, não há muita prevalência de objectos decorativos que personalizem o espaço. Ainda assim, podemos dizer que os quartos da parte

antiga reflectem uma maior contenção na exposição desses objectos, talvez pelo facto de

aí estarem os utentes que residem no lar há mais tempo e esses espaços também serem

mais exíguos e mais partilhados entre idosos. Se por um lado, cada vez mais as práticas

de funcionamento destes espaços tendem a ser mais humanizadas e a valorizar as

referências identitárias dos sujeitos, por outro lado, estes utentes já terão tido mais tempo

para se desligarem das relações e objectos que outrora funcionavam como referenciais

significativos para os mesmos. Esse progressivo desligamento com o seu passado e

suas referências reflecte-se também através do corte com objectos até então

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simbolicamente revestidos de uma história. Se “os objectos são elementos carregados de

uma anterioridade e portanto de uma história que nos situa num contínuum

sociotemporal” (ManouKian, 2001:48), é compreensível que eles traduzam a nossa

identidade e que a privação dos mesmos, e o sentimento de despojamento daí

decorrente, acarrete sensações de perda, traição ou abandono.

Os indivíduos cuja entrada foi mais recente, foram já mais estimulados e encorajados,

ainda que com limites, a se munirem de roupas e objectos com significado para si. Estes

últimos são, por regra, mais integrados na parte nova da instituição. Por outro lado, os quartos das senhoras distinguem-se bastante dos dos senhores. Estes últimos

menos decorados, mais sóbrios, dir-se-ia mesmo híbridos, impessoais.

Os objectos pessoais de apreço que conferem um sentido mais individualizado ao

espaço dos idosos, porquanto os permite recordar a sua vida anterior, encontram-se

colocados normalmente em cima da cama ou da mesinha de cabeceira. De entre estes

destacam-se as fotografias de família, imagens ou objectos religiosos como terços,

santos, fazendo-nos reflectir sobre a importância atribuída à religiosidade. Falamos ainda

de jarras com flores de plástico, medicamentos, bonecas, peluches, perfumes ou cremes

hidratantes. A posse destes objectos que conferem um certo grau de conforto, prazer e

controle à vida do utente, ajudam-no a personalizar o seu quarto, enquanto “território

pessoal” (Goffman, 1996:201) e lugar de refúgio, fazendo-o sentir tanto quanto possível

protegido e satisfeito no lar. Sem dúvida que a posse desses objectos de identidade

pessoal os ajudam, igualmente, a uma melhor adaptação ao lar.

Nas paredes é raro ver-se quadros ou outros objectos pendurados, talvez porque o furar

a parede já tenha outras implicações, e por isso mesmo seja proibido. É igualmente

proibido a posse de TV no quarto, o que para muitos cria algum desconforto, pois

gostariam de estar deitados a ver TV, nas suas camas, sobretudo no Inverno, à

semelhança do que faziam nas suas residências. Esta regra existe com a justificação de

que a existência desse objecto no quarto poderia causar conflitos entre os residentes41. A

D. Rosa, apesar de compreender a regra, confessa que do que sente mais falta é de

poder levantar-se mais tarde e ficar a ver as novelas até tarde no quarto.

“Olhe menina só tenho saudades de duas coisas, é a única coisa que me deixa mais saudades, é ter que me levantar cedo e não poder ver a televisão [no quarto] até ver as novelas todas [risos] (…) Ai não, não deixam. Não menina, eu queria trazer a minha televisão mas não deixaram. Não deixam, não

41 Sabemos, no entanto, que há dois quartos em que esta regra não prevalece: o quarto do único casal que reside no lar e o quarto de dois utentes, sendo que um deles nunca está no lar alguns dias da semana por ir passá-los com a sua família.

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deixam menina. Aí está, eu compreendo, aí têm razão porque para deixar uns tinham que deixar todos e a menina sabe há duas pessoas em cada quarto, se uma gosta outra pode não gostar”.

A hipótese de que talvez os idosos, ou pelo menos alguns, pudessem negociar esta

questão entre si nunca é colocada. Para se evitar potenciais conflitos resolve-se o mal

pela raiz, proibindo definitivamente a TV. No entanto, os utentes podem ter um rádio

desde que respeitem as horas de silêncio do lar e não incomodem os demais residentes.

Da mesma forma, e de acordo como o que está no regulamento, para além do que faz

parte das suas roupas, os utentes só podem levar para o lar objectos que se adeqúem ao

espaço sob autorização da direcção, coisa que dificilmente acontece. Quanto aos

objectos de valor, devem ser documentados no inventário de bens e muitas vezes

aconselha-se o utente a guardá-los no cofre do lar, não ficando estes ao dispor dos utentes.

É igualmente interessante notar que todos os quartos têm colchas iguais, modificando

apenas a cor: rosa para as senhoras e azul para os senhores. Se esta característica

confere um ar harmonioso aos quartos, porquanto a estética é previsível e coerente, por

outro lado será porventura sinal que os utentes não possam utilizar os seus objectos

pessoais e assim também preservar o seu conforto, marcar a sua individualidade,

destacar as suas preferências estéticas e, de alguma forma, distinguir o seu “território”.

Como adverte Mallon, o quarto, como refúgio, permite ao idoso mergulhar no seu mundo

anterior, daí a importância da sua autonomia na definição da decoração e conteúdos que

aí desejam colocar, preservando a sua identidade e auto-estima (Mallon, 2000).

A excepção a esta situação diz respeito ao quarto do único casal que reside no lar.

Como entraram em circunstâncias especiais, uma vez que doaram a sua casa ao lar, foi-

lhes permitido trazer uma grande parte do seu mobiliário que se encontra quer espalhado

pelo lar, quer no seu próprio quarto, ao qual designam de casa ou habitação. Aqui a

afeição ao espaço é bastante grande, uma vez que não tiveram que partilhar o quarto

com estranhos. A certa altura, o senhor Mateus convidou a investigadora a conhecer a

sua “casa”, como ele próprio designou. Ao apresentar o quarto, dava a impressão que o

apresentava por partes, como se das várias divisões da sua casa se tratasse. O quarto

encontrava-se repleto de objectos e mobiliário dos utentes e tudo tinha uma história para

contar, o roupeiro, a colcha feita pela esposa, um conjunto de fitas que separavam a

entrada do espaço do quarto propriamente dito, e que outrora estavam na cozinha do

casa., etc. O senhor Mateus dizia mesmo: “como é que posso ter saudades da minha

casa se eu aqui tenho tudo o que preciso?!”. Segundo Fischer, quanto mais os indivíduos

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forem capazes de personalizar o seu espaço, maior liberdade e sentido de controlo

sentem face ao mesmo (Fischer, 1994).

De facto, os vários utentes, dependendo de circunstâncias distintas, tentam reconstituir

um território pessoal de forma o mais vincada possível. Estes últimos são aqueles que

mais elementos identitários possuem no espaço do seu quarto e os únicos que possuem chave do mesmo, fazendo-os sentir igualmente um maior controlo sobre o

espaço. Quando perguntamos à D. Arminda se se sentia segura no seu quarto, ela

responde-nos que sim:

“Sinto-me segura porque eu durmo com a porta fechada, porque não sei… vejo os outros a queixar-se falta isto, falta aquilo, a mim nunca me faltou nada”.

Segundo o regulamento, também não é possível possuir nos quartos comida,

medicamentos ou objectos cortantes. Se esta regra é inquestionável em algumas

situações, para outras parece-nos que priva bastante a margem de liberdade dos utentes

porquanto os condiciona de possuírem no seu espaço mais privado alguns alimentos que

lhes possam dar mais prazer ou estejam adequados às suas necessidades. A D. Piedade

teria de deixar de fazer os lanches, que tão bem lhe sabem, com base nos alimentos

trazidos pela sua família; a D. Joaquina não poderia ir todas as manhãs ao seu quarto

comer a peça de fruta à hora que o médico lhe indicou por causa dos diabetes. Apesar

desta ser a regra, esta situação é algo tolerada, não obstante o intenso desagrado das

funcionárias que se aproveitam da regra para ameaçarem fazer queixa do utente cada

vez que este deixa migalhas no quarto. Os funcionários aborrecem-se por terem de

limpar os restos de comida deixada pelos idosos nos quartos ou até mesmo nos bolsos

da roupa já esquecidos e até apodrecidos. A instituição, sobre isto, avança com

argumentos que dão corpo à tese de que se pretendem promover os bons hábitos

alimentares. No entanto, não temos dúvida que se tratam de justificações racionais para

uma situação que em nada salvaguarda a tomada de decisão dos utentes, a autonomia

na condução da sua vida. Na verdade, está em jogo uma lógica de gestão o mais

funcional possível, salvaguardando mais os interesses dos funcionários e da gestão. No

entanto, a assistente social é de opinião que não se pode criar, a este propósito, uma

regra geral pelo facto de haver pessoas que, como os diabéticos, precisavam fazer

refeições intermédias por questões de saúde.

Dado que, na generalidade dos quartos não existem tantos objectos pessoais, assim

como não existe, à entrada dos mesmos, a referência ao nome ou fotografia dos residentes que habitam em cada espaço, torna-se difícil, senão mesmo impossível,

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distingui-los, a não ser abrindo cada uma das portas até acertar no quarto do idoso que

se procura. Foi perceptível que se desejássemos procurar algum idoso no seu quarto

seria muito difícil42. Esta situação, para além de contribuir para uma despersonalização do espaço, dificulta a qualquer idoso, sobretudo os que residem em quartos mais

afastados, ou familiar a localização da pessoa pretendida. Embora não seja prática

comum visitar o utente no seu quarto, imagina-se que para as famílias não deva ser

muito confortável bater a todas as portas para procurar o seu familiar residente no lar!

Ainda assim, para pessoalizar mais o espaço do quarto e facilitar a localização no espaço

daqueles idosos que começam a ter falhas de memória, seria importantíssimo facultar

algumas ajudas em matéria de orientação que poderiam passar, por exemplo, por colocar

a fotografia dos residentes nos quartos.

Reportando-nos ainda aos espaços privados do lar, de referir a sala destinada exclusivamente aos funcionários existente no rés-do-chão. Esta sala é composta por

uma pequena mesa à entrada e um quadro de xisto, onde se pode registar algum recado

a transmitir e por cacifos individualizados onde cada funcionário guarda a sua roupa e

bens pessoais, possuindo uma chave do cacifo, não havendo possibilidade de ninguém

mais o utilizar. Enquanto entram e vestem a sua roupa de trabalho convivem um pouco.

No entanto, não existe neste espaço uma máquina de café nem outros utensílios que

facilitem uma pequena refeição em conjunto, ou objectos de conforto que

proporcionassem uma ligação mais prazerosa com o espaço.

Existe uma pequena sala de espera junto dos gabinetes da assistente social, madre

responsável e escriturária que, pela sua dimensão, funciona como uma sala mais

reservada, quer para alguns utentes que desejam permanecer um pouco num ambiente

menos ruidoso que o da sala de convívio, quer para o convívio entre alguns idosos e

suas famílias quando os visitam. Apesar de não haver porta de ligação entre esta

pequena sala e o corredor, as condições para se conversar intimamente são mais

propícias que as existentes noutro espaço do lar. Por outro lado, há mais facilidade dos

familiares se sentarem ao pé do seu idoso em sofás mais cómodos que as cadeiras da

sala de convívio. A adaptação funcional deste espaço, que não tinha sido planeado para

esse efeito, deveu-se ao facto de que, na prática, nenhuma sala estava prevista para

recepção de visitas.

42 Esta situação foi testada pela investigadora que, não fosse a presença das funcionárias ou a consulta do mapa de distribuição dos quartos, não teria oportunidade de chegar até ao quarto pretendido. Claro que com o passar do tempo estas localizações se foram memorizando. No entanto, para quem não conheça o lar é extremamente difícil localizar o espaço privado de determinado residente.

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4.5. Características gerais dos espaços e preservação do bem-estar e identidade dos idosos

De um modo geral, os espaços do lar procuram preservar o bem-estar dos utentes.

No entanto, esta análise parte, desde logo, de um enviesamento significativo que se

prende com o facto de nenhum idoso ter escolhido livremente aquele espaço de vida para

si. Foram circunstâncias de força maior que o condicionaram à mudança da sua

residência, fazendo com que, à partida, esse espaço de vida não seja um espaço

verdadeiramente desejado.

Ainda assim, o contexto físico e social pode favorecer ou diminuir o interesse pela vida, o estabelecimento de relações, íntimas ou mais grupais, a preservação da

autonomia ou a promoção do isolamento dos idosos, a afeição a objectos recheados de

história ou o total despojamento de objectos que configuram os espaços e a identidade

dos indivíduos. De referir, por exemplo, que as pessoas que possuem ainda a sua casa

vivem a mudança para o lar de forma mais serena e apaziguada, uma vez que a posse

dos seus bens alimenta a vaga esperança de voltar um dia a casa e tem efeitos positivos

em termos da identidade preservada. (Manoukian, 2001).

Em termos das condições que oferece, não podemos considerar que o lar seja um espaço barulhento e perturbador em termos dos ruídos que produz. A sala de convívio

é, por natureza, um espaço mais agitado e poder-se-á tornar num espaço cansativo para

os utentes mais dependentes que passam lá largas horas sem terem alternativa. Os

restantes têm mais opções e é visível que muitos passam o dia a alternar entre o seu

quarto, entre o exterior, refeitório e sala de convívio. Por outro lado, apesar do lar se

situar em pleno centro urbano, há um isolamento bastante bom por relação aos ruídos do

exterior em quase todas as partes do lar.

Apesar da quantidade de utentes incontinentes ou que usam fralda de noite, não são perceptíveis cheiros desagradáveis ou constrangedores, nem nas áreas de uso

colectivo nem nas áreas privadas do lar. Pelo contrário, com raras excepções, a limpeza

do lar é assídua e eficaz, denotando uma forte preocupação na criação de um ambiente de conforto e higiene. Esta limpeza diária de todos os espaços do lar reflecte-se,

igualmente, na inexistência de poeiras nos móveis ou cotão no chão, bactérias

infecciosas e insectos, sendo estes condutores de várias doenças.

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Os soalhos e as paredes estão em bom estado de conservação, sobretudo os que se

situam na parte nova do lar, uma vez que nas partes antigas evidencia-se algum desgaste

sobretudo nas áreas mais usadas. As cores dos vários espaços são claras favorecendo

as zonas mais escuras, como os corredores da parte antiga, e transmitindo uma certa

harmonia aos restantes espaços. Em todos os quartos e na generalidade dos outros

espaços existem janelas, reflectindo uma sensação de abertura. Por outro lado, esses

espaços usufruem de luz directa, sobretudo na parte nova em que a arquitectura do

espaço evidencia uma forte preocupação com a entrada de luz, uma boa disposição solar da construção, o que faz com que a D. Margarida saliente os corredores da parte

nova, onde durante várias horas do dia bate o sol fazendo quase efeito estufa, como locais

da sua eleição.

“Gosto muito dos quartos e então lá de cima, aquela salinha, aquele corredor, aquilo é uma maravilha, ainda noutro dia estive lá sentada, ali bate o sol. Agora não mas o primeiro ano que vim para cá, sentava-me e punha o chapéu na cabeça, ali é uma maravilha, a gente quer dizer parece que não está dentro de um lar. É gosto muito da entrada” D. Margarida

Apesar da iluminação ser boa nos vários espaços, sobretudo nos que beneficiam de mais

luz natural, ela não é sempre igual ao longo de todo o dia, sendo que o seu nível

decresce à noite, não havendo suficiente iluminação artificial que compense as perdas

visuais que os idosos vão sofrendo, e que os impossibilita de realizar tarefas como a

leitura.

A partir das janelas dos vários espaços colectivos e quartos a vista é geralmente agradável. Da sala maior de convívio avista-se a rua e toda a movimentação associada à

vida urbana. Por outro lado, a vista oposta aponta para o jardim da instituição, panorama

que também é acessível do refeitório. Apesar de alguns quartos estarem voltados para o

parque de estacionamento exterior, sobretudo as duas enfermarias do primeiro piso, é

possível visualizar a entrada do lar e todas as pessoas que a ele acedem ao longo do dia,

transmitindo essa vista uma sensação de maior controlo aos utentes mais dependentes.

O Sr. Ferreira era a prova disso mesmo. Passando as horas do seu dia agarrado a uma

botija de oxigénio, o seu principal entretenimento era ouvir rádio e observar quem entrava

e saía da instituição43. Uma boa parte dos quartos estava voltado para um enorme jardim,

muito cuidado, onde é possível visualizar pessoas a passar, crianças a brincarem no

parque e pessoas sentadas na esplanada de um café. Esta visão, ainda que mais

circunscrita, também é acessível da sala dos mais dependentes. Há, porém, alguns

43 Este senhor, que viera a falecer uns meses após o início da investigação, sabia quase sempre quando a investigadora estava no lar, visualizando a sua entrada. Apreciava as suas visitas e quase sempre se despedia, da sua janela, com um demorado gesto de adeus, quando ela se ia embora.

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quartos da parte nova do primeiro andar que estão praticamente voltados para a parede,

não sendo propriamente motivo de prazer vir à janela observar a paisagem!

O mobiliário contido nos vários espaços apresenta um razoável estado de conservação. Apesar de algum ser mesmo novo, sobretudo o que está contido na parte

nova do lar, este é estandardizado, obedece a um padrão uniforme que possivelmente

muito se destaca do que os utentes teriam nas suas casas. O facto de não serem os

objectos dos utentes já é, por si só, sinal de alguma desafeição. Há algumas excepções

de utentes que puderam levar cómodas ou arcas, mas apenas o casal que tem toda a

sua mobília no quarto se sente verdadeiramente confortável. O Sr. Mateus, salientando a

sua “habitação”, não quer deixar de referenciar a sala de convívio.

“Eu, o espaço que mais gosto forçosamente terá que ser a minha habitação [quarto], mas isso é para dormir e pouco mais, é lá em baixo o salão, onde se convive com todos, é onde se fazem as festas, não vou dizer que é o refeitório que aí é só para comer. De resto eu passeio pela casa toda, tudo me agrada, mas o espaço que mais gosto é lá em baixo…” Sr. Mateus

O seu apreço a este espaço de convívio estará porventura relacionado com o facto de

nele passar alguns momentos muito prazerosos participando nas actividades que mais

aprecia, como o canto, nas actividades organizadas, como concertos e espectáculos de

dança, lendo o jornal ou fazendo um pouco de companhia a algum residente que seja

mais do seu agrado. Como as suas fontes de interesse são diversificadas, os seus

espaços de vida são também variados. Já a sua esposa, que nunca se conseguiu

adaptar ao lar tão bem como o marido, refere como espaço preferido o quarto, e atribui a

sua falta de adaptação ao facto de ter sido uma pessoa muito agarrada à casa.

“Gosto de estar no meu quarto. Estou sozinha, fui sempre habituada a estar sozinha. Ás vezes o meu marido diz: sai do quarto mulher! Gosto de ler, gosto de estar no quarto, gosto de ir à janela. Na minha casa nunca ia para a janela, não tinha vagar, aqui já gosto. O que é olho para a janela vejo a parede [risos] (…) eu queria-me adaptar mais porque agora não tenho casa, nem beira nem saúde, queria-me adaptar mais do que aquilo que estou adaptada (…) Não sei… Eu era muito agarrada à casa” D. Arminda

O mobiliário das partes colectivas, sendo já antigo, permanece cuidado e limpo, não

ocupando espaços de passagem que possam pôr em risco a segurança dos utentes.

Pretendemos, pois, perceber os significados atribuídos aos vários espaços e como estes

organizam a vida dos idosos de modo a proporcionar-lhes bem-estar e preservar a sua

identidade, pois neste momento a sua estrutura identitária vai ser o produto da interacção

com outros, da sua experiência social no lar e do mundo que a partir daí se constrói

mentalmente pelo indivíduo a partir das suas experiências.

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Torna-se imprescindível partir das representações individuais e subjectivas dos próprios

actores, pois estas constituem os melhores indicadores das identidades sociais, ainda

que possam ser provisórias, e reflectem o próprio percurso e processo de socialização

em curso (Dubar, 1997:101).

Os quartos são os espaços privilegiados por quase todos, mesmo os que estão em

situação de saúde precária pois, pelo menos, é um espaço que garante aos utentes um certo conforto e descanso. O senhor Afonso, sentindo-se fragilizado nas suas

capacidades físicas, afirma, sem qualquer pudor: “Ai, eu gosto mais é do quarto, que é as

melhorzinhas horas que eu tenho é quando estou a dormir… [risos].” Contudo, a afeição

ao espaço está também muitas vezes condicionada pelo companheiro com que é

partilhado Se não existem afinidades, cria-se algum constrangimento associado à

vivência naquele espaço. A D. Adelaide se, por um lado, é daquelas pessoas que passa

largas horas na sala de convívio, ainda que pouco participe activamente nas actividades,

por outro lado, não estabelece um relacionamento satisfatório com a sua companheira, o

que reflecte a realidade de vários outros idosos. Afirma que do quarto não gosta,

preferindo o refeitório e a sala de convívio.

“Do meu quarto não, só de noite que estou sempre a dormir. Não, [diz não gostar do quarto] a mulherzinha não quer cá que diga nada, eu também não digo, pronto (…) Do refeitório e de onde a gente está [sala de convívio] para os outros lados eu não vou”. D. Adelaide

Há, contudo, alguns utentes que pela sua situação de fragilidade física passam muitas

horas na sala de convívio, elegendo esse espaço como o seu predilecto. A D.

Clarisse, apesar de ser invisual, é das pessoas que apresenta melhores níveis de

adaptação ao lar. Gosta muito de conversar, adora música, por isso fica maravilhada ao

assistir a todos os espectáculos que se organizam no lar e quase todos eles envolvem a

música. Participa em todas as actividades que pode, mesmo sem ver. Desse modo se

explica a sua afeição à sala de convívio. Refere convictamente que o local que prefere “é

onde estamos todos em convívio”. A D. Otília, pelo contrário, à mesma pergunta

responde inicialmente de forma vaga e depois com alguma resignação:

“Gosto de todos. Ali no convívio [local onde se sente melhor]. Gosto, fui ali habituada (risos).

No entanto, a maior parte dos utentes oscila, nas suas presenças, entre os espaços

colectivos e os espaços privados, ambos necessários para o seu equilíbrio e bem-estar.

Se o quarto é sinónimo de intimidade e ligação a objectos pessoais que configuram a

identidade pessoal, a sala de convívio é sinónimo de um espaço de convívio, mais ou

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menos activo e reconfiguração de uma identidade social. A D. Beatriz, ainda muito activa,

preservando mesmo a sua vida familiar e de interacção com o exterior do lar, refere

gostar de ambos os espaços.

“Olhe gosto da sala, não posso dizer que não gosto, gosto, eu até passo muitas vezes ali, tardes e tardes ali, não é? Mas também gosto, por exemplo, acabar de comer e estar um bocadinho no meu quarto a ouvir música, tenho rádio que o meu filho me deu, gosto de estar ali um bocadinho a descansar, gosto do convívio ali, gosto da ginástica, gosto da música, gosto de tudo”.

A D. Matilde é da mesma opinião, contudo, faz referência igualmente à capela como local de referência, pois é uma senhora muito religiosa que toda a vida rezou muito pela

vida do marido que era pescador.

“Olhe eu sou franca, eu gosto muito de ir para o convívio, gosto muito de ir para o convívio e do meu quartinho onde durmo, também gosto muito. Sinto-me bem. É onde me sinto melhor (risos). E na capela também. Eu gosto muito de rezar ao Santíssimo, gosto muito de fazer as minhas orações” D. Matilde

Há ainda aqueles utentes que demonstram claras dificuldades em se adaptar ao lar,

mesmo já estando aí a viver há alguns anos. A dificuldade em conviver com os demais

reflecte justamente esse desenquadramento. Os espaços colectivos são pois de evitar,

uma vez que implicam o assumir que se pertence àquele colectivo. A D. Maria é um

desses exemplos e passa a maior parte do tempo no exterior do lar ou no seu quarto.

Quando questionada responde da seguinte maneira:

“O espaço? Olhe não é a sala de convívio não, que eu não gosto nada. Não tenho espaço especial. Gosto do quarto que estou à vontade, estou à vontade, nem toda a vontade pode ser, porque querem que a gente vista os pijamas, querem que a gente saia do quarto de banho logo vestida ou com uma toalha (…) faz baforada aquilo, não tem exaustor (…).

Na verdade, as pessoas que vivem em lar são obrigadas a partilhar um espaço fechado e

limitado. Este facto facilita, num curto espaço de tempo, um conhecimento recíproco dos

hábitos e da vida pessoal dos outros, o que na vida normal só acontece entre os

membros da família. Como consequência, cria-se uma pressão social que exige um

reforço de protecção de si, face a qualquer situação intrusiva, de ofensa ou bisbilhotice.

Agudiza-se, assim, o isolamento dos idosos e a superficialidade das relações.

Como nos reforça a autora, “no lar de idosos, esta proximidade gera um aumento de

distância afectiva e é compensada por uma contenção na expressão dos sentimentos

com medo que os outros residentes façam uso disso” (Mallon, 2000:256).

A D. Palmira, que declara não gostar de viver no lar e apresentar sinais de alguma

desadaptação, expressa-nos a sua repulsa em permanecer no espaço onde se encontra

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a maioria das pessoas que, para além de falarem umas das outras são, do seu ponto de

vista, egoístas ao ponto de nem partilharem as suas cadeiras.

“Olhe eu para lhe dizer que gosto de estar no convívio, também quero parar aqui pouco tempo. (…) Lá para cima. Lá para cima, longe delas… [das residentes que considera bisbilhoteiras]. Para o quarto. Ou para a salinha, lá em cima [dos dependentes que é mais reservada] (…) Às vezes eu chego aqui ao convívio e nem cadeira tenho para me sentar (risos). É umas com sacas, é uma com…olha enfim… (risos)”. D. Palmira

Denotando que a afeição ao espaço também se constrói muito com base nas companhias que a ele estão associadas, a D. Piedade, revela o seu sentimento

especial por relação ao refeitório. Já o quarto, partilhado por mais quatro mulheres, para

nada mais serve a não ser dormir, até porque nem os seus objectos pessoais são sempre

respeitados, como já se referenciou. Ela comenta, quando questionada sobre o tema:

“Ai no refeitório está-se bem, no refeitório porque até são uns colegas muito unidos, calhou bem porque até são as que estão no meu quarto, por acaso o quarto era delas não era meu, e damo-nos muito bem. O Sr. Guilherme é muito engraçado está sempre a fazer alguém rir…Também gosto do quarto, mas a gente tem pouca coisa no quarto é só para dormir, que não durmo infelizmente…”. D. Piedade

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5. A carreira moral dos idosos no contexto institucional – diferentes fases da integração e repercussões no “eu” identitário

5.1. A institucionalização – transição para o “lar”

A circunstância de entrada num lar pressupõe um vasto conjunto de alterações ocorridas

na vida do indivíduo, as quais, por motivos diversos, o conduzem a abandonar a sua

residência, bem como os hábitos de vida tão enraizados ao longo de décadas de

existência.

Interessa analisar como se processa o internamento no lar ou que motivos estiveram na sua origem pois, de alguma forma, irá coincidir com o início do que

Goffman apelida de “carreira moral do internado”44, a qual pode ser utilizada tanto para

fazer apelo a assuntos íntimos ligados à imagem que a pessoa constrói sobre si, o seu

“eu”, como ao estilo de vida associado ao complexo institucional acessível ao público

(Goffman, 1996:111,112). Analisaremos, à semelhança do que fez Goffman, as três fases essenciais que caracterizam esse conceito de carreira e que o autor utiliza por

relação à carreira moral do doente mental que é internado num hospital psiquiátrico: fase

de pré-paciente, a fase de internamento e a fase de ex-doente.

Fazendo um esforço por adaptar o pensamento do autor à circunstância da vida em lar,

estas fases corresponderão ao período anterior à admissão no lar, ao período correspondente à vida em lar e ao momento coincidente com a saída do lar. Esta

situação de saída usualmente não ocorre na sequência do desejo do utente, relacionado

com a sua falta de adaptação ou com uma vontade de regressar ao seu contexto familiar

e habitacional anterior. Por regra o utente permanece no lar até a sua morte.

Nas análises que pretendemos desenvolver, importa, sobretudo, destacar o impacto que essas mudanças, associadas à carreira do indivíduo institucionalizado, provocam na sua identidade e, assim, perceber se o estatuto diminuído e desvalorizado de idoso,

frequentemente reproduzido nos discursos habituais na nossa sociedade, será algo de

natural ou intrínseco aos próprios idosos, resultado da natureza do próprio processo de

44 O autor usa este termo num sentido amplo, procurando designar qualquer trajectória percorrida por uma pessoa ao longo da sua vida (Goffman, 1996: 111)

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envelhecimento ou mais o produto de um tratamento atribuído por agentes exteriores aos

idosos que vivenciam a experiência de internamento.

Esta perspectiva pressupõe analisar em que medida pessoas idosas com vidas muito

singulares e percursos distintos poderão vir, mediante a circunstância de viver num lar, a

responder de forma semelhante ou não. Assim, temos de questionar o porquê dessas

semelhanças, ou diferenças, já que essas não decorrem das propriedades iniciais deste

público que, nas suas características anteriores à entrada em lar é bastante heterogéneo

do ponto de vista das suas trajectórias e experiências de vida. Neste sentido, a

experiência de estímulos semelhantes, resultantes desse contexto de vida, poderá

significar o resultado de forças sociais entre grupos e o resultado das representações

produzidas em torno do papel e do estatuto do idoso institucionalizado.

Sejam quais forem os motivos específicos de cada indivíduo, subjacentes à entrada no

lar, apontamos, como hipótese, que este período vai implicar uma ruptura total com o quadro de vida anterior, normalmente caracterizado já por perdas de ente queridos,

rupturas com redes socializadoras várias, como a família, os colegas de trabalho, os

amigos, situações de diminuição de ingressos económicos e até situações de perdas de

autonomia física, mais ou menos incapacitante. Mas será isto uma inevitabilidade? É

certo que o momento de transição para o lar poderá representar um período de

continuidade ao nível das perdas enunciadas. Mas será que não poderá significar, porventura, uma fase de descoberta, de conquista, de desenvolvimento de gostos, potencialidades, amizades…?

De acordo com a perspectiva de Goffman, quando faz referência à carreira do pré-paciente, esta pode ser analisada de acordo com um modelo de expropriação, onde

as relações, direitos, liberdades existentes à partida se vão diluindo e conduzindo à

quase inexistência das mesmas e ao despojamento do indivíduo (1996: 116, 121). Utiliza,

para caracterizar esta fase, expressões como a “perda de control”, “reavaliação

desintegradora que a pessoa faz de si mesma”, “ a angústia resultante dessa percepção

de si mesmo”, entendendo que os aspectos morais dessa carreira de pré-paciente

começam geralmente com a “experiência de abandono, deslealdade e amargura”

(1996:114 e seguintes).

Pretende-se, pois, analisar a inevitabilidade deste modelo de expropriação, isto é, se os motivos associados à entrada em lar condicionam negativamente a sua integridade psicológica e a preservação do seu eu. Para tal, muito influenciarão os

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motivos concretos que condicionam o internamento, bem como o grau de autonomia do

idoso nessa decisão, pois será muito diferente entrar no lar voluntariamente ou de forma

forçada, ainda que este comportamento pareça efectivamente voluntário.

Deste modo, vários são os factores que poderão determinar a opção pelo internamento, nomeadamente, os problemas de saúde e a consequente perda de autonomia, o isolamento, a inexistência de uma rede de interacções que facilite a integração social e familiar do idoso, a falta de recursos económicos bem como habitacionais. É um facto que o internamente definitivo das pessoas idosas implica uma

ruptura com o quadro de vida do quotidiano, sendo uma situação inevitável (Pimentel,

2001). De salientar a coexistência habitual de alguns destes motivos apresentados, na

circunstância real da entrada em lar.

Será interessante, antes mesmo de analisarmos o internamento em lar, percepcionarmos

que representações sobre o que previam vir a ser a sua vida futura, haviam construído

alguns destes utentes.

Na verdade, a ideia de poder vir a ingressar num lar não parecia, na generalidade das situações, uma hipótese viável, que se tivesse pensado, perspectivado ao longo da vida. Ou porque se imaginava que a estabilidade económica fosse o garante

de um final de vida mais concordante com as expectativas de permanência na sua

residência habitual, ou porque se acreditava que em situação de necessidade a família

haveria de assumir a responsabilidade dos cuidados, ou porque, simplesmente, nem se

imaginava o que era um lar e portanto, nunca se havia vislumbrado essa possibilidade.

Senão vejamos alguns desses relatos.

A D. Margarida assume, claramente, que nunca imaginava ter de viver num lar, entendia

mesmo que, se alguma das suas familiares fosse viva, isso jamais ocorreria.

“Olhe, eu para ser franca pensei sempre que alguém de família me acolhesse mas tudo…a minha irmã depois adoeceu e eu ia para lá, mas ela coitada é uma pessoa doente. A minha cunhada queria que eu fosse para lá mas eu disse: oh vou para a cunhada, ela hoje é muito minha amiga mas depois na intimidade…Eu nunca pensei vir para um lar. Não, nunca me passou pela cabeça, eu só dizia assim se as minhas tias fossem vivas eu não vinha para o lar. Olhe, eu nem tinha ideia nenhuma para lhe ser franca, nunca tinha entrado em nenhum lar”. D. Margarida

A D. Rosa, em rigor, já tinha ouvido falar em lares mas mão imaginava o que era, na

realidade, um lar. Estava numa situação de necessidade absoluta e não via outra solução

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a não ser o ingresso num lar. Na verdade, nem sabia por onde começar a busca e todo o

processo de candidatura!

“…lembrei-me, afinal eu a única solução que eu tenho e ir para o lar. Eu se calhar das minhas pernas começo a ficar cada vez pior, agora ainda me vou desenrascando mas posso precisar…Eu, menina, eu nem fazia ideia nenhuma o que era um lar, eu não fazia ideia nenhuma, eu não sabia nada. Sim eu sabia que existia mas … Nada, nada, nunca tinha entrado menina em lar nenhum. Então eu disse ao meu filho: eu não sei por onde lhe hei-de pegar, eu não sei por onde é que lhe hei-de pegar, tu vê se me telefonas para qualquer lado e pedes uma informação porque eu não sei” D.Rosa

A propósito da entrada em lar, Barenys (1990) relata-nos alguns sinais de perda de autonomia que vão indiciando a necessidade de “entregar” os idosos ao cuidado destas instituições, sobretudo numa época em que se delegou às instituições tarefas

que outrora eram desempenhadas pelo círculo próximo da família. De entre essas

situações destacam-se a perda de autonomia, na sequência de doença ou acidente, implicando a necessidade de assistência mais assídua, em resposta a essa situação ou

até mesmo um aumento de cuidados suplementares. Nestas situações são frequentes as

quedas, as intervenções cirúrgicas, ou até o agravamento de um estado de doença já

existente.

O percurso que conduziu o Sr. Alfredo ao lar é ilustrativo disso mesmo. Depois da

situação de doença da esposa, da degradação da relação conjugal que conduziu ao

divórcio e do afastamento dos filhos, uma vez que, segundo ele, “nessa altura ficaram ao

lado da mãe porque era quem tinha o dinheiro…”, vê-se, ele próprio, numa situação de

vulnerabilidade física, na sequência de uma intervenção que o incapacitou

temporariamente para a concretização das suas tarefas de vida diárias.

“E eu preferi isso. Depois eu fui operado também à perna, tinha uma prótese (…) fui operado e fiquei assim, estou a recuperar e de maneira que eu fiquei sem dinheiro, sem nada e sem hipóteses de trabalhar porque nesta idade agora onde é que ia arranjar um emprego? Sozinho também não podia e com este problema da perna, foi quando me meti aqui no lar”. Sr. Alfredo

Um outro sinal que progressivamente compromete a capacidade dos indivíduos para

cuidarem de si próprios prende-se com a perda do cônjuge, provocando a saudade e a insegurança que constituem manifestações mais subtis de falta de autonomia. A

saudade está frequentemente associada a sentimentos de solidão, relacionada quer com

a morte de ente queridos, quer também com o esfriamento, ou mesmo ruptura, dos laços

com os filhos ou a família no geral.

Sousa, Figueiredo e Cerqueira (2004) apontam, igualmente, a morte do cônjuge, associada ao medo de estar só e não ter ninguém para acudir num momento de aflição e a situação em que ocorre uma queda ou surge uma doença como as

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circunstâncias que precedem habitualmente a institucionalização. Acrescentam, ainda, e

não obstante o supremo desejo de preservar a permanência do idoso na sua casa, que

este só deve efectivamente ficar na sua residência habitual caso se reúnam um conjunto

de premissas fundamentais como a estabilidade clínica, o apoio de um cuidador

competente, ambiente físico adequado às necessidades do idoso, acesso a diversos

serviços profissionais e adequado suporte financeiro. A D. Clarisse, invisual, revela

precisamente a dificuldade em ficar só.

“Quando foi a morte do meu marido, morreu de repente, dei com ele morto na casa de banho. Muito marcante… não havia ninguém que me consolasse da morte dele… [muito emocionada] porque fui muito feliz no casamento… [a chorar] (…). Ia uma irmã minha dormir comigo à noite, de dia eu passava, ia conversar com os vizinhos, às vezes iam lá a minha casa e assim…e passava. Olhe um dia…ah essa minha irmã ia dormir comigo, mas depois cansou-se. E eu de dia passava bem, mas de noite não. Não podia estar sozinha. E um dia disse ao meu filho, ó filho isto não é vida para mim, nem é vida para vós, internai-me…e a minha nora já andava a tratar de me internar aqui…” D. Clarisse

De salientar que o sentimento de solidão pode ocorrer quando os idosos têm familiares ao pé de si. Estão em causa sentimentos de uma grande subjectividade, uma

vez que a solidão envolve a forma como cada pessoa percebe, experencia e avalia o seu

isolamento e falta de comunicação com os outros. Por outras palavras, o indivíduo pode

viver envolto numa rede familiar com a qual não consegue comunicar nem estabelecer

verdadeiros laços afectivos. Mais do que a quantidade de relações estão em causa a

qualidade e intensidade dos afectos, das relações sociais estabelecidas. Na sequência

da morte do marido, a D. Alice viu-se na situação de ser recebida em casa do filho. Nem

por estar em família conseguiu ver o seu sentimento de solidão atenuado.

“Foi da maneira que não o vi mais, [ao marido] ao quarto dia morreu. O meu filho chegou do hospital, que ele estava muito mal, pegou em mim, meteu-me dentro do carro e trouxe-me para casa dele. Mas a minha nora já tinha ido a minha casa falar, mas ela que não lhe caiu bem, ela não lhe caiu bem eu entrar em casa. Eu notei isso. Eu cheguei fiquei ali sentada, parecia um mocho ali, tive lá seis semanas parece. Ela ia à feira, à quinta-feira, saia, entrava, nem bom dia nem boa tarde nem nada. Durante o dia que estivesse em casa nunca falava comigo. O meu filho ia comer a casa ao meio-dia e é que me ia levar o comer ao quarto. Disse-me assim: oh mãe você vai para o quarto, é mais quentinho aqui, a sala é fria. E quando chegar eu levo-lhe o comer e depois elas lavam a louça. Está bem. Nunca me foi falar, nunca, muito chorei. Vim para aqui…” D. Alice

Podemos considerar como causas de solidão situações em que o número de relações existentes é mais pequeno do que o desejável ou ainda situações em que a intimidade da relação que se pretendia não se verifica. A este respeito, a teoria da

selectividade socioemocional postula, numa linha mais próxima da teoria do

desligamento, que se dá uma redução da rede de relacionamentos e da participação

social, na sequência da motivação que os indivíduos sentem para a reestruturação dos

seus recursos, com vista a “focalizarem a sua atenção naquilo que é verdadeiramente

importante e significativo para eles (…) distribuem os recursos disponíveis pelas

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necessidades e pelos objectivos a que atribuem maior importância e que se prendem,

nomeadamente, com o relacionamento de relações interpessoais e com a manutenção

da saúde e do bem-.estar emocional” (Baltes e Carstensen, 1999, in Fonseca 2005:285).

Dito de outro modo, o indivíduo poderá seleccionar os relacionamentos que lhe são mais

significativos e assim a solidão aparecer mais relacionada com a perda do seu parceiro

ou de uma relação próxima. A viuvez ou a separação de outros significativos podem tornar os idosos pessoas mais vulneráveis a sentimentos de solidão, que implicam

a diminuição do bem-estar a até a depressão.

Contudo, apesar das adversidades e das mudanças contextuais que se vão operando na

vida, nem sempre os idosos ficam à mercê das decisões da família ou outros agentes, até porque nem sempre é possível contar com a presença destes agentes.

Se é certo que muitas vezes se encontram deveras isolados, noutras situações são ainda

capazes de “manejar de forma proactiva o seu próprio mundo social” (Herrera, 2004:240).

O Sr. Pedro, à data da morte da sua esposa e tendo ficado completamente só, dado que

a sua única filha já falecera e os seus netos se encontram fora, não podendo prestar

qualquer assistência, foi-se desenvencilhando na gestão da vida da casa. Lavava,

passava, limpava… até ter atingido uma situação de cansaço, saturação e solidão, tendo

decidido estabelecer diligências no sentido de mudar o curso da sua vida e ingressar no

lar. Como a família não existia, nem outras relações próximas, tratou de tomar a decisão

de se candidatar para a entrada no lar, salvaguardando a assistência à sua pessoa em

momentos futuros de perda progressiva de autonomia que se poderia avizinhar.

“Apertei muito para vir para aqui. Eu ainda estive uns anitos à espera, agora entra-se, vêm-se de um lado para o outro, temos aí dois transportados de um lar para o outro. Eu quando vim aqui eu estava bem, até andava sempre a dizer à Assistente Social: então afinal… Eu tinha uma vida bonita, eu gostava… Aconteceu a morte dela pronto, estive treze ou catorze anos sozinho…Fiquei, antes eu tivesse arranjado outra mas depois…Já não puxou, fiquei assim sozinho, lavava a roupa na máquina, passava a ferro… Eu queria vir porque eu sentia-me sozinho, eu com oitenta anos, oitenta e tal anos, o que é que seria de mim? Se me desse alguma coisa em casa. Assim tenho alguém que me deite a mão…” Sr. Pedro

A perda ou degradação habitacional associada, frequentemente, às dificuldades em fazer face às despesas económicas relacionadas com a alimentação, serviços de

saúde e medicação, cuidado pessoal podem contribuir decisivamente para a perda de

autonomia e controle sobre a vida, condicionando uma eventual entrada em lar. Esta

situação prende-se, não raro, com as dificuldades inerentes à insuficiência das pensões,

para fazer face às despesas existentes nesta fase da vida do idoso.

Se é certo que nos últimos anos se tem verificado uma melhoria nos alojamentos, em

termos das infra-estruturas básicas dos mesmos e bens de equipamento doméstico, os

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idosos, sobretudo vivendo sós, ou os agregados familiares com idosos continuam a apresentar piores condições quando comparados com a população em geral. Da

mesma forma, os agregados familiares com idosos registam maiores índices de pobreza

quando comparados com a população em geral e, muito particularmente, quando

comparados com os agregados sem idosos (INE, 2002:32,34). Esta perspectiva é

reforçada por Esteves quando refere que as carências em torno dos alojamentos dos

idosos reflectem uma distância em relação às condições espaciais da qualidade de vida

maior que a da população geral não idosa, sendo que “só nas expressões e contacto

directos com as situações de vida, fora do carácter abstracto das expressões numéricas

e dos seus valores médios, é que se pode entender o clamor pela casa e pela saúde,

como duas das condições prévias e mais graves do prazer de viver (n)a velhice”

(Esteves, 2003:29)

Destes, os agregados com idosos sós são os mais pobres. A situação da D.Rosa

ilustra muito bem a conjugação entre estes vários factores: vivência numa habitação

subarrendada e de permanência precária e dificuldades económicas para responder às

exigências da vida, as quais tendem a retratar a maior vulnerabilidade a que a população idosa está sujeita.

“Essa casa onde eu estava não era do próprio dono, era uma subaluga, esse prédio era uma subaluga. Ora ela vivia na Rua de Cedofeita e tinha lá uma pessoa a tomar conta, para receber os alugueres no fim do mês e para ver se fosse preciso. O prédio era grande, se fosse preciso alguma coisa, para tomar conta, pagar água, pagar a luz, porque nós pagávamos tudo incluído (…) diz que já estava cansada, é natural, que já estava cheia, começou a ter prejuízo, começaram os apartamentos a ficar de vago e diz que já estava a ter prejuízo e que não ia levar o dinheiro de casa dela para ali e então diz que ia entregar ao senhorio. Deu-nos prazo, cada um para arranjar porque ia entregar… Dizia que no princípio do ano… Que ia entregar e tinha que entregar a casa vazia. Ora bem, eu pus-me a pensar assim: mesmo agora se eu fosse alugar um quarto, não me deixavam cozinhar, o que é que eu vou fazer? O meu filho ainda disse: oh mãe procura-se um apartamento; tu estás maluco, sabes quanto é que se vai pagar agora por um apartamento? Eu agora quando saí de lá estava a pagar 13 contos mas havia lá quem pagava 30, depende conforme fosse entrando, ainda mais… Tanto que eu tenho uma reforma pequena porque eu descontei só 16 anos porque eu só comecei a fazer descontos quando morreu o Salazar e entrou o Sr. Dr. Marcelo Caetano, foi que ele deu a reforma às empregadas domésticas, nós não tínhamos nada…” D. Rosa

Bazo (1991) destaca como motivos condicionadores do internamento em lar, sobretudo

os relacionados com factores de carácter pessoal e psicológico, como ter um carácter de tipo dependente, não poder contar com uma pessoa que apoie, assim como as perdas físicas, económicas ou sociais. Outros autores, porém, não

desprezando este tipo de variáveis, colocam a tónica na falta de serviços sociais e

comunitários de apoio. Tobin e Lieberman (1976) fazem referência à articulação de três

factores condicionadores da entrada em lar: a crescente deterioração física, a incapacidade ou falta de vontade das pessoas com quem se convive para assegurar os cuidados que o idosos necessita e a falta de serviços comunitários que

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ajudem a manter uma vida independente. Grandall (1980) afirma mesmo que não é a

falta de saúde a variável determinante para o ingresso numa residência mas sim a falta

de apoio social (cit in Bazo, 1991:150).

O Sr. Afonso, apesar de fazer referência aos problemas de saúde que o debilitaram,

deixava bem patente no seu discurso a desvinculação da família; a situação de alguma

vulnerabilidade, fruto igualmente do avançar da idade; das pessoas da pensão que o

apoiavam quase como “família”; do apoio limitado do centro de dia, que só funcionava

durante o dia. Apesar de ter entrado no lar por sua livre vontade, este processo reflecte

mais um acautelar do futuro que, de outra forma, não seria possível, até porque o Sr.

Afonso aufere apenas uma mísera pensão.

“ (…) E os primeiros anos dávamo-nos muito bem, mas depois a coisa deu para torto, a minha nora tinha outras ideias que não tinha eu, a família dela também, enfim, era de copos e a coisa correu mal e deu para torto, separei-me. Depois vim aqui para a Senhora da Hora outra vez e arranjei uma senhora que me arranjou um quarto e vivi no quarto, ali 14 anos e era agora a minha família, praticamente era essa família, era o António Silva e a D. Casimira (muito emocionado). Ela [a caseira] também já me tinha dito a mim, que estava a ficar velha e que tinha se calhar que arranjar também quem olhasse por ela, se calhar tinha que deixar aquilo porque não podia continuar até cair para o lado a tomar conta das pessoas, não é? (…) Pronto depois daí fui para o xxx [centro de dia], mas só que no xxx não era lar, era um centro de dia, estava aberto de dia, mas abria às 9 horas da manhã e fechava à tarde e eu tinha o quarto para dormir e vivi assim 14 anos…mas pronto depois então vim para aqui (…). Uma trombose que me deu… Uma trombose… deu-me à coisa de quatro anos, nesse quarto, exactamente… Já estava nesse quarto, já sim senhora, pois eu vivi lá 14 anos… Uma parte da minha vida foi lá passada. A trombose atacou-me de noite e quando me levantei, não era eu (…)”.

De referir ainda as situações em que são os próprios idosos a desejar preservar a sua

independência face aos filhos, ainda que estes estejam dispostos a ajudar, não lhes

restando outra solução a não ser a entrada para uma residência. Apesar do lar ser o

último recurso disponível, esta mudança torna possível a concretização da sua decisão e,

dentro do razoável, manter a sua vida independente (Bazo, 1991:150).

Estas situações de autonomização dos idosos perante a família tanto podem ocorrer na sequência de relações conflituosas ou de certa indiferença, como do sentimento de não se quererem tornar numa sobrecarga para esses familiares, particularmente

quando se tratam dos filhos. A situação da D. Clarisse, a quem já nos referimos

anteriormente, retrata muito bem a vontade de não se tornar num peso para os seus

filhos.

“ (…) Internaram-me… e ele estava sentado numa cadeira…quando disse aquilo, levantou-se e veio à minha beira, abraçou-me e beijou-me, e as lágrimas escorriam-me pela cara abaixo… e disse: “oh minha mãe quer ir para um lar?” Quero filho, nem é vida para mim, nem para vós, eu sozinha não quero estar (…). Ele não ia todos os dias, [visitar a mãe] a minha nora é que estava aqui na esquadra e ia todos os dias ver-me e às vezes comia comigo (risos). E ele então começou a chorar e disse: “oh mãe, a Joana [nora] já anda a tratar disso, para internar a mãe e eu e a Teresinha [irmã] não sabíamos

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de que maneira a gente lhe havia de dizer, não sabíamos se a mãe queria…” - Queria…quero, quero, meu filho, eu não vos quero estragar a vida. Têm os vossos filhinhos para criar” D. Clarisse

Ao contrário, a D. Adelaide relata-nos a situação difícil que viveu com o seu filho. A

relação entre ambos devia já ser, concerteza, de grande fragilidade por conflitos ou

desentendimentos vários. No entanto, aquilo que a D. Adelaide nos quis contar foi que,

certo dia, a propósito de se ter atrasado para o jantar em sua casa, o seu filho lhe batera

desenfreadamente. A ruptura instalou-se e desde esse momento sofreu amargamente

ora pela relação com o filho que se havia deteriorado ao ponto de ela entender acusá-lo

em tribunal, apesar de o ter perdoado, ora por não ter residência certa, vivendo um pouco

da caridade alheia.

“Ele começou-me a bater mais e eu fugi, e a minha nora disse: não vale a pena bater tanto, isso não merece porrada. Porrada merece por a gente estar à espera dela para comer, e a gente lembrou-se, podia aparecer numa beira qualquer, não era? (…) E depois disse: agora foi assim, para outra vez ainda é pior. Eu comecei…fui a uma vizinha, muito minha amiga, ui Deus me livre, era e é minha amiga, nunca mais cá veio mas é minha amiga. E ela disse que eu que não tinha culpa e que não havia direito de bater e eu disse: agora foi assim para outra vez ainda é pior. Eu arranjei para sair de casa (…). Fui ao Tribunal. Uma sobrinha minha disse: vá a Tribunal, não há direito, um filho a bater à mãe, não há direito. E depois fui, ele tinha prisão, mas tive que perdoar-lhe para ele não ser preso e ele ficou todo contente e eu fui, agora ele pode fazer o que quiser, agora a Sra. não pode pegar por nada que ele faça. A Sra. perdoou-lhe por ele lhe bater…E saí de casa para fora e ele ficou com a mulher (…) Olhe fui para onde calhou, para casa de uma prima mas a prima estava muito doente, fui para casa de outra, uma qualquer e andei assim (…) estava aqui uma Sra. de lá a trabalhar aqui e pediu, e lá disse: oh Madre eu tenho lá uma Sra. e vem para aqui, então venha, até ao meio-dia resolve-se e a Sra. é que me veio cá trazer” D. Adelaide

Outras situações há que envolvem muita mágoa, por se sentir a indiferença dos filhos ou noras que tanto se ajudou ao longo do tempo. Evocam-se palavras que

transportam desilusão, tristeza. A proximidade afectiva dá lugar a distanciamento, desvinculação, a uma referência sombria dos filhos pelo facto de estes não prestarem a ajuda pretendida. Nas palavras de Pais, “entre idosos e familiares há

frequentemente forças conflituantes entre apertar e afrouxar laços. Esta tensão produz

nos idosos um sentimento de insegurança e desconforto ao darem-se conta que a

desejada proximidade afectiva é facilmente descartável” (Pais, 2006:164).

A situação torna-se ainda mais dolorosa quando ao afastamento dos filhos se

acrescentam situações de perda progressiva da saúde, comprometendo a possibilidade

de uma vida tranquila, independente e sem problemas de maior.

O Sr. Mateus, que ingressou no lar com a sua esposa, teria, de acordo com os seus

relatos, preparado, do ponto de vista económico, a sua velhice. Concerteza não esperaria

que a sua situação de saúde, assim como a da sua esposa o “atirassem”

inesperadamente para um lar. A frustração maior parece ter sido a ausência e o

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descomprometimento dos filhos num momento de cansaço, incerteza e doença, como o

próprio nos relata. A ingratidão dos filhos, sobretudo das noras, talvez como forma de

tentar desculpabilizar os filhos, é dificilmente compreendida, num momento da vida em que supostamente devia haver uma troca, um reconhecimento por todo o apoio

prestado aos filhos durante a vida. Apesar disso, ele ainda refere que a principal falta

sentida era de um apoio moral, um telefonema, um afecto…

“ (…) Eu necessitava de ajuda física devido aos problemas de saúde da minha mulher e um acidente grave que eu tive que fiquei posto à margem, custa-me falar assim mas a verdade tem que ser dita… A verdade tem que ser dita, eu senti-me um pouco abandonado aos sessenta anos, um pouco não totalmente abandonado. Os filhos sim iam aparecendo, iam telefonando, nora menina, foram dez anos uma nora, sete anos outra nora, valha-me deus nem uma visita nem um telefonema… Eu ainda ia a casa deles, um sábado a um outro sábado a outro mas depois também acho que comecei a ser, julguei eu, a ser uma visita indesejada, eu topava aquela frieza e comecei também a desviar-me, comecei a viver a minha vidinha e ultimamente, há quatro anos atrás como lhe disse tive um acidente e fiquei todo partido, foi a omoplata, foi as costelas todas, eu aqui deste lado (…). Eu tinha uma Sra. uma empregada que me ia lá duas manhãs por semana durante cinco anos, o resto da vida era eu que a fazia, era, era eu que a fazia, pôr a roupa a estender, pôr no estendal, passar a roupa a ferro porque nos dias que a mulher vinha era para tratar da casa, não dava muito para estes trabalhinhos, era eu que os fazia, ia ao mercado, à feira, adquirir os produtos para cozinhar (…) eu fazia as tarefas todas em casa, tudo tudo, eu era um mártir, era uma Maria Alice lá em casa, era eu, eu é que fazia o trabalhinho todo. E além disso era a doença dela e depois a minha, eu não queria que as minhas noras viessem ajudar, não era preciso, estes trabalhinhos todos fazia-os eu, a empregada fazia o resto em casa e eu ia vivendo assim, eu gostava era de uma palavrinha de conforto para nós mas não Sr. e tudo isto quando eu comecei a fechar a torneira sabe? Sabe o que é fechar a torneira? Porque eu fui sempre um mãos largas mais do que a minha mulher, eu dei muitos abusos, dei, sei que dei muitos abusos que eu era um mãos largas de mais. A minha mulher dizia “tu hás-de pagar mais tarde” e é bem verdade. Os ciúmes entre as duas noras é que começou a estragar tudo porque uma entendia que eu gostava mais de uma do que da outra e não era nada disso (…). Eu fui muito agredido verbalmente, com palavras (…). Eu não consegui falar à minha nora aquilo que ela precisava de ouvir, eu não consegui [muito emocionado]. E depois começaram a ver a doença da sogra, amedrontaram-se com a doença da sogra porque aquelas crises afectavam a minha mulher em qualquer lado e em qualquer altura. Elas chegaram a assistir a alguns desarranjos e começaram a amedrontar-se e desviaram-se (…). E então eu comecei a analisar, isto se agora é assim aos sessenta anos, como vai ser daqui a uns anos mais à frente? Como vai ser? Eles desviam-se agora… só queria apoio moral não queria mais nada que eu felizmente estava preparado para enfrentar a vida, eles sabiam disso. Olhe quem beneficiou foi aqui a casa, compreende?” Sr. Mateus

O receio de que a situação do casal se agravasse, não do ponto de vista económico, pois

tal como o Sr. Mateus refere “estava preparado para enfrentar a vida”, mas do ponto de

vista da necessidade de apoio ao nível da prestação de cuidados, fez com que os dois

começassem a pensar na hipótese de ingressar numa instituição. Fazia-lhes pena deixar

a casa, uma vez que, como dizia o utente, “eu vivia bem, eu tinha todo o conforto na

minha casa, o que eu necessitava era de ajuda física…”.

Como nos referem Sousa, Figueiredo e Cerqueira, “para os idosos viver na própria casa

é uma dimensão integral da independência, pois simboliza a salvaguarda do sentido de

integridade pessoal” (2004:129). O conceito da casa não representa apenas o espaço

físico onde se viveu mas mais um espaço de “segurança objectiva contra a adversidade

do meio ambiente e segurança subjectiva contra o medo; local de intimidade e

privacidade individual e familiar; lugar de identidade, pois a decoração, os móveis e o

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ambiente reflectem a individualidade; um depósito de lembranças, permitindo a

continuidade entre o passado e o presente” (idem). No entanto, ainda que a situação se

pudesse prolongar durante mais algum tempo, o que lhes reservaria o futuro? O que

poderiam esperar em matéria de apoio e cuidados face à situação de progressiva

dependência do casal?

Nesta, como em tantas outras situações similares, destaca-se “o circuito de agentes e

agências que participam de maneira decisiva em sua passagem do status civil para o de

internado” (Goffman, 1996:118).

Da mesma forma Barenys, imbuída no espírito de Goffmam, fala da galeria de pessoas que intervêm na primeira etapa da “carreira moral do paciente”: a família, os amigos

“fora de toda a suspeita”, pessoas com prestígio como o padre, a assistente social… e

que exercem um género de pressão e funcionam como desencadeantes do processo de

entrada (1990:114).

De entre estas pessoas, Goffman destaca concretamente o papel de três agentes: a

pessoa mais próxima do paciente, normalmente um parente próximo ao qual o utente

pode recorrer em situação de crise, o denunciante, a pessoa que terá iniciado o caminho

do utente para o lar e, em terceiro lugar, os mediadores, “sequência de agentes e

agências a que o pré-paciente é levado e através dos quais é enviado aos que internam o

paciente” (1996: 118). A grande diferença entre estes é que enquanto que o denunciante

usualmente actua como parente, cidadão, vizinho ou empregado, os mediadores são, por

regra, especialistas com experiência e distância profissional, tais como clínicos gerais,

médicos, assistentes sociais, professores…

No caso do Sr. Mateus e da esposa, quem despoletou todo o processo foi uma

funcionária do hospital que haviam conhecido.

“Então vou-lhe dizer. A minha mulher foi aconselhada por uma senhora amiga, com quem ela desabafava, pronto até lhe digo era uma senhora que era funcionária superiora no Hospital Santo António, a minha mulher tantas vezes que lá esteve internada travou amizade com aquela senhora que era a chefe da secretaria (…) e foi essa senhora que aconselhou a minha mulher, -porque é que você não entra num lar? - Abriu-lhe os olhos, há aí, olhe vá à Ordem de S. Francisco, vá aqui à Ordem do Carmo, vá aí à Trindade, ao Terço lá em cima, como é que se chama? A Ordem do Terço, há aí muitas, você procure, veja condições, se pode se não pode e pronto. A minha mulher veio para casa com esta conversa e eu: ai mulher para onde tu vais, onde é que nós temos possibilidade de entrar numa Ordem, tu sabes o que é uma Ordem, mulher? Olha que isso é só para ricos, mas a minha mulher não se convencia, a minha mulher…e eu tendo em conta os problemas dela, da saúde mental da minha mulher para falar abertamente eu não a queria contrariar. Eu alinhei sempre com ela (…)” Sr. Mateus

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Apesar do Sr. Mateus nunca ter desapoiado a mulher, como faz questão de reforçar, e de

sentir medos, receio dele próprio, de não se adaptar, foi ele mesmo quem estabeleceu

diligências no sentido de começar a travar um caminho de descoberta acerca das ofertas

possíveis que havia no mercado, tentando conjugar as suas possibilidades económicas

com o máximo de conforto e bem-estar possível para o casal. Depois de muito terreno

galgado e muita peregrinação institucional, o que o Sr. Mateus mais queria era terminar

com este doloroso processo, “o que eu já queria, a minha ânsia era de tal ordem, o que

eu já queria era tirar a minha mulher de lá [casa do casal] para fora”. Precisamente por

ser ter sido um caminho de vida ponderado e decidido em casal é que o Sr. Mateus

considera que está bem, tranquilo, com uma vida mais descansada e previsível. Não quer

com isto dizer que a solução de vida em lar seja a ideal. Reconhece que o ideal seria

estar com os filhos mas está seguro, por experiência própria, de que nem sempre isso é

possível. Quando se lhe pergunta acerca da vivência em lar, ele responde da seguinte

forma:“Eu acho que é bom para quem tem necessidade como eu, é mau para quem é posto aqui contra a vontade, estariam melhor em casa com os filhos, eu também estaria melhor, nunca vivi com os filhos, nem os filhos comigo, casaram foram à vida deles. Mas para mim acho que é bom porque me adaptei bem e sou bem tratado. Eu hoje, eu digo, agora já me sinto outro homem, sinto-me mais… não é mais realizado, sinto-me mais aliviado pois claro, eu vivia oprimido, a minha vida era um stress permanente, eu nunca sabia se ia terminar o dia lindamente, lá em casa, ou se ia ter o caldo entornado, eu nunca sabia…” Sr. Mateus

No caso do Sr. Afonso a mediadora do processo foi a assistente social do centro de dia que frequentava. Constatando a situação de agravamento progressivo da sua

condição física, assim como a inexistência de qualquer outro tipo de apoio que se

perspectivasse duradouro, aconselhou-o a ponderar a entrada num lar.

“Ela uma ocasião conversou comigo, oh Sr. Tó você assim ali não está bem, que ela sabia, ela chegou a ir lá ver na situação que eu vivia, você tem que arranjar onde possa passar o seu tempo, de noite, de dia e tal, foi quando eu lhe disse olhe, eu conhecia esta casa… Se eu lhe arranjasse um lar para ir viver, sempre tinha alguém de noite que olhasse por si e tal…e eu assim: oh Dra. Ana se a senhora quiser fazer isso, eu aceito, ter até uma casa conhecida… [o utente já conhecia o lar]. Se arranjar para lá eu vou para lá. Calhou bem, existia aqui vagas, meteram-me aqui pronto”. Sr. Afonso

De referir igualmente duas situações encontradas de idosas que já teriam estado noutros lares. Um deles alegadamente preconizava práticas de maus-tratos, ora por

negligência aos seus residentes, ora por práticas repreensíveis como não dar de comer

ou não prestar assistência médica e medicamentosa em situação de carência de

cuidados de saúde. Este lar terá sido, inclusivamente, fechado pela segurança social,

tendo sido a utente em causa recolocada no lar em estudo.

A D. Maria expõe essa sua experiência de vida no primeiro lar onde esteve, na sequência

de um internamento psiquiátrico no hospital. Era uma pessoa de ascendência nobre e

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que toda a vida tinha vivido, do ponto de vista económico, faustosamente. Ao longo da

vida foi sofrendo um conjunto de perdas. Numa primeira fase, perdas afectivas. Perdeu

os pais, divorciou-se, nunca pôde ter filhos, situação que a marcou negativamente para

sempre. Foi acabando por ficar só e sem dinheiro, que gastava sem conseguir controlar.

Ao desfazer-se do seu património acabou por criar um fosso intransponível entre ela e os

seus sobrinhos que, potencialmente, a poderiam ter acompanhado mais. A vida da D.

Maria tornou-se num ciclo vicioso imparável até que, na sequência de uma alta

hospitalar, e sem qualquer outro apoio alternativo, foi colocada num lar, por diligência de uma prima, que despoletou todo o processo de ingresso na residência. Na

inexistência de algum familiar mais próximo, é frequente que outros familiares assumam

este apoio. Essa sua primeira experiência em lar terá ocorrido de forma dramática, como

a própria refere.

“Depois fiquei sem dinheiro, e fui parar o xxx [lar de idosos] … Foi uma prima, que teve agora uma trombose, ela era minha amiga. Foi a minha prima, que eu não me lembrava de nada. Eu sai do Magalhães Lemos e tinha de ir para algum sítio, não tinha sítio para onde ir, era lá que estava (…) Primeiro tive noutro, noutro lar, no xxx, passei lá, ui era horrível, então naquele lar, tive muitas vezes internada no Magalhães Lemos porque experimentava muitas vezes o suicídio. Muitas vezes mas nunca resultava… não sei como é que eu fazia! Aquilo era horroroso, nem imagina, batiam nas pessoas, não davam comida, tratavam mal. Esse lar não estava em condições e fechou, a segurança social…e calhou-me bem porque vim para uma casa boa, pelo menos isto é limpinho, sempre água quente, faz-me muito bem…” D. Maria

A D. Margarida veio, igualmente, de outro lar. Mas os verdadeiros motivos do seu ingresso deveram-se a desentendimentos familiares. Vivia com uma sobrinha que

criara como filha, dado que nunca chegou a casar. Certo dia, na sequência de um

conversa mais acalorada, acabou por sugerir-lhe que arranjasse casa para si e para sua

família, pois iria fazer o mesmo para si e entregar a casa ao senhorio. A sobrinha assim

fez e a D. Margarida, não querendo continuar a viver com ela nem com outros elementos

da família, ora porque estes também já estavam numa fase de vida avançada, ora porque

não queria arriscar uma vida na intimidade, decidiu, mais uma vez com a ajuda de uma prima, procurar um lar para viver. Verificamos novamente, e na ausência de filhos, a figura de um parente próximo a apoiar o ingresso no lar.

“ Uma ocasião estava ali em xxx [local em causa] no café com a minha prima, com a Teresa que é que arranjou para vir para cá, essa coisa toda e digo assim: oh Teresa estamos aqui a dois passos, na ponte móvel, há aqui o lar do idoso, vamos lá ver como é aquilo. Fomos, aquilo não era lar, era uma casa…mas a Sra. tratou-me bem, dei 500 contos de entrada. Depois então fui para lá, fui para xxx mas eu não conhecia ninguém em xxx . Não me adaptei. Olhe primeiro não gostava de xxx, não conhecia ninguém… Depois então, quer dizer, a minha deslocação para o lar foi digamos dolorosa, para o lar, que aquilo nem era lar porque depois fecharam, ela não pagava a ninguém. Deixei lá uma amizade muito grande… Mas agora depois de ir lá para o lar eu senti muito, eu ia para o quarto era chorar, chorar, pensava nisto, pensava naquilo. Quer dizer, eu não sei como fiquei. A minha sobrinha nunca lá foi, julgo que nunca lá foi e eu depois fiquei inconsciente. Pois é, eu perdi o andar. De tristeza. Olhe depois fui-me tratando, não sei depois reagi… O tio da minha prima, tio padrinho e dizia-me assim: vai para lá, estás muito bem…E eu não tinha outra hipótese, a minha prima arranjou mas levou muito

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tempo. Arranjou, foi o Assistente Social que era uma maravilha de um homem e arranjou mas ainda demorou, não é? Eu ainda estive dois anos ou mais… Era um martírio para mim… Não gostava e depois também fecharam o lar, quer dizer eu na mudança ganhei, não é? Valeu a pena porque aqui, quer dizer eu gosto deste lar… Para aqui já estava no meu ambiente, sabe. A minha prima que me ajudou sempre, trazer-me foi ela e foi outra irmã dela que é minha afilhada…”

De acrescentar, ainda, que a entrada no lar corresponderá, certamente, à última fase da vida do indivíduo. O carácter previsivelmente irreversível da entrada neste espaço

residencial não permite alimentar a ilusão de que se está numa estância temporal. Ao

contrário, esta experiência corresponderá, talvez, à recta final da vida sem horizontes de

futuro e acompanhada de uma diminuição da autonomia e das capacidades psicológicas.

No entanto, nem todos os idosos representam de forma absolutamente negativa este novo momento e esta mudança de vida. Pimentel (2001), afirma que alguns idosos consideram esta transição sinónimo de uma significativa melhoria das

condições de vida e da sua estabilidade emocional. Para outros, porém, representa a ruptura com o seu espaço físico e relacional associada a sentimentos de depressão e exclusão.

De acordo com Barenys (1990), e no que diz respeito ao processo de entrada no lar, há quem diga ter entrado voluntariamente, apesar de em muitos casos ser um acto

voluntário fruto de um cálculo do “mal menor”. Por outro lado, há quem afirme que está

na residência porque quer, apesar de ir apresentando razões de força maior que

estiveram na origem da entrada, normalmente relacionadas com o desentendimento familiar ou com o desejo de não se tornar numa sobrecarga.

Há ainda aqueles que entraram de forma forçada. Destes, alguns acabam por se

resignar, outros não aceitam nunca e acabam por falecer pouco tempo depois da entrada

ou deixam-se consumir pela tristeza e indiferença do que os rodeia. Há ainda os que são

conduzidos à residência por engano. Esperam aí ficar temporariamente para uma

recuperação e acabam por ficar indefinidamente.

Foi possível verificar que, à semelhança do que a autora constatou no seu estudo,

apesar de as pessoas acabarem por assumir as circunstâncias externas a elas, procuram transmitir uma ideia de decisão própria como forma de preservar a sua integridade, autonomia e identidade pessoal. No entanto, depois de algum tempo de conversação e confiança vão dando a entender que não estão ali por vontade própria. Da mesma forma resistem, pelo menos numa fase inicial, a julgar duramente os

familiares a quem poderiam culpabilizar pela sua situação actual. Só após terem ganho

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confiança com os vários agentes institucionais começam a libertar rancores, fazendo

transparecer a angústia, tristeza e revolta que os assolam.

Ao conversarmos com o Sr. Guilherme, era clara a revolta e desilusão com a família,

atribuindo o seu ingresso no lar ao mau relacionamento com as filhas, às quais se refere

da seguinte maneira.

“Não, não, não porque eu dizia sempre que tinha umas ricas filhas, não disse que tinha umas ladras, disse que tinha umas ricas filhas, e umas ricas filhas saíram-me isto. Arranjaram maneira de eu vir para o lar, foram elas que me arranjaram e é assim a minha vida, tinha muito que contar mas…” Sr. Guilherme

A D. Piedade, apesar de procurar disfarçar, não conseguiu esconder o sentimento de

decepção com as irmãs e a sobrinha, tanto mais que acabou por não casar para ficar a

acabar da criar as suas irmãs, dado que os seus pais faleceram, um atrás do outro,

quando estas ainda eram bastante novinhas.

Ó meu Deus, achavam que não queriam tratar de mim. Não posso estar aqui a querer gabar! E de maneira que (…) e então pronto, a minha sobrinha disse: “olhe tia realmente é melhor ir para lá porque as suas irmãs não podem tratar de si e olhe há um lar ali, que é um lar, ainda não me tinha dito o que era, aquilo não é um lar é um hotel. Se tenho que ir p`ra lá, vou, vou, pronto, tá bem [em tom resignado]” D. Piedade

Sendo certo que existe a consciência de que a institucionalização previne e apoia as

situações de doença e dependência, havendo apoio permanente em todos os momentos

do dia a dia, não é menos verdade que este processo representa um corte, ainda que simbólico, com a vida passada, os hábitos quotidianos e a realidade física e relacional

envolvente. O panorama que se afigura é de um intenso controlo social que em muito

ultrapassa as margens de liberdade que o indivíduo possuía até então. A partir de agora o indivíduo vai estar “submetido a um regulamento ou uns costumes que lhe

impõem de maneira mais ou menos humanitária uma companhia que não pôde escolher,

solicitar permissão para sair de casa ou ter que dar explicações quando não lhe apetece

comer ou ver-se forçado a levantar-se a determinada hora etc, etc são circunstâncias que

adquirem um peso oneroso quando a sua execução em detalhe escapa à vontade do

indivíduo” (Barenys, 1990:112).

Se a melhor ou pior adaptação ao lar depende, em certa medida, de característica da

personalidade anterior, das suas condições de vida e do seu percurso sócio-cultural,

económico e familiar, das suas capacidades de copping, não é menos seguro que este processo possa vir a ser influenciado positiva ou negativamente pelas regras e normas de funcionamento do lar, assim como pelo seu grau de abertura ao exterior.

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5.2. Processo de admissão

Antes de se efectuar o momento da entrada em lar, são vários os procedimentos que têm

de ser cumpridos por parte dos idosos e, quando existam e se mostrem disponíveis para

participar neste processo, seus familiares. Para nos abeirarmos de tais práticas foi

necessário recorrermos à análise de vários documentos institucionais, como o

regulamento interno, a ficha de inscrição para internamento, o contrato de prestação de

serviços, termo de responsabilidade familiar, ficha de identificação do utente e

declarações várias contidas nos processos individuais dos utentes. Foi igualmente

necessário ouvir os relatos da assistente social sobre o assunto e, sempre que possível,

procedeu-se à observação directa de situações de admissão e entrada.

Este lar, à semelhança dos outros, define condições de entrada que, previsivelmente, funcionarão como filtros de selecção. Habitualmente estas condições prendem-se com

a situação social e económica do utente, a pertença a uma determinada área geográfica,

o não padecimento de doenças mentais e infecto-contagiosas, a não ser que estejamos a

falar de lares privados que, a troco de dinheiro, aceitem pessoas nestas circunstâncias,

ainda que com prestação de serviços de qualidade porventura duvidosa.

Assim, e de acordo com o regulamento interno do lar em estudo, este destina-se a pessoas da terceira idade, de ambos os sexos, de preferência residentes na área correspondente ao concelho em estudo e que preferencialmente tenham completado 65 anos à data da inscrição, considerando-se ainda válida a situação de

casais em que um dos cônjuges possa ter menos de 65 anos, bem como casos

excepcionais a serem considerados. A este respeito, podemos exemplificar a situação de

três utentes que deram entrada no lar com menos de 65 anos e em circunstâncias

particulares de grande vulnerabilidade social: uma senhora acolhida em 1987,

actualmente com 55 anos, após o falecimento da sua mãe e tendo apenas uma tia e

primos a viver em Lisboa; um senhor acolhido em 2004, actualmente com 54 anos, na

sequência de um pedido da segurança social, dado que o lar tem 13 camas destinadas a

utentes direccionados pela segurança social e um senhor, acolhido em 1987, com 54

anos no momento, que ingressou no lar com o seu pai, que era esquizofrénico e

entretanto falecera.

Como referimos, é dada a prioridade a pessoas do concelho. No entanto, como podemos

constatar através do quadro, apesar de a maioria dos utentes efectivamente pertencer

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ao concelho da instituição, uma parte ainda considerável tem origens muito diversas. De entre este grupo, uma maioria apesar de não ser do concelho da instituição,

reside aí há muitos anos. Os restantes são direccionados pela segurança social, como já

havíamos referido, na sequência de situações complexas do ponto de vista social, tais

como situações de doença, precariedade económica e habitacional, inexistência de rede

social de apoio, fecho de instituições similares por falta de condições, etc.

Concelho do Porto 20 Distrito de Lisboa 1Distrito de Braga 4 Distrito de Vila Real 3Distrito de Viana do Castelo 2 Distrito do Algarve 1Concelho da instituição 33 Distrito de Aveiro 1Ilha da Madeira 1 Distrito de Viseu 1Estrangeiro 2

Nestes casos, e em situações extremas de carência ou falta de resposta mais adequada,

é solicitado ao lar o internamento de pessoas, por vezes não desejáveis pelos restantes

residentes. Por outro lado, perante a panóplia de problemas e limitações de saúde dos

residentes, alguns manifestam-se em desagrado e discordância face aos critérios de selecção contemplados para a admissão dos utentes. O Sr. Pedro manifesta essa

repulsa de forma exímia.

“Olhe, são velhos a mais, contra mim falo, são velhos a mais, aqui aceita tudo, aleijados, tudo, eu contra mim falo, eu também podia vir nessa posição mas eu tinha a ideia que eles não aceitavam, e agora é com uma facilidade tremenda. Este que entrou, que tenho andado a sondar, estão aí alguns que dão uma reforma, ui Jesus, sei lá quantas vezes menos que a minha (…) e depois é malucos, está cheio de malucos. Ainda hoje, o outro, de manhã pegou com aquele que estava bêbado completamente… haviam de fazer também uma escolha, eu contra mim falo, se calhar a mim fizeram uma escolha e a eles não, entraram, qualquer coisa serve”. Sr. Pedro

Na verdade, em algumas circunstâncias, normalmente de utentes direccionados pela

segurança social, chega a acontecer que a maior parte dos residentes quase nem se

apercebe de que durante alguns dias passou pelo lar um novo utente. Podemos recordar,

a título de exemplo, o ingresso de uma senhora que apenas deu entrada no lar para

poder morrer condignamente, vinda de um outro lar com condições deploráveis, acabado

de fechar pela segurança social. A este respeito, comentava uma das madres: “Pobrezita,

vem para morrer. Ela precisava de sossego para poder morrer com calma. Estava toda borrada, uma

situação lamentável. Não deve durar muitas horas…”.

Um outro senhor, direccionado pelo hospital, e em situação de saúde quase terminal,

nunca chegou a descer à sala de convívio, onde praticamente todos se encontram, ainda

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que de passagem, em algum momento do dia. Nestas, como em outras situações, nunca chega a haver nenhum tipo de apresentação ou convívio com a comunidade residencial. O contacto destes utentes restringe-se à ligação ao cuidador(res) que

presta(m) alimentação e cuidados, à família quando existe e se digna a visitar o seu

familiar em estado terminal e, eventualmente, a alguns residentes em estado mais

debilitado do ponto de vista físico e mental, cuja circulação pelo lar habitualmente se

restringe à pequena sala de refeições e convívio no piso superior, longe do alcance e dos

olhares da generalidade as pessoas.

Dado o trabalho que estas pessoas acarretam e a situação de vulnerabilidade em que se

encontram, quando é comunicado ao lar que vai receber mais uma situação por

intermédio da segurança social, a directora, receosa, profere comentários deste género: “Vamos lá ver o que nos calha desta vez! Vamos lá ver a prenda que a Dr.ª Ana [nome fictício atribuído à

técnica da segurança social] nos vai enviar. Não sei porquê mas a desgraça vem toda parar a este lar”.

Apesar destas situações ocorrerem, não são a maioria. No geral, os utentes quando pretendem obter informações ou mesmo ingressar no lar, fazem-nos na companhia de algum familiar, amigo ou vizinho.

Há casos em que o pedido de informações se faz via telefone, normalmente numa

primeira abordagem. No entanto, a partir daqui muitas situações ficam automaticamente

anuladas dada a lista de espera que ascende aos 200 casos, superior ao número de

utentes que o lar alberga. Em rigor, seriam necessários quase mais três lares para dar

resposta a todas as situações em espera. Com excepção dos utentes direccionados pela

segurança social, os casos muito urgentes não obedecem a um tratamento especial,

dada a situação permanentemente lotada do lar. Só quando falece um residente é que é possível integrar um novo indivíduo, mediante a análise da lista de espera. As

situações são avaliadas e seleccionadas pela assistente social e pela directora e

enviadas à direcção que é quem tem a última palavra. Apesar de se procurar, nessa selecção, articular o grau de necessidade do utente a propor com a ordem pela qual ele se encontra inscrito na lista de espera, verificam-se algumas situações em que isso não acontece. Trata-se de idosos, ou famílias de idosos, com ligações

próximas a pessoas de referência ou direcção do lar. Pudemos constatar, pelo menos em

duas situações de entrada, ao longo do trabalho, que se tratava de pessoas que toda a

vida serviram a comunidade (pessoas muito católicas, eram catequistas e adornavam

semanalmente a igreja) e, por tal feito, mereceram da parte da entidade máxima da

direcção, que é o padre, a benesse de uma entrada mais célere no lar.

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Há, no entanto, outros utentes que se fazem acompanhar pela sua família ou cujo processo se desenrola por via de um profissional de uma outra instituição onde o

idoso já possa estar a receber algum apoio. Embora haja excepções, na maioria dos

casos quando o processo do utente é acompanhado por um familiar ou técnico de outra

instituição, a informação sobre o lar e sobre as condições de vida que irão ser proporcionadas aos utentes é sobretudo proporcionada ao familiar ou técnico e não tanto ao utente, como seria desejável.

O Sr. Guilherme relata-nos que quando tentou ingressar no lar, por sua iniciativa e na

sequência dos problemas familiares que se constituíram sobretudo em torno da relação

com as suas filhas, estas tentaram obstaculizar a sua entrada, comunicando ao lar, à

revelia da sua opinião, que o seu pai já não estaria interessado. O senhor Guilherme

entendeu esta atitude das filhas como uma forma de se libertarem do peso de

consciência que para elas seria a integração do seu pai num lar, depois de ter casa e

família que o poderia acolher. Isto leva-nos a pensar no protagonismo e na interferência excessiva da família esquecendo por vezes a voz e a importância que deveria ser atribuída à opinião do idoso, a cada passo em que o processo se vai

desenrolando.

“ Vim aqui, pedi e elas disseram: não se preocupe que a gente vai ver isso mas deve de entrar. Ela soube a mais velha, para se safar…elas botaram-me abaixo, eu vim aqui e disse assim: então quando é que me toca a entrar? E disseram-me assim: não se aflija que você mais tarde entra que a sua filha deitou abaixo; mas quem é que manda é a minha filha ou sou eu? Faz favor de pôr aí que eu quero entrar o mais depressa possível, e foi assim que eu entrei”. Sr. Guilherme.

No caso do Sr. Afonso, apesar de ser a assistente social do centro de dia que

frequentava a tratar de tudo o que disse respeito ao ingresso, este não se mostrou

inquieto nem muito curioso, uma vez que já conhecia o lar e alguns dos seus utentes.

Casos há em que são os técnicos entre si a mediar o processo, não havendo por parte dos idoso nenhum tipo de conhecimento da instituição nem nenhuma possibilidade de colocar questões sobre a vida no lar, a não ser no próprio momento

da sua entrada.

Esta situação aconteceu com a D. Palmira que, vindo para o lar por intermédio da

assistente social da junta de freguesia do local onde residia, nada sabia sobre o que a

esperava. O primeiro contacto com a instituição foi no próprio dia do seu internamento.

“Não, foi a Junta que arranjou. Olhe, meteram-se ao trabalho, foi de um momento para o outro. Foi de uma semana para a outra. E foi aqui logo para onde vim. Eu tive a ordem para vir, só veio aqui uma

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Sra. minha vizinha e o condutor da Junta me veio trazer, quando eu vim a primeira vez. Já fiquei aqui, já foi para internamento. É, eles estavam-me a ajudar” D. Palmira.

O próprio regulamento prevê que apenas no momento do internamento seja realizada pelo utente, seus familiares, assistente social e madre superiora, uma visita às instalações do lar, por forma a que o mesmo conheça os seus espaços, serviços e

ambiente humano, sendo paralelamente apresentado aos restantes residentes e pessoal.

Questionamo-nos aqui, por exemplo, se algum indivíduo interessado em comprar uma

casa o faria antes de a conhecer meticulosamente. Neste sentido, porque será que o

utente tem que se sentir confortável no lar sem antes o conhecer? Como poderá ele

tomar uma decisão voluntária de entrada no lar sem nada conhecer do seu ambiente

humano e até físico?

Esta situação torna ainda mais difícil a decisão acerca do ingresso no lar, tanto mais que

os idosos sabem que, na generalidade dos casos, se trata de uma decisão de carácter irreversível. É impossível oscilar, ter dúvidas e, ainda que temporariamente, voltar atrás, senão vejamos, é o próprio regulamento interno, nas

suas disposições finais, que adverte para o facto de que, se um utente abandonar o lar,

só excepcionalmente, e no caso de não existirem pedidos em lista de espera, poderá

solicitar a sua readmissão. No caso do lar em análise, e dada a dimensão da lista de

espera, esta situação de readmissão parece-nos praticamente impraticável.

Pudemos constatar que, pelo menos ao tempo em que a assistente social trabalha na

instituição, nenhum idoso havia desistido da sua estadia no lar. Apenas se verificou um caso de expulsão de um idoso por não ter cumprido com regras da instituição.

Alguns, ainda que demonstrem arrependimento face à decisão de entrada no lar nada

podem fazer, pois não têm alternativas às quais possam recorrer. Quando a

questionamos sobre se alguma vez pensou em abandonar o lar, a D. Palmira diz-nos:

“Quantas vezes… (risos). Ainda ontem disse à Sandrinha [animadora sócio-cultural] queria telefonar para o meu filho e que ia embora. O meu gosto digo, sou franca era ir embora, e não olhar para trás”. D. Palmira

Há ainda os que lutaram sozinhos pelo internamento no lar. A D. Otília relata-nos o

seu fadário e tempo de espera. Expõe-nos a sua situação de espera angustiante pela

definição de um futuro que se avizinhava incerto e, até, assustador.

“Fui eu… [que tomou a iniciativa de se inscrever no lar]. Andei a correr 3 anos para aqui, 3 anos não são 3 meses, e a Madre, quem me atendia era a Madre, uma baixinha que está na porta, sabe quem é? Ela é que me atendia e dizia sempre que não havia lugar, não havia lugar mas eu vinha às compras ali ao supermercado, ou ao mercado mesmo, lá em baixo e vinha sempre aqui. Umas vezes

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vinha com o neto, outras vezes vinha sem o neto (…). Era, e então vim para aqui, andei um ano, andei outro, vinha sempre aqui. Um dia, na última vez que vim, a pedir, na mesma como o costume, as Madres disseram assim: não há lugar... eu disse assim: oh Madre, por favor, então em 3 anos, não me diga que não morreu alguém, havia de ter morrido gente, para haver uma cama! Ela ficou-se assim um bocado embaralhada, tu estás a falar a verdade e pegou e inscreveu-me. Foi para aqui que eu vim assim…”

A ficha de inscrição a que a idosa fez referência traduz-se, nem mais nem menos, numa

folha de papel onde constam alguns dados sobre o utente e um conjunto de documentos que tem que entregar no lar para que o seu processo de admissão se

possa efectuar.

No entanto, a admissão do utente fica dependente da aprovação do seu processo de

candidatura. Para que tal suceda, terão de ser ponderados diversos critérios45 sobre os

quais não existe, de forma sistemática, informação nos processos. Quando existe, diz

respeito, sobretudo, aos pareceres profissionais na sequência das visitas domiciliárias

feitas pela assistente social responsável. No entanto, não existe um documento ou um protocolo de recolha de informação onde a mesma seja sistematizada. Só após se

considerar que se reúnem condições para que o utente possa vir a ser integrado no lar é

que se prossegue para o preenchimento da ficha de inscrição/admissão fornecida pela

instituição.

O preenchimento da mesma fica a cargo do utente, seu familiar ou, na impossibilidade, da Assistente Social que é quem acolhe o utente nesta fase de admissão. Pensávamos, claramente, que esta seria uma ficha que permitisse aos

profissionais e direcção a obtenção de informação acerca das reais condições de vida

dos utentes e motivos que justificassem e pudessem estar na origem do internamento.

Não obstante, foi com alguma estranheza que constatamos que a ficha era composta por três partes, nenhuma das quais substantiva do ponto de vista da informação sobre o utente. O primeiro ponto destina-se à identificação do utente,

contemplando apenas a solicitação do nome, morada, telefone, naturalidade, data de

nascimento, estado civil, e o pedido de números do B.I, Cartão de Contribuinte e de

Beneficiário. A segunda parte destina-se a registar o nome e contacto do familiar

responsável, deixando claro qual o seu grau de parentesco. Contempla-se, ainda, a

possibilidade de registar um outro familiar ou amigo disponível para assumir a

45 De acordo com o ponto 9, do capítulo II, do regulamento de entrada, esses critérios constam de: data de entrada do processo para lista de espera; a avaliação de necessidades circundantes, como sendo ausência de apoio familiar, insuficientes recursos económicos e de condições habitacionais, ou outras que impossibilitem a permanência do idoso no seu domicílio, mesmo que o apoio de Centro de Dia ou Apoio Domiciliário prestado por alguma outra instituição, desajustamento familiar grave, e outras; avaliação física e mental; manifestar vontade de ser admitido na instituição.

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responsabilidade pelo idoso. O terceiro ponto enumera um conjunto de 13 itens46

referentes a documentos que o utente tem que entregar para que o processo se conclua.

Inclui ainda um espaço destinado ao registo da religião que o utente professa, o que não

é de estranhar dado o carácter de ligação da instituição à religião católica. Por fim,

regista-se a data da inscrição, assinatura da direcção, direcção técnica e a referência à

data, quando tal situação se verifique, em que se iniciará o internamento em lar.

Não é feita referência a dados relativos à rede de apoio familiar, ao número de filhos, à

proximidade e intensidade de contactos e afectos nem quanto ao apoio prestado. Da

mesma forma não se regista a presença de redes de vizinhança ou amizade que possam

prestar apoio ao idoso, nem mesmo a presença de redes de apoio formal, como os

serviços de apoio domiciliário. Em suma, denota-se uma lógica predominantemente burocrática no processo de recolha de dados, para a filha individual do utente, e uma ausência, ou quase ausência, de informação socialmente relevante.

Não se estabelece, com o utente, um diálogo onde a dimensão habitacional, de saúde,

de funcionalidade, económica surjam de forma premeditada e com objectivo concreto da

obtenção de dados e construção da história de vida do indivíduo. Apesar de muitos

desses dados se encontrarem registados nas várias declarações médicas, de pensões…,

isso não devia invalidar que esses assuntos fossem abordados nesse primeiro encontro e

em outros que se pudessem vir a suceder. No entanto, não há um objectivo declarado no

sentido de que se converse sobre esses temas. É como se o poder e o peso dos papéis fosse superior ao poder da palavra.

Em algumas circunstâncias é realizada visita domiciliária, sobretudo nas situações

que são tratadas directamente pela assistente social e não por elementos da direcção,

como forma de atestar as circunstâncias de vida do idoso. Após a análise dos processos

individuais, apenas se constatou um caso, na sequência de uma visita domiciliária a uma

residência com bastantes condições de conforto, em que o assistente social aconselhou

o casal que se estava a candidatar ao lar a conservar a sua casa, pelo menos até o

período da sua adaptação ao lar, precisamente por considerar a eventual possibilidade

de o casal não se adaptar à vida na residência, dadas as condições privilegiadas em que

46 Os referidos documentos constam de uma certidão de nascimento, atestado de residência (Junta de Freguesia); certificado do médico (saúde mental); raio x pulmonar; fotocópia do B.I., cartão de beneficiário da segurança social, cartão de contribuinte e eleitor; fotocópia do documento comprovativo da pensão ou pensões que recebe mensalmente; análises completas; cartão do centro de saúde a que pertence; relatório médico de família do centro de saúde sobre as doenças do utente e respectiva medicação que está a tomar; documentos comprovativo dos rendimentos do(a) idoso(a); seis fotografias actualizadas.

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habitavam. O Sr. Mateus relatou-nos como o Assistente Social os havia aconselhado a

conservarem a sua casa.

“O Assistente Social vai sempre a casa dos candidatos, foi a minha casa e esse Sr. quando entrou lá em minha casa disse-me, textualmente, por estas palavras, o Sr.Mateus sabe bem o que é o lar? Imagino, imagino; então o Sr. quer trocar esta independência da sua casa, isto dentro de minha casa, o Sr. com uma casa destas, quer trocar esta independência por um lar? Você pense bem no que vai fazer (…) Foi, foi, foi essa decisão que eu tomei logo. Pode ter sido um bocadinho drástica… mas foi assim que eu assumi. No entanto ele, o Dr. aconselhou-me; o Sr. não entregue a casa, o Sr. deixe estar… não faça isso já, fique com a sua casa em seu poder o mais tempo possível, o Sr. pode querer vir passar os fins de semana aqui à sua casa, enfim pode não se dar bem no lar e regressar a casa…” Sr. Mateus

Regra geral, essa situação não é aconselhada, talvez até seja desincentivada, porquanto

os próprios técnicos sabem que, uma vez ocorrida a desistência do idoso, dificilmente seria possível uma readmissão. Os próprios técnicos, entendendo que

os utentes que recorrem ao lar o fazem numa situação extrema de necessidade, partem assim do pressuposto quase inequívoco de que efectivamente a entrada em lar se configura num processo irreversível, contribuindo para agudizar o sentimento de

sofrimento daqueles utentes para os quais a entrada em lar nunca foi uma solução

minimamente desejada.

De acordo com Santiago, as principais preocupações que deveriam estar presentes no

trabalho do profissional, antes da entrada em lar de qualquer idoso, seriam dar resposta

aos idosos que realmente necessitem do apoio do lar, tendo em atenção a existência ou

não de meios de apoio ao domiciliário, assim como as listas de espera existentes. Isto

implicaria um enorme rigor na avaliação e pressupunha que o profissional actuasse como um verdadeiro filtro, de forma a que apenas fossem avaliados como urgentes os pedidos que não tenham outro tipo de alternativas no seu meio. Por outro lado,

seria de todo necessário que os profissionais não se deixassem influenciar por pressões

de familiares, políticos, etc. que muitas vezes entendem a residência como a solução

mais adequada para o idoso quando, na verdade, esta se configura como a solução mais

adequada para os próprios cuidadores familiares (Santiago, 2003:283).

Todos estes dados, entendidos como pertinentes, ficam sob o poder da instituição e

materializam-se neste dossier pessoal que, na verdade, substitui o que deveria consistir num historial completo.

Sem querer ir tão longe como Goffman, que afirma que as práticas burocráticas de

ingresso têm como função latente fazer com que a pessoa ponha em causa as certezas

que tinha sobre si e sobre quem era importante para si, acusando-as mesmo de

mortificarem o indivíduo, Barenys concorda que estas práticas, relacionadas com a

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indagação económica, de doenças, do grau de necessidade…, adquirem um tom degradatório. Admite mesmo, de acordo com Goffman, que “as formalidades de

admissão mereceriam denominar-se “condicionamento” ou “programação” porque (o

internado), assim, despojado ao chegar, deixa-se nivelar, homogeneizar e transformar

num objecto que se entrega à organização de estabelecimento de maneira a que nada

possa obstaculizar a rotina das operações administrativas” (Goffman, 1973, p.32 cit in

Barenys, 1990:117). Com efeito, não são tomados em conta os dados, as dimensões mais pessoais em que a pessoa se apoia para configurar a sua identidade pessoal, aqueles que configuram a sua história de vida e que as torna únicas e dignas de

consideração, mas apenas dados relativos aos indivíduos enquanto pertencentes à

categoria de “ser social”. Tal facto não deixa de revelar o escasso valor social que se

atribui à pessoa idosa quando entra na residência.

Apesar de não existir nos processos dos utentes referência à sua história de vida, ainda

que incompleta e resumida, pois concerteza que este processo nunca se encontra

completamente acabado, a assistente social elabora uma informação social acerca da

situação de determinado utente, cada vez que um novo utente é por ela proposto para a

entrada. Em nenhuma circunstância, a assistente social toma a decisão relativa à entrada de um residente, nem tão pouco participa em reuniões da direcção.

Contudo, uma vez que trabalha a par da encarregada geral – a madre superiora – e que

previamente discute com ela a situação de idosos que pretende propor para

internamento, poder-se-á considerar que, por via da madre superiora, há, nas tomadas

de decisões, uma influência directa do trabalho de auscultação de necessidades e

definição de prioridades para a entrada, levados a cabo pela assistente social. Essas

informações sociais, contemplando os pareceres da assistente social, não regressam,

após tomada de decisão, ao processo do utente, de modo que, se a assistente social

mudar repentinamente, o profissional que lhe seguirá não terá acesso a informações socialmente relevantes acerca dos idosos, suas histórias de vida e motivos conducentes ao internamento. Esta situação foi sentida pela profissional em causa, a

qual se confrontou com essa dificuldade há 2 anos atrás aquando da sua entrada. Apesar

disso, continua-se a reproduzir esta prática de não registo acerca da evolução da situação dos utentes em lar. Não só a assistente social não vai registando regularmente

ocorrências relativas à vivência em lar dos utentes, salvo raras excepções, como a

mesma tendência se verifica nos restantes profissionais qualificados e que estabelecem

contacto regular com os utentes. De resto, só a madre superiora e a assistente social têm

acesso aos processos individuais que se encontram fechados num armário ao qual

nenhum outro profissional tem acesso. Se por um lado se pretende salvaguardar a

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confidencialidade dos dados referentes à vida dos utentes, e assim assegurar o respeito

pela sua privacidade, por outro lado, não se entende o processo do indivíduo como um instrumento de trabalho a ser rentabilizado e utilizado pelos vários profissionais, quer enquanto elemento de diagnóstico que permanentemente se devia ir

refinando e actualizando, quer como elemento materializador de um projecto de vida que

em equipa se vai traçando para os diversos utentes que aqui residem.

Quando se realiza uma entrevista de pré-ingresso, que pressupõe já uma disponibilidade

da instituição em aceitar o utente, a assistente social procura assegurar-se se é de livre vontade que o utente deseja entrar para a residência. Por outro lado, procura

aproximar-se um pouco mais da família e tenta, de alguma forma, assegurar que a família acompanhe o utente no processo de entrada e nas fases que se seguem .

Para além de algumas informações importantes, respeitantes ao apoio diário ao idoso,

informações essas habitualmente de carácter médico (qual o centro de saúde e o médico

que acompanha o utente, que medicação toma, disponibilidade do familiar no

acompanhamento em consultas…), procura-se negociar com a família o processo de

entrada, informando-se sobre o futuro pagamento a efectuar ao lar47, assim como sobre o

processo de entrada dos bens do idoso no lar, com vista à preparação do seu

internamento.

Relativamente ao pagamento, de referir que não se equaciona nenhuma jóia de entrada como requisito necessário ao ingresso dos utentes. Desconhecem-se

situações de pagamento de qualquer jóia pedida pela instituição, não obstante os

utentes, por vezes, insinuarem que algumas pessoas poderão acelerar os seus

processos de entrada por via da oferta de quantias avultadas ao lar. Se esses

pagamentos existem, não são do conhecimento da assistente social da instituição, que,

salvo nas situações de utentes que entram directamente por via da direcção, acompanha

os processos de admissão e entrada dos utentes. Curiosamente as situações de ingresso de indivíduos por via da direcção ocorrem, muitas vezes, sem o seu conhecimento prévio, sendo os utentes acompanhados habitualmente pela

encarregada geral da instituição. Salvo pequenas doações que os utentes pretendem

deixar ao lar após a sua morte, como uma pulseira ou um relógio em ouro, alfinetes de

gravata, broches, o dinheiro que à data estiver na posse da instituição e pertencer ao

utente, e que por regra é uma quantia pequena, ou doações que já tenham realizado, por

iniciativa do próprio utente, como um quadro, um aparador, um anel e que estão

47 O pagamento é decidido em reunião de direcção, em função do grau de dependência do idoso, após análise dos relatórios médicos referentes à situação de autonomia/dependência do idoso. Assim, o utente pode pagar 70% do seu rendimento, se for autónomo ou 85% se for dependente.

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registadas por escrito no processo do utente, ficam para a instituição. Apenas se

conhecem duas doações mais significativas, por iniciativa dos próprios utentes. A

primeira situação diz respeito à doação que o único casal que reside no lar efectuou, à data da sua entrada, como forma de garantir a aceitação da sua entrada e alguns privilégios, designadamente, a permanência num quarto até à morte do segundo. Após

tentativas infrutíferas de entrada noutros lares, o Sr. Mateus fez a mesma proposta ao lar

em análise que acedeu positivamente à mesma.

“O que eu fazia lá em cima, [a outra instituição] é a mesma proposta que eu faço ao lar, entro com os 6 mil contos, faço a doação da minha casa e todo o recheio e pago aquilo que todos que tiverem que pagar. (…) eu também compreendo que temos que, os utentes vão usufruir daqueles benefícios têm que contribuir com algum para amenizar a divida que o lar tem perante os bancos [relativa às obras de ampliação]…”

Não deixando de ser uma proposta muito útil ao lar, a madre superiora ainda o

aconselhou a diminuir o montante em dinheiro como forma de o utente ficar

salvaguardado em situação de necessidade do casal, situação esta que se veio a

verificar. No entanto, o senhor Mateus está convicto de que, se mais casais fizessem

propostas semelhantes, entrariam certamente para o lar, pois como ele refere:

“Ninguém quer nada mas andamos todos atrás do mesmo (…) não há ninguém que se chegue à frente como nós costumamos dizer, não vejo ninguém a chegar-se aí e fazer uma proposta vantajosa para a instituição. Se houver casais que façam uma proposta vantajosa de certeza que entram…”

Por motivos diferentes, relacionados com a necessidade de retaliar as filhas e o genro

que, abusando da relação de confiança que existia com o pai, lhe extorquiram dinheiro e

o utilizaram sem a sua autorização, para além das más palavras e indiferença a que

estava votado pela família, o Sr. Guilherme resolveu arrendar a casa aos próprios de forma a que fossem obrigados a pagar uma renda cujo montante seria oferecida pelo Sr. Guilherme ao lar. Esta situação foi igualmente da iniciativa única do próprio

utente.

“Eles não me pagam nada de aluguer e eu vou-lhe cobrar o aluguer mas o lar é que fica com ele, vou doar esse dinheiro ao lar e o lar depois que pague a contribuição (…). Agora vai ficar ferida [filha] e com quem é que ela fica ferida, é comigo, é mais uma nódoa que eu vou ter no corpo, é mais um castigo que me vão dar., seja ele para onde for. Eu quis fazer uma vingança por aquilo que ele me disse [genro], que eu que me deitasse abaixo de uma ponte, eu não podia por outro meio fazer vingança nenhuma, que até podia doar enquanto vivo a minha casa ao lar, enquanto vivo, eu podia-a doar. Não quis fazer, só quis fazer o aluguer, e de resto, que aquilo é uma boa casa querida, uma casa boa e uma grande garagem, tem um grande quintal que dá para mais outra casa, que estão a fazer uma rua para lá”. Sr. Guilherme

A família, por regra, fica isenta do pagamento de qualquer montante ao lar, salvo em alguns casos de utentes com rendimentos muito diminutos e elevados gastos,

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dada a sua situação agravada de dependência. Nestes casos, a família comporta os

gastos com a medicação e fraldas.

Ainda no que diz respeito à negociação do processo de entrada, acorda-se que o utente ou sua família farão entregar todas os pertences do idoso (roupas e objectos

pessoais de utilização diária) três dias antes da sua entrada, por forma a que sejam marcados com um número identificativo do utente e colocados no devido lugar atribuído ao idoso (quarto e armários que lhe cabe), de acordo com o que está

enunciado no regulamento interno e cujo cumprimento tivemos oportunidade de observar,

salvo situações pontuais de alguma desorganização em que não foi possível ter

prontamente os pertences dos utentes nos seus respectivos lugares. Evitam-se, assim, situações de troca de roupas entre os residentes, possivelmente potenciadoras de conflitos e mesmo da despersonalização dos indivíduos, na medida em que as

roupas também contribuem para definir um pouco da imagem e identidade dos

indivíduos. Não seria concerteza agradável ou desejável a qualquer indivíduo ser sujeito

a vestir roupas que não lhe pertencem, normalmente oferecidas ou aproveitadas de

utentes já falecidos. Esta situação pode verificar-se pela prontidão dos idosos ao

evidenciar e comunicar e entrega de alguma peça de roupa que, por engano, tenha sido

colocada no seu armário e que não lhe pertença.

Santiago é de opinião que na entrevista, que ele designa de pré-ingresso, se deve avaliar

a situação do idoso, a qual pode já estar muito alterada desde que o utente formulou o

pedido pela primeira vez. Cabe à equipa interdisciplinar do lar medir os aspectos sociais,

médicos e psicológicos através de uma série de entrevistas realizadas pelos diversos

profissionais qualificados do lar. Segundo o autor, o objectivo final seria o de determinar

se as características da pessoa vão ao encontro da oportunidade disponível e prepará-la

de forma a que a sua entrada seja o menos traumática possível (Santiago, 2003). Apesar

de não estarmos totalmente de acordo com este processo sucessivo de entrevistas condensadas num curto espaço de tempo e desenvolvidas por vários profissionais, pois entendemos que esta pode ser uma devassa excessiva à vida do indivíduo,

contribuindo esta prática para um processo de despojamento, entendemos, porém, que

há informação de natureza menos burocrático-administrativa que poderia ser considerada

para um melhor processo de integração. Reportamo-nos, concretamente, ao

conhecimento acerca das expectativas do utente sobre o que poderá ser a sua vida na residência e, partindo dessas expectativas, contextualiza-lo em função do que vai ser a sua vida no lar. Por outro lado, será de todo o interesse, em nosso entender e

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pelo que já afirmamos anteriormente, dar a conhecer ao utente o espaço físico onde vai

residir, assim como os seus companheiros.

5.3. Entrada e processo de adaptação inicial

Entendemos ser muito importante para a preservação da identidade dos indivíduos a forma como se processa o seu internamento e todo o processo da sua adaptação inicial ao lar. Entendemos que estas fases marcam de forma decisiva a passagem para

uma outra etapa de vida que traz, associada a si, grandes modificação e até perdas

inerentes à vida dos sujeitos. Tal situação, de acordo com o que nos sugere Delgado

(2001), implica um alto nível de ansiedade e até de depressão, que devem ser tomados

em conta. A este propósito, a autora avança com vários factores que podem influenciar

uma melhor ou pior adaptação ao lar, tais como o grau de preparação para a entrada, a

voluntariedade do ingresso, o grau de mudança ambiental, estado de saúde e grau de

dependência do idoso, o tipo de residência em que ingressa (“caseira” ou

desumanizada), a organização, funcionamento e serviços da lar (Delgado, 2001:325).

O que nos propomos questionar é em que medida os profissionais deste lar, sobretudo os mais qualificados, encetam diligências no sentido de que esta mudança ocorra de forma subtil e a adaptação seja a mais satisfatória possível. Dito de outra forma, o que se faz para melhorar e acautelar situações de sofrimento

provocadas por estas mudanças?

Para concretizar tal desígnio, que de resto vai ao encontro dos objectivos declarados da

instituição48, interessa perceber se há uma elevada preocupação em conhecer os gostos, interesses e hábitos de vida do idoso para assim se minimizar o impacto da

entrada e preservar, dentro do possível, a familiaridade das suas rotinas de vida.

Em primeiro lugar, desenvolvem-se algumas acções no sentido de preparar a entrada do

utente. Aqui, ele ainda não é um agente activo, mas sim os técnicos e restantes profissionais que assumem a tarefa de planear e preparar o seu quarto, assim como o lugar que, doravante, ocupará na mesa das refeições e que se pretende que

seja definitivo.

48 O objectivo único da instituição centra-se em dar resposta às necessidades dos utentes, numa perspectiva de abertura e ligação à comunidade, minimizando os problemas afectos às pessoas idosas (Regulamento Interno, Capítulo1, Natureza e Fins da Instituição).

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No que diz respeito à preparação do quarto, e como forma de serenar e de acarinhar o

utente aquando da sua entrada, pretende-se que o mesmo ou os seus familiares levem

toda sua roupa e seus pertences três dias antes da sua entrada. Como já referenciámos,

a sua roupa será identificada através de um número e o seu quarto será preparado com

os haveres do idoso e para que se sinta mais “em casa”, reconhecendo a sua roupa e

objectos que seleccionou para levar. Dizemos “seleccionou” pois, de uma maneira geral,

os utentes não podem fazer-se acompanhar para o lar de tudo o que desejariam. Sobre isto, o regulamento prevê que o idoso possa levar para o lar objectos pessoais

necessários à sua vivência, desde que se adeqúem ao espaço que lhes é destinado,

necessitando da aprovação da direcção. De facto, salvo raras excepções, os utentes apenas se fazem acompanhar da sua roupa pessoal, objectos de higiene pessoal, dois ou três conjuntos de toalhas e lençóis, assim como pequenos objectos pessoais cuja principal potencialidade simbólica é transportá-los à sua vida passada ou à

dimensão de espiritualidade a que frequentemente se ligam. Estamos a falar de

fotografias da família, imagens de santos e da nossa senhora, crucifixos, flores artificiais, pequenos livros de orações, algum pequeno objecto decorativo oferecido

por um familiar ou outra pessoa significativa na vida do sujeito. Estes objectos

estabelecem a ponte com pedaços de vida deixados para trás e, por isso mesmo,

revelam-se de uma grande importância e simbolismo para os idosos. No entanto, outros objectos há, normalmente de maior dimensão, que não podem ser transportados com o idoso para o lar e que normalmente o privam de viver num ambiente que lhe seja familiar. A familiaridade é considerada por Delgado (2001) como sendo fonte de

conforto, segurança e prazer na vida, pena é que os objectos que proporcionam maior

prazer aos indivíduos não possam ser com ele transportados para o seu quarto,

habitualmente partilhado e de pequenas dimensões. Sem essas referências que

permitem que aos indivíduos recordarem a sua vida, rotinas e costumes, torna-se mais

difícil familiarizarem-se com o seu novo ambiente.

A própria decoração também é muitas vezes limitada ao padrão seguido pela instituição e às regras, de carácter funcional, que impedem que os utentes coloquem os objectos onde desejam, dadas as dificuldades acrescidas no momento

das limpezas.

A propósito desta questão, múltiplos exemplos poderiam ser dados reforçando o facto

dos utentes não se poderem acompanhar dos objectos que lhes são familiares. Em

alguns casos, nota-se mesmo a expressão de uma nostalgia pelo facto de

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repentinamente terem que se desfazer do património que tanto lhes custou a

conseguir.

“Eu só trouxe a minha roupa, não trouxe mais nada. Eu quando vim para aqui, quando cheguei à maré de vir para aqui, dei as minhas coisinhas todas de minha casa que tinha... Tudo uma casinha que eu tinha. Tinha muitas coisas guardadas…” D. Palmira

A D. Fernanda, relatando também as saudades das suas “coisinhas”, acrescenta a

discordância e a plena consciência de que por vezes as regras de tratamento são

desiguais. É mais o receio de represálias ou de problemas desnecessários que torna

alguns utentes resignados e não tanto a ausência de consciência de que estas situações

ocorrem. É igualmente curioso notar que, apesar das contrariedades, a presença de

algum elemento/actividade do interesse e gosto da utente, neste caso a música e aulas

de canto, contribui para facilitar a integração e uma melhor adaptação de alguns utentes.

“Que dá saudade à gente deixar as nossas coisinhas… Mas depois fiquei toda contente…tive saudades da minha casa, chorei a noite toda mas depois fui assim: o que é que eu fazia? Não tenho para onde ir, não tenho filhos, mesmo os filhos que tivesse, não podiam ter que eles iam à vida deles (…) Não vendi as coisas que eu tinha, trouxe a roupa da cama, não trouxe tudo, trouxe o que precisava, quando acabar mando vir mais, tenho muita limpeza, mando vir…a Madre não quis que eu trouxesse a mobília, era muito linda, toda trabalhada e eu disse à Madre se me deixava trazer a mobília mas não pode ser. Fiquei com pena, mas o que hei-de fazer? Não pude fazer nada (…) Não deixaram…uma televisão ofereceu-me, eu tinha uma grande, depois dei a uma sobrinha minha, elas se calhar não deixam, o meu enteado comprou-me uma pequena. A Madre Vitória não queria televisões nos quartos, umas têm outros não têm, não há direito disso (…) Não me custou muito porque depois veio música para aqui, a D. Maria do Carmo, eu comecei a cantar…” D. Fernanda

Como referimos há pouco, há contudo algumas excepções a esta regra. O caso mais

relevante diz respeito à situação do único casal do lar que, como entrou em condições

diferentes da maioria das pessoas, desfruta de algumas benesses especiais que

ajudaram em muito à sua adaptação. Como era do interesse do lar libertar a casa do

casal, para assim a poder arrendar, a direcção aceitou que a maior parte dos objectos

que ela continha fossem distribuídos pelo próprio lar. Mesmo assim, o Sr. Mateus

deparou-se com algumas dificuldades pois, numa primeira fase, a direcção entendia que, pelo menos a mobília de quarto teria de ser igual à dos restantes quartos, que é estandardizada, pois essa era uma regra da casa. Após bastante insistência a

direcção acabou por ceder. Assim é possível ao Sr. Mateus e D. Arminda visualizarem a

maior parte das coisas que preenchiam a sua casa.

“Mas ela fala, pergunta [a esposa]: “oh Francisco não tens saudades da nossa casinha?” Eu? A minha casa é esta, está aqui a nossa casinha, tu entras aqui em todos os cantos da casa e vês aí os nossos móveis espalhados pela casa toda. Então se eu estou bem (…) a minha admissão cá da casa estava acordada mas o que estava a trazer problemas era a minha mobília porque eu insistia que queria trazer a minha mobília de quarto e eles insistiam que não podia ser porque os quartos estão mobilados todos por igual e o meu quarto já estava mobilado. Olhe fui eu que o desmobilei, fui eu que desarmei as mobílias do meu quarto e levei lá para cima para o sótão, as camas e tudo isso, compreende? Se eu vou doar a minha casa ao lar, o recheio todo da minha casa vem para aqui e então a minha mobília

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para onde vai? A minha mobília de quarto para onde vai? Para quem vai? Se toda a minha mobília de minha casa vem para esta casa, a minha mobília de quarto também vem. Ai, tem que ser as mobílias todas iguais e não sei quê (…)” Sr. Mateus

Ainda no que diz respeito à preparação do quarto, cabe à assistente social, com aprovação última da madre superiora, decidir em que quarto vai ficar o novo residente, em função das disponibilidades existentes. Os critérios que norteiam esta

decisão prendem-se substancialmente com a compatibilidade de personalidades, hábitos, gostos… se bem que, em nosso entender, em alguns casos não existe um conhecimento tão aprofundado do utente, à data da sua integração, que permita assegurar com sucesso este trabalho. Quando o utente que entra já é bastante

conhecido pelas profissionais, normalmente por já estar à espera desta possibilidade há

algum tempo e ter feito diversas diligências no lar, concernantes ao seu processo de

entrada, as possibilidades da estabelecer empatia entre utentes que residirão no mesmo

quarto é maior. Mas isto nem sempre acontece e é, por vezes, fonte de grande ansiedade e dificuldade de adaptação.

“Eu dou-me bem com todos graças a Deus. Só com aquela que está no meu quarto é que não. Com a Quina das Couves [apelido fictício]. Pois, ela, eu noutro dia cheguei ao quarto fechei o estore e janela, e ela foi abriu a janela, deixou-me ficar com a janela toda aberta, toda a noite. Ai eu ontem… [com ar muito zangado]. Está sempre a mandar vir comigo, sempre a mandar vir comigo… Vamos a ver, ou mudo de quarto ou de qualquer maneira” D. Palmira

O discurso da D. Fernanda é igualmente ilustrador da antipatia estabelecida com uma das colegas de quarto com quem teve que partilhar o espaço aquando da sua entrada.

“Não as conheci, a Madre mandou-me para aquele quarto e eu fui. O que eu não gostei foi da Maria [nome fictício], nunca gostei daquela senhora, não por nada, por ser muito esquisita. Uma vez sem querer, a ajeitar a mesinha de cabeceira deitei-lhe duas coisinhas ao chão, mas não partiu nada; parti senhora? Ainda agora aqui chegou já está a deitar coisas ao chão! Olhe minha senhora eu cheguei agora mas se for preciso eu falo com a Madre, ela que me tire daqui para outro quarto porque já estou a ver que não gosto muito da senhora porque a senhora compreenda que não foi por querer, e se eu parti alguma coisa eu pago-lhe, a senhora parece esquisita. Eu vim para onde me mandaram e a senhora também a mandaram para aqui não mandaram? Nunca gostei dela, não por nada, não me tratava mal mas… Caiu-me mal, caiu-me que ela era muito esquisita. Por exemplo, eu ia ao quarto de banho, ás vezes tocava-lhe na cama sem querer e ela Deus me livre…oh minha senhora toquei-lhe na cama sem querer…sabe o que a senhora precisava? Era estar lá para Lisboa, no hotel Rivoli, você é rica não viesse para aqui, porque está lá a Beatriz Costa e você pode ir para a beira dela, tem cinema, tem teatro, tem tudo lá, na pensão Rivoli…” D. Fernanda

Quanto à marcação da roupa, notamos que, por regra, quando o utente chega ao lar já encontra o seu espaço – quarto - devidamente organizado com a sua roupa no armário. No entanto, são muito frequentes as queixas dos utentes pelo facto de apenas lá se encontrar uma parte dessa roupa, pois como referiram as funcionárias

em vários momentos, o espaço é pequeno para acolher todas as vestimentas e sapatos dos utentes. Alguns idosos resolvem dar parte dessas roupas, normalmente

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aquelas que já não estão tão boas, ficando apenas com as mais novas. No entanto, isto

não deixa de representar, mais uma vez uma perda “à força” de objectos do indivíduo que, para ele, ainda eram significativos e caracterizadores de si, do seu gosto e da

sua imagem junto dos outros.

“Aqui deram-me ordem para eu entrar, e foram buscar os meus fatos, eu ainda tenho dois fatos na cave, dois fatos, uma gabardine que ainda não usei e um quispo, daqui do lado de fora. Isto é muito apertadinho para quem tem muita coisa. Quando vim para aqui dei para aí quatro fatos… dei uns fatos, também já não estavam muito bons, eu agora era capaz de andar com eles, olhando o que deparei aqui porque muitos aqui usam roupas que são dadas, eu tinha e ainda bem. Não trouxe tudo, entreguei para aí cinco pares de sapatos, já não eram novos, os melhores fiquei com eles… Foram cinco ou seis pares, estão por baixo do lavatório, lá uns em cima dos outros. Isto é pequenino…” Sr. Pedro

Quando os idosos não estão disponíveis para doar a sua roupa, de acordo com as

estações do ano, elas são guardadas em armários na lavandaria da instituição, estando distantes dos utentes, ou ainda em armários que se situam acima do roupeiro, de difícil acesso aos utentes, tornando-os dependentes das empregadas, e

da sua disposição, diga-se, para aceder a determinada indumentária necessária.

Muito embora não caracterize a regra, pudemos presenciar a entrada de uma utente, visivelmente fragilizada na sequência desta transição para o lar (de alguma forma

pressionada pela família que habitava longe da utente e não tinha forma de assegurar um

acompanhamento ao seu processo de envelhecimento, tanto mais que esta enviuvara e

vivia totalmente só) que, por descoordenação das funcionárias não encontrou o seu quarto devidamente preparado para a acolher. Como também ninguém lhe perguntou

os hábitos, não sabiam que a senhora costumava dormir a sesta após o almoço. Assim,

logo no primeiro dia, para além do cansaço emocional sentido fruto da intensidade da

experiência da entrada, a utente ainda estava privada do seu descanso que habitualmente lhe repunha as energias para o resto do dia. Valeu o esforço da

animadora sócio-cultural que, bastante atenta aos utentes, não desistiu enquanto não

assegurou que a utente já tinha quarto e sabia deslocar-se para lá.

Notamos ainda que, sempre que possível, a assistente social modifica o mínimo a configuração dos quartos para que os sujeitos não tenham que estar permanentemente a mudar e a terem que se adaptar a novos colegas, sobretudo

quando as relações existentes são positivas e a interacção entre colegas é de forte

solidariedade e mesmo amizade. Assim, acontecem algumas situações de utentes que

entram e se vão instalar precisamente na cama que foi desocupada pelo utente falecido.

Contudo, quando não é possível preservar a estabilidade desejada, e se torna necessário

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fazer mudanças, os utentes referem que, na maioria dos casos, não lhes é pedida opinião sobre as mudanças a operar, situação esta que pudemos verificar. Em alguns casos nem lhes é sequer explicado o motivo de determinada mudança, nem lhes é

solicitada a sua concordância. São simplesmente avisados da mudança decidida por

entidades superiores que não devem contrariar. A D. Rosa expõe a sua experiência:

“Eu fui passar o Natal à minha amiga e quando cheguei aqui, vim aqui abaixo ao salão ver quem é que estava aqui, quem é que não estava, a minha amiga veio comigo aqui abaixo e estava ali a Fernanda e a e a Raquel, eram as duas que estavam ali no salão a ver a televisão. E as primeiras palavras que a Ângela me deu foi o seguinte: tu vais mudar de quarto. Eu disse assim: eu vou mudar de quarto? Vais; digo assim: não sei de nada. E não, eu não sabia de nada. Lá fui para cima, que ainda estava lá em cima claro. No outro dia de manhã encontro a Madre Superiora na entrada: oh Rosa olhe você vai mudar de quarto; e eu disse: pronto Madre, se a Madre entende que tem que ser: diz ela: sabe como é, ano novo vida nova; eu disse: pronto Madre, está bem.Não, não explicaram nada. E eu disse: pronto está bem, oh Madre se é para mudar é para mudar, pronto. Diz ela: amanhã já dorme cá em baixo, já viu o quarto? E eu disse: não Madre não vi…” D. Rosa

É previsível, nos primeiros tempos, a dificuldade em conviver com pessoas que não se conhece. São, na verdade, momentos críticos e estão carregados de intenso

simbolismo. Em rigor, os indivíduos irão aceitar ou rejeitar um novo contexto de vida, que

é, desde logo, marcado por um conjunto de rituais de iniciação e de passagem que lhe

criam a sensação de surpresa permanente e de um certo constrangimento. Ibarra,

analisando o comportamento organizacional de um indivíduo que ingressa numa

instituição, considera que os indivíduos criam “eus” provisórios com o intuito de se adaptarem melhor às transições de função ou de carreira (Ibarra, 1999, in Andrade,

2003). Apesar destes “eus” provisórios, aos quais Andrade se refere como figurações

estratégicas ou constructos mediadores da experiência e da acção, se poderem tornar

exploratórios e serem moldáveis às circunstâncias organizacionais em presença,

permitindo que as imagens se adaptem e as identidades ganhem mobilidade, a verdade é

que “permanece, em fundo, uma forte vontade de auto-institucionalização, uma forte

vontade de presença nas redes relacionais e nas redes de sentido” (Andrade, 2003:64).

A análise das narrativas dos indivíduos apoia-nos na tarefa de compreender se estes

estão disponíveis para aceitar as regras institucionais ou, contrariamente, desejam

isentar-se delas ou mesmo violá-las, dado que não podemos resumir a entrada,

descoberta e aprendizagem do espaço organizacional do lar como meros ajustamentos

funcionais. Dado que “o comportamento organizacional e as suas racionalidades

múltiplas têm, inevitavelmente, uma tradução narrativa,”, tal facto significa para um recém

chegado à instituição, “incluir-se, antes do mais, num tipo de narração e familiarizar-se

com as narrativas legitimadas dessa sua nova organização” (Andrade, 2003:67). Só

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conhecendo os lugares das narrativas, das histórias, das intrigas, da comunicação é que

o indivíduo encontra o seu lugar e fala e de acção na organização.

O momento da entrada da pessoa no lar é marcado por um breve ritual de apresentação que o introduz ao colectivo, ao qual vai pertencer. Em alguns casos,

argumenta-se que o novo residente não é apresentado a todos os idosos para que não

se assuste com alguns deles. No lar, o ritual de apresentação nunca é preparado.

Acontece tendo em conta as circunstâncias e a hora a que o idoso entra no lar. Alguns

idosos foram apresentados à comunidade que se encontrava na sala de convívio, outros

no refeitório, outros ainda nem chegam a ser apresentados.

Como nos refere Barenys, “à margem da apresentação oficial que, como se vê, se reduz

à sua mínima expressão, em todas as residências, em geral, a pessoa recém chegada

desperta a curiosidade dos que já estão ali instalados (Barenys, 1990:118). Os idosos

querem saber coisas, detalhes da vida do recém-chegado, pois a sua chegada funciona

como novidade dentro do mundo rotineiro e monótono do lar e suscita aos idosos, por um

lado o sentimento de medo face ao carácter do novo residente ao qual, mais uma vez, se

terão que adaptar e, por outro lado, o sentimento de tutela, no sentido de ajudar e

aconselhar o recém-chegado a adaptar-se ao seu novo modo de vida.

No seguimento da apresentação, mostra-se ao residente qual o seu quarto, ou lugar no quarto, e o local onde vai sentar-se no decorrer das refeições, sendo estas

decisões normalmente tomadas pela direcção, sem qualquer opinião do novo utente. Por

outro lado, em relação aos outros locais da residência são de distribuição mais arbitrária

por entre os residentes. Através desta mesma distribuição das pessoas no espaço

expressa-se o poder da organização sobre os indivíduos, tornando-os dóceis e

submissos à disciplina exercida.

Na verdade, há sempre um jogo de forças entre residentes e direcção na criação de espaços pessoais que, de alguma forma, permitam uma apropriação simbólica dos

mesmos. “O interesse em criar um ambiente pessoal é sinal de que a identidade do

residente ainda resiste aos embates de nivelamento a que a existência e tratamento

colectivos o submete reiteradamente. Quanto menos partilhado for o espaço, mais

claramente se manifestam os sinais “territoriais”” (Barenys, 1990:121). Torna-se claro,

portanto, que quanto maior forem as instituições, expondo objectos pertencentes às

mesmas, mais frias e despersonalizadas se tornam.

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Os tempos que se sequem destinam-se à sua adaptação ao lar. Consoante as

características dos idosos e a receptividade que sentirem da parte da instituição, a sua

adaptação será mais ou bem sucedida. Trata-se, pois de um processo individual e

distinto.

O processo de adaptação é, de facto, muito complexo, de forma a que um pequeno

acontecimento não tão feliz o pode perturbar inquestionavelmente. A título de exemplo,

expomos o relato da D. Rosa acerca de um episódio que a marcou, no decorrer do

período de adaptação.

“Oh menina mas eu depois de estar aqui em baixo, eu até encarei bem a coisa, até me adaptei muito bem, até encarei muito bem embora nos primeiros dias andasse meia desconfiada. E tive azar, estava aqui para aí uns três ou quatro dias, tive logo uma desilusão com duas daí, uma, nosso Senhor já levou que já morreu e outra agora está lá em cima, porque essa senhora, está lá em cima numa cadeira de rodas e vinha do refeitório e via muito mal, ela vinha do refeitório e ela durante o dia estava sempre ao pé do móvel grande que tem lá em baixo no salão mas à noite depois de comer sentava-se numa cadeira aqui em cima, onde estão aquelas cadeiras todas, sentava-se ali estava ali pouco tempo para a levarem para cima. Ela nessa altura ainda vinha a pé e ela disse: ai eu não sei onde é que me vou sentar que eu não vejo nada e eu levantei-me e fui puxar uma cadeira: olhe minha senhora sente-se aqui e cheguei a cadeira para a senhora se sentar. Essa tal, que Deus lhe perdoe que ela já morreu e a outra que ainda está lá em cima, começou: não tinha nada que puxar a cadeira, a cadeira dela está acolá. Eu disse: olhe eu puxei a cadeira porque acho que a senhora deve estar sentada aqui, e o que eu fiz agora torno a fazer quantas vezes for preciso. E calei-me e não dei cavaco. No outro dia de manhã, quando a Sandrinha veio eu disse: oh Sandrinha ontem aquelas começaram a resmungar contra mim, eu puxei uma cadeira para aquela senhora se sentar e começaram-me a chatear, disseram que eu estava aqui há meia dúzia de dias e já me queria armar. E diz a Sandrinha: fez isso fez muito bem, faça quantas vezes for preciso e não dê cavaco, não se preocupe com isso. Elas: está aqui há meia dúzia de dias já se vem armar. Oh menina eu fiquei tão…Raio parta os velhos, velha sou eu também, não é? Mas fiquei assim muito triste, caiu-me tão mal aquilo.Mas depois, comecei a, a Fernanda é aquele fala barato mas depois lá começava, íamos à noite para cima, lá falávamos, depois a Maria também não estava, demorou uns três ou quatro dias, lá comecei até a entender-me muito bem e depois pronto encostava-me mais à Fernanda e à Maria e as outras punha tudo de parte. Depois ia muito para a rua, ninguém me apanhava aqui, ia para a rua…” D. Rosa

5.4. A estruturação do quotidiano e o lugar do idoso na vida do lar como condicionantes da preservação da sua identidade e do seu bem-estar

A vivência quotidiana dos idosos no lar pode ser decisiva para a sua adaptação positiva e para o envelhecimento bem ou mal sucedido. A propósito deste conceito,

Fonseca (2005) desenvolve uma reflexão bastante pertinente, reportando-se a uma

diversidade de definições que estão na base de múltiplas construções elaboradas.

Procurando ultrapassar uma visão de envelhecimento centrada na doença, declínio e

incapacidade, faz referência a Rowe e Kahn (1998) que lançam precisamente a questão

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sobre o que significa envelhecer com sucesso? E o que é que cada um pode fazer

para lidar de forma bem-sucedida nesta fase da existência? Estes autores enunciam

diversos factores que permitem que os indivíduos continuem a funcionar de forma eficaz,

tanto física como mentalmente. Procurando ultrapassar uma visão circunscrita aos efeitos

da idade cronológica e ao quadro de referência assente na doença, apontam, entre

outros, factores como a saúde, o funcionamento mental, a alimentação, o exercício físico, as relações sociais o os hábitos quotidianos como decisivos para este processo.

Fontaine (2000) num esforço de análise centrada nas variáveis condicionadoras de uma

velhice bem-sucedida, aponta-nos três condições essenciais para garantir este processo:

são elas a saúde, a manutenção de um elevado nível de actividade e a manutenção da participação social. A propósito da saúde entende que o aumento dos riscos de

doenças e a perda de autonomia não são provocados por factores unicamente

intrínsecos aos indivíduos, isto é factores que escapam ao seu controle, mas conclui que

o estilo de vida e os factores extrínsecos são preponderantes nas pessoas com mais de 65 anos, uma vez que o contributo da hereditariedade diminui em proveito do ambiente, tornando a velhice num processo modulável. Por outro lado, considera

que todos os indivíduos utilizam apenas uma parte das suas capacidades físicas e

intelectuais, não obstante disporem de uma reserva das mesmas que pode ser utilizada

de acordo com as suas motivações e solicitações ambientais. Apesar de, ao mesmo

tempo, considerar que a plasticidade (reservas que o indivíduo dispõe para optimizar o

seu funcionamento) diminui ao envelhecer, está seguro de que os recursos dos indivíduos podem ser activados, aumentados, desenvolvidos, através das aprendizagens a médio e a longo prazo e das práticas de exercitação. A este

propósito enuncia os factores que foram identificados pela Fundação MackArthur, acerca

da velhice bem sucedida, como preditores de uma velhice óptima: o nível de

escolaridade; a capacidade de expiração pulmonar que está muito ligada com a

manutenção das actividades cognitivas; o aumento da actividade física fatigante (sem

excesso), que pode ocorrer no domicílio do idoso ou em seu redor e, em termos da

personalidade, a percepção da sua eficácia pessoal ou autoconfiança. No que diz

respeito à manutenção da participação social, ela define-se através de duas

componentes: a manutenção das relações sociais e a prática de actividades produtivas. Sabe-se que o isolamento é um factor de risco para a saúde e que os

apoios sociais de natureza emocional ou instrumental podem ter efeitos positivos na

saúde. Por outro lado, as actividades produtivas, (cuidar da família, acções

humanitárias, actividade política…) que não têm que ser obrigatoriamente remuneradas,

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dentro da lógica de mercado, para além de serem uma forma de contribuir para a

economia do país, asseguram ao indivíduo a preservação de uma imagem de utilidade para a família e comunidade.

Não poderíamos deixar de referenciar o modelo teórico de optimização selectiva por

compensação, de Baltes e Baltes (1990) que, procura explicar a forma como os ganhos e

as perdas se coordenam para que se atinja uma adaptação bem sucedida à velhice,

centrado na ideia de que a velhice bem sucedida repousa na prossecução de duas

finalidades: a procura de um elevado nível de funcionamento e o evitamento dos comportamentos de risco. Este modelo postula que a velhice bem-sucedida é resultado de uma coordenação dinâmica entre três processos que são a selecção, a optimização e a compensação. O indivíduo, ao seleccionar e especializar-se em

determinadas actividades físicas ou intelectuais da sua preferência vai procurar optimizá-

las, isto é, desempenha-las com o melhor rendimento possível. Assim, mantém o seu

nível de actividade, utilizando os seus conhecimentos e o seu saber (inteligência

cristalizada) para neutralizar os declínios dos desempenhos em actividades de natureza

fluida. O resultado da coordenação entre estes processos visa a manutenção de um

elevado nível de funcionamento nalgumas actividades, ou em domínios mais específicos,

assim como a preservação de um sentimento de eficácia pessoal.

Apesar de todos os esforços envidados no sentido de uma definição clara deste conceito,

Fonseca (2005) sugere-nos alguma precaução, sob pena de entendermos a velhice de

uma forma absoluta e única, quando, na verdade sabemos que ela é acompanhada de

um forte aumento de heterogeneidade. Quando aborda a questão do sucesso, alerta-nos para os perigos que corremos, uma vez que a velhice não deixa de ser uma fase crítica do desenvolvimento humano onde, em última instância, as perdas

desenvolvimentais deixam de ser compensadas. Assim, se por um lado o sucesso não pode ser associado a representações que nada têm a ver com o que se espera habitualmente do processo de envelhecimento, por outro lado ele não acontece por acaso, nem ninguém o atinge de forma isolada, ignorando as circunstâncias sociais e

ambientais envolventes, o próprio processo de velhice, a forma como foram vividos

outros períodos do ciclo de vida, factores contextuais, históricos…

Reforçando esta ideia de que não há uma única forma de envelhecer, porquanto os

indivíduos traçam caminhos únicos de evolução, Paul enuncia que “quando se coloca a questão da velhice bem ou mal sucedida estamos a definir padrões de adaptação do idoso às suas actuais capacidades de funcionamento, no seu contexto de vida,

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implicando com isso quer critérios externos, sociais, relativos ao que se espera do idoso

em cada cultura, quer critérios internos, numa perspectiva individual, o sentir e a vontade

subjectiva. Estes critérios podem não coincidir e acontecer que uma pessoa seja

considerada inapta quando se sente satisfeita, e inversamente, tornando difícil definir

critérios para uma velhice bem-sucedida” (Paúl, 1996: 16). O conceito de envelhecimento

bem-sucedido não reúne, pelo que vimos, um acordo absoluto por parte dos autores,

desde logo porque está ligado a um significado pessoal que cada um atribui à sua vida.

Quer Fonseca (2005), quer Paúl (1996) entendem que este conceito só faz sentido numa perspectiva ecológica, tomando por referência o indivíduo no seu contexto sociocultural, a sua vida actual e passada e a dinâmica de forças que se opera entre as pressões ambientais e capacidades adaptativas, destacando o “sentir

subjectivo de cada indivíduo, completamente idiossincrático, que se compreende à luz da

construção da história de vida de cada um” (Paúl, 1996: 20).

Cabe-nos questionar, neste enquadramento, em que medida o lar proporciona, ou não, oportunidades e incentivos à ocupação dos idosos. Mais do que isso, interessa perceber a natureza, utilidade e diversidade das actividades desenvolvidas, tendo em conta a heterogeneidade do público-alvo. Vimos já que o

sucesso, neste momento de vida, sendo entendido nas suas várias dimensões: da saúde,

auto-estima, relações sociais, actividades produtivas, sentimento de controle percebido…

depende do contexto onde os indivíduos se encontram e nunca se atinge ao acaso, isto

é, é necessário desejá-lo, planeá-lo, encetar acções várias tendentes à sua

concretização.

Quando se habita num lar, estas questões colocam-se de forma privilegiada, na medida

em que, por relação à vida anterior, o indivíduo tende a perder controlo sobre algumas

dimensões da sua vida, o que afectará a imagem que alimenta de si próprio e que, em

parte, lhe é devolvida pelos outros com quem interage.

Apesar de não querermos generalizar nem cair na tentação de que todos poderão

envelhecer com sucesso, entendendo o sucesso como o resultado de todas as premissas

anteriormente referenciadas, a verdade é que, através de combinações diferentes e em

circunstâncias distintas, algumas destas condições têm, efectivamente, que se verificar,

se queremos que o indivíduo viva com níveis significativos de bem-estar. Estamos certos

de que isto dependerá, em parte, dos percursos anteriores dos indivíduos, da concepção

que têm sobre os seus direitos, dos seus recursos pessoais, culturais, efectivos para lidar

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com o envelhecimento em lar. No entanto, estamos igualmente convictos de que parte desse sucesso se ficará a dever ao esforço das instituições em revalorizar as competências dos indivíduos, à forma como a instituição procura despertar para oportunidades de crescimento e aprendizagem, às representações que se passam sobre o que é ser idoso e sobre a utilidade, a imagem e estatuto atribuído a este grupo humano que lá reside.

Interessa aqui dar relevo à dimensão associada ao respeito pelo percurso de vida dos

indivíduos, ao grau de autonomia atribuído aos residentes na tomada de decisões sobre

a sua própria vida e sobre a vida na residência, ao grau de liberdade respeitado na

gestão dos tempos e espaços vivenciais.

Em suma, e para retomar o início do nosso capítulo, a forma como se estrutura o quotidiano do lar e o lugar que o idoso ocupa na vida do mesmo são condições favorecedoras da preservação, ou até do reforço da sua identidade, do seu bem-estar e do seu sentimento de controle percebido? É sobre esta questão que nos

propomos debruçar nos pontos que se seguem.

5.4.1 O despertar e a higiene pessoal

No lar em estudo, o período entre as sete da manhã e as nove horas corresponde ao intervalo que medeia entre o despertar e o pequeno-almoço. As sete horas

corresponde ao início do turno da manhã, em que as auxiliares de lar e empregadas de

limpeza têm como grande tarefa a de preparar os utentes para a primeira refeição do dia,

assim como proceder à limpeza dos quartos e casas de banho. Normalmente as

funcionárias trabalham duas a duas – uma auxiliar de lar e uma empregada de limpeza –

sobretudo para que se possam auxiliar nas tarefas mais pesadas, como o levantar, o

deitar ou o dar banho aos utentes mais pesados ou dependentes.

Apesar de haver uma hora rígida para o pequeno-almoço, não existe uma hora determinada para o levantar. O importante, que todos demostram querer cumprir como

uma regra inquestionável, é o horário do pequeno-almoço, que é às nove horas da

manhã. Ninguém quer correr o risco de ser chamado à atenção pelo atraso, até porque a

situação de um atraso colectivo poria em risco o horário da missa, às nove e meia, que

as madres desejam cumprir escrupulosamente.

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O momento do despertar é determinado ora pelos próprios utentes, quando ainda têm autonomia para se vestirem e procederem à sua higiene íntima, ora pelas

funcionárias, quando são estas as responsáveis pelo tratamento aos idosos.

Nos quartos de duas pessoas, estas tentam coordenar entre si quem primeiro utiliza a casa de banho, sendo habitualmente essa pessoa a primeira a despertar. É interessante

notar que há um desejo bem claro em querer ser-se o primeiro, como se tal significasse prestígio para a própria pessoa, sinónimo de grande autonomia e

cumprimento das regras. O senhor Pedro orgulha-se de poder tomar banho sozinho e de

decidir quantas vezes por semana toma banho. Com isto, estabelece comparação com o

seu colega de quarto que, por estar dependente do apoio de uma auxiliar, é o último a

sair do quarto.

“Pois consigo [tomar banho sozinho]. Há uns que tomam mais banho que os outros. Eu só tomo banho uma vez por semana, já em casa era assim, entendo que não ando a cheirar mal a ninguém, até ver, até ver. E há outros que precisam de tomar banho pelas asneiras que fazem, (…) parece um comboio…aos tiros (risos). Esses precisam de se lavar mais, é o que acontece com o meu colega [risos], (…) há os que não podem, o meu colega é preciso já vesti-lo. Eu daqui a pouco já não chego aos pés para calçar as meias, já estou a sentir dificuldades…” Sr. Pedro

Nos quartos de três ou mais elementos, que acolhem normalmente pessoas em situação

de dependência ou fragilidade, são as funcionárias que determinam a ordem pela qual os idosos têm que despertar, de acordo com critérios de funcionalidade. No

entanto, é habitual que nestes quartos colectivos, o barulho e a agitação associada ao

trabalho das cuidadoras acabe por impedir que os outros utentes possam descansar

sossegadamente, até porque as janelas são abertas quase de imediato, fazendo com que a luz que penetra impeça quem quer que seja de dormir.

“Toninho, Toninho, tas consoladinho a dormir. Bom dia, meu menino. Anda, tens de ir tomar o cafezinho. Tava-te a saber bem a caminha? Deixa lá, olha tens que te levantar que tá um dia bonito… [à medida que lhe empurra a roupa da cama para trás]”

Este barulho e agitação matinais são sobretudo perceptíveis neste momento do dia,

assim como na hora de deitar os mais dependentes. Ainda assim, como os residentes

não se recolhem ao seu quarto todos ao mesmo tempo, variando de acordo com grau de

dependência e necessidade de apoio para se deitarem, assim como dos hábitos

adquiridos de cada um, diríamos que o momento do despertar é sem dúvida o mais dinâmico. Ao longo do resto do dia e durante a noite não se escutam praticamente nenhuns barulhos ou ruídos nestes espaços. Na verdade, as relações entre os

indivíduos passam muito pela preocupação de não incomodar os outros, preservando a

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vida privada de cada um. Isso traduz-se, por exemplo, pelo controlo do ruído que pode

circular nos espaços privados (De Singly & Mallon, 2000).

À medida que os utentes vão despertando deambulam pelo quarto e corredor de acesso à casa de banho, onde vão tomar o seu banho acompanhados pela funcionária,

em pijama, camisa de dormir ou mesmo só com a fralda, sem qualquer constrangimento aparente. Uma funcionária comentava bem alto e rindo-se, aquando

da passagem de um utente com fralda: “Parece o pato Donald”, de forma a que todos

pudessem ouvir e achassem graça.

O número de banhos semanal por utente é muito variável, de acordo com as suas

necessidades e os seus hábitos. Procura-se, sempre que possível, quando o utente entra

no lar e quando se encontra autónomo, respeitar os seus hábitos anteriores, deixando

ao seu critério a decisão quanto à quantidade e periodicidade dos banhos e momentos de

higiene. O senhor Baltazar compara-se com o colega de quarto, referenciando que toma

três banhos por semana, porque trabalha muito, enquanto que o colega só toma um.

“ Eu? Ás oito horas…sobra-me, para fazer a cama, sobra-me. Tenho tempo…faz de conta ele [colega de quarto] toma um banho por semana e eu tomo mais porque trabalho mais, ando por aqui, ando por acolá…Não é que sue muito, eu tomo três vezes por semana. Várias mudas por semana de roupa, visto esta camisola amanhã se for preciso já não ando com esta” Sr. Baltazar

O Sr. Pedro, por outro lado, entende que um banho uma vez por semana é o suficiente.

Já fazia isso na sua casa e, por isso, no lar continuou a fazê-lo, mantendo os seus hábitos anteriores. Demarca-se, nesse sentido, do colega de quarto que entende ter

mais necessidade de banhos.

“Há uns que tomam mais banho que os outros. Eu só tomo banho uma vez por semana, já em casa era assim, entendo que, não ando a cheirar mal a ninguém, até ver, até ver. E há outros que precisam de tomar banho pelas asneiras que fazem, onde se acaba parece um comboio aos tiros (risos). Esses precisam de se lavar mais, é o que acontece com o meu colega (risos) …” Sr. Pedro

No entanto, há um controlo em torno dos que aparentemente não apresentam condições

de limpeza, decidindo-se implementar a regra dos banhos acompanhados cada vez que

se entenda que estes indivíduos não se encontram asseados, devido a hábitos

diferentes. Quando se trata de utentes parcial ou totalmente dependentes de ajuda para o

banho, essa decisão, relativa ao número de banhos, passa a ser da iniciativa da auxiliar

de apoio directo que conta com o apoio da assistente social cada vez que os utentes se

opõem. Pretende-se, assim, criar um ambiente agradável e higiénico, uma vez que “a

vida num colectivo em que existe um contacto permanente de pessoas com distintos

graus de saúde e níveis de auto-controlo pode chegar a ser muito desagradável para os

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melhor conservados se os mais deteriorados não cumprem com as normas de higiene e

auto-cuidado” (Barenys, 1990: 135). Goffman fala-nos de uma forma de mortificação que

se desenvolve nas instituições totais e que se prende com uma espécie de exposição contaminadora de tipo físico, envolvendo a manifestação do corpo, podendo implicar

uma ruptura das habituais disposições do ambiente, como forma de isolamento da fonte

de “contaminação” (Goffman, 1996: 32).

Relativamente aos utentes parcialmente autónomos mas que necessitam de algum apoio

no banho, as horas destinadas ao banho nem sempre são coincidentes com o momento

do despertar, dada a quantidade de pessoas que é necessário arranjar. As funcionárias combinam com esses residentes uma hora para a sua higiene. Esses horários são geridos e manipulados de acordo com os interesses do trabalho das funcionárias.

Para além da perda parcial de autonomia, os idosos ainda têm que se confrontar com as

esperas ansiosas e resignadas para estes momentos da higiene, ainda que isso implique

a quebra com alguns dos seus hábitos diários. O Sr. Avelino, por exemplo, costuma ir dar

a sua voltinha ao exterior todas as manhas. Nos dias da higiene tem que ficar privado

desse seu costume porque, “elas mandam”.

- Bom dia, Sr. Avelino, então por aqui hoje? - Tou à espera que me chame, hoje é dia do banho, e elas vão chamar-me.- Ah, sim senhor. Não pôde ir dar a sua voltinha hoje, não é? - Tem que ser, elas mandam. Tem que se esperar…

Ainda assim, são realizados cerca de 30 banhos diários no lar. Acontece irem para a

casa de banho vários utentes ao mesmo tempo, precisamente porque não quererem ser

os últimos a ser cuidados. Aqui a lógica passa a ser, então, a ordem de chegada à casa de banho. Nestes casos, da realização da higiene em casas de banho colectivas, o

cenário que se observa é algo degradante. Os utentes aguardam nus ou seminus pela sua vez, sentados num banco muito próximo e com visibilidade para o chuveiro, assistindo ao banho de um outro seu colega residente, quase como se de um

espectáculo carecendo de público se tratasse. A porta da casa de banho permanece

aberta ou semiaberta, tal é a movimentação de utentes a saírem e entrarem desse

espaço. Assim, é comum ouvir-se, mesmo dos corredores49, o que lá se passa.

“Sr. Fernando passe para aqui. Ora, ora que bom…Quem te fez mal? A Sónia [nome fictício da funcionária] agora dá-te banhinho, põe-te limpinho e já ninguém te vê [está nu e depreende-se que algo desconfortável]. Assim, fresquinho… Vais pôr-te de pé. Segurar aqui um bocadinho. Abre a perninha…”

49 A investigadora nunca ousou entrar nesses espaços, no momento em que os utentes estavam a tomar banho, por respeito óbvio pela sua privacidade. No entanto, era bem perceptível a forma como decorriam os banho e as conversas estabelecidas, uma vez que quase tudo era percebível a partir do corredor.

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As situações de infantilização, a este domínio, repetem-se indefinidamente, tanto mais que este tratamento que devia ser íntimo passa a ser público, exposto a todos

os que desejem ouvir. Para um espectador menos treinado, é fácil sentir esta forma de

tratamento como carinhosa, uma vez que, regra geral, as palavras usadas são de muita

delicadeza, tanta que chega a tratar o idoso como se de uma autêntica criança se

tratasse. Deixando um utente nu à sua espera, enquanto foi indicar o que vestir a outro

idoso, profere as seguintes palavras:

“Então, demorei muito? Tiveste saudades minhas? Diz que sim, senão não te dou banho! [risos] Tens que começar a andar. Anda lá, olha que eu vou mandar vir um bebé e depois como é? Banhinho, que bô! Queres o sabão? Para lavar as mãozinhas (…)”

Começando a falar sobre a família do utente, na presença dos residentes que

esperavam pela sua vez no banho, perante a tristeza do utente a funcionária diz:

“Olha, eles não vêm, também não precisas. Se precisares de alguma coisa tou cá eu… Levanta-te devagarinho, esfrega-me isso bem esfregadinho. Isso limpinho (…) Agora senta-te que eu estou a segurar. Tira a remela do olhinho, tá bô? Óptimo, vamos lá. Levanta um bocadinho para tirares a toalha do rabiosque. Isso, isso mesmo… (…) Levanta o bracinho para limpar o sovaco (…) Não podes pensar como a outra gente é. Tu fazes tudo. Ainda não tas muito mal. Tu fazes, filho, mais devagarinho que os outros mas fazes, filho! Não é? Tou a falar certo e direitinho? Limpar as mãozinhas, vá! Caminha que vou-te buscar a roupa…”

Como que suspeitando que algo no seu processo de comunicação pudesse não estar

correcto, ou temendo que estivéssemos ali a fazer qualquer julgamento do seu trabalho,

toma a iniciativa de referir o seguinte:

“Onde não for para trabalhar assim não contem comigo. Se fosse para estar aqui com peneiras…Ó senhor isto, ó senhor aquilo, eu não servia. Tem que se impor pela brincadeira, não pela autoridade…”.

O Sr. Afonso, que está no lar há pouco tempo, refere, por exemplo, que não se importa

de se levantar um pouco mais cedo para evitar os “ajuntamentos”, assim como a sua

dificuldade em se adaptar ao banho com o apoio das funcionárias.

“Eu acordar, não tenho hora certa, é a qualquer hora mas geralmente acorda umas duas ou três vezes de noite para fazer chichi, pronto, depois torno-me a deitar outra vez. Geralmente às 7, 7.30 mais ou menos é que acordo e então aí começo-me a lavar, a vestir, a lavar a cara… Ainda hoje de manhã estive a desfazer a barba, para o quarto de banho, para não nos juntarmos todos e procuramos à vez, levantar mais cedo um bocado, ter essas facilidades. Exacto, se não, junta-se tudo e é aborrecido, pronto… mais por causa do ajuntamento, pronto. Desfiz a barba, lavei a cara pronto e depois procurei vestir, tenho muito dificuldade em vestir, vestir tenho muita dificuldade.São, ai são, as duas senhoras que nos tem lavado são maravilhosas. Custa um bocadinho primeiro, uma pessoa estar, elas sabem muito bem o que a gente tem… Claro, pronto não importa. Não é nenhuma novidade, não há problema. Há assim um bocadinho de acanhamento assim ao princípio mas depois acaba por se habituar e pronto, não há problema (risos)”. Sr. Afonso

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Uma grande parte dos residentes vai de cuecas para o quarto vestir a roupa que a

funcionária escolhe e prepara. Mais uma vez é muito raro ouvir-se perguntar ao idoso(a) o que deseja vestir. Até esta oportunidade de pensar sobre a roupa, as cores,

a combinação das peças, os adereços… é desperdiçada, contribuindo, mesmo no que

concerne a uma questão trivial do dia-a-dia, para diminuição das suas capacidades

cognitivas que deixam de ser usadas, treinadas. As funcionárias optam por serem elas a

escolher a roupa pois este procedimento é mais rápido: “Tem de ser, menina, sabe como é, a gente tem de fazer isso senão nunca mais saímos do sítio, são muitos para preparar para o pequeno-almoço”.

Apesar disso nota-se uma certa preocupação estética com a combinação de roupas dos utentes. Normalmente há um esforço em combinar cores, em vestir roupa limpa e

adequada à estação do ano, em não vestir roupa estragada ou collans com malhas

puxadas, em respeitar o preto nas situações de luto… É ainda habitual observar-se o

cuidado em vestir as roupas que pertencem a cada idoso, por isso mesmo é que elas

se encontram discretamente marcadas com um número único que pertence a cada

indivíduo. Só quando entra para o lar alguém muito pobre é que lhe são oferecidas

roupas. Nesse caso, são muitas vezes roupas doadas ou de idosos que já faleceram.

Não foi possível assistir a nenhuma situação de um novo utente que precisasse de roupa,

daí que não possamos reflectir sobre possíveis reacções à situação de ter de vestir roupa

já usada por outros. Imagina-se, porém, que esta situação possa não ser muito

agradável, pelo menos para alguns idosos nestas circunstâncias.

Não é ainda tolerado que um utente se desloque às áreas colectivas de camisa de dormir, pijama ou outra roupa que pareça, aos olhos das funcionárias, desadequada. Certo dia de manhã, bem cedo, assistimos a uma discussão

constrangedora entre uma funcionária e um utente que se tinha deslocado para a sala de

convívio vestido com calças normais mas com uma camisola interior já transpirada.

“Ouve lá, eu não te disse para esperares? És porco, ou quê? Que é isto? Tomas banho e vestes outra vez a mesma roupa? Anda aqui a gente preocupada em vos pôr fresquinhos e vocês querem lá saber…A gente vira costas e vocês pensam que fazem logo o que vos apetece, mas comigo não e assim, ai não é não. Anda imediatamente para cima trocar de roupa, ouviste? E digo-te mais, que isto não volte a acontecer senão faço queixa à madre, oupa, lá para cima [apontando rigidamente com o dedo indicador para as escadas]. Não ouviste, olha que eu não te torno a chamar… [percebendo que o utente não iria obedecer-lhe de imediato]”.

Percebendo que o utente não iria obedecer-lhe de imediato, desaparece, rapidamente

para não passar pela humilhação de se sentir desautorizada. O utente, bebe calmamente

o seu café no bar, dando a impressão de não estar a prestar nenhuma atenção ao que

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acabara de ocorrer. As restantes pessoas na sala não proferiram uma palavra. Apenas a

animadora expressava um ar de descontentamento, olhando para nós como que

lamentando a atitude da cuidadora. Depois aproximou-se do senhor em causa e quase

em murmúrio, mas em tom de cumplicidade perceptível, tê-lo-á chamado à razão,

fazendo-o sair da sala delicadamente para cumprir com a exigência da ajudante de lar.

Seguindo a perspectiva apresentada por De Singly &Mallon, de que os espaços

colectivos são do domínio público, os residentes vestem-se com rigor quando se apresentam nesses espaços, sendo que o “desleixo” do vestuário só é permitido no

quarto. Caso contrário, estes indivíduos seriam associados aos dependentes que não

têm voto na matéria quanto à sua apresentação. No entanto, mesmo nos lares que

pretendem ser sobretudo espaços de vida, com grau de tolerância maior e flutuação nas

regras de conduta, vestir-se de forma mais à vontade pode ser entendido como sinal de desleixo moral. Tal comportamento nem sempre é entendido como um sinal que

revele o sentimento de se sentir em casa (De Singly &Mallon, 2000).

De facto não é aceite nem tolerado que os utentes se vistam de forma mais à vontade, tal

como acontecia quando os indivíduos viviam nas suas casas, reforçando – se a ideia de formalidade e falta de familiaridade associada à vivência em instituição. A

convivência com o colectivo impõe uma aparência formal. Para além da convivência com

os restantes residentes, os idosos encontram-se expostos aos olhares dos familiares que visitam o lar, assim como, tratando-se de utentes autónomos que realizam saídas ao

exterior, aos olhares das pessoas da comunidade exterior. Importa, pois, exibir uma

imagem dignificante dos idosos e do lar.

A situação dos mais dependentes é, de facto, das mais constrangedoras de observar. Na

chamada “enfermaria” da parte velha do lar, onde se encontram cinco senhoras, todas

elas dependentes de ajuda para os cuidados, a higiene faz-se sem qualquer atenção às questões de respeito pela privacidade e intimidade. Em alguns casos o banho é

mesmo dado na cama e nem sequer um biombo a tapar a utente no momento em que é

realizada a sua higiene pessoal. Em várias ocasiões, sobretudo quando se tratava de

utentes em estados demenciais ou em situação de semi-lucidez, foi referido à

investigadora: “entre, não há problema, ele/ela nem dão conta, não tem consciência…”,

destituindo completamente a pessoa nesse estado de preservar a sua integridade.

Alguns utentes, mais capazes, fazem a sua cama antes de se deslocarem para o

pequeno-almoço, outros deixam essa tarefa ao cuidado das empregadas de limpeza. Se,

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por um lado, algumas empregadas de limpeza agradecem esse gesto, outras, chamam

o/a idoso/a em causa à atenção se a cama não ficar bem feita no seu entender,

desencorajando alguns residentes de o continuarem a fazer. Trata-se, algumas vezes, de

mais uma tarefa trivial que, por intransigência das funcionárias, deixa de encontrar à

responsabilidade dos idosos, remetendo-os para uma postura de inactividade total.

As cuidadoras vão, seguidamente, cuidar da higiene dos quartos que são diariamente

arejados e limpos, assim como das casas de banho. Durante esse período da manhã, em

alguns pontos do lar, pode chegar a sentir-se um ligeiro cheiro a urina, ou um cheiro difícil

de descrever, típico do ambiente ao acordar. Contudo, pouco tempo depois esse cheiro

torna-se imperceptível pois, há que reconhecer o cuidado associado à limpeza e higiene. Ilustrando o que vários utentes referem, vejamos o que relata a D. Margarida:

“…são, são. Lá isso, olhe as enfermarias estão impecáveis, a gente passa logo pela manhã, aquelas janelas todas abertas, as roupas muito branquinhas, não isso é verdade, nem há maus cheiros nem há nada…” D. Margarida

Os utentes mais dependentes vão sendo conduzidos para o refeitório pelas

auxiliares ou por alguns colegas residentes que se disponibilizam a apoiar nessas

tarefas, à medida que vão ficando prontos. Lá aguardam que chegam as restantes

residentes. Levam os objectos pessoais de que necessitam pois sabem que estarão

confinados ao espaço onde irão ficar o resto do dia. A totalidade dos residentes vai

chegando, progressivamente, à sala de convívio que antecede o refeitório. O ambiente é

ainda de algum adormecimento e inacção. Proferem-se breves palavras com restantes

residentes, cumprimenta-se a comunidade com um bom-dia e pouco mais. Tudo começa

a ganhar vida quando às nove chega a animadora.

5.4.2 As refeições e os serviços no lar

Neste pondo em análise interessa perceber quais os hábitos seguidos e as possibilidades de escolha em termos das refeições proporcionadas aos utentes, assim como a sua apreciação das mesmas e dos restantes serviços proporcionados

no lar.

No que diz respeito às refeições tomadas no lar, está previsto no regulamento interno do

lar a realização de cinco refeições diárias: o pequeno-almoço, o almoço, o lanche, o

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jantar e o lanche nocturno. Estando igualmente previsto que as mesmas devem ser

tomadas nos refeitórios e só em situações justificadas nos quartos.

Após o despertar e a realização da higiene pessoal dos residentes, estes deslocam-se

para tomar o pequeno-almoço que se inicia às nove horas. Os residentes autónomos

deslocam-se para esta refeição à medida que terminam as tarefas relativas à sua higiene

pessoal. Os restantes, dependentes, vão aguardando nos corredores, junto aos seus

quartos, que as funcionárias tenham disponibilidade para os conduzir até ao refeitório ou

que algum dos residentes tenha a gentileza de os conduzir até lá. Ao refeitório não chegam, portanto, todos os utentes ao mesmo tempo. Vão aguardando uns pelos

outros acomodando-se nos seus lugares à mesa que são sempre os mesmos. Vimos

anteriormente que estes lugares são decididos aquando da entrada do residente pela

madre responsável pelo refeitório, ainda que às vezes tomando em consideração a

opinião da assistente social, e, em princípio, mantêm-se estáveis, salvo situações raras

de algum desentendimento grave com um colega da mesa. As conversas são quase inexistentes e dizem respeito geralmente à forma como a noite foi passada, à qualidade

do sono e evolução de alguma situação de saúde/doença. O clima sentido ainda é de um certo “adormecimento” característico do despertar de um novo dia. Na verdade, a

maior parte dos residentes necessita de uma refeição para renovar a sua energia, uma

vez que as longas horas que medeiam entre o jantar do dia anterior e o pequeno-almoço

faz com que já não se alimentem há cerca de 13 horas.

As mesas do pequeno-almoço preparam-se à noite, contando com o apoio das dias

funcionárias que assumem esta tarefa. A refeição do almoço é aquela que mais conta com a participação das duas utentes que se responsabilizam por apoiar as funcionárias na arrumação da louça e limpeza das mesas. Com excepção dessas duas

utentes, a colaboração dos outros residentes é meramente esporádica. Estas duas

residentes sentem o espaço do refeitório como um “feudo” seu, uma vez que este

espaço, com excepção das horas das refeições, está vedado à entrada de qualquer

residente. É igualmente pelo trabalho de apoio que lá desenvolvem que vêm preservado

o seu sentimento de utilidade social.

Todas as refeições têm hora certa para começarem: 9 horas o pequeno-almoço;

12horas o almoço; 16 horas o lanche e 19 horas o jantar. A ceia, composta por um chá

ou um copo de leite e umas bolachas não tem uma hora rígida e é garantida sobretudo

para os dependentes. Aos restantes nem sempre é assegurada. Os idosos estão familiarizados com as horas das refeições e procuram cumprir escrupulosamente

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com esse horário. Se se atrasarem uns minutos não costuma haver problemas e a

refeição é servida de igual modo. No entanto, estamos a falar de breves minutos de

atraso e não mais. Costuma perceber-se o cuidado dos idosos em se irem aproximando

do refeitório, próximo da hora de cada refeição. É comum contar-se com a presença de

todos os residentes às três principais refeições, sendo que nem todos têm o hábito de

lanchar, o que é, obviamente, respeitado pela instituição. Apesar de haver um horário

pré-definido para as refeições, tal como acabamos de enunciar, algumas vezes verificam-

se pequenos atrasos de 10, 15 minutos, no máximo. Tal atraso significa, para alguns idosos uma espera que impõem alguma instabilidade. Sobretudo os que não têm o

hábito de frequentar a sala de convívio, ficam sem saber muito bem o que fazer naquele

espaço, deambulam, sem conseguirem encontrar algum pequeno espaço, nessa sala,

que reconheçam como território familiar ou que transmita conforto.

Os idosos são avisados e alertados para o momento exacto das refeições por via do toque de um sino. Só a partir desse momento começam a dirigir-se para a porta do

refeitório. A necessidade de cumprir esses horários não pareceu nunca perturbar muito a

vida dos idosos. Na verdade, organizam a sua vida em função desses momentos,

preenchendo e preparando melhor o seu tempo. Por outro lado, parecem perceber bem a

necessidade da existência desses tempos. O Sr. Alfredo expressa de forma clara a sua

concordância:

“Eu acho que os horários são para se cumprir porque se não, não andamos aí todos à bandalheira, nem as empregadas se entendiam, nem ninguém se entendia. Os horários são para se cumprir e existem para se cumprir porque se não, já viu a desordem que não era, as empregadas ali do refeitório, chegar um a cada hora para os servir, era impossível, quer dizer. É por isso que eu digo, há regras e é por isso que eu gostei muito disto, se todos cumprimos com regras tudo corre bem, não é?” Sr. Alfredo

As três principais refeições iniciam-se com uma pequena oração dirigida pela madre

Cecília, à qual todos os idosos respondem. Alguns, porém, mostram indiferença perante

esse acto religioso. Ao nível da diversidade e qualidade dos alimentos proporcionados

nas refeições podemos dizer que, regra geral, não há muita diferença na lógica de organização das refeições.

Ao pequeno-almoço os utentes podem escolher entre leite, cevado ou café e pão com

manteiga ou marmelada. Ao almoço, as refeições são compostas por peixe três vezes

por semana e por carne quatro vezes. São sempre refeições diferentes e acompanhadas

de legumes ou salada. Há sempre três sopas disponíveis para os idosos: uma sopa dita “normal”, habitualmente de legumes, uma sopa ralada para os utentes que não podem mastigar e canja. Podem escolher o tipo de sopa que preferem e, com isso, ir

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variando. De salientar porém, que os pratos principais raramente servem alguns alimentos muito apreciados pelos idosos, como bacalhau, polvo, lulas, arroz de

marisco, sobretudo pelo elevado custo que está associado à sua confecção.

Existe também todos os dias disponível para os idosos um prato de dieta. Destina-se

àqueles utentes com prescrições médicas que assim o exijam ou aos idosos que o

prefiram. Não há, contudo, mais variâncias, ao nível dos pratos destinados aos utentes

com necessidades especiais. A comida de dieta, para além de nunca ter uma apresentação muito convidativa, é quase sempre a mesma: legumes cozidos

acompanhados de carne, frango ou peixe cozido com arroz branco ou batatas cozidas.

Ao lanche, serve-se leite, café ou chá, acompanhado de algumas bolachas maria ou

torradas ou de um bolo que os idosos escolhem de acordo com as disponibilidades do

lar. Há confeitarias que oferecem regularmente bolos que ainda estão bons para

consumir mas já não podem estar disponíveis para a venda ao público. Às vezes o

aspecto desses bolos é bastante atractivo, outras vezes mas parecem estar já um pouco

descuidado. Quando não há disponíveis estes bolos, normalmente a instituição oferece

um outro tipo de bolos, tipo “paniques” que são proporcionados pelo Banco Alimentar.

Raramente se disponibiliza pão. Os diabéticos não têm grande escolha: só estão

autorizados a comer as bolachas neutras ou pão simples. De quando em vez, uma das

funcionárias do refeitório dá-lhes um doce sem que estes tenham pedido, e quando a

madre não se encontra lá, pois sabe que é uma forma de os consolar! Estes nunca

rejeitam e agradecem o gesto. Sem a iniciativa da funcionária dificilmente tomariam a

iniciativa de o pedir, pois sabem que esse desejo em princípio não lhes poderia ser

concedido. Não podem, pois, assumir por sua conta e risco as consequências das suas escolhas ainda que não beneficiem a sua saúde, coisa que poderiam fazer nas

suas asas. Nesta sequência, os utentes não podem também tomar vinho à refeição, com excepção do domingo50. Quando o lar tem refrigerantes também os distribui ao fim

de semana pelos residentes que apreciam, embora não seja uma prática diária.

Relativamente ao jantar, ele é sempre composto por sopa e um pão com queijo ou

fiambre, fruta e/ou iogurte. O jantar em causa, embora seja suficiente por relação àquelas

que são as necessidades dos idosos, e sobretudo porque estamos a falar da refeição que

se processa antes de irem para a cama, afasta-se bastante daqueles que são os hábitos

da nossa sociedade e, porventura, daqueles que foram os hábitos dos idosos antes de

50 A justificação racional do lar para este facto prende-se com a existência de alguns residentes ex-alcoólicos que, em situação de alguma crise, podem recair no vício do álcool. Por outro lado, referem a lembrança de tempos passados em que este problema era muito mais evidente, criando problemas sérios no dia-a-dia do lar, desejando evitar novamente essa situação.

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irem para o lar. Apesar disso, não expressam grandes reclamações ou discordâncias e

esse respeito. Entendemos, no decorrer na nossa observação que essa refeição poderia ser um pouco melhorada, não em quantidade mas em qualidade e diversidade, de

forma a que os utentes pudessem diversificar a sua escolha. Esse aspecto foi

corroborado por alguns relatos:

Foi possível constatar que era dada a possibilidade aos idosos de poderem repetir um pouco mais em qualquer refeição, sendo que apenas excepcionalmente o faziam. Não

entendemos que a alimentação seja desadequada ou insuficiente, em termos de

quantidade, entendemos sim que deveria ser um pouco mais diversificada, assim como

deveria ser dada a oportunidade aos utentes de conhecerem previamente os menus, situação que em rigor não acontece, uma vez que os que estão expostos se

encontram sempre desactualizados.

No geral, as opiniões em relação à alimentação eram razoáveis. No entanto, era

possível verificar que, no dia-a-dia, os utentes se iam queixando de pratos que não

apreciavam, ou dos temperos que entendiam ser muito acentuados. Não eram sempre os

mesmos residentes a fazê-lo, levando-nos a crer que essas queixas tinham mais a ver

com preferência pessoais do que com a qualidade do prato.

A D. Rosa, apesar de fazer uma análise favorável à alimentação, critica a refeição do

jantar, por considerar repetitiva.

“Menina eu as comidas, eu as comidas, eu acho, bem há-de haver pessoas mais esquisitas do que outras, não é? Mas eu sou sincera a comida para mim está bem, é boa, às vezes elas lá põem um bocado mais de pimenta, carregam, como ainda no sábado, tinha, era massa… Carregaram na pimenta até mais não mas pronto isso…Eu gosto da comida. No domingo foi lombo assado, está muito bom. Ou é lombo assado ou às vezes frango assado ou coelho estufado, a comidinha é boa. Ainda hoje foi massa de frango, estava muito boa. Não a comidinha é boa menina… Não, é só um prato, depois há as dietas. Mas nas dietas não estou interessada para já (risos). Há sempre arroz branco e carne cozida. Se é nos dias de peixe pode haver peixe grelhado, se é nos dias de carne há sempre arroz branco com carne cozida, frango cozido, para as dietas, temos sempre fruta. Olhe menina se calhar talvez, por exemplo, nós à noite é sempre o pão com fiambre e queijo, eu não gosto deste queijo, só há duas qualidades de queijo que eu ainda como, fora disso não ligo a queijo, e o queijo aqui eu não como porque não gosto dele. Agora já há muito tempo que não dão, quando dão daqueles triângulozinhos pequeninos, aquele é salgado vai, ás vezes é um queijo assim muito branco que não vai de maneira nenhuma, então desisti, põe-me o fiambre eu não quero queijo. E acho que à noite que podiam uma vez por outra, variar um bocadinho, fazer até umas omeletas, meter um bocadinho de omoleta no pão, ovos mexidos, até uns panadinhos, uma coisinha pequena metido no pão, é sempre fiambre e queijo e queijo e fiambre, quase há dois anos, quase há dois anos (risos) …” D. Rosa

Alguns residentes, escutando as críticas dos colegas, referem que: “não há defeitos a

pôr. Mas muitas botam defeitos e em casa passavam como calhava, é assim…” D.

Matilde. Na verdade, em conversa com os residentes, muitas opiniões pareciam ser de

grande razoabilidade em relação ao serviço da alimentação. Mesmo apontando alguns

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defeitos, não deixavam de reconhecer a dificuldade económica em gerir uma casa tão grande e em proporcionar alimentos de qualidade. A fruta, que é sempre

apresentada como sobremesa, é objecto das principais críticas. Muitas vezes oferecida

em grandes quantidades, pelo tempo de espera e pelos processos de congelação aos

quais tem que ser sujeita, nem sempre chega à mesa dos residentes em perfeito estado,

como foi possível constatar por diversas vezes. A D Beatriz faz justamente referência

particular à fruta que oferecem.

“Quanto a comida, é como tudo, há dias bons, há dias maus, há dias que a fruta é muito boa, há dias que a frua não presta porque eles coitados também, a casa tem muito movimento, é muita despesa, e vão buscar frutas se calhar a pessoas que dão, destes armazéns grandes, não sei.Mas eu não me queixo, se como, como, se não como, não como. Não sou como muitos: isto é uma porcaria…eu não, eu penso assim, isto é uma casa acolhedora, nós nas nossas casas também temos dias, eu tinha dias que não comia, não é por falta de comida boa nem, mas não gostava, não comia, era capaz de comer fruta e uma sopa e aqui faço a mesma coisa”. D. Beatriz

No entanto, quando pedimos aos residentes uma opinião acerca dos serviços que

são proporcionados no lar, no geral estes tentam contornar a questão, disfarçar a sua real convicção, apresentando uma postura bastante conformista.

É importante notarmos que estas respostas de aparente agrado ou indiferença devem ser entendidas no contexto do grupo em causa, das suas experiências do ponto de

vista sócio-cultural, da baixa concepção em torno dos seus direitos, da diminuição do seu

sentimento de control real exercido sobre o que os rodeia, da sua quase ausência de

poder em torno da sua vida. Veremos, num capítulo adiante, a tendência destes idosos

em associarem o seu futuro à morte, assim como a quase inexistência de sonhos e

projectos a concretizar, mostrando claramente as suas baixas expectativas decorrentes

de um percurso de vida centrado, muitas vezes, na sobrevivência, assim como numa

interiorização da cultura do lar, tendente à secundarização das opiniões dos seus

residentes.

Ainda assim, esta aparente indiferença ou agrado relativamente aos serviços, nem

sempre corresponde à real opinião dos residentes. Não a verbalizam facilmente pois

temem represálias ou entendem não ter esse direito.

O Sr. Baltazar, procurando fazer uma análise aos serviços de limpeza e alimentação,

expressando uma total compreensão pelo esforço que as madres no lar fazem para

proporcionar o melhor aos idosos, sintetiza-a da seguinte forma:

“Olhe a limpeza só anda porco quem quer… A comidinha há dias de tudo, não se pode dizer que os dias são todos bons. Isso é próprio, pode perguntar às Madres. Elas também não vão roubar para nos dar.Evidentemente porque nós não podemos comer em casa todos os dias bife, nem batata frita, nem nada…” Sr. Baltazar

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Quanto aos serviços de higiene e limpeza, já tivemos oportunidade de referenciar a

limpeza permanente do lar, a inexistência de cheiros desagradáveis, mesmo junto dos

quartos com utentes mais dependentes. Em relação à limpeza, associada ao tratamento da roupa. As opiniões são, no geral, bastante positivas. D. Rosa expressa a

sua opinião quanto a esta área e reforça a ideia acima referenciada. Aproveita para

expressar a sua autonomia para tomar banho, por relação à da colega de quarto.

“A limpeza está bem, as caminhas são mudadas de quinze em quinze dias, tira-se os dois lençóis, de quinze em quinze dias tira-se os dois lençóis, a gente se vir que a coberta precisa de ir para lavar, elas dão outra e levam aquelas para lavar, vão dar banho à minha colega, ela não toma banho sozinha, vão-lhe dar banho uma vez por semana. Eu tomo banho sozinho. Para já, desenrasco-me sozinha, acho que a limpeza que está bem menina”. Ana Amélia

A D. Fernanda concorda com opinião anterior, salientando a limpeza e o cuidado com as roupas. Como poderemos perceber no capítulo dedicado à dimensão relacional, os

conflitos ou as opiniões negativas em relação às funcionárias responsáveis pelo

tratamento das roupas surgem apenas quando alguma peça de roupa desaparece ou se

encontra trocada.

“A limpeza aqui é limpa, as camas, as roupinhas passadas a ferro. Está tudo branquinho. A gente põe na gavetinha e está tudo lavadinho, roupinha da cama e tudo. Aqui não falta nada, a gente não pode dizer mal, não podemos dizer mal que é pecado”. D. Fernanda

O serviço proporcionado pelo lar que é, indiscutivelmente, objecto das maiores críticas dos idosos é o serviço de enfermagem. O apoio ao nível médico não existe.

Quando um idoso necessita de médico, desloca-se ao seu centro de saúde. Em

situações em que o idoso não se possa deslocar, solicita-se ao centro de saúde uma

consulta domiciliária do médico de família, de acordo com o que está previsto na lei. No

entanto, raramente o centro de saúde disponibiliza essas consultas. É possível que, após

o pedido do lar ao centro de saúde, se espere dias ou semanas pela consulta, ou até que

ela nunca chegue a acontecer. Nestes casos, sugere-se à família que solicite uma

consulta privada, assumindo os encargos daí decorrentes, situação que nem sempre se

verifica.

O facto de não haver médico que vá fazendo visitas regulares ao lar, assim como a

existência de apenas uma enfermeira a tempo parcial e da madre enfermeira a tempo

inteiro para assegurarem todo o trabalho desta área, incluindo a assistência à medicação,

tornam este serviço numa das áreas mais vulneráveis. Esta situação agrava-se pelo

facto de uma parte significativa dos idosos do lar se encontrarem em situações de forte

dependência de saúde bastante debilitadas. Apesar do cuidado com as análises críticas

que formulam, a este respeito foram muitos os idoso que reiteravam esta insuficiência da

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instituição. A D. Matilde, em relação às coisas a melhorar referia, “eu não sei, haver

médico assim mais a miúdo…”. A D. Margarida também aborda a questão com

delicadeza: “havia de haver duas enfermeiras, a Madre é competente, é certo, ela todo o dia,

todo dia lá anda, só descansa até às três horas, [pausa para almoço e sesta das madres] acho

que havia de haver mais apoio ao doente. Mais apoio ao doente. D. Margarida

Outros residentes, porém, são mais veementes nas críticas que proferem. O Sr. Pedro

comenta, várias vezes, quando lhe perguntamos como está, que a enfermeira não gosta

dele e não lhe mede a glicemia por causa disso. Entende que o tratamento cuidadoso é

apenas destinado aos residentes que são da sua preferência. Refere que apenas com a

interferência da assistente social a enfermeira concordou em fazer essa medição duas

vezes por mês.

“Eu já falei, aqui têm mais simpatia por uns do que por outros, não temos assistência, assim médica, nenhuma. Eu já sabia que tinha de pagar os meus remédios, quando vim para aqui disseram-me, mas está muito fraquinho [o apoio médico]. Apanhei a enfermeira que travou aí, se não fosse a Andreia… eu fui para o Hospital com um abaixamento de açúcar, eu estive lá uma noite quase, fui lá de noite e só vim, à noite é que me mandaram embora, do outro dia, acertaram-me o açúcar e disseram que os remédios que eu não andava a tomar porque não é só aqui que não há assistência…Eu já lhe disse que para ter acesso, para levar duas picadas por mês as dificuldades que eu tive, por intermédio da Andreia. Ela tanto martelou daqui e dacolá por palavras até que ela sempre caiu [a enfermeira”. Sr. Pedro

Novamente as palavras calculadas do Sr. Alfredo deixam antever a sua análise

crítica ao funcionamento do serviço: Sim, a parte médica também, já esteve melhor

com a Madre Rita mas hoje em dia também está bem coma Madre Vitória, não é?

5.4.3 As normas, regras e as actividades quotidianas regulares

Mais do que analisar as actividades que preenchem o dia a dia na instituição, interessa-nos perceber se os idosos participam na planificação das mesmas, se dão sugestões ou decidem sobre a implementação de novas actividades. Da mesma

forma, interessa-nos saber se os utentes participam no estabelecimento de regras,

normas e horários, nomeadamente de visitas e sobre a sua saída e entrada no lar, sobre

a hora de tomar banho ou proceder à limpeza do seu quarto, sobre as ementas a definir

e, obviamente, se podem decidir em que actividades desejam participar no interior ou

exterior da instituição. Estas questões remetem-nos para o domínio de controle e da liberdade na vivência e gestão da sua vida, pois, como nos refere Goffman (1996:11),

numa instituição de tipo totalitária os indivíduos partilham todo o tipo de actividades em

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conjunto, separados da sociedade mais ampla, vivendo uma vida em contexto fechado e

formalmente administrado. Não há separação entre espaços de trabalho e lazer, ao

contrário do que acontece na vida habitual, sendo que a maior parte das actividades que

caracterizam a vida dos indivíduos ocorrem no interior da instituição. Estas actividades

obedecem a um mesmo padrão, variando apenas de acordo com a época de ano, o

clima, o estado de ânimo dos utentes e a presença ou ausência de estagiários implicados

que podem dar um cunho mais agradável e participativo à actividade.

De acordo com o que Barenys (1990) nos refere, para justificar expressões como “ajudar o tempo a passar” ou “matar o tempo”, torna-se necessário analisar como decorre o dia do idoso na residência, dado que, de acordo com os resultados do seu estudo,

regra geral, logo após o cuidado pessoal o idoso fica sem qualquer ocupação. Em

algumas residências está previsto que façam a sua cama e arrumem o seu quarto, mas,

fora esta actividade, não há mais incentivos ou oportunidades para fazer o que quer que

seja. Da mesma forma pôde constatar que eram muito poucos os residentes que

ocupavam o seu tempo de forma personalizada, desenvolvendo leituras, trabalhos ou um

hobby. Poucos resistiam à inactividade forçada, daí passarem o tempo num estado de

um certo adormecimento.

De entre as actividades regulares proporcionadas pelo lar, podemos enunciar a ginástica,

o canto coral, os trabalhos manuais, os momentos de oração e o encontro de sábado de

manhã com uma madre, com o objectivo de conversar um pouco sobre as coisas da vida.

Na verdade, a madre desejava, através destes encontros, aproximar a relação com os utentes e perceber as eventuais situações problemáticas ou críticas. Os

encontros realizavam-se na sala de convívio justamente para permitirem a presença de

um maior número possível de pessoas. Contudo, o objectivo primordial ficava um pouco

aquém. A madre que era alguém digna de consideração pela maior parte dos utentes,

rentabilizava o seu tempo para falar sobre temas religiosos ou conversas que mais

apontavam para a dimensão da moral o dos bons costumes. Esta madre era uma das

pessoas que, no dia a dia mais consenso e prestígio granjeava junto dos utentes,

precisamente por lhes dar atenção, ser capaz de, ao longo do dia, parar várias vezes na

sala de convívio para estabelecer pequenos diálogos com os utentes acerca das coisas

mais simples do quotidiano. No entanto, verificávamos que a maior parte das pessoas

fazia questão de estar presente, de assistir por respeito à madre, apesar de não

perceberem muitas vezes o que dizia, nem interagirem na sua conversa. O objectivo da

actividade não era concretizado pois, na verdade, as pessoas não tinham voz activa para

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falarem dos seus problemas nem do que as perturbava. Os temas em questão, por outro

lado, em nada ajudavam à construção de uma melhor relação entre todos.

Quanto aos trabalhos manuais, participam cerca de 5 a10 residentes nas actividades

que se vão realizando como, fazer malha, pintura, colagem recorte…No entanto,

dificilmente participam todos ao mesmo tempo. Notamos que, por regra, estes revelam

preocupações estéticas, são bonitos, alguns mais criativos do que outros. No entanto,

não nos apercebemos de que os utentes, em algum momento, tivessem autonomia para os desenvolver de acordo com as suas preferências ou a sua imaginação. Não

se verificava, por parte dos idosos, qualquer iniciativa ou tomada de decisão sobre um

trabalho a realizar. Ainda que reconhecendo o esforço brutal que a animadora depunha

no acompanhamento aos vários idosos e trabalhos que iam sendo realizados em

paralelo, esta não estimulava o raciocínio dos utentes, a sua criatividade ou tomada de

decisão.

Estes, por sua vez, limitavam-se a fazer o que lhes era solicitado pela profissional, sem fazer grandes perguntas ou avançar com sugestões. Percebia-se que a

profissional não tinha grandes expectativas quanto à sua capacidade de dar ideias ou

inovar e os utentes, por outro lado, manifestavam uma plena interiorização daquela forma

de trabalhar, como se as coisas naturalmente fossem assim. Se existiam algumas

situações de utentes que, de facto, não eram capazes fruto das situações de demências

ou défices cognitivos acentuados, outros, porém seriam certamente capazes de se

manifestar sobre o desempenho dos trabalho se para tal fossem solicitados. É, no

entanto, curioso constatar a forma perspicaz como a animadora procurava incitar

algumas pessoas a desenvolver trabalhos como forma de as “controlar” e acompanhar,

esforçando-se por fomentar o equilíbrio emocional no grupo. Verificavam-se muitas

competências relacionais no desempenho desta profissional, mas, em rigor, ela não tinha

mãos a medir para tantas solicitações.

Muitos utentes comentam os trabalhos que realizam como se tal se destinasse a ajudar a

Sandrinha a justificar o seu trabalho.

“A Sandrinha tem necessidade de orientar porque ela tem necessidade de fazer trabalhos, que sem o nosso auxílio ela não o fazia, não é? Ela sem o nosso auxílio e daquelas que fazem tricot, etc, etc, ela nunca apresentaria os trabalhos que se apresenta porque ela tem que tomar conta daquele doente, e todos a chamam para isto e para aquilo, e ela não é imensa, não é? Ela agora dá umas orientações a certas e a determinadas pessoas, essas pessoas vão fazendo e pronto ela só faz o remate final.” Sr. Alfredo

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Pelas palavras da D. Margarida é possível constatar a mesma ideia: a de que os trabalhos realizados se destinam a ajudar a animadora. A expressão “ela quer os

trabalhos feitos” denota bem isso mesmo.

“Não sei, mas olhe ela é uma pessoa aqui no lar que dá muita vida. Olhe, o que eu não gosto, lá está, é estar lá em baixo a trabalhar, a trabalhar, a trabalhar. A Sandrinha obriga as pessoas a trabalhar porque quer os serviços feitos, não é? Para o Natal… mas eu nunca fiz nenhum trabalho nem faço (risos)” D. Margarida

Pela observação desenvolvida verificamos um pouco a mesma tendência. A lógica é a de

ir entretendo as pessoas para que, pelo menos algumas façam alguma coisa para

preencher as horas. Esta análise não invalida, porém, que os idosos não tenham algum

prazer ou até vaidade naquilo que fazem, tentando exibir o mais possível os seus

trabalhos. O seu sentimento de utilidade social advém sobretudo do benefício que do seu

trabalho possa advir para a animadora, alguém que muito estimam.

A aula de ginástica ocorre à 2ª e à 5ª feira. Habitualmente participam cerca de 10 a 15

idosos. Os idosos que fazem ginástica aguardam pela hora de chegada do professor e,

mal este entra, levantam-se e começam a ajudar a animadora a afastar as cadeiras da

sala de convívio para iniciarem a aula. Os residentes que não podem permanecer de pé,

observam os restantes colegas, sentados nas suas cadeiras. De entre estes, alguns vão

fazendo os exercícios que podem com os braços e pernas. Quando se passa a algum

exercício que exige o estar-se de pé, limitam-se a observar os colegas. Os exercícios são

acompanhados por música comercial pouco escutada pelos idosos. Apesar disso

parecem-se agradados pelo seu ritmo que cria animação e alguma dinâmica.

A actividade do canto ocorre, à semelhança de todas as outras, na sala de convívio.

Participam cerca de 15 a 20 idosos, sendo que os restantes idosos que se encontram na

sala são obrigados a assistir e nem sequer conseguem ver televisão. Apesar do

reportório musical ser conhecido da maior parte dos idosos, poderia variar-se o tipo de

músicas a cantar, evitando permanentemente o mesmo registo. Os idosos poderiam se

agentes activos na escolha dessa músicas. Por outro lado, observamos a dificuldade que

muitos idosos têm em cantar, dada a diferença entre o timbre vocal da professora e dos

idosos.

Apesar disso, os utentes mostravam-se bastante agradados com a actividade. Percebia-

se que a actividade de cantar lhes fazia despertar emoções e unia, por alguns minutos, o grupo dos idosos que aqui participavam. Assim, “o facto de reagirmos

emocionalmente à música desse modo e de sermos especialmente propensos a fazê-lo

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quando estamos em grupo parece ser uma notável característica universal da natureza

humana. O canto comunal, como quase todas as religiões reconheceram há muito, tem

um poder emocional particularmente forte para nós” (Dunbar, 2006:128).

No lar são vários os momentos de oração, que, por contribuírem para preencher o

tempo do útil dos idosos, ao longo do seu dia-a-dia, consideramos aqui como uma

actividade regular que se inclui na rotina quotidiana. Assim, todos os dias os idosos

podem assistir à missa das 9h30, logo após o pequeno-almoço. No início de todas as

refeições é também feita uma pequena oração conduzida pela madre. Ao fim da tarde,

por volta das 18 horas, reza-se o terço em comunidade. Quando termina o terço a hora

de jantar surge logo de seguida. Podemos, pois, verificar que para além da resposta às

necessidades espirituais dos idosos, estes momentos de oração também contribuem

para que o tempo passe mais rápido, pois funcionam como marcadores temporais que

indicam a proximidade de algum outro momento que se segue. Na verdade, “as rezas são uma manifestação de fé e, alegadamente, também uma forma de distracção. Elas

ajudam a fazer frente às penas da vida. Ainda que muita gente tema o processo da

morte, não há nada que temer do lado da vida eterna. A fé e a oração podem ser grandes

consolos. Mas a devoção, embora seja invocada como distracção, acaba por se

transformar em obrigação, cumprida religiosamente, isto é, sem faltas” (Pais, 2006:168).

A título de exemplo, veja-se o que refere a D: Rosa acerca dos momentos de oração:

“Olhe menina quem quiser rezar, reza quem não quiser rezar, não reza. Ai não, eu se quero estar aqui a rezar estou, se não quero antes de começar o terço lá vai ela por aqui fora, vou lá para cima ver a novela que dá, agora dá a Floribela, dá lá para as cinco e meia, seis menos tal e eu vou lá para cima, às sete menos dez venho para baixo. Quando eu chego cá já tem acabado o terço, já está tudo a ir para o refeitório. À missa é que em geral vou. Vou, bem gostar, gostar menina… (risos). Menina gostar, gostar… Oh menina gostar, gostar, para ser muito franca, acho que não havia necessidade mas também como não tenho nada para fazer e como estou aqui dentro vou, se hei-de estar sentada ali, estou sentada lá dentro, peço a nosso Senhor, a ver se nosso Senhor faz com que eu ande melhor mas ele não me ouve, eu se calhar não sei pedir (risos)” D. Rosa

O Sr. Alfredo também considera que ninguém é obrigado a ir à missa. No entanto,

critica o comodismo dos que se dizem cristãos e não participam nessa celebração.

“Não são obrigadas, pois não. Não porque ao fim e ao cabo Deus deu-lhes a liberdade de agir, eles tanto podem querer ir à missa como deixar de ir porque enfim lá têm as suas razões, lá têm a sua perspectiva de ver a vida, não é? Que muitas vezes não será a mais certa nem a mais errada, ou eles não têm capacidade para ver mais longe, não estão interessados, muitas vezes não fazem por preguiça porque sentem-se mais confortáveis ali do que estar sentados numa Igreja, em pé numa Igreja, o padre a falar ou coisa assim. Eu estou convencido que a maior parte deles não vai por causa disso.Não é porque são de outra religião porque eu creio que de outra religião só é um ou dois, do Jeová, parece que há aí uma, qualquer coisa assim. De resto os outros são católicos, dizem-se cristãos mas não vão à missa, nem praticam

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Não praticam por uma questão de comodidade, não estão para aí virados, para se chatearam. Nós estamos ali todos a rezar o terço, eles estão todos ali a dormir ou a ler o jornal, eles não são capazes de abrir a bica para nada. E quando as Madres rezam às vezes nas refeições, eles não abrem a boca para nada. E tem de ser assim, temos que nos respeitar uns aos outros, não é? Eles também me respeitam a mim, o facto de eu rezar eles não implicam comigo.” Sr. Alfredo

Com excepção dos momentos de oração, a reduzida participação dos utentes nas

actividades regulares poderá representar que não se está a trabalhar no sentido dos

gostos e necessidades dos idosos. Por outro lado, é razoável pensar que as actividades proporcionadas pela instituição não estão a ser capazes de motivar os

residentes para a importância de algumas acções, nomeadamente para o seu bem-estar.

Importa, então, tecer algumas análises críticas em torno das possíveis causas da

desmotivação. A ausência ou reduzida participação dos profissionais de referência

para os idosos nas actividades. Raramente ou nuca, por exemplo, a assistente social, as

auxiliares de acção directa ou as madres participam nas actividades. A animadora, por

muito que tente motivar, não pode apoiar os residentes que não participam em dada

actividade e, ao mesmo tempo, participar na dita actividade. De quando em vez observa-

se a tendência para infantilizar: “vamos lá, meninos”, “então, estão boas hoje, as

meninas”, “oupa, vamos lá, toca andar”.

Quanto à implementação das actividades, seria interessante diversificar os locais e os materiais adequados às mesmas. Por exemplo, para o canto poderiam ser

proporcionados aos idosos instrumentos de percussão, ou de fácil execução de forma a

que as sessões fossem mais activas, um pouco na lógica da musicoterapia. A ginástica

devia ser mais dinâmica, utilizando bolas, arcos, cordas, colchões, cadeiras, sobretudo

de forma a poder ser mais interessante. Deviam ser pensados exercícios próprios para as

pessoas que não se podem levantar da cadeira ou que não conseguem permanecer

muito tempo de pé. A actividade deveria pressupor a realização dos exercícios em local

apropriado, de forma a se promover a diversidade ambiental, quebrando a monotonia do

dia a dia, para muitos reduzida à mesma sala. Rentabilizar-se o espaço exterior da

instituição ou os jardins das redondezas poderia ser uma estratégia a utilizar nos dias de

bom tempo. O vestuário deveria ser adequado, como fatos de treino e sapatilhas, assim

como nos trabalhos manuais se poderia usar bata ou avental. A própria dinâmica das

actividades poderia ser um pouco melhorada e diversificada, evitando-se a repetição

permanente dos mesmos trabalho, dos mesmos exercício de ginásticas, as mesmas

músicas, o mesmo local onde são realizadas, as mesmas pessoas a participar, dado que

não se faz muito esforço para motivar os que, por regras, se mantêm ausentes.

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Para além destas actividades com carácter sistemático, alguns utentes passam o seu tempo a ver, ou a ouvir, a televisão, muitas vezes como forma de se sentirem

acompanhados ou entretidos. Outros, porém, cuja disposição das cadeiras os impede de

verem a televisão, permanecem apenas a ouvir o som da mesma, intervalando com

alguns momentos de adormecimento e monotonia. Como Pais reforça, na sequência das

suas próprias constatações, “há também os teledependentes, idosos que se aliam à

televisão no combate à solidão inimiga. Os apresentadores de televisão passam a

constituir a sua família, eles falam-lhes diariamente, sorriem-lhes, dão-lhes notícias e

novidades, disponibilizam imagens do que se passa lá fora, imagens coloridas que são

engolidas pela sombria existência de uma vida solitária” (Pais, 2006:167).

Em muitas dessas longas horas do dia mais “mortas”, onde resta apenas o som da

televisão como companhia, os mais autónomos afastam-se para outras áreas. O

momento que se sucede à hora do almoço é um exemplo disto mesmo. A animadora

ausenta-se para almoçar. Os residentes mais autónomos vão, muitas vezes, descansar

para os seus quartos ou saem do lar para tomar um café ou caminhar um pouco no

exterior. Os mais dependentes não têm alternativa, sendo obrigados a passar muito mais

tempo em espaços públicos do lar. Nesses momentos, os idosos autónomos evitam

partilhar o espaço e a companhia dos dependentes. Receiam como que uma

“contaminação” do estado degradante da vida desses indivíduos. Como destacam De

Singly e Mallon, os mais autónomos “(...)dão-se conta destas salas onde a televisão

impera face a um público desatento. Imaginam então o que poderá acontecer-lhes e só

têm pressa de regressar ao quarto, de mergulhar nos seus pensamentos e nas suas

recordações do tempo em que a morte não estava próxima” (De Singly & Mallon,

2000:244).

No resto do tempo que sobra, pouco ou nada se organiza, exceptuando as actividades pontuais que se vão realizando. Esta situação contribui, assim, para

acentuar mais o carácter de marginalização e exclusão dos idosos internados. Não se

toma em consideração se os indivíduos têm outras necessidades que não as de

sobrevivência, como comida e cuidados básicos. Não se lhes pergunta isso, nem quais

os seus gostos. Como nos refere a autora, “conceber a residência como satisfação às

necessidades de sobrevivência mais elementares, é despojar o idoso do seu carácter de

pessoa social que tem muitas outras necessidades culturalmente fomentadas. E quando

se viveu numa cultura que desperta uma série de necessidades e que cria meios para as

satisfazer não se pode acabar os dias comendo, dormindo, defecando e jogando

cartas…” (Barenys, 1990:125).

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De entre estas actividades pontuais podemos incluir as organizadas pelas estagiárias, como as caminhadas semanais para fomentar a saída do lar, sobretudo dos

mais dependentes; concertos; intercâmbios com outras instituições; torneios; tardes de

cinema; sessões de culinária; sessões temáticas para abordar e reflectir sobre temas do

interesso dos idosos; festejo dos aniversariantes do mês…

Há ainda actividades organizadas pela Câmara Municipal, apelando à participação

dos idosos de todas as instituições: encontro de coros; baile de primavera; desfile de

vestuário construído em papel; cantar as Janeiras; passeio de barco ao rio Douro…

Por fim, de entre as actividades pontuais, há ainda as são organizadas pela Instituição: festejar épocas festivas como o Natal e a Páscoa; organização de sardinha;

acompanhamento de uma ida ao teatro; festa alusiva ao dia da instituição; organização

da quinzena sénior em Setembro…

Não podemos deixar de referenciar os fins-de-semana como os momentos eleitos pela

generalidade dos utentes como os mais monótonos. Para os que recebem visitas ou

saem para o exterior a solidão sentida fica atenuada, No entanto, para os que ficam

circunscritos ao lar e/ou não têm quem os visite a tristeza acentua-se. O relato da D.

Maria expressa bem a opinião geral.

“São tristes os fins-de-semana aqui. Eu não tenho visitas, vêm as visitas para todos eles, vem, vem, tem vindo ver.Para mim é, porque eu não gosto de sair, gosto de ir para o shopping, eu não compro nada mas vejo, quero ver, vou ao Porto ver as coisas. Vou quando tenho dinheiro para as senhas (risos). Agora os autocarros estão mais caros, gosto de ir à Foz que é a minha terra, já quase não vejo ninguém conhecidoNão há nenhuma[actividade] não há, há ao sábado, à noite, ás 18.30 a missa, vem muita gente de fora, conversam muito aqui no lar, eu não conheço ninguém, eu estou deslocada e mesmo na Foz já não conheço ninguém quase, já tudo morreu, mais novos do que eu. ” D. Maria

Relativamente à definição das regras, normas e actividades, de referir que, por regra,

cabe à direcção técnica a sua concepção, planificação e operacionalização. Não há

um conselho de residentes, não há reuniões gerais regulares para residentes, nem

grupos com responsabilidades nas mais diversas áreas da vida institucional.

A justificação racional da instituição para a inexistência destes organismos e para a

ausência da implicação dos utentes na gestão prendia-se com o facto de se alegar que

os utentes eram, no geral, muito dependentes, sem vontade nem disposição para pensar

nem participar no que quer que fosse. Além disto, a imagem e o estatuto que se

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procurava transmitir era a de utentes na sua generalidade demenciados ou no mínimo com alguma perturbação psíquica que os impedia de manter um discurso

lúcido e coerente.

Na verdade, verificamos que a situação de colocar utentes a discutir sobre as actividades

ou as práticas institucionais a implementar mostrou-se deveras complexa, dada a

quantidade de pessoas que era necessário reunir num mesmo espaço e, tendo em conta

a falta de cultura de participação e de gestão democrática, a dificuldade em gerar

consensos. A única vez em que se realizou uma reunião geral com os utentes , da

iniciativa do estágio de estudantes finalistas da licenciatura em Serviço Social, estes, ora

não tinham opinião nem se manifestavam quando lhes eram solicitadas sugestões sobre

actividades, ora queriam todos falar a propósito de um assunto de importância marginal

para a reunião. No entanto, e estando convictas de que os utentes não se podem

pronunciar sobre o que nunca conheceram, ao mesmo tempo que já interiorizaram a

cultura da não participação, solidificada e cristalizada, em muitas situações, ao longo de

toda a vida, as estagiárias levavam na manga propostas pensadas por si como forma de

incitar ao debate de ideias e troca de pontos de vista. Em algumas situações

conseguiram despoletar a discussão mas foi interessante verificar a falta de cultura democrática no funcionamento da instituição.

Em poucas situações a opinião dos utentes é consultada para a definição de qualquer

actividade mas quase sempre se verificou que havia uma preocupação genuína em

agradar aos seus gostos e interesses. Apesar disso é inevitável a total ausência de controlo por parte dos idosos em relação às actividades proporcionadas no dia a dia. Na verdade também Pais detectou a ausência de mecanismos de poder nos lares

que estudou. “Deduzo que em alguns lares de idosos escasseiam mecanismos de poder

para que os idosos possam impor os seus desejos e defendê-los. Nem sequer para se

fazerem respeitar”. (Pais, 2006:163).

Tal como nos sugere Barenys (1990), a vida na instituição ajusta-se a uma série de normas, que se encontram escritas nos regulamento ou procedem dos próprios

costumes que se vão instaurando, as quais se vão se vão impondo e ajustando às realidades da vida colectiva, tendo como objectivo criar condutas disciplinadas. De

entre essas normas, a autora destaca três tipos: normas muito gerais que dizem respeito

à convivência quotidiana; normas que se relacionam com os horários, os quais

pretendem facilitar o controlo das pessoas e, por fim, normas de segurança, com o

alegado objectivo de zelar pela segurança e integridade física dos idosos, embora

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reflictam o propósito inequívoco de os controlar. Refere-nos, ainda, que o incumprimento

das normas pode originar dificuldades de convivência do idoso com o pessoal, sendo

portanto desejável gerar um tipo de pessoa submissa e não conflitiva. Como tão bem

resume, “um idoso que oferece resistência a uma regulamentação que os define como

pessoas incapazes ou diminuídas demonstra uma vitalidade imprópria do protótipo que constroem as residências” (1990:159).

Subjacente a isto existe uma imagem e um papel que se supõe que os idosos assumam remetendo-os para uma situação de subalternidade. Os idosos são todos

considerados como pertencentes a uma categoria homogénea: a de utentes do lar,

passando a assumir igualmente as identidades de velho e de utente internado.

No lar em estudo, quase todo o tipo de regras acima enunciadas provêm de decisões exteriores e “superiores” aos indivíduos. Em concreto, cabe à madre e à

direcção da qual ela faz parte e a qual influencia decisivamente, decidir sobre as mais

diversas áreas da vida dos idosos no lar. A estrutura da instituição obedece assim a uma

natureza formal, definindo-se claramente as relações de autoridade e as posições

funcionais dos vários actores. Estas características condicionam determinantemente a

comunicação entre os grupos e as hierarquias.

Mintzberg (in Ferreira, Neves e Caetano, 2001), na sua abordagem estrutural às

instituições define vários modelos caracterizadores da estrutura organizativa. A instituição

em análise enquadra a sua estrutura organizativa no que Mintzberg designa por estrutura

simples, onde o poder de decisão é concentrado na figura de quem centraliza as informações, sendo que todas as decisões importantes tendem a ser tomadas pelo

vértice estratégico.

O lar regula-se por uma rotina bem definida por horários determinados, sobretudo

em função das necessidades dos funcionários, que passa a ser imposta aos idosos,

condicionando fortemente a sua liberdade de escolha. As horas de entrar no lar, levantar,

tomar refeições, assegurar a higiene íntima e, em muito casos, deitar, estão definidas de

forma a se organizar e rentabilizar o trabalho dos funcionários. O indivíduo fica, assim, remetido para um plano secundário, não podendo ser senhor dos seus desejos, nem protagonista de decisões ainda que estas se reportem às questões mais triviais do

seu dia a dia. O indivíduo perde-se no contexto do colectivo, condicionando-se as suas

liberdades, necessidades e desejos com o objectivo de que este não interfira

negativamente nas dinâmicas instituídas e cristalizadas pelo tempo.

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No que diz respeito à diversidade e qualidade dos serviços prestados, das ementas, das actividades, os idosos nunca são encorajados a manifestar a sua opinião nem solicitados para dar sugestões, no sentido da promoção da mudança ou do

aperfeiçoamento do que existe.

O seu dia-a-dia está regido por um conjunto de rotinas e horários impostos que permanecem inalterados todos os dias. Não obstante esta dimensão castradora

associada à imposição dos horários, torna-se necessário admitir que os mesmos não

impõem somente um carácter de coersividade; ajudam igualmente muitos idosos,

sobretudo os mais dependentes, a organizarem o seu tempo diário, marcado pelas

proximidades sucessivas de rotinas previamente formatadas e previstas. Cada actividade sucede a uma outra e esses momentos habituais e previsíveis marcam o ritmo dos dias e das horas, ajudando esses utentes a encontrarem um sentido para o

tempo que passam no lar.

O funcionamento da instituição, sobretudo se considerarmos a resposta às

necessidades dos mais dependentes, acaba por solidificar a barreira física e psicológica que se estabelece com o mundo exterior. Em consequência, muitos residentes vêm-se na contingência de passar todo o tempo no espaço institucional, cumprindo regras e rotinas que procedem do centro de decisão. A inactividade dos mais

frágeis ou dependentes e a acomodação dos restantes contribuem para o agravamento

dos seus estados de saúde e para o reforço de um sentimento de inutilidade social.

5.5. Preservação de identidade e estratégias de adaptação à vida quotidiana no lar

De facto, a forma como cada indivíduo se adapta ao quotidiano está muito relacionada

com a forma como analisa e entende o dia a dia no lar, assim como as funções e papeis

que sente que tem que desempenhar. O quotidiano é entendido de forma diferente pelos idosos. Uns descrevem-no de forma preenchida, analisam a sua rotina como se a

cada momento diferente tivessem uma função a cumprir distinta. Outros analisam-no de

forma empobrecida, rotineira, sempre da mesma forma. Reduzem a análise do dia-a-dia

a umas escassas palavras, como se, na verdade, nada mais houvesse a dizer. A título de

exemplo, apresentam-se duas ilustrações bastante distintas acerca da forma de entender

o dia a dia na instituição.

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O Sr. Alfredo, um residente bastante adaptado, refere-se ao quotidiano de forma muito satisfeita. Apesar das circunstâncias que condicionaram a sua entrada no lar,

associadas ao seu divórcio e perda de autonomia e que implicaram o afastamento dos

filhos e de toda a sua vida anterior, este senhor mostra-se muito agradado com a vida no

lar. Refere que se assemelha muito à experiência que vivenciou enquanto estudava no

seminário, inicialmente com o objectivo de vir a ser padre. Apesar de ter seguido um

rumo diferente, mantém a sua fé e crença, assim como continua a apreciar o

cumprimento de rotinas e horários a que foi habituado no seminário onde esteve.

“O dia a dia, levanto-me, vou almoçar, levanto-me, vou tomar banho ou desfazer a barba, depois vou almoçar. Vou para a missa, rezo as minhas orações, antes da missa, meia hora três quarto de hora antes, depois venho para o salão. Vulgarmente tomo o meu café e a Sandrinha logo de seguida tem trabalho para eu fazer, não é? (risos) Sento-me na cadeira a fazer o trabalho, começo a fazer o trabalho com amor e carinho, como costumo fazer, depois disso tocam para o almoço, vamos almoçar, almoço normalmente, agora estou a engordar um pouco (risos). (…) De maneira que depois do almoço tomo o meu cafezinho novamente. Se não tiver nada que fazer eu vou para a portaria às vezes tomar conta do telefone. Se não tiver nada que fazer vou descansar um pouquinho, só estar sobre a roupa com o rádio ligado, ouvir um bocado de música. Depois levanto-me por volta das duas e meia, venho outra vez trabalhar, que a Sandrinha já está cá normalmente, venho trabalhar. Depois do lanche, agora não tenho feito lanche porque estou a fazer dieta. Depois continuo o meu trabalho até vir o professor de ginástica ou o professor de música. Depois chega a hora do terço, rezamos o terço.Sim porque só reza quem quer, não é? Quem não quer, pelo menos se for uma pessoa normal e educada, remeter-se ao silêncio e mais nada, e é isso que eles fazem, remetem-se ao silêncio e não rezam, de resto nem vão à missa nem coisa semelhante. Eu já ouvi aqui dizer que havia uma Madre que os obrigava a ir todos à missa, agora isso não acontece e acho bem. Agora eles também não reivindicam nada nem coisa semelhante, não é? (…) Pois, depois vem a ginástica e a música, não é? E depois nos dias que não temos a ginástica, nem a música, tenho trabalhos manuais e depois disso tenho o jantar. Temos o terço, reza-se o terço, preparam o rádio para se rezar o terço e depois vamos ao jantar, jantámos. Depois do jantar, há dias que eu vejo televisão, principalmente quando dá futebol, vejo televisão, quando não há futebol subo ao meu quarto e vou-me preparando para o dia seguinte, preparando a minha reflexão, tenho uma reflexão que faço sozinho, durante uma hora e tal, lembro-me de todos os passos do dia que eu fiz, depois dou graças a Deus pelas graças que me concedeu também e peço perdão das faltas que cometi, etc e rezo pelas pessoas em geral, ponho-os todos na minha mente e algum pedido que eu tenha que fazer a meu respeito, que eu tenha intenção de o fazer faço e tem-me concedido, de maneira que, e assim passo e adormeço às vezes a rezar (risos). Há muitas pessoas que se deitam, vão para a cama logo depois do jantar. Não se deitam mas ficam naquela de conversar na cavaqueira, por aquilo que eu ouço, ficam na cavaqueira, depois lá para as dez, onze horas adormecem. É à hora que eu adormeço dez, onze horas.” Sr. Alfredo

Para a D. Adelaide, que já está no lar há 15 anos, o dia a dia é descrito de forma extremamente breve. É necessário fazer muitas perguntas e ainda assim as respostas

são sempre lacónicas. Passa o dia sentada na sala de convívio sem nunca participar

activamente nas actividades que se realizam. Em rigor cumpre na perfeição com a

expressão: “entra muda e sai calada”. É capaz de mostrar um sorriso aberto quando nos

dirigimos a ela, na sala de convívio, apreciando o facto de com ela trocarmos algumas

palavras. É bem visível, até pelo tempo em que já está no lar, que as suas energias se

esgotaram, as suas capacidades físicas e cognitivas se vão perdendo pelo desuso e até

as palavras são economizadas. Quando se lhe pergunta se o dia a dia é interessante,

responde da seguinte maneira:

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“Para umas é, para outras não [interessante o dia a dia]. Eu não, sento-me ali, estou sentada, não falo para ninguém. Porque dá-me sono eu pronto, as outras também estão assim e eu não estou para chatear ninguém (risos)Para mim, é sempre muito bom [quando questionada sobre o que pensa acerca do que se faz no lar]Oh já se têm feito tantos e eu não vou [a passeios]. Não posso andar e depois dou muito trabalho, têm de ir agarradinhas a mim e eu dou trabalho não quero ir (risos).Às vezes eu gosto, quando não gosto não ligo [em relação às actividades pontuais que se realizam no lar como concertos]. A gente às vezes gosta disto e daquilo, outras vezes não gosta (risos).Gosto muito mas é de rezar. Gosto…e de cantigas e assim…Gosto, [de ir à missa] não vou porque não posso. Não posso porque é muito longe, daqui para a capela…Há dias que carago, já vamos para a cama, outras vezes digo: oh nunca mais vamos para a cama [se costuma das pelas horas a passar]” D. Adelaide

Esses dois exemplos retratam formas bem distintas de conceber o quotidiano. Vimos

já que a entrada em lar acarreta modificações na vida dos indivíduos e, com isso, a

necessidade de novas e permanentes adaptações dos mesmos.

Na verdade, as distintas formas de conceber o dia-a-dia dão origem a várias formas dos

indivíduos se adaptarem ao quotidiano51 e o tipo de participação nas actividades

disponíveis estão bastante dependentes de variados factores. De entre estes a saúde, o grau de autonomia e o tempo de permanência no lar são factores decisivos.

Tendencialmente os utentes com dependência física ou cognitiva, ou aqueles que se

encontram frágeis do ponto de vista das suas condições de saúde, são os que menos

participam nas actividades propostas no lar. Por outro lado, os utentes que estão há mais

tempo no lar, independentemente de assumirem uma postura mais activa ou passiva,

tendencialmente demostram uma maior adaptação ao mesmo.

De considerar ainda, factores relacionados com o grau de aceitação do lar e o sucesso ou insucesso do próprio processo de adaptação inicial à vivência com colectivo, até

então parcial ou totalmente desconhecido, são outros tantos factores de influência central

para a vivência do quotidiano. Neste sentido assume uma importância decisiva a forma como o utente é recebido no lar, acolhido pelos técnicos e cuidadores; a forma

como é apresentado aos restantes residentes e estes o acolhem; a preocupação em

explicar e dar a conhecer as regras e práticas correntes do lar, e não apenas entregar o

regulamento; a forma como os profissionais se demonstram interessados pelo utente,

seus hábitos, dificuldades, necessidade, entre outros. Os modos de adaptação dos

indivíduos ao lar serão, pois, o resultado da mistura de todas estas variáveis.

51 Nos seus trabalhos de investigação, quer Paúl (1991) quer Rodrigues (1999) usam uma tipologia que reflecte a forma de adaptação dos indivíduos em função da sua autonomia. Distinguem os indivíduos que apresentam comportamentos de tipo passivo, dos que assumem comportamentos de tipo activo. De entre estes últimos ainda se destacam os que têm comportamentos activos de tipo isolado e os que desenvolvem actividades conjuntas. Os comportamentos activos desenvolvidos podem estar relacionados com actividades de colaboração formal com a rotina diária da instituição, de colaboração informal com os residentes e de colaboração informal com o pessoal.

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

As duas formas de entender o quotidiano, acima descritas, ilustram, desde logo, duas

formas paradigmáticas de adaptação ao quotidiano. Interessa, pois, abordar, as várias estratégias identitárias foram mobilizadas pelos idosos, com vista ao reconhecimento

da sua existência no sistema social e à preservação do seu sentimento subjectivo de

pertença e especificidade/singularidade (Kastersztein, 1990). De entre uma pluralidade

de estratégias possíveis, vamos destacar aquelas que se observam com mais

regularidade.

O Retraimento sobre si próprio – esta estratégia é bastante adoptada por muitos

residentes. Sobretudo os que se encontram no lar há mais tempo e apresentam uma

saúde já debilitada, deixam aparentemente de prestar atenção a tudo que não ocorre na

sua presença imediata, fazendo de conta que perspectivam as coisas de forma

totalmente diferente da dos outros. Mesmo em relação às actividades que ocorrem na

sua presença, assumem-se como meros observadores Verifica-se uma forte

desimplicação e uma falta de participação em acontecimentos e actividades que, de uma

maneira geral, ocorrem no lar.

A situação da D. Sara, a quem já nos referimos anteriormente, denota isso mesmo. Vive

no lar há 15 anos, já está visivelmente cansada da vida em lar. Vive praticamente fechada sobre si própria. Outros casos poderiam ser retratados. A D. Matilde passa dias e dias sentada na sua cadeira sem dizer uma palavra. Responde se alguém lhe

fizer alguma pergunta, se isso não acontecer, nada diz ao longo do dia. Diz que ouve a

Sandrinha falar e a missa mas não sabe o que dizem.

“O que não ouço é muitas vezes o que dizem, muitas vezes a Sandrinha está a falar e assim, ouço a falar mas o que dizem, não sei. É como a missa, mas eu confessei-me, ouço a missinha sentada, o padre diz que a nossa boa intenção, não poder, que o Senhor que perdoa tudo.Olhe não se passa mal o tempo, há futebol às vezes na televisão, isto ou aquilo.Pouco ligo a estas coisas mas olhe o tempo vai-se passando…Olhe eu, sabe como é, eu sento -me ali, olhe, e ali estou, vou passando, fecho os olhos de vez em quando (risos)E ao fim de semana, olhe aqui estou, tenho passado aqui porque eu também não posso, a minha sobrinha diz: quando vier o tempinho melhor você há-de ir, eu não posso. Tomara eu poder comigo…” D. Matilde

A D. Otília é uma outra senhora que, à semelhança de tantas outras, passa o dia sem fazer absolutamente nada. Permanece sentada na cadeira, voltada para si própria,

observando como espectadora passiva o que se passa à sua volta. É claro que a

situação de saúde já não ajuda muito estas pessoas, contudo, ela também é agravada

pela inactividade física e cognitiva a que os utentes estão votados.

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“Eu agora estou diferente, não posso trabalhar, não tenho forças, dói-me as pernas, dói-me os pés, dói-me tudo, sofro muito dos intestinos, gasto muito dinheiro em remédios…É agradável [o dia a dia] tenho que me sujeitar como as outras pessoas. Agora estou nesta idade, para onde é que eu hei-de ir (risos). É como eu analiso, agora nem tenho idade para ir para casa, nem tenho casa também, nem tenho idade….Chego à noite cansada, aborrecida, apetece-me ir para a cama mas vou todos os dias um bocadinho descansar depois de comer. Mas não era hábito cá da casa, foi um médico, foi um Sr. da alta sociedade que analisou isso, na televisão, e elas começaram a deixar a gente a descansar…Gosto de ouvir, não posso ajudar a Sandrinha porque agora tive um desfecho na minha cabeça, que não posso falar muito, nem posso olhar muito, tenho, vejo mal, tenho aqui os óculos e canso-me muito…Gosto de assistir e gosto de fazer parte mas agora já não vou tantas vezes porque tenho, eu tomo um remédio de manhã cedo para obrar, e tenho medo que às vezes me dê volta e fique mal em qualquer lado.E não gosto de ir. A Sandrinha tem um passeio combinado para quinta-feira, e eu estou inscrita mas já pensei, o melhor é não ir, sendo assim o melhor é não ir, aí para segunda-feira vou avisá-la, que não vou por causa disso...” D: Otília

Goffman (1996) constatou que, da sua experiência, esta recusa radical de qualquer

participação pessoal nos acontecimentos é bem conhecida no seio dos hospitais

psiquiátricos e designada pelo termo de “regressão”. O autor pensa não ser possível

saber se este modo de adaptação assume a forma de um processo único de

desimplicação com graus de intensidade variáveis ou se se trata de um processo por

etapas com limiares uniformes. Tendo em conta a importância das forças que seria

necessário reunir para fazer sair o recluso deste estado e a escassez dos meios de que

habitualmente se dispõe, esta forma de adaptação é, no seu entender, geralmente

irreversível.

O Anonimato – uma outra estratégia bastante utilizada por um grupo significativo de

residentes é o anonimato. Neste caso, os idosos tentam passar despercebidos, como

estratégia para mostrar que respeitam as regras estabelecidas, tal como todos os outros

indivíduos. Ao fazerem-se esquecer, estes residentes desresponsabilizam-se sobre o que

os rodeia, mantendo uma situação no lar bastante confortável. Funcionando numa lógica

desresponsabilizante, esta estratégia parece revelar as potencialidades individuais.

A D. Margarida, por exemplo, gosta o mais possível de estar fora do lar. Regressa ao

lar sempre que se realize alguma actividade do seu agrado. De resto, não está disponível

para participar em tudo, muito menos naquilo que lhe diminua a auto-estima, como

passear na rua junto dos idosos mais dependestes do lar. A sua relação com o que se

organiza é puramente funcional: participa no que gosta e rejeita, ausentando-se, quando

não gosta.

“Porque gosto, gosto pouco de estar lá em baixo.

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Oh, porquê, se a gente… Não gosto daquele ambiente, está tudo a dormir, uma para um lado, outra para outro, ai não, lá em baixo tristeza, pronto.Ai prefiro, fazer a minha vida como eu quero e nunca ninguém me disse nada.Se há alguma actividade, estamos, eu gosto, a D. Maria do Carmo vem, uma senhora muito simpática, cantámos, à terça, mas se tiver que sair saio. Depois à segunda e quinta, até não sei se virá hoje, o da ginástica e o resto do dia olhe, eu às vezes leio o jornal, mas agora é muito difícil porque estão muitos homens agora lá em baixo.De resto, não participo em nada. Agora passeios, [caminhadas no exterior] ninguém me convide, sabe porque é? Eu vou-lhe ser franca, não digo nada aqui porque depois até diziam que eu era mais que os outros, acho que é assim uma coisa degradante, assim a gente passar pelas pessoas e as pessoas conhecerem-nos e dizer: olha coitadinha está ali no lar de Santana, é assim um ar de pobreza E a minha sobrinha disse um dia destes: ah não vás, é assim um bocado degradante…” D. Margarida

O Sr. Baltazar, apesar da sua situação de dificuldade ao andar, sempre com o apoio de

uma bengala, faz sempre todos os possíveis por passar o menos tempo no lar, sobretudo na sala de convívio. Passou muito anos “preso” a trabalhar e diz que ali, no

lar, não passa tempo. Mesmo quando chove e não se pode ausentar, prefere ficar

“estendido” na sua cama. Ao fim de semana, passa com o filho, assim como um período

de férias.

“ Eu aqui no lar, como estive muitos anos preso, desde novo a trabalhar, sem horário de trabalho até aos 82 anos que trabalhei, foi o recorde batido, o recorde batido a abrir e o recorde batido a fechar, de barbeiro. Tive muita prisão e quando passo aqui um dia [no lar] custa-me a passar porque basta ir até ali ao jardim ou qualquer coisa já alivio um bocadinho a cabeça mas quando o tempo está bom vou até ao jardim, quando o tempo não está bom não vou e quando vier a chuva, o Inverno, às vezes até me estendo ao comprido na cama para passar o tempo.Agora o ambiente aqui, aqui não passo o tempo, mas eu procuro fugir um bocadinho, ver se o tempo estiver bom, até aqui ver o ar livre…O fim-de-semana, eu procuro sempre passar com o meu filho…quando comecei aqui pedi à Madre Superiora, que é aquela que sofre do pé, que é muito boa pessoa, ela disse que o fim-de-semana, tira o que quiser. E quando vou ver a família de ano a ano, pedi a ela se podia tirar uns dias e tal, e ela disse-me logo: o Sr. Baltazar tira os dias que quiser…” Sr. Baltazar

A D. Arminda é outro exemplo de uma residente que pretende passar o mais possível despercebida e afastada do ambiente da sala de convívio. Refere que o ambiente da

sala a deprime pois as pessoas estão sempre a dormir. Refere que aparece mais quando sente a presença das estagiárias, que são meninas novas que motivam para a

relação. Passa muito tempo no seu quarto ou no exterior.

“As velhotas não sei, lá em baixo está tudo a dormir, não é? (risos)Eu não sei o que é que elas fazem de noite, de noite dormem, vou lá abaixo vejo tudo a dormir. Quando vou lá baixo um bocadinho, não me apetece estar lá em baixo, não me apetece estar lá em baixo, eu até tenho lugar mas elas: isto é o meu lugar. Se me sentar tenho que me levantar que elas não se calam, isto é o meu lugar.Só deixam lugar quando elas vão, já tenho presenciado, sentam-se ali, só deixam lugar quando elas vão, de resto não deixam lugar, nem deixam ninguém sentar-se no lugar delas.Olhe há actividade e alegria quando estão cá as meninas, eu já faço convívio porque já falo para esta já falo para aquela, outras velhotas não dá! Ou eu é por ser muito nova, ainda sou muito nova. Mas eu também não tenho culpa, também se não fosse doente não vinha para aqui…” D. Arminda

Esta estratégia nem sempre está relacionada ao anonimato inicial a que Lipianky (1990)

se referia, aquando da exposição inicial dos indivíduos a um grupo desconhecido,

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causando-lhe a sensação de não existência enquanto indivíduo ou o receio pelas

impressões que possa vir a causar nos outros. Isto é tanto mais verdade, quanto os

indivíduos se sentem numa posição de insegurança, muitas vezes associada à entrada

em lar. Este anonimato inicial caracteriza senão todas, quase todas as experiências pelas

quais os idosos passam num primeiro momento de adaptação à vida institucional.

O anonimato referenciado por Goffman (1996) distancia-se desta noção de anonimato

inicial. Implica, por outro lado, a opção, na vivência do dia a dia, por uma vida o mais

afastada possível do que se passa em seu redor.

A Diferenciação – esta estratégia é prosseguida cada vez que os indivíduos sentem

necessidade de ser reconhecidos na sua individualidade e singularidade. Muitos

procuram particularismos que lhes permitam afirmar a sua originalidade (ex: escrever

poesia, cantar, elaborar tarefas de manutenção…), tornando-os visíveis e reconhecidos

aos olhos dos outros.

No lar, poderíamos enunciar múltiplas situações em que os residentes se tentam

evidenciar pelo que sabem e fazem de melhor.

A D. Lurdes diferencia-se, claramente, pelo seu gosto de ler, escrever e fazer versos para todas as pessoas que lhe solicitem. Fica toda vaidosa quando é elogiada por

alguma quadra alusiva ao nome da pessoa. A título de exemplo podemos referencial a

quadra com a qual a investigadora também foi presenteada:

“Joana Santa Princesa,

Conhecida em toda a parte

Esta é portuguesa, a outra francesa,

A Santa Joana D´Arc”

A D. Piedade refere-se à sua paixão e expõe-nos a situação em que venceu um concurso

de versos na Rádio Renascença.

“Olhe para mim gosto, como sabe, de estar a ler, que é a minha paixão. Gosto muito de palavras cruzadas, já não estou habituada às palavras cruzadas, o livrinho que me deram já o preenchi todo, e ler, gosto muito de ler.Pedem para fazer versos, todas têm os meus versos, todas[as funcionárias]! Mas eu só faço àquelas que me pedem. De maneira que fiz a essas, todas elas, tanto essa…Ai aprendi, eu sei lá, por acaso tinha tendência para isso, quando era as coisas S. Joaninas eu até era capaz de fazer estas quadrinhas, mas nunca colaborei. Mas às vezes faziam quadras e pronto e a coisa que eu fiz, primeiro, que gostei, já foi umas coisitas assim, foi da minha aldeia. Estavam a dizer na rádio renascença quem fizer umas quadras, uns versinhos às suas terras. E eu disse assim, acho que vou fazer. E então pus isto, à minha aldeia, depois pus:

Cortegaça, sonho lindo, minha aldeia onde eu nasci

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Eu sinto um pesar infindo de me ver longe de ti

Baixinho quero dizer-te, Cortegaça eu tenho a esperança

De ainda voltar a ver-te como em tempo de criança”.

A D. Manuela, procura diferenciar-se pela roupa que veste, e pelos seus hábitos culturais, bem distintos da maior parte dos utentes. Veste-se de forma mais combinada e

colorida, com roupas muito mais na moda do que as da generalidade das residentes,

possivelmente tentando aproximar-se do estilo de roupa que podia vestirem quando vivia

bem, sem problemas económicos. Demarca-se por ser a única residente a usar maquilhagem e a demonstrar tanta preocupação com a sua aparência. Por outro lado,

quase todos os dias vai à biblioteca municipal requisitar livros ou lá passar umas boas

horas a ler ou a ver filmes. Com excepção de momentos pontuais, quase não passa

nenhum tempo na sala de convívio.

“Depois do almoço ou vai-se para o descanso ou vou para a biblioteca ver filmes. Aqui, eu não gosto de fazer nada, ajudo a levar para o refeitório [os utentes em cadeira de rodas], a tirar, a meter no elevadorAqui não me dou com ninguém, dou no dia a dia, dizer está a chover, está frio, ah pois está, mais nada. Se eles me pedirem alguma ajuda eu faço…” D. Maria

O Sr. Francisco é outro residente que marca muito a sua imagem no lar por via dos

trabalhos de carpintaria e pichelaria que lá desenvolve, assim como por ser um

senhor bem-falante com quem quase todos apreciam conversar. Tem também muito jeito

para escrever. É ele que se responsabiliza, todos os sábados de manhã por fazer um

género de resumo da “palestra” da madre, como lhe chama, ficando com a atribuição de,

no sábado seguinte, iniciar a sessão lendo o resumo da sessão anterior. Todos os que

escutam os seus escritos ficam espantados com a sua capacidade de escrever. Por outro

lado, conserta tudo o que é necessário no lar, fechaduras, armários, porta etc. Granjeia,

por isso mesmo, o prestígio das madres que apreciam a sai dedicação ao lar. Por estas

suas características, torna-se ora invejado, ora respeitado e admirado por outros

residentes do lar. Sente-se mais capaz do que a maioria, com capacidades distintas,

permitindo-lhe, até, dar uma “palavrinha abater” junto daqueles que lhe parecem em

sofrimento.

“Eu faço aqui muito trabalho e evitam de chamar artistas mas é para meu bem porque ando entretido. Portanto quem beneficiou ao fim e ao cabo foi a casaAh cada um senta-se no seu lugar, ninguém toma o lugar de ninguém, cada um toma o seu lugar não, e tenho bom relacionamento com eles, oh menina eu tenho aqui bons relacionamentos, já viu mais ou menos o meu estilo, eu dou-me bem com toda a gente, se vejo aquele a chorar eu vou lá e dou umas palavrinhas abater e às vezes até vou à beira deles e mando-os chorar, chore para eu ver, chore só para eu ver e eles calam-se, compreende? É como se faz às crianças, a criança está com a birra a chorar, manda-se chorar a criança, chora, chora para eu ver e eles calam-se e com os idosos é a mesma coisa, amanhã serei igual, não é?

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…não sabem e têm mas é inveja uns dos outros. Eu aqui dentro nesta casa no principio, agora nem tanto porque esse senhor foi chamado duas vezes à Madre Antónia à Superiora e ao engenheiro ao escritório por causa das provocações. Esse senhor não me podia ver a mim trabalhar cá na casa, esse senhor dizia coisas do arco-da-velha. No dia 30 de Abril, portanto há dois anos ele só para me provocar a mim falou para os colegas lá em baixo no salão: amanhã é dia do trabalhador, é feriado nacional, é o dia 1 de Maio, é o dia do trabalhador ninguém deve trabalhar. Só quem for muito escroque é que trabalha no dia de amanhã, apesar de amanhã ser feriado, há quem trabalhe cá dentro no dia de amanhã…Eu vi que era para mim que ele estava a falar, incomodei-me com ele. Eu devia calar e desandar mas não, eu incomodei porque ainda fui dar mais força quer dizer, chateei-me com ele, tive aí uma discussão com ele, tive sim senhora.Esse mesmo senhor, desculpe, esse mesmo senhor fez me um ordenado de 70 contos por mês pelos trabalhos que eu fazia cá na casa. Eu soube por uma senhora que está aí, disse-me: você ganha dinheiro? Eu, não. O Sr. Albino disse que você ganhava 70 contos…” Sr. Mateus

O Sr. Antunes é das poucas pessoas versáteis que apoiam em várias tarefas do lar.

Todos sabem que é um homem bastante religioso e que, por ter estudado num

seminário de padres, tem formação acima da média. É dos raros, senão o único homem,

que participa activamente nos momentos de oração. Tem uma capacidade de conversa e cultura que se destaca e desempenha tarefas de apoio as quais só a si lhe cabem.

Isso é visível sobretudo porque assume a coordenação da portaria e o telefone quando a madre responsável vai almoçar.

“É fazer trabalhos manuais [do que gosta mais]. Gosto muito de ajudar à missa, de ler na missa e depois gosto muito de fazer os trabalhos, trabalhos que me dêem prazer, que saiba que são acessíveis a que eu faça, não é? Agora se for um trabalho muito chato já me aborrece. Eu gosto muito de ir a esses novos eventos, e sempre que posso lá estou eu presente. E quando é necessário a minha contribuição para qualquer coisa, como foi aquela no parque da cidade, fazer aqueles jogos das latas, etc, etc e eu comparticipei no máximo das minhas energias e forças e pronto, participo sempre com boa vontade.Eu acho, para mim é, para mim é interessante, eu não acho o dia monótono, não acho porque se eu não faço uma coisa faço outra, isto sempre ocupado, mais ou menos sempre ocupado. E quando não estou ocupado, parece quase impossível mas é verdade, eu às vezes sento-me na minha cadeira, faço que estou a dormir e estou a meditar, estou a pensar no que fiz ou no que deixei de fazer.Não, não são bem iguais, [fim de semana] não há actividades e o dia torna-se mais monótono mesmo para mim torna-se um bocado monótono mas como eu já estive habituado a isso, passar os dias em clausura, não me custa nada. Ouço televisão, falo com as pessoas e pronto, também ao fim de semana costumo quase sempre ali a portaria, de maneira que passo mais ou menos ocupado” Sr. Alfredo

A D. Palmira, que não sabe ler nem escrever, situação que lhe causa algum desgosto.

Encontra-se no lar bastante inconformada e inadaptada. Desejaria viver com os filhos e

apenas está no lar por necessidade última. Embora passe muito tempo do dia fora do lar

ou nos espaços privados, não sendo muito fácil vê-la pelo lar, conseguiu encontrar uma

tarefa que a faz sentir útil e que lhe confere algum reconhecimento pelas funcionárias e respeito pelos restantes idosos. É ela a responsável por colocar as

mesas em quase todas as refeições. Por isso mesmo, estabelece relações de alguma

proximidade com as funcionárias do refeitório e, por isso, beneficia da possibilidade de

entrar nesse espaço sempre que queira, ao contrário dos restantes residentes que só lá

entram nos momentos das refeições. Esta tarefa fá-la sentir-se diferente dos outros, e com poder simbólico para criticar as práticas dos outros residentes, quando se trata

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de arrumar a louça no refeitório. Sem afirmar tal ideia, percebe-se que, no seu entender,

que ninguém mais do que ela é capaz de assegurar estas tarefas tão bem e com tanto

grau de higiene. Como já enunciamos, não gosta de estar junto dos restantes utentes na

sala de convívio. Poderíamos mesmo dizer que, apesar de se conseguir diferenciar pela

tarefa particular que desempenha, também passa grande parte do tempo em anonimato,

procurando demarcar-se do clima relacional do lar.

“Eu vou dar uma volta lá fora. É…Gosto, a minha alegria é andar lá fora, a minha alegria maior, que eu, e não posso, era andar a trabalhar, era o meu prazer maior era esse.Ajudo… Eu gosto de ajudar, eu gosto de ajudar e não ajudo mais porque não posso (…) o povo é porco, que levanta as mesas é muito porco, muito badalhoco… Os copos da mesa, bota-se nas canecas, das canecas bota-se para os copos, oh possa para a badalhoquice… (risos)Para mim não dá filha, para mim não dá, estava com a água no copo e bota-se nas canecas… Não dá… A Madre já falou.Olhe eu para lhe dizer que gosto de estar no convívio, também quero parar aqui pouco tempo. Lá para cima. Lá para cima, longe delas… Para o quarto. Ou para a salinha, lá em cima. Ah sim. Às vezes eu chego aqui ao convívio e nem cadeira tenho para me sentar (risos). É umas com sacas, é uma com, olha enfim… (risos).

A Conversão – vários residentes parecem adoptar a opinião do staff a seu respeito e

esforçam-se por assumir uma postura de residentes institucionalmente perfeitos,

reflectindo uma atitude de profunda submissão, mostrando-se sempre à disposição do

pessoal.

O Sr. Baltazar assume, no seu dia a dia, um conjunto de estratégias combinadas,

consoante o contexto e a finalidade das mesmas: ora de anonimato, ora de diferenciação,

ora de conversão. Destacamos aqui a conversão, dada a proximidade deste senhor a

algumas profissionais e a sua atitude de permanente disponibilidade face às necessidades do pessoal.

“Os funcionários, elas por lei, elas têm que ter um grande respeito pelos funcionários porque na minha ideia os funcionários fazem parte de uma assembleia cá dentro.Ui, eu aqui dentro ajudo muito, ajudo mais…ao trabalho que eu faço aqui… Eu aqui faço tudo, eu aqui olhe, é para pintar quartos, é para pintar camas, é para pintar mesas, é para envernizar portas…É comigo.É para ir à farmácia, lá em baixo, já faço isso há 9 anos…é para ir ao Pires ali, quer dizer tudo que seja recados do pessoal, decorações e tudo mais, ir buscar cartas e ir ao dispensário é tudo comigo.Porque sou a pessoa mais indicada, porque ninguém quer fazer isso, não sabem.Sim eu gosto mas às vezes…porque há pessoas que estão aí, sabem ler, têm saúde e podiam fazer esse trabalho.Quem me dá mais apoio por acaso…é a Sandrinha e a Andreia, não desfazendo, pôr a professora de parte…A que eu tenho, e elas também têm, eu sei, somos a quase como família mesmo, parece do coração mesmo. Elas parece que estão agarradas a mim e eu agarrado a elas, tanto a Dra., que quer que eu lhe chame Andreia, a Sandrinha é a mesma coisa…ela o Baltazar isto, o Baltazar aquilo, parece que Deus…agarrados uns aos outros. A Andreia quando é coiso do Hospital, levou-me para o Santo António e é que vai comigo, eu sei os caminhos lá dentro ela também sabe, oh Baltazar agora já conheces tudo…A Sandrinha também, o que ela disser… São mas tem mais um bocado de atenção

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por mim que eu não me estou a gabar de mim próprio, sei porque sei, sei porque sei… E você pode perguntar a elas, que elas dizem mesmo” Sr. Baltazar

O Sr. Afonso, que apenas se encontra no lar há escassos meses, parece ter adoptado

uma atitude de profunda submissão perante o pessoal. Refere que todas as

funcionárias são maravilhosas e que as quer acarinhar cada vez mais para também

continuar a ser acarinhado. É, sem dúvida, uma estratégia evidente para ser bem aceite

pelas funcionárias, de quem, entre outras coisas, está dependente para o banho, e para

se integrar de forma harmoniosa.

“A Sandrinha aqui, que chega assim, é muito boa pessoa, é uma rica colega, considero uma rica colega. Não há problemas com nada. Quando chegou cumprimentou-nos a todos e demo-nos ao conhecimento. Tinha que ser, não é?Mas só tenho a dizer bem dela, é uma rica pessoa, mas ela também não pode fazer tudo, algumas partes é da responsabilidade dela, outras é da Dra… Por exemplo a Dra. Andreia que é uma rica pessoa também e todas são assim boas, e agora aos poucos a gente vai-se dando ao conhecimento, quanto mais dias houver… a minha vontade é continuar aqui e cada vez acarinhar mais as pessoas…Não tenho problemas, para mim as pessoas são todas maravilhosas, conforme o conhecimento que vou ganhando, cada vez noto mais que são maravilhosas.Todas elas são maravilhosas, até as pessoas que me lavam por exemplo, duas vezes por semana sou lavado, como outros há que são lavados… a Sónia, por exemplo, é uma rica pessoa e a outra senhora também, que já me tem lavado.Até uma delas já me disse que para elas eu sou a pessoa mais educada que estou aqui. (emocionado) Isso quer dizer alguma coisa. Concerteza, não é? Não, estou muito satisfeito com todos, não há problema” Sr. Afonso

A individualização – através da individualização os indivíduos fecham-se perante os

outros e encontram-se, muitas vezes, condenados pelos outros à não existência e ao

isolamento. Como refere Lipiansky (1990), as situações de deficiência física e psíquica

reforçam a falta de reconhecimento perante o grupo. Esta estratégia negativa contribui,

ao contrário do que seria desejável, a rejeição e a exclusão, tendente à perda da

identidade.

Esta estratégia de individualização caracteriza o que se passa com a maior parte dos

residentes em situação de dependência física, mas sobretudo com o que se passa com

os residentes que apresentam as suas capacidades mentais comprometidas. Na

verdade, há claramente uma tendência por parte do colectivo, em excluir esses idosos,

possivelmente, como já referenciamos, pelo receio de enfrentar uma imagem de

decrepitude que se receia vir a assumir num futuro próximo. Esses residentes encontram-

se excluídos de uma total vida social e relacional, vendo-se despojados da maior parte

das características que os tornaram outrora pessoas.

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Podemos afirmar que, por relação às estratégias que visam a afirmação de si, as

estratégias funcionais mobilizadas, muito mais na lógica da conformização do indivíduo por relação ao ambiente em que se desenrola, são as mais utilizadas. Estas

estratégias garantem um controlo rigoroso da instituição face aos indivíduos. Estes,

por sua vez, nada põem em causa, resolvendo-se todos os seus conflitos em prol do

sistema social dominante.

De entre as estratégias que visam o reconhecimento e a afirmação de si, observamos no

lar, a presença sobretudo das estratégias de diferenciação, por via da exibição de

saberes ou competências que só o indivíduo domina. Ainda assim, a busca pela

singularização, por ser feita numa lógica individual e não grupal, nunca atinge pontos

extremos, que possam por em causa o funcionamento da instituição, pelo contrário,

Apesar de diferentes da maioria, os saberes e as competências destes indivíduos

acabam por ser rentabilizados em prol da instituição.

Goffman (1996) chama-nos a atenção para o facto de que, na verdade, poucos indivíduos

seguirem apenas uma estratégia durante muito tempo. Alerta-nos para a mistura de estilos que são habitualmente accionados, consoante o contexto em análise e as

finalidades que os indivíduos desejam obter. Parece que, no seu entender, poucos

reclusos seguem apenas um modo durante muito tempo. Por exemplo, o recluso partilha

o estilo de resistência quando está com os companheiros, mas esconde-lhes a docilidade

que prevalece quando está sozinho com o pessoal. Cada uma das tácticas representa,

assim, um modo de dominar a tensão que existe entre o universo doméstico e o universo

da instituição.

No contexto em análise, independentemente das estratégias e tácticas levadas a cabo

pelos indivíduos, a verdade é que nunca foi possível ao indivíduo modificar a situação que lhe provoca sofrimento (Léonetti, 1990). Dito de outro modo, nunca foi

possível alterar os factores que estão na origem do seu sofrimento, no caso concreto, a

vivência amplamente considerada no contexto do lar. Não sendo capazes de mobilizar

estratégias de saída face à situação, ou até estratégias de contornamento, que lhes

permitam contestar uma imagem negativa atribuída, os indivíduos optam, muitas vezes,

por movimentar estratégias de defesa, consciente ou inconscientemente, por via da

mobilização de mecanismos psíquicos de defesa. Tentar esquecer o seu sofrimento, ou

evitar as situações que o possam causar são algumas dessas formas.

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6. O lar como uma teia de redes de interacção, de papéis, poderes e representações – narrativas que produzem e transportam sentido

Como já tivemos oportunidade de constatar, a fase do envelhecimento reveste-se de

múltiplos desafios. De entre estes, a perda ou diminuição das redes de amizade e suporte apresenta-se-nos como um dos mais complexos e difíceis de solucionar. Vimos

já que, no quadro das relações sociais capitalistas, a reforma acarreta progressivamente a perda de sociabilidades provenientes do trabalho. A saída do

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mercado de trabalho origina, não raras vezes, a marginalização dos idosos que,

associada à dissolução dos laços comunitários e à indisponibilidade das famílias para a prestação de cuidados, contribui, cada vez mais, para a generalização da gestão colectiva das gerações mais velhas, que pressupõe a criação de serviços e instituições

destinados aos idosos. Os vínculos interpessoais de amizade, intimidade e proximidade

afectiva tendem, por isso, a ser substituídos por laços institucionais tratados e regulados no âmbito da esfera pública.

Surgem-nos, então, algumas questões acerca da forma como no lar os vários agentes

responsáveis por proporcionar qualidade de vida no ambiente residencial reflectem e

intervêm na dimensão das interacções que se estabelecem com os utentes. Trata-se,

pois, de analisar o tipo de relações que se produzem entre idosos, entre estes e membros dos pessoal e entre estes e suas famílias, a quantidade e qualidade de tais relações. Mais ainda, trata-se de mostrar, como Gubrium fez ao procurar analisar as

várias perspectivas acerca da vivência do dia a dia numa residência de idosos, que

os significados atribuídos ao viver e ao morrer na residência não são homogéneos, mas

construídos a partir das categorias mais significativas dos seus participantes. Utilizando o

conceito de “mundos”, procurou mostrar como um lar de idosos, não obstante se tratar

de uma simples organização, organiza diferentes mundos de trabalho e significados

consoante nos estejamos a referir ao staff administrativo, aos restantes trabalhadores ou

aos idosos. Falamos em mundos de significados distintos para estes vários grupos,

particularmente acerca da vida diária, do significado do cuidado e do cuidar (Gubrium,

1999:294 e seguintes).

Assim sendo, cabe-nos conhecer os significados que os vários grupos humanos em presença na instituição atribuem às relações, podendo estas ser de amizade, de

conflito, de afecto, cooperação, poder, autoridade ou interesse. Tal desígnio só é possível

se atendermos ao retórico enquanto conjunto de respostas discursivas e não discursivas, corpo de narrativas e de argumentos, corpo de discursos estratégicos

que se operam entre os múltiplos interlocutores de uma organização e que contribuem

para criar literalmente a organização e os seus ambientes (Andrade, 2003:27). São os

discursos que emanam da organização, as múltiplas narrativas que se produzem pelos seus membros, os espaços conversacionais em que decorrem, que produzem a estrutura profunda de qualquer organização. Em suma, “tudo o que

podemos realmente saber de uma organização é por via dos seus textos, aos quais se

acede, de facto, através da conversação. Contudo, nem todos os textos têm um igual

estatuto. É esta inigualdade que suporta o sistema de poder e autoridade da

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organização” (Andrade, 2003, 28). Não nos podemos furtar a uma análise que reflicta os sistemas de poder no lar, pois estes contribuem inequivocamente para a definição

dos lugares que os vários indivíduos ocupam no sistema da organização. Sem dúvida

que os papéis desempenhados e o estatuto atribuído poderão contribuir ora para a

preservação e o reforço da identidade dos residentes, ora para a sua aniquilação e

despersonalização.

Cabe-nos, então, questionar se o lar contribui para a promoção de um envelhecimento bem-sucedido por via da manutenção de laços sociais significativos e da participação dos indivíduos em redes de relacionamento positivas. Este objectivo pressupõe, desde logo, perceber se há pessoal em número

suficiente para responder às diferentes finalidades da instituição e às variadas

necessidades dos idosos e se estes profissionais têm formação adequada. Quando

falamos em necessidades, importa esclarecer que não nos referimos apenas ao cuidado

físico e de alimentação mas sobretudo às necessidades de carácter mais subjectivo

relacionadas com o sentir-se amado, o pertencer a grupos familiares, de amigos, partilhando com estes uma história de vida e, a partir dela, sentir-se reconhecido, estimado, realizado (Choques e Choques, 2000).

Esta questão conduz-nos, inevitavelmente, à análise das interacções que sobretudo os técnicos mais qualificados estabelecem com os utentes, uma vez que nem

sempre estes colocam as suas competências ao serviço directo dos utentes, canalizando

o seu tempo para tarefas de gabinete, claramente distanciadas das vivências quotidianas

dos residentes do lar. De todo o modo, se os profissionais não se distanciarem das

representações prevalecentes em torno do fenómeno do envelhecimento, habitualmente

negativas, poderão desenvolver actuações tendencialmente distanciadas dos idosos

como se as interacções regulares com utentes pouco valorizados socialmente constituíssem um factor de desvalorização profissional.

Por outro lado, importa considerar as relações entre serviços e as diferentes categorias

de pessoal, no sentido de aferir se existe imprecisão na definição de funções e competências, conflitos entre o pessoal, divisões e dificuldades de comunicação e jogos de poder que podem pôr em causa a eficácia e a qualidade das intervenções. Na

mesma linha de raciocínio, pode ser altamente benéfico para os utentes se as equipas de trabalho se estruturarem em torno das suas reais necessidades e se estabelecerem relações de solidariedade e colaboração espontânea no sentido de

dar resposta aos problemas vivenciados pelos idosos. Isto pressupõe um processo de

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democratização dos saberes e a participação de todos os profissionais implicados na concretização de um projecto institucional assente na promoção de um

envelhecimento bem-sucedido dos residentes. Naturalmente que este pressuposto não

se compadece com estruturas demasiado hierarquizadas, ao contrário, valoriza a capacidade de trabalho em equipa e o investimento num aperfeiçoamento permanente dos modos de actuar, ultrapassando constrangimentos institucionais e divergências entre profissionais.

No que diz respeito à vivência quotidiana no lar, podemos indagar até que ponto as actividades que são concebidas e realizadas no lar colocam no centro de interesse as necessidades dos idosos em matéria de construção e reconstrução de laços sociais e capacidade de participação efectiva e prazerosa na vida colectiva ou, ao

contrário, contribuem para a mera reprodução de rotinas instituídas. Aqui se inclui

igualmente a família, a valorização destes laços enquanto elementos determinantes da identidade dos indivíduos ou a convivência resignada e passiva em torno do

desmoronar desses vínculos, do afastamento progressivo de filhos, netos e outros

familiares que até então formavam a rede de relacionamento do indivíduo, partilharam da

sua existência, deram sentido à sua história pessoal de vida.

Interessa-nos também perceber como a direcção, instância à qual tradicionalmente

compete fazer as regras ou que, em última instância, decide sobre elas, é vista pelos profissionais e pelos utilizadores da instituição.

Esta vivência no seio de uma rede relacional traz os indivíduos à elaboração colectiva,

conferindo-lhes um lugar na organização. Todos os seres humanos são seres

comunicacionais por excelência. Não desejam sofrer de anonimato, mas sim, conhecer

as regras da instituição, descobrir rotinas e símbolos, assumir uma posição na

organização, não obstante o facto das estratégias individuais e colectivas se

entrecruzarem, e as institucionalizações viverem em “permanente instabilidade, à mercê

de vulnerabilidades e erosões de sentido cada vez mais insistentes” (Andrade, 2003:67).

6.1. Como os idosos se representam e interagem

Sabemos já que a dimensão da sociabilidade se modifica muito à medida que se avança

no processo de envelhecimento. Regra geral assiste-se ao afastamento ou mesmo à

perda de colegas ou amigos de trabalho, de familiares e ente queridos. A par da

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diminuição de contactos do indivíduo, ocorre frequentemente uma diminuição da intensidade estabelecida nas relações interpessoais. Se pudemos associar esta

mudança à fase do envelhecimento, ela será porventura mais real ainda quando estamos

perante idosos institucionalizados, os quais parcial ou totalmente quebraram com o seu mundo residencial, vicinal, de afectos e amizades. No entanto, o lar poderá ser uma nova oportunidade para o estabelecimento de novas relações.

Neste enquadramento, urge-nos questionar se o funcionamento do lar contribui para preservar relacionamentos anteriores, se tem em conta a realidade das perdas

afectivas que os idosos vivenciam. Mais que isso terá interesse perceber se a política

organizativa do lar favorece um clima de familiaridade e de interacção entre os utentes, de tal modo que estes não se sintam excluídos, inexistentes, despersonalizados. Por outras palavras, importa analisar até que ponto o lar apresenta

características que potenciem ou contribuam para diminuir as interacções que os idosos

estabelecem com outros. Para aferirmos estes dados, não basta construirmos uma visão

sobre o lar e o seu funcionamento. Torna-se imprescindível entender os significados e as visões construídas pelos residentes, estando certos que as interpretações da

realidade e o mundo por eles construído não tem de obedecer às nossas categorias de

leitura em torno dos relacionamentos e das vivências no lar.

Na verdade, ao reflectirmos sobre o que os idosos desejam num lar facilmente

percebemos, tal como constataram De Singly & Mallon, que um dos seus maiores

desejos é serem tratados como adultos autónomos, como pessoas normais que desejam ver preservada a sua autonomia e independência nesse contexto de vida colectiva. Não procuram de forma incessante o sentido de comunidade, mas antes evitar

lógicas de comunicação e partilha que aumentam a dependência, assim como desejam

proteger-se de qualquer forma de intrusão. Desde logo a autora adverte-nos para o facto

de que, do ponto de vista relacional, o lar se aproxima das sociabilidades de tipo

associativo, que são próprias da vida urbana (relações formais entre indivíduos que se

desconhecem). Salvo raro excepções, as pessoas que se encontram num lar não são próximas, não têm uma história de vida em comum, podendo até ter gostos e interesses diversos. Não existe partilha de afecto. Quando muito existe civilidade, boas

maneiras e um enorme vazio (2000:241/242).

De entre as relações que ainda estabelecem com outros, a ligação aos outros residentes do lar assume uma centralidade inegável, desde logo pela proximidade e

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acessibilidade de que se reveste. Resta saber se os residentes facilmente conseguem

construir novas relações de qualidade, intensas e significativas.

De facto, por via da observação levada a cabo não foi difícil perceber o grau de superficialidade das relações estabelecidas. Mesmo que houvesse partilha de alguns

episódios de vida ou desabafos de momento, essas relações não primavam pelo seu

carácter de profundidade e intimidade. Quando questionamos os utentes sobre o tema

das amizades, as reacções foram mais ou menos unânimes.

“Ai menina, eu acho que não [não há amizades]. Lá pode haver uma ou outra que sejam realmente amigas mas olhe que não vejo, acho que não menina…” D. Rosa

Várias expressões nos demonstraram a indiferença e a superficialidade que

caracterizavam outros tantos relacionamentos no interior do espaço residencial. Tal como

Bazo advoga, as piores relações que se estabelecem produzem-se entre os idosos, não

por serem conflitivas, mas pela ignorância e indiferença que as caracterizam (Bazo,

1991:154).

“Eu não sei [se as pessoas são amigas] eu sei mal de mim que fará dos outros. Não há regra sem excepção, há-de haver gente que se dá muito bem, eu até me dou lindamente com alguma gente de respeito, de mulheres”.Sr. Pedro

O mesmo discurso vago caracteriza as expressões da D. Adelaide relativamente ao

tema das amizades no lar:

“Algumas sã,o outras não (risos) [se os idosos são amigos entre si]. Pode ser do feitio, não é?Sim, às vezes têm [chatices].Há algumas, outras não [que são amigas]”. D. Adelaide

Por muito que nos esforçássemos, a D. Adelaide insistia em não aprofundar a conversa.

Não apenas o tema das amizades a fazia permanecer o mais lacónica possível, mas toda

a entrevista foi marcada pela concisão das suas intervenções, como se isso a protegesse de eventuais comentários ou desacordos que ela não estaria disposta a rebater. Talvez o medo de ser posta em causa a fizesse actuar dessa forma. De resto,

esta forma de estar e actuar caracteriza-a no seu dia-a-dia. Apenas fala quando alguém

lhe dirige a palavra, acentuando um sorriso simpático que compensa a brevidade das suas expressões, apesar da aparente relação de proximidade que já se havia produzido com a entrevistadora. De alguma forma a escassez das suas palavras ilustra o desincentivo em fazer novas amizades e uma certa desistência dos outros. Para quê fazer amigos se não existe a noção de futuro, se o lar é a última residência que

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conduzirá os utentes até à morte? Esta noção de final de vida produz uma certa apatia e

evidencia uma reacção de alguma inadaptação à vida em lar.

O Sr. Mateus reforça igualmente a ligeireza das amizades onde as trocas não ocorrem com profundidade, mas apenas se conversam “palavras soltas” com todos.

Salienta uma senhora com quem considera valer a pena conversar, no entanto, trata-se

de uma senhora e, como tal, senta-se no local que simbolicamente é atribuído às

senhoras, não ficando muito bem a um senhor invadir demasiadamente esse espaço,

tanto mais que se trata de um homem casado.

“Alguma dica sobre futebol ou não sei quê, mais nada, converso muito com todos, o que é são conversas soltas meninas, você não me vê ali a conversar com este ou com aquele, converso palavras soltas com todos e assim me dou bem com todos porque não dá para ter um diálogo com este com aquele, não dá, não dá. Aquela senhora ceguinha, a Ana Barros, ah essa sim, essa sim mas pronto, ela está ali, são mulheres todas, eu não me misturo lá muito. Tenho lá aquele nosso colega que passa o dia sentado no meio delas, de braços cruzados e tal, tem o feitio dele, eu tenho o meu. Eu converso com todas mas não passo o meu dia sentado ao lado das mulheres, venho mais para o outro lado. Aliás eu estou por ali pouco tempo parado a não ser para ler um bocadito o jornal, de resto tenho sempre que fazer por aí”. Sr. Mateus

O Sr. Afonso atribui a escassa existência de amizades ao cansaço que decorre da vida em conjunto, como se, de facto, houvesse já uma fadiga muito grande e uma

dificuldade em investir nos afectos.

“Não é muito, mas há… [verdadeiras amizades]. Eu para mim atribuo só à idade, já não dá para viver. Isto é quase como um homem casa com uma mulher, entretanto a mulher já está a mais, ela ou ele para a mulher, não é? É o cansaço, é. Não é porque as pessoas se portem mal, é o cansaço de se viver uns com os outros…A saturação, exacto”. Sr. Afonso

Um dos principais factores dissuasores do estabelecimento de amizades prende-se com

a proximidade na vivência que impõe, de forma forçada, a partilha de informações sobre a vida dos indivíduos, privando-os de uma intimidade que desejariam. Sobretudo os idosos que são independentes têm tendência a isolar-se (a não

estabelecerem relações dentro de um lar), ou seja, a não se envolverem em relações interpessoais com os outros residentes, pois desta forma esperam preservar a sua individualidade e intimidade. Isto porque a intimidade é algo que se partilha com

aqueles que seleccionamos no nosso ciclo relacional. Assim sendo, os utentes procuram

defendem-se de uma intimidade imposta (De Singly & Mallon, 2000).

“A gente vê tanta coscuvilhice menina. Olhe, há aí aquela, eu chamo-lhe a Maria das Cenouras, a Laura, a Celeste, a Maria Oliveira (…) oh menina há aqui muitas que deixam muito a desejar. Eu também não falo para elas, chego ali de manhã: bom dia. À noite quando vou para cima: boa noite, até amanhã, e pronto, não…E durante o dia estou ali, eu agora paro aqui porque estou com o tricot porque se não ia para o meu quarto ou ia para a salinha lá para cima, não paro muito por aqui, paro agora

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porque estou ali entretida com o trabalhito, meto-me lá para aquele canto e estou para ali porque, se não menina, não paro muito por aqui”. D. Rosa

Percebe-se claramente que a D. Rosa procura reduzir o seu discurso ao mínimo necessário, encontrando como mecanismo de protecção de si a fuga para espaços que apelem mais à intimidade, como o seu quarto ou a salinha pequena, à qual se

refere e selecciona sobretudo para ver os programas televisivos da sua preferência.

À semelhança da D. Rosa, muitos residentes referem a coscuvilhice e a incapacidade dos colegas para preservarem um segredo como um elemento que marca pela negativa

o dia a dia do lar e das relações. Assim, quando questionada acerca da possibilidade de

se fazer verdadeiras amizades no lar, a D. Margarida responde da seguinte forma.

“Não, nem se pode ter [verdadeiras amizades]. Acho que as pessoas são um bocado falsas, para dizer mal umas das outras são umas pimponas (…) a Glória é uma pessoa que se pode confiar, a Amélia sendo assim também…apesar que eu não gosto muito do feitio da Glória porque é muito…olhe ela está à mesa, a criticar…Muita critica, ela faz muita crítica a tudo”. D. Margarida

O Sr. Guilherme reforça esta ideia, lamentado a ausência de fidelidade nas relações.

Esta circunstância também se afigurou como um limite à capacidade de estabelecer e

preservar amizades.

“Eu tenho muita pena de quem não sabe conviver, tenho pena dessas pessoas e pessoas que ainda podem conviver e tenho muita pena de às vezes uma pessoa dizer um segredo a outra e a outra não guardar segredo. Eu tenho um segredo de uma filha de um amigo meu há 30 anos, que eu nunca o disse a ninguém…” Sr. Guilherme

As incompatibilidades geradas pelos comentários de alguns utentes em tono da vida, dos

hábitos e práticas de outros são tanto menos toleradas quanto no conteúdo desses

comentários estão situações ou pessoas da família de determinado utente. A D. Clarisse

mostra-nos a sua tristeza ao perceber que um elemento do lar critica a sua nora que

é polícia e com a qual estabelece uma relação de profunda amizade, considerando-a

como filha.

“Acho, menina, que aqui há bom e mau. E há pessoas que não são compreensíveis, a gente tem que ter paciência.Não faço ideia [do porquê das pessoas não serem amigas] aqui, há pessoas, como é que eu hei-de dizer, não são pessoas de segredo, muitas não. Elas contam, vão logo divulgar o que ela esteve a dizer e há confusão.Confusão…A Fernanda, é uma senhora indesejável. A Ana dos Santos, a queixa que eu tenho dela é nesse sentido, e eu não vejo mas dizem. Quando a minha nora vem aqui, ela começa a fazer troça da minha nora, não sei porquê…a minha nora é polícia, já contei à menina…E é uma senhora que nunca autuava, boa, tanto que a passaram para a secretaria e ela está na secretaria, efectiva, não anda na rua de giro. Ela só faz serviços de giro, quando é a festa do senhor xxx, que não há pessoal, que é preciso muita polícia e têm as casas de espectáculo…De resto, a minha nora, ao sábado e ao domingo não trabalha”. D. Clarisse

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Na verdade, as pessoas que vivem em lar são obrigadas a partilhar um espaço fechado e limitado. Tudo se sabe, quer através de comentários e indiscrições das

ajudantes de lar, quer através de conversas ou pedaços de conversas que se escutam,

quer ainda por via da própria observação do quotidiano do lar. É possível observar os

hábitos dos outros, as suas rotinas, a forma como interagem com outras pessoas

incluindo a própria família quando os visita.

Este facto facilita, num curto espaço de tempo, um conhecimento recíproco dos hábitos e da vida pessoal dos outros, o que na vida normal só acontece entre os membros da família. Como consequência, cria-se uma pressão social que exige um

reforço de protecção de si, face a qualquer situação intrusiva, de ofensa ou bisbilhotice.

Agudiza-se, assim, o isolamento dos idosos e a superficialidade das relações.

Como nos reforça Mallon, “no lar de idosos, esta proximidade gera um aumento de

distância afectiva e é compensada por uma contenção na expressão dos sentimentos

com medo que os outros residentes façam uso disso” (2000:256).

Não obstante, a autora adverte-nos que esta “limitação de familiaridade” é mais fácil de

suportar pelos indivíduos de meios populares, mais socializados em contextos paralelos

de proximidade espacial e afectiva, onde a amizade se enraíza mais na quotidianeidade,

do que pelos indivíduos de classes médias e superiores, pouco habituados a viverem

continuamente a amizade no mesmo espaço.

Constatam-se, igualmente, situações de incomunicação, de isolamento, de falta de

interlocutores no processo interactivo. Alguns utentes declaram não haver pessoas com quem se possa comunicar. Este facto está relacionado com uma certa ruptura e até desprezo que se produz entre indivíduos de níveis culturais diferenciados e que dá

origem à dificuldade em estabelecer amizades.

“Quanto a colegas não, não peço apoio a ninguém, não conto com ninguém porque não vejo em ninguém capacidades para dar um pouco de moral, este ou aquele, não vejo não, eu sou como eles mas acho que até serei a pessoa mais indicada para conversar com este com aquele porque eu não vejo aqui pessoas com um vocabulário agradável, não vejo. Há aí dois senhores que, sim senhor, pode-se conversar com eles, mas são tão surdos que só com um megafone é que se conversa. Você bem sabe que eles estão aí, são surdos mesmo. Ainda são as pessoas melhores com quem se pode conversar. Agora temos o pessoal da casa, todas as empregadas são uma simpatia, com essas sim converso, converso e bastante.Eu como ainda tenho a minha memória, acho que tenho a minha memória ainda boa, ainda é boa, a minha actividade mental, nesse aspecto sinto-me um bocadinho diferente deles. Quanto ao resto não, sou igual a todos, somos todos iguais uns aos outros, mas acho que tenho, sei lá como é que hei-de dizer, mais inteligente não sei, mas, mas analiso melhor…” Sr. Mateus

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O Sr. Mateus coloca-se na situação de alguém que não poderá ser apoiado ou ajudado

pelos restantes residentes, pelo facto de considerar não haver ninguém em

circunstâncias culturais e mentais capazes de o fazer. Está, portanto num patamar

distinto do da generalidade dos residentes. Esta situação é da mesma forma partilhada

pelo Sr. Alfredo que, embora reforçando a ideia de que se relaciona com todos, não deixa

de salientar a falta de educação de alguns e a ausência de valores morais de outros

tantos, enquanto elementos causadores do hiato que se produz entre ele e o grupo.

Procura, por isso, diferenciar-se dos outros como estratégia para salvaguardar a sua

integridade de homem respeitoso, de regras e moral. A sua integração e adaptação

positivas ao lar devem-se, pelo menos em parte, à partilha de valores, de ideais de fé

com a comunidade religiosa, que lhe criam a sensação de tranquilidade e similitude por

relação à educação religiosa que caracterizou o seu processo de socialização. É a

sensação de partilha dos mesmos valores que alimenta a coesão do grupo. Contudo,

convém referir que aqui o grupo é protagonizado pelas madres que assumem a

posição de líderes e representantes máximas da instituição lar. Assim, o sentimento de sintonia é mais estabelecido por relação a estas do que propriamente por relação aos restantes colegas.

“ (…) e eu respeito as pessoas mesmo aquelas que lhes podia dar uma certa confiança, até tratá-las, alguns retratam por serem às vezes pessoas de pouco valor moral ou de pouca educação. Eu trato-os como se fossem iguais a mim e trato-os com a mesma educação que gosto que me tratem a mim. De maneira que eles já perceberam isso e nenhum deles abusa, nenhum deles faz, e trato-os normalmente, aquilo sai normalmente, não ando à procura de agradar a ninguém, nem coisa semelhante, aquilo sai-me normalmente e por isso dou-me com todos muito bem, e sinto-me como tivesse numa comunidade. Depois isto tem uma coisa boa, também está orientado por Madres, por freiras, tem uma coisa boa, que as freiras têm regras, não é? Faz-me lembrar o seminário, se isto fosse um lar sem orientações era muito mais difícil. Assim não, assim as coisas são mais fáceis, embora haja aí indivíduos que sofrem de problemas e às vezes queiram arranjar uns problemazitos e tal mas são problemas de menor, mas vê-se que eles de vez em quando têm quezílias entre eles e alguns vêm fazer queixa, eu dou-lhes uns conselhos para que eles não levem aquilo muito a sério, que atirem as coisas para trás das costas, nós temos que ser superiores a essas coisas.Dou-me bem com todos, eu sou um indivíduo que não tenho, dou-me com todos muito bem, tenho os da mesa com quem falo mais um bocado, de resto para mim todos são iguais, trato-os todos ao mesmo nível.Respeito, respeito como respeito os outros todos, para mim são iguais aos outros todos e eles respeitam-me perfeitamente também. Quando querem ver futebol, eles que não vão à missa, eles que querem ver futebol, e o terço é rezado às seis e meia, eles vêm me pedir para eu pedir às Madres para rezarem o terço mais cedo. Eles respeitam-me perfeitamente (…) Há um respeito mútuo” Sr. Alfredo

A falta de empatia estabelecida com os colegas do lar contribui para que a D. Maria viva

os últimos anos da sua vida com indivíduos quase como se de completos estranhos se

tratassem. Retrata a falta de solidariedade, o mútuo desconhecimento e desinteresse,

pois, na verdade, entende que ninguém quer saber do que se passa. Das senhoras fala

“delas” como se fossem um grupo distante e à parte, com o qual nada tem a ver. Aos

senhores, caracteriza-os como “parolos”, sem educação. Aqui se ilustra mais uma vez a

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influência das distâncias culturais e a insolidariedade como condições

constrangedoras à construção de verdadeiras amizades.

“Eu não falo, não tenho nada para dizer, elas falam para mim e eu respondo, se perguntam alguma coisa. Não têm nada a ver comigo, não. Não sei, [as relações entre as pessoas] não estou metida muito dentro delas, falam muita coisa. Elas não são amigas umas das outras, não. Os senhores vão lá para o canto deles, só um senhor é que está do lado das mulheres, mas são muito parolos, jogam a sueca para lá, não dão bom dia nem boa tarde, ou como está, não querem saber.Não, acho que não [não há amigos]. Porque vejo pedirem cigarros e eles olha… [fazem gestos feios] (…) coitado caiu da cadeira deve ser uma empregada porque eles não se mexeram. Uma vez cai no quintal, estava lá obras, não me levantaram …parece que têm medo das pessoas. Na rua uma pessoa cai, há sempre alguém que levante, graças a Deus, eu ás vezes caí, tenho tido sorte, aqui não, bem podes ficar toda a tarde que eles não fazem nada… Não, não [pessoas não vivem como família]”. D. Maria

A falta de solidariedade reflecte-se também face à situação vivenciada pelos mais

dependentes. Embora no lar a maior parte das pessoas dependentes se encontrem claramente afastadas das restantes, falamos das que à sua dependência física juntam

alguma patologia ou debilidade psíquica e se encontram numa sala mais pequena no

piso superior, os utentes fisicamente dependentes que não criem especial perturbação ao

funcionamento quotidiano nem estejam permanentemente a requerer o cuidado das

funcionárias também se encontram na sala de convívio junto dos restantes residentes.

Quanto aos dependentes que partilham o mesmo espaço que os autónomos, não se verificam, por parte destes últimos, constantes manifestações de solidariedade, salvo raras excepções como as de utentes que estiveram hospitalizados em situação

debilitada e regressam ao lar indo directamente para as enfermarias do lar. Mesmo

assim, as visitas só acontecem para aqueles com quem se estabelecia relação de amizade e consideração. Se se trata de utentes não tão desejados, a mobilização em

torno de uma potencial visita nem chega a acontecer.

De facto, a presença de pessoas em condições de saúde muito debilitadas criam a sensação de se estar num local para morrer, contribuindo para criar um clima tenso e ameaçador, mais propício à consciencialização dos indivíduos quanto à sua

finitude.

Bazo comenta que um dos aspectos assinalados nas entrevistas que realizou é a “ruptura

existente por parte das pessoas mais saudáveis a partilhar espaço com aquelas que se

encontram em estado de saúde mais deteriorado” (1991:153). Acrescenta mesmo,

segundo manifestações dos idosos, que a presença dos mais dependentes supõe uma

ameaça para a sua estabilidade emocional e em algumas situações se produz mais

temor do que aquele que está associado à própria morte.

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Esse ambiente, para além de criar um clima mais propício à depressão dos utentes autónomos, torna-os mais isolados, fechados nos seus próprios medos que advêm do

confronto com uma imagem do futuro que desejam evitar.

Por outro lado, os idosos dependentes estão completamente à disposição da instituição, ou seja, não têm poder de decisão em torno da sua vida. Na sala de

convívio, que é o local onde se juntam mais residentes durante o dia, nunca foi possível

observar os residentes dependentes a tomarem alguma decisão sobre qualquer assunto

relativo à vida institucional ou à sua própria vida. Salvo raras excepções, dificilmente

participam em alguma actividade ou são solicitados a opinar sobre o que quer que seja.

Verifica-se, assim, uma falta de comunicação e de interacção com os outros idosos e com o staff, acentuada pelo próprio local que estes ocupam, normalmente nas extremidades da sala para não atrapalharem na habitual deslocação das pessoas e

dos objectos. Alguns destes idosos chegam mesmo a ter de esperar largos minutos

desde que fazem uma solicitação, por exemplo, para irem à casa de banho, pedirem uma

bebida ou pedirem que os levem para o quarto para descansar, e essa seja atendida

pelas funcionárias. Como estes sujeitos estão mais à mercê das funcionárias, dependendo destas para executarem todas as tarefas de vida diárias, instala-se um clima de maior laxismo e descontracção, pois sabe-se que dificilmente estes idosos se

atrevem a manifestar o seu descontentamento, dada a incapacidade para o fazerem e/ou

o medo de represálias futuras. Um dos residentes em cadeira de rodas, a quem era dado

o lanche em primeira-mão, pelo facto de necessitar do apoio das funcionárias, pedia

todos os dias, invariavelmente, após terminado o lanche, que o levassem para a cama.

Sentia-se esgotado, cansado de já estar há horas sentado na cadeira, na mesma

posição, e pelo barulho que se produz na sala, que com o avançar do tempo, deixa os

indivíduos quase como inebriados.

“Querida, leva-ma para a minha caminha, por favor. Tristeza… porque é que não me levam para a minha caminha? Eu estou a sofrer aqui. Ai…tenho frio. Está frio. Leve-me para a minha caminha que eu lá adormeço…”.

Este utente diariamente clamava por quem atendesse ao seu profundo sofrimento e

quase nunca lhe era satisfeito a sua súplica. Repetia, vezes sem conta, estas

expressões. Tinha de esperar que as funcionárias dessem o lanche aos utentes em igual

situação. Ironicamente como era uma das “situações” mais complexas para lavar e deitar,

era sempre o último a ser cuidado, esperando o tempo que fosse necessário. Em alguns momentos chegaram a ouvir-se os seus gritos na sala de convívio e nos gabinetes

dos técnicos. Só aí é que a superiora ou a assistente social se deslocavam ao leito deste

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residente, solicitando às funcionárias que o atendessem de forma mais célere, até porque

qualquer pessoa do exterior que entrasse na sala de convívio se aperceberia dos seus

clamores, penetrantes, agudos. As funcionárias chegavam mesmo a fechá-lo no quarto

enquanto esperava pela sua vez, com medo que este, em desespero, se deixasse cair

com a cadeira pelas escadas abaixo, para chamar a atenção ou mesmo atentar contra a

sua vida.

Em alguns momentos fomos passear com o utente na cadeira de rodas pelo lar, para que

o tempo não custasse tanto a passar. Ficávamos, ambos, à entrada do lar, a observar

quem entrava e saia, longe dos olhares incomodados e indiferentes dos que todos os

dias assistiam à mesma cena. Dada a dificuldade que tinha em ouvir chegamos a

escrever-lhe num papel mensagens de conforto, às quais o utente respondia com um

“que Deus te acompanhe, querida, que Deus te ajude…”.

É muito difícil transpôr para o papel o que decorre das sucessivas observações a estes

indivíduos. É como se eles estivessem na sala sem efectivamente estarem. O corpo está presente, mas a mente, esgotada pelo barulho das interacções, das entradas e saídas, do ruído da televisão, abstrai-se, entra numa outra esfera distante daquela

vivência terrena. Mergulhados naquela postura passiva, à espera que as horas passem e

normalmente mais afastados do centro da sala, nada lhes resta senão a complacência de alguns, famílias, funcionárias ou estagiárias, que lhes dirigem umas breves

palavras ou satisfazem algum simples pedido.

“Oh menina peça-me à Sandrinha se me manda comprar queijinho para as minhas

sandes”, “leve-me à casa de banho”, “apetecia-me uma omeleta num pão” eram pedidos

frequentes de uma senhora invisual e com problemas severos na sua mobilidade. Uma

outra senhora invisual e em cadeira de rodas pedia frequentemente água, talvez devido

aos seus diabetes. Estes eram alguns pedidos formulados pelos mais dependentes,

aparentemente simples, mas por vezes bem difíceis de concretizar em tempo útil!

Se se verificam enormes dificuldades em criar um clima de coesão e comunidade entre

os residentes autónomos, por maioria de razão, fica claro perceber os

constrangimentos a se criar um clima de comunidade entre os mais dependentes e o resto da comunidade residencial.

Quanto aos idosos de boa saúde, independentes, ora saem frequentemente para fora

do lar, ora refugiam-se nos seus quartos como forma de auto-protecção contra a angústia

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que decorre da observação da tragédia dos dependentes. O medo da morte isola-os,

assim, do contacto com os dependentes.

Exceptuando momentos pontuais das refeições ou alguma actividade, os idosos dependentes ocupam espaço público, enquanto que uma parte significativa dos idosos com saúde ocupam espaço privado ou, em alternativa, espaço exterior ao lar como forma de refúgio. Estes últimos “(...)dão-se conta destas salas onde a televisão

impera face a um público desatento. Imaginam então o que poderá acontecer-lhes e só

têm pressa de regressar ao quarto, de mergulhar nos seus pensamentos e nas suas

recordações do tempo em que a morte não estava próxima” (Mallon, 2000:244). Receiam

como que uma “contaminação” do estado degradante da vida desses indivíduos. Assim,

encontram alternativas ao preenchimento do seu dia a dia como forma de evitar estar tanto tempo em contacto com os dependentes. Alguns utentes vão dormir a

sesta, outros saem para passear no jardim e nas ruas comerciais que rodeiam a

instituição, outros vão encontrar-se em cafés ou outras instituições com amigos

anteriores ao lar, outros ainda, debruçam-se a fazer algumas tarefas do interesse da

instituição: pôr as mesas para o lanche, vigiar a portaria enquanto a madre responsável

desfruta do seu tempo de almoço e descanso, saídas ao exterior para comprar

medicamentos ou outros bens necessários à instituição ou a utentes que não se possam

deslocar.

De facto, a falta de saúde contribui para que os utentes em geral, mas sobretudo os mais dependentes, vivam circunscritos a um mundo muito limitado, fechado, que se

confina ao próprio lar. Para algumas pessoas os apresentadores de televisão passam a

constituir a sua família, uma vez que os distraem e lhes dão notícias sobre o que se

passa no exterior, “imagens coloridas que são engolidas pela sombria existência de uma

vida solitária” (Pais, 2006:167). Estas circunstâncias acabam por contribuir para que o

pensamento dos idosos se limite às preocupações mais mundanas, banais e os seus

interesses fiquem reduzidos à gestão quotidiana da sua vida. Em rigor, “a ausência de

interesses mais amplos, a falta de actividades que conduzem a um maior enriquecimento

das pessoas, assim como em certos casos a imagem negativa que as próprias pessoas

institucionalizadas têm da residência, leva a um relativo isolamento por relação aos seus companheiros” (Bazo, 1991:154). A questão do isolamento e incomunicação entre os próprios idosos surge, assim, para esta autora, como o elemento mais perturbador do clima da instituição, com consequências sobre o bem-estar individual

dos utentes. A autora acrescenta à sua reflexão a importância que poderia assumir o

pessoal auxiliar no processo de contornamento a estas situações, considerando que “um

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enfoque adequado por parte do pessoal em certos casos poderia levar a substituir a ruptura pela solidariedade, e a inibição em participação activa. Ajudar outras

pessoas em pior estado de saúde a sentir-se melhor pode, em certos casos, supor, para

as mais favorecidas, uma satisfação vital importante” (1991:153).

Torna-se claro perceber, perante este panorama, que se produz um terreno propício aos conflitos. Nem sempre é fácil a convivência de pessoas com procedências e

histórias de vida distintas, com estados de saúde e níveis de dependência física e

mentais diferenciados, com graus de adaptação à vida institucional muito variados.

A falta de espírito de comunidade que se gera contribui, por isso, para que sejam frequentes os conflitos e pequenas brigas construídas entre utentes. Normalmente

quem protagoniza essa brigas são os utentes autónomos, quer mulheres, quer homens.

Nunca nenhum conflito observado terminara em agressão física e, pelo que se pôde

constatar, estas situações são muito raras ou mesmo quase inexistentes. Um utente dos

mais antigos a habitar a residência referenciava, a certa altura que, “antigamente havia

mais [brigas, conflitos] quando as regras não eram tão exigentes e os homens bebiam

mais...”Sr. Baltazar

Quando se gerava algum conflito de ideias ou alguma discussão que, se alongada poderia vir a ocasionar algum problema maior, a animadora intervinha no sentido de

mediar e pôr termo ao respectivo desentendimento, de forma que raramente a situação

atingia níveis intoleráveis. Só em circunstâncias mais agudas, normalmente ocorridas nos

espaços íntimos como os quartos, a assistente social e a superiora tomavam conta da

ocorrência. Essa situação, chegando a atingir a agressão física, ocorreu uma vez na instituição, fazendo com que a utente fosse ameaçada quer pelas responsáveis do

lar, quer pela técnica da segurança social responsável pelo acompanhamento a este lar,

dado que a situação de agressão a uma colega de quarto já se havia repetido

anteriormente. Sobre esse episódio a utente relata a sua versão.

“Uma vez desapareceu 50 euros a uma senhora velhinha que dormia comigo…não se pode bater em ninguém, nem empurrar ninguém. É tocar à campainha, chamar. Ela ia a um casamento de uma neta, não sei… pela empregada…mas ninguém me disse nada. Não bati. Abanei-a. Fiquei [zangada]. E por acaso, olha, não tirei dinheiro, realmente as coisas estavam contra mim. Ela dizia que sim e eu que não, era palavra contra palavra, não havia testemunhas. Aí fiquei de castigo outro ano. Tive mesmo para me ir embora.Depois falei com aquele padre António. Lembra-se do padre António? Ele era muito engraçado. Era director de cá, deixou-me ficar…” D. Maria

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Mais recentemente a história voltou a repetir-se com a actual colega de quarto que,

segundo palavras da utente é uma “beata”. Apesar de referir que a pessoa com quem mais convive é a colega do quarto, não considera estabelecer com ela uma relação de profunda amizade. Acusa-a de a estar sempre a chatear por causa da arrumação.

Não a deixa gerir o espaço como ela gostaria nem andar nua pelo quarto depois do

banho.“Com quem é que convivo? É com a minha colega de quarto….vai dizendo qualquer coisa …eu não puxo muito por ela, deixo-a, ela reza muito, é sobrinha do padre e tal…A gente fala mais, é mais civilizada do que as outras pessoas que estão cá, todas”. D. Maria

Quando a empurrou na sequência de uma troca verbal mais acalorada, viu-se em mãos

com um conflito imenso, que fez com que a situação fosse mesmo remetida para a

segurança social. Na verdade, as responsáveis pelo lar nunca deixam escapar nenhuma situação mais conflituosa que envolva esta utente pois, apesar de não terem certezas ou provas, estão convictas que ela desenvolve práticas sexuais com indivíduos no exterior do lar e já a viram à entrada do quarto a beijar um utente do

lar, o que lhes faz criar uma repulsa tremenda pela senhora em causa cujas práticas se

afastam da moral e dos bons costumes associados à doutrina que as madres desejam

prosseguir. Claro está que rejeitam qualquer possibilidade de aproximação entre residentes de sexos diferentes, ainda que esta aproximação ocorra no exterior do lar. A sexualidade é, pois, completamente rejeitada.

Independentemente dos motivos do conflito ou do grau de responsabilidade que a utente

teve na produção do mesmo, o que se pretende é que ela seja expulsa do lar e isso nem

sequer é escondido à assistente social que teve que chegar ao limite de ameaçar

despedir-se se a utente fosse expulsa do lar. Em rigor, o conflito estabeleceu-se entre

uma “beata” sobrinha de padre e uma possível prostituta que supostamente denigre a

imagem do lar. Não havia, pois, margem para hesitação!

Certo dia, visitando uma utente doente que residia no quarto ao lado do da D. Maria, foi

possível ouvir um barulho estranho como se se tratassem de marteladas constantes na

parede. A utente residente contava-nos que se tratavam das cabeçadas da D. Maria na parede do quarto, expressando a revolta e o sofrimento pelo facto de estar de castigo e não poder sair do lar por tempo indeterminado, não obstante os problemas

psiquiátricos da utente e os conselhos médicos referentes aos benefícios das saídas ao

exterior.

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A D. Maria descrevia o seu sofrimento mais profundo, na sequência da conversa com a

assistente social da segurança social, chorando compulsivamente.

“… nunca ninguém falou assim comigo, ela rebaixou-me a pó. Disse coisas incríveis que eu nunca pensei ter de ouvir…Agora não sei quando é que vou poder sair daqui. Eu não aguento, não vou aguentar…”.

E chorava pela humilhação a que tinha sido exposta, e chorava por estar fechada de

castigo mesmo depois da colega de quarto lhe ter perdoado.

Ao nos confrontarmos com a utente em tal situação de desespero e a um dia de fim de

semana em que nenhum técnico se encontra na instituição, fizemo-la prometer que se ia

aguentar depois de lhe termos mostrado o quanto ela teria a ganhar se assumisse um

comportamento de acordo com o ordenado pela madre superiora. Em troca prometera-

lhe visitas, atenção, e o compromisso de lhe trocarmos os cigarros na 2ª feira, pela marca

preferida, como se fosse a última coisa que a consolasse.

Um outro problema a considerar, que ocorre com alguma frequência e dá origem a

situações muito desconfortáveis na vivência quotidiana na instituição é o da

desconfiança que, em algumas situações se constrói desde os primeiros dias e, às vezes, se agudiza. Esta desconfiança reflecte-se no medo de serem roubados pelos

colegas, recorrendo a esconderijos (como não têm chave dos armários), como os bolsos,

para transportarem o dinheiro, comida ou até papel higiénico, para tê-lo à mão e para que

não seja contaminado pelos outros. Barenys refere-se a Goffman que designa estas

artimanhas de “esconderijos ou recipientes portáteis”. Isto deve-se ao facto de nas

instituições totais conviverem um elevado número de pessoas com hábitos e níveis

educacionais distintos.

Vários episódios de alegados roubos podiam ser relatados em relação à instituição em

estudo. São situações múltiplas e variadas. Algumas tiveram solução uma vez que os

pertences alegadamente desaparecidos acabariam por aparecer. Tratavam-se, na maior

parte de situações de utentes que, por despiste ou esquecimentos fortuitos, não sabiam

onde haviam colocado certos objectos. Na dúvida entre o seu próprio esquecimento ou a

falta de consciência do mesmo, acabavam por culpar a instituição e os outros residentes.

Noutras situações os objectos não voltavam a aparecer. Numa grande parte dos casos

desaparecia dinheiro, noutros objectos como óculos ou peças de vestuário.

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Sobre esta questão a D. Margarida comentava a certa altura:“Olhe menina, ainda no outro dia comprei umas calças novas para ir a um jantar com umas amigas minhas, antigas, de muitos anos. As calças eram novas, bonitas com um vinco a fazer um bocadinho de cerimónia. Quando as pus para lavar nunca mais voltaram… como é que a menina explica?! Aquilo lá foi alguma [funcionária] que gostou delas e as fez desaparecer… elas eram novas… eu não sei se é tudo verdade mas que há coisas que desaparecem, desaparecem…” D. Margarida

Quando questionamos a D. Margarida sobre o que havia feito na sequência desse

episódio ela respondeu-nos com um encolher dos ombros como se nem valesse a pena

fazer nada: “para quê, menina, para me incomodar? Eu não poderia provar nada…”.

Claramente que o receio de levantar “falsos testemunhos” contra as funcionárias, ainda

por cima sem nada poder provar, a deixava angustiada, sobretudo por saber que a partir

desse momento correria o risco de perder a consideração e o prestígio que havia

granjeado junto deste grupo profissional. Passaria a ser mais uma junto de um grupo,

apesar de tudo, mais considerado na instituição que os próprios utentes.

Por outro lado, a escassa consistência dos laços fomenta o individualismo e a insolidariedade. “Cada idoso, ao não conhecer nada ou quase nada sobre a vida

passada dos que convivem com ele e ao não ter expectativas de controlar o futuro

imediato das relações que estabeleça eventualmente, não pode senão desconfiar”

(Barenys, 1990: 154). O outro é sempre uma incógnita e, como diz a autora, é sempre

triste que, com ou sem razão, o idoso se sinta obrigado a reduzir o seu mundo à sua

pessoa e aos pertences que pode transportar.

Também o pessoal faz referência frequentemente às brigas e ciúmes, referenciando que os idosos têm frequentemente invejas, discussões e choques por qualquer

coisa. Por outro lado, Barenys refere que os falatórios e confusões são atribuídos mais às

mulheres que aos homens.

Não isentando os homens de comportamentos menos adequados o Sr. Guilherme

também corrobora da tese de que são as mulheres as principais causadoras de conflitos:

“Ora bem, às vezes há sabe, às vezes há, há pessoas que discutem, mulheres, homens discutem.E quando vir que estão a acusar uma pessoa, que aqui há mulheres que é horrível, eu viro-lhe as costas, viro-lhe as costas, parte mais das mulheres do que dos homens, desculpe a ofensa, é dizer a verdade. Há aí uma mulher que é horrível e há homens que também têm os seus defeitos, gostam de acusar as pessoas que não devem acusar, nem que defeito tenham porque se as pessoas virar assim a faca para eles também dói, não é só virar a faca para os outros, a faca para nós também dói, mas dizem que não dói, mas dói muito”. Sr. Guilherme

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6.2. Como os idosos consideram a família e os amigos anteriores

Frequentemente se associa a entrada em lar ao abandono ou negligência por parte da

família. No entanto, mesmo na impossibilidade de assegurar por completo os cuidados ao

seu familiar idoso, a família pode assegurar um papel importante na vida do idoso,

desde que é tomada a decisão da entrada em lar até à vivência do dia-a-dia, prestando

apoio e acompanhamento, na medida das suas possibilidades, ao utente. Desde logo, e

no entender de Sousa, Figueiredo e Cerqueira, os familiares podem ter um papel decisivo

no que diz respeito à escolha dum lar, sendo que “tendem a considerar importante a

segurança, privacidade, atmosfera familiar e a capacidade de responder aos desejos do

idoso” (2004:135).

Mas se se entende a transição para um lar como uma experiência potencialmente

stressante para o idoso, a mesma poderá trazer implicações para toda a envolvência

familiar, gerando-se um momento crítico no ciclo vital de determinada família52.

Nesta medida, o trabalho a desenvolver com as famílias torna-se num elemento

imprescindível para o bem-estar do idoso e da família no decorrer deste processo.

Segundo Buendía e Riquelme (1997), são escassos os programas de intervenção destinados à família de idosos residentes em lar. No entanto, seria necessário investir em programas próprios centrados no apoio aos problemas concretos das famílias e, ainda, dirigidos fundamentalmente para a sua participação em projectos específicos destinados ao idoso. No entender destes autores, a atenção à família deve

inserir-se no contexto de um programa geral que deve ter início quando se processa o

pedido de entrada do idoso no lar e deve continuar ao longo das várias fases da

institucionalização. Torna-se importante detectar potenciais situações disfuncionais que possam alimentar sentimentos de culpa na estrutura familiar. Na verdade,

“impõe-se à equipa técnica a difícil tarefa de transformar uma experiência potencialmente

desagregadora – a incorporação numa residência – num elemento capaz de melhorar as

relações idoso-família, aproveitando a eliminação de importantes fontes de stress, tais

como o cuidado diário” (Buendía e Riquelme, 1997: 241). Acções como a transmissão de

52 A este propósito Buendia e Riquelme referenciam vários autores que defendem justamente que a institucionalização de uma pessoa idosa dá origem a um momento especialmente difícil para a família (Hughes, 1990), sendo que a incorporação de um pai numa residência de idosos é uma das mais difíceis decisões que pode ser tomada por um filho (Cath, 1972). Na mesma linha de pensamento, a institucionalização do idoso levanta problemas no resto da área familiar que se mostram persistentes no tempo, seja de forma velada ou manifesta (Brody, 1977). A decisão de um regime de institucionalização para um membro idoso da família suscita frequentemente um alívio acompanhado por sentimentos de culpa, insuficiência e raiva (Tobín, 1989, cit in Buendía, 1997, p.240).

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informações sobre as reacções espectáveis acerca do idoso no lar; programas de

acolhimento do idoso, de modo a facilitar a sua adaptação; acções de incentivo à

participação da família nas actividades programadas pela instituição e no apoio à

integração do seu familiar idoso, podem ajudar a que a família se mantenha como o

grupo de referência junto do idoso, em termos de apoio e afecto, assim como minorar o

efeito traumático decorrente do afastamento do idoso do seu meio e local de residência.

Mas o local de residência, porque está inserido numa determinada zona geográfica,

obriga-nos a pensar simultaneamente na comunidade que a envolve e nas trocas que aí

efectuamos diariamente, mesmo sem termos consciência disso mesmo. Falamos do pão

comprado todos os dias na padaria da esquina, das vizinhas com quem se troca

comentários fugazes sobre a vida, dos transportes que tomamos para iniciarmos a rotina

do nosso dia… Entrar num lar pressupõe, salvo raras excepções, uma ruptura com o meio ambiente, material e social em que vivia, um afastamento da rede de relações sociais que controlava e dos seus hábitos de vida diária, como as saídas, compras,

visitas, encontros… Pressupõe, pois, quebrar com todas estas rotinas, estruturadoras,

funcionais, relacionais que nos habituamos a cumprir. Está em causa, por isso, um novo

esforço de socialização e a adaptação a novos papéis, deixando para trás uma história

de vida, de acontecimentos e papéis profissionais, pessoais, familiares assumidos.

Sabe-se, pois, neste sentido, que o processo de socialização contribui para o equilíbrio

emocional das pessoas, no sentido em que “existe uma motivação intensa em cada pessoa para manter contactos significativos com as pessoas que habitam habitualmente no meio e esta motivação é maior nas pessoas de idade que necessitam

que os reconheçam como “representativos” de uma tradição num meio de vida que tem

sofrido no geral profundas transformações” (Ortiz, 1980, cit in Barenys, 1990:112). Esse

meio forma parte da sua identidade social que se desestrutura aquando da entrada na

residência.

Na investigação desenvolvida, centrada no impacto da institucionalização dos idosos na

sua identidade pessoal e social, a frequência e a diversidade de contactos que estes

estabelecem com a família, amigos, colegas, vizinhos… que ainda preservam, torna-se

num elemento fundamental para percepcionar a dimensão das sociabilidades anteriores à

entrada em lar, sendo estas relações habitualmente sentidas como factor de orgulho, de auto-estima positiva, uma vez que é possível sentir e, simultaneamente,

mostrar aos outros que não se está só, que se tem família, amigos e uma história de vida

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que vai muito para além daquele espaço e que, por isso mesmo, torna cada um dos

idosos um ser individual.

Sem dúvida que esta dimensão influencia em muito a manutenção de uma identidade pessoal e social que se deseja preservar. A identidade constrói-se

progressivamente desde a infância a partir das identificações e dos laços criados com a

envolvência e com as pessoas mais significativas sendo que o que possa vir a afectar os

laços com esses outros significativos poderá pôr em causa a integridade do sujeito

(Manoukian, 2001).

À medida que o tempo foi passando, foi sendo possível perceber que é verdadeiramente

difícil conhecermos um espaço como este, as suas rotinas, actividades e benefícios, e

sobretudo o sentir dos seus residentes. São muitas as variáveis a considerar mas, mais

que isso, é necessário tempo, tempo que nos ajuda a percepcionar, sentir e voltar a sentir

as necessidades e o clima social que se constrói e alimenta no seio dos funcionários,

equipa técnica, idosos, direcção e famílias… e que às vezes é bem sub-reptício!

De facto, e dado que não existe na instituição um livro de registos de entradas, não é

possível, ou torna-se muito difícil, ter a percepção de todos os que são visitados ao longo

de todos os dias e horas da semana. Muito menos se consegue discorrer, relativamente a

todos os casos, quem são as pessoas que fazem essas visitas, se filhos, netos, amigos,

ex-vizinhos… Por isso mesmo, foram muito úteis, para além do trabalho de observação

contínua, as informações prestadas pela assistente social e animadora do lar, dado

conhecerem, de forma privilegiada, os contextos familiares anteriores dos idosos. De

referir ainda que alguns idosos recebem os seus familiares em espaços (pequenas salas à entrada) que, mesmo não sendo predestinadas especificamente para essa função, garantem um cunho de maior privacidade, ambiente mais calmo e silencioso,

necessário ao diálogo mais restrito e particular. Os idosos encontram nesses locais

pequenos “espaços de refúgio” necessários à construção de diálogos e relatos de

carácter mais íntimo. Sobre esta questão, nunca se percepcionou que alguém da

instituição tenha colocado qualquer obstáculo. Pelo contrário, verificou-se sempre um

sorriso e cumprimento dos elementos da instituição face às visitas do idoso, como que a

aprovar e incentivar essas visitas. De salientar que estamos a falar do domínio privado e

íntimo do indivíduo.

Receber as visitas no quarto não é uma prática encorajada, uma vez que não há

quartos individuais e se colocam em causa quer a privacidade dos companheiros de

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quarto, quer a segurança da própria instituição. Como a maioria dos quartos não se

encontram fechados à chave, o acesso aos mesmos é facilitado a qualquer pessoa que

se encontre a deambular junto dos mesmos. No entanto, se algum residente se encontra

doente, é permitida a visita da sua família nesse espaço mais íntimo que é o quarto.

Nunca se observou qualquer funcionário ou responsável pela instituição a chamar a

atenção algum familiar por este motivo. É ainda muito frequente que os idosos sejam

visitados na própria sala de convívio, na presença dos restantes companheiros. Este

facto permite que, muitas vezes, se desenvolvam relações paralelas, isto é, que os

familiares não apenas dialoguem e se preocupem com o bem-estar do seu familiar

residente como também com outros residentes, sobretudo os que se costumam sentar

próximo do idoso visitado. É interessante notar que alguns familiares cumprimentam mesmo não apenas o seu idoso como outros residentes, quer à chegada, quer na

hora de se ir embora. Por outro lado, as visitas nesta sala são, muitas vezes, objecto de inveja ou conversa para alguns residentes que assistem em redor, a esses

momentos. É frequente ouvirem-se comentários do género: “olha p`ra aquela, julga que só ela é

que tem netos, valha-me Deus…”; “não sei o que é que aquele vem cá fazer todos os dias, mal fala com a

mãe. Mais valia só vir de vez em quando como fazem os meus…”; “a sobrinha daquela vem sempre toda

pimpona, tão simpática, até desfila para ver se a gente a vê [ironicamente]”.

A respeito das normas da instituição em matéria de horários de visitas, estas

encontram-se escritas no regulamento interno e referem o seguinte:

“Das visitas – procedem-se às quintas-feiras, domingos e feriados. Todas as visitas deverão deixar um documento identificativo na entrada da instituição e trazer o respectivo crachá identificativo.”

Nota: No caso do utente estar em estado de saúde que não lhe permita receber visitas

com normalidade, essas serão condicionadas a familiares e amigos mais chegados, e

autorizadas pelo médico assistente” (n.º33, do capítulo VI, relativo a horários da

instituição).

Este é um exemplo verdadeiramente exemplificativo de que as funções latentes das

instituições muitas vezes se afastam das funções manifestas. Neste caso em concreto,

ainda bem que acontece! De facto, desde que se começou a desenvolver o trabalho no

lar, e mesmo não tendo uma ideia absolutamente rigorosa acerca da quantidade de

pessoas visitadas e elementos que as visitam, o que é certo é que as pessoas vêm em horas e dias diversificados, se bem que nunca se observou ninguém a visitar um idoso

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residente no espaço de refeitório, portanto no momento de refeições, salvo situações

pontuais de aniversário. Em todo o caso, os horários das refeições não são também compatíveis com os horários que marcam os ritmos sociais da maior parte das

famílias dos residentes, fazendo com que seja dificultada a partilha desses momentos

entre idosos e sua família. Barenys detectou igualmente, nos lares estudados, que não

eram desejáveis as visitas nem de manhã, nem à hora das refeições, uma vez que as

mesmas podiam contribuir para interromper o ritmo dos trabalhos nos lares (1990:161).

De facto, esta flexibilidade existente parece-nos muitíssimo positiva, dado que se criam, por parte da instituição mais condições objectivas para que os idosos sejam visitados regularmente pelos seus familiares, que em princípio deverão ser ainda as

pessoas de referência para os idosos, em termos de afecto e apoio. No entanto, porque é

que esta flexibilidade, em termos de horários, não foi ainda transposta para o papel? Será

uma forma, ainda que subtil, por via da definição de regras rígidas, da instituição mostrar

que é ela que ainda “manda”, ou detém o poder sobre os idosos?

Por outro lado, também é certo que ninguém utiliza crachá identificativo, salvo as

estagiárias da instituição, muito menos regista a sua entrada no lar nos momentos de visita. Se é certo que esta prática facilita a gestão desses movimentos, a verdade é que

a instituição deixa de ter controle formal e legal, sobre quem entra ou sai, o que se

poderá tornar problemático numa circunstância indesejável, como de roubo, mau trato ou

visita perturbadora ou inoportuna…

De salientar ainda que, essas folhas de registo sobre entradas e saídas, designadamente de familiares, poderiam ser objecto de análise da equipa técnica que, ao se apoderar dessas informações, estaria apta a diagnosticar, do ponto de vista

da manutenção de sociabilidades, o grupo de residentes deste lar que é regularmente

visitado, ou não, e a tirar as devidas ilações, fundamentando melhor a necessidade de

possíveis intervenções a este nível.

Como partimos de uma perspectiva construcionista que, mais do que apresentar

explicações causais do mundo, se focaliza nos problemas de significado do quotidiano,

ou seja, “como as pessoas comuns teorizam sobre os seus mundos”(Gubrium & Wallace,

1990), interessa-nos perceber a importância atribuída à família e às relações familiares estabelecidas pelos utentes do lar e se, o afecto, carinho e apoio

decorrente dessas visitas contribui para minorar sentimentos de desvinculação,

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isolamento e depressão com consequências ao nível do bem-estar e da preservação da

identidade devastadoras.

Interessa, neste sentido, analisar quer a frequência53 de contactos estabelecidos, quer os elementos habituais e que mais regularmente visitam os seus familiares idosos

no lar. Em primeiro lugar poder-se-á afirmar que há cerca de 10% de idosos que nunca são visitados, ou porque não têm família ou devido a relações conflituosas que se

estabeleceram ao longo do ciclo de vida. Cerca de 45% são visitados pelo menos uma vez por semana e percentagem idêntica de idosos é apenas visitada pontualmente. De entre estes últimos podemos destacar a situação de três idosos com filhos a residir

fora do país e que, por isso mesmo, apenas visitam os seus pais no Natal ou nas férias

grandes, normalmente o mês de Agosto, quando vêm de férias ao seu país de origem.

Estas relações não parecem ser muito estreitas por razões acentuadas pelo próprio distanciamento geográfico. No período do Natal a D. Catarina foi visitada pela sua filha

que reside na Suiça. Veio buscá-la uma vez ao lar e levou a sua mãe a passear

deixando-a radiante. Daí em diante recusava-se fazer o que quer que fosse pois alegava

que a sua filha podia entrar a qualquer momento para a visitar ou levar a passear. Mas a

filha não vinha… às vezes telefonava a justificar a ausência, outras vezes nem dizia

nada. Segundo a D. Catarina ela havia-a convidado para passar com ela o Natal. A D.

Catarina aguardou até ao último momento que a sua filha a viesse buscar para a ceia de

Natal, tal como prometera, mas nunca chegou a vir, deixando a idosa numa profunda

tristeza.

A D. Zulmira, por seu lado, nem queria acreditar que a filha que se encontra em França

se havia lembrado do seu aniversário e lhe telefonou a dar os parabéns. Demorou a

levantar-se da cadeira, onde passa invariavelmente os seus dias, pois não estava a

acreditar no que lhe diziam: “anda filha, levanta-te, que é a sério. Ai tu julgavas que a tua

filha se esquecia?! Anda que ela está a ligar de longe e não podes demorar…” A idosa,

incrédula e visivelmente emocionada, deslocou-se para atender o telefone, na sala de

convívio, onde todos podiam ouvir a conversa. Apesar das palavras proferidas, breves e desimplicadas, entre esta e a sua filha, este parecia o melhor presente que algum dia

podia esperar.

Dentro destes contactos que categorizamos como pontuais, são muitas as situações que podemos encontrar. Algumas famílias visitam os seus idosos apenas

53 Estas percentagens relativas à frequência de contactos estabelecidos com seus familiares são aproximadas e definidas em função das observações e da informação cedida pela animadora e assistente social.

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em dias festivos; outras ocasionalmente, outras ainda, regularmente, ainda que não

semanalmente. As justificações para este facto são várias e podem estar relacionadas

com a necessidade dos filhos trabalharem e descansarem ao fim de semana; de

necessitarem de prestar cuidados aos seus filhos; de não terem muitas possibilidades

económicas para se deslocarem; de terem vidas agitadas ou viverem a alguma distância,

ainda que essa noção de distância seja algo discutível. A D. Palmira justifica as visitas

esporádicas dos filhos pelo facto dos transportes estarem caros, apesar de viverem a

uma distância não muito grande, cerca de 30Km. Na verdade, acaba por confessar que a

zanga com um dos filhos se deve ao dinheiro que a mãe enviou para um neto e não para

outro

“…ele veio cá em Maio, em Maio que ele veio cá. O meu mais velho é que já não vem cá há um ano. Diz que as viagens que agora são muito caras, não vem… Ele zangou-se mas agora… (risos). Ele zangou-se porque isto foi assim, eu estou assim, mandei 4 contos para o meu neto mais velho, para comprar roupa para o menino, e depois o meu filho veio cá e eu disse: olha que eu dei tanto à tua sogra para comprar roupa para o menino. E o meu filho disse: oh mãe mas ela a mim não me entregou nada…”

Na verdade, muitos podem ser os elementos que influenciam as relações, ou a ausência delas, entre idosos e seus filhos. Warnes e Ford (1995, in Sousa, Figueiredo

e Cerqueira, 2004) advogam que “o ser ou não cuidador está intimamente relacionado

com a personalidade dos elementos familiares, com os seus valores e com a relação que

estabeleceram com os parentes mais idosos”. Considerando a entrada das mulheres no mercado de trabalho como um elemento chave a ser considerado, uma vez que retira às mulheres a disponibilidade necessária para as tarefas de cuidado, Sousa,

Figueiredo e Cerqueira colocam igualmente a tónica na relação construída ao longo do

ciclo de vida, entendendo que “independentemente de se ter ou não disponibilidade e

vontade para se cuidar dos pais, essa tarefa depende, em muito, da relação anteriormente estabelecida e do processo de reciprocidade adoptado. Será então a

qualidade desse compromisso que ditará o comportamento futuro em relação aos idosos

e não a quantidade de contacto que se tem” (2004:155).

Quando os idosos entendem que foram bons pais e que investiram nos filhos a vários

níveis, nomeadamente ao nível da sua formação, em termos afectivos e económicos,

esperariam algum tipo de reciprocidade em fases de vulnerabilidade associada à velhice. A desilusão é muito grande quando perante situações de necessidade os filhos,

e também as noras, se ausentam por completo. O Senhor Mateus revela com visível

consternação a tristeza por se sentir abandonado no período que antecedeu a sua

entrada em lar. Não esperava tanto apoio instrumental da parte dos filhos, mas sim afecto

e atenção.

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“ (…) Esse estudou até mais tarde, foi lá para a Universidade Católica em Lisboa, lá completou a informática toda, ele é programador, dá aulas e tal… Dei as mesmas oportunidades ao outro, o mais velho não teve tanta cabeça, não saiu tão inteligente como o mais novo. (…) A verdade tem que ser dita, eu senti-me um pouco abandonado aos sessenta anos, um pouco não totalmente abandonado. Os filhos sim iam aparecendo, iam telefonando, agora as noras, menina, foram dez anos uma nora, sete anos outra nora, valha-me deus nem uma visita nem um telefonema… Eu ainda ia a casa deles, um sábado a um outro sábado a outro mas depois também acho que comecei a ser, julguei eu a ser uma visita indesejada, eu topava aquela frieza e comecei também a desviar-me, comecei a viver a minha vidinha e ultimamente, há quatro anos atrás como lhe disse tive um acidente e fiquei todo partido, foi a omoplata, foi as costelas todas, eu aqui deste lado (…) Agora ultimamente aconteceu-me este acidente a mim, ela estava quando me aconteceu o acidente, estava operada de fresco, tinha umas três semanas de operada à coluna. E além disso era a doença dela e depois a minha, eu não queria que as minhas noras viessem ajudar, não era preciso, estes trabalhinhos todos fazia-os eu, a empregada fazia o resto em casa e eu ia vivendo assim, eu gostava era de uma palavrinha de conforto para nós mas não Sr. e tudo isto quando eu comecei a fechar a torneira sabe? Sabe o que é fechar a torneira? Porque eu fui sempre um mãos largas mais do que a minha mulher, eu dei muitos abusos, dei, sei que dei muitos abusos que eu era um mãos largas de mais. A minha mulher dizia tu hás-de levar mais tarde e é vem verdade. Os ciúmes entre as duas noras é que começou a estragar tudo porque uma entendia que eu gostava mais de uma do que da outra e não era nada disso e você só olha mais para outro do que para o outro, e não era nada disso, pronto e admira-me esta minha nora falar assim, doutora que ela tem instrução suficiente, tem cultura suficiente para não pensar dessa forma. Eu fui muito agredido verbalmente, com palavras… (muito emocionado). Resumindo agora já vem cá os filhos, os filhos sempre vieram de quando em quando. O mais velho, o mais novo vem mais vezes, apesar de ser mais doente vem mais vezes, o mais velho vem três vezes ao ano e também ele agora está a calcar o risco, os telefonemas dele… Os pais faz anos o dia do pai o dia da mãe e tal e pouco mais mas aparece quando a mãe é internada ou o pai aparece, o mais novo é mais assíduo. A nora mais nova, a que mais trabalhos me deu é que vem agora cá de vez em quando, reconsiderou, reconsiderou ou já chegou à conclusão de que os sogros já não são um fardo para ela no futuro. A menina desculpe que também é jovem e amanhã vai ser nora, lá tomará as decisões da sua vida que entender, eu estou a falar pelas minhas não estou a falar pelas outras. Ou ela reconheceu bem, agora os velhotes já não dão trabalho nenhum, seria isso (…) Eu acho que é bom [o lar] para quem tem necessidade como eu, é mau para quem é posto aqui contra a vontade, estariam melhor em casa com os filhos, eu também estaria melhor, nunca vivi com os filhos, nem os filhos comigo, casaram foram à vida deles…” Sr. Mateus

Se é certo que se podem enunciar um conjunto vasto de factores que condicionam a

coabitação e o cuidado dos familiares aos seus idosos, factores estes muitas vezes

aceites e compreendidos pelos idosos, a verdade é que a maior parte refere que preferiria viver com a família. Este facto acaba por criar situações de alguma

ambiguidade nos sentimentos dos idosos face aos seus filhos: ora compreendem a

indisponibilidade, ora lamentam a sua ausência, entendendo que, em rigor, os idosos

deveriam permanecer na sua casa, com a sua família. O próprio Sr. Mateus, mesmo

tendo-se adaptado favoravelmente ao lar não deixa de referir que estaria melhor com os

filhos. Vejamos outros exemplos.

A D. Maria refere as saudades da casa. Antes de ter ingressado no lar via os lares com

muito “maus olhos”. Como não tem filhos esperaria um pouco mais de atenção dos seus

sobrinhos que a abandonaram mal perceberam que esta havia vendido a sua casa,

interditando-os do acesso a esse património. De facto, em alguns casos, as heranças ainda funcionam como garante da permanência de filhos ou outros familiares que,

em troca de algum apoio ao familiar idoso esperam receber os bens que permanecem na

sua posse, após a sua morte. Mesmo sabendo do grau de interesse dos sobrinhos pela

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sua casa, mais do que pela relação de afecto que pudessem vir a estabelecer com ela, a

idosa arrepende-se de não ter deixado a casa aos sobrinhos. Em todo o caso, seria

preferível ter os sobrinhos a prestar algum apoio do que ficar sozinha.

“Não é home suite home. Sabe o que quer dizer? Lar doce lar. Não é, é lar só. Falta ser suite, falta ser, falar com o coração nas mãos, ter tido amizade, ajudar sem ser por interesse … tenho muitas saudades da casa (…) A minha família é…, eu não tenho família, são dois sobrinhos, são filhos da minha irmã. Mas eles zangaram-se comigo, porque queriam que eu deixasse mais coisas a eles. Eu deixei os pratos, da melhor qualidade, as colheres eram assim, tinham brasão, eram três garfos, como é que se diz, não eram estes garfos normais…Quando viram que eu vendi a casa, zangaram-se completamente. Eu se fosse agora tinha deixado [a casa]. (…) Acho que a família não é para mandar para o lar, é para ter em casa, o velho em casa. Agora a mulher trabalha como o homem, não tem ninguém em casa, e mesmo assim queixam-se, mesmo assim queixam-se, não têm dinheiro”. D. Maria

Na ausência de filhos, irmãos ou sobrinhos, alguns idosos ainda estabelecem algum contacto com familiares mais afastados ou amigos. Do amplo leque de

relações que estabeleceu no período áureo da sua vida, restam à D. Maria o contacto

com uma prima, a mesma que a auxiliou no processo de entrada, mais difícil de manter

agora que a prima se encontra doente e de uma amiga que, apesar de muito diferente de

si, nunca a abandonou.

“Contacto [com a prima que a ajudou a ingressar no lar] ela teve uma trombose, ficou paralisada, tem quarenta e tal anos. (…) Quem paga os medicamentos é a minha amiga do colégio, (…) estava na Senhora do Rosário, na avenida, ela vivia na avenida com os pais, ela ia a minha casa brincar e eu ia a casa dela brincar. Amiga de infância. Nunca perdi contacto. Era diferente de mim. Eu sou muito cabeça no ar, ela era tudo decente, tudo muito direito. Ela não via bem o meu acasalamento, assim, sem ser casada. (…) Não. Nunca me abandonou. É verdade, coitadinha daquela rapariga, conheço-a desde que nasci e ela a mim…” D. Maria

A D. Adelaide, da mesma forma resignada com que passa os seus dias no lar, diz-nos

que preferiria estar com a família. É visitada pelo seu filho e neto cerca de uma vez por

mês, que a levam a almoçar a sua casa. Oscila, nas suas palavras concisas, em

considerar o seu filho como família. Como a própria refere, “se a gente tivesse família…”

como se, de facto, o filho não existisse.

“A minha família…os meus irmãos morreram, os outros não são família. Tenho o meu filho: Venha que vai jantar lá e depois come e vem para cá (…). Não é [se é bom viver num lar] mas a gente não tem onde ir para melhor (risos) …Se a gente tivesse família, foi toda, éramos cinco, sou só eu sozinha. Era, era [o ideal seria estar com a família]”. D. Adelaide

De facto, muitos idosos acabam por referir, nos seus discursos quotidianos, que

prefeririam estar com as famílias, até porque, em outros tempos, essa relação de cuidado havia sido garantida por eles a seus pais. No entanto, as mudanças sociais

que se têm operado não estimulam a manutenção dessa relação. Apesar da família continuar a ser a instância de socialização por excelência, ela perdeu alguma da sua importância a partir do momento em que a maior parte das aprendizagens passam

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a ser adquiridas em instâncias extra-familiares, fazendo com que o valor do saber

acumulado e transmissível dos idosos tenha ficado absolutamente minimizado. Assim, se

por um lado a família está mais indisponível para o acompanhamento ao idoso, por outro

lado, o idoso está mais dependente da envolvência social e da rede familiar, uma vez que

se confronta com uma maior vulnerabilidade, inerente ao processo de envelhecimento:

perda de poder aquisitivo, falta de autonomia e saúde, necessidade de se sentir

valorizado e preencher o seu tempo livre. Contudo, não se pode dizer radicalmente que o idoso tenha perdido o papel na família; tal depende mais da solidariedade de laços entre gerações, da saúde dos idosos, da distância a que vivem (Barenys, 1989:69).

A D. Adelaide é, neste momento, uma das pessoas que já está no lar há mais tempo,

quinze anos, daí uma certa acomodação à realidade imposta, assim como ao próprio

afastamento da família. De facto, todos os agentes institucionais são unânimes ao

referirem que as visitas e os contactos com o idoso vão escasseando à medida que os

idosos se instalam no lar. Uma funcionária reforçava, numa conversa ocasional, este

facto: “No início é tudo muito bonito, mas depois (risos), começam-se a cansar! Alguns nem no Natal os vêm buscar, é uma miséria…”.

Com a preocupação de analisar as mudanças ocorridas, em termos do cuidado prestado pela família ao seu familiar idoso, antes e após o ingresso num lar, Keefe

& Fancey54 (2000) desenvolveram um estudo que lhes permitiu concluir que cerca de

metade dos membros da família (53%) não indicaram mudanças nas suas

responsabilidades percebidas desde que os seus parentes mudaram para o lar. Para

aqueles membros da família que reportaram um decréscimo nas suas responsabilidades,

esta mudança foi predominantemente experenciada na área das responsabilidades

directas55.

54 As autoras formularam três questões de investigação orientadoras do seu estudo: (a) Como é que a transição da comunidade para um lar afecta a performance dos membros da família nas actividades de cuidado? (b)Como é que os membros da família percebem acerca das suas responsabilidades face a um parente no lar? (c) Será que as percepções dos membros da família acerca da responsabilidade mudam ao longo do curso da estadia dos seus familiares no lar? Se sim, que factores contribuem para esta mudança? (Keefe & Fancey, 2000).55 As responsabilidades directas são consideradas actividades que os membros da família fazem para os parentes, são caracterizadas pelo que a família faz e não pelo que administra. Aqui incluem-se a prestação de apoio emocional e físico, providenciar confortos pessoais e ser um meio de ligação à comunidade. Por outro lado, as responsabilidades indirectas pressupõem que o familiar se assuma como um advogado do idoso, defendendo-o, dando-lhe voz; seja um controlador/inspector do cuidado, assegurando-se que os cuidados prestados têm qualidade e são apropriados; esteja contactável, para qualquer necessidade do idoso e estabeleça uma relação com o staff, assim como o apoie no seu trabalho de cuidar.(Keefe & Fancey, 2000).

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Na verdade, e pelo que nos foi dado a entender pelo staff do lar em estudo, com a

entrada do seu familiar idoso em lar, muitas famílias, não apenas vêem decrescer as suas responsabilidades directas como também as indirectas, que se prendem mais

com a supervisão do cuidado, delegando por completo nos profissionais responsáveis

pela instituição todas as responsabilidades inerentes ao cuidado.

O senhor Afonso, cuja entrada no lar é recente, manifesta já alguma tristeza face à

ausência do filho e expectativa em torno das possíveis visitas que lhe possa fazer. Como

a experiência ainda é recente não consegue ainda culpabilizar o filho pela sua aparente

negligência, apesar da sua desolação ser evidente. Já foi possível constatar, em diversos

momentos, que aguardava a chegada do filho para o levar a sair do lar e a rever alguns

velhos amigos. Contudo, a promessa tarda a ser cumprida. Encontra sempre uma

desculpa que se prende com a falta de tempo do filho que, por sua vez, tem os seus

filhos para tratar.

Da mesma forma, a assistente social comentava a sua desilusão pelo facto do filho deste

senhor se mostrar já pouco disponível para acompanhar o pai numa consulta médica que

necessitava. Sobre as suas relações afectivas o senhor Afonso comenta-nos o seguinte:

“E já tive aqui visitas de pessoas que viviam lá comigo, lá nos quartos, estão noutros quartos mas viviam lá na mesma casa e já me vieram aqui visitar, pelo menos duas pessoas já vieram aqui me visitar. (…) As minhas netas são um bocadinho afastadas por intermédio da minha nora que se afastou e depois praticamente zangamo-nos, as netas nunca mais…O meu neto também, ainda estive com ele alguns dias, que o meu filho trazia-o no carro e tal e chegámos a um bocadinho de conhecimento mas não foi grande conhecimento…porque prontos.O meu filho a cada passo vem aqui, ainda há pouco veio aqui e levou-me até à Senhora da Hora para ver os amigos, e convivi com eles um bocadinho. E hei-de ir mais outra vez, hei-de ir ao XXXX [centro de dia que frequentou antes da entrada em lar], dos reformados, onde eu convivi lá muito tempo, hei -de ir lá dar um grande abraço aquela gente lá, hei-de lá ir (emocionado). Ah sim, o meu filho também trabalha, tem a obrigação dele, tem que cumprir as horas do horário dele e além disso fora do horário ele também cobrador do…daquela organização que há…Para cobrar mais uns tostões para a vida dele. Enfim. De maneira que ele também não tem muito tempo. Não pode vir aqui, e depois também tem a família dele, tem a filha mais velha que é casada já, mas tem a filha mais nova, tem 21 anos, foi para o XXXX, está a trabalhar no XXXXX e tem um filho, ele estuda e foi jogar para o XXXX [equipa de futebol]. Ele às vezes conta-me, agora o filho anda nos juniores, vai jogar aqui e acolá e ele acompanha-o”. Sr. Afonso

Confrontado sobre o que pensa acerca da vida em lar, responde:

“Era melhor se fosse em família mas chego a esta conclusão e, por um lado, acho bom, temos acompanhamento que noutros lados não tínhamos e, pronto, a coisa melhor que pode existir é estar no lar, para a nossa idade e para as nossas possibilidades, a coisa melhor é esta” Sr. Afonso

No estudo acima referenciado também ficou claro que as responsabilidades dos membros das famílias não são estáticas. Durante o tempo em que o idoso residente

está no lar, as mudanças na percepção da responsabilidade dos membros da família face

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ao residente vão-se modificando. A deterioração da saúde dos residentes, por exemplo o

nível de diminuição cognitiva e o aumento da sua fragilidade, têm um impacto significativo

na relação com o membro da família e no tipo de responsabilidades que eles estão

capazes de assumir. Acontece que ao longo do tempo de estadia do residente, e

particularmente se ele/ela experencia aumento da confusão mental, as responsabilidades percebidas dos membros das famílias tendem a modificar-se das responsabilidades directas para as indirectas. Os contactos passam a ser mais

espaçados e as visitas mais curtas, pois o idoso deixa de interagir adequadamente e

fazer um conjunto de actividades que outrora fazia (Keefe & Fancey, 2000).

No lar esta situação também se tornou perceptível. Não ignorando o facto de haver

idosos há pouco tempo no lar e quase sem visitas dos seus familiares, a verdade é que

essa situação é mais característica dos idosos que lá residem há mais anos. Alguns viram, de facto, a sua situação física ou psicológica deteriorar-se, impedindo interacções familiares tão prazerosas quanto o desejável pelos seus membros da

família, supõe-se. Por outro lado, temos de considerar a situação dos idosos em situação

de demência ou pré-demência, com os quais a família não consegue já estabelecer um

diálogo coerente. Aqui os estímulos à comunicação são mínimos, associado ao facto de

que as famílias não estão preparadas para lidar com a situação. Quando,

espaçadamente, visitam o seu familiar nesta situação dedicam-se mais às conversas com

funcionárias ou outras conversas paralelas, algumas vezes actuando como se o idoso

não lá estivesse presente.

De facto, deseja-se que, a partir de certa altura, os filhos prestem apoio aos pais,

respeitando o pai/mãe no seu papel e compreendendo as suas actuais necessidades.

Pretende-se, pois, que com o evoluir do ciclo evolutivo da família, “os filhos vão tomando

as suas iniciativas, entrando numa etapa de mais simetria com os seus pais, até se

produzir a inversão de complementaridade na qual os filhos passam a tomar o poder”

(Nadal & Llunas, 2003:165). Quando se respeita o poder dos pais, mais velhos, e não se

pensa em “ajustes de contas” de outros tempos, a relação pode ser vivida de forma

bastante harmoniosa.

Algumas idosas têm mesmo orgulho em falar dos filhos, mostrando como estes as

visitam regularmente e se importam com elas. A D. Rosa é um desses casos, ainda que a

relação com a nora praticamente não exista, tendo esse sido o principal motivo para não

ir viver para casa do filho.

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“Ai o meu filho vem cá todos os sábados (…) Ai menina…a minha nora é uma carta fora do baralho porque eu é raro lá ir, primeiro porque me custa e segundo com um bocadinho de sacrifício eu ia, se eu quisesse ir eu até ia, tomava dois comprimidos de manhã e aguentava bem o caminho do autocarro para lá, até à casa do meu filho, que não é assim tão longe como isso, mas eu evito tudo porque fui lá no domingo de Páscoa e chateei-me com ela e ainda lá não fui mais (…). A minha nora tem um feitio muito esquisito, muito esquisito, a gente tem que pensar muito bem aquilo que está a dizer porque se a gente disser alguma coisa que ela entenda que não é assim, até pode ser, mas na cabeça dela não é. E depois ela a mim pode não me dizer nada, o que é, depois é capaz de andar um mês a massacrar o meu filho com a mesma coisa, é capaz de se deitar e chegar à uma, duas, três da manhã…e porque a tua mãe disse assim, e porque a tua mãe disse assado, e porque a tua mãe assim…Ai é horrível, por isso eu com a minha nora nunca eu ia viver, de maneira nenhuma, isso é que de maneira nenhuma. D. Rosa

Para além das visitas regulares dos filhos, nora e mais pontualmente dos netos, no lar, a

D. Clarisse vai todos os domingos almoçar a casa do filho, onde se junta toda a

família. Para ela é factor de orgulho e para alguns, factor de inveja. A saída de alguns

utentes, sobretudo ao domingo, que é quando são mais regulares, provocam sentimentos de ciúme e tristeza nos que não têm família ou, tendo, não são

convidados a ir às suas casas. É possível ler no olhar dos mais resignados a tristeza ao

observarem a agitação e ansiedade dos que se preparam para sair. Da boca dos mais

intransigentes tecem-se mesmo comentários mais atrevidos.

Para além do contacto com a família mais próxima, a D. Clarisse ainda vai, de quando em vez, visitar os seus vizinhos e antigos amigos que, pelas suas palavras,

continuam a corresponder à amizade.

“Sinto [saudades], mas eles vêm-me ver e todos os domingos eu estou com eles. O meu filho, o meu querido filho [pessoa que mais a apoia] e a minha querida nora A minha filha é mais arisca (risos).Tem um feitio diferente.O meu filho é muito meigo e a minha nora, a minha nora não é nora, é uma filha. A minha nora tem um feitio lindo, meigo, amigo…. É amor, é boa…eu só queria que a menina visse o que ela é para os filhos. O meu filho foi muito feliz com o casamento, muito. Foi mais feliz do que a minha filha (…) o meu filho, coitadinho, de vez em quando leva-me à Cruz de Pau, a senhora não imagina os meus vizinhos! Ficam tão contentes de me ver, tão contentes e recebem-me de uma maneira…- Só quando a minha nora está de serviço é que já não vou [lá almoçar ao domingo]. Mas vem cá a filha. Vem-me buscar, vai dar uma volta comigo…A filha também vai almoçar ao filho ao domingo e depois juntamo-nos lá… Só o neto mais velho é que está em Aveiro... mas de vez em quando ainda aparece. De vez em quando também aparece também…” D. Clarisse

A visita de vários familiares, como filhos, noras/genros e netos e ainda de amigos ou colegas de outrora raramente acontece. São raros os idosos que conseguem ainda

preservar tantas ligações, ou porque o seu grau de dependência ou fragilidade já não

lhes permite sair do lar e ir ao encontro dessas pessoas, ou porque a entrada no lar

acabara por ser o acontecimento mais ou menos decisivo para que essas relações se

interrompessem. Um número ainda significativo de residentes nem sequer pertencem ao

concelho onde o lar se insere, dificultando a continuidade desses laços anteriores ao

internamento. Podemos afirmar que a diversidade de contactos e relações significativas está, em grande medida, comprometida. Destaca-se, nesta situação, a

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quase ausência dos netos ou elementos mais jovens, impedindo uma efectiva construção

de relações intergeracionais. Apesar da atenção do lar, no sentido de potenciar, pelo

menos pontualmente, contactos entre residentes e crianças ou jovens de outras idades,

por via da partilha de alguma festa ou data importante, a verdade é que esses contactos não oferecem qualquer sentido de continuidade, impedindo que se estabeleçam laços

afectivos consistentes e mais duradouros. Podemos enunciar, como excepção, a relação

que estabelecem com as alunas estagiárias finalistas de Serviço Social que já se vem

estabelecendo há alguns meses. É visível a alegria e orgulho de algumas idosas ao referenciarem a relação especial que mantêm com esta ou aquela jovem em particular56: “sabe que eu não sei o que vi naquela pequena e ela em mim, olhe foi assim

uma simpatia que se criou que eu nem sei explicar…quando ela não vem [ao lar] até vou

ver se a vejo à porta da loja da avó que mora aqui perto…”. Outra idosa comentava,

radiante, o postal que uma outra jovem lhe havia escrito no Natal, “quer ver, menina? Foi

a Mónica que me escreveu no Natal, quer crer que ela até se lembrou de mim..?!”, uma

outra ainda dizia, reforçando mais o apoio instrumental que estas jovens também prestam

“se não fosse a Ritinha, não sei que seria dos meus pés, não tinha quem me levasse a

calista e estava que já quase nem podia andar…”. Diga-se que andar na rua de braço

dado com uma jovem se mostrou factor de grande regozijo! A certa altura num desses

momentos observados, e que uma idosa se deslocava de braço dado a uma jovem, à

pergunta de uma conhecida da terra “oh Fernandinha quem é essa menina que vem

consigo, é sua neta?”, a idosa respondeu: “é minha amiga, você que tem a ver com

isso?”.

Claro está que, quando se trata dos netos, a alegria é incomparável. Certo dia, ao

passarmos no corredor, deparamo-nos com a D. Alice a conversar com seu filho, nora e

neto, num espaço morto, designado por espaço intersticial (Fisher, 1994), junto ao

corredor, mas afastado do colectivo. Mal nos avistou, a D. Alice esboçou um sorriso do

tamanho do universo, como que a indiciar o motivo da sua alegria e a convidar-nos a

partilhar um pouco dessa mesma alegria: “Olhe, menina, este é o meu neto, já lhe falei

dele, mas a menina ainda não tinha conhecido…”. Perante a nossa reacção de apreço e

elogio à simpatia do neto, não exitou em referir. “…é um bom neto e olhe que já está

formado!”.

56 Um dos objectivos do estágio destas jovens era o de estabelecerem relações estreitas com os idosos. Para tal, cada estagiária seleccionaria um ou dois idosos, tentando uma aproximação mais significativa junto dos mesmos, sobretudo os que não têm visitas ou se encontram mais solitários. Esta estratégia pretenderia motivar os idosos para a vida, fazendo-os sentir pertencer a alguém de forma espacial. Os idosos não eram conhecedores desta intenção, fazendo com que as relações estabelecidas parecessem verdadeiramente espontâneas.

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Esta possibilidade de relação entre avós e netos, tantas vezes pouco explorada,

pode trazer benefícios inequívocos para ambos. Os avós são uma fonte de

enriquecimento para os netos transportando-lhes experiência e maturidade. Os netos, por

outro lado, rejuvenescem os avós dando-lhes alegria e vitalidade (Nadal & Llunas,

2003:165).

Podemos afirmar que também aqui, no lar, se nota, de acordo com as palavras de

Barenys (1989) uma “ancianofobia”, que nos remete para uma repulsa face ao envelhecer, um desagrado em relação a tudo o que se relaciona com a velhice, doença,

incapacidade. Numa sociedade que hipervaloriza uma certa imagem em torno do ser

jovem, acaba por se compreender, não que se aceite, o afastamento acentuado dos jovens face aos idosos, ainda que se tratem de seus avós ou familiares directos.

De facto, são sobretudo os filhos os elementos que visitam os residentes. Com menos frequência as noras/genros e os netos. Quando estes não existem ainda se

vêem alguns irmãos, mais ou mesmos da idade dos residentes, ou sobrinhos. Por

último, observamos ainda mais raramente a presença de alguns vizinhos ou amigos pertencentes à rede de sociabilidade dos idosos anterior à sua entrada em lar.

Embora as visitas ocorram em qualquer dia da semana, o certo é que ainda se nota uma

maior preponderância das visitas à 5ª feira e ao domingo, reflectindo hábitos mais

antigos impostos rigidamente pelo regulamento, uma vez que nem sempre se verificou a

flexibilidade nos horários de visita que hoje se pratica na instituição.

O tempo dedicado à visita57 e a relevância dos assuntos abordados são variáveis e

difíceis de caracterizar com total rigor, ainda que em algumas situações as palavras de

carinho, o sorriso, o toque, as perguntas acerca da saúde e do dia-a-dia do idoso

denotem bastante implicação em torno do seu bem-estar, enquanto que outras visitas,

ainda que bastante regulares, nem sempre reflictam uma grande profundidade na

relação. Trata-se do caso de algumas pessoas que, estando a visitar o seu familiar,

praticamente nem estabelecem diálogos, não se observam grandes perguntas, nem

interacções de nenhuma espécie. Apenas se sentam junto ao seu familiar, aguardando

que as horas passem, observando o que se passa em seu redor.

57 Barenys refere-nos, a propósito das observações desenvolvidas no estudo que apresenta, que as visitas aos idosos se faziam sobretudo à semana, libertando o fim-de-semana para as famílias. Essas visitas eram feitas todas de tarde e a sua duração oscilava entre meia hora a três quartos de hora (1990:160/161).

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Para aqueles idosos que não têm visitas, o tempo custa mais a passar, sobretudo ao fim de semana. Se alguns ainda partilham dos contactos familiares de colegas

residentes e fazem da família destes a sua família, outros, porém, isolam-se cada vez

mais, quer dos indivíduos que estão à sua volta, quer mesmo do mundo social. Na

verdade a recepção de visitas não serve apenas para estreitar laços com a família, os

amigos e o tecido social, como também de estratégia de valorização social, mostrando

aos outros que não estão abandonados, mas sim unidos à sua família (Barenys, 1990:

160). Os que não se encontram nesta situação vêem-se diminuídos, menos informados

sobre o que se passa no exterior, sobretudo os mais dependentes, menos acarinhados e

dignos de atenção.

A D. Piedade, mesmo não tendo filhos, demonstra uma ligação enorme à irmã que a

visita semanalmente. É ela quem lhe traz comida do exterior, sobretudo sumos e

bolachas para substituir os lanches da instituição, e as histórias mais actuais. A sua

ligação à irmã é tão significativa que se esta não aparece, um dia que seja dos que estão

planeados, a D. Piedade entra logo em ansiedade.

“ (…) Vem, vem e quando não vem eu fico logo aflita. Ainda no outro dia a minha irmã, coitada, ela também não pode sempre. Ela sofre muito da coluna e assim. Ela ficou de vir e afligiu-me tanto, tanto… e eu depois fico ansiosa por pensar… ela às vezes telefona… porque eu não posso ir, porque assim, assim. E diz logo, não é por estar doente, que é para eu não me afligir. Mas também já tem sido por estar doente. E quando ela marca e não vem eu fico ansiosa e até houve aí um domingo que eu chorei, chorei, chorei, porque ela não vinha… e eu disse alguma coisa foi… porque ela ficou de vir e não vem, alguma coisa foi. Estava sufocada, aquilo estava-me a fazer mal, estava-me a fazer muito mal. Ela disse que vinha…Costuma vir ao domingo e às vezes à quinta”. D. Piedade

Sendo a família o agente socializador e educador por excelência e a matriz da identidade

dos indivíduos, deveríamos estimulá-la a manter a sua componente de segurança e defesa dos indivíduos, sobretudo em momentos de crise, como nas situações de

doença ou isolamento dos seus membros. Se atentarmos às funções básicas da família,

podemos referir que a esta instância cabe proporcionar protecção, cooperação e ajuda

mútua; assumir-se como a base da socialização e educação dos seus membros e

assumir-se como um grupo de pertença (Nadal & Llunas, 2003:144).

6.3. Como os idosos analisam as relações de cuidado e como os cuidadores constroem a realidade dos idosos

Como já houve oportunidade de referir, Goffman considera haver uma grande distância entre o mundo dos internados e a equipa de supervisão, considerando mesmo que

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se “desenvolvem dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham juntos com

pontos de contacto oficial, mas com pouca interpenetração” (Goffmam, 1996:20).

Seria, pois, impossível analisar a instituição, sem considerar o impacto que as relações

que lá se desenrolam produzem no bem-estar dos utentes. Falamos concretamente da

relação que se estabelece com a equipa que tem por objectivo prestar cuidados aos

utentes institucionalizados. Interessa analisar a dinâmica das relações entre a direcção, os funcionários e os utentes e o produto dessa dinâmica em termos de qualidade no cuidado e no afecto aos residentes. Entendemos que relações positivas,

a este nível, poderão ser factor de bem-estar e tranquilidade para os idosos. O contacto com outro significativo, que poderá, em algumas circunstâncias, ser um elemento da equipa, sobretudo quando a família não existe ou está ausente, poderá ser o garante da preservação da identidade e integridade do indivíduo institucionalizado,

do apego à vida e, até, da ligação ao mundo exterior.

Em princípio, toda a equipa devia trabalhar no sentido de alcançar o objectivo central da

instituição, que é, no caso em concreto, “dar resposta às necessidades dos utentes,

numa perspectiva de abertura e ligação com a comunidade, minimizando os problemas

afectos às pessoas idosas”58. No entanto, nem sempre isso é garantido, uma vez que, tal

como salienta Goffman os conflitos que por vezes se produzem entre os padrões

humanitários da instituição e a eficiência da instituição, resolvem-se, frequentemente, a

favor da eficiência (1996:73).

Veremos, pois, que entre os utentes e os funcionários produzem-se vários tipos de relações e sentimentos, ora de amizade, apreço, respeito, consideração, ora de crítica, reprovação, intolerância. Na verdade, quanto mais os funcionários da equipa

lidam de perto com os utentes, mais se tornam vulneráveis a apreciações, sejam

favoráveis ou desfavoráveis. Assim sendo, só a coesão da equipa, construída e

solidificada no dia a dia, através da partilha dos problemas, da discussão e da resolução

de questões de trabalho, poderá garantir um clima relacional mais positivo e duradouro.

Pretendendo analisar as relações que a equipa estabelecia com os utentes, pudemos

constatar uma diversidade de situações consoante a pessoa ou o grupo concreto de

agentes: a direcção administrativa, a direcção técnica, os auxiliares de lar e empregadas

de limpeza, as cozinheiras e ajudantes de cozinha, as enfermeiras. Vamos, então, partir

58 Ponto 3 do regulamento interno, referente à natureza da instituição.

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da análise às relações estabelecidas numa perspectiva de proximidade: dos mais afastados para os mais próximos.

Assim sendo, de acordo com as observações efectuadas, as relações de maior

afastamento estabeleciam-se com a direcção administrativa. Raras vezes os elementos desta direcção se deslocavam ao lar e ainda mais raramente se aproximavam dos utentes. Os utentes, regra geral, sabem da existência de uma

direcção “exterior” mas, com a excepção do padre, muitas vezes, desconhecem os seus

elementos ou estabelecem algum tipo de relação com eles. Das raras vezes em que foi

possível notar a presença de alguns destes elementos no lar, esclareça-se, em dias

festivos como o dia de comemoração da instituição ou o Natal, não se observou uma

clara interacção entre estes e os utentes e, mesmo no contexto dos profissionais, as

relações eram mais estabelecidas com as madres, sobretudo a madre superiora. Nas

suas análises, Bazo (1991) verificou, igualmente, um certo distanciamento entre idosos e

a direcção, em alguns casos até um total desconhecimento da pessoa que dirige a

residência.

Ao contrário, os residentes convivem diariamente com a Comunidade Religiosa, da qual

faz parte um grupo de cinco madres, incluindo a madre superiora, e que todos os dias, de

forma voluntária e gratuita59, de acordo com os votos prestados à congregação religiosa à

qual pertencem, prestam os mais diversos serviços aos utentes e à instituição. A cada

uma das madres é atribuída a responsabilidade específica por um determinado sector: o

refeitório; os cuidados de enfermagem; a portaria e o controlo das saídas e entradas; a

recolha de bens materiais para envio a países de África e, por fim, a coordenação de todo

o pessoal contratado e a gestão de todos os problemas observados no dia a dia do

trabalho interno da instituição, que cabe à madre superiora, considerada, no regulamento

interno, a encarregada geral da instituição. Em rigor, a relação estabelecida com cada uma destas madres não é exactamente a mesma e molda-se de acordo com características da personalidade de cada uma. Umas são mais introvertidas e

reservadas do que outras, umas interagem com os idosos e são mais amáveis do que

outras. A propósito da madre enfermeira, que passa mais tempo com os utentes, a

opinião é bastante consensual.

59 O Lar em estudo assemelha-se a um outro lar estudado por Barenys (1990), o qual também era dirigido por um grupo de religiosas. À semelhança do que a autora refere, as irmãs são vistas sempre muito atarefadas e dedicadas ao seu trabalho que consideram do ponto de vista religioso. Não podem escolher o seu destino, o que nos faz perceber que a motivação que as mantém no apoio aos idosos é de boa índole e não meramente económica. Estão sujeitas à dimensão de obediência religiosa, de pobreza (não cobrar dinheiro pelo seu trabalho), características que se afastam do habitual numa organização formal.

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“Para mim é uma simpatia a Madre Vitória, é uma simpatia, ela é uma mulher para todas as coisas, dança, ela canta, ela é levada dos diabos (risos).Dentro dos possíveis [bem tratado]. Com as Superioras nunca me senti mal…” Sr. Pedro

Há, com efeito, opiniões mais radicais, sobretudo no que diz respeito à relação, ou falta

dela, estabelecida com a superiora, que admitem, com dificuldade, que é a pessoa

encarregue por organizar e dirigir a instituição.

“Menina, eu suponho que deve ser a Madre Aurora, suponho eu (…) Menina, com os funcionários, eu não sei, mas com os utentes, ela pelo menos aqui no salão fala muito pouco, ela aqui fala muito pouco…” D. Rosa

A D. Margarida reforça a sua preferência pela madre que lhes transmite mais atenção e

afecto, admitindo com igual dificuldade que a pessoa com mais poder será a madre

superiora.

“A pessoa mais importante será a Madre, a Directora. Olhe, relaciona-se menos que a Madre Vitória, a Madre Vitória está sempre: “como está?”, a falar. Nós estamos a arranjar a mesa à noite ela vai pôr o remédio. Ela ainda um dia destes esteve a falar comigo. Agora a Aurora é assim mais…” D. Margarida

No entanto, ao longo destes largos meses foi possível constatar que as madres guardam sempre alguma distância e são entendidas quase como seres à parte, como divindades dotadas de um reconhecimento quase inabalável. Expressões como “o

que as madres gostarem eu também gosto”, “o que as madres entenderem está bem”,

retratam o poder simbólico, e real, que lhes é atribuído.

Tal atitude está, certamente, relacionada com os valores religiosos e espirituais bem

vincados na cultura da maior parte destes utentes. De alguma forma, as madres são entidades que melhor representam o ideal de fé idealizado e a proximidade com Deus. Esta situação pode ser facilmente verificada em momentos de grande dificuldade

ao nível de saúde, padecimento ou mesmo agonia em que a companhia das madres é

sempre preferível à de qualquer outro elemento da instituição, quase como se a sua

presença significasse o apaziguamento e a paz desejada em momentos de grande

dificuldade. Bazo relata igualmente a relação entre idosos e as religiosas, como uma

relação entendida por estes como sendo de proximidade afectiva e carinho (1991: 153).

No entanto, os residentes são capazes de reconhecer alguns excessos, sobretudo nas rezas diárias, pequenas incoerências proferidas, ou até dificuldades de relação, mas só depois de terem garantido o estabelecimento da confiança que, mesmo

assim, tem de ser objecto de certificação quando estes temas são abordados, “a menina

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não diga nada, pelo amor de Deus”, ou “como eu sei que isto fica aqui até lhe vou

dizer…”.

O Sr. Mateus tem alguma dificuldade em admitir quem é que mais organiza/dirige a

instituição, pois, na verdade, é como se não lhe reconhecesse essa competência.

“Eu tenho que dizer que é a Superiora porque ela é que é a responsável…Ela é que organiza e a Madre Rita quando cá estava também a ajudava muito a organizar. A Madre Vitória não tem muito poder organizativo e a Madre Cecília também não. Agora a Madre Madalena… nós entendemos pouco a linguagem espanhola dela. No que diz respeito à religião, Igreja e tal, essa sim, a essa não escapa nada, e à portaria, essa tem competência suficiente. As outras, a Madre Cecília anda no refeitório, é a chefe do refeitório, coitada, dá uma no cravo outra na ferradura, se a fruta está podre ela diz que está boa e não sei quê e…” Sr. Mateus

São capazes de reconhecer o grau de humanidade e sacrifício diário no apoio constante

aos idosos e, paralelamente, diferenciar algumas pela sua maior indiferença ou

afastamento face aos utentes. Contudo, nunca deixam de lhes atribuir, principalmente à

madre superiora, a função de garantes da ordem institucional. Curiosamente é a

madre superiora, segundo os utentes que se manifestaram sobre esta questão, a que

menos dedica tempo aos idosos e a que menos interage com eles. No entanto, mesmo

podendo estar em desacordo com algumas das suas opiniões ou decisões estas nunca são claramente postas em causa nem a sua actuação é facilmente objecto de críticas. Para além de um certo afastamento da superiora, reconhecem o mau génio

de uma outra madre que contacta menos com eles e que é, regra geral, pouco amada por

todos dentro da instituição. A D. Clarisse demonstra a sua falta de apreço pelas madres,

apesar de usar de alguma ironia como que para confundir o entrevistador:

“Eu não gosto delas, a mais ranhosa é a Madre Conceição, mas também gosto dela (risos). D. Clarisse

A D. Maria reforça a distância que as madres estabelecem e o seu mal-estar e repulsa

pela madre que, segundo ela, até já lhe bateu:

“Ah não, não [se houve alguém que lhe tivesse dado apoio]. Aqui dentro? A Madre Conceição é um diabo. Tratou-me sempre mal, até me bateu por estar a ver televisão lá em cima onde estão os outros doentes. A Madre Conceição tem um feitio! Porque a televisão é dela e só se via quando ela quiser e apagava… agora não se importa. Distantes…Distantes. Elas vão até a um certo ponto e depois cortam” D. Maria

Tais abordagens não impedem que se crie a figura de entidades quase místicas às quais

se presta reverência e face às quais, mesmo perante a discordância de opiniões ou

decisões, nada se tem a opôr. Eventualmente este poder simbólico que lhes é conferido

contribui para a aniquilação da diversidade de formas de pensar quer dos residentes,

quer dos restantes funcionários, o que poderá ser tanto mais verdade quanto

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constatamos a inexistência de práticas e hábitos de ampla discussão democrática acerca

das melhores decisões a tomar, nos vários domínios e contextos institucionais.

Na verdade, embora se realizem reuniões entre a madre superiora e restantes

funcionários, estas assumem um carácter pontual e visam abordar assuntos como a repartição das férias, a distribuição das escalas de trabalho, o desempenho das suas actividades quotidianas e as situações de sobrecarga. Foi possível constatar,

ao longo do percurso de observação, a preocupação da madre em contrariar a prática de receber dinheiro pelos serviços prestados, protagonizada por algumas funcionárias,

sobretudo ajudantes de lar. Não nos pareceu que esta atitude estivesse associada a

especiais preocupações com os utentes, sua dignidade e com a preservação do direito a

serem tratados com atenção, respeito e qualidade independentemente das suas

possibilidades económicas ou do seu desejo em gratificar qualquer funcionária. Ao

contrário, esta atitude advém do receio que se saiba que esta prática ocorre no lar e do

eventual receio que as entidades superiores tomem conhecimento e entendam que este

facto indicie possíveis tratamentos desiguais ou até as práticas de alguma negligência

por relação àqueles que não podem ou não querem participar nesse processo de

gratificação. Por seu lado, as funcionárias ora negam por completo que aceitem

gratificações, ora demonstram-se em discordância, pois alegam que as pequenas

gratificações de que são alvo, além de, do seu ponto de vista, serem baixas e não

prejudicarem os utentes, são voluntárias e pretendem premiá-las pela sua atenção e

carinho. Justificam que não são as próprias a fazer quaisquer pedidos ou exigências,

apenas aceitam o que lhes é oferecido pelos utentes. A situação exigiu mesmo que a

superiora proibisse determinantemente essa prática, ameaçando que se se viesse a

repetir e se apurassem os funcionários em causa, sobre estes recairia um processo

disciplinar.

A este respeito, e como forma de sensibilizar os funcionários para as problemáticas associadas às pessoas idosas, as estagiárias finalistas de serviço social60 resolveram

60 Estas sessões temáticas realizaram-se com o intuito de melhorar as competências profissionais dos cuidadores e possibilitar a actualização contínua dos seus conhecimentos, assim como para favorecer a proximidade face ao utente, melhorando qualitativamente a atenção dirigida aos idosos, por via de uma maior participação dos cuidadores em momentos de lazer e saídas ao exterior destinadas aos idosos. Alguns dos temas abordados foram: doenças neurodegenerativas; prevenção de úlceras de pressão; prevenção de infecções cruzadas; mecânica corporal e transferências; segurança e higiene alimentar. Dos momentos de interacção mais estreita pretendia-se compreender e discutir os problemas laborais do dia-a-dia. Foi criada a possibilidade a todos de participarem nestas sessões, independentemente de exercerem, ou não, serviço directo junto dos idosos residentes. Houve uma grande adesão às actividades, demonstrando o interesse que estas estavam a suscitar junto dos funcionários. A existência de uma folha de presenças nas sessões, a oferta de uma capa, folhas e caneta, assim como do conteúdo de cada sessão e de um certificado individual de presença contribuíram para dignificar a importância das sessões, reforçando algum formalismo e o carácter de seriedade que se pretendia atribuir a esses momentos. Era notório o aumento de bem-estar entre os funcionários, os quais, nos momentos de formação, quase chegavam a competir salutarmente por

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organizar sessões temáticas com os funcionários, acompanhadas de momentos de

convívio e interacção, promovendo ou melhorando o clima social entre eles e a relação

de cuidado que estabelecem com os idosos e elevando a sua própria valorização

profissional. Tal situação justificou-se, igualmente, pelo facto de muitos dos funcionários que exercem serviços dirigidos directamente aos idosos não terem usufruído de formação profissional específica para desempenhar essas funções, tendo aprendido a trabalhar com os idosos através da prática, nem usufruírem

regularmente de formação que lhes permita participar em processos de aprendizagem

contínua. Mesmo os que experenciaram formação na área não vêem os seus

conhecimentos actualizados ou reavivados, limitando-se a cumprir mecanicamente com o

que está pré-definido e lhes foi destinado. De acrescentar a postura da generalidade dos

funcionários tendente a considerar que o que tinham aprendido já aprenderam,

reflectindo, portanto, um desinvestimento na profissão e nas tarefas de cuidado que daí decorrem. Pensa-se que tal atitude poderá querer reflectir simultaneamente o desejo

de um certo reconhecimento forçado, uma certa autonomia e dignidade profissional que

não é, muitas vezes, ratificada pelos outros. Esta postura expressará porventura o desejo

de poder e de não submissão às orientações dos superiores hierárquicos que, no entender dos funcionários, ordenam mas não reconhecem, não valorizam nem acompanham a dureza do trabalho diário.

A verdade é que, atendendo à diversidade das situações dos utentes residentes no lar,

esta postura de alguma intransigência, ao nível do investimento na profissão, acarreta

uma certa incompreensão e intolerância face às doenças e problemática dos idosos. Se acrescentarmos a isto a sobrecarga de trabalho que é destinada a estes

funcionários, torna-se claro perceber a pouca disponibilidade para a relação, os afectos, o

tratamento carinhoso e paciente, culminando tal situação com o conflito que declaradamente ou sub-repticiamente se vai produzindo entre estes dois grupos humanos em presença na instituição. Algumas funcionárias ainda lamentam e têm

consciência do quanto seria importante prestar mais atenção aos idosos.

“Temos que andar sempre a correr para conseguirmos fazer tudo o que temos para fazer e às vezes ainda temos que ir ajudar as colegas! Nós saímos daqui cansadinhas…”; “Quem nos dera ter mais tempo para conversar com os nossos velhinhos e… olhe que eles bem precisam muito de ser ouvidos! Infelizmente o nosso tempo é muito pouco para isso…”.

responderem mais, mostrando que tinham apreendido os conteúdos trabalhados. O convívio entre eles também era mais visível, as gargalhadas surgiam mais espontaneamente e até a participação nas actividades com os idosos aumentou. Paralelamente, investiu-se em alguns incentivos como estratégia de recompensa pelo esforço investido, como por exemplo, a negociação de um sistema de pagamento especial para as consultas de medicina dentária; uma comissão de organização de eventos para os funcionários; actividade física para os funcionários.

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A sobrecarga de trabalho é, de resto, um dos condicionantes ao estabelecimento de relações de maior cooperação quer entre colegas de trabalho quer com idosos,

influenciando decisivamente o clima social na residência.

Uma variável decisiva para a análise das relações estabelecidas com os utentes prende-

se justamente com o clima social que se estabelece entre o próprio grupo de trabalho, neste caso, o grupo das cuidadoras que mais proximamente interagem com os

utentes. Barenys (1990) entende mesmo que o clima entre o pessoal é, do ponto de vista

do funcionamento da residência, a variável que mais influencia o dia a dia. Estamos a

falar, pois, da forma como as pessoas numa instituição percebem o seu dia-a-dia e as

relações entre os seus membros, das suas experiências pessoais no seu trabalho, assim

como do contexto das actividades habituais da instituição. É por isso necessário, para

investigar o clima, captar e dar valor às opiniões bem estabelecidas dos membros da

organização (Barenys, 1990:140).

Pelo que se poderia observar, verificou-se que o pessoal se sentia algo desagradado e desvalorizado pelo facto de sentir uma certa indiferença por parte da encarregada geral,

madre superiora, responsável pela distribuição e gestão do trabalho dos funcionários.

Embora exista uma certa familiaridade e facilidade no acesso e contacto com ela, nota-se

que esses momentos são aproveitados por algumas funcionárias para “cair em boas graças”, ainda que para tal seja fomentada a intriga e agudizados os conflitos entre colegas de trabalho. No entanto, esses momentos privilegiados são alimentados

individualmente não existindo a prática da discussão colectiva e salutar dos assuntos

profissionais que dizem respeito a todos. Como já se referiu, nas reuniões colectivas são

privilegiadas as questões relativas à divisão do trabalho, negociação de folgas e férias e

realizadas as reprimendas que a madre entende necessárias na sequência de

acontecimentos menos positivos. Nunca se desenvolve uma prática positiva de elogios pelo bom trabalho desenvolvido, nem uma estratégia pedagógica que favoreça a discussão de temas e práticas profissionais tendentes a favorecer um

clima relacional mais coeso e solidário entre colegas e residentes. Considerando a baixa formação escolar e profissional destes funcionários, assim como as actividades rotineiras de execução que lhes estão destinadas, torna-se claro perceber a

dificuldade em manter padrões de análise crítica baseados numa argumentação sólida,

construtiva e que reflictam afeição pelo trabalho. Ao contrário, é mais fácil que o pessoal

se adapte às situações instaladas, reproduzindo as atitudes de descrença, de frustração e desvalorização profissional tendentes à aquisição de uma representação

negativa em torno do seu próprio trabalho e em torno da velhice.

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Biggs reforça a ideia de que a qualidade das relações dentro da instituição irá depender

das relações que o grupo dos idosos/utilizadores e o grupo dos cuidadores

estabelecerem dentro e entre si (Biggs, 1993:153). Na relação entre pessoal e idosos importa considerar quer a ajuda instrumental prestada aos idosos, de acordo com o

seu grau de necessidade ou dependência, habitualmente considerados os trabalhos

obrigatórios e formais que a instituição exige, quer o estilo relacional que caracteriza a ligação entre estes dois grupos humanos.

A este respeito interessa analisar um conjunto de variáveis que podem contribuir e condicionar a relação entre membros do pessoal e idosos. Barenys salienta o facto

de ser necessário ultrapassar o contexto da residência para perceber as relações entre

pessoal/idosos, sendo que uma das condicionantes do cuidado é a imagem que o pessoal tem das pessoas idosas e esta não se separa da imagem construída pela sociedade em geral e que tende a considerar os idosos como pessoas marginais que

não têm outro futuro que não seja o de esperar a morte. Neste sentido, “não se pode

pretender, então, que os que se dedicam, como meros empregados da sociedade, a

cuidá-los, tenham uma imagem deles melhor que a sociedade que se integram” (Barenys,

1990:146).

Regra geral, os utentes são considerados pelas funcionárias como seres débeis, incapazes, dependentes, sendo que a atitude por relação aos mesmos deve ser de

alguma benevolência e compreensão face às “asneiras” que por vezes cometem,

dificultando o seu quotidiano profissional. Além disso, a atitude preponderante é a de que eles são tão bem tratados que não deveria haver motivos para mal-estar, sendo

que se entende que alguns deles nunca terão usufruído de condições de vida tão dignas

como aquelas de que estão a beneficiar no interior do lar.

Há, no entanto, umas opiniões mais críticas, protagonizadas pelas funcionárias da cozinha e refeitório, as quais contactando com os utentes apenas em momentos de refeição entendem que lhes falta calor humano, alimento da alma e não tanto do

físico. Como tão bem sintetizou uma das funcionárias: “…aqui há muita comida e pouco

amor, têm tudo mas falta-lhes o amor…”.

Uma outra questão diz respeito ao prestígio social vinculado a esta ocupação

profissional, uma vez que não é muito valorizado socialmente ser-se cuidador de idosos num lar, logo, um dos primeiros entraves à qualidade do cuidado prende-se com

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a imagem atribuída ao seu trabalho profissional. Um melhor ordenado poderia melhorar o

desempenho dos cuidadores, dado que o ordenado está muito associado com o lugar da

ocupação na escala de prestígio. Melhor ordenado e prestígio social são factores motivadores. Em vários momentos as cuidadoras referiam o seu baixo ordenado como

um factor desmotivador:

“ O que a gente leva para casa é uma côdea, às vezes nem chega a quatrocentos euros e trabalhamos fins-de-semana, feriados e o que calha…”.

A desilusão é ainda maior quando a par dos baixos ordenados ainda se tem que conviver

com a indiferença e o não reforço e reconhecimento dos seus superiores. A certa

altura uma funcionária, ponderando se havia de continuar a trabalhar no lar ou se devia

aceitar uma proposta de trabalho que lhe havia sido feita, comentava:

“Tanto esforço e nem uma palavrinha de consolo… isto assim é muito desmotivante… sabe, menina, o que conta não é só o que a gente trás ao fim do mês e isso é uma miséria. A gente trabalha que é uma loucura, mas se ao menos houvesse uma palavra de atenção a gente ficava mais reconfortada… eu não sei o que hei-de fazer à minha vida… se não fosse o gostar deles [idosos] …”.

De facto, dada a situação económica do lar e os baixos ingressos da segurança social

para a gestão quotidiana da residência, embora se reconheça que os funcionários

auferem um salário bastante baixo, não lhes é possível pagar acima do que está previsto

pela tabela de salários.

Uma outra dimensão, apontada pela autora, que pode dificultar a relação estabelecida

entre residentes e funcionários, diz respeito a barreiras geracionais e culturais,

gerando atitudes de passividade, indiferença, incompreensão entre ambos os grupos

(idem). A este respeito, no lar em estudo, podemos referir que a idade média das

cuidadoras ronda os trinta anos, salvo excepção do grupo das madres com idades

variáveis mas sempre mais próximas das dos utentes.

Não havendo múltiplas situações evidentes onde as diferenças etárias influenciam as

relações, há porém circunstâncias que nos levam a acreditar que a causa da indiferença entre estes grupos pode residir na discrepância de idades. Assim, é relativamente

frequente que as funcionárias estejam a dar uma refeição a determinado utente sem proferirem uma única palavra. Talvez porque o estejam a fazer sem grande prazer,

talvez porque necessitem despachar, pois outros idosos estão à espera, talvez porque,

na verdade, e porque muitas vezes se tratam de funcionárias com idades que lhes

permitiam serem netas dos idosos, pouco saibam sobre a sua vida, poucos assuntos em

comum tenham para partilhar ou, talvez ainda, os seus gostos e temas de conversa em

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nada se aproximem aos dos idosos, que estão claramente numa fase de

desenvolvimento diferente da sua.

Por outro lado, foi notório para alguns idosos, sobretudo em fase de adaptação ao lar, a

dificuldade e o desconforto que sentiam ao ser realizada a sua higiene pessoal por moças muito jovens. O senhor Guilherme, estando há pouco tempo no lar, queixava-se

frequentemente do facto de estar a dormir num quarto da parte velha do lar que não tinha

casa de banho privativa, obrigando-o a tomar banho numa casa de banho comum onde

os residentes eram acompanhados, na sua higiene íntima, por uma funcionária

encarregue dessa função. A situação fragilizara-o tanto ao ponto da alegria, que

procurava transmitir e sentido de humor para com funcionários e restantes colegas, se ter

esbatido consideravelmente. Apresentava um semblante carregado e fisicamente era

perceptível que emagrecia de dia para dia. Comentou-nos repetidamente:

“Não sei, não acho bem, não sei o que parece… toda a vida um homem trata de si e, de repente, vê-se assim numa situação… eu acho que às senhoras deviam ser senhoras a tratar e aos homens deviam ser homens e não estas mocinhas jovens, mas eu nem precisava de ninguém… se eu tivesse um chuveiro no meu quarto era o que eu queria, mas não tive essa sorte…” Sr. Guilherme

A invasão forçada da sua intimidade, tanto mais que o senhor Guilherme ainda tinha

possibilidades para tratar da sua higiene sem apoio das cuidadoras, deixava marcas

intraduzíveis por palavras mas bem marcadas no seu rosto. Dias depois viríamos a saber

que o senhor Guilherme optara por tomar banho sozinho numa casa de banho que nem

sequer tinha água quente, situação essa que se havia de repetir por alguns dias até que

os responsáveis tomassem as devidas medidas de resolução do problema. Utilizou a sua

capacidade de escolha e autonomia para preservar aquilo que ainda lhe restava da sua

identidade, não continuando a permitir que outros a aniquilassem indiscriminadamente.

O Sr. Pedro, como que antecipando um receio do que lhe possa vir a acontecer no futuro,

refere também o constrangimento que para ele significa o ser lavado por uma mulher, especialmente uma moça jovem.

“Eu, para uma mulher me vir lavar, vai ser uma consumição. Achava que isso devia ser entregue a homens, homens com homens, mulheres com mulheres, não acha? E as raparigas, muito novas a fazer esses serviços… Elas chegam ali, vamos ao banho… É, chegam e chamam e levam-nos…”. Sr. Pedro

Uma outra questão, inerente à relação cuidador/idoso, que ilustra um abuso claro e a

desigualdade nas relações entre as gerações mais jovens por relação às mais maduras,

fragilizando essas relações, evidencia-se através do tratamento verbal perante os

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idosos, sendo certo que quanto mais deteriorado estiver o estado mental do idoso mais ele será tratado de forma depreciativa ou desrespeitadora.

O tratamento por “tu”61 é uma prática comum na instituição e reiterada pelas madres e

até pessoal da equipa técnica, como a assistente social, animadora e enfermeira,

alegando uma maior proximidade com alguns utentes.

São frequentes as expressões como: “ó filhinha anda cá…”; “ó Baltazar vai-me à

farmácia…” ou “ hoje estás toda jeitosa…”. Outras expressões usadas como “a nossa

avozinha”; o “nosso menino”, ou o “mijão” reflectem a tendência clara para a

infantilização dos utentes, a qual ilustra, nada mais, do que a concepção construída na

cabeça de alguns funcionários em torno do que significa ser idoso, tão bem retratada na

célebre expressão “sabe como é, eles voltam a meninos…”.

A D. Margarida assume uma postura bastante crítica e comenta a sua opinião em torno

do tratamento por “tu”, evidenciando como se sentiu desconfortável ao ser tratada assim em frente de uma familiar, sua prima:

“As empregadas aqui é tu abaixo, tu acima, mas não… Acho que é um abuso. Uma ocasião eu estive aqui com uma gripe muito forte, no outro quarto, e a minha prima estava cá e foi lá uma levar-me qualquer coisa e disse assim: estás bem, ó Margarida. E a minha prima disse: que é isto? Digo assim: não digas nada, não digas nada, deixa lá depois a gente fica mal vista e não vale a pena (…) Eu acho que sim [é um exagero] também tudo se quer, não é?” D. Margarida

Muitos idosos tentam demonstrar que não os incomoda serem tratados assim,

porventura não desejando passar uma imagem de superioridade ou importância por eles

associada ao tratamento por senhor ou senhora.

“Sei lá, é uma maneira de falar, em Espanha é que nos tratam por tu, aqui em Portugal é por você, é a primeira vez que vejo tratar por tu.Se elas se sentem bem …mas ao princípio chocava um bocado…” D.Maria

O Sr. Mateus assume uma postura aparente de indiferença quanto a essa questão.

Contudo deixa bem patente o seu desagrado quando uma funcionária o fez,

respondendo-lhe de imediato na mesma moeda. Quanto às madres, enfim, elas são

espanholas e em Espanha existe mais esse hábito, na verdade tudo é mais perdoado!

61 Barenys nas suas investigações verificou igualmente dois exemplos onde se verificava o tratamento dos idosos por tu, chamando-os pelo nome de baptismo, sem haver o cuidado de os tratar por Sr. ou Sra. Nestes locais os idosos eram de baixo estatuto económico. Nas residências privadas verificou sempre o cuidado de tratar por Sr. ou Sra. antes do nome. Em algumas residências, ainda, perguntava-se aos utentes como desejariam ser tratados (Barenys, 1990, 147).

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“É, eu estranhei um bocadinho no princípio quando para cá vim, porque elas, algumas delas, ganham o hábito tu, mas a mim tratam-me todas por você. Não é que eu levasse a mal tratar por tu mas parece que não cai…uma vez uma delas no Natal disse-me: andaste a fazer presépio a toda a gente, a mim não me fizeste presépio nenhum; eu fiz para aí uns 4 ou 5 presépios, as iluminações dos presépios. Eu não gostei; eu disse-lhe a ela: e tu pediste-me alguma coisa? Foi só isso que eu disse…foi na lavandaria, lá lhe disseram a ela que eu não gostei daquilo, nunca mais essa senhora me aplicou essa frase do tu, não. As Madres sim, às vezes, tu e coisa e tal, agora não gosto de ver as empregadas tratar por tu aos velhinhos todos: tu assim, tu assado, mesmo essas pessoas idosas que entram para aqui ao fim de um dia ou dois já tratam por tu… não todas, algumas das empregadas têm muito o hábito enquanto outras continuam a chamar ao Sr. Fulano. Eu gosto de ouvir isso, gosto. Mas essa coisa do tu, em pessoas de uma certa idade não cai muito bem”. Sr. Mateus

Para além do desagrado e da falta de respeito associada a esse tratamento, o Sr.

Alfredo chama a atenção para o facto desse abuso também ser extensível a alguns funcionários com responsabilidades acrescidas, expressando as dificuldades que

dessa forma de tratamento podem advir quando se trata de impor regras ou resolver

quezílias.“ É um hábito que a própria pessoa, a quem elas tratam por tu, as habitua, ou que também a tratou a elas por tu. É uma troca de moeda e elas adaptaram-se a tratar por tu e ás vezes essa confiança pode vir realmente a criar certos problemas, como eu já vi, alguns comentários, alguém a dizer, está aqui há dois dias já me trata por tu e eu calei-me porque essa pessoa também as tratou por tu. E o problema é esse, é aquilo que eu digo, as pessoas para serem respeitadas têm que respeitar e dando-lhe esse azo acontece, mas eu creio que o facto de tratar por tu não deixam de tratar da mesma maneira que tratam os outros que tratam por você. Mas isso é um hábito que existe aqui muito e até a nível superior. Eu vejo tratar a Dra. Andreia por tu. Andreia isto, Andreia aquilo, o que eu acho que depois cria uma certa incompatibilidade com um momento de uma quezília ou coisa semelhante, as coisas são mais complicadas para se resolver. É por isso que eu tratando com respeito as pessoas também não têm azo para tratar de outras formas as pessoas e resolve-se mais depressa o problema assim, resolve-se porque sabe-se impor melhor.” Sr Alfredo

Na verdade, a ideia que o cuidador tem dos idosos e do que se pode esperar deles determina o seu comportamento e forma de relação. O cuidado diário ao idoso e a

sequência de acontecimentos ajudam a que sobre ele se construa uma imagem,

condicionando a relação que se estabelece com ele. “Uma vez etiquetado pelo pessoal, o

personagem fica configurado”, daí a célebre concepção goffmaniana de que a

personalidade é um produto da instituição (Barenys, 1990:147).

A influenciar decisivamente esse quotidiano está a quantidade de tempo que é dedicada

à relação e interacção com o idoso, não considerando exclusivamente a prestação de

cuidados instrumentais. Embora não se possa considerar genericamente que a atitude do pessoal face aos residentes seja distanciada, ela é sim marcada pela diferença de estatuto, sobretudo quando se trata do contacto com os mais dependentes

que estão à mercê dos cuidadores e por contactos reduzidos ao mínimo.

Biggs defende que o funcionamento residencial reproduz consistentemente modelos que

reforçam as relações entre residentes-staff que se transformem em dependência e

distância. Há alguma evidência que isto não é o que os idosos necessitam, mas talvez

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seja o que eles são levados a esperar. Na mesma linha, Giles e Coupland, apesar de

entenderem que os idosos necessitam de uma comunicação que seja respeitosa e crie

laços, o que acontece é a reprodução de uma abordagem superficial, centrada nas

necessidades básicas que emergem e a tendência para a infantilização (cit in Biggs,

1993:153)

Com efeito, os momentos de interacção da maior parte das cuidadoras com os utentes circunscrevem-se ao momento do despertar. Os que necessitam de ajuda

para se vestirem e lavarem estão um pouco mais de tempo com as cuidadoras, os

restantes, mais autónomos, apenas trocam breves palavras até se dirigirem para o

refeitório para tomarem o pequeno-almoço. Durante o dia pouco mais convivem com a maior parte das cuidadoras que se encontram a trabalhar no piso dos quartos. Algumas

utentes, as que ajudam nas tarefas de pôr as mesas para as refeições, ainda interagem

com as funcionárias do refeitório. Outras utentes procuram as funcionárias da lavandaria,

que se situa na cave da instituição, bastante afastada de todas as interacções e

contactos estabelecidos no dia a dia institucional, para trocarem algumas conversas com

essas funcionárias. Quanto à relação com os dependentes que se situam na sala do primeiro piso, esta é marcada pelas rotinas institucionais: dar o almoço, pôr a

descansar, dar o lanche e o jantar e voltar a pôr na cama. A meio da tarde, algumas

cuidadoras dirigem-se à sala de convívio exclusivamente para dar o lanche na boca aos

utentes incapazes de fazer a refeição por si próprios e, ao fim da tarde, vêm buscá-los

para lhes dar de jantar e/ou para os deitar na sua cama.

Salvo raro excepções de dias festivos, as interacções circunscrevem-se a estes contactos pontuais que não ajudam à solidificação de laços afectivos. Apesar de

alguns utentes reconhecerem as simpatias, o respeito e a alegria das cuidadoras,

sobretudo os que têm personalidades menos conflituosas ou os que estão no lar há

menos tempo, muitos têm dificuldade em tecer comentários muito positivos à relação

estabelecida.

Se considerarmos as relações e representações construídas pelos idosos face à equipa, podemos constatar alguma diversidade de situações conforme a pessoa em

causa e as tarefas que lhe cabem na equipa. No entanto, apesar de uns quanto discursos

vagos e imprecisos, no geral a apreciação face ao desempenho da equipa é positiva,

reflectindo a consciência de que os funcionários se esforçam por interagir

adequadamente com os utentes.

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“Eu acho que elas têm um bom ambiente para os idosos, acho que são carinhosas, atenciosas, tirando uma ou outra não estar no seu dia e dar uma resposta menos agradável, mas eu vejo no refeitório e tudo, aquilo servido com muito carinho, com muito amor e, mesmo eu, já tive necessidade de me vestirem do tronco para baixo e foram sempre muito atenciosas para comigo. São respeitadoras para mim, respeitam-me, já me chamam o porteiro simpático (risos)”. Sr. Alfredo

“Acho que sim, acho que sim, coitadinhas, são muito carinhosas e quando têm de dar um raspanete dão, que é mesmo assim, elas têm que manter a ordem, mas quanto a mim não tenho nada que dizer…”. D. Palmira

Bazo (1991:153) nos trabalhos efectuados, também pôde constatar que quase todas as

pessoas tinham respondido, num primeiro momento, que as relações com funcionários

eram boas. Havia, no entanto, algumas respostas mais discrepantes. Uns idosos são

mais lacónicos, outros exploram mais as suas concepções acerca das funcionárias.

Da sua análise deduz, no entanto, que das relações que se produzem no interior das

instituições, as mais positivas são as que se estabelecem com os membros do pessoal e

não as que se estabelecem entre os idosos (1991:154).

A melhor estratégia dos idosos, para não se demonstrarem em oposição radical, é assumir muitas vezes um discurso vago:

“Eu não sei…não vejo, não sei [se são bem tratados]. Eu não digo que as empregadas são todas santas, mas eu não tenho queixa de nenhuma. Perguntam se estou bem, e se quero isto, e se quero aquilo. Eu não tenho queixa de nenhuma. Elas dizem…lá está a Laura… que sou eu que dou gorjetas. Nem um tostão, que eu não tenho um tostão comigo, menina. Eu não tenho um tostão, a minha nora diz se quero dinheiro, e eu digo para que quero dinheiro, eu não tenho um tostão comigo. Mas menina, não sei…Gostava que a minha nora, não digo sempre, mas que ao fim do ano desse uma gratificação às empregadas…Gostava…” D. Clarisse

A D. Margarida comenta discretamente a falta de ajuda prestada a alguns utentes e

afirma claramente que não desabafa com nenhuma funcionária, o que nos leva a

perceber a superficialidade dos laços afectivos construídos.

“Ai isso de desabafos não falo com ninguém, elas é que… a Elsinha desabafa muito comigo. Agora nem tanto porque eu não estou na secção de cima. A Elsinha e a Maria João, elas são mais antigas sabe (…) Acho que sim, [cumprem bem com funções delas] não sei, acho que sim. Sei que dantes, as de lá de cima vinham ajudar a levar os doentes e assim, agora não aparece nenhuma cá em baixo (…) Algumas, algumas, [são prepotentes] uma que é assim toda, é a xxxx. Ela nota-se, não é?! Sabe quem é?” D. Margarida

Biggs (1993) chama-nos a atenção para o facto de que estas relações entre idosos e staff, caracterizadas pela superficialidade, terem que ser analisadas à luz de um

contexto onde os cuidadores se têm que concentrar essencialmente nas tarefas práticas

e domésticas, restando muito pouco tempo para envolver os idosos numa interacção

social fora das suas responsabilidades de trabalho. Reforçando esta ideia, e analisando

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as prioridades para estes dois grupos, Willcocks et al referem que os “residentes

procuram um ambiente desenhado para oferecer o máximo de flexibilidade, continuidade

e verdadeira amizade por parte dos seus cuidadores…O staff da residência, em

contraste, geralmente necessita uma rotina preenchida por um conjunto de regras juntas

com um conjunto predeterminado de responsabilidades que estão estritamente

cronometradas para lhes permitirem completar a sua ocupada rotina diária” (cit in Biggs,

1993:155).

Neste sentido, são valorizados e mais acarinhados os idosos que cumprem com as normas e não criam problemas, assim como os que manifestam uma certa independência, realizando actividades fora da residência e sem a ajuda das cuidadoras.

Os restantes utentes estão mais sujeitos a uma interacção marcada pela dependência de outrem na realização das mais diversas tarefas de vida diárias, Em alguns casos,

nota-se uma preocupação acrescida em entender os idosos enquanto “pessoas” e não

objectos de cuidado, fazendo-lhe perguntas sobre o que querem comer, vestir, ou

partilhando com eles pedaços da vida das cuidadoras ou dos próprios utentes, quando as

funcionárias conhecem as suas histórias e a sua família. Noutros casos, sobretudo dos

que estão mais dependentes e, por isso mesmo dão mais trabalho às cuidadoras, a

interacção estabelecida é ainda mais moderada, reforçando a ideia de que as cuidadoras avaliam os idosos pela quantidade de trabalho que lhes dão. Quando

questionamos os utentes sobre se o tratamento prestado pelas cuidadoras era de

igualdade, algumas respostas apontavam precisamente para uma maior displicência face aos dependentes:

“Bem isso já não é tanto. Há [distinções]. Por exemplo aquela D. Maria que anda de cadeirinha de rodas, essa é assim muito discriminada, ela, a senhora… levam toda a gente para cima e a criatura fica. Eu outro dia até disse: oh Dores parece impossível, leva a senhora para cima, a senhora fica aqui? Eu não levo porque não posso com o carro, mas ela tem bom físico.” D. Margarida

A D. Maria reforça claramente a discriminação que, no seu entender, existe face aos utentes mais dependentes e o facto de ser mais bem tratada desde o momento em que

não colocou entraves ao trabalho das cuidadoras.

“ Não, há preferências, deitar uns mais cedo outros mais tarde, o Sr. Correia ficava sempre para último…ele precisava de descansar mas eu não me posso meter nisso sabe, porque elas não gostam. Só as madres é que mandam…estou a dar uma ideia, o Sr. Correia não pode ir mais cedo acabou (…) Não [não gostam que se dê ideias].Sou [bem tratada] a partir do principio não exigi nada delas, não posso deixar nada em cima das cadeiras, tenho que fazer a minha cama, não posso deixar migalhas no chão, depois vou varrer, sendo assim elas não dizem nada, agora se deixar migalhas, se deixar a cama por fazer, ai não gostam, claro”. D.Maria

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Alguns utentes, aqueles que por doença ou revolta se podem tornar agressivos para as

cuidadoras são mesmo qualificados de mal-educados e mal agradecidos. Salvo raras

excepções, estes são os utentes tratados com mais indiferença, precisamente por serem aqueles com atitudes mais difíceis face às quais as cuidadoras nem sempre

estão aptas a lidar. A certa altura, uma das cuidadoras comentava o seguinte:

“Este senhor diz muito mal da gente, ui, insulta-nos, trata-nos mal, quer-nos bater, mas sabe eu só lhe perdoo porque este senhor quando estava bem era das pessoas mais simpáticas do lar p`ra gente, e a gente o que há-de fazer agora, olhe, ter paciência…”.

A propósito da prestação de cuidados, Shakespeare (2000) chama a atenção para o facto

dos modelos prevalecentes do cuidar fomentarem uma relação quase “colonial” entre prestadores e receptores de serviços, sendo estes últimos, as vítimas. Por trás

destes modelos estão lógicas de actuação paternalistas e sem significado, que não dão

voz aos receptores de serviços, relegando-os para um estado de dependência e

secundarizando os aspectos problemáticos da experiência vivenciada por estes. Muito

embora seja importante ouvir os cuidadores, deve entender-se prioritário ouvir as vozes

dos que se encontram na situação de dependência.

Biggs salienta, nas suas abordagens, que apesar do potencial positivo da comunicação, o

conteúdo da conversação pode ser controlado e unilateral, centrado numa delicadeza

formal que anula um contacto pessoal de proximidade entre idosos e staff. No entanto,

adverte que num contexto de vida predominantemente pública, se aquilo que os idosos

podem esperar é uma comunicação rígida, superficial e sem significado, manter os outros

à distância, protegendo o que lhes resta da sua privacidade e integridade pode ser uma

estratégia efectiva para remover os atributos de dependência projectados nos idosos e

expressar a preservação da sua autonomia (Biggs, 1993:154).

Com efeito, há um elemento da equipa de profissionais que reúne uma atitude favorável consensual por parte dos idosos. Trata-se da animadora sócio-cultural com a qual desenvolvem relações de profundo afecto e amizade. A animadora é a

pessoa que mais tempo passa com uma grande parte dos idosos e se interessa por

todos, ainda que seja mais prevalecente a sua relação com os autónomos. A animadora

usa palavras de carinho e afecto pelos idosos, dedica-lhes toda a atenção que

humanamente lhe é possível e preocupa-se permanentemente com eles, mesmo em

relação a temáticas que “aparentemente” nada deveriam ter a ver com o seu trabalho que

é sobretudo o de desenvolver actividades que os estimulem e os façam sentir úteis e

apegados à vida.

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A sua permanente insistência em abordar outras áreas já lhe tem causado problemas

com as hierarquias pelo facto de entenderem que esta profissional se está a imiscuir em

áreas que não são da sua responsabilidade. Dá conta do idoso que deve andar a tomar

alguma medicação desajustada; da tristeza de algum quando a família que não o visita;

da necessidade de encaminhar uma nova residente para o seu quarto dormir a sesta

quando ela demonstra cansaço; do utente que pelos seus comportamentos deve estar

prestes a recair no álcool; vai visitar algum utente à enfermaria não se esquecendo de

verificar se as suas unhas estão devidamente cortadas; é capaz de se deslocar no fim-

de-semana à instituição quando se vai realizar alguma actividade significativa para os

idosos e que possa requerer o seu apoio, nomeadamente se isso significar a participação

de algum dependente… Múltiplos exemplos poderiam ser enunciados, retratando a

profunda dedicação desta profissional aos utentes.

Face às situações em que é repreendida fica revoltada, queixando-se da falta de tempo para atender a todos. Refere, muitas vezes, que o seu trabalho é uma das suas

grandes fontes de satisfação e realização:

“Eu faço isto porque gosto e se estou aqui é para os defender em todas as situações. Eles sabem que podem contar sempre comigo…Gosto do que faço, se não fosse assim ia-me embora. Felizmente não preciso do que ganho aqui para comer…”.

Será porventura a postura de alguma tranquilidade face à vida, o prazer que advém da

dádiva permanente aos outros, e o sentido de utilidade social que a fazem, concerteza,

não esmorecer e não desistir face às adversidades que enfrenta.

Não obstante esta indiscutível disponibilidade para os utentes, não estamos perante alguém cujo comportamento seja isento de crítica pois, também é algo frequente que

chame alguns dos utentes por tu, situação que, não sendo a mais correcta do ponto de

vista da preservação da identidade dos indivíduos, é mais compreensível dada a elevada

proximidade que estabelece com muito deles que a entendem como se alguém da família

se tratasse.

Por outro lado, e dada a imensidão de trabalho que é necessário desenvolver e a

quantidade de pessoas para atender, é capaz de colocar os idosos a realizar actividades sem que estas sejam completamente do seu agrado ou sem que, pelo menos, compreendam o objectivo e o resultado do que estão a fazer.

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O mais importante para uma grande parte dos idosos é ajudar a Sandrinha a fazer

coisas, é agradar-lhe a todo o custo, pois o contrário poderia significar o desprestígio face

a alguém que tanto se estima e cuja amizade se deseja preservar. Muitos reconhecem na

Sandrinha a pessoa que mais orienta e organiza a instituição O Sr. Alfredo é uma dessas

pessoas.

“Eu acho que é a Sandrinha, a Sandrinha é a pessoa que mais capacidade tem para orientar os idosos, porque estamos a falar em relação aos idosos. Orientar o lar serão as Madre., Dentro do lar, para que certos programas se cumpram, é a Sandrinha que alerta sempre esses programas, não é? Depois as Madres só cumprem aquilo que a Sandrinha, a Sandrinha e as outras funcionárias.. quem tem mais programas e quem está mais incutida nestes assuntos é a Sandrinha”. Sr. Alfredo

Para muitos, a Sandrinha é a companheira que dá ânimo ao lar, que ajuda a que os

tempos passem de forma mais harmoniosa e preenchida. Quando ela chega ao lar o

clima relacional muda completamente. A sua voz escuta-se à distância e os idosos, ainda

que permaneçam, na inactividade, sentem-se mais acompanhados com a sua presença.

O Sr. Pedro manifesta isso mesmo.

“A Sandrinha quando cá está é outra vida, estes dias que ela não está, ui, isto estava morto. Eu acho que ela parece que nasceu para isto (risos). Tem perfil, tem habilidade, tem tudo”. Sr. Pedro

A D. Palmira corrobora a opinião do Sr. Pedro, demonstrando o seu apreço pela

profissional em causa.

“Quem mais organiza? Talvez a Sandrinha. E então…A Sandrinha trabalha muito e vai daqui.. às vezes tenho pena dela, e agora com este doente que está aí, Meu Deus. Acho que ela é uma pessoa, não sei, vocês, eu não quero escandalizar nenhuma, mas tem dias que ela vai daqui muito cansada, tem muito carinho, muito boa vontade, olhe eu não sei. E então vocês todas têm organizado aqui festas que eu, eu não posso distinguir…”. D. Palmira

A presença de um grupo significativo de alunas estagiárias em Serviço Social também não deixa indiferentes a maior parte dos idosos. A presença de elementos mais jovens que estabelecem contacto regular e sistemático parece ser claramente uma estratégia bem sucedida quando se trata de restaurar no lar um certo clima de alegria, força de viver e companheirismo. Para além disso, a presença destas jovens

significou para os utentes uma dinamização acrescida do seu dia a dia; a possibilidade de

saírem semanalmente ao exterior na sua companhia, incluindo os idosos fisicamente

dependentes; a oportunidade de desfrutar de espectáculos de dança, fados, música

clássica e popular, teatro, cinema no exterior, passeios a locais de interesse, refeições no

exterior… oportunidades essas que para muitos idosos ocorreram pela primeira vez na

sua vida; a circunstância de verem atendidas muitas das suas necessidades particulares

que requeriam apoio de terceiras pessoas, como para irem à calista, ao dentista, ao

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médico de clínica geral ou, simplesmente, comprar um bem de necessidade na

comunidade; a situação de se verem a participar mais activamente na tomada de

decisões sobre actividades a realizar e tarefas a assumir no interior do próprio lar, assim

como de assistirem a uma participação acrescida de alguns familiares na própria

dinâmica do lar, dado o investimento na divulgação e nos convites realizados à família

para que participasse nessas actividades.

A D. Maria expõe, vigorosamente, o que sente em relação à presença das estagiárias,

mostrando-se bastante contente com a sua presença.

“Acho muito bem [a presença de estagiários] dar ideias novas, muitas, muitas ideias. Acho que sim. Elas ensinaram-nos a fazer bolos…É interessante, dão razão de viver, filmes que trazem para cá, antigamente não se via filmes nenhuns, e ajudam muito a Sandrinha e de que maneira, e cantam e dançam…Muito bom, nunca fui a um passeio tão bom desde que elas estão cá, pelo rio foi muito bonito, nem nunca tinha passado por ali. Ah é verdade, o concerto, aquele concerto, ainda tenho lá o papel, há tanto tempo que não ouvia ópera (risos). Foi, foi [emocionante] não paguei nada, eu até não pensei em nada, só estava a ouvir. Fiquei muito feliz, não tive tempo de pensar em coisas más, não, estava absorvida por ele…. (risos)Sim, até as meninas que vieram estagiárias ajudaram muito e deram ideias novas, que só a Sandrinha não tinha. É muito mais divertido agora. Muito mais”. D. Maria

O Sr. Afonso, quando o questionamos em relação à presença das estagiárias, mostrava

uma alegria evidente no seu rosto e o interesse em lidar com elas. Como deixa tão bem

expresso, trata-se de meninas jovens, bonitas, que criam animação.

“Ai, ai rapariguinhas jeitosas e bonitas, ai, ai, ai…(risos). Apetecia dar uma ferradela... (risos) são todas úteis. Nesta idade todas as meninas que nos auxiliam são boas meninas. E quando elas estão há mais animação, pois tem que haver, basta a presença delas, é mesmo sem maldade, sem maldade…É sem maldade mas há sempre um certo interesse em lidar com gente jovem, valha-me Deus. Sr. Afonso

O Sr. Pedro considera que as estagiárias devem permanecer no lar. No entanto, não

deixa de referir que são “chatas” e insistentes, quando desejam a participação dos

utentes nas actividades realizadas. O Sr. Pedro é uma pessoa bastante inadaptada à

vida no lar e ausente da participação em todas as actividades. Para se sentir confortável,

ao ponto de participar em alguma iniciativa, torna-se necessário motivá-lo, insistindo na

importância da sua presença, e tentar perceber o que se passa com ele. Na verdade, usa

essa estratégia como meio para conseguir a atenção de alguns agentes institucionais,

uma vez que se trata de um pessoa profundamente solitária.

“Essas procuram ser boas raparigas. São, são.Não [não atrapalham], são um bocado chatas quando querem levar a delas avante, vamos ali, vamos acolá, você vai? Está bem, com delicadeza…Eu não sei a necessidade delas, se elas têm necessidade de vir cá e as deixam vir, eu acho que devem vir. É…falam para as pessoas; então Sr. Duarte? Eu acho que sim… [devem continuar] ”. Sr. Pedro

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A D. Margarida, que muito aprecia a presença das estagiárias, receia pela ausência após

o período final do seu estágio. Fez boas amizades e desejaria não ter de se separar das

jovens em causa.

“Eu noutro dia disse assim: vocês agora estão cá até Maio, depois olhem vão-se embora, nunca mais se lembram de nós – “quem é que lhe disse? Olhe que está enganada”. E é natural que alguma apareça, elas também são de longe, olhe a Catarina dedicou-se muito a mim. Foi, até tenho ali um postalzinho tão bonito que ela me escreveu no Natal.”. D. Margarida

A assistente social assim como a funcionária responsável pela gestão do dinheiro dos idosos são vistas como pessoas que estão mais remetidas para os escritórios, como os próprios utentes designam. Alguns utentes vêem na assistente social alguém significativo a quem recorrem para pedir um apoio ou simplesmente fazerem

um desabafo. Essas necessidades são sempre que possível atendidas e respondidas

pela técnica. No entanto, esta não desenvolve um trabalho preventivo com os idosos,

acolhendo-os em espaço privado para os ouvir acerca das suas principais dificuldades de

adaptação ou convivência quotidiana. Ao não se desenvolver sistematicamente esse

trabalho junto de todos, as relações privilegiadas que estabelece são apenas com aqueles que a procuram e solicitam o seu apoio, não havendo um real

acompanhamento a todos, ao longo dos seus vários processos de adaptação ao lar.

Apesar disso, é alguém que está atento às situações que lhe são dadas a conhecer por

outros profissionais; que frequentemente aparece na sala de convívio, dá duas de

conversa ou dedica-se a tirar os cafés como forma de estar junto dos idosos a prestar-

lhes um serviço. È muito capaz de participar nas actividades mais pontuais e de maior

impacto para os idosos, mesmo que estas se realizem ao fim de semana e, se o apoiar

algum idoso ou uma dada situação imprevista e difícil, implique ficar na instituição para

além da hora, não coloca obstáculos a esse trabalho. Contudo, dado o volume de

trabalho que lhe é destinado, algum dele de carácter burocrático que seguramente

poderia ser feito por alguém menos qualificado, nem sempre é reconhecido pelas chefias a importância da sua participação em momentos ou actividades significativas para os utentes, sobretudo quando estas decorrem à semana em horário

laboral!

“As empregadas são minhas amigas, as Madres… eu também não faço mal a ninguém, não é? E a Andreia também tem uns olhos. A Aurora é assim mais meladinha um bocado, também é doente, não é? Encontrei, olhe a Teresinha é uma jóia de rapariga, a Andreia também é. Eu falei na fechadura ela já está aí, até o Tó…Em noutro dia disse assim: oh Tó você quando é que vai ao Hospital? Diz ele assim: tem que ir? Não; porquê? Tenho lá a minha prima gostava de a ir ver; …. Tenho medo. Como caía muito e assim ainda não me sinto assim. E se for acompanhada vou, não me custa nada. E depois ele disse: eu levo-a lá. E levou-me lá e disse: eu não faço isto a toda a gente, e foi-me buscar; faço isto porque gosto de si”. D. Margarida

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Neste enquadramento, é-nos realçada a importância da participação do staff de cuidado no planeamento do ambiente residencial, sendo que esta prática contribui

para o aumento do bem-estar de residentes e staff. Archer e Whitaker pretendem

clarificar que o envolvimento do staff nas decisões democráticas que é preciso tomar não

significa negligenciar os residentes a favor do staff. Pelo contrário, pode ser a via mais directa em torno do relançar de tempo e energia do staff para trabalhar com residentes e, assim, proporcionando-lhes melhores serviços (cit in Biggs, 1993:156).

Da mesma forma, considerar a auto-expressão e participação dos idosos do planeamento do complexo residencial torna-os mais críticos, para além de conseguir

contribuir para uma mudança activa das atitudes contra a idade avançada, resgatando

um maior respeito pelos direitos pessoais e civis dos residentes. Por outro lado, seria

desejável uma distinção clara entre áreas de espaço público e privado onde os idosos

podem assim escolher interagir com companheiros ou outros tendo também um maior

poder salvaguardado.

Contrariamente, a manutenção de ambientes onde se reproduzem os medos e estereótipos associados à idade, contribui para um projecto social de exclusão física, social e psicológica dos idosos. Contudo, se as expectativas mútuas de

residentes e staff fossem clarificadas e se o ambiente institucional facilitasse ambos a

encontrar auto-expressão, talvez se contribuísse para humanizar as relações (1993:157).

Como salienta o autor, para sobreviverem no espaço do lar, os idosos são frequentemente encorajados a assumir personagens que reproduzem o papel a eles atribuído ou, para preservarem o essencial da sua integridade, rejeitam

companheiros e cuidadores condenando-se a eles próprios a uma solidão superficial

(Biggs, 1993:157).

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7. Representações sobre o lar, o futuro e a morte

De alguma forma, este ponto do trabalho permite-nos a elaboração de uma reflexão sobre os sentires dos idosos no lar, o balanço que fazem relativo à mudança operada na sua vida desde que entram para a instituição. Ao mesmo tempo, possibilita-

nos analisar como os utentes ainda são capazes, ou não, de projectar o seu futuro, os seus sonhos, aquilo que ainda pensam ser possível, não ignorando o fenómeno inexorável da morte que, consciente ou inconscientemente, se apresenta cada vez mais

presente na vida dos residentes, quer pelo facto de assistirem à morte de entes queridos

próximos, quer por assistirem, de forma incontornável, à morte de outros residentes.

Analisar a forma como a instituição pode, ou não, contribuir para apoiar e tornar possíveis alguns dos projectos e sonhos que os residentes ainda possam preservar

pode ser uma via pertinente e de respeito e contemplação do indivíduo enquanto ser

integral, cuja vida apenas terminará com a morte biológica. O respeito pelo sujeito e suas necessidades subjectivas, até ao final da sua vida, poderá representar,

indubitavelmente, um modo de preservar a sua identidade pessoal e social. Ao

considerar-se o tempo futuro dos sujeitos, não é possível ignorar a morte, entendendo-a

como um fenómeno inevitável e associado à própria vida. É sabido que frequentemente

os indivíduos têm necessidade de conversar e planear a sua própria morte, não sentindo,

porém, receptividade dos seus interlocutores na abordagem deste tema. É usual ouvirem-

se expressões do género: “lá está você a falar sempre do mesmo, olhe que nosso Senhor

ainda o castiga…”, “vai lá morrer, você ainda está rija, vai durar ainda muitos anos…”,

“não diga isso, todos nós temos a nossa hora, mas ninguém sabe qual é, só Deus nosso

Senhor”. Se é certo que estas expressões podem reflectir o desejo de os cuidadores

transmitirem ânimo ou estímulo para a vida, tentando fazer com que os idosos afastem a

ideia da morte da sua cabeça, a verdade é que esse esforço não é suficiente quando do

que se trata é de tentar que outros sejam capazes de ouvir os medos, receios, os desejos

e vontades que estão associados à vivência antecipada desse momento.

Os profissionais, mesmo os mais responsáveis, consideram, muitas vezes, que o melhor é eliminar este assunto que, na verdade, é custoso para os idosos, mas

igualmente constrangedor e delicado para os profissionais que se poderão ver

confrontados com os receios e dúvidas misteriosas que assolam a cabeça dos

residentes. Não raro, a abordagem deste tema cria pavor, rejeição, repulsa, negação

naqueles que supostamente deveriam estar mais aptos para lidar com esta realidade.

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Com tão bem reforça Hennezel62, “escondemos a morte como se ela fosse vergonhosa e

suja. Vemos nela apenas horror, absurdo, sofrimento inútil e penoso, escândalo

insuportável, conquanto ela seja o momento culminante da nossa vida, o seu

coroamento, o que lhe confere sentido e valor. Não deixa, por isso, de continuar a ser um

imenso mistério, um grande ponto de interrogação que transportamos no mais íntimo de

nós” (2002:11).

No entanto, devemos respeitar a dignidade dos indivíduos que se vêem confrontados

com a proximidade da morte, fazendo-os sentir seres humanos até ao fim, uma vez que o final da carreira moral do internado no lar corresponde, na generalidade das vezes, à sua morte e não à sua saída da instituição para viver uma outra etapa, tal como

Goffman (1996) nos referencia por relação ao que sucede em instituições que reenviam

os indivíduos para serem inseridos na sociedade.

7.1 Os utentes e as representações sobre o lar

Pensar nas representações associadas ao lar implica pensar na vida dos utentes antes e após o internamento em lar e sugere que se analise o que é que os utentes

pensavam para a sua vida mesmo antes de ingressarem no lar, que representações e expectativas tinham construído acerca do que iria ser o seu futuro quando

estivessem sós, a necessitar de cuidado ou, por algum contratempo da vida, distantes da

sua família de origem.

Bazo fala-nos das atitudes e predisposições adquiridas pelos idosos ao longo do processo de socialização, acerca da imagem interiorizada de um lar. Questionando

no seu estudo, os utentes sobre a imagem construída em torno do que representa um lar,

verificou que muitos nunca tinham pensado que poderiam ir viver para uma residência de

idosos. Alguns nem sequer tinham a ideia que os idosos iam para lares e outros, porém,

sempre pensaram que as pessoas que ingressavam num lar ou asilo pertenciam às mais

baixas classes sociais, estando o lar por isso mesmo associado à noção de pobreza e

marginalidade social. Apenas uma minoria de idosos havia pensado na possibilidade de

terminar a sua vida num lar (Bazo, 1991:157).

62 Psicóloga que acompanha doentes terminais numa unidade hospitalar parisiense de cuidados paliativos e retrata, no seu livro “Diálogo com a Morte”, o testemunho das suas experiências no acompanhamento desses doentes nos últimos instantes da sua vida. Ver bibliografia.

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Como já foi referido anteriormente, a maior parte dos utentes do lar em estudo nunca tinha pensado em ingressar num lar. Alguns, como a D. Clarisse, nem sequer tinham a

ideia do que era, realmente, um lar: “Eu nunca tinha entrado num lar, em nenhum lar, nunca tinha

entrado, não. Foi uma surpresa, foi…”.

Fizeram-no por necessidade associada à solidão e perda de autonomia a vários níveis.

“Oh menina, eu algum dia me passou pela ideia, eu algum dia pensei em ir para o lar? Concerteza, longe de eu pensar isso, só quando me vi na necessidade que me vi é que eu resolvi. Foi assim uma coisa, assim de repente. Foi, foi menina, foi até assim uma coisa muito rápida”. D. Rosa

Alguns, no entanto, surpreenderam-se pela positiva. Talvez as representações em

torno do conceito de lar não fossem as melhores, assim como as circunstâncias que

favoreceram o próprio internamento, fazendo com que, na verdade, as condições do lar

fossem sentidas de forma favorável e acolhedora. A D. Matilde, embora já tivesse

frequentado a capela do lar para assistir a algumas eucaristias, não fazia ideia do que

seria a vida no seu interior, apesar de, em rigor, demonstrar ter tido alguns receios.

“Olhe, eu sou-lhe franca, não sabia o que era. Eu vinha muito à missinha aqui, ao sábado, até vinha sempre aqui à missinha e esperava para entrar e assim.Não sabia verdadeiramente o que isto era. Agora é que uma pessoa está a saber o que é. Olhe, julguei de ser pior, mas graças a Deus não é”. D. Matilde

Outros, porém, surpreenderam-se pela negativa. O Sr. Pedro é um caso típico de falta

de adaptação. A sua progressiva fragilidade física, que o coloca cada vez mais confinado

ao lar, e a falta de um apoio acrescido que ele esperaria, sobretudo do ponto de vista do

acompanhamento à sua saúde, têm-no deixado bastante desiludido em relação à sua

vida no lar. A sua decepção é bem notória na expressão do rosto que expressa,

claramente, desalento e desesperança.

“Não… [nunca imaginou vir para um lar]. O que é que eu imaginava?! Pensava que morria antes de vir para aqui. Depois quando comecei a ver no que estava metido…” Sr. Pedro

O Sr. Pedro prolonga as suas palavras como se muito mais houvesse para dizer. Dá a

entender que nem vale a pena comentar o que se passa no lar. A maioria, contudo, refere que preferiria estar com a sua família, como ficou claro no capítulo onde se

abordou a temática das relações com a família.

Embora existam, como já analisamos, variados factores que podem contribuir para o

isolamento dos idosos no seio do lar, a representação negativa construída anteriormente em torno deste lugar de vida também contribui para o isolamento dos idosos e para a construção de baixas expectativas sobre si, a sua vida e o seu

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futuro. Se se imagina o lar como um local onde residem pessoas socialmente

carenciadas ou até marginalizadas e abandonadas pela família, sem possibilidade para

aceder a outros recursos, o interesse e a disponibilidade para conviver com outros e

estabelecer relações de amizade será seguramente menor.

Isto pode verificar-se quando pessoas que até nutrem uma certa simpatia no lar, e

assumem formas de ser e estar semelhantes, apenas se conhecem superficialmente. O

Sr. Pedro, ao referir-se à pessoa que supostamente mais aprecia e considera amiga, diz:

“Eu, para mim, que eu sinto que é mais honesto é o… mais a mulher…”. Falava do Sr. Mateus,

enquanto pessoa que mais apreciava, mas nem do nome se lembrava.

Vimos já que esta situação também poderá ser reflexo das representações que a sociedade no geral constrói à volta do que significará viver num lar, assim como da

imagem que as próprias funcionárias e técnicos implícita ou explicitamente transmitem

acerca do que significa envelhecer.

Quando perguntamos a alguns residentes o que achavam sobre a representação que “os

outros”, de fora, tinham construído sobre um lar, obtivemos respostas interessantes.

Alguns, claramente a não quererem desmerecer o lar, respondiam-nos de forma vaga

e estratégica:

“Menina, se calhar são ignorantes como eu, não sabem. Não tendo contacto com ninguém de cá de dentro, não conhecem”. D. Rosa

“ Eu sei lá, há pessoas que têm uma língua. Como é que a gente vai dizer aquilo que não sabe?! Se eu vinha aqui tanto à missinha e não sabia…Eu não sabia… “ D. Matilde

Outros idosos, porém, não tinham problema em afirmar que o lar, ou os lares no geral, eram mal vistos. O senhor Mateus, por exemplo, indignava-se frequentemente com essa

ideia feita e ripostava cada vez que alguém lamentava o facto de ele estar no lar. Não

deixava de considerar, contudo, que idealmente seria desejável estar-se com a família.

“Não vêem com bons olhos. Às vezes em conversas que tenho com pessoas: ai você está no lar? Ui isso é que eu não queria, quero morrer na minha casinha. Eu dantes também pensava assim e é claro, eu procuro as melhores palavras para responder a essas pessoas. Oxalá que o Sr. nunca chegue a necessitar porque o Sr. não conhece bem a vida do lar, só ouve as más palavras porque essas pessoas que criticam são aquelas que ouvem dizer mal do lar, os de cá de dentro que vão lá para fora dizer mal, ali para os cafés da esquina, como esse senhor já foi chamado, mais de que uma vez, por ir para ali fazer comentário. Olhe, inclusive aqui há tempos eu cheguei ali para tomar o meu cafezinho… eu só tomo um café por dia… cheguei lá e as meninas do café, as donas do café, disseram-me: então os rojões estavam bons hoje? Quer dizer comeu-se rojões aqui ao almoço, eu fui tomar o café meia hora depois, cheguei lá já se sabia que tínhamos comido rojões, acho que não está bem. Esses amigos vão para lá, porque têm doença nos dentes não podem mastigar e tal e tal e tal, a comida é dura, a carne é dura e não sei quê, criticam, criticam a comida” Sr. Mateus

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De facto, “a institucionalização de idosos acarreta a sua rotulação com alguns

estereótipos (doentes, pacientes, crianças, abandonados pela família…) que, no global,

caracterizam o idoso como incapaz de cuidar de si e assumir responsabilidades” (Sousa,

Figueiredo e Cerqueira, 2004:136). No geral, é menos prestigiante viver num lar de

idosos do que viver com a família, até porque o estereótipo que associa a vida em lar com o abandono da família é muito forte e permanece, com muita frequência, no

consciente ou inconsciente das pessoas.

A D. Beatriz, tal com o senhor Mateus, também é de opinião que as pessoas “torcem o

nariz” à ideia de se viver no lar. No entanto, e apesar de também procurar fazer um

discurso pedagógico junto dessas pessoas, no sentido de que construam uma

representação mais humanizada acerca do que é a vida em lar, não deixa de

salvaguardar a sua identidade e auto-imagem, reforçando veementemente que não tinha

ido para o lar por desprezo da família, deixando no ar subtilmente a ideia de que muitos

estarão nessa condição de marginalização e exclusão por parte da família.

“As pessoas que vêm de fora dizem-me assim: noutro dia chegou uma à minha beira: oh Beatrizinha, eu fiquei admirada, você foi para o lar e digo assim: fui, a Sra. não tem um lar? O que é que diz à sua casa? A minha casinha é o meu lar, eu também digo agora, aquela casa é o meu lar, é a minha casa. É a minha casa, é o meu lar mas olhe não fui para lá por ser escorraçada, isso digo logo…Nem por ter falta de carinho, nem por nada, fui para lá para olhar por um filho que não tinha ninguém…” D. Beatriz

A D. Margarida oscila na sua opinião. Remete o tema em análise para o que os outros

pensam acerca do lar em estudo e não acerca dos lares em geral. Fá-lo como se de uma

imagem depreciativa e estigmatizante se quisesse demarcar. Num primeiro momento,

afirma convictamente o olhar positivo dos outros em relação ao lar. Num segundo

momento já utiliza expressões que remetem para o estigma associado aos lares.

“Este lar toda a gente vê com bons olhos, a verdade tem um caminho e há… por exemplo, o César, a Maria dizem mal, que passam fome, isso é uma autêntica mentira. Com maus olhos não vêem, não é? Vêem com mágoa, com tristeza, não é?” D. Margarida

De maneira algo parecida a D. Clarisse esforça-se por espelhar uma imagem positiva acerca do lar em que reside, servindo-se, para esse efeito, de um comentário de uma

senhora que a visita. Trata-se de fugir à imagem construída geralmente em torno dos

lares, através de uma estratégia que reforça uma maior isenção: a de colocar e salientar

a imagem que outra pessoa produz acerca do lar.

“Não sei, [o que os outros pensam do lar] eu tenho uma pequena, que é irmã de uma cunhada minha que me vem aqui visitar, vem aqui à missa, vem aqui visitar-me e ela já se inscreveu para vir para

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aqui. E ela esteve-me a perguntar, e ela diz que aqui pelo que ela vê, que não há lar que é melhor que o nosso”. D. Clarisse

Há ainda residentes que se esforçam por defender o lar, referindo que as pessoas que

não vivem lá não se podem pronunciar. Comentam, porém, a tendência das pessoas compararem os lares a cadeias, lugares de abandono e enclausuramento. Apesar

disso, estão certos que há lares que maltratam e não oferecem condições de vida digna. É interessante analisar, a este propósito, os relatos do Sr. Alfredo e Sr. Afonso.

Ambos apresentam visões semelhantes. O Sr. Alfredo comenta, contudo, que o que lhe

ofereceu confiança foi o facto de o lar ser dirigido por madres. Acredita que, em boa

parte, o sucesso dos lares está dependente de uma gestão religiosa, de padres ou

freiras, considerando que, com a sua presença se verifica mais respeito e menos conflito.

“Acho que as pessoas de uma maneira geral que não têm conhecimento do que é um lar, vêem o lar com um certo desprezo, vá lá, como uma cadeia ou uma coisa que uma pessoa está ali presa, abandonada, quando não é isso, é totalmente o contrário. Eu já me apercebi de um comentário de uma pessoa exterior ao lar que via o lar assim: até nem queria ir lá dentro porque se sentia mal, está a perceber? Só quem vive aqui dentro é que sabe como são os lares e depende dos lares também, não é? Estou convencido que há aí lares que são tenebrosos não é? Para mim o que mais me deu confiança foi precisamente isto ser orientado por Madres, foi isso, eu vi logo que aqui havia regras. Agora, um lar que é orientado por pessoas da Segurança Social ou semelhante, muitas vezes as pessoas não acatam as normas como acatam aqui com as freiras, não sei porquê, mas pelas freiras há um certo respeito. Por exemplo se no lugar das freiras fosse a Dra. Andreia e a D. Teresinha a orientar isto as pessoas quezilavam mais e não só, depois tratam as pessoas por tu, enquanto pelas Madres respeitam as Madres todas, não é? Não as tratam por tu, tratam-nas por você. Eu creio que num lar onde não aparece esta orientação onde estão freiras ou até padres, eu creio que isto não correria tão bem”. Sr. Alfredo

O Sr. Afonso avança com uma opinião em parte semelhante:

“ Pois, isto é uma maneira de ter ou não conhecimento, muitos não sabem como é que isto funciona. Ora bem, isso também depende, depende do lar que é. Eu já tenho visto nos jornais, que é uma roubalheira do diabo, são os utentes que mais podem e servem-nos da pior maneira, mas isso não quer dizer que é aqui. Vê-se nos jornais que há muita estupidez por aí fora, por esse mundo fora, cada qual é quem é…” Sr. Afonso

Por outro lado, a boa ou má adaptação ao lar poderá influenciar decisivamente a atitude assumida perante a vida e os outros. De entre outros factores que estão

associados ao processo de adaptação, podemos destacar as mudanças que se operaram

na vida dos indivíduos a partir do momento em que entraram para o lar. Em geral quanto mais os indivíduos têm que fazer mudanças abruptas, no que concerne ao seu estilo de vida e às decisões que tomam relativas à organização do seu quotidiano, mais difícil se torna a adaptação ao lar. Para aqueles idosos que não sentem grandes

diferenças relativamente à sua vida anterior, nem sentem falta de liberdade para fazerem

do seu dia a dia o que entendem mais adequado, a adaptação é mais pacífica.

O senhor Guilherme sentiu, com a entrada em lar, o alívio por não ter de se sujeitar às

más palavras da família. Refere que mudou para melhor e que agora pode conversar

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livremente. Não fosse o desagrado pelo colega de quarto, que insiste em não querer

“acusar”, tudo estava perfeito.

“Mudou o seguinte, querida, mudou eu estar a comer, agora, de há um tempo para cá, há uns anos para cá, mas mais ou menos há quatro meses, o que mudou na vida foi estar a comer e a conversar, que eu nem conversar podia conversar, mudou muito, muito, muito, gostei muito que esta mudança viesse a acontecer porque estávamos a comer, éramos mudos, e se não éramos mudos, era um choque eléctrico de vez em quando que vinha, e eu tinha que arrumar. E aqui não. Aqui sinto-me bem, ouviu querida, é isso que queria saber?O que mais gosto de lar é ver as pessoas todas contentes, e se não vir as pessoas todas contentes fico triste.Do que gosto menos é de ver e ouvir as pessoas a discutir, é disso.Sinto-me seguro, sinto-me seguro e sou-lhe franco não há nada aqui que eu possa acusar, eu não estou a acusar o meu colega, é preciso ver, a menina não julgue isso. Tenho pena de me acontecer aquilo e sinto-me seguro que eu não acuso ninguém, sou capaz de brincar com quem for mas acusar não acuso”. Sr. Guilherme

Os sentimentos de segurança e confiança em relação ao futuro são bastante

referenciados por muitos idosos. O Sr. Afonso é um desses casos. Curiosamente no dia

em que lhe foi solicitada a realização da entrevista ele encontrava-se a reclamar dos

serviços de enfermagem e da deficiente prestação de cuidados de saúde que o lar

dispensa, mostrando-se verdadeiramente desiludido com esse facto. Contudo, em

resposta às questões sobre esta temática não foi capaz de referenciar esse

descontentamento. Se, por um lado, o facto de este senhor estar a residir no lar há pouco

tempo o faz evitar qualquer situação delicada que o possa pôr em causa, por outro lado,

salienta-se aqui o efeito da desejabilidade social, procurando formular respostas não comprometedoras e previsivelmente de encontro ao que o entrevistador espera.

Em relação aos pontos fracos do lar, estrategicamente remete-os para si próprio, para o

seu sofrimento físico.

“Sinto-me mais seguro e confiante, que até aqui o meu futuro era um bocado difícil, agora tenho o futuro mais garantido. Agora posso confiar que durante o tempo que vou estar, tudo me vai correr melhor, tenho mais confiança É difícil de explicar, é difícil de explicar, que há muita coisa boa, muita coisa boa, dizer qual é mesmo o melhor é um bocado difícil. É a amizade, é a amizade. A pior é o sofrimento, o sofrimento é o pior que se pode ter nesta casa. Problemas físicos, não é? Custa muito suportar dores, físico, custa muito”. Sr. Afonso

Uma vez mais se aponta a questão do apoio que se recebe no lar e que transmite

segurança e alívio perante situações difíceis. O Sr. Mateus não se considera, na

sequência do seu internamento no lar, um homem mais realizado, mas sim mais alegre.

Esse sentimento advém, segundo o próprio, da libertação do stress e da opressão em

que vivia devido aos problemas de saúde da sua esposa. Considera o mau

relacionamento entre alguns idosos a pior característica do lar, valorizando, porém, as instalações e o convívio, sobretudo com as madres.

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“Ora bom, como é que eu hei-de, olhe sinto-me mais alegre, não me sinto mais realizado, sinto-me mais alegre porque o stress que tinha cá dentro de mim, descarreguei-o todo, fui descarregando, e todos os dias procuro descarregá-lo, o stress da vida, os problemas porque aqui também tenho apoio. O ano passado por exemplo, a minha mulher entrou aí em parafuso, foram dois meses do arco da velha, entrou em alucinações auditivas e visuais que não queira saber, eram noites inteiras de espectáculo aí, e as Madres, isso devo eu à Madre Aurora e à Madre Rita que foi embora. Conheceu-a? A enfermeira que se foi embora, porque, pronto, internavam a minha mulher porque eu não consegui, são os tais apoios que eu não tinha em casa, não tinha, aqui tenho. Porque quando eu dizia que chamava cá o médico de família; nem penses nisso, elas chamaram-no e a Dra. Andreia, elas chamaram, ele apareceu aqui uma vez às 11 da noite e pronto ele aqui assistiu a minha mulher e fez aqui a carta para o internamento e no outro dia ficou internada e graças a Deus valeu a pena. Eu hoje, eu digo, agora já me sinto outro homem, sinto-me mais… Sim, não é mais realizado, sinto-me mais aliviado pois claro, eu vivia oprimido, a minha vida era um stress permanente, eu nunca sabia se ia terminar o dia lindamente, lá em casa, ou se ia ter o caldo entornado, eu nunca sabia…O que é que eu gosto mais? Vou dizer que é do convívio, vou dizer que é das instalações da casa, vou dizer que é da convivência que tenho com as Madres, eu sei lá, é tudo. O que gosto menos é, olhe é a convivência dos idosos uns com os outros, é o único senão que eu tenho mais mágoa é o mau relacionamento de alguns, uns com os outros”. Sr. Mateus

Os relatos que se seguem, de três residentes, ilustram o agrado por três dimensões

distintas que o lar lhes veio a garantir, não quer isto dizer, de nenhuma maneira, que se

encontrem totalmente adaptados ou que não encontrem insuficiências e problemas

relativos ao funcionamento do lar. O Sr. Pedro, um dos residentes que consideramos

mais inadaptados ao lar, apesar da tristeza que sente por ter chegado, como refere, “a

este ponto”, menciona o alívio por ter a comida e a roupa asseguradas, tarefas que

outrora lhe traziam muitas “freimas”.

“ Mudou tanta coisa, não tenho preocupação de comer, de vestir, estou livre disso. Sinto-me mais aliviado, assim tinha freimas, tinha muitas freimas, eu lavava, passava a ferro e fazia qualquer coisa de comer para a noite.Eu sei, é uma tristeza, é uma tristeza a gente chegar a este ponto…” Sr. Pedro

A D. Margarida faz referência, sobretudo, às novas iniciativas que se têm organizado no lar, sobretudo pelas estagiárias de serviço social. Faz referência, particularmente, às

festas.

“Gosto mais, isso é que é assim um bocado, olhe agora o que eu gosto mais é de facto estas coisas que se tem organizado, estas festas que se têm feito, festas muito bonitas, isso é verdade. Muitas pelas estagiárias. Ai pois é, muitas”. D. Margarida

A D. Clarisse, fazendo uma apreciação global positiva ao lar, destaca a possibilidade de assistir à missa todos os dias como elemento especialmente positivo, tendo em

conta a sua religiosidade, assim como o ter companhia e poder desfrutar de espectáculos, de actividades como canto e dança. Manifesta ainda o desejo de que todos se relacionem bem, idosos e funcionários.

“A coisa que gosto mais no lar? (risos) Eu gosto de tudo do lar. Olhe menina…Olhe, olhe, eu quando estava na minha casa, ouvia o terço pela televisão, mas à missa ia só dias santos e domingos. Aqui gosto porque tenho todos os dias missinha. Gosto muito, muito, o meu pai foi criado na idade de três anos com um padre e deu-nos uma educação…Católica, muito profunda.

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Gosto de tudo, eu gosto de tudo. Eu sinto-me bem, sou feliz aqui no lar”. Nunca. Nunca, nunca [teve vontade de ir embora]. Sempre de estar aqui, gosto muito da companhia. Oh menina eu se estivesse em minha casa, divertia-me e passeava como passeio? A gente tem espectáculos, a gente canta, a gente dança, a gente brinca, a gente…menina eu fazia uma vida triste”. O que eu gostava é que todos se entendessem bem uns com os outros…E com os empregados…”. D. Clarisse

Na sequência dos seus estudos em lares, Bazo refere igualmente, como aspectos mais

positivos atribuídos à vida no lar, a segurança, o prestarem apoio a qualquer hora do dia

ou da noite e a companhia de outras pessoas, apesar da falta de interacção e

comunicação. “Ter pessoas (entre as residentes e o pessoal) com quem poder contar

como ajuda e companhia proporciona sossego e elimina a angústia de sentir-se só”

(Bazo, 1991:161).

É apontada pela autora a garantia de liberdade e autonomia que algumas pessoas

possuem a um custo menor do que se vivessem sozinhas. Continuando a ser visitadas

pelos seus familiares, tal como o que se sucederia se estivessem nas suas casas, não

estão desprotegidas nem sós, nem têm que se preocupar com os compromissos e

tarefas da casa e referentes ao seu próprio cuidado. A residência aparece, em seu

entender, como a solução menos má e vista como um mal menor (Bazo, 1991). De

acordo com o que tantos idosos pensam, “era melhor se fosse em família, mas cheguei a esta

conclusão e por um lado acho bom, temos acompanhamento que noutros lados não tínhamos e

pronto a coisa melhor que pode existir, é estar no lar, para a nossa idade e para as nossas

possibilidades, a coisa melhor é esta”. Sr. Afonso

Há também aspectos negativos a considerar acerca da vida na residência que afectam a boa adaptação dos indivíduos e que condicionam o seu bem-estar e a

atitude perante a vida. Uma minoria de residentes não tem problema em declarar

expressamente aquilo de que não gostam, outros mais cautelosos e subtis, deixam

perceber nas entrelinhas que há dimensões na vida do lar que não funcionam bem e isso

incomoda-os. Esta questão remete-nos para o que poderá subjectivamente ser

considerado um bom lar. Recolhendo a opinião dos idosos sobre esta questão, Sousa,

Figueiredo e Cerqueira referem-nos que um bom lar é aquele que tem “actividades de

animação; possibilita saídas (passeios, acesso fácil às actividades de lazer da

comunidade…); fornece boa alimentação; tem pessoal simpático e competente e não

está sempre a mudar quem lá trabalha; permite ter um quarto individual; facilita que os

residentes façam boa companhia uns aos outros; oferece conforto físico; disponibiliza

serviços de apoio (fisioterapia, enfermagem, educação física…); é seguro; não é

demasiado grande” (2004:136).

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Os residentes, quando questionados directamente sobre o que menos apreciam no lar tentam desvalorizar as “falhas” ou insuficiências, procurando não assumir directamente

posturas de desagrado. Não obstante, ao longo das várias dimensões abordadas no

trabalho, vão-se referindo a diversas questões que os incomodam. De entre estas,

atrevemo-nos a destacar o descontentamento com os serviços de saúde; o desagrado em relação à natureza das relações e vínculos que se estabelecem entre residentes e também com algumas funcionárias; a impossibilidade de não terem um quarto individual, situação esta muitas vezes associada ao mau relacionamento

com o colega de quarto, e mais alguns objectos que desejariam, e associado à

preservação da sua privacidade, e, por fim, a falta de liberdade. Outros aspectos há

que, embora não sejam referidos tão directamente como aspectos de insatisfação,

contribuem claramente para fragilizar uma grande parte dos utentes e remetê-los para um

grande sofrimento. Podemos salientar a convivência diária com a doença e as vulnerabilidades dos outros colegas, sobretudo quando estes se encontram em situação

de dependência física e mental, fazendo-os ficar totalmente sujeitos aos cuidados das

funcionárias, nem sempre respeitadoras da dignidade, privacidade e identidade dos

idosos. Quando perguntávamos à D. Piedade o que mais tinha mudado na sua vida, ela

respondeu-nos, com tristeza e desagrado, deixando transparecer na sua expressão um

enorme vazio.

“Sei lá o que mudou [pausa], mudou isto que está para aí dito. Eu gostava de ser uma pessoa que pudesse sair, sem precisar de ninguém, por exemplo preciso, de ir a casa da minha irmã, ía. Podia visitar alguém, pessoas amigas que conhecia, onde é que eu cantava. Essas coisas quando eu tinha pernas que podia andar ia, agora não. Estou à mercê dos outros…” D. Piedade

É possível escutar, com alguma frequência, expressões de condolência e olhares de

mágoa e pesar perante os idosos que se encontram em situação de dependência física

mas sobretudo mental. Para os mais autónomos, como já vimos, a convivência com os mais fragilizados obriga-os a pensar sobre a sua própria condição que se poderá

vir a agravar num futuro próximo. O medo dessa imagem futura fá-los afastarem-se dos

mais dependentes que se encontram excluídos quer relacionalmente, quer

espacialmente.

Na véspera de Natal, de tarde, momento em que um grupo significativo já havia saído

para passar o Natal com a família, a D. Angelina aguardava ansiosamente pela chegada

da sua família que, na verdade, não chegou a aparecer. Nesses entretantos, olhava em

seu redor com um olhar inquieto, de um misto de revolta e resignação, para os seus

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colegas, sobretudo mais vulneráveis, que não haviam saído do lar, e comentava o

sofrimento e o despojamento a que estes idosos estão sujeitos.

“Isto é que é um espectáculo triste, não é menina? Ver p´ra aqui esta gentinha….Isto é que é um sofrimento, isto que se vive aqui é um sofrimento todos os dias. Um sofrimento físico, mental, espiritual, cultural… (olhava no vago…), sofre-se de todas as maneiras, de todas as maneiras…é triste chegar a isto…” D. Angelina

A questão da proximidade da morte e o receio a ela associado, assim como a perda de vínculos com elementos da família de que muito se gostava, ou até com a família

toda, são questões que nem sempre são afloradas com muita facilidade. A propósito da

família, e na ausência de um convívio muito frequente com a ex-mulher, de quem se

havia separado antes da entrada no lar, e com os filhos, o Sr. Alfredo refere que o lar é,

agora, uma segunda família. Refere a maior liberdade que tinha anteriormente e os

passeios que realizava, apesar de não se importar muito com isso, uma vez que

conseguiu encontrar uma calma que lhe agrada e fontes de ocupação e prazer,

porventura como substitutas de outras que fazia anteriormente.

“A mim não me desagrada nada, eu habituo-me com facilidade a qualquer situação. Agora o que mais eu notei que tinha falta, que não tenho tanta capacidade para o fazer, era que eu antigamente era mais livre e saía mais com os amigos, passeava mais, aqui já não faço tanto isso. Não faço por duas razões, uma gosta de ajudar a Sandrinha e não tenho tanto tempo livre como isso, e ajudar as Madres na portaria se for necessário e ajudar outras pessoas, que eu também ajudei a Susana, etc, e não tenho tanto tempo livre para isso, não é? Não é que não me deixem, mas mesmo que me deixassem eu não estava muito predisposto, agora estou naquela mais de tranquilidade, de mais calma, estou mais pacífico. O que mais mudou? Acho que não mudou nada, eu continuo a fazer o mesmo, continuo igual a mim mesmo e continuei a ser a mesma pessoa, simplesmente aqui sinto-me mais calmo.Sinto-me bem, aquela formação que eu tive, fez-me muito bem. Eu sinto-me como água no peixe, eu hoje considero, esta é a minha família, que eu vivo aqui, a minha segunda família e não tenho uma quezília com ninguém, todos gostam de mim, não tenho quezílias com nenhum deles e dou-me bem com toda a gente e toda a gente me respeita. São muito respeitadores, sinto-me muito bem aqui no lar. Eu já disse que isto também é uma segunda família, eu não tenho qualquer problema de dizer que estou muito bem neste lar e já o tratei por um hotel”. Sr. Alfredo

Normalmente os motivos mais apontados em relação aos descontentamentos com o lar prendem-se com a imposição de regras e normas que delimitam, igualmente,

uma identidade institucional e colectiva que se quer impôr, por regra contundente com

uma gestão de recursos conveniente e mais eficaz do ponto de vista da instituição e da

conveniência dos grupos humanos que lá trabalham, cujos interesses por vezes

prevalecem face aos dos idosos. Pretende-se, nas palavras de Andrade, “institucionalizar

estrategicamente uma identidade” (2003:72), a qual emerge num processo de edificação

de sentido conduzido pela instituição. É como se as institucionalizações que o lar leva a

efeito prevalecessem e assumissem maior poder face ao processo de auto-

institucionalizações que são ensaiadas pelos indivíduos. Assim sendo poderíamos

constatar a perda de um certo controlo que os seres humanos desejam alcançar sobre a

sua vida e o que os rodeia.

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Para além de não poder ver televisão no quarto, situação da qual frequentemente se

queixa, a D. Rosa diz que o que mais a desagrada é não poder dormir até à hora que lhe apetece. Quanto à existência de lares, acha óptima a sua existência pois alega que

cada vez mais as famílias não querem saber dos velhos.

“Menina, por um lado é bom, por um lado é, porque, menina, da maneira que a gente ouve e da maneira que a gente se apercebe das coisas, menina hoje ninguém quer aturar os velhos. Se há uma pessoa ou outra que tem os familiares em casa, mas são muito poucos que fazem isso. Metem-nos todos fora da porta porque querem ir passear, querem ir para aqui, querem ir para acolá. Menina, se lhe for a dizer gosto de tudo, mas estou a ser sincera, eu gosto. Eu até gosto disto menina.Menina, o que mais me desagrada é ter que me levantar cedo (risos). Se pudesse ficar a dormir ficava (risos). Às vezes passo mal as noites, durmo mal, acordo muitas vezes e depois de manhã é que me apetecia dormir (risos). Raios parta o diabo agora que me apetecia dormir é que tenho de sair (risos) …” D. Rosa

A D. Maria, deixando claro o seu apreço pelo lar, refere que o que mais gosta é de ter a biblioteca à beira. Não gosta da maneira de falar das funcionárias nem das regras

rígidas associadas à partilha de um quarto com outra pessoa. Ter de dormir a certas

horas, não poder deixar a luz acesa, são alguns exemplos disso mesmo.

“É da maneira de falar [o que menos gosta no lar] sabe. Gosto pouco da maneira como falam as funcionárias. De ir para a cama, não poder acender a luz quando eu quero…tenho de me sujeitar…não posso ir para a cama quando eu quero…Ter a biblioteca aqui perto (risos) [o que gosta mais] e estar tudo limpo, só que têm a mania das limpezas…” D. Maria

Como reforça Bazo “a rigidez dos horários, motivada pela eficiência orientada para a

realização da tarefa pode contribuir, entre outras coisas, para a interiorização por parte

das pessoas institucionalizadas de um sentimento de carência de poder, de falta de

capacidade para se controlar e controlar o que a rodeia” (1991:160). Sem dúvida que

esta situação contribui para deteriorar a imagem do próprio residente. Outros motivos

apontados: falta de intimidade e privacidade, não poder ter certos objectos no quarto,

isolamento e falta de comunicação com outros, presença de pessoas em mau estado de

saúde (Bazo, 1991).

A D. Margarida mostra-se desagradada sobretudo com a falta de liberdade, de alguma forma associada à rigidez dos horários: “Olhe a liberdade, não posso sair à noite nem

nada (risos) … Opinião semelhante tem a D. Beatriz. Para além da liberdade, não gosta,

ou melhor diz que não pode acompanhar os utentes mais vulneráveis nas caminhadas

que realizam ao exterior do lar. Como forma de se demarcar desses utentes, considera-

os de “velhinhos”.

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“Mais mudou? Na minha vida mudou tudo. Mudou a minha liberdade, eu se quiser um dia sair à noite, olhe ainda no Domingo fui à comunhão da minha sobrinha, eu estava aflita porque não quero vir tarde, cheguei aqui eram 20.30, mas a Madre disse até às dez horas podes vir. Mas estava a dar futebol, eles entusiasmados com o futebol não me vinham trazer. Agora por exemplo eu vou ao casamento de uma sobrinha, a boda é longe, é lá para Valongo ou não sei para onde é, onde casou a outra também, eu sei que venho tarde, não vou estar agora, levem-me a casa, não vou estar. O meu filho ía -me buscar mas também é muito sacrifício para ele andar agora atrás da pensão, que ele não vai ao casamento. E então eu nesse dia devo dormir em casa do meu filho. A Madre disse até às dez horas, dez e meia podes vir mas posso não ter quem me traga. E estou sujeita, até quem me vai trazer e que sabe…Olhe gosto da casa, gosto das freiras, gosto de tudo.O que gosto menos? Ora menos, não é não gostar, é não poder acompanhar os velhinhos, gostava mas não posso…” D. Beatriz

Vários aspectos podem, no entender de Zimerman, contribuir para uma difícil adaptação

ao lar. Destaca a mudança interna de parâmetros, no que diz respeito ao espaço físico e

à disposição dos objectos; a convivência e os relacionamentos com os moradores da

casa geriátrica, com diferenças sociais, económicas, culturais, religiosas e de

temperamento; as perdas de colegas e o medo da morte; a falta de convivência com o

sexo oposto afastando as pessoas e a instituição da realidade da vida; o abandono

progressivo das famílias que em muito contribui para a depressão e para os problemas

de saúde em geral (Zimerman, 2005).

Apesar de tudo o que foi referido, consideramos que o mais importante é a capacidade dos residentes encontrarem formas de manifestar o seu agrado ou desagrado pelo lar. Alguns utentes, porém, vivem já na mais profunda apatia. Quando os questionámos

nada têm a dizer sobre aspecto algum. A D. Adelaide ilustra um pouco a tendência dos

que já assim se adaptaram a viver.

“Olhe é tudo igual. De manhã à noite é tudo igual, as Madres coitadas vão à vida delas lá para cima, a gente não as vê, os outros estão calados, a gente calada está, pronto. Oh mas eu calada estou (risos) [o que mais gosta no lar].Olhe eu não estou mal, se me tratassem mal ou…bem eu, desde que não se metam na minha vida. A gente gosta de tudo, o que a gente há-de fazer, não é a gente que manda (risos) …” D. Adelaide

7.2 Os idosos, o futuro e a morte…

Não podemos deixar de abordar a temática da morte, porquanto a fase do pós

internamento, ou a saída do lar, normalmente não se verifica, coincidindo, habitualmente,

com a morte. No lar, os indivíduos não só têm de conviver com o facto de se aproximarem da morte, como igualmente têm que enfrentar a morte dos outros

companheiros. A morte aproxima-se também pela “experiência dos outros e pelos

caminhos indirectos dos mitos culturais, dos seus símbolos e suas representações…”

(Rossel, 2004:151).

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A ideia de uma vida futura após o internamento em lar não existe, justamente por

este ser um passo irreversível. Apenas se verificou um caso, ao longo do estudo, de um

senhor que foi passar ao lar um período de 15 dias, findos os quais regressou à sua

casa. No lar este senhor já é conhecido, pois todos os anos vai lá passar um período de

tempo para que a sua família possa descansar dos cuidados que lhe tem de prestar.

Se não existe grande possibilidade de projectar o futuro, a morte torna-se anda mais

presente. Não propriamente a morte física, mas a morte que muitos designam como

social. Thomas chamou morte social à experiência que os idosos vivenciam à medida que perdem os seus papéis e identidade social, vendo-se num estado de

solidão, carência de apoio e exclusão, o que os leva a perder o interesse por toda a

actividade. Na verdade, a morte real, biológica, não é mais do que a consolidação da

morte social (1973, in Rossel, 2004).

Entendendo o isolamento precoce dos moribundos como uma fraqueza das nossas sociedades, Elias refere-nos que “isso não é só uma questão de fim efectivo da vida, do

atestado de óbito e do caixão. Muitas pessoas morrem gradualmente, tornam-se

frágeis, envelhecem. As últimas horas são concerteza importantes, é claro. Mas muitas

vezes a partida começa muito antes. A fragilidade dessas pessoas é muitas vezes

suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. A sua decadência isola-os. Podem

tornar-se menos sociáveis e os seus sentimentos menos calorosos, sem que se extinga a

sua necessidade dos outros” (Elias, 2001:8). Esta exclusão dos seres humanos que se

encontram a envelhecer na comunidade dos vivos contribui para esmorecer a relação

com aquelas pessoas que conferiam importância, segurança e significado à sua vida.

No lar, esta realidade da morte social é especialmente visível não apenas junto dos idosos que se encontram nas enfermarias em situação de fragilidade, previsivelmente

mais próximos da morte biológica, como também junto de muitos idosos que não vislumbram senão a sua própria morte. Não desejam nada, praticamente não

comunicam, interagem sempre como agentes passivos mediante a presença dos outros e

não têm opinião sobre nada. Já perderam por completo a capacidade de sonhar e o

interesse pela vida. Aguardam resignadamente que as horas e os dias passem uns atrás

dos outros sem ambicionar a nada. Barenys refere-se a um género de suicídio indirecto que os indivíduos praticam por via da desvinculação integral dos idosos face ao mundo

que os enquadra (Barenys, 1990:177).

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Pelo referido, fica claro que “o prolongamento da vida, que aparece traduzida nas

estatísticas da esperança de vida, encerra, e tantas vezes oculta, o prolongamento da morte, onde se alojam processos actualmente irreparáveis de senescência, mais ou

menos profunda, e demência, de frequente redução das manifestações vitais do homem

às comuns modalidades vegetativas ou alongamento de sofrimentos crónicos” (Esteves,

2003:41).

Através dos discursos dos idosos, notamos pois, várias maneiras possíveis de lidar com a morte. Uma das estratégias, muito comum nas sociedades dos nossos dias, é

“tentar evitar a ideia da morte, afastando-a de nós tanto quanto possível – encobrindo e

reprimindo a ideia indesejada” (Elias, 2001:7) Perante um facto tão doloroso quanto a

morte, a D. Margarida representa um pouco a tendência daqueles que preferem evitar falar do tema e confrontar-se voluntariamente com a realidade dos que morrem. Critica

os que vão aos funerais das pessoas que não conhecem, assim como os que optam por

falar e demonstrar os seus temores perante este tema. Entende que diante da tristeza

que representa a vida no lar, o melhor é nem falar deste tema.

“Eu, quer dizer, impressiono-me um bocado, quer dizer choca-me muito, se calho de passar na portaria e ver o caixão a sair, é uma coisa, choca, não é? Eu agora nem entro naquele elevador, que é o maior, porque me impressiona e quando vamos ao funeral. Agora eu um dia destes…Ai fala, [quando morre alguém] se a gente gostar da pessoa ou qualquer coisa, agora aqui atrasado veio um do Hospital de Santo António, muito doente e veio para cá. E depois o Santo António voltou a levá-lo e morreu lá. E veio para aqui, não apareceu ninguém de família. E então elas foram ao funeral, foram até ao cemitério, eu não fui porque sinceramente a gente não pode. É certo todos precisam que rezem por eles mas eu acho que é uma fantochada ir velar uma pessoa, ir ao cemitério quando nem conheciam a pessoa, não acha?Ai mas a Joaquina, uma beata…tem pena de toda a gente, pronto encara assim, e às vezes vai para a mesa: “agora foi este e agora quem será”; eu digo assim: ai Joaquina nós já estamos aqui no meio de tristeza, a Joaquina vem para a mesa falar nisso”. D. Margarida

A D. Margarida fala do elevador no qual evita entrar, precisamente por ser aquele que

transporta os indivíduos já cadáveres. De facto, há uma tentativa dos vivos se afastarem dos locais associados à morte, o que não deixa de ser uma forma de

fugirem e evitarem o fenómeno. No lar em estudo, raramente os idosos em situação

muito fragilizada permanecem nos seus quartos habituais. São, antes, deslocados para outros quartos, designados de “enfermarias”, partilhados por idosos em situação semelhante de muita vulnerabilidade. Se é certo que estes locais são aparentemente

mais vigiados e controlados pelas funcionárias de serviço, sobretudo quando lá se

encontra algum moribundo, estes encontram-se mais isolados do contacto com outros residentes, assim como implicam a deslocação do idoso para um local que não lhe é familiar, não se trata do quarto onde se habituou a viver, com os seus objectos e tudo

o que, dentro do possível, lhe criava conforto físico e psicológico. Por outro lado, o facto

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de que a este lugar está associada a ideia de morte iminente, está bem presente na

mente dos idosos. Normalmente quem para lá vai, de lá não sai mais.

“Eu estive lá uma semana, muito doente. Fiquei lá uma semana inteira… Mas consegui sair de lá, o que não é costume. Quando a gente pra lá entra não costuma sair, é para morrer!”. D. Angelina

Machado Pais fala-nos do “piso dos fundos”, isto é, de lugares muitas vezes situados na

cave dos edifícios para onde são deslocados os moribundos ou os doentes acamados em

situação de saúde bastante vulnerável. Nessa espécie de “umbral da morte” reinam os

suspiros, a amargura, a “conspiração do silêncio”, muitas vezes envolta do medo de

morrer. O autor considera mesmo que, se aquando do internamento se dá a morte social,

a passagem para o piso dos fundos é a expressão máxima dessa morte social, sendo que aqui os idosos passam a estar votados à instabilidade, escuridão e solidão

(Pais, 2006).

Na verdade, muitos dos idosos que encontramos nas enfermarias estavam praticamente sozinhos. Pontualmente algum residente faz uma visita se lá se encontra

um ex-companheiro de quarto ou amigo. As funcionárias, que supostamente vigiam e

acompanham estes utentes, estão mais atentas às suas tarefas de carácter instrumental:

limpar, arrumar roupas lavadas, levar roupa suja, fazer cama de lavado, tratar da

higiene…à medida que as realizam dificilmente interagem com esses residentes, como

se o seu estado os empurrasse para uma condição inferior. Foi perceptível, por várias

vezes, o silêncio sepulcral que se fazia sentir nessas enfermarias, distantes de toda a convivência social do lar, como se esses idosos estivessem lançados ao mais

profundo ostracismo. Havendo famílias que quase todos os dias visitam os seus idosos

que se encontram nesses espaços, sobretudo quando pressentem que o seu familiar está

próximo do fim, outras, porém, reduzem as visitas justificando que os perturba ver assim o seu familiar ou que o mesmo já não interage, não devendo sequer ter

consciência da sua visita. Foi possível observar, contudo, muitos idosos profundamente

sós, carentes de afecto e de gestos de solidariedade de todos quantos deambulam nesse

espaço. Permanecem de forma apática e os seus “rostos perdem expressão, emoldurada

na fixidez do olhar, na imobilidade aparente do pensamento” (Pais, 2006:180).

Eilias (2001) salienta muito bem a diferença entre a posição dos moribundos nas

sociedades pré-industriais e industriais. Nas primeiras, os idosos, em geral, envelheciam e morriam dentro do espaço familiar, independentemente da relação mais ou menos amável que pudessem estabelecer com a sua família. O

envelhecimento e a morte eram fenómenos que aconteciam muito mais publicamente,

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abrangendo a família extensa e os vizinhos. Nas sociedades industrializadas, porém, as pessoas à medida que envelhecem ficam mais isoladas da sociedade, da sua

família e suas sociabilidades (amigos, conhecidos). Há um número de instituições que o

Estado cria para que os velhos vivam juntos, afastados do círculo da família e amigos,

sendo que “a admissão num asilo normalmente significa não só a ruptura definitiva dos

velhos laços afectivos, mas também a vida comunitária com pessoas com quem o idoso

nunca teve relações afectivas (…) muitos asilos são, portanto, desertos de solidão” (Elias,

2001:85/86).

Quando questionamos os idosos acerca dos seus sentimentos face à morte dos outros colegas, reagem de forma diferente. Alguns referem que quase nem se apercebem. Consideram isso positivo pois assim não têm que se estar permanentemente a confrontar com o fantasma da morte nem com o sofrimento que isso causa. Na

verdade, “ao reconhecer a morte do próximo, o sobrevivente ganha consciência do seu

próprio destino” (Pais, 2006:178). A D. Rosa ilustra muito bem esta situação. Relata,

igualmente, a forma “higiénica” com que se tenta tratar da situação, quando um idoso

falece.

“Menina, sabe que a gente mal se apercebe, a gente mal se apercebe. Esta última senhora que morreu, eu não estava cá, fiquei parva quando vim e que me disseram que a Lindinha tinha morrido. Então ela andava tão bem, aquilo diz que foi do dia para a noite, coitadinha da senhora, não estava cá mas a Idalina por exemplo, a menina conheceu a Idalina?A Idalina, eu fui vê-la de manhã ao quarto, ela estava na enfermaria lá em cima e eu fui lá de manhã, pus-lhe assim a mão na cara, então, Idalina, então? Mas não falou por nada. Passado um bocado ouvi dizer a Idalina morreu, já não a vi mais, só vi sair a urna pela porta fora, já não vi mais nada, a gente mal se apercebe, pronto, calam-se, aquilo fica assim caladinho, tudo muito caladinho, lá mandam vir o cangalheiro, lá avisam as famílias e tal. Por um lado até é bom ser assim, que a gente assim não fica a magicar naquilo, por um lado até será bom”. D. Rosa

Tal como a D. Rosa, vários outros idosos referem-se com alguma naturalidade à morte

dos colegas, no lar. A D. Otília lamenta as perdas mas diz não ser muito saudosa.

Entende, porém, a necessidade de respeitar quem parte e até critica os homens que

não mantêm a televisão desligada em sinal de respeito.

“Eu sinto pena, sinto um bocado, também não é muito. Não sou assim muito saudosa por aí fora mas sinto, também aqui há tantos anos…Não, não, não têm respeito. Fecham a televisão mas daí por um bocado, esquecem-se, abrem a televisão, põem-na a tocar e pronto. É assim, é.Pelo menos naquele dia, um dia ou até ao outro [televisão desligada]. Não era? As Madres mandam fechar, eles abrem-na, são uns atrevidos os homens. Não sentem nada. São umas pessoas cruéis É, é. Eu nem mexo, nunca mexi” D. Otília

A D. Fernanda refere que, enquanto a sua saúde o permitiu, ia sempre com a sua amiga

mais próxima ao enterro e à missa por alma do defunto. Apesar da tristeza que diz

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sentir, a D. Fernanda entende que, na verdade, a morte de todos é um fenómeno

irreversível e que por isso mesmo ninguém devia chorar.

“Vamos à missa, ouvimos a missinha por elas, vamos ao enterro ouvimos a missa…Eu vou sempre [ao enterro]. Agora eu e a Madalena não temos ido porque não podemos andar mas antes ia… A gente triste fica, mas que se há-de fazer? A gente, menina, nem havíamos de chorar uns pelos outros, quem morre, porque também a gente vai morrer, a gente também morre um dia” D. Fernanda

Como parece fazer sentido, o ambiente em redor pode condicionar a atitude do idoso perante a morte. As circunstâncias sociais, como as condições de habitação, o apoio

social recebido e a solidão, entre outros, assim como a religiosidade e a percepção da

transcendência assumem um papel muito importante na doença e morte (González,

2003: 295).

A D. Maria, contrariamente, entende que muitos residentes fazem da morte de um colega

um momento de “festa”, participando em todos os rituais associados ao enterro,

possivelmente para agradar às madres.

“Ah, uma festa, desculpe lá, falam muito… vão aos enterros. Não sei, não sei se é para agradar às madres ou fazem isso porque elas gostam, arranjar um carpideiro para chorar, agora canta-se nos enterros. Eu não gosto, não. Vou se for uma pessoa próxima, já tenho ido… “ D. Maria

Contudo, quando se trata de um amigo mais próximo o sentimento de perda e tristeza emerge com muito mais intensidade. Nas residências estudadas por Barenys,

ao questionar a direcção e pessoal sobre a temática da morte, todos estiveram de acordo

ao referir que os idosos que mais ficam afectados com a morte na residência são os

amigos do defunto. Os restantes ficam indiferentes ou às vezes um tanto insensíveis;

outros ainda entendem-na como um facto natural, como um fenómeno usual. Na verdade,

considera não ser fácil interpretar a atitude dos idosos perante a morte, uma vez que o

que para uns representa serenidade, para outros representa indiferença, egoísmo ou falta

de sentimentos (Barenys, 1990:178).

“Quando morre alguém… tratam, tratam dos funerais, vêm pessoas de família e pronto têm uma salinha própria enquanto não vem tratar das pessoas…Ai eu quando é pessoas que eu gostava muito, sinto, choro com isso. Lembra-se de uma D. Heleninha, que era uma com 90 e tal anos que eu gostava muito dela, era muito querida, também já morreu. A D. Idalina que também gostava muito dela também morreu. Morreram muitas e hão-de morrer outras… [com nostalgia}”. D. Piedade

A D. Palmira expressa algo de semelhante quando falecem as suas amigas mais

próximas no lar, deixando claro que este sentimento emerge por relação a todos os

residentes.

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“Por algumas, por algumas sente-se tristeza mas por outras…Foi uma Sra. há pouco tempo, que ela já dormiu no meu quarto, era uma Sra. que eu me dava bem com ela e ela comigo, por essa senti muitas saudades…Era a D. Heleninha, a Idalina também. A D. Idalina também, também era boa mulher”. D. Palmira

Corroborando com as opiniões anteriores, a D. Madalena entende que as pessoas no lar acabam por estar preparadas para a morte dos colegas, uma vez que se trata de

um fenómeno usual. Pessoalmente diz que tem pena dos que partem e reza sempre por

eles. O que mais a atormenta, no entanto, é pensar na sua própria morte. Mesmo

tendo fé na vida eterna, a ideia de ser sepultada debaixo da terra assusta-a e causa-lhe

temor. Assume que é uma ideia maluca, mas a verdade é que não tem possibilidade de a

desmistificar nem de a expressar junto de pessoas que a pudessem apoiar e tranquilizar.

“Agora penso mais em morrer. Faz impressão aquele mal-estar e aflige-me de ter de ir para debaixo da terra mas a gente não sente nada. É uma ideia maluca que eu tenho…O povo já está tão preparado, parece que é por Deus, a gente não fica assim magoada, como quando é na nossa aldeia, morria qualquer pessoa a gente ficava a sofrer muito porque eram vizinhos. Aqui não, já estamos habituados a morrer tanta gente, temos pena, e rezo por eles, coitadinhos. Ia sempre buscar uma florzinha quando tinha aqui a florista ao lado, ela fechou, havia aqui uma florista muito simpática, fazia-me os raminhos mais baratinhos, como era para o lar, ia sempre buscar uma florzinha. Eu ia buscar o meu ramo e o da Fernanda e o da Felismina para oferecer, sempre um botãozinho de rosas. Agora no outro dia ia buscar um para a Lindinha, ceguinha, porque ela quando eu saí daqui, estive três anos e meio com ela no quarto e eu quando me mudaram para o outro quarto ela disse: ai você vai-me fazer muita falta, Madalena, mas eu vou-lhe pedir uma esmola; diga, você faz-me? Faço, se eu puder, que não seja uma esmola muito cara (risos). Olhe, era quando eu morrer se me punha só uma florzinha nas minhas mãos; você faz-me isso? Faço sim senhor. Coitadinha. Fui comprar a flor no fim da missa e a Madre não me deixou ir à rua sozinha; oh Madre mas eu tenho que ir comprar a flor, prometi que a deitava nas mãos; há aqui muitas flores no quintal, eu vou-lhe arranjar uma flor bonita; você não vai sozinha, que pode cair, foi-me arranjar uma flor vermelha, um botãozinho meio aberto, meio fechado, meia rosinha, lindo, vermelho, parecia veludo. E ela foi pôr duas rosas já meias abertas, brancas, a Madre, eu fui cumprir aquilo que prometi, coitadinha, e é assim olhe…” D Madalena

Ao falarmos sobre a velhice, a D Adelaide facilmente verbaliza o receio de imaginar como

é que “irá”. O Sofrimento que está associado à velhice, sobretudo no que diz respeito à

dor decorrente dos problemas crónicos, condiciona claramente a qualidade de vida e cria

instabilidade a muitos dos idosos do lar. Na verdade quase todos os idosos vão

verbalizando o desejo e a esperança de vivenciarem uma boa morte. Como González

refere, nos princípios do século passado, a “boa morte” surgia na literatura caracterizada

por uma morte rápida, em paz consigo mesmo e com os demais, na própria cama,

rodeado de seres queridos e sem dor (González, 2003: 294).

Ao ser abordado o tema da velhice, rapidamente a D. Adelaide o remete para a

preocupação com a morte.

“Como é ser velho? É durar muito tempo. Não é mau, mau não é, mas a gente lembra-se dos nossos que morreram, como é que a gente irá, não é? Às vezes digo assim, se eu morresse, ia daqui para o cemitério, já não ia para minha casa…a gente agora é assim…

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Não dizem uns aos outros, não dizem, calam-se [residentes não falam sobre a morte]. Ela tinha de ir, é a sorte dele ou sorte dela, pronto. Não, não [não ficam tristes]. Fico, fico, tenho pena das pessoas” D. Adelaide

O receio da morte é tanto maior quanto escasseiam as oportunidades de falar sobre o assunto, preparando esse momento. Na verdade, sendo a morte uma realidade

bastante presente na vida dos idosos, pouco espaço se cria para a sua discussão e

preparação, tornando difícil a vivência deste momento com a tranquilidade desejada.

Seria, pois, importante preparar o idoso para as várias fases pelas quais vai passar

quando a morte se aproxima. Perante a proximidade da morte, Kubler-Ross, expõe cinco

fases pelas quais o idoso irá previsivelmente passar: a negação, a fase da ira e da raiva,

a fase da negociação, a depressão e, por fim, a aceitação (in Rossel, 2004:154).

No entender de Zimerman, o que dificulta a relação das pessoas com a morte prende-

se com a valorização excessiva dos aspectos físicos e biológicos; a ideia de ruptura, e

não de continuidade, no processo contínuo que é a vida; o medo do desconhecido,

embora as pessoas mais religiosas tendam a encarar a morte de uma maneira mais

natural e tranquila; alguns mitos e histórias fantásticas, nomeadamente o medo de falar

da própria morte receando que isso a atrairia; quando atribuem pouco valor à herança

cultural, aos exemplos, educação e formação que deixam para gerações que as

sucedem; a falta de uma vida rica em realizações, isto é, temem a morte porque a vida foi

vivida de forma incompleta; preocupação com a idade cronológica em vez de valorizarem

a idade que sentem e se atribuem internamente e, por fim, a falta de elaboração, de

oportunidade de libertar-se dos seus medos e dúvidas em relação à morte para a poder

encarar com tranquilidade (Zimerman, 2005).

Alguns utentes, individualmente, tomam a iniciativa de contactar a assistente social ou então um seu familiar para deixar instruções sobre alguma questão que queira ver cumprida após a sua morte. Nos processos familiares é possível verificar que alguns

utentes elaboram algumas declarações acerca dos bens que desejam oferecer ao lar, a

um amigo, familiar, etc, assim como outras questões que gostassem de ver cumpridas. O

Sr. Pedro, por exemplo, que muitas vezes expressa o desejo de morrer, garante já ter

tratado de tudo, a fim de garantir um enterro de primeira.

“Uma coisa que eu fiz, já paguei o enterro, já paguei o enterro, está tudo mencionado na ficha.Pois já, [pensa nisso] pois já, tenho o enterro pago. Tenho uns dinheiros, quando eu morrer que dá para o enterro, para ter um enterro de primeira pago.Disse que tinha um enterro, é só chamar, parece-me a mim que também faz aqui os enterros, o Pereira (risos). É verdade, [já combinou o enterro] oxalá que fosse amanhã. Espero a minha, oxalá que seja amanhã...” Sr. Pedro

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No seu processo está registado o valor do funeral (1200 euros), detalhando os serviços

pagos: urna, flores, jornal, abade, registo de sepulturas, gratificações…São vários os

exemplos que poderíamos apresentar a este respeito. O caso do Sr. Guilherme torna

claro um desejo que pretende ver cumprido após a sua morte, na sequência da difícil

relação que tem vindo a estabelecer com as suas filhas. No processo deste senhor existe

uma declaração assinada por ele, pedindo que no seu funeral a urna esteja fechada,

“dado que quem me abandonou em vida não desejará ver a minha cara depois de morto”.

No processo do único casal residente no lar existe um alvará de um terreno num cemitério onde desejam ser sepultados. Referem ainda que se encontram dois lençóis

numa gaveta da cómoda, devidamente identificados – Mateus e Arminda – que servirão

de mortalha, acrescentam: “é estimativo, por favor façam esta última vontade”.

Outras situações frequentes dizem respeito à roupa que desejariam vestir. Informam

alguma funcionária com quem possam ter mais confiança, um elemento da família ou a

assistente social da roupa exacta que pretendem levar no caixão e do local onde fica

guardada. Há uma utente que deseja que todos os residentes do lar participem no seu funeral até ao momento do caixão ser colocado na terra. Outros expressam o seu

desejo de não quererem flores no enterro, outros, porém, até solicitam às amigas mais próximas flores para lhe colocarem dentro do caixão…

Ainda a propósito da morte dos colegas no lar, alguns utentes entendem que não existe o respeito desejável perante esse acontecimento. O acto de ligar a televisão

em dia de luto e a não participação nos actos fúnebres são as formas mais evidentes de

interpretar esse desrespeito ou indiferença. Vejamos o que nos refere o Sr. Alfredo:

“Eu acho que há aqui de tudo, há quem sinta a morte, e há quem respeite essa morte, nem quer que ligue a televisão nem que se cante, nem coisa semelhante e há quem não ligue nada e faça de conta que não aconteceu nada.Nem querem ir ao funeral, nem vão ao coisa nem nada, não ligam, para mim são pessoas sem valores, são aquelas pessoas que não vão à missa, são as mesmas, as que não vão à missa, nota-se bem, são as mesmas. Há futebol, querem ligar a televisão à noite, ligam a televisão, não respeitam, depois não vão ao funeral, não vão a parte nenhuma, as pessoas são as mesmas, só faltam deveres morais e educação, para mim uma coisa está ligada à outra.Sim, sim [o dia altera-se quando morre alguém] há aí pessoas que sentem muito, eu noto que há pessoas que sentem muito”. Sr. Alfredo

O Sr. Mateus tem uma opinião idêntica à anterior e à de muitos outros residentes. A

propósito da morte de um colega manifesta os seus sentimentos desta forma metafórica:

“Sinto-me quase como os sinos da nossa Igreja, eu também tenho um poema que fiz aos sinos da nossa Igreja, eles tocam em dias de festa, em todo o momento irradiam alegria mas também choram na despedida dos amigos falecidos. Eu quando os nossos amigos aqui no lar falecem, alguns eu acho

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que foi uma obra de caridade Deus lembrar-se deles, até fico satisfeito porque deixaram de sofrer, outros que até são simpáticos e deitam-se bem dispostos e não acordam mais choca um bocado, choca…Parece-me que aqui liga-se pouco a quem morre, liga-se pouco, para mim quem liga mais é a Madre da capela, a Madre Madalena porque de vez em quando ela lembra-se, e manda o padre celebrar a missa por alma deste e daquele, e são muitas vezes. Eu pelos nomes sei que a Madre se lembra deles, de resto acabou…” Sr. Mateus

No que diz respeito à vida futura, esta ideia, como já referenciamos anteriormente,

praticamente não existe, após o internamento em lar. O curso de vida passa a estar

extremamente condicionado à vivência em lar. Exceptuando a situação já mencionada,

não se verificou a saída de nenhum utente por motivos como inadaptação ou desagrado; na sequência de um internamento provisório; no seguimento da melhoria de uma situação de saúde fragilizada; nem por qualquer outra situação alternativa à vida em lar. Na verdade, as saídas dos idosos do lar, que foi possível

constatar ao longo do estudo, deveram-se, exclusivamente, à sua própria morte.

Foi ainda possível perceber que as situações excepcionais de saída do lar por outro

motivo que não o da morte, para além de pontuais, deveram-se a comportamentos

inadequados dos idosos e incumprimento das regras, culminando com a sua expulsão.

Esta situação está, no entanto, longe de ilustrar uma harmoniosa adaptação ao lar.

Em bom rigor, alguns utentes, se pudessem, modificariam o curso da sua vida, saindo do

lar, pois não se encontram satisfeitos com a sua vida neste espaço residencial. Se não o

fazem é porque não têm alternativa nenhuma.

“Estou aqui num lar, estou presa pelas orelhas, eu não queria nada estar aqui… Estou aqui, estou aqui porque sou obrigada a estar, se não… A minha alegria era ir para a minha terra. Tenho lá os meus irmãos e os meus filhos.Quantas vezes… (risos) [sentiu vontade de ir embora]. Ainda ontem disse à Sandrinha, queria telefonar para o meu filho e que ia embora. Oh filha para dizer que gosto… (risos) Já expliquei…Não há nada que goste (risos). Nada, o meu gosto digo, sou franca era ir embora, e não olhar para trás.” D. Palmira

Vários outros idosos, quando questionados acerca de uma possível mudança do lar, referem não ter alternativa. Entregaram a sua casa ao senhorio ou venderam e os filhos, pelos mesmos motivos que existiram aquando da entrada no lar, não podem acolhê-los.

Curiosamente Bazo afirma que independentemente do grau de adaptação dos indivíduos

num primeiro momento, a maioria dos idosos declarava que não regressaria ao modo de vida anterior. De entre estes, alguns porque se sentem mais livres e independentes

do que quando viviam com a família, outros porque entendem a residência, neste

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momento, como a sua própria casa. Contudo, para outros indivíduos permanece o desejo

de voltar à sua antiga situação, o que não se torna possível por variados factores ligados

à situação de saúde, económica, habitacional ou familiar (Bazo, 1991:159). A D.

Margarida, como que querendo transmitir o óbvio, face à possibilidade de voltar à sua

residência anterior responde da seguinte maneira.

“Para onde é que eu havia de ir? Diga-me…? Sentir triste sinto, quantas vezes. Olhe às vezes vou ali para o café…Sabe onde eu gosto muito de ir? Passar ali uma tarde no Sr. João a ver quem vai, quem vem e de vez em quando encontro gente conhecida, e lancho lá por um euro, meia de leite e um pãozinho de centeio, ele já faz aquele preço assim…E às vezes vou até xxx passear. Eu não posso ir à rua que nunca mais chego a casa…” Não [não é bom viver num lar]. Porque não há nada como a nossa casa, embora a gente esteja muito bem nunca é a nossa casa. Eu sinto a falta das pessoas da família”. D. Margarida

Embora sendo uma excepção, no caso da D. Maria foram os responsáveis do lar que a

queriam expulsar deste equipamento. A D. Maria refere “duas ou três vezes que me

mandaram embora, eu refilei. Refilei tanto que não fui”. Na verdade também não tem mais ninguém a quem recorrer nem mantém a sua casa anterior. O Sr. Afonso é mais

um dos múltiplos casos que não tem alternativa à vida no lar, daí que nunca lhe possa ter

surgido outra opção. Pretende é granjear carinho junto das pessoas com quem tem

irremediavelmente que conviver o resto da sua vida.

“Não, não, [se já alguma vez sentiu vontade de ir embora]. Eu sei que não vou para melhor, se eu fosse para melhor, não vou para melhor, portanto a minha vontade é continuar aqui e cada vez acarinhar mais as pessoas e sentir-me acarinhado, mais nada”. Sr. Afonso

É evidente que o sentimento de que não se pode mudar o curso de vida é altamente impeditivo da construção de projectos. Vimos já que os discursos dos residentes são

sobretudo centrados na vida passada, o presente quase nunca é importante e o futuro

raramente é considerado, passa a ser quase inexistente.

Falar de um tempo futuro sugere a alguns idosos reacções de alguns suspiros

melancólicos, como se de uma irrealidade estivéssemos a tratar. A vida em lar passa a impedir por completo, ou quase por completo, o sonhar e perspectivar o dia de amanhã. Na verdade, a capacidade de formular projectos existe em todos os meios,

populares ou privilegiados, variando segundo a idade físico-psicológica dos indivíduos, a

natureza dos projectos, e a significação que lhes está associada. Nas classes populares

a ideia de utilidade não está ausente mas exprime-se de maneira muito mais discreta,

correspondendo de alguma maneira à posição que os indivíduos ocupam na sociedade

(D´ Épinay, 2001).

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A D. Piedade, face à questão relativa ao que espera do futuro, respondeu de forma igual

a muitos outros residentes: “Olhe mas o futuro, a Deus pertence, nunca ouviu dizer? Não

sei, acho que se pode sonhar muitas coisas, mas…” A D. Adelaide, para além de não ter

qualquer sonho deixa claro, no seu relato uma total desvinculação à vida e aos outros,

com quem, de resto, evita falar para não comentarem a sua vida.

“Eu que hei-de gostar, eu não tenho…a cabeça não dá para isso. Sinto-me mal da cabeça, eu tomo muitos remédios.É e não me sinto bem, o que eu quero é estar sozinha, e estar a dormir, caladinha, sozinha, tenho medo de contar a minha vida a outros, não é? Deixo-me estar muito caladinha, pronto.É, é [tem medo que comentem a sua vida].Não dizer nada, a gente calada diz tudo (risos)”. D. Adelaide

A D. Maria é mais um caso ilustrativo de uma total apatia perante o futuro. Quando

questionada acerca do que ainda espera do futuro responde da seguinte forma:

“Nada…Não sei, passo momentos, não penso.Não, há momentos diferentes… Não [não vale a pena sonhar]. Porque não dá, não dá, a gente já passou por tanta tristeza… sonhar nada, há-se ser o que Deus quiser, se é que há Deus, não sei…” D. Maria

De entre os que ainda conseguem acalentar alguma expectativa face ao futuro, quase

todos desejariam melhorias face ao seu estado de saúde fragilizado. Na verdade,

para muitos, o melhoramento da sua condição de saúde seria condição fundamental para

poderem pensar noutros sonhos, ainda que aparentemente fáceis de concretizar.

Também D´Épinay (1991), em relatos autobiográficos de idosos, constata que a saúde é

entendida como um recurso indispensável, sem a qual não é possível manter uma vida

normal. A D. Rosa é um desses casos. Gostaria de passear um pouco mais com uma

amiga que ainda preserva dos tempos antigos e poder deslocar-se até ao centro da

cidade do Porto para se distrair.

“Eu, se me visse melhor das minhas pernas, eu ainda podia ter qualquer ilusão, mas assim da maneira que eu… agora o que eu queria mais depressa era que me operasse a ver se eu caminhava um bocadinho mas eu também não vejo muitos jeitos. Se calhar tão cedo ou nunca resolvem o meu problema porque agora tenho o problema que tenho na perna esquerda. A direita está tão boa ou pior que a esquerda e eles nem me mandam tirar radiografias e tão pouco querem ver porque enquanto não me tratar da esquerda e enquanto não recuperar a esquerda não fazem nada na outra. Por isso menina estou presa de pés e mãos, eu não posso fazer nada. Assim tenho que me cingir às limitações que tenho que não são nenhumas porque não posso, oh menina se eu me visse um bocadinho melhor… (risos). Olhe por exemplo metia-me no autocarro ia ao Porto passear, ao menos podia, ia mais vezes para S. Pedro do Sul com a minha amiga, com a do Porto, que está morta que eu lá vá…” D. Rosa

Para muitos o futuro é sinónimo de proximidade com a morte, condição impeditiva da construção de desejos e de projectos. Alguns, como o Sr. Pedro, num tom

depressivo, verbalizam mesmo o seu desejo de morrer.

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“Às vezes, olhe que já me deu repentes mas eu disse: agora para onde é que eu vou? Agora soube da atitude que eu fiz de entregar a casa, que ela não é minha, não é? Agora hei-de morrer aqui, a não ser que eu faça alguma asneira… (risos).Oh que o que é que eu espero, quero morrer e oxalá que não leve muito tempo. Eu agora o que é que espero? Eu esperava poder andar regular, não posso”. Sr. Pedro

O Sr. Afonso fala também da proximidade da “cova”. Não demonstra grandes

aspirações nem expectativas em relação ao futuro, em parte também devido à sua saúde

bastante precária, apesar de ainda se poder movimentar sozinho com o apoio de uma

canadiana, e às dores que sente. Como tantos outros residentes no lar, declara que o futuro há-de ser o que Deus quiser, como se não mais pudesse ter controlo sobre a

sua vida. Na verdade, ainda alimenta alguma esperança em poder ir visitar alguns amigos de antigamente que vivem próximo do lar, desde que, com o Verão, a sua

saúde melhore. De resto, apenas o euromilhões conseguia satisfazer alguns desejos, que

passariam por ajudar o filho e as netas, apesar de estas não manterem relação com ele

nem o visitarem, assim como fazer uns passeios.

“Oh, isso é difícil agora, agora é cova (risos)Agora espera-se a cova, é um buraco (risos). É um bocado difícil, é um bocado difícil, da maneira como está, como a situação está, é um bocado difícil de imaginar. O mundo não está bom para quem tem saúde, quanto mais para quem não tem. Agora, olhe seja o que Deus quiser, é o que nós podemos fazer e esperar, seja o que Deus quiser.Estamos à espera do Nosso Senhor também, também estamos no ponto.Já tem morrido aqui alguns, eu nem os conheço, tem-se pena mas acabou-se, uma pessoa não os conhece. O que é que havemos de fazer.Não se conversa muito porque… [não é um tema agradável].Não, não [não tem nada que gostasse de concretizar].Acho que sim… [os dias são todos iguais]. As aspirações pode-se ter mas a realidade não chega, quem me dera que saísse o euromilhões, não sai. Ai sabia bem o que havia de fazer… Se saísse uma quantidade boa, olhe primeiro era para o filho, dava-lhe um prédio para futuro dele e as netas e depois um passeiozinho. Ai ia passear…É … não vale a pena pensar nisso que isso não sai, não vamos estar a fazer… (risos).Eu gostava era de não ter dores, se não tivesse dores até ia dar uma volta lá fora, distrair um bocadinho, porque a gente já tem alturas que já são para isso e à tarde ia ao parque, passava um bocadinho de tempo e depois regressava a horas e distraía mais um bocadinho, era capaz mesmo, aqui pessoas que gostaria de ir visitar, tenho pessoas aqui à beira, eu gostaria de estar com eles e relembrar essa confiança que nós tínhamos antigamente, mas tenho poucas possibilidades, uma vez que me custa muito, muito andar porque um dia que possa, se eu procurar melhorar, vem aí o Verão, eu conto melhorar, o mais depressa possível, hei-de ir a casa deles, e alguns estão aqui mesmo, aqui à beira, hei-de ir lá cumprimentá-los…”. Sr. Afonso

O Sr. Mateus, à semelhança do Sr. Afonso, também se refere ao futuro como sendo alheio a si próprio. Na verdade uma qualquer mudança na vida dependeria do totoloto

ou do euromilhões, uma vez que as suas economias não dão para muito. Como não joga

em nenhum destes jogos, vê a possibilidade de mudança completamente comprometida!

Contudo manifesta agrado na vida que leva, desejando que os dias futuros sejam iguais

aos de hoje.

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“Não aspiro mudar, olhe não jogo no totoloto nem no euro milhões para vir a mudar a minha vida, se me saísse a sorte grande… não jogo, eu sou inimigo de jogos, até nos jogos de cartas e dominó, eu não sei jogar nada disso, eu sou inimigo dos jogos, não vejo com bons olhos. Também não tenho possibilidades para mudar o rumo da minha vida agora porque as economias que eu tenho agora… eu só espero que o dia de amanhã seja igual ao de hoje e o outro que seja igual ao de amanhã e tal, é isso que penso. Não tenho ilusões a vir a melhorar porque estou bem, eu martelo sempre na mesma tecla, estou bem, sinto-me bem aqui, acho…” Sr. Mateus

Alguns residentes, ainda que tenuemente, mencionam o desejo de realizar alguns passeios, visitar amigos, assim como ver as condições da sua família melhoradas, não obstante reforçarem permanentemente a ideia de não poderem prever nem sonhar

com o dia de amanhã pois o futuro já não lhes pertence.

“Sonhar? Daqui não saio, sonhar em quê? A minha vida agora está feita… Ah, se me saísse assim uma sorte grande. Era capaz de melhorar a minha situação. Era capaz, olhe, se me saísse melhorava a vida dos meus filhos, apesar da outra não… (risos) não merecer muito, ainda assim a ajudava” D. Arminda

No que diz respeito, em concreto, ao desejo de realizar passeios, este é bastante frequente e de agrado de muitos residentes. Talvez se exceptuem aqueles que estão

mesmo muito debilitados fisicamente ou mentalmente e um ou outro residente mais

deprimido. Investir em projectos que se destinassem à escolha e organização de

passeios e mini-férias dirigidos aos residentes deveria poderia ser, em nosso entender,

uma boa estratégia para mobilizar muitos residentes para o centro da vida organizativa

da instituição. Traçar metas exequíveis, buscar recursos, escolher destinos, elaborar

contactos, organizar programas poderia ser, porventura, um bom motivo para preservar a

vinculação dos residentes à vida durante mais tempo.

“Sim, os dias não são todos iguais, há dias melhores que outros, vamos aos passeios, vamos aqui, vamos acolá, vamos a um evento qualquer, não são todos iguais, agora claro que há sonhos que uma pessoa idealiza, idealizava todos os dias passear não é? (risos) Gostava de ir passear, gostava muito de ir a Fátima. Cá parece que não [não foram a Fátima]. Não, já foram mas não foi comigo. Sei lá…gostava de passear por qualquer lado, era bom”. Sr. Alfredo

A D. Margarida, referindo em primeira instância a ideia mais comummente escutada, a de

que nada há para esperar do futuro, acaba por reforçar o desejo, manifestado igualmente por muitos idosos, de passear:

“Nada, o que é que eu hei-de esperar com esta idade? Não, com a minha idade não vale a pena sonhar (risos). Eu? Olhe, gostava de passear que eu gosto muito de passear. Para longe daqui, longe daqui não, aqui perto mas isso é um bocado impossível, não é? É, nós aqui ainda assim temos momentos muito agradáveis, isso é verdade e quando a Sandrinha foi agora estes quinze dias, lá em baixo era morto”. D. Margarida

Alguns residentes, como já foi referido, gostariam de poder melhorar as condições de

vida da sua família. Apresentamos, porém, os relatos de duas residentes que não se

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reportam tanto à dimensão material mas sim emocional, de preservação da ligação afectiva à família. A primeira, a D. Clarisse deseja manter o carinho dos filhos, assim

como deseja que os seus colegas tenham também visitas.

“…só espero que os meus filhos sejam sempre para mim como são. Não sei, não vejo, [é invisual] sinto virem cá visitar, mas não sei se todos têm visitas, não sei…Oxalá que todos tenham, não é?”. D. Clarisse

A D. Beatriz, que mantém muita ligação com a sua família, filhos, netos e família

alargada, prioriza os seus desejos em função das necessidades daqueles elementos da família que, em seu entender, se encontram mais vulneráveis.

Destaca o seu filho doente, motivo pelo qual ela ingressara no lar, e os seus netos dos

Açores: desejava ir visitá-los por estarem mais longe e desejava que estes

conseguissem, como tanto desejam, ter um filho.

“O que eu gostava? Olhe perdoe-me esta pergunta, que o Nosso Senhor levasse o meu filho à minha frente, perdoai-me Meu Deus mas acho que se eu morresse agora, que o Nosso Senhor o levasse à minha frente. Pois, ele depois coitadinho, não tem quem o defenda, depois é um doente, não é? Eu não deixo ninguém fazer pouco do meu filho, ninguém. Que ele também não faz mal a ninguém.Sonhar? Oh tinha tantos sonhos filha, mas ficam todos no sono (risos). Olhe, gostava de ainda ir aos Açores outra vez, ao pé do meu neto, que é muito meu amigo.Dá aulas lá, ele e a mulher. Foi eu que o criei também, e era o gosto dele, era que eu lá fosse, pronto e tinha um sonho que era ver um filho na minha neta, mas já teve três abortos, não conseguiu, chega aos três meses, e ela não tem nada, nada, nem ela nem o marido, não tem nada por onde se lhe pegue. O sangue bom, ela tem uma boa bacia, ela tem sangue, ela tem um bom útero, ela tem tudo de bom e ele, mas o stress dela de não ter um filho, fica grávida, ai se eu perco o meu filho. Do primeiro, coitadita, aconteceu, isso é vulgar, isso acontece, o segundo foi, e depois o terceiro, diz ela: não tenho coragem para mais. O médico bem lhe disse: oh Catarina, sais da escola, ficas de licença, ficas na cama, fazes um tratamento para descontrair, mas ela disse: não, não, chorei muito, olhe fez agora um ano, do último que ela perdeu. Era um sonho meu, era ver um filho na minha neta, para a ver feliz, que ela é feliz, no casamento é muito feliz, mas gostava”.D. Beatriz

Expomos o relato do Sr. Baltazar, por ser um pouco distinto da generalidade. Apesar de

começar a referir que não sabe o que a espera no dia de amanhã, acaba por nos

descrever um conjunto de sonhos diversos que deixam transparecer um pensamento composto entre um misto de ingenuidade e fantasia. Nos seus

devaneios, um tanto utópicos, refere o desejo de melhorar a sua saúde, de apoiar o lar, a

sua família e os mais necessitados de Angola. Fazia ainda uma pequena casinha dentro

do lar onde pudesse vir morar quando encontrasse uma mulher para casar. No final da

entrevista, quando se desligou o gravador, continuou a falar dos seus sonhos e

devaneios… De entre eles, apontou a ideia de se organizar passeios para os residentes

do lar. Mas não passeios quaisquer, passeios para longe, como Lisboa ou o Algarve, que

obrigassem a um quotização mensal de todos os residentes, a fim de que se fosse

juntando o dinheiro…O seu sorriso e expressão de envolvimento e alegria eram

intraduzíveis por palavras…

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“O dia da amanhã a gente não sabemos, o dia de amanha é coisa que todos nós não sabemos, só um é que sabe…O dia de amanhã a gente sonha sempre. Eu não sei se sonho alto se sonho baixo, eu não é sonhar é pensar. Eu penso em muita coisa olhe, penso, primeiramente penso na minha saúde…Isso é que eu penso mais e penso que fosse homem de dinheiro ajudava todos aqueles que fossem mais necessitados, pobres… Ajudava a minha família também, aqueles que pudesse ajudar… E depois ajudava aqui o lar também, naquilo que pudesse e depois dava a alguns pobres por aí fora, se fosse uns milhões de contos, Angola, mais necessitados…dinheiro não mandava. Dinheiro não mandava, gastava o dinheiro em comestíveis… batata, arroz, açúcar…E tudo mais, fazia o mesmo efeito que o dinheiro fazia, o dinheiro não sei se era entregue… Era o meu gosto, ajudava aqui o lar e punha…uma casinha para mim, mas era capaz de não sair daqui. Era capaz de dizer à Madre, de um quarto fazia uma sala e do meu quarto o meu quarto, abria uma parte só ao meio… depois amanhã casava e podia ficar aqui… Pois, tinha o meu quarto e tinha uma salita, tinha o meu quarto de banho. A mulher quando quisesse tomar banho ia ali ao quarto de banho lá acima, fechava a porta e ia tomar o banho na banheira, para mim não é preciso banheira, tenho o chuveiro. Era só: mulher lava-me as costas (risos)” Sr. Baltazar

A inexistência de sonhos por parte de muitos, está também, de alguma forma, associada a uma baixa concepção sobre a velhice. Na verdade, muitos residentes

esperam muito pouco desta fase da vida em que se encontram. Esta baixa expectativa

está, em parte, relacionada com os estereótipos que a sociedade constrói sobre os velhos. Para além do rótulo incontornável de improdutivos, os idosos são percebidos,

muitas vezes como senis, rígidos no pensamento e maneiras, e antiquados em termos

morais e em termos dos seus saberes. Ao mesmo tempo, os seus corpos envelhecidos e

feios representam doença e degeneração (Bound & Corner, 2004).

Alguns discursos são, por si só, reveladores disso mesmo. Se, por um lado, notamos

alguns relatos que ilustram os mitos e estereótipos associados ao envelhecimento, associando-o à inutilidade, à apatia, ao medo da morte, como se, de facto, a idade não

“perdoasse”, outros discursos, porém, mostram-nos a revolta associada à desconsideração com que os outros consideram os velhos. A D. Maria refere que o

que mais mudou na sua vida foi o estar a envelhecer e isso a deixa triste, expressando

aquilo que muitos outros idosos pensam:

“É muito triste ser velho, não há nada como na juventude (risos). Já não há razão de vida.Podem [divertir] mas, estão muito restritos, já não têm forças, e às vezes nem apetece, quando a gente está doente”. D. Maria

Apesar de um pouco longo, não resistimos a apresentar o relato do Sr. Guilherme acerca

do que ele pensa da velhice. A riqueza das suas palavras torna supérfluo qualquer

comentário que possa ser feito. Eis o que nos refere:

“…a menina é nova não sabe o que é a velhice, a velhice é a coisa pior que pode haver. Eu não queria ser velho, queria ter morrido aos meus 60 anos, não queria ser velho. Somos desprezados por toda a gente, os velhos, seja quem for, desprezam os velhos com uma facilidade fantástica. Admiro as meninas virem de vez em quando passear os velhos, mas os velhos ainda gozam, os outros onde passam os velhos e as meninas, gozam. Tenho notado isso. E é muito triste as pessoas não se lembrarem que vão amanhã para velho. Podiam estimar os velhos mais do que aquilo que estimam,

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não estimam, podiam estimar mas não estimam. Uma pessoa velha é sem valor, se não o tem já o deu e podiam-se lembrar disso, que a menina compreende eu já dei o valor que dei, já sofri como disse e agora estou descansado mas ainda posso sofrer, ainda posso sofrer, eu não sei o resto da minha vida, não sei o resto da minha vida mas ser velho é muito triste. Passar por um amigo que era amigo e o amigo hoje está velho como eu e passar por mim porque está rico, eu estou pobre agora que estou no lar, porque quem vem para um lar, dizem sempre que é pobre, não dizem que é sério, dizem que é pobre, pobre que está ali mas não dizem assim, mas é uma pessoa séria, eu mereço ser respeitado, não dizem isso. E fogem por ali…para ir a qualquer parte já não é pessoa, para acompanhar mas não sou só eu, muitas pessoas da minha idade e mais novas e mais velhas, já não se lembram aquilo que foram e outros não se lembram àquilo que podem chegar porque a menina compreende…É sim senhora, vêem com maus olhos, há pessoas mesmo de idade que vêem os outros de idade com maus olhos, e as novas então nem se compara porque se eu for no autocarro, e o autocarro leva bancos vazios e eu estou sentado ali, e está o autocarro a encher e se houver uma senhora ou um senhor que seja velho como eu, eu chamo velho é claro sou velho, sou idoso mas sou velho, não se senta à minha beira, não sei porquê, não sei porquê. Está ali um homenzinho no parque que tem um papo muito grande, salvo seja, coitadinho do homem, muito pobrezinho, até se conhece a roupa dele e o corpo dele que tem, parece lodo, e ele está num banco sentado e não há ninguém que se sente à beira dele, para animar o homem pelo menos, e não há ninguém que se sente à beira dele para lhe dar um conforto, não há ninguém que se sente à beira dele para lhe dar um doce, não há ninguém que se chegue à beira dele para lhe dar 10 tostões para ir comer uma sopa, eu tenho visto isso. Eu sento-me muito no largo e aprecio muito”. Sr. Guilherme

Considerando os relatos autobiográficos de idosos entre 65 e 80 anos, D´Épinay afirma

que não existe uma representação sobre a velhice nas várias representações, relacionadas com a diversidade individual e cultural. No entanto, encontra uma

representação colectiva que atribui à totalidade dos idosos, acreditando que é mesmo

universal. Entende que os idosos partilham a imagem de uma exclusão irreversível da vida normal. Questionando como se pode definir o que é “normal”, entende que o

conceito só tem sentido se atendermos à sociedade, à cultura e, sobretudo, à posição

que cada indivíduo ocupa na sociedade. Refere ainda que as causas mais frequentes

que estão na origem da ruptura com a normalidade é o handicap decorrente de um

acidente, da doença, ou simplesmente da velhice, e a saída do trabalho que, de acordo

com os contextos, pode ser, ou não, assalariado (D´Épinay, 1991).

A D. Matilde sente falta de poder trabalhar. Trabalhou em fábricas até ter tido sérios

problemas nos pulmões que a impediram de continuar. Ainda assim trabalhou sempre em

sua casa até ter tido sofrido uma queimadura grave que nunca mas lhe garantiu a

mobilidade normal na mão e braço. Sente que não pode fazer, por isso mesmo, uma vida normal, nem as actividades que apreciava.

“Eu sei lá, queria trabalhar. Queria poder pela minha mãozinha. Olhe eu também sabia fazer malhas, também sabia e gosto mas não posso…Olhe, elas julgam que não chegam lá mas a gente chega, eu nunca tive assim coisa. A gente, a idade não perdoa, a gente cá vai andando. Eu tenho 84 mas digo-lhe uma coisa…e foi isto, que eu antes disto estava bem…Foi mesmo [grande azar] isto foi que deu cabo de mim, mas o que se há-de fazer, paciência”. D. Matilde

A exclusão da normalidade manifesta-se, muitas vezes, pela perda de um papel social e, portanto, de um estatuto, excluindo-os da sociedade e provocando-lhes a sua

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morte social (D´Épinay, 1991). Essa morte social pode ocorrer frequentemente com a

passagem à reforma, mas também à medida que os relacionamentos se vão escasseando. No lar essa realidade é bem visível, à medida que o tempo de

internamento vai avançando. Por outro lado é duro viver com o estigma que associa a

vida num lar à ausência ou negligência da família, ainda que, de facto, isso não seja

verdade. A D. Rosa refere que pior do que envelhecer é sentir a falta de respeito e o desprezo que os velhos sentem, sobretudo quando estas atitudes provêm da família.

Não se coloca nessa situação, uma vez que atribuiu a sua entrada no lar a uma opção

fruto da sua escolha.

“ Menina costuma-se a dizer quem andou não tem para andar, nós não podemos ficar toda a vida novos. Não é triste ser velho, é triste sofrer, que lá o ser velho, é como o outro, ainda é o menos…Eu acho que sim, [pessoas deviam respeitar mais os velhos] lá o ser velho é o menos, o pior é as pessoas chegarem a uma determinada altura e andar aos pontapés. Por exemplo não é o meu caso que eu tenho aquilo que escolhi, eu não posso culpar ninguém, absolutamente ninguém porque tenho aquilo que escolhi. Oh menina há aqui muitas que estão pelos cabelos, que não queriam por nada estar aqui, queriam mas era estar em casa com os filhos e tem que gramar aqui, isso é que deve ser triste”. D. Rosa

A proximidade inexorável da morte, com todas as consequências e factos que

evidenciamos, assim como “a perda de controlo, a ruptura de laços sociais, a carência de

projectos de vida vão, pouco a pouco, reduzindo a existência do idoso a uma rotina fazendo com que o desejo de viver dificilmente possa fazer contrapeso aos condicionantes da instituição” (Barenys, 1991:175). Neste sentido, a vida passa a ser

mediada por pesados constrangimentos à medida que a idade se prolonga. Passa a ser

inevitável a entrada numa fase de fragilidade, a qual compromete inclusivamente a vida relacional dos indivíduos, alterando a capacidade de os mesmos preservarem

uma certa reciprocidade nas relações, o que, de acordo com D´Épinay determina o fim da

idade da dádiva. Para além de se multiplicarem os riscos de queda, acidentes e doenças,

que pesam sobre a vida quotidiana, a fragilidade restringe o território das deambulações

e das possíveis actividades. O autor referencia que, para fazer face a tais limitações que

se vão impondo, os idosos precisam de uma extraordinária capacidade de inovação de forma a recriar, com recursos limitados, um mundo onde a vida faça sentido e

que continue a demonstrar a sua autonomia. Na verdade, enquanto que a curiosidade pela vida permanece, o idoso pode projectar formas de reorganizar o seu quotidiano, continuar a fixar objectivos acessíveis, e ir aceitando, sempre que

possível, determinadas renúncias que muitas vezes permitem cultivar melhor o essencial

(D´Épinay, 2003). Mesmo sabendo que o final da carreira moral do idoso no lar termina, a

maior parte das vezes, com a sua morte, cabe às instituições, e aos seus profissionais,

contribuírem, com a sua quota parte, para que a curiosidade dos idosos e o interesse

pela vida permaneçam durante o mais tempo possível, alimentados pelo envolvimento

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em projectos individuais e colectivos que estimulem os indivíduos e reforcem a sua

identidade.

8. Reflexões finais

Neste ponto do trabalho, pretende-se sistematizar o conjunto das informações recolhidas e desenvolver, na medida do possível, alguma reflexão crítica em torno dos resultados obtidos, tendo por referência o objectivo principal do estudo:

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estudar a institucionalização e suas repercussões ao nível das reconfigurações

identitárias dos idosos internados.

Antes, porém, de nos centrarmos em torno dos principais resultados da investigação

levada a curso, pretende-se desenvolver uma breve análise centrada na pertinência dos principais contributos teóricos accionados e procedimentos metodológicos seleccionados. Ao mesmo tempo, e dado se tratar de um trabalho no âmbito do

mestrado em ciências do serviço social, interessa igualmente, neste ponto do trabalho,

desenvolver algumas considerações sobre as práticas de intervenção profissional,

tendentes ao respeito pela dignidade e identidade pessoal e social dos internados.

Para desenvolvermos tal análise, torna-se fundamental abordar as situações e circunstâncias em que o lar se pode tornar numa ameaça à identidade dos sujeitos,

e, ao mesmo tempo, poderá contribuir para preservar, e até reforçar, a sua estrutura identitária, tendo em conta as várias fases da carreira moral do internado. Sempre que

os procedimentos institucionais se demonstrarem contrários a uma prática emancipadora

e respeitadora das necessidades, desejos e autonomia dos residentes, algumas

sugestões serão avançadas, no sentido de contrariar este tipo de intervenções.

…em torno dos contributos teóricos…

Considerando os contributos teóricos mobilizados, eles mostraram-se ser de grande

utilidade. Apesar de nunca ter sido nosso objectivo partir de um quadro teórico totalmente

estruturado/fechado e formulado, no sentido de se reconfigurar em hipóteses teóricas

susceptíveis de serem, ou não, confirmadas, a verdade é que se entendeu imperioso desenvolver algum trabalho exploratório que nos permitisse afastar das aparências

imediatas, das ilusões que os nossos supostos conhecimentos prévios, em torno da área

em estudo, pudessem suscitar.

Assim, foi importante destacar a relevância estatística do fenómeno do

envelhecimento, assim como reflectir em torno das principais mudanças sociais que se

têm operado na sociedade, no sentido de aferirmos os condicionalismos e fenómenos

que contribuíram para que o envelhecimento se começasse a configurar como um problema social. A deslocação da velhice do âmbito familiar e comunitário para o âmbito

da esfera pública das sociedades, traduz-se numa institucionalização dos relacionamentos entre os membros das várias gerações. Tal fenómeno deu origem a

que se impulsionasse uma gestão colectiva das gerações mais velhas e o

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consequente surgimento de um campo de produção de bens, de serviços e de

equipamentos especificamente destinados aos idosos. De entre estes, destaca-se o

surgimento de lares de idosos.

Por outro lado, foi importante analisar o fenómeno do envelhecimento tentando entendê-lo como um fenómeno social total que se encontra relacionado quer com a

evolução dos contextos estruturais e societários, quer com as experiências únicas e

subjectivas que estão associadas ao percurso de vida de cada indivíduo. Estas duas

variáveis devem, na verdade, entender-se entrecruzadas quando queremos analisar as

várias vivências e formas de adaptação dos indivíduos à velhice.

No que diz respeito ao enquadramento da vivência no lar, foram igualmente relevantes os contributos da psicologia ambiental, chamando-nos a atenção para a importância

de se analisar a congruência do espaço face às necessidades de cada um. Perceber

em que medida as lógicas de configuração dos espaços do lar contribuem para a

preservação da autonomia dos idosos, promovem o seu conforto e bem-estar físico,

respondem às suas necessidades de carácter mais subjectivo, incluindo aqui a reserva e

intimidade de si, assim como a convivialidade e estabelecimento de redes e laços com

outros, foi também uma estratégia decisiva para analisar o investimento do lar na

preservação da auto-estima e de uma identidade favorável junto dos idosos.

Dentro das perspectivas interaccionistas, o modelo teórico relativo às “instituições totais”, desenvolvido por Goffman, mostrou-se, igualmente, um contributo decisivo para a análise do lar de idosos em estudo. Não consideramos que possa haver uma

transposição completa do modelo para a análise dos lares, mas entendemos que o

mesmo tem imensas potencialidades para nos fazer apreender a estrutura organizativa,

as regras, normas, actividades, em suma a forma como se processa a vivência

quotidiana no lar, que poderá assumir traços mais próximos ou distantes dos que são

atribuídos às instituições totais.

Por fim, e sendo nossa preocupação analisar as mudanças que a institucionalização

acarreta ao nível da identidade dos internados, foi importante explorarmos o conceito de identidade, assumindo-o como um “produto inacabado e reformável”,

dependente das experiências e desafios permanentes que se colocam à vida dos

indivíduos. Entendemos, pois, que a entrada em lar implicou uma reelaboração na forma

de os indivíduos passarem a considerar a sua vida, as relações que estabelecem, as

expectativas perante os outros, os desejos relativos ao futuro…

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…em torno da abordagem metodológica…

Ao nível metodológico, a opção por uma aproximação à grounded theory methodology permitiu-nos ir desenvolvendo reflexões e interpretações à medida que os

dados iam sendo recolhidos e interpretados. A teoria foi evoluindo no âmbito da própria

investigação, através de uma interacção contínua entre a análise e a recolha de dados

(Strauss & Corbin, 1994).

A combinação da observação participante com as entrevistas realizadas aos idosos,

às quais se acrescentou a consulta de documentos, dados pré-existentes e as conversas

informais estabelecidas ao longo de todo o trabalho com os idosos e funcionários, foram

estratégias úteis para garantir uma pluralidade de visões em torno dos fenómenos em estudo. Não obstante a dificuldade em conjugar e articular a totalidade dos dados e

perspectivas em análise, acredita-se que tal opção tenha contribuído para o

enriquecimento deste trabalho.

Ao nível do processo de integração na instituição, não surgiram obstáculos significativos que dificultassem a integração da investigadora, não obstante

estarmos certos de que a relação de confiança que se pretendia estabelecer com os

actores institucionais não tivesse sido tão simples quanto o que se poderia

aparentemente esperar. Se, de facto, foi simples estabelecer diálogos com a maioria dos

idosos que se encontravam, em muitas situações, carentes da atenção de alguém que

lhes fizesse companhia, não se pode afirmar peremptoriamente que a relação de

confiança se tivesse construído no imediato. Foram necessários contactos continuados e a demonstração de um real interesse pelas situações e dificuldades que manifestavam. Por este mesmo facto se entendeu adequado que a realização das

entrevistas se efectuasse apenas quando o conhecimento e a relação entre os vários

interlocutores estivesse solidificada. Foram passadas largas horas a conversar com os utentes que se mostravam disponíveis, assim como se procurou, por várias vias, a

aproximação àqueles que não se mostravam tão receptivos. Sempre que a investigadora

chegava ao lar, a preocupação era a de ir cumprimentar cada um dos idosos,

individualmente, fazendo breves perguntas de circunstância e estabelecendo pequenos

diálogos que permitissem o reforço da proximidade junto dos idosos. Essa

proximidade foi, igualmente, facilitada pelo facto de se demonstrar disponibilidade em conversar acerca dos temas que mais agradavam e mobilizavam os utentes. Estes

passavam, invariavelmente, por relatos da sua vida passada, da sua família e da sua

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situação de saúde. De quando em vez, os residentes abordavam também questões

relacionadas com o dia-a-dia no lar: como tinham passado a noite, a comida que lhes

havia (des)agradado, o comportamento desajustado de algum colega de quarto…

Na linha da observação participante, a investigadora participou em múltiplas actividades do lar, quer as de carácter regular, quer as pontuais. Funcionou, várias

vezes, como mediadora entre as necessidades e problemas dos utentes e a assistente

social, de modo a que alguns utentes em situação de dificuldade chegavam a recorrer à

sua ajuda e conselhos. Acabou por ser, para vários utentes, confidente dos seus

problemas e desaires familiares. Tal situação exigiu um controlo muito cuidado na distribuição dos tempos e da atenção disponibilizada a cada utente, de forma a que

não se gerassem pequenas querelas, ciúmes ou disputa pela atenção da investigadora.

Apesar de todo este trabalho de enraizamento no campo, há que reconhecer que alguns

utentes apresentaram, ainda que em minoria, algumas resistências à participação nas

entrevistas, levando-nos a afirmar o clima de receio e suspeição vivenciado no lar. Embora não alegassem motivos dessa natureza como justificativos para a sua

indisponibilidade, na sua base residia a incerteza e o medo de serem desmascarados e,

por isso, sofrerem as respectivas represálias. Ao longo das entrevistas, foram muitas as

situações em que pediam segredo e se queriam assegurar de que nenhuma informação ia ser transmitida aos outros residentes ou aos profissionais da instituição,

mesmo após tal garantia já ter sido fornecida logo no início de cada entrevista.

Com as funcionárias não foi tão fácil a aproximação. Embora tivessem demonstrado,

desde sempre, uma atitude de simpatia e disponibilidade, não se mostraram

imediatamente tão abertas ao contacto. Ainda que conhecedoras, tal como os idosos, dos

objectivos do trabalho, foi notório, numa primeira fase, algum receio possivelmente de

que se fosse investigar as suas práticas profissionais. O estabelecimento de múltiplas conversas de carácter informal em torno das situações dos idosos e do seu trabalho,

assim como o apoio em várias tarefas inerentes ao cuidado foram amortecendo as

cautelas iniciais.

A recolha combinada da diversidade de informações, obtidas quer por via da interacção

com os vários grupos em presença na instituição, quer por via da análise das várias fases

da carreira moral do internado, permitiu, pois, destacar as situações e circunstâncias em que o lar se pode tornar numa ameaça, ou num reforço, à identidade dos

sujeitos, as quais passaremos, de seguida a analisar. Nesta sequência, entendemos

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importante analisar criticamente os acontecimentos que, ao longo das várias etapas

da carreira de internado, podem causar impacto potencial ao nível da preservação e reconfiguração da identidade dos sujeitos institucionalizados.

…em torno dos principais resultados obtidos…

Antecedentes e entrada em lar…

Se atendermos, desde logo, aos motivos que estão na base do internamento em lar,

facilmente verificamos que eles implicaram a diminuição das capacidades de os

indivíduos, por si só, se sustentarem, que é o mesmo que dizer a perda da sua autonomia, seja ela física, económica, familiar ou psíquica: perda de cônjuge,

solidão, doença e deterioração física e/ou mental, perda ou degradação habitacional,

desentendimentos familiares e/ou indisponibilidade da família para cuidar… A própria

palavra perda transporta-nos para a ideia de privação, neste caso privação da vivência de

um mundo que conferia maior estabilidade emocional, liberdade, emancipação,

independência. Por outro lado, foi perceptível que a quase totalidade dos utentes nunca havia vislumbrado a possibilidade de ingressarem num lar. Essa ideia era-

lhes bastante estranha e sempre haviam imaginado outras soluções para quando se

encontrassem em fase mais debilitada da sua vida. Vários idosos nem sequer tinham

bem uma ideia sobre o que seria um lar. Em suma, a entrada em lar foi, para a maior parte dos idosos, fortemente condicionada por factores alheios à sua vontade.

Ainda que refiram, porventura como forma de preservarem a sua integridade e identidade

pessoal, que entraram no lar por sua iniciativa e livre vontade, a verdade é que essa

decisão foi tomada na base da escolha do “mal-menor”. À falta de melhores alternativas,

o internamento no lar impôs-se como um mal necessário.

Em muitas situações, os familiares assumem-se como os mediadores do processo de entrada no lar, acompanhando os seus familiares idosos no processo de

internamento. Nesta fase de entrada, a assistente social, que procede ao acolhimento,

preocupa-se em transmitir alguma informação ao idoso, mas sobretudo à família. Apesar

do número de acolhimentos presenciados não nos permitir generalizar, nem ser este o

nosso objectivo, a verdade é que a atenção dada à família e a preocupação em

esclarecê-la face a questões funcionais de articulação com o lar nos pareceu superior

face à atenção dirigida aos idosos.

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Não apenas através da observação, mas também por via da consulta dos processos dos

utentes, percebe-se que, aquando do processo de entrada, se privilegia a indagação relativa a questões económicas e de saúde do idoso, secundarizando informação socialmente relevante que torna o indivíduo num ser único e singular, digno de

consideração. Da mesma forma, não se auscultam as expectativas do utente face àquilo que espera da sua vida no lar. Seria fundamental, a partir das suas

expectativas, contextualizá-lo em função do que vai ser a sua vida na residência.

Não podemos afirmar, porém, que não exista um esforço de reconstituição e descoberta

da história de vida dos idosos por parte das profissionais que lidam mais directamente

com os mesmos, designadamente a assistente social e a animadora. Quando se lhes

colocava alguma questão em relação à situação de qualquer utente, prontamente estas

profissionais sabiam explicar do que se tratava, respondendo ao solicitado. Contudo, tais informações, para além de não estarem registadas no processo individual de cada utente, favorecendo a sua consulta por parte de outros elementos da equipa técnica, que, no caso concreto, se reduz à enfermagem, ou de um novo profissional que

entre para o lar, estas não são usadas para que se atenda às particularidades dos utentes nem consideradas trunfos indispensáveis à construção de projectos de vida dos internados. Santiago (2003) considera o processo individual como um

instrumento fundamental para que todos os profissionais conheçam as características e

necessidades do novo residente. Define-o como um documento interprofissional63 no qual

todos os profissionais (médico, enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta

ocupacional, fisioterapeuta, etc.) anotam todos os dados relevantes do idoso, de forma a

que em qualquer momento possa ser consultado por todo o pessoal.

Na construção de uma vivência satisfatória em lar quase nunca são consideradas as características mais particulares da história de vida de cada indivíduo, assim como os seus gostos e hábitos de vida anteriores. Alguns idosos ainda conseguem dar

continuidade, ou descobrir, actividades que lhes restituam o sentimento de continuidade e

de utilidade social. A maioria, porém, remete-se para uma postura de inactividade e

passividade.

De referenciar ainda, em torno do processo de internamento, a imposição de um regulamento, muitas vezes não explicado e nunca negociado com os residentes. 63 Ao assistente social em particular caberia incluir no processo de entrada, entre outros, dados referente a: natureza da entrada; rede familiar de apoio existente; grau de instrução; profissões desempenhadas; preferências e actividades que desejaria realizar, assim como qualquer outro dado social que possa ser de utilidade para o resto do pessoal (Santiago, 2003).

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Os utentes, na sua generalidade, desfamiliarizados com a prática da leitura, referem não

ter lido o regulamento, apreendendo as regras com a convivência no lar, o que não deixa

de ser factor de alguma instabilidade acrescida, associada ao momento de adaptação

inicial.

A adaptação ao lar…

A apresentação ao colectivo não é programada. Pode ocorrer na sala de convívio, no

refeitório, na presença de um grupo maior ou menor de residentes, conforme as

circunstâncias e a hora de admissão do idoso. Em situações mais pontuais, verificou-se

que nem chegou a ocorrer. Normalmente faz-se uma breve apresentação ao colectivo, referenciando apenas o nome do idoso e nenhum outro elemento acerca da sua vida e da sua pessoa. Em algumas situações, o utente é apresentado ao colega

de quarto e colegas de mesa, mas isso também não é um imperativo.

Para além da apresentação ao colectivo e da visita às instalações do lar, muitas vezes

desconhecidas até esse momento, incluindo também a visita ao novo quarto do utente,

que já se encontra preparado com as roupas e os parcos haveres que pôde levar

consigo, nada mais faz parte do “protocolo” informal de recepção. Daí em diante, o utente

torna-se responsável pelo seu próprio processo de enquadramento. Verifica-se uma

inexistência de acompanhamento ao longo dos primeiros dias. O utente é “atirado”

para a convivência com um colectivo desconhecido. Pontualmente a assistente social

pode deslocar-se à sala de convívio para perguntar ao recém internado se se encontra

bem, assim como a animadora pode fazer alguma pergunta tentando descortinar algum

interesse específico que pudesse mobilizar o utente para a prática de alguma actividade.

No entanto, os imperativos do trabalho e a quantidade de idosos solicitando atenção

rapidamente desencorajam estas profissionais a conceder um acompanhamento mais

individualizado ao recém internado.

Do ponto de vista das práticas profissionais e do trabalho de intervenção em lares,

entendemos que seria fundamental, para uma melhor adaptação dos idosos ao lar, a construção de mecanismos de apoio e reforço do idoso, que suavizassem o impacto da sua entrada em lar. Diríamos mesmo que a qualidade dos primeiros

momentos e da adaptação inicial influenciará decisivamente o resto do percurso ou da

carreira do utente em lar.

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Assim, e de acordo com o que vários autores têm defendido, a construção de uma comissão de recepção seria porventura uma estratégia eficaz para minorar os efeitos que a entrada provoca no idoso. Ao mesmo tempo que se apoiaria o novo residente no seu processo de integração, fazendo-o sentir-se acolhido e acompanhado à medida que as múltiplas dúvidas sobre a vida no lar fossem surgindo,

mobilizava-se a comunidade residencial para este processo de acolhimento, estimulando

todos os participantes a definir o plano de integração, gerando-se assim, uma prática de ampla discussão em torno de actividades e projectos que pudessem vir a mobilizar os residentes. Acompanhar o idoso ao seu quarto e apresentá-lo ao seu

companheiro, assim como mostrar-lhe o resto das instalações e actividades da residência

seriam também funções da comissão. Nesta comissão deveriam estar representantes

todos os grupos humanos presentes no lar: director, médico, enfermeiro, assistente

social, psicólogo, auxiliar de geriatria, assim como representantes dos idosos. Em

particular aos profissionais de intervenção, normalmente assistentes sociais, cabe

promover a participação dos residentes nesta comissão. Um idoso voluntário da

comissão poderia servir de referente contínuo e efectuar um seguimento e apoio ao novo

residente até que ele esteja integrado no lar e tenha superado o período de adaptação

(Santiago, 2003).

Ao profissional de serviço social, em particular, caberia efectuar um seguimento contínuo do idoso avançando e propondo-lhe elementos que pudessem favorecer a sua integração (actividades, grupos de amigos, recursos sociais, integração na

comunidade); intervir como mediador nos conflitos convivenciais; prestar apoio e ser a

referência contínua do idoso em todos os seus problemas e inquietações, assim como

avaliar e transportar para a equipa a sua visão profissional sobre a integração efectiva do

idoso no lar. Paralelamente, e com vista a uma atenção individualizada a cada um dos

residentes, a equipa técnica do lar deveria elaborar, numa perspectiva interdisciplinar, um

projecto de intervenção individual para cada um dos residentes, implicando a

promoção de variadas medidas nos campos social, relacional, familiar, psicológico, de

saúde, lúdico-ocupacional, etc, contendo objectivos para cada residente, estratégias a utilizar e actividades a empreender por cada um dos membros da equipa,

estabelecendo uma repartição de funções e actividades e uma coordenação para as

mesmas. Este projecto deveria ir sendo monitorizado regularmente pela equipa,

introduzindo-se alteração ou modificando-se as estratégias de intervenção sempre que se

entendesse necessário (Santiago, 2003).

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Para além dos fracos estímulos à participação nas actividades proporcionadas pelo lar, o que dificulta o processo de adaptação inicial dos residentes, a ausência de espaços privados e de “territórios do eu”, que cumpram a função de “espaços-

refúgio”, associada à impossibilidade dos internados se fazerem acompanhar de bens e objectos pessoais que proporcionam conforto e mantêm a identidade, afiguram-se como situações que colocam em causa a integridade e o bem-estar dos

residentes. Discutiu-se, ao longo do trabalho, a importância dos espaços e objectos que

remetem para a vida passada dos idosos, reconhecendo-se como desumano e

devastador o “despojar do eu” (Goffman, 1996) que resultou numa imposição de perda da

posse da casa e bens aquando da entrada para o lar de idosos. Esta situação ficou bem

ilustrada através dos discursos de muitos utentes, que referenciavam saudades da sua casa e lamentavam a perda dos seus objectos conseguidos com muito sacrifício.

A este propósito, Lunt & Livingstone, discutiam o alcance identitário de algumas categorias de objectos com significado. Os objectos podem conter memórias ou

recolhas de importantes eventos passados ou de familiares e amigos especiais,

funcionando como símbolos que permitem manter a sua própria identidade; podem fazer

parte de uma história pessoal, marcar um momento significativo, enquanto símbolos que

recordam uma vida; podem representar um objectivo pessoal a conseguir ou simbolizar

liberdade e independência, símbolos de um seu ideal ou futuro; podem permitir a

identificação com uma pessoa, possibilitando-lhe expressar características de si própria

(Lunt &Livingstone, 1992).

Quanto aos espaços, a maioria referenciava o quarto como o seu local preferido,

ainda que partilhado com outro(s) residente(s). Acrescentavam, ainda, que, se

pudessem, preferiam estar sozinhos num quarto. Tal situação está claramente

relacionada com a violação da intimidade associada à partilha de espaços que, devendo ser privados, se tornam públicos, como o quarto ou o WC, implicando,

muitas vezes, a partilha dos momentos de higiene pessoal. Acrescente-se, ainda, a

dificuldade em estar com as famílias num ambiente privado e destinado para o efeito,

sendo habitual o uso de “espaços-refúgio”, improvisados para o efeito.

A vivência quotidiana, adaptação ao lar e representações do futuro…

Após o período de integração inicial, que em muito já vai condicionar o sucesso de uma

boa ou má inclusão no lar, instala-se uma fase de adaptação à vida quotidiana. Embora as experiências de adaptação sejam diferenciadas, influenciadas por motivos

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vários, tais como as razões que estiveram na base do ingresso no lar e o grau de

autonomia nessa decisão, esta fase é, também, caracterizada por uma forma de alojamento e tratamento colectivo, despojando os indivíduos da sua individualidade

e afastando-os cada vez mais de uma vida plena e de um envelhecimento bem-sucedido.

Do ponto de vista das relações sociais que se passam a estabelecer, podemos apontar

uma redução generalizada nos contactos estabelecidos com a família, vizinhos e amigos anteriores. Por motivos variados, como o distanciamento demográfico, o estado

civil, a fragilidade que já caracterizava esse relacionamento antes da entrada ou a quebra

dos deveres de reciprocidade geracional, colocando em causa a garantia de prestação de

cuidados que alguns idosos davam como certa, o estabelecimento dessas relações, que

outrora constituíram a base da identidade dos indivíduos, vai diminuindo quer em número

quer, muitas vezes, em intensidade. Colocam-se, sobretudo ao nível das relações

familiares, alguns problemas relacionados com a preservação desses laços significativos

para os idosos. Através do estudo, foi perceptível que o trabalho do lar, ao nível do investimento e motivação da família, quer no que diz respeito à prestação de cuidados ao seu familiar idoso, quer ao nível do estímulo à participação nas dinâmicas do lar, era quase nulo. As famílias apenas eram contactadas em situação

pontual ou no período do Natal, tentando que se disponibilizassem para o acolhimento do

seu familiar na ceia e dia de Natal. Ainda assim, nem sempre se demonstravam

disponíveis para o idoso.

Como motivar as famílias para o acompanhamento e prestação de apoio emocional ao seu idoso, quando estas vêem a sua vida fortemente condicionada pelas exigências

da vida profissional dificultando a sua disponibilidade para investir nos afectos e na

relação com as gerações mais velhas?

Não obstante as dificuldades colocadas aos técnicos de intervenção, no sentido da

motivação das famílias, devem ser utilizadas todas as estratégias que favoreçam a preservação desses laços. Precisamente pelo facto da família proporcionar vínculos

afectivos, emocionais e relacionais imprescindíveis para que a pessoa mantenha as suas

competências físicas e psíquicas, ela assume uma importância decisiva no processo de

entrada, adaptação, satisfação do seu familiar no lar. Assim, os profissionais de intervenção devem tomar em consideração que: a família deve participar e integrar-se na vida do lar, juntamente com o seu idoso; deve manter o vínculo afectivo (escuta,

carinho), relacional (companhia, frequência de visitas), e assistencial (prestação de

cuidados básicos na medida do possível), de maneira a que o sistema familiar se

mantenha (Yanguas, Leturia, Leturia & Uriarte, 1998). Por outro lado, o lar deve estar

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atento às necessidades e pedidos da família; oferecer um bom acolhimento, informação, coordenação e oferta de grupos de apoio e/ou auto-ajuda, estreitando a

colaboração e confiança entre o lar e a família. Deve estimular, ainda, a participação da

família na tomada de algumas decisões, favorecendo o seu processo de adaptação ao lar

e o bem-estar dos idosos internados. Esta participação das famílias, sustentada num

clima de comunicação aberta e fluida entre a família, o residente e a equipa, pode passar

pela planificação e organização de algumas actividades e colaboração em programas de

tratamento (idem). Entendemos mesmo que para além de transmissora e garante de afectos e apoio aos seus idosos a família pode ser uma instância de apoio na gestão do lar e na promoção de um quotidiano mais rico e estimulante para os residentes.

É ainda possível verificar uma certa falta de investimento na promoção de novas sociabilidades, designadamente intergeracionais. Apesar disso, observa-se facilmente o

agrado dos utentes quando recebem visitas pontuais de crianças ou mesmo perante a

presença das estagiárias. Estas últimas acabam por compensar um pouco esta

vulnerabilidade. Seria desejável que esta abertura permanecesse e se solidificasse, por

forma a garantir a construção de laços sociais consistentes e duradouros com grupos

mais jovens.

No que se refere às relações que se estabelecem entre idosos e funcionários, podemos concluir que elas se baseiam no estabelecimento de uma certa distância entre

o mundo dos internados e o mundo dos cuidadores. Estes últimos interagem com os

residentes apenas em breves momentos do dia, sobretudo ao deitar e levantar. O resto

do seu tempo é dedicado a tarefas de carácter instrumental. Seria importante ter em

conta alguns factores de motivação profissional, tais como salários adequados,

investimento em processos de formação e reflexão contínua em torno do trabalho a desenvolver. Factores como distâncias etárias, diferenças culturais e o tratamento

tendente à preservação da integridade e identidade dos idosos deveriam ser

sobremaneira trabalhados.

Os técnicos mais qualificados e/ou profissionais responsáveis pela instituição,

exceptuando a animadora sócio-cultural, pouco interagem com os idosos. Organizam o

seu trabalho e abordam os problemas de forma isolada, valorizando as tarefas ditas “de

gabinete”, contribuindo, dessa forma, para a sectorização dos problemas, a

burocratização das lógicas profissionais e o afastamento progressivo dos residentes. Da

parte da direcção o afastamento é, como já ficou referenciado, total.

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Relativamente às relações que se estabelecem entre residentes podemos afirmar que o funcionamento do lar contribui para a criação de fortes obstáculos à proximidade e construção de relações estreitas entre estes. Esta questão é acentuada quando

pensamos nas relações entre idosos de sexo diferente. O receio de que estas relações

possam culminar em proximidade física, entendida como desadequada e até perversa,

fazem com que todas as estratégias sejam válidas para fomentar esse afastamento. A

separação imaginária que se verifica na sala de convívio entre os espaços dos homens e

das mulheres é um exemplo; a proibição de qualquer proximidade mais íntima, ainda que

numa lógica de amizade, entre senhoras e senhores do lar é outro exemplo. Por outro

lado, ao congregar-se no mesmo espaço pessoas com percursos de vida e trajectos sócio-culturais diferentes; distintos motivos associados ao processo de

institucionalização; diferentes graus de funcionalidade e estatutos de saúde, acaba por se

contribuir para o afastamento entre idosos, motivado pela convivência de pessoas

portadoras de diferentes hábitos, valores, costumes e modos de vida. Estes motivos,

assim como o receio inerente ao “constrangimento de familiaridade”, geram o

estabelecimento de laços superficiais, relações de indiferença e até de relações pontuais de algum conflito.

Este facto não inviabiliza a construção de algumas amizades mais próximas no lar,

situação mais rara e ocorrida sobretudo entre pessoas que já se conheciam antes da

entrada em lar. De salientar a consciência associada à finitude desses laços, pouco motivadora da construção de novas amizades, tendo em conta a convivência

permanente com a morte de outros residentes.

Apesar das dificuldades em inverter esta tendência, a promoção de actividades que

fomentassem a relação entre os residentes seria uma possível área a investir. As actividades regulares são rotineiras, empobrecidas, sem apelo à criatividade, a novas oportunidades ou aprendizagens. Os fins-de-semana destacam-se por serem

dias mais solitários e difíceis de passar no lar. O dia a dia é, apesar de tudo, intercalado

com algumas actividades de carácter pontual que, pela sua novidade e interesse,

mobilizam mais os idosos. Entendemos, pois, que estimular os idosos para actividades

socialmente úteis, que promovam experiências de carácter social, cultural, lúdico poderia

ser uma forma de motivar os idosos para a vida, superar alguns dos seus sentimentos de

vazio, diminuir e elevar a sua identidade.

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Destaca-se a importância de desenvolver uma gestão que ofereça oportunidades significativas e actividades diversificadas e com potencialidades a vários níveis,

centrada nas necessidades dos idosos, o que não se compadecendo com os habituais

parcos orçamentais que as instituições possuem.

O quotidiano institucional é, igualmente, regido por rotinas, regras e normas decididas unilateralmente pela direcção ou responsáveis. O utente raramente ou nunca interfere nas decisões a tomar, ainda que lhe digam directamente respeito (ex: mudar

de quarto). Verifica-se, pois, uma desatenção face às opiniões dos idosos nas situações

em que é necessário operar mudanças, (ex. mudar de quarto). Consideramos que a

implicação dos idosos na gestão e planeamento das actividades e do quotidiano institucional, através da criação de comissões várias, poderia ser uma vida para a

vinculação, desenvolvimento de sentimento de pertença e implicação ao lar.

Face a uma vida presente que nunca se desejou verdadeiramente e não ignorando o fenómeno inexorável da proximidade com a morte, o futuro assume-se como um tempo quase inexistente. Os discursos dos idosos são centrados na vida passada: o

presente quase nunca é importante e o futuro raramente é considerado nos seus relatos.

Para muitos o futuro é sinónimo de proximidade com a morte, condição impeditiva

da construção de desejos e de projectos. Sendo a morte uma realidade bastante

presente na vida dos idosos, pouco espaço se cria, contudo, para a sua discussão e preparação, considerando o indivíduo como um ser integral que deve ser considerado e

respeitado até à sua morte.

De entre os que ainda conseguem acalentar alguma expectativa face ao futuro, quase todos desejariam melhorias face ao seu estado de saúde fragilizado. Alguns ainda

desejariam realizar alguns passeios, visitar amigos, assim como ver as condições da sua

família melhoradas. Estamos certos de que se se investisse na realização de projectos de vida que permitissem aos idosos a restituição do sentimento de pertença a

uma comunidade, de utilidade social e os despertassem para novos estímulos e

sociabilidades, o tempo futuro iria colorir-se com outros desejos, vontades, sonhos e expectativas de realização pessoal.

Mediante a participação num novo contexto socializador, que impõe uma vida colectiva na maioria dos casos não desejada, a vivência no Lar pode traduzir-se,

como ficou claro por tudo o que foi anteriormente mencionado, como ameaça à

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singularidade e ao reconhecimento de cada um. Face à rigidez de horários e regras

quotidianas, à devassa de privacidade e intimidade, à ausência de espaços privados, à

imposição de actividades triviais, ao progressivo afastamento de papéis e funções que

asseguram o sentimento de utilidade social, ao empobrecimento dos relacionamentos…o lar pode contribuir para uma progressiva ameaça à identidade pessoal e social dos indivíduos, sobretudo à medida que escasseiam as oportunidades de auto-afirmação, e,

com isso, conduzi-los à sua morte social. Assim, várias estratégias identitárias foram mobilizadas pelos idosos, com vista ao reconhecimento da sua existência no sistema social e à preservação do seu sentimento subjectivo de pertença e

especificidade/singularidade (Kastersztein, 1990).

Não obstante a mistura de estratégias que os residentes assumem, consoante a situação

em que estão colocados, os interlocutores envolvidos, os desafios identitários que se

colocam em jogo e as finalidades que desejam alcançar em cada momento particular, a

verdade é que, na generalidade das situações o uso destas estratégias vai mais ao encontro do funcionamento pseudo-harmonioso da instituição do que da preservação identitária dos indivíduos. O retraimento sobre si próprio, o anonimato e a

conversão garantem uma relação com o lar puramente funcional, não colocando em

causa o status quo. Contrariamente, estratégias que passem por posturas de

intransigência, de afirmação de si e diferenciação são muito menos utilizadas, apesar de

as consideramos mais favoráveis quando se trata de considerar o indivíduo enquanto

pessoa, com a sua singularidade. Seria mais fácil, por via do uso destas estratégias

assumir-se, na sua vivência relacional, como indivíduo dotado de potencialidades, poder

e empowerment, capaz de vencer quaisquer tentativas de subjugação, não fossem as

represálias que um comportamento pouco valorizado pudesse originar.

Na verdade, não considerando o Lar em estudo uma instituição total, tal como Goffman a

definiu e caracterizou. Podemos afirmar, porém, que ao nível das suas características gerais, a instituição apresenta alguns traços característicos das instituições totais, se bem que com graus de intensidade distintos: trata-se, de facto, de um local onde

permanece um grande número de pessoas, com um quotidiano formalmente

administrado e com tendência para o seu fechamento. Verifica-se uma separação do

idoso face à família e local de residência, assim como a imposição de rotinas e as regras

institucionais. No entanto, nem todas as dimensões citadas assumem a mesma

intensidade quando falamos de idosos autónomos ou dependentes, de idosos com

família ou solitários, de idosos com algum poder reivindicativo ou idosos que se

encontram completamente à mercê do apoio das cuidadoras.

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

…alguns constrangimentos e pistas de reflexão…

Terminamos, referindo alguns constrangimentos associados à realização do trabalho de investigação, assim como algumas pistas que, do nosso ponto de vista, seriam

interessantes para uma exploração futura do tema em análise. Assim, é de ressaltar o

desconhecimento da vida anterior dos idosos, dificultando a percepção de vários

outros motivos, para além dos analisados, que poderão influenciar o impacto positivo ou

negativo da institucionalização dos idosos. Acrescente-se ainda, a dificuldade em

acompanhar o momento do internamento de muitos idosos, impedindo a percepção de

reacções bastante diferenciadas.

Seria igualmente interessante poder testar o impacto da institucionalização e as

estratégias de adaptação utilizadas pelos utentes de classes sociais privilegiadas, mais escolarizadas e com outro poder reivindicativo. Prevê-se que pudessem existir

diferenças significativas por relação ao estudo realizado.

Por outro lado, seria curioso ainda analisar se as vivências e reconfigurações identitárias

seriam as mesmas se os utentes estivessem a residir com outros idosos em estado de saúde física e mental semelhante, evitando, por exemplo, o confronto com a

incapacidade mental. Estas parecem-nos variáveis capazes de interferir na auto-estima e

na forma de adaptação ao quotidiano…

Por fim, e tendo por referência a tendência observada, na base da qual o final da carreira

moral do idoso em lar termina com a sua morte, seria pertinente conhecer e ouvir os relatos daqueles que resolveram sair do lar, antes da sua morte… O que esperavam

do lar? Como retratam a sua experiência de passagem pelo lar? O que os desiludiu? Que

perspectiva de futuro constroem?...

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

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ZIMERMAN, Guite, Velhice – Aspectos Biopsicossociais, Porto Alegre, Editora

Artmed, 2000

10. Anexos

Guião de Entrevistas a Idosos Institucionalizados

1 - Temas acerca do percurso de vida no decorrer da infância, juventude, vida adultaIdentificação

Características da família de origem

Origem e mobilidade geográfica

Acontecimentos e figuras marcantes

Trajectória escolar

Escolhas e expectativas quanto à profissão

Inserção profissional

Satisfação e valores em relação ao trabalho

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Família e projecto parental

O trabalho e a família

Redes de relacionamentos sociais e sociabilidade ao longo da vida e na comunidade de

origem/residencial

Práticas culturais e de lazer ao longo da vida

2 - Temas acerca da situação de vida na idade madura (quando existam, após a saída

dos filhos da casa de família)

Vida familiar após a saída dos filhos de casa

Tempos livres e redes de vizinhança e sociabilidades

Estatuto de saúde

Situação económica

Situação residencial

Representações sobre a sua vida, a sua situação e a sua pessoa (como se via a si

própria nessa altura? Como era a sua vida?)

Expectativas acerca do futuro (ideia que tinha sobre como iria ser a sua vida e como

gostaria que fosse a sua vida)

Razões que condicionaram/marcaram a entrada em lar

Forma como decorreu o processo de entrada

3- Temas acerca do período que se inicia com a entrada em larDia da entrada em lar (sentimentos, medos, pessoas que acompanharam o processo…)

Recepção no lar (representações e lembranças acerca do acolhimento, quem esteve

presente, o que perguntaram, como se sentiu nesse momento…)

Enquadramento no lar (conhecimento do espaço físico, dos outros residentes e pessoal)

Relações estabelecidas com colegas de quarto, de mesa, restantes residentes e pessoal

Representações e sentimentos acerca do tratamento recebido pela direcção e pessoal e

restantes residentes

Representações acerca do lar (o que pensa do lar, dos serviços que presta?)

Quotidiano do lar (como é que preenche os seus dias? O que gosta mais de fazer? O que

gostaria de fazer e não faz? O que é que mais o incomoda? O que mais mudou na sua

vida?)

Relações estabelecidas (Qual a pessoa que mais o apoia? Como é que acha que o

tratam aqui? As pessoas tratam-no de forma diferente do que o tratavam antes da

entrada no lar?)

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Mudanças na sua vida (como se sente? Do que é que gosta mais no lar? Do que é que

gosta menos? Como é que vê os outros no lar? Como é que acha que os outros a vêm a

si?)

Sonhos e expectativas quanto ao futuro (o que mais gostaria que lhe acontecesse?)

Opinião sobre outros aspectos da vida, sobre dados importantes no seu percurso de vida.

1 - Temas acerca do percurso de vida no decorrer da infância, juventude, vida adulta…

IdentificaçãoSexo, idade, estado civil, nível de estudos

Pretende-se tomar em consideração as particularidades do público entrevistado, se são

mais mulheres, se estão em idade avançada, dado que com a idade diminuem os

reflexos e a capacidade de adaptação ao meio, nível de formação, uma vez que o

analfabetismo ou a baixa formação pressupõem uma limitação na capacidade de

resposta do o indivíduo face às exigências do meio…

Características da família de origemFamiliares com quem habitava – Pais e irmãos? Quantos eram? Posição do idoso na

fratria.

Inserção social dos familiares em várias dimensões (profissional, escolar) – em que

trabalhavam os pais? E os irmãos? Estudavam (até que nível de ensino) ou trabalhavam

(quais as profissões predominantes)?

Rendimentos e condições de vida da família

Obrigatoriedade em trabalhar

Origem e mobilidade geográficaNaturalidade do idoso e dos seus pais

Locais de residência desde o nascimento até à construção da sua família

Locais percorridos para a escola e trabalho

Local de residência antes da entrada no lar

Acontecimentos marcantesAcontecimentos que provocaram rupturas na sua história:

Situações profissionais difíceis dos pais, fome, pobreza, exclusão social…

Ausência do pai/mãe por morte/abandono do lar

Processo de separação da família

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Mobilidade geográfica e processo de adaptação às novas pessoas, vivências e territórios

Trajectória escolarIdade com entrou e saiu da escola

Nível de ensino obtido e percurso formativo – alguma vez interrompeu os estudos?

(trajectórias com rupturas ou não? Referência a períodos acidentados)

Desistência da escola – motivos subjacentes ao abando no escolar – dificuldade em

aprender, não gostava de estudar, escola estava longe de casa, não era importantes

estudar, era melhor trabalhar e ganhar dinheiro; dificuldades económicas da família;

família não apoiava; escola não servia para nada)

Expectativas e escolhas quanto à profissão – considera que a ida à escola lhe fez

aumentar as expectativas em relação ao futuro profissional? Tinha alguma profissão

desejada na infância? Conseguiu, ou não, concretizar esse desejo? Porquê? Qual a

profissão(ões) que desenvolveu ao longo da vida?

Inserção profissional – escolheu a profissão (ões) que desenvolveu ao longo da vida?

Quais as razões que o levaram a escolher essa profissão? Foram outras pessoas a

escolher a sua profissão? Consegui encontrar emprego na comunidade de onde era

originário? Teve de deixar a sua comunidade de origem e ir viver para outros locais? Os

seus familiares foram consigo? Se sim, conseguiram adaptar-se satisfatoriamente?

Satisfação e valores em relação ao trabalho – Gostaria de ter exercido outra

profissão? Porquê? De qual gostou mais? Sentia-se respeitado no seu trabalhado? E

realizado? Acha que os outros o consideravam/admiravam? E a sua família?

Família, paternidade e maternidadePráticas e investimento na construção de uma família – ambicionava construir um a

família? Com que idade começou a namorar? O casamento foi fruto de uma escolha?

Amava o seu cônjuge? Foi feliz no casamento? O que pensa do casamento?

Paternidade/maternidade – Teve filhos? Foram desejados? Sentiu-se feliz como

pai/mãe? Sente que investiu muito ou pouco enquanto pai/mãe? Quem, no casamento,

investiu mais na educação/formação dos filhos? Acha que os seus filhos o

recompensaram? Deram-lhe muitas alegrias? Reconhecem o esforço desenvolvido ao

longo da vida?

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Aspirações quanto ao futuro dos filhos – o que é que gostaria que os seus filhos

fossem? Em relação à escola, percurso profissional e outros aspectos da vida…

Corresponderam às suas expectativas?

O trabalho e a famíliaRealização de actividades complementares para além da actividade profissional - Como conseguia conciliar o seu trabalho com o cuidado aos filhos e da casa? Considera

que o seu trabalho prejudicou a sua vida familiar? Dava-se bem com o seu cônjuge e

filhos? Costumava chegar a casa muito cansado? Ainda tinha tempo para dedicar aos

seus filhos? Costuma querer saber como tinham passado o seu dia?

Atitudes da família em relação ao trabalho – sentiu pressões da sua família para não

trabalhar? Teve conflitos com o seu cônjuge? Valorizava muito o seu trabalho?

Estratégias desenvolvidas face aos constrangimentos – libertar-se da actividade

profissional; negociações conjugais e familiares; construir o seu próprio emprego; tornar a

actividade profissional numa necessidade evidente para a sobrevivência da família…

Redes de relacionamentos sociais e sociabilidade ao longo da vida e na comunidade de origem/residencialComposição completa da sua rede de relacionamento – rede de relacionamento com

os vizinhos, amigos, profissionais, membros de associações locais. Coesão e

homogeneidade da rede; dimensão da rede; durabilidade; intensidade emocional,

confiança e intimidade; frequência nas trocas emocionais, de favores e serviços (com quem estava mais; com quem se divertia mais; com quem conversava mais, quem o apoiou mais nos seus problemas, decisões e o aconselhou; com quem tinha mais opiniões em comum; com quem se sentia mais à vontade para falar dos problemas da vida…)

Tipo de sociabilidades – intensas/leves; múltiplas/escassas; formais e

organizadas/informais e espontâneas, colectivas/grupais ou interindividuais.

Referência a amigos – de infância, de trabalho, dos espaços físicos e sociais como o

bairro ou local de residência ou espaços profissionais, outras amizades…

As amizades com quem mais conviveu eram semelhantes ou diferentes em relação a:

idades, sexo, situação perante o trabalho, origem social (famílias), zona de residência,

ideias políticas e religiosas, o modo de vida, as formas de se divertirem, locais que

costumavam frequentar…

Práticas culturais e de lazer ao longo da vida

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Ocupação dos seus tempos livres – ir a casa de familiares/amigos ou recebê-los em

casa; almoçar, jantar fora, ir a cafés; participar num rancho folclórico, tuna, banda ou

grupo associativo (fazendo o quê); frequentar as colectividades locais; ir ao cinema,

teatro, concertos de música (de que tipo?); ir ao futebol; visitar outras terras; ir aos

museus, exposições; ir à praia, às discotecas; participar nas festas da terra; ver televisão;

fazer teatro, danças; praticar desporto (qual?)

Com quem (sua família de origem, amigos, seu cônjuge e filhos, colegas de trabalho,

outros elementos) e onde costumava praticar essas actividades?

2 - Temas acerca da situação de vida na idade madura (quando existam, após a

saída dos filhos da casa de família)

Vida familiar após a saída dos filhos de casa – passou a viver com o cônjuge?

Aproximou-se ou afastou-se cada vez mais dele? Vivia com mais algum familiar? A vida

passou a ser mais simples? Com que frequência convivia com os seus filhos? E netos?

Viviam próximo de si ou longe?

Tempos livres e redes de vizinhança e sociabilidades O que fazia nos seus tempos livres? Aquilo que fez ao longo da sua vida? Deixou de

fazer isso? Porquê? Ia visitar os filhos? Ajudava-os? Ia passear? Ficava sempre em

casa? Convivia com os vizinhos? Com amigos? Ajudava os seus vizinhos? Fazia algum

trabalho de voluntariado ou apoio à comunidade? Tomava conta dos netos? Participava

em alguma associação ou partido político?

Acha que a sua família, amigos, vizinhos… reconheciam o seu apoio? Sentia-se útil?

Considera que aquilo que fazia era importante para essas pessoas?

Estatuto de saúde (saúde/doença numa perspectiva objectiva/subjectiva)Como estava de saúde antes de entrar para o lar? Sentia-se bem, de plena saúde?

Sentia-se mal? Estava totalmente incapacitado? Estava um pouco incapacitado mas

ainda era capaz de fazer as suas actividades de vida diárias? Já precisava de alguma

ajuda? Foi-lhe diagnosticado algum problema pelo médico? De quê? Coração, ossos e

articulações…? Ia muitas vezes ao médico? Do centro de saúde ou particular? E ao

hospital?

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Quando tinha algum problema de saúde a quem pedia ajuda? Quem é que habitualmente

o acompanhava ao médico, centro de saúde, hospital?

Situação económicaComo era a sua situação económica antes da entrada em lar? De que vivia?

Pensão, reforma, apoio dos filhos? Apoio das instituições, dos vizinhos? Fazia

algum trabalho extra para apoiar nas suas despesas de vida?

Considera que o dinheiro que tinha era suficiente para fazer face às suas

despesas? Em que é que investia maior parte do dinheiro? Na renda de casa? Na

alimentação? Nos medicamentos? No apoio aos filhos? No apoio aos netos?

Quando lhe faltava dinheiro a quem recorria? Aos filhos, vizinhos, instituições?

Não dizia nada a ninguém e passava dificuldades?

Situação ResidencialDescreva a casa onde vivia. Era sua? Arrendada? Encontrava-se degradada ou

estava em boas condições? (saber se tinha equipamentos de conforto, com o

aquecimento, máquina de lavar…)

Gostava de viver naquela casa? Viveu lá muitos anos? Criou lá os seus filhos?

Trazia-lhe boas recordações? Quais (quer partilhar algumas comigo?)

Representações sobre a sua vida, a sua situação e a sua pessoa

Como se via a si próprio nessa altura? Como era a sua vida? Nessa altura gostava que

alguma coisa mudasse na sua vida, ou era uma vida boa? Como é que acha que os

outros viam a sua vida? Tinham inveja e si? Lamentavam as suas dificuldades?

Acontecimentos marcantes

Morte de um filho, do cônjuge, ruptura familiar, situação de doença, dificuldades

económicas graves, passagem à reforma…

Expectativas acerca do futuroIdeia que tinha sobre como iria ser a sua vida e como gostaria que fosse a sua vida. Com

quem imaginava ir viver? O que é que ainda gostaria de fazer da sua vida? Poder

passear, ajudar os filhos, os netos… Quem é que acha que deveria cuidar de si?

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Razões que condicionaram/marcaram a entrada em larDiminuição ou perda total de autonomia, na sequência de doença ou acidente, (implicando um aumento de cuidados suplementares ou uma assistência mais frequente na

resposta à doença e ao declínio de funções psicomotoras)?

Perda do cônjuge? Afastamento nas relações com os filhos? Estar completamente sozinho? O esfriamento, e às vezes a ruptura nas relações, provoca a saudade e a insegurança

que constituem manifestações mais subtis de falta de autonomia.

Progressiva incapacidade de fazer face às despesas económicas relacionadas com a alimentação, medicação, habitação, cuidados pessoais…? Dada a insuficiência das

pensões para fazer face a tais despesas. Mesmo quando a família está disposta a ajudar, o idoso

pode preferir pagar parte da sua pensão ao lar.

Forma como decorreu o processo de entradaGrau de autonomia do idoso na decisão de entrada para o larEntrou voluntariamente? (Apesar de em muitos casos ser um acto voluntário fruto de um

cálculo do “mal menor”); Está no lar porque quer? Desentendeu-se com a sua família? Não quis ser uma sobrecarga para os filhos? (Vai apresentando razões de força maior que

estiveram na origem da entrada, normalmente relacionadas com o desentendimento familiar ou

com o desejo de não se tornar numa sobrecarga); Entrou de forma forçada? (Destes, alguns

acabam por se resignar, outros não aceitam nunca e acabam por falecer pouco tempo depois da

entrada ou deixam-se consumir pela tristeza e indiferença do que os rodeia); Entrou para o lar por engano, sem saber que era para ficar para sempre no lar? (Há ainda os que são

conduzidos à residência por engano. Esperam aí ficar temporariamente para uma recuperação e

acabam por ficar indefinidamente)

Outros agentes implicadosTomou a decisão de entrada no lar sozinho? Considera que a sua família o pressionou

para entrar? Tomou a decisão com o apoio e concordância dos filhos? Terá sido outra

pessoa a pressioná-lo, como a assistente social, o padre, um vizinho…? (A família, os

amigos “fora de toda a suspeita”, pessoas com prestígio como o padre, a assistente social… e que

exercem um género de pressão e funcionam como desencadeantes do processo de entrada)

3- Temas acerca do período que se inicia com a entrada em lar

Dia da entrada em lar (sentimentos, medos, pessoas que acompanharam o processo…)

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Como se sentiu no dia em que veio pela primeira vez ao lar? Tinha conseguido dormir na

noite anterior? Sentia-se fortemente angustiado, ansioso, receoso…? De que é que

tinha mais medo? De se sentir sozinho? De não ser capaz de fazer amigos? De não

gostarem de si e não o respeitarem? De deixar de conviver com a sua família? De não

mais sair do lar? Sentia-se envergonhado? Preferiria ter morrido?

Não se sentia feliz mas resignado. Sabia que não havia outra solução. Ia um pouco

apreensivo mas sem medo…

Estava feliz pois finalmente tinha conseguido o que há muito desejava. Estava certo

que a sua vida ia mudar para muito melhor. A partir daquele momento não mais ia estar

sozinho e ia ter quem cuidasse de si, sentia-se aliviado…

Sentia-se tranquilo pois tinha ido com o(s) seu(s) filho(s). Foi sozinho. Foi acompanhado

de um técnico de uma outra instituição. Foi com outra pessoa, sobrinho, vizinho…

Recepção no lar (representações e lembranças acerca do acolhimento, quem esteve presente, o que perguntaram, como se sentiu nesse momento…)Recorda-se de quem o recebeu no lar? Foi apenas uma pessoa ou várias? Já conhecia

essa(s) pessoa(s)? Alguma vez tinha estado na sua casa? O que lhe disse essa pessoa?

Como o tratou? O que lhe perguntou? O que é que essa pessoa queria saber da sua

vida?

Informou-o das regras e leu-lhe o regulamento do lar? Deu-lho para ler? Disse-lhe

quanto é que ia pagar todos os meses e com quanto ficava da sua reforma? Já sabia

dessa informação ou foi surpresa? Esteve de acordo?

Perguntou-lhe se queria ficar no quarto de alguém que conhecesse ou na mesa, aquando

das refeições? Perguntou-lhe sobre coisas da sua vida, como o que gostava de fazer, os seus hábitos? Esteve sobretudo a pedir-lhe a documentação e a tratar de

papéis ou mais a conversar sobre a sua vida?

Acha que percebeu o que se estava a passar? Como se sentiu? Tranquilo?

Desconfortável? O encontro foi tal como o esperava? Porquê?

Informaram-no sobre os serviços existentes e as actividades desenvolvidas? Disseram-lhe que serviços poderia requerer e em que actividades poderia participar ou

assistir?

Quem acha que falou mais tempo ao longo daquela primeira conversa? Acha que

naquela altura tinha muitas dúvidas que gostava de ter colocado e não pôde? Estava tão

confuso que nem tinha espaço para ter dúvidas? Estava tão nervoso que nem conseguia

ouvir o que dizia essa pessoa. Falaram mais com a sua família do que consigo?

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

Manteve a sua casa até ter a certeza que gostava do lar e se adaptava lá bem? Já

tinha vendido a casa ou entregue ao senhorio e sabia muito bem que a partir de ali nada

mais havia a fazer. A sua ida para o lar era irreversível?

Enquadramento no lar (conhecimento do espaço físico, dos outros residentes e pessoal)Já tinha estado alguma vez no lar? Já tinha conhecido as suas instalações?

Se sim, gostou do que viu? Considerava o espaço confortável, ameno, seguro, bonito…?

Se não, ficou surpreendido com o que viu? Esperava outra coisa? O que esperava?

Pôde escolher seu quarto? Alguém lhe indicou qual era o seu quarto? O que achou do

seu quarto? Já lá estavam as suas roupas? Como conheceu o colega de quarto? Acha

que essa pessoa foi simpática para si? Simplesmente não falou? Foi antipático? Era

alguém com quem se podia conversar?

O que trouxe consigo para o lar? Móveis, quadros, fotografias, objectos pessoais…

quais? Trouxe tudo o que desejava? Pôde trazer toda a roupa que desejava? De que

mais sente falta? O que gostaria de ter trazido e não deixaram? Pôde decorar o seu

espaço como gostava? O seu colega de quarto não se opôs? E a instituição? O que mais

gosta do seu quarto? Gosta mais do seu quarto do que dos outros espaços do lar?

Porquê?

Como é que conheceu os outros residentes do lar? Ninguém os apresentou, foi

conhecendo aos poucos… Apresentaram-lhe a todos numa cerimónia especial onde

estavam presentes idosos, funcionários e técnicos? O que lhe disseram? Bateram-lhe

palmas? Cumprimentaram-no? Fizeram-lhe perguntas? Receberam-no bem?

Conheceu apenas os outros residentes mas não o pessoal. Esse foi conhecendo aos

poucos… Foram sendo simpáticos consigo e apresentavam-se? Passavam de forma

indiferente e nada diziam? Como se sentiu?

Apresentaram-no apenas aos colegas de mesa quando lhe indicaram a mesa.

Deixaram-no escolher a mesa?

Adaptação inicial no larRecorda-se dos primeiros dias? Como decorreram? Adaptou-se bem à cama, quarto e

companhia do(s) colega(s)? Quase nem falam? Conseguia dormir? Teve de mudar de

quarto? Se sim, quem escutou as suas reclamações? Sentiu-se à vontade para reclamar

a mudança de quarto? Gostou dos colegas de refeições? Falaram logo consigo?

Houve alguém na instituição que lhe tivesse dado muito apoio no início da sua

adaptação? Foi outro residente, pessoal auxiliar, técnico? Se sim, mantém-se amigo

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

dessa pessoa? Se não, sentiu-se muito sozinho? Porque acha que essa pessoa era sua

amiga?

Ao contrário houve alguém com quem se tivesse dado muito mal? Porquê? Alguém que

parecesse querer ser seu amigo e depois, na verdade, não fosse sincero, honesto na

amizade e no apoio prestado? Alguém que o desiludiu?

Alguma vez sentiu vontade de se ir embora, naquela altura? Se sim, porque não foi?

Não tinha quem o apoiasse? Não tinha onde ficar?

Se gostou logo da instituição, o que o chamou mais a atenção? De que se recorda? O

que apreciou mais na vida quotidiana dos idosos naquela instituição?

A sua família continuou a ir visitá-lo? Com muita frequência ou apenas de longe a

longe? Foi muito nos primeiros dias e depois deixou de ir? Sentiu muitas saudades da

sua família nos primeiros dias ou nem por isso?

Quotidiano do lar e margem dos indivíduos na definição do mesmoComo descreveria o seu dia a dia desde que acorda até que se deita? Precisa de

ajuda para o seu cuidado pessoal? Quem lho presta? Essa pessoa é respeitadora e

conversa consigo? Sente-se à vontade com ela? Costuma arrumar o seu quarto?

Como é que preenche os seus dias? Costuma dar pelas horas a passar? Apenas se

apercebe das horas quando toca para as refeições?

O que gosta mais de fazer? Quais as actividades que realiza e mais lhe dão prazer?

Considera que no lar os idosos decidem sobre as actividades que são realizadas? Acha

que há autonomia por parte dos idosos para decidirem sobre as regras e normas a

implementar no dia a dia do lar? Costuma expressar-se quando é solicitado,

espontaneamente ou nunca se expressa? Porque sente que não tem nada a dizer,

porque não dão importância ao que diz ou porque nem lhe dão oportunidade de se

pronunciar?

Acha que o dia a dia do lar é interessante? Fazem-se actividades e programas

agradáveis, motivadoras, que nos fazem ter apreço pela vida? Sempre, de vez em

quando ou nunca? Quais é que, na sua opinião, são mais interessantes? E quais aquelas

que não têm interesse nenhum? Como é que acha que o lar deveria funcionar a este

nível? Costumam perguntar-vos o que mais desejariam fazer? Por exemplo, que

passeios realizar?

O que gostaria de fazer e não faz? O que é que mais o incomoda? O que mais mudou

na sua vida, nas suas rotinas e hábitos que mais o desagrada?

Se não gosta de passar ou seus dias no lar ou preferiria continuara viver na sua casa, como é que actua para que o dia a dia não seja tão desagradável? (Pretende-

se aferir as estratégias identitárias desenvolvidas perante situações de tensão individual

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JOANA GUEDES| O INTERNAMENTO EM LAR E A IDENTIDADE DOS IDOSOS

ou colectiva: conforma-se, actua de acordo com o que esperam de si, procurando agradar; procura passar despercebido; assimila completamente as normas e valores dominantes, abdicando das características que o tornam distinto)

Relações estabelecidas com os residentes Costuma conviver com os residentes? Com quais, todos, apenas alguns? Porquê?

Especificar os residentes com quem se dá melhor.

Como caracteriza e analisa essas relações? São de profunda amizade e carinho? Tem

muitas coisas em comum com essas pessoas? Quais? Considera os outros residentes

quase como uma família?

São superficiais e distanciadas? Trocam-se apenas frases de momento. Considera

que a maior parte das pessoas que vive no lar é muito diferente de si? Porquê? Acha que

os idosos têm medo de perder esses amigos, de serem enganados, que os julguem mal e

digam mal deles…? Quais acha que são os idosos menos bem tratados? Os que estão

sempre a implicar, os que estão doentes…?

Acha que se constroem mais relações verdadeiras de amizade (coincidências da

vida, preferências, empatia…) e cooperação e apoio ou há mais rancores e zangas?

Porquê? Porque acha que se geram conflitos entre os idosos no lar? Essas amizades serão sinceras ou baseadas em medos, desconfianças ou interesses concretos? Pagamento por favores feitos…

Pelo que conhece, é permitido que os utentes possam ter relações de amizade íntima,

que até envolvam sexualidade, no lar e fora do lar?

Relações estabelecidas com o pessoalAcha que os funcionários do lar são amigos dos idosos (incluir a animadora,

educadora, assistente social…)? Sabem comunicar, dialogar? Acha que eles cumprem

bem com as suas funções? Se não porquê? O que é que eles poderiam fazer melhor?

Considera que as funcionárias são respeitadoras? Tratam-no com respeito?

Costumam ser carinhosas e pacientes? Preservam a sua intimidade? São amigas a

quem se pode pedir um conselho, fazer um desabafo…? Costumam falar sobre a vida

delas? Acham que tratam melhor uns idosos do que outros?

São prepotentes e obrigam os idosos a fazerem aquilo que não querem. Estão sempre a

dar ordens. São indiferentes, distantes e praticamente não falam com os idosos. Porque

acha que eles são assim? (não gostam do que fazem, acham que têm poder, estão revoltados

porque trabalham muito, ganham mal, têm uma ideia negativa e errada acerca das pessoas com

mais idade, não compreendem nada sobre as dificuldades e a vida dos idosos, não têm tempo

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para conversar, são mal tratados pela direcção, não são respeitados pelas outras pessoas no

geral…)

São simpáticas e atenciosas mas estão sempre a correr contra o tempo para terminarem

o trabalho que têm que cumprir no lar.

Em suma, acha que é bem tratado pelas funcionárias do lar? (pretende-se saber se os

idosos estão contentes com o tratamento que recebem, sendo que essa avaliação está

dependente da concepção que fazem dos seus direitos, das suas capacidades, do uso da

liberdade, do seu nível social…). Considera que as funcionárias tratam os idosos todos por

igual?

E as estagiárias? Gosta da presença delas no lar? Considera que o lar mudou muito

desde que elas vieram para cá? Porquê?

Representações e sentimentos acerca das funções e tratamento recebido pela direcção

Quem acha que mais organiza e orienta a instituição, toma decisões, medeia os

conflitos…? Acha que deveria ser essa(s) pessoas? Como caracteriza a relação que a

madre(s) estabelece com os residentes? E com os outros funcionários? Acha que a

direcção é isenta e trata com igualdade todos os idosos?

Representações acerca do lar (o que pensa do lar, dos serviços que presta?)

O que mais gosta no lar? E o que menos gosta? Qual espaço do lar que mais gosta? E o

que menos gosta? Acha que os idosos, no lar, podem circular livremente pelos espaços,

como se estivessem em suas casas? Acha que alguns idosos se apropriam de certos

espaços do lar como se fossem seus?

Sente-se seguro no lar? Porquê? Sente-se bem tratado?

Acha que é bom viver-se num lar? E as pessoas de fora, como acham que vêm os lares?

E você, como via os lares antes de vir para aqui viver?

Como se sente quando um outro residente falece no lar? Que importância é que acha

que os outros atribuem a esse acontecimento?

Como avalia, no geral, os serviços prestados pelo lar? São suficientes e com qualidade?

Respondem às necessidades dos idosos? O que está em falta, no seu entender?

Relações estabelecidas

O que é que mais mudou na sua vida? Qual a pessoa que mais o apoia?

Com quem de sal família se relaciona mais? Porquê?

Como é que acha que o tratam aqui? As pessoas, no geral, tratam-no de forma diferente

do que o tratavam antes da entrada no lar?

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Mudanças na sua vida

Como se sente? Do que é que gosta mais no lar? Do que é que gosta menos? Como é

que vê os outros no lar? Como é que acha que os outros a vêm a si?

Sonhos e expectativas quanto ao futuro (o que mais gostaria que lhe acontecesse?)

Acha que os dias são todos iguais? Ou ainda valerá a pena sonhar?

Opinião sobre outros aspectos da vida, sobre dados importantes no seu percurso de vida no lar (…algo adicional que o utente queira referir…)

Guião de observação – Internamento em Lar e Identidade dos Idosos

Dimensão Indicadores

Antecedentes da entrada em Lar

● diminuição/perda de autonomia por doença ou acidente

● perda do cônjuge

● viver afastado/independente dos filhos

● dificuldade em cuidar de si próprio

● dificuldade em fazer face a despesas com alimentação,

medicação, habitação

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Dimensão Indicadores

Grau de autonomia na decisão de entrada no lar

● entra voluntariamente

● entra voluntariamente, fruto do cálculo do “mal menor”

● entra de forma forçada

● é conduzido à residência por engano

● o idoso transmite a ideia de que foi ele a decidir

● resiste a julgar familiares ou outros indivíduos pela sua

entrada

● julgam familiares ou terceiras pessoas como

responsáveis pela entrada

Dimensão Indicadores

Admissão ao lar ● é indagada a situação económica?

● é necessário alguma carta de recomendação de pessoa

idónea?

● é necessário relatório médico?

● é necessário relatório social que ateste o grau de

necessidade?

● é feita visita domiciliária para atestar o que o idoso e sua

família referem?

● é construída a sua história de vida?

● tenta-se conhecer/apurar dados sobre o indivíduo que o

singularizem, o tornem único e digno de consideração?

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Dimensão Indicadores

Entrada no lar● a pessoa é apresentada a todos os residentes? Só aos

do quarto? Aos da mesa onde vai fazer as refeições?

● os idosos que vivem no lar são sensibilizados para a

entrada de um novo residente?

● o idoso dispõe de um tempo de adaptação? Qual é?

● mantém a sua residência anterior disponível para o caso

de não se adaptar?

● a apresentação do novo faz-se num momento oficial

destinado a esse efeito?

● a apresentação decorre num momento

habitual/actividade quotidiana, como uma refeição?

● são apresentados à comunidade residencial os motivos

subjacentes à entrada do novo elemento?

● a pessoa recém chegada desperta a curiosidade dos

idosos que já lá vivem?

● é assediada permanentemente com olhares e perguntas

dos mesmos?

Dimensão Indicadores

Adaptação inicial ● quem, na instituição, conduz/apoia o residente no

processo de adaptação inicial?

● há algum programa preparado para o acompanhamento

do idoso na vida da residência (normas, regras, horários,

actividades disponíveis…)?

● o idoso pode escolher o quarto? Ou o lugar no quarto?

Ou ainda ficar só?

● se se fizer acompanhar pelo seu cônjuge, é garantido

um quarto para os dois?

● pode escolher o local onde vai tomar as suas refeições?

● é tomado em consideração o nível cultural e

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educacional e a origem social na designação desses

espaços?

● é permitido levar móveis próprios?

● é permitido levar objectos pessoais e sentimentais,

expondo-os numa cómoda ou mesa de cabeceira?

● é possível pregar um prego para colocar um quadro ou

fotografia?

● é possível ter expostas fotografias da sua família?

● o idoso é sujeito de imediato a uma avaliação funcional

(médica e de enfermagem, funcional, cognitiva, da rede

social, psicológica)?

● o idoso é obrigado a cortar o seu cabelo?

● tem que submeter toda a sua roupa a uma numeração?

● é obrigado a se despojar dos seus bens valiosos

(colares, anéis, relógios…), entregando-os à família ou

deixando-os no cofre da instituição?

Dimensão Indicadores

Outros factores que poderão influenciar a adaptação

● história pessoal (nível de escolaridade, profissão,

situação familiar…)

● grau de decisão na entrada no lar

● atitude da família (apoio, visita, incentivo…)

● grau de dependência (física ou psicológica)

● nível de deterioração cognitiva

Dimensão Indicadores

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Tempo de adaptação

● período de adaptação rápido (cerca de uma semana)

● passa bem os primeiros dias por ser novidade mas

depois baixa os ânimos e estabiliza

● adapta-se de imediato e faz um número significativo de

amizades

● adapta-se pouco a pouco, sendo que o processo se vai

estendendo no tempo

● não se adapta, a saúde diminui de forma rápida,

podendo ocorrer falecimento prematuro

● não se adapta e por isso sai da residência

Dimensão Indicadores

Estratégias de adaptação – afirmação de si e mecanismos de defesa (segundo

Lipiansky, 1990)

● assimilação/diferenciação

● afirmação e retraimento

● categorização, clivagem, projecção

● ataque e oposição

● identificação, articulação

Dimensão Subdimensões Indicadores

Preservação de identidade pessoal e social no contexto da vida diária em lar

Privacidade/intimidade

● estar no seu quarto sem que ninguém

entre sem bater

● ter a chave do seu quarto

● poder receber visitas em local privado

● ter acesso exclusivo aos seus armários

● aceder a casa de banho privativa

● poder falar ao telefone com privacidade

● nos quartos partilhados haverá divisória

a separar espaços

● há gabinetes de atendimento aos

idosos reservados?

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● é possível expressar sentimentos?

● é possível namorar e estabelecer

relações de intimidade?

● poder lavar a roupa interior

● problemas pessoais dos idosos

guardados em sigilo

Dimensão Subdimensões Indicadores

Preservação de identidade pessoal e social no contexto da vida diária em lar

Respeito pelos bens, bom nome e história pessoal

● posse de bens pessoais

● chamar pelo nome e não por

diminutivos

● confidencialidade da informação

● cuidado na preservação da aparência

pessoal do indivíduo, (ex. sem obrigar a

usar babete, meias que não

combinam…)

● possibilidade de escolher a sua roupa

● entendimento do indivíduo como um

ser único e diferente de todos os outros

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● tomar em consideração a história e

experiência de vida dos idosos

● capacidade de respeito pelos seus

gostos e preferências

● capacidade de respeito pelas suas

ideias, hábitos, credos religiosos e pelo

seu passado social e cultural

● quando tem de mudar de quarto é tida

em conta a opinião do idoso?

Dimensão Subdimensões Indicadores

Preservação de identidade pessoal e social no contexto da vida diária em lar

Autonomia ● sair para o exterior as horas que deseja

● cuidar e decidir da sua aparência física,

se pode andar todo dia de robe e

chinelos?

● decorar o seu quarto de acordo com a

sua preferência

● cuidar da sua própria higiene

● cuidar da limpeza do seu quarto

● decidir a que horas quer tomar refeições

e o menu que deseja

● decidir em que actividades quer

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participar

● podem expressar opiniões,

descontentamentos, dar ideias?

● realização de tarefas diárias da vida

institucional

● possibilidade de falar abertamente dos

seus medos e receios

● podem decidir com quem querem

partilhar o quarto

● podem decidir sentar-se onde quiserem

às refeições

● têm hora obrigatória para levantar,

tomar banho e ir para a cama?

● são idosos que administram o seu

dinheiro?

● têm autonomia para preparar uma

refeição?

Dimensão Subdimensões Indicadores

Preservação de identidade pessoal e social no contexto da vida diária em lar

Aspecto físico ● alguns idosos apresentam aspecto sujo

e/ou descuidado?

● têm cabelo penteado e arranjado e

decide quando o fazer?

● têm barba grande? decide quando a

cortar?

● têm as unhas limpas? decide quando

as arranjar?

● há atenção no fornecimento de roupas

adequadas e em bom estado?

● há partilha das mesmas roupas pelos

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mesmos idosos

● há prestação de cuidados pessoais

diária e atempada?

● analisar se as roupas são diversificadas

e a periodicidade da sua lavagem

● analisar se as cores das roupas

combinam e estão de acordo com sua

vontade

● analisar como se “controla” o

cumprimento de higiene dos autónomos

Dimensão Subdimensões Indicadores

Preservação de identidade pessoal e social no contexto da vida diária em lar

Participação ● participa na planificação de actividades

sócio-culturais e recreativas?

● dá sugestões/decide novas

actividades?

● participa no estabelecimento de regras,

normas e horários, nomeadamente de

visitas e sobre a sua saída e entrada no

lar, sobre a hora de tomar banho ou

proceder à limpeza do seu quarto?

● participa na definição das ementas e

horário das refeições?

● pode decidir em quais actividades quer

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participar?

● pode decidir/ participar na decoração

dos espaços institucionais individuais ou

colectivos?

● pode decidir as penalizações para

quem não cumpre as regras?

● pode participar em actividades no

exterior, de voluntariado, com outras

instituições, …?

● são asseguradas condições para que

os idosos possam usar o seu direito ao

voto?

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