tÍtulo “o jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 tÍtulo: “o jogo começou/sou eu...

29
1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar para vencer 1 : Carnaval, um coringa miliciano, duas rainhas ciganas, um rei cigano e várias formas de poder. Cleiton Machado Maia 2 Resumo: Até o carnaval de 2013 não havia dedicado uma leitura ao tema “carnaval”, mas a constante presença dos grupos que estudo nos desfiles do carnaval do Rio de Janeiro, tem me levado a uma reflexão sobre o assunto, tentando compreender como as relações de desenvolvem desde os ensaios de ala até o desfile como muito salientou Maria Laura Viveiro de Castro Cavalcante (1994). Porem no ano de 2014 fui convidado mais uma vez para participar, com grupos que pesquiso, de um desfile no carnaval do Rio de Janeiro. Esse trabalho visa acompanhar a formação da Ala 14, como ficou conhecida, a ala de “ciganos” na G.R.E.S Grande Rio. Busco focar nas tramas e relações complexa dos mais variados agentes “ciganos” e entender a emaranhada forma de agencias exercida por esses. Introdução “O jogo começou” Quer desfilar com a gente Cleiton?” Essa foi a pergunta de minha principal informante de 2014, Saara Z. Ficaria extremamente envergonhado e sem resposta se já não houvesse passado por situação parecida no ano de 2012 e estar internamente me preparando para tal convite, desde que observei o campo e os dramas (TURNER, 2008: 92) que estava aos poucos se desenhando. Durante o carnaval de 2013 estive acompanhando, para trabalho de mestrado, o grupo Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez no carnaval do G.R.E.S. Beija Flor de Nilópolis com o tema Amigo fiel: do cavalo do amanhecer ao manga-larga marchador”. O enredo conta a história da relação entre o cavalo e a história do homem “Sou Mangalarga Marchador! Um vencedor, meu limite é o céu! Eu vim brilhar com a Beija-Flor...Valente guerreiro, amigo fiel!...”, em um determinando momento do samba conta a importância da relação do cavalo com o “povo cigano” nas caravanas, batalhas e uma busca de purificação do sangue desses animais “...Cigano... Buscando a purificação! Mostrando elegância e bravura, A minha aventura se torna canção!”, o 1 Trecho do Samba enredo da GRES Grande Rio em 2015, em anexo. 2 Doutorando do PPCIS da UERJ

Upload: others

Post on 09-Aug-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

1

TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de

poder, eu não quero saber/vou jogar para vencer1”: Carnaval, um coringa miliciano,

duas rainhas ciganas, um rei cigano e várias formas de poder.

Cleiton Machado Maia2

Resumo:

Até o carnaval de 2013 não havia dedicado uma leitura ao tema “carnaval”, mas a

constante presença dos grupos que estudo nos desfiles do carnaval do Rio de Janeiro,

tem me levado a uma reflexão sobre o assunto, tentando compreender como as relações

de desenvolvem desde os ensaios de ala até o desfile como muito salientou Maria Laura

Viveiro de Castro Cavalcante (1994). Porem no ano de 2014 fui convidado mais uma

vez para participar, com grupos que pesquiso, de um desfile no carnaval do Rio de

Janeiro. Esse trabalho visa acompanhar a formação da Ala 14, como ficou conhecida, a

ala de “ciganos” na G.R.E.S Grande Rio. Busco focar nas tramas e relações complexa

dos mais variados agentes “ciganos” e entender a emaranhada forma de agencias

exercida por esses.

Introdução – “O jogo começou”

“Quer desfilar com a gente Cleiton?” Essa foi a pergunta de minha principal

informante de 2014, Saara Z. Ficaria extremamente envergonhado e sem resposta se já

não houvesse passado por situação parecida no ano de 2012 e estar internamente me

preparando para tal convite, desde que observei o campo e os dramas (TURNER, 2008:

92) que estava aos poucos se desenhando.

Durante o carnaval de 2013 estive acompanhando, para trabalho de mestrado, o

grupo Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez no carnaval do G.R.E.S. Beija Flor de

Nilópolis com o tema “Amigo fiel: do cavalo do amanhecer ao manga-larga

marchador”. O enredo conta a história da relação entre o cavalo e a história do homem

“Sou Mangalarga Marchador! Um vencedor, meu limite é o céu! Eu vim brilhar com a

Beija-Flor...Valente guerreiro, amigo fiel!...”, em um determinando momento do samba

conta a importância da relação do cavalo com o “povo cigano” nas caravanas, batalhas e

uma busca de purificação do sangue desses animais “...Cigano... Buscando a

purificação! Mostrando elegância e bravura, A minha aventura se torna canção!”, o

1 Trecho do Samba enredo da GRES Grande Rio em 2015, em anexo.

2 Doutorando do PPCIS da UERJ

Page 2: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

2

que justificava o convite dos ciganos da Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez para

formar a ala de ciganos.

Até o carnaval de 2013 não havia dedicado uma leitura ao tema “carnaval”, mas

a constante presença dos grupos que estudo nos desfiles do carnaval do Rio de Janeiro,

tem me levado a uma reflexão sobre o assunto, tentando compreender como as relações

de desenvolvem desde os ensaios de ala até o desfile como muito salientou Maria Laura

Viveiro de Castro Cavalcante (1994). Durante o ano de 2012 a Tenda Cigana Tzara

Ramirez esteve presente no carnaval da GRES Beija Flor de Nilópolis e neste ano de

2015 alguns dos personagens que venho acompanhando estarão presente no GRES

Acadêmicos do Grande Rio com o tema: “A grande Rio é do baralho3”. O samba

enredo tem como proposta trabalhar “a sorte e o jogo”, tendo como grande parte do

desfile o “Tarô” como grande símbolo que ligaria o tema “sorte e jogo” ou “sorte no

jogo”.

Durante o mês de dezembro de 2014 estive na cidade de São Paulo para

acompanhar um evento chamado “Mystic Fair4”, que acontece anualmente no Centro de

Exposição dos Imigrantes em São Paulo, e segundo os organizadores é a maior feira de

produtos exotéricos da América Latina. Estive presente para acompanhar e entender um

pouco mais do mercado religioso (PRANDI, 2004: 224) de produtos para ciganos

vendidos nesse tipo de eventos: quantos stands existem, que tipo de produtos existe e

como ocorre essa mercantilização no evento e durante o ano. Pude acompanhar algumas

palestras, dando destaque para as relacionadas à “espiritualidade cigana”, onde tive o

prazer de acompanhar uma grande palestra de lançamento do livro “O código sagrado

do Tarô” e um workshop sobre “O Tarô de Marselha5”.

Os dois eventos foram dirigidos pela maior taróloga do Brasil, uma “cigana” que

durante o final dos anos oitenta e anos noventa teve um programa de teologia na extinta

rede de televisão Manchete. Durante os dois eventos tive a oportunidade de conversar

com a autora e taróloga, assim como várias “ciganas” que estavam ali para comprar e

fazer o curso com essa celebridade. Como os cursos eram de graça para os inscritos no

evento, fiz questão de assistir e tentar entender sobre o tema que, sem sombra de dúvida,

reunia a maioria do público que me interessava no evento.

3 Letra do Samba enredo em anexo.

4 http://www.mysticfair.com.br/

5 HOUDOUIN, W. O código sagrado do Tarô. São Paulo, Editora Pensamento, 2013.

Page 3: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

3

Acabei me destacando em ambos os eventos por questões óbvias, antes de tudo

era um dos cinco homens entre as duas mil participantes mulheres da palestra e do

curso6. E em segundo lugar fui o único a não comprar o livro no lançamento e o único a

não comprar o jogo de cartas para ir fazer o curso7. Logo que cheguei ao curso de Tarô

fui abordado por uma jovem que fazia parte do grupo de assessores dessa famosa

taróloga com a seguinte pergunta: “Quem é você?”. Surpreso estampei um sorriso

amarelo e logo comecei a explicar quem eu era e o que fazia no evento, já que logo

entendi o que a pergunta desajeitada da jovem assessora queria dizer8.

Logo minhas explicações geraram curiosidade e recebi um interessante convite

de conhecer a tão famosa taróloga. Após a primeira seção fui chamado pela assistente

para ser apresentado e conversar com a taróloga, que muito sorridente me recebeu

dizendo: “esse que é o jovem pesquisador?”. Após retribuir o sorriso e conversar sobre

o sucesso do lançamento do livro e da primeira parte do curso, sua história na extinta

Rede Manchete e a mediunidade, fui indagado se ficaria até o final do curso e sem que

pudesse responder já fui recebendo o jogo de cartas de Tarô que era usado por ela no

curso e o livro recém lançado com a dedicatória “Para abrir não novos caminho para o

jovem pesquisador”, o que me obrigou moralmente à ficar até o fim do curso, já que

agora tinha todo o material “didático”.

Durante todo o evento aproveitei para conhecer as principais lideranças, o meu

verdadeiro interesse no local desde o início, isso além de acompanhar a produção e

venda dos principais produtos relacionados à “espiritualidade cigana9”. Entre conversas

com várias pessoas mais de uma vez fiquei sabendo dos convites que receberam várias

tarólogas do evento para desfilar na GRES Gaviões da Fiel que em 2015 traria o samba enredo

“No jogo enigmático das cartas, desvendem os mistérios e façam suas apostas, pois a

sorte está lançada10

”. O samba enredo veio como tema várias vezes durante o curso,

6 Essa observação foi feita pela própria palestrante, que logo pediu para os únicos homens se colocarem

de pé, e pude contar os poucos existentes. Dentro da cultura cigana (TEIXEIRA, 2009. GOMES, 2014) a

profissões de “tarólogia e quiromancia” é exclusivamente destinado as mulheres. 7 Não fiz questão de comprar o material pois era caro, o livro custava cerca de 120 reais e as cartas mais

uns 60 reais. 8 Já que por muitos fui identificado com “não sendo do meio”, “não sendo tarólogo” ou “não sendo

cigano”. 9 Chamo de “espiritualidade cigana” grupos como os pesquisado em meu mestrado (MAIA, 2014), no

caso da Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez, onde somente espíritos “ciganos” incorporam em

seus rituais. 10

Letra do Samba enredo em anexo.

Page 4: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

4

pois como várias delas comentaram “super pertinente” ou “tem tudo haver” com aquele

momento e o curso onde várias “ciganas detentoras” da sorte se encontravam.

A confirmação do tema da GRES Gaviões da Fiel em São Paulo e da GRES

Grande Rio no Rio de Janeiro me fez dedicar um pouco mais de tempo a leitura sobre o

“Tarô” e a relação desses “ciganos”, ”cartomantes” e “tarólogas” com o carnaval, o

quer por muitas vezes parecer um campo de bagunça ou de muitas misturas (LAW,

2002. MACHADO, 2013) se desenha de forma bem articulada, o que fez com que fosse

partilhada no Rio de Janeiro e São Paulo a presença dos ciganos em desfiles em escolas

do grupo especial, e principalmente como no caso da escola do Rio de Janeiro que

acompanhei como essa configuração tinha se organizado.

Estive acompanhando durante dezembro de 2014 e janeiro de 2015 três escolas.

Destacando que as duas escolas do Rio de Janeiro estive em seus ensaios nas segundas e

quartas feiras com a GRES Grande Rio na Cidade do Samba e com a GRE Unidos de

Lucas com o samba enredo “Em busca do destino” em seus ensaios quinzenais, além de

acompanhar a organização das alas, escolha de coreografia e reuniões de ala com

lideranças e “ciganos” convidados. Com a GRES Gaviões da Fiel estive acompanhando

os dois ensaios técnicos no Anhembi e no desfile oficial11

.

Mas para esse texto destacarei somente o campo feito na GRES Grande Rio, por

ter muitos campos a serem feitos depois da data estipulada para a entrega deste trabalho

com a GRE Unido de Lucas e GRES Gaviões da Fiel. E para a apresentação de como se

organizou o jogo de poder (FOUCALT, 2009) na construção da ala de ciganos, farei

uma análise dos quatro personagens propostos comparando-os as quatro lâminas

(cartas) do tarô de Marselha usados no samba enredo da Grande Rio: O rei/o imperador,

a dama/a rainha, a cigana/a sorte e o coringa. Conforme observei no curso de tarô,

usarei esses quatro personagens em particular constroem trajetórias e se tornam sujeitos

de poder (FOUCALT, 2009) nesse jogo, e depois em conjunto, tentando entender como

esses personagens são essências para entender o “jogo de ciganos” no carnaval do rio.

A cigana – “a sorte”.

11

Destaco o auxilio de meu amigo Thiago Meiners, músico e compositor de samba enredo, que fez as

apresentações e convites com a GRES Gaviões da Fiel.

Page 5: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

5

“Pra saber o meu destino… fui buscar

A resposta no tarô… e encontrei o amor

A chave para abrir o meu caminho

No raiar de um novo dia, a cigana revelou12

No taro de Marselha a “cigana” é muitas vezes associada a figura da “sorte”,

sendo detentora de grande conhecimento exotérico e ocultistas, podendo assim não só

ser uma grande conselheira, mas também uma grande articuladora desse conhecimento

durante a vida13

. Não por menos escolho a figura da “cigana/sorte” para representar

Saara nessa leitura, já que por muitas vezes a dificuldade de entender suas articulações

me levaram a aprofundar meu campo nos sujeitos (AGIER, 2012) envolvidos com sua

trajetória.

Durante uma entrevista no final do ano de 2014 fui indagado se queria participar

do carnaval da GRES Grande Rio no ano de 2015, o convite veio acompanhado com a

prolongação de desfilar também na escola de acesso GRE Unidos de Lucas. Segundo

minha informante Saara “se desfilar em um já está automaticamente no outro”, não

compreendi muito bem, mas logo aceitei acompanhar os ensaios e organizações da ala

dos ciganos, mas sem a promessa que iria desfilar.

O convite de Saara só fez aumentar mais meus questionamentos sobre essa

personagem que cruzou meu campo com tanta autoridade. Mas para pensar quem é

Saara? Como consegue ser a “cigana” mais midiática em 2014? Que autoridade ela tem

para organizar a ala de “ciganos” da GRES Grande Rio? E como articula as lideranças

“ciganas” de vários segmentos? Vou explicar como conheci e comecei a acompanhar

essa agenda diferenciada para uma “cigana” e assim entender um pouco de como essa

personagem conseguiu articular segmentos que via como inarticuláveis.

No dia 24 de maio de 2014 estive presente na festa que acontece anualmente no

Parque Garota de Ipanema no Rio de Janeiro. Essa festividade acontece em

comemoração ao Dia Nacional do Cigano14

, reconhecido pelo Governo Federal em

2006. A festa é organizada há anos por Mirian Stanesco, em nome da Fundação Santa

Sara Kali em que Mirian é presidente e vem desenvolvendo trabalhos reconhecidos pelo

12

Trecho do Samba enredo da GRES Grande Rio em 2015, em anexo. 13

HOUDOUIN, W. O código sagrado do Tarô. São Paulo, Editora Pensamento, 2013. 14

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Dnn/Dnn10841.htm

Page 6: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

6

Governo Federal desde os anos 90. Assim que cheguei ao Parque Garota de Ipanema

encontrei o espaço lotado de “ciganos” e cheio de barraquinhas que vendiam objetos da

“cultura e espiritualidade cigana”, assim como mesas de várias cartomantes que liam a

sorte nas cartas e mãos dos visitantes.

Assim que fui fotografar a confecção da “Gruta de Santa Sara Kali”, situada no

ponto mais alto e extremo do parque, onde colocam uma imagem da santa enfeitada de

velas, flores e presentes entregues pelos visitantes da festa, deparei-me com Saara

fotografando com seus filhos. Não é muito difícil reparar em Saara, já que sua marca

principal são as suas serpentes. Como ela gosta de ser conhecida como “Saara das

serpentes” ou “rainha das serpentes”, não por menos seu espaço estético/esotérico15

,

situado na Zona Oeste do Rio de Janeiro, é “Kira El-Hayyah”, que significa “rainha

das serpentes16

”.

Imediatamente fui conversar com Saara, por muitas vezes tinha visto ela se

apresentar e conversado com ela durante minha pesquisa de mestrado, e me

reapresentar. Logo fui reconhecido e me perguntou sobre minha pesquisa e como

andava o seu desenvolvimento, expliquei minha transição para o doutorado e novos

focos. Feliz com a continuação de minha pesquisa Saara me perguntou se eu queria

acompanhá-la na semana seguinte a uma gravação que faria na Rede Record,

imediatamente aceitei e ficamos de marcar ao fim da festa. Durante toda a festa fiquei

acompanhado por seu filho, que era responsável por fotografar o evento e

principalmente sua mãe no evento. Essa companhia foi de trocas mútuas, já que lhe

ensinei e dei várias dicas sobre sua câmera e em troca ele me levou aos bastidores da

festa onde todos os grupos de dança e música que iriam se apresentar ficavam.

O Parque Garota de Ipanema tem um palco que fica montado o ano todo, para

eventos diversos que são promovidos com apoio da Prefeitura do Rio como o caso da

“Festa de Santa Sara Kali”, e tem um pequeno “backstage” onde Mirian Stanesco e sua

Filha recebem seus convidados antes de apresentá-los no evento.

Durante todo o evento pude acompanhar a entrada e saída do palco e conversar

com muitas pessoas que se tornariam acompanhadas por mim durante o ano de 2014.

15

http://jornalportalzonaoeste.com.br/cadernos/pzo-vagas/campo-grande/itemlist/tag/serpentes 16

Durante o ano de 2014 acompanhei suas apresentação dançando com as cobras ou fazendo massagens

com as cobras em vários eventos/festas “ciganas” e programas de tv.

Page 7: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

7

Mas meu foco sempre esteve sobre Mirian Stanesco e Saara, e nesse dia em especial na

relação e conversa uma com a outra. Tornou-se notório a relação de respeito durante o

tratamento uma com a outra, falas e principalmente nos cumprimentos, Saara sempre

chamava Mirian de “Madrinha” e por muitas vezes foi dela a iniciativa de pegar e beijar

a mão de Mirian. Mas não pude deixar de perceber a total satisfação de Mirian em

sempre corresponder os cumprimentos e carinhos de Saara, seja num simples pegar de

mão ou em fazer questão de ouvir a opinião de Saara sobre uma bailarina ou grupo que

se apresentará.

Com o passar do evento fomos chegando às apresentações mais esperadas da

noite, nas quais Saara estava incluída assim como alguns outros grupos e bailarinos

conhecidos no meio “cigano”. Até então o grande destaque de Saara para mim, e na

minha visão do que era o evento até então, eram as suas duas serpentes usadas durante

sua dança. Ao ser chamada ao palco para a apresentação por Mirian o nome chamado

foi “Saara Z17

, a ‘cigana das serpentes’”, entendi que apesar do grande respeito e

carinho que se tratam não era de se esperar que Mirian a chamasse de “Kira El-Hayyah”

(rainha das serpentes) em um evento organizado por Mirian Stanesco para comemorar o

dia nacional do cigano e dia de Santa Sara Kali.

Logo que saiu do palco, Saara me explicou após o show que tinha essas duas

serpentes há algum tempo e hoje em dia é muito complicado criá-las: “sabe como é,

Cleiton, essas persentes não estão mais na lista de pet autorizados para compras e

vendas. Eu já as tenho, assim como a autorização há alguns anos, por isso posso criar

e usar”. Em nenhum momento tive curiosidade ou questionamento sobre as questões de

legalidade na compra ou criação das serpentes, mas como foi um dos primeiros assuntos

puxados por Saara ao sair do palco, conversei e fiz questão de desenvolver antes de

perguntar sobre o que verdadeiramente queria saber da gravação da próxima semana na

Rede Record.

Assim que combinamos sobre a data e horário da gravação da Record, Saara fez

questão de me explicar que a gravação ocorreria em seu espaço na Zona Oeste do Rio

de Janeiro, e falar que só tinha um problema “o problema é que convidei o Mio, ele vai

tocar violino para mim”, achando que teria algum problema para mim, já que eu estava

em um evento de Mirian Stanesco e poderia complicar em relação a minha pesquisa

17

Não usarei o nome completo de Saara.

Page 8: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

8

com ela. Tentei me fazer de desentendido e fui logo indagado “Você sabe que o Mio e a

Mirian têm uma briga antiga, mas se não for problema para você”, expliquei que

conhecia os dois e tinha de saber mais sobre os dois lados, confirmando assim minha

presença na gravação.

No dia e horário marcado cheguei ao espaço Kira El-Hayya e logo fui recebido

por Saara e seu filho e fui levado para cumprimentar Mio Vacite e sua esposa Liz

Vacite, mas antes de sentar para conversar com todos Saara fez questão de me

apresentar o ambiente. O espaço Kira El-Hayya é um casa de dois andares com cada

andar de aproximadamente 750 metros quadrados, logo que entramos encontramos um

lago artificial com aproximadamente 6 metros de diâmetro com peixes ornamentais

nadando em constante movimento de luzes e das águas, causados por uma bomba

artificial. Nesse mesmo espaço se encontram jogos de sofás de maneira circular, o que

proporciona conversas em uma sala de estar ornamentado por uma grande bandeira

cigana de aproximadamente 4 metros de cumprimento pendurada na parede. É

interessante ressaltar que existe um terreno do lado do espaço Kira El-Hayya de mesmo

tamanho que do espaço e também é de propriedade de Saara e usado como

estacionamento.

A primeira sala da casa é um grande salão de 25 metros quadrados, toda

espelhada e com tapetes cobrindo todo o chão, formando um estúdio de danças ciganas.

Logo em sequência há dois grandes quartos, de mesmo tamanho, usados para fins

distintos. O da esquerda é uma grande sala de massagens, onde se encontram uma

jacuzzi e uma banheira de hidromassagem colocadas uma ao lado da outra e de frente

para as duas cama de massagem fica constantemente estendida. A última sala é usada

para seções de cromoterapia, aromaterapia, tratamento com cristais e outros tratamento

holísticos.

Após o “tour” pelas “ostentações” oferecidas pelo espaço de Saara sentamos

para conversar com Mio Vacite e Liz Vacite enquanto esperávamos a Rede Record.

Como sempre ocorre em nossos encontros, Mio sempre me pergunta sobre minha

pesquisa, com quem tenho conversado e onde tenho ido, em sua grande maioria entendo

seu interesse em saber sobre meus encontros e contato com Miriam Stanesco à quem

chama de “Aquela” ou “Aquela senhora”. Muito me interessou nesse dia a relação de

Page 9: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

9

Mio e Liz Vacite com Saara Z., já que sei das histórias de seus relacionamento com

Mirian Stanesco.

Enquanto conversávamos sobre minha pesquisa e outros pesquisadores18

de

“cultura cigana”, que é como Mio faz questão de me identificar, sua esposa e Saara

conversavam e “brincavam” com as cobras. Sentadas lado a lado acariciavam e

fotografavam constantemente as serpentes em poses e mais poses, enquanto Liz

constantemente chamava Mio para ver e rever algo nas serpentes que ele fazia questão

de com um sorriso amarelo explicitar “não gosto delas”. Em todos momentos Saara Z.

se referia a Mio como “padrinho” e o servia com muito carinho e respeito, contando

quantas e quantas vezes chamou Mio para tocar em suas apresentações e quantas vezes

Mio a ajudou.

Esses dois encontros, na mesma semana, instigaram em mim alguns

questionamentos sobre Saara Z., que chegaram ao ápice no convite feito para desfilar na

Grande Rio em 2015. Como Saara Z. consegue estar presente em eventos promovidos

pelas duas lideranças “ciganas” mais conhecidas do Brasil, sabendo das brigas e

disputas entre eles no Ministério da Cultura (MinC) e outros órgãos, sem declarar

partido e briga a algum dos dois? Como essa relação de “respeito”, que beira o

“apadrinhamento”, foi configurada? Como Saara Z. conseguiu nos últimos dois ou três

anos sair da posição de mais uma dançarina cigana, o que era quando a conheci ne

início de minha pesquisa de mestrado, para a “Rainha das serpentes” com um espaço

exotérico suntuoso na Zona Oeste do Rio de Janeiro, destaque em todos os eventos

ciganos de 2014 e mais de setenta aparições no mercado midiáticas (PRANDI, 2004)

em Jornais, Programas de TV, reportagens em Revistas e Reportagens em Sites19

.

Tentando entender um pouco das relações envolvidas nesse drama envolvendo a

pessoa de Saara Z. pude entender como em 2015 ela pode me fazer o convite para

desfilar e sua explicação: “fui convidada pela Grande Rio para organizar a ala de

ciganos (ala 14) 100 ciganas e 10 ciganos, vão representar as cartomantes já o que o

desfile é sobre destino/sorte e baralho/Tarô. Os homens vão vir no meio da ala puxando

18

Existem relações estreitas de Mio com pesquisadores, alguns antropólogos, em muito pela relação

construída em suas pesquisas ou por questões políticas sobre “identidade étnica cigana”. 19

Durante o ano de 2014 Saara Z. colecionou mais de setenta participações em Programas de TV, Jornais,

Revistas, e sites. Entre os principais estão “Legendários”, “Balanço Geral”, “Domingo Show” na Rede

Record, “RJTV primeira edição” na Globo, “Sábado Total” na Rede TV.

Page 10: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

10

uma fogueira com uma cigana em destaque”. Durante todo relato de Saara Z. me

questionei com duas perguntas: “Mas porque não o Mio?”, que seria a grande

representação política, sendo o sujeito político (AGIER, 2012) dos grupos indenitários

“ciganos” nos anos 80 e 90, ou “Mas porque não a Mirian?”, que é a grande

representante política e religiosa, sendo o sujeito político e sujeito religioso (AGIER,

2012) de maior destaque do fim dos anos 90 até os dias atuais.

Em uma das minhas primeiras conversas com Mio ainda em 2013 ele me contou

em uma longa conversa sobre a “sua pioneira história de organização de um

movimento cigano no Brasil” no início dos anos 90, onde um dos destaques foi “a

primeira participação de uma ala só de ciganos” no carnaval de 92 da GRES.

Viradouro com o samba enredo “A magia da sorte chegou20

”. Sabendo também que no

carnaval de 2013 com a GRES Beija Flor a organização dos grupos chamados para

representar a “cultura cigana” na Baixada Fluminense, incluído o grupo que pesquisei e

acompanhei no mestrado, teve como figura destaque no carro a “Rainha Cigana Mirian

Stanesco”. Mas porque esse ano a Grande Rio escolheria e “pediria” para Saara

organizar os “ciganos” de sua ala.

O “rei” e a “rainha”

“Sou eu quem dou as cartas na avenida

E nessa disputa de poder, eu não quero saber

Vou jogar pra vencer

Sou “rei”, venha ser a minha “dama21

””.

As cartas do “rei” e da “rainha” no tarô de Marselha representam os seres

humanos realizados, plenamente conscientes de suas potencias e autoridades. Seriam

detentores de grande autoridade moral e espiritual, e com grande força de ação. Por

esses motivos escolhi o “rei” para representar Mio e a “rainha” para representar

Mirian, que em suas trajetórias de vida buscaram trilhar representações

políticas/públicas com diferentes bandeiras do que seria “cigano” 22

.

20

Letra do Samba enredo em anexo. 21

Trecho do Samba enredo da GRES Grande Rio em 2015, em anexo. 22

HOUDOUIN, W. O código sagrado do Tarô. São Paulo, Editora Pensamento, 2013.

Page 11: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

11

Durante algumas conversas com Mio, no ano de 2013 em alguns eventos que

nos encontramos observei com atenção a narrativa contada por ele, sua esposa, filhos,

familiares e membros da União Cigana do Brasil (UCB). Em sua narrativa conta que

nos anos 80 a cultura cigana ainda era bem marginalizada e pouco divulgada no Brasil,

e no ano de 1986 quando ainda trabalhava em um restaurante da Zona Sul do Rio de

Janeiro que recebeu um convite que mudaria essa realidade. Nessa época uma escritora

chamada Cristina da Costa Pereira estava prestes a lançar seu primeiro livro23

sobre

história e cultura cigana e resolveu chamar Mio e sua família para participarem do

evento levando músicos e bailarinos.

Nesse evento e em reuniões marcadas depois, representantes de famílias ciganas,

pesquisadores convidados conversaram sobre um estatuto de fundação de uma

“Organização Cultural Cigana”. Além de Mio Vacite e Cristina da Costa Pereira, os

ciganos Osvaldo Macedo, Antônio Guerreiro, Liane Duarte, Candido Pires ajudam na

fundação em 1986 do “Centro de Estudos Ciganos” (CEC). No ano seguinte em 1987 e

começam a fazer a “Primeira Semana Cigana do Brasil e da América Latina” no

Espaço Cultural Casa Rui Barboza em Botafogo, com palestras, vídeos, exposições,

música e danças. No ano de 1988 fizeram o primeiro museu itinerante do Brasil, na

Urca (UNIRIO), com 100 peças da cultura cigana.

E como Mio faz questão de lembrar no ano de “1989 fomos convidados para

participar do “Projetos Tradição Popular”, deu uma palestra explicando a situação do

cigano Brasil, quando passara a ser integrados no “folclore brasileiro”, pelo MiniC nos

anos 90 algumas grandes mudanças ocorreram e começam a destacar a figura de Mio

em alguns meios de comunicação como Redes de Televisão, jornais e rádio.

Por questões políticas o Centro de Estudos Ciganos (CEC) passa por uma

divisão política e Mio resolve se desligar do Centro de Estudos Ciganos e em 1990

funda a União Cigana do Brasil (UCB). Em 1991 consegue um espaço em Charitas -

Niterói para acampar e mostrar sua “cultura”. Em frente ao posto de bombeiros e perto

da delegacia foi cedido um poste de iluminação e ali montou uma barraca (6m x 8m)

com tudo que um acampamento cigano tem e ali ficava de sexta até domingo fazendo

apresentações culturais. Mio ficou nesse espaço oito meses e segundo ele no início da

23

PEREIRA, C. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro, Rocco, 2009.

Page 12: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

12

UCB “pagava tudo do seu bolso, não tinha ajuda de nada” somente o poste de

iluminação. Nesse período aconteceram duas coisas consideradas importantes por Mio:

1° – Uma amiga apresentou o carnavalesco Marcio Lopes, e após uma palestra que

assistiu, Marcio pediu que Mio mostrasse documentação e material (livros e estudos).

Após isso foi levado para Liga das Escolas de Samba (LIESA) e convidado para

participar do carnaval de 1992 na GRES Viradouro24

com o tema “A magia da sorte

chegou”. “O carnaval não saiu por acaso, teve a influência do nosso trabalho, da UCB,

o nosso sacrifício de ficar de sexta, sábado e domingo sem banheiro e improvisando

durante oito meses” (...) “disse para o Marcio, essa escola vai sair nem que eu tenha de

empurrar os carros, e acabou sendo uma das maiores vitórias da UCB” (...) “Sempre

tem nas escolas uma ala de ciganos, nós inserimos ciganos no carnaval, resgatamos

isso”.

2° - Quando estava prestes a terminar o prazo feito com o prefeito de Niterói, de ficar

no local, a comunidade de Charitas “ao contrário do que historicamente acontece”

segundo Mio, fez um abaixo assinado (que possui cópia e fez questão de me mostrar)

pedindo que não tirasse os ciganos dali “pois era a única distração deles”. Mio marca

isso como uma importante vitória da UCB mostrando o propósito de Mio de demonstrar

que: “existem ciganos e ciganos, e tem que saber com quem estão lidando, não

generalizar”. Logo em seguida, Mio recebeu a medalha José Clemente Pereira – Niterói

em virtude de sua atuação em prol da cultura cigana nessa ocasião.

Em 1992 um acontecimento familiar leva Mio a começar o que seria seu grande

destaque nacional, promover a “cultura cigana”, como diz ser o seu propósito e da UCB.

Quando no “Final de 1992 casei meu filho Ricardo, o mais novo, e como convidada a

pedido de uma amiga/irmã cartomante, que tinha como amiga e cliente,

convidei/compareceu Gloria Perez. Ela (Gloria Perez) manifestou desejo de conhecer

um casamento cigano, que era fechado, e se podia abrir exceção e permitir ver o

casamento de meu filho. Ficou em uma mesinha com a amiga (cartomante e irmã de

Mio) e frequentou os dois dias de casamento, até o segundo dia com a cerimônia de

controle de virgindade, onde ela ficou impressionada. Ela saiu dali achando tudo lindo

e pediu para sua amiga para saber mas sobre minha família”25

.

24

Samba enredo em anexo. 25

Fala gravada em entrevista com Mio em sua Casa durante o ano de 2014.

Page 13: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

13

A cartomante levou a Glória na casa da irmã de Mio, já que a filha da

cartomante casaria com um sobrinho de Mio, assim que chegou acompanhou uma

polêmica, “coisa boba de família”, segundo Mio, pois a sobrinha de Mio (Iovanca)

havia passado para a faculdade de direito, o que mudaria o desejo da jovem de casar. O

próprio Mio, quando ficou sabendo do caso, fechou a cara e saiu, sem dar resposta, pois

não concordava com essa atitude.

Mio narra: “O pessoal não entende, acha que cigano gosta de mulher burra e

sem instrução, mas não é assim, a cultura você pode adquirir sem estar em um colégio

ou em uma faculdade. Faculdade não é sinônimo de cultura não, as pessoas estão

muito erradas, a cultura se aprende, é dom. Qual seria o problema então? Seria a

convivência diária dela na faculdade com amiguinhas, ideias avantajadas, a cigana foi

criada para ser a dona do lar e criar os filhos e passar a cultura. Nessa época, minha

sobrinha era muito bonita e tinha três pretendentes, um do Rio de Janeiro, um do Rio

Grande do Sul e um de São Paulo. Eu falei com minha irmã, se você quer que sua filha

continue dentro da cultura, os ciganos não vão pedi-la (casar com), vou passar seis ou

sete anos fora de casa (fazendo faculdade), com influência de outra cultura.

Amiguinhos, e tão, pode se apaixonar... pode acontecer26

”. Glória Perez acompanhou

essa polêmica e durante algumas reuniões demonstrou interesse sobre o acontecido.

Mas somente quatro ou cinco anos depois, a secretária de Glória Perez ligou, se

identificou e falou que a Glória queria escrever sobre ciganos e queria ir na casa da

família de Mio “Eu quase caí da cadeira e marquei, veio a Glória Perez, duas

secretárias dela e alguns artistas da Globo, maquiador, figurinista... quinze pessoas.

Dançamos, conversamos e tomamos um chá, aí ela começou a me contar como seria a

novela, começou a me contar que me conhecia, nome de todos meus familiares e

parentes, aí disse do ‘meu irmão’.” Mio fechou o rosto. Entendi depois que Mio

considera seu irmão um traidor: “meu irmão não quer saber da ’cultura’, saiu da

família, casou com uma brasileira, não quer saber da cultura”.

Na época, Durante a reunião, Glória sorriu e disse: “Mio, eu conheço mais da

sua vida do que você, eu pesquisei da sua vida por muitos anos. Ela sabia de tudo da

vida de meu irmão, que era promotor público e procurador federal, que não era casada

26

Mio, assim como algumas famílias ciganas, não aceitam que as meninas estudem antes de casar, com

medo de sua saída do meio cigano com casamentos com não ciganos.

Page 14: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

14

com uma cigana, que tinha tido um caso extraconjugal e olha que isso só eu e minha

mãe sabíamos”. Apesar do medo de exposição que a novela poderia causar a sua

família, Mio destaca os pontos positivos de ter participado na Novela “gravamos a

novela, foi um estrondo, gravamos um cd, uma coletânea que vendeu 250 mil cópias

aqui no Brasil e Portugal, o que alavancou nossa cultura muito. Nossos

agradecimentos a Gloria Perez”.

A filmagem da novela “Explode coração27

” de 1995 até meados de 1996 casou

uma “onda de ‘ciganidade’” aqui (Brasil), segundo Mio: “Muita gente não sabe, pois

teve muita gente se metendo no meio da novela, se auto intitulando musa da novela. A

novela foi inspirada na vida da família Vacite, a musa inspiradora foi minha sobrinha.

Aconteceu exatamente o que eu falei, ela se apaixonou por um rapaz e se casou com

ele, a diferença é que a novela é romanceada”. Durante o período da novela que

começaram as desavenças de Mio com Mirian Stanesco.

Após fazer algumas aparições na novela “Explode coração”, Mirian Stanesco

começou a falar que a novela era a história de sua vida, o que acabou em uma ação na

justiça da autora Glória Perez contra Mirian Stanesco. Segundo Mio: “Para quem sabe

e acompanhou a novela, entrou uma pessoa e atrapalhou tudo, a globo, a novela e

agente (família), se indispôs com a TV e com a Glória”. Nós fomos a favor da Glória

em reportagens e reportagens, muita polêmica, e contra essa senhora que não tinha

nada haver com a novela. Isso até o ponto em que a Glória teve que ir a público falar e

pedir para a minha irmã para revelar que minha sobrinha era a musa da novela. Tem

ai nas revistas, só não sabe quem não leu”. Durante a novela Mio tornou pública a

briga e várias vezes criticou publicamente a “falsa rainha dos ciganos” e essa

desavença é carregada até os dias de hoje.

Desde o início de seu trabalho no final dos anos 80, Mio Vacite tomou uma

representatividade de sujeito político (AGIER, 2012) reconhecido no meio “cigano”, se

tornando uma figura de destaque, foi o primeiro cigano da América a receber o prêmio

de Direitos Humanos (1995), foi considerado comendador da Justiça e da Paz no Brasil,

recebeu a medalha José Clemente Pereira – Niterói, e participou da Comissão de

Combate à Intolerância Religiosa e virou Presidente da União cigana do Brasil. Apesar

27

Novela da Rede Globo, que segundo Mio, foi inspirada nessas situações de sua família e que me foram

narradas. http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/explode-coracao.htm

Page 15: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

15

das nomeações e destaque nos anos 80 e 90, esse destaque começou a mudar após a

entrada de Mirian Stanesco que mudou o foco da propagação da “cultura cigana”.

Apesar de ter ouvido falar, bem e mal, só conheci Mirian Stanesco no ano de

2014 na Festividade que faz todo dia 24 de maio desde 1997 para comemorar o “dia

nacional do cigano” na gruta do Parque Garota de Ipanema, como já narrei

anteriormente. Fui conhecer a festividade e iniciar minha pesquisa de doutorado e tive a

oportunidade de ficar durante todo o evento bem próximo de Mirian Stanesco e de sua

filha Lhuba, que são as grandes figuras do evento e do grande “projeto” tocado por

Mirian há alguns anos. Mas antes de pensar sobre esse projeto preciso pensar sobre que

é Mirian Stanesco “a rainha dos ciganos” e como sua trajetória se desenrolou.

Logo após a novela “Explode coração” Mirian Stanesco criou a “Fundação

Santa Sara Kali” na cidade de Nova Iguaçu, baixada Fluminense do Rio de Janeiro,

situada na Rua Alberto Batuli, bem no centro da cidade, mas destaco o nome da rua pois

Mirian tem por sobrenome “Stanesco Batuli de Siqueira” e o sobrenome em comum da

rua e de Mirian não são por enorme acaso. A família de Stanesco e Batuli são de grande

conhecimento político e social na região de Nova Iguaçu e cidades vizinhas da Baixada,

assim como sua origem “cigana” que fazem questão de destacar em todos os meios em

que são politicamente ativos.

Formada em Direito se tornou procuradora pública em Nova Iguaçu antes de se

casar, aos 32 anos, com um homem não cigano. Logo depois de organizar sua fundação

participou da “Cruzada pela paz mundial” em 1997 iniciando suas atividades de

inclusão da população cigana em políticas públicas. Nos anos que se seguem ocupou o

cargo de “Delegada da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Rio de Janeiro” e

“Conselheira Nacional da igualdade racial” onde até o ano de 2004 aprovou 29

projetos que buscavam tirar a “comunidade cigana da invisibilidade governamental28

”,

em suas palavras. Também conseguiu aprovar 25 propostas na “9° Conferência

Nacional de Igualdade de Raça” em 2004 e participou do projeto de “exigência” de

uma médica mulher em cada ponto do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado por

ela uma vitória das mulheres ciganas, já que as mulheres ciganas só podem ser

atendidas por médicas mulheres por uma obrigação da tradição.

28

Fala retirada de discurso na premiação da medalha Pedro Ernesto na Assembleia Legislativa do Rio de

Janeiro em 2014.

Page 16: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

16

Em seguida, Mirian Stanesco foi convida pelo Governo Federal para escrever a

cartilha “Povo Cigano, o direito em suas mãos” lançada em 25 de maio de 2006 com a

instituição do “Dia Nacional do Cigano no Brasil” e “cidadania do cigano no Brasil”.

Após o lançamento da cartilha de sua autoria foi convidada a fazer pessoalmente a

divulgação pelos estados brasileiros.

Em paralelo com suas atividades com o Governo Federal, Mirian manteve sua

fundação e algumas das atividades que são a marca da Fundação Santa Sara de Kali,

como o seu principal evento: a “Corrente de Santa Sara Kali”. Inicialmente as

atividades aconteciam na gruta de Ipanema somente no dia 24 de maio para comemorar

o dia do cigano e festejar Santa Sara Kali, vista por alguns grupos de ciganos como a

santa padroeira dos ciganos. Mas com o crescimento de frequentadores “corrente29

” e

com a instituição do dia Nacional do Cigano em 2006 pelo Governo federal o evento

cresceu e acontece mensalmente, mas com maior destaque em maio. Como as chamadas

feitas em sua página no Facebook as “correntes” e “rituais” acontecem o ano todo.

Mirian disse em conversa que a gruta do Parque Garota de Ipanema é o “templo

no Brasil de Santa Sara Kali”, fazendo que assim o “povo cigano” tenha no Brasil um

espaço para adorar sua santa, não precisando sair do Brasil, fazendo referência à festa de

Saints Maries de La Mer, no sul da França, onde Santa Sara Kali é adorada em uma

grande romaria e festividades anual da religiosidade popular, já que a santa não é

reconhecida pela Igreja Católica. As atividades mensais são precedidas de uma grande

lavagem da gruta com água de cheiro, energização e purificação do ambiente para as

“correntes” e “rituais” que ocorrem sempre às 16 horas.

Outra atividade que a Fundação Santa Sara Kali e seus representantes estão

anualmente presentes é a “Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa” em

Copacabana no Rio de Janeiro, organizada pela “Comissão de Combate à Intolerância

Religiosa” (CCIR) e já teve sete edições, onde Mirian Stanesco esteve sempre presente

propagando sua posição a favor de toda a forma de manifestação religiosa.

Apesar do “caso Rede Globo e novela” ser uma notória divergência por destaque

na mídia, a busca de divulgação da “cultura cigana” pretendida por Mio Vacite e a

UCB, assim como a descriminalização da figura do “cigano” encontram em Miriam

Stanesco uma grande barreira política e midiática. Para Mio simples trajetória de

29

Reuniões mensais para fazer pedidos, ou paga-los, na Gruta de Santa Sara Kali.

Page 17: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

17

“mulher cigana” que rompe com os costumes casando com um não-cigano e se

tornando uma referência na luta por direitos da OAB e do Governo Federal é uma

afronta aos “costumes ciganos”, sem mencionar as atividades promovidas pela

“Fundação Santa Sara Kali” que abertamente defende a liberdade de uma

“religiosidade cigana”, inclusive de não nascidos ciganos, e sua expressão nos eventos

promovidos na Gruta de Santa Sara Kali em Ipanema.

A UCB defende o direito que dentro da “tradição” cigana não existiria uma

“religião cigana”, mas sim que todo cigano pode escolher sua religião. Sendo assim a

posição de Mio muitas vezes declarada “não existe esse religiosidade cigana, isso é

´ciganidade´ de depois da novela, não existe espírito cigano, isso não faz você cigano”

como muitas vezes falou de maneira acusatória à posição a eventos promovidos por

Mirian Stanesco.

Nessas formas completamente diferentes de conseguir representatividade e

destaque do que eles entendem ser a forma de defesa do povo cigano, seja em a sua

“cultura” e “promoção da cultura” como Mio destaca, ou em seus direitos como

destacado por Mirian levaram as duas lideranças a divergências marcadas em suas

trajetórias. Mas sem sombra de dúvidas é na religião que esses dois sujeitos políticos

encontram sua maior divergência. Na proposta de Miriam a aceitação e promoção de

uma “espiritualidade cigana”, seja por meio da adoração da “Santa cigana, Sara Kali”,

ou na aceitação de maneira tolerante da existência dos “espíritos ciganos/ou entidades

ciganas” defendidas por adeptos de umbanda e tendas ciganas. Essa defesa de uma

possível “cultura publica”(GIUMBELLI, 2014), religiosa e “cigana” em Ipanema – RJ

fez com a figura de Mirian Stanesco ganhasse contornos de sujeito religioso (AGIER,

2012) reconhecido não só por “ciganos” como por aqueles que dizer ter um “cigano ou

cigana” como companheiros invisíveis (BROWN, 1895. BIRMAN, 2005) , no caso da

umbanda e tendas ciganas.

Porém, mesmo em meio a todas essas acusações, declarações e brigas entre essas

duas lideranças, encontro a figura de Saara Z. sendo apadrinhada, participando de

eventos, se promovendo em vários veículos de comunicação e postando fotos com os

dois em seu perfil na rede social Facebook como se muito agradável fosse essa

convivência. E minha questão continua: como ela consegue? Como consegue declarar

Page 18: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

18

defender ambas propostas nessas redes e veículos que aparece sem irritar nenhum dos

dois?

O Miliciano – “O coringa”

“Num lance incerto, de um jeito esperto

A última carta vai surpreender

(...), o meu coringa é você30

A figura do coringa tem várias associações mitológicas e representações

historicamente conhecidas. No tarô de Marselha é o oculto, por vezes o zero,

representado por um homem extravagante com uma sacola nas costas, dentro dessa

sacola um potencial oculto de ser mago e mudar o mundo e de maneira inconsequente

pode mudar o caminho das coisas31

. Essa possibilidade de estar oculto e mudar o

caminho das trajetórias são os motivos pelo qual escolhi o coringa para representar o

miliciano que atravessou esse campo.

Durante o ano de 2014 acompanhei vários eventos com Saara Z e principalmente

me tornei um assíduo frequentador dos eventos na Gruta do Parque Garota de Ipanema,

sem contar os inúmeros eventos que pude conversar com Mio e sua esposa Liz. Mas não

posso negar que em nenhum momento consegui entender o real motivo que levava a

possível relação existente entre o casal e Miriam e como Saara Z. os unia.

Somente no final de 2014 que alguns acontecimentos começaram a desenrolar

essa real situação. Além de ter adicionado Saara Z. na rede social Facebook, me tornei

seguidor de seus perfis para não perder nenhuma de suas atualizações e publicações. E

diferente de todas as publicações feitas desde quando comecei a segui-la, onde sempre

apareciam propagandas ou anúncios sobre eventos ou aparições que participou, Saara Z.

postou uma foto vestida com roupa de dia a dia em um restaurante com o seguinte título

“Meu companheiro” onde explicava em um texto que aquele era seu companheiro de

mais de quinze anos e apesar “todos e todas que fazem tudo contra”, eles estavam

felizes e continuavam juntos. Muitas pessoas curtiram e comentaram a foto dando

felicidades e desejando força ao casal, não dei grande atenção para a foto, mas não pude

30

Trecho do Samba enredo da GRES Grande Rio em 2015, em anexo. 31

HOUDOUIN, W. O código sagrado do Tarô. São Paulo, Editora Pensamento, 2013.

Page 19: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

19

deixar de reparar duas coisas: o restaurante era um belo, caro e conhecido restaurante da

Zona Oeste do Rio de Janeiro e o cordão do companheiro de Saara Z. era uma bela,

atentatória e cara peça de ouro.

Logo em seguida, tentei marcar uma entrevista com Saara Z. antes do início dos

ensaios da ala de ciganos na Grande Rio para tentar entender mais sobre como seria e

como poderia acompanhar os ensaios. Em algumas conversas por celular e troca de

mensagens pela rede social Whatsapp, Saara Z. me explicou que seria difícil e começou

a confessar o momento complicado que estava passando. Tudo começava na suspeita

de um câncer recém descoberto na tireoide e, por isso, não tinha muita disponibilidade

de conversar naquela semana. Logo em seguida, disse que tinha passado por momentos

difíceis nos últimos meses com seu companheiro em seu relacionamento e, por isso,

postou a foto no Facebook, onde após uma quase separação resolveram passar por esse

momento juntos e tentar mais uma vez. Saara Z. explicou que ele era uma homem

importante na vida dela e tinha dado muito apoio em sua trajetória, mas era muito

possessivo e não estavam bem e por esse motivo tentou separar dele.

Contando sobre sua trajetória Saara Z. me relatou sobre a sua ligação espiritual

com o mundo religioso cigano, e de seus companheiros invisíveis (BROWN, 1985.

BIRMAN, 2005) falou de suas duas ciganas (uma grega e uma do deserto) e sua Pomba

Gira Cigana32

, explicou que incorpora desde nova e sempre esteve ligada a “esse lado

espiritual cigano”. Segunda ela, foi nesse meio que conheceu seu atual companheiro

que “era do meio também” e começou a se envolver com ele e receber muita ajuda.

Fazendo questão de explicar sobre Bruce33

, afirmou que ele não era médium e nem

liderança no meio, mas frequentava candomblés e umbandas e passou a frequentar

grupos ciganos depois de estar com ela. Por muitas vezes Saara Z. colocou a

dependência de Bruce em sua pessoa não só na relação de homem e mulher. Por muitas

vezes deu a entender que sua ligação espiritual a proibia de ir embora também, ele a

veria como “a sua cigana” a “sua proteção”, como uma “cigana particular”.

Nesse longo tempo Saara Z teve um filho com seu companheiro e ele a ajudou a

criar um filho que ela tinha de um relacionamento anterior, mas a relação sempre foi

muito emocionalmente conturbada, segundo ela. Em meio às suas queixas e entendendo

32

Espírito que Saara incorpora na Umbanda e muito comum na religião umbandista. 33

Usarei o nome Bruce para tratar do companheiro de Saara Z. nesse texto.

Page 20: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

20

todo apoio que os filhos e amigos davam pela atitude de separação, logo me senti à

vontade para fazer uma pergunta “E porque não se separa?”. Como resposta recebi um

sorriso calado e pensativo que só depois de um bom momento reflexivo veio com uma

curta resposta e longa explicação “é difícil, não é fácil assim por ser quem ele é”.

Começando a contar sobre seu companheiro “Ele é bicheiro, é da banca do bicho. É o

braço direito do Rogério de Andrade aqui (Zona Oeste) e está ligado com a milícia”.

Assim que entendi tentei desconversar e não perguntar mais nada sobre o assunto.

Entendi que era o suficiente para entender muito dos questionamentos que tinha sobre

Saara Z., suas relações e influência.

Na quarta-feira de 24 de dezembro de 2014 compareci na Cidade do Samba

como convidado de Saara Z. para a reunião que organizaria a “Ala 14 – ala dos

ciganos” que começaria a ensaiar a partir de janeiro. Assim que entrei fui apresentado

como “pesquisador de cultura cigana” por Saara Z. e calorosamente recebido por Mio

Vacite e sua esposa Liz Vacite que faziam questão de demonstrar que me conheciam.

Além de nós quatro estavam na sala mais quatro pessoas: o carnavalesco Fábio Ricardo,

o responsável da ala 14, o diretor de carnaval Ricardo Fernandes e seu amigo Bruce,

que também é o companheiro de Saara Z. Após ser apresentado aos responsáveis pelo

carnaval e esperando a reunião começar Saara Z. me apresentou Bruce que me

cumprimentou de forma firme e sorridente e falou “vai ser bom para você”. Nervoso fiz

uma cara de não entendimento e ele sorriu complementando: “uma ala só de ciganos,

vai ser bom para seu trabalho”. Logo sorri e disse que sim, seria interessante

acompanhar, mas felizmente fomos chamados para o inicio da reunião “para acabar

logo com isso” como fez questão de destacar o diretor Ricardo Fernandes.

A reunião começou com o carnavalesco Fábio Ricardo explicando o que era a

proposta para o carnaval do ano de 2015 e como estavam divididas as alas de acordo

com a proposta do carnaval. Logo em seguida, o diretor de carnaval Ricardo Fernandes

tomou a palavra e explicou o porquê de nós estamos ali, na verdade, o “nós” não

parecia me inserir naquele momento, mas sim Mio, Liz e principalmente Saara Z.

Ricardo começou a explicar que assim que Fábio falou da ala 14 com ciganos lembrou

de Saara Z. e de Bruce “que é um amigo e companheiro, sempre apoiando”, assim

surgiu a ideia de chamar Saara Z. para formar a ala e chamar mais 100 ciganas e 10

ciganos, falando isso segurou a mão de Bruce que estava ao seu lado e a balançou em

um leve cumprimento com um sorriso dos dois. Fábio começou a explicar que a ala

Page 21: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

21

viria na frente de um grande carro de uma cigana jogando cartas “como diz no samba

enredo”, será o “carro mais lindo do desfile e cheio de tapetes e elementos da ‘cultura

cigana’”, falou sorrindo.

Continuou a explicação falando que as 100 ciganas viriam no chão à frente do

carro da cigana e nessa ala haveria um tripé que representa a “fogueira”, corrigido

rapidamente por Saara Z. “salamandra34

” e sorrindo ao repetir a correção, os 10 ciganos

homens viriam em volta desse tripé empurrando com alguns membros da escola a

“salamandra” que seria um destaque35

. A primeira pessoa a falar após o silêncio do fim

da explicação foi Liz Vacite perguntando quem seriam os destaques e quantos seriam, a

resposta foi imediatamente dada por Saara Z. onde explicou todos os destaques do carro

e principalmente da “salamandra”. Eram pessoas convidadas por Fábio, Ricardo, Bruce

e ela, onde iriam colocar “ciganos” e “ciganas” importantes e conhecidos para

homenagear. Saara Z. complementou dizendo que Mio e toda a sua família estariam no

destaque do carro, assim como outras “famílias ciganas convidadas”.

Pouco depois dessas palavras combinaram as agendas de ensaios, local e

passagem de coreografia para a ala e a reunião teve fim. Fomos participar de um

pequeno “breakfast” e pude perguntar para Saara Z. “quem são as pessoas que

formarão a ala?”. Rapidamente explicou que seriam algumas professoras de dança que

por muitas vezes vi em eventos, alguns outros músicos, alguns convidados de Mio e de

sua associação e outros espaços foram cedidos a outros amigos, insistindo perguntei

“esses outros amigos eu conheço alguém?”. Algumas famílias como os “Stanesco,

inclusive Mirian e os Hamuche36

”.

Os acontecimentos do final de 2014 foram importantes para compreender como

a figura de um “miliciano” da Zona Oeste do Rio de Janeiro e sua relação de mais de

quinze anos com Saara Z. foram responsáveis para a promoção dessa “cigana” durante

todo o ano. E como essa relação tem uma força inimaginável ao ponto de promovê-la

em várias redes de televisão, jornais, revistas, sites e apresentações durante todo o ano.

É interessante pensar como a relação de Saara Z. com Bruce faz com que a sua

34

Em alguns grupos religiosos “espiritualistas ciganos” a fogueira é chamada de “Salamandra” durante o

ritual. Mais tarde essa conversa foi base da entrevista dada pelo carnavalesco ao jornal Extra onde fala

que a Grande Rio vai executar um ritual cigano na Sapucaí.

http://extra.globo.com/noticias/carnaval/grande-rio-vai-executar-ritual-cigano-prepara-carro-com-quase-

200-tapetes-15080476.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar 35

Uma pessoa convidada pela escola ou pelos organizadores da Ala. 36

Uma importante família no meio “cigano” carioca.

Page 22: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

22

aceitação aconteça em vários grupos divergentes do meio “cigano”, principalmente

entre Mirian Stanesco e Mio Vacite ao ponto de deixar de lado suas defesas “políticas”

conflituosas.

CONCLUSÃO:

Pensar sobre a trajetória desses três ciganos: “o rei”, “a rainha” e “a cigana” foi

só uma das formas de analisar um campo em disputa e constantes transformações, a

entrada do miliciano “o curinga”, é uma possível interferência que encontrei. A disputa

pelo “ser cigano” e as formas diferentes de entender esse “ser cigano” são lida de

maneiras diferentes pelos principais sujeitos políticos dessa disputa, destacando Mirian

Stanesco como um sujeito religioso também.

A figura de Saara Z. sempre intrigou meu campo, o envolvimento e

apresentações da “cigana” na mídia, sua ligação próxima com Mio Vacite Mirian

Stanesco, o luxuoso espaço “Kira El Hyyah” e sua inesperada influencia com a GRES

Grande Rio no carnaval de 2015. Isso sem contar sua ligação com a “espiritualidade

cigana” e descendência de família “cigana” possibilitando sua circulação

frequentemente nos eventos de Mirian, sua “madrinha”, e Mio, seu “padrinho”. Porem

entender esse jogo de poder só se tornou compreensível com a entrada do

companheiro37

e todas as possibilidades de contatos e agenciamentos na mídia abertos

por ele.

Apesar da construção de uma trajetória longa em suas agendas políticas e

constantes disputas declaradas de poder na mídia e outros espaços possíveis de

encontros, a possibilidade de estar em destaque na mídia ou estar em desfilando em

mais um carnaval. A abertura na mídia por mais um agente, nesse caso um miliciano,

fez com que todas as divergências fossem colocadas de lado, e com que em vários

situações Mio e Mirian relevassem suas brigas para ter uma boa relação com Saara Z. e

seus “curinga” mágico.

37

Saara Z. chama Bruce de companheiro, pois não se considera casada com ele, por não ter casado em cartório.

Page 23: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

23

REFERÊNCIA:

ARFIER, M. Pensar el sujeito, descentrar la antropologia. In: Cuadernos de

Antropologia Social, n° 35, 2012.

AUGRAS, M. Imaginário da magia, magia do imaginário. Petrópolis – RJ: Vozes;

Editora PUC, 2009.

AUZIAS, C. Os ciganos – ou o destino selvagem dos roms do leste. Lisboa, Antígona,

2001.

BIRMAN, P. Fazer estilo criando gênero. Rio de Janeiro, Eduerj, 1995.

BIRMAN, P. Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um

sobrevôo. In: Estudos Feministas, Florianópolis, n° 13 (2): 256, maio-agosto/2005.

BROWN, D. Umbanda & Política. Rio de Janeiro, Editora Marco Zero, 1985.

CAVALCANTI, M. Carnaval carioca – dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro.

Editora UFRJ, 1994.

FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Hubert, L. D. e Paul, R. FOUCAULT, M.

Uma Trajetória Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª. Edição

Revista. Coleção Biblioteca de Filosofia .Coordenação editorial: Roberto Machado. Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

GIUMBELLI, E. Símbolos religiosos em controvérsias. São Paulo: Terceiro Nome,

2014.

GLUCKMAN, M. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In:

FELDMAN-BIANCO, B. Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo,

Editora UNERSP, 2° Edição, 2010.

ISAIS, A. & MANCEL, I. Espiritismo & religiões afro-brasileiras. São Paulo, Editora

UNESP, 2012.

LAW, J. After Method: Mess in Social Science Research. International Library os

Sociology, 2004.

Page 24: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

24

MACHADO, C. “É muita mistura”: projetos religiosos, políticos, sociais, midiáticos,

de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Religião e Sociedade.

V. 33, N° 2, ano 2013.

MAIA, C. Posso ler sua mão? Uma análise da Tenda Cigana Espiritualista Tzara

Ramirez. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,

Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.

MAGGIE, Y. Guerra de Orixá. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

MEYER, M. Caminho do Imaginário no Brasil. São Paulo, Edusp, 2001.

MOURÃO, T. Encruzilhadas da cultura – Imagens de Exu e Pombajira. Rio de Janeiro,

Aeroplano, 2012.

NEGRÃO, I. Entre a cruz e a encruzilhada. São Paulo, Editora da Universidade de São

Paulo, 1996.

ORTIZ, R. Ética, poder e política: umbanda, um mito-ideologia. In: Religião e

Sociedade, Rio de Janeiro, ISER, n 11/3 1986.

PRANDI, R. Encantaria brasileira. Rio de Janeiro, Pallas, 2004.

PRANDI, R. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. In:

Estudos Avançados, n° 18 (52), 2004.

SANCHIS, P. Fieis & Cidadãos – Percurso de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro,

Eduerj, 2001.

TEIXEIRA, R. Ciganos no Brasil – uma breve história. Belo Horizonte, Crisálida

Livraria e Editora, 2009.

TURNER, V. Dramas, campos e metáforas – Ação simbólica na sociedade humana.

Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

ANEXO:

G.R.E.S. Acadêmicos do Grande Rio / Samba Enredo 2015 – “A Grande Rio é do

Baralho38

!”

38

http://letras.mus.br/academicos-do-grande-rio-rj/samba-enredo-2015-a-grande-rio-e-do-baralho/

Page 25: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

25

O jogo começou

Sou eu quem dou as cartas na avenida

E nessa disputa de poder, eu não quero saber

Vou jogar pra vencer

Sou “rei”, venha ser a minha “dama”

No castelo de quem ama

Sou teu “servo” minha linda flor

A surpresa está na manga

Meu trunfo de maior valor

Pra saber o meu destino… fui buscar

A resposta no tarô… e encontrei o amor

A chave para abrir o meu caminho

No raiar de um novo dia, a cigana revelou

Estrelas me guiam a luz do luar

Além dos mistérios eu vou viajar

A “água” da “terra” eu vejo brotar

O “fogo” ardendo envolto no “ar”

O meu amanhã como posso saber?

Chegou minha hora, eu não posso perder

Num lance incerto, de um jeito esperto

A última carta vai surpreender

Canta Caxias, o meu coringa é você

Eu vou na ginga, jeito malandreado

Vem cá menina, começou o carteado

Se você veio ver, então vamos jogar

Chegou Grande Rio… pode apostar!

Page 26: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

26

Gaviões da Fiel - Samba Enredo 2015 “No jogo enigmático das cartas, desvendem os

mistérios e façam suas apostas, pois a sorte está lançada39

!”

Chegou gaviões, respeita!

A minha escola vai emocionar

Um bando de loucos, explode nação

Quem dá as cartas é o coringão

Vai "bater"?!

Um '' fiel'' sentimento no meu coração

É nossa vez!

Nesse jogo o coringa é o meu gavião

E do futuro, não tenha medo

Nossa vitória, não é segredo

A cartomante revelou

Em um baralho de tarot

A gaviões é o meu amor

Qual vai ser? Pode ver? Desapareceu!

E aí? Descobriu? Enganei você!

A carta sumiu, foi pura ilusão

Um truque de mestre na palma da mão

Nas artes, a literatura

Na forma mais pura de inspiração

''Maravilha'' estar em cena

"Reinou" no cinema, herói ou vilão?

É de arrepiar,

O medo que faz o meu sangue gelar

"O culto'', mistério na escuridão

Macabro olhar

A quinta estrela no peito

39

http://letras.mus.br/sambas/gavioes-da-fiel-samba-enredo-2015/

Page 27: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

27

O sonho de ser o melhor

Vai ser do baralho, o trunfo final

Cartada de ouro

Do meu carnaval.

GRE Unidos de Lucas - Samba enredo 2015: “Em busca do destino”

Vem do tempo de criança

A esperança que nos faz sonhar

O amanhã eu pergunto a você

O que será? Quem vai saber?

Aventura encantada

Tem fada madrinha no ar

Contos e histórias se misturam

Mistérios vão se desvendar

E nesse mundo vermelho e amarelo

Ser feliz é o que eu mais quero

Bem me quer, mal me quer

Na margarida um recanto de paz

Menina moça de brincadeira

Namora seu belo rapaz

Bola de cristal, livrai do mal

O meu caminho

A cartomante cigana falou

Que eu não vou ficar sozinho

Nas águas de iemanjá

Vou me banhar, “odoyá mamãe”

Amores e paixões virão, é são joão!

Diz o violeiro cantandor ô ô

Passa, passador cadê o anel? Por favor!

Page 28: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

28

Preciso conquistar o meu amor

Unidos de lucas somos nós

Um elo de amor, uma só voz

Meu galo de ouro, um jeito menino

Canta em busca do destino

G.R.E.S Unidos do Viradouro - Samba Enredo 1992 – “E a Magia da Sorte Chegou40

Uma estrela brilhou, brilhou

Brilhou, brilhou, brilhou,

Tão cintilante

Que, os magos, iluminou.

Será, será o novo Sol do Amanhã? Do Amanhã.

O arco-íris da aliança

Que não se apagará.

Vem do Oriente com sua arte de criar,

Na palma da mão lê a sorte

Com a magia do seu olhar.

Chegando ao Velho continente

A marca da desilusão,

Castigo, degredo, açoite,

Por que tanta discriminação?

A cada passo, a poeira levanta do chão.

Ferreiro, feiticeiro, bandoleiro (bis)

A liberdade é sua religião.

E vem chegando o dono desse chão.

No berço a mão do menino

Abriu-se ao destino,

Eis a Nova Canaã.

40

http://letras.mus.br/unidos-do-viradouro-rj/709788/

Page 29: TÍTULO “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na …...1 TÍTULO: “O jogo começou/sou eu que dou as cartas na avenida/e nessa disputa de poder, eu não quero saber/vou jogar

29

Ê, ê cigano,

Bandeirante em busca de cristais,

Canta, dança, representa,

Dá vida a nossos laços culturais.

Cigano rei, mineiro iluminado

O mundo não vai esquecer,

Plantou no solo brasileiro

A realização do amanhecer.

É uma Nova Era, ô ô

A Magia da Sorte chegou.

O Sol brilhará,

Surge a estrela guia

E sobre a proteção da Lua (bis)

Canta Viradouro

Que a sorte é sua.