trotski, rosa luxemburgo e o mito da “teoria leninista da organização”

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Murilo Leal Pereira Neto 11 Tentaremos argumentar neste artigo que Leon Trotski, embora tenha aderido ao Partido Bolchevique em agosto de 1917 e, a partir de então, defendido a concepção leninista da organização partidária, empreendeu, antes disso, uma trajetória política e defendeu uma concepção de partido mais próxima das tradições da II Internacional – que, por sua vez, mantinha proximidade com a experiência de organização da I Internacional. Mesmo depois de sua conversão ao bolchevismo-leninismo, Trotsky defendeu uma concepção de centralismo democrático mais flexível do que muitos de seus discípulos, que lideraram a IV Internacional ou algumas de suas facções depois de 1940. Na impossibilidade de dialogar com as múltiplas correntes do trotskismo no espaço deste artigo, selecionamos dois textos de destacados representantes de sua corrente majoritária: Ernest Mandel e Daniel Bensaïd. O objetivo é sugerir que, sendo a organização política revolucionária da classe trabalhadora necessariamente uma empresa difícil e complexa, pois se trata de dar forma política a um conteúdo social em permanente processo de mudança, a rigidez da concepção de organização partidária não pode contribuir para o sucesso da tarefa. Comecemos por La teoria leninista de la organización, de Mandel. O primeiro aspecto a assinalar O primeiro aspecto a assinalar é que, segundo o autor, Lênin teria, como o próprio título do trabalho indica, elaborado uma teoria do partido – ausente, até então, no arsenal de idéias do marxismo. Cabe assinalar, entretanto, que é o próprio Lênin quem, em diferentes ocasiões, nega a pretensão de elaborar uma “teoria do partido”. Vejamos: O erro principal dos que hoje polemizam com o Que Fazer? consiste em desligar por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou há muito tempo (...) Que Fazer? é o compêndio da tática e da política iskrista 22 em matéria de organização durante os anos de 1901 e 1902. Um compêndio, nem mais nem menos (...) Ora, nem mesmo no II Congresso 33 1 Doutor em História Social pela USP. Coordenador do Curso de História da Faccamp (Faculdade Campo Limpo Paulista). 2 Iskra (Centelha) é o nome do jornal criado por Lênin em seu exílio na Suíça, veiculando as posições da corrente por ele liderada. 3 Refere-se ao II Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo, realizado em 1903, no qual deu-se a divisão entre bolcheviques e mencheviques. pensei em erigir as formulações do Que Fazer? em algo “programático”, em princípios especiais (LÊNIN apud CARLO, 1976, p. 89) 4 . 4 Na célebre polêmica com Rosa Luxemburgo, Lênin nega que defendesse um sistema de organização contra qualquer outro: (...) Devo assinalar que o que o artigo de Rosa Luxemburgo, publicado no Neue Zeit, dá a conhecer ao leitor não é meu livro, mas outra coisa, distinta (...) A camarada Luxemburgo diz, por exemplo, que em meu livro manifesta-se clara e nitidamente a tendência de um centralismo extremo. A camarada Luxemburgo supõe, assim, que defendo um sistema de organização contra qualquer outro. Mas, na realidade, não existe tal coisa. O que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira até a última página, são os princípios elementares de qualquer organização de partido que se possa imaginar (LENINE, 1985, p. 44 e 48). Feitas essas ressalvas, vejamos como Mandel interpreta o que seria a teoria do partido de Lênin. Consideramos que é possível extrair do texto as seguintes proposições básicas: 1) O conceito leninista de organização fundamenta-se em uma espécie de tipologia das diferentes fases do processo evolutivo de formação da consciência da classe operária. Haveria a massa de operários, a vanguarda em um sentido amplo (operários que alcançaram o primeiro grau de organização) e a organização revolucionária; 2) A revolução pode ser descrita como um processo no qual, em um primeiro momento, o núcleo de revolucionários consegue integrar a consciência dos operários avançados à sua própria e, em um segundo momento, a ação dos operários avançados consegue integrar a ação das grandes massas; 3) Esse processo, porém, não pode se dar sem que a vanguarda operária tenha sido previamente treinada e, por sua vez, tenha treinado o proletariado na idéia e na aplicação do programa revolucionário para a luta. Este aspecto reveste-se de particular importância, uma vez que a estratégia de Lênin se basearia também em um balanço das lutas precedentes do movimento socialista europeu, que derrubaram a ilusão de que “existia uma linha reta entre as vitórias parciais nas lutas eleitorais, as greves de conscientização revolucionária e um incremento da combatividade revolucionária do 4 Todas as traduções do castelhano são de Murilo Leal. Artigo Trotski, Rosa Luxemburgo e o mito da “teoria leninista da organização”

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Page 1: Trotski, Rosa Luxemburgo e o mito da “teoria leninista da organização”

Murilo Leal Pereira Neto11

Tentaremos argumentar neste artigo que Leon Trotski, embora tenha aderido ao Partido Bolchevique em agosto de 1917 e, a partir de então, defendido a concepção leninista da organização partidária, empreendeu, antes disso, uma trajetória política e defendeu uma concepção de partido mais próxima das tradições da II Internacional – que, por sua vez, mantinha proximidade com a experiência de organização da I Internacional. Mesmo depois de sua conversão ao bolchevismo-leninismo, Trotsky defendeu uma concepção de centralismo democrático mais flexível do que muitos de seus discípulos, que lideraram a IV Internacional ou algumas de suas facções depois de 1940.

Na impossibilidade de dialogar com as múltiplas correntes do trotskismo no espaço deste artigo, selecionamos dois textos de destacados representantes de sua corrente majoritária: Ernest Mandel e Daniel Bensaïd. O objetivo é sugerir que, sendo a organização política revolucionária da classe trabalhadora necessariamente uma empresa difícil e complexa, pois se trata de dar forma política a um conteúdo social em permanente processo de mudança, a rigidez da concepção de organização partidária não pode contribuir para o sucesso da tarefa.

Comecemos por La teoria leninista de la organización, de Mandel. O primeiro aspecto a assinalarO primeiro aspecto a assinalar é que, segundo o autor, Lênin teria, como o próprio título do trabalho indica, elaborado uma teoria do partido – ausente, até então, no arsenal de idéias do marxismo. Cabe assinalar, entretanto, que é o próprio Lênin quem, em diferentes ocasiões, nega a pretensão de elaborar uma “teoria do partido”. Vejamos:

O erro principal dos que hoje polemizam com o Que Fazer? consiste em desligar por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período concreto do desenvolvimento de nosso partido que passou há muito tempo (...) Que Fazer? é o compêndio da tática e da política iskrista22 em matéria de organização durante os anos de 1901 e 1902. Um compêndio, nem mais nem menos (...) Ora, nem mesmo no II Congresso33

1 Doutor em História Social pela USP. Coordenador do Curso de História da Faccamp (Faculdade Campo Limpo Paulista).2 Iskra (Centelha) é o nome do jornal criado por Lênin em seu exílio na Suíça, veiculando as posições da corrente por ele liderada.3 Refere-se ao II Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo, realizado em 1903, no qual deu-se a divisão entre bolcheviques e mencheviques.

pensei em erigir as formulações do Que Fazer? em algo “programático”, em princípios especiais (LÊNIN apud CARLO, 1976, p. 89)4.4

Na célebre polêmica com Rosa Luxemburgo, Lênin nega que defendesse um sistema de organização contra qualquer outro:

(...) Devo assinalar que o que o artigo de Rosa Luxemburgo, publicado no Neue Zeit, dá a conhecer ao leitor não é meu livro, mas outra coisa, distinta (...) A camarada Luxemburgo diz, por exemplo, que em meu livro manifesta-se clara e nitidamente a tendência de um centralismo extremo. A camarada Luxemburgo supõe, assim, que defendo um sistema de organização contra qualquer outro. Mas, na realidade, não existe tal coisa. O que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira até a última página, são os princípios elementares de qualquer organização de partido que se possa imaginar (LENINE, 1985, p. 44 e 48).

Feitas essas ressalvas, vejamos como Mandel interpreta o que seria a teoria do partido de Lênin. Consideramos que é possível extrair do texto as seguintes proposições básicas:

1) O conceito leninista de organização fundamenta-se em uma espécie de tipologia das diferentes fases do processo evolutivo de formação da consciência da classe operária. Haveria a massa de operários, a vanguarda em um sentido amplo (operários que alcançaram o primeiro grau de organização) e a organização revolucionária;

2) A revolução pode ser descrita como um processo no qual, em um primeiro momento, o núcleo de revolucionários consegue integrar a consciência dos operários avançados à sua própria e, em um segundo momento, a ação dos operários avançados consegue integrar a ação das grandes massas;

3) Esse processo, porém, não pode se dar sem que a vanguarda operária tenha sido previamente treinada e, por sua vez, tenha treinado o proletariado na idéia e na aplicação do programa revolucionário para a luta. Este aspecto reveste-se de particular importância, uma vez que a estratégia de Lênin se basearia também em um balanço das lutas precedentes do movimento socialista europeu, que derrubaram a ilusão de que “existia uma linha reta entre as vitórias parciais nas lutas eleitorais, as greves de conscientização revolucionária e um incremento da combatividade revolucionária do

4 Todas as traduções do castelhano são de Murilo Leal.

Artigo

Trotski, Rosa Luxemburgo e o mito da “teoria leninista da organização”

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corrente majoritária do trotskismo. Trata-se de Daniel Bensaïd que, juntamente com Alain Nair, elaborou o texto A propósito do problema da organização: Lênin e Rosa.

Os autores também aderem à idéia de que Lênin elaborou uma teoria da organização em conformidade com uma teoria da dinâmica das relações sociais contemporâneas. Segundo essa teoria, o proletariado seria o sujeito teórico-histórico da revolução, condicionado pelo modo de produção capitalista. Seria o proletariado em-si. A vanguarda, que surge da formação social, seria o sujeito político-prático da revolução, representando o proletariado para-si5.1 Em conseqüência, os autores endossam a idéia de que “a consciência social-democrata só pode provir de fora dos operários, dos intelectuais revolucionários portadores do conhecimento e da compreensão global do processo de produção” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 14).

Além da apreensão da tradição bolchevique (um patrimônio vivo de experiências) como uma teoria e mesmo um sistema de organização, outra peculiaridade do texto chama a atenção. Os autores valorizam o partido leninista como uma formação orientada para a intervenção no campo político propriamente dito, entendido como a luta de partidos pelo poder do Estado. O texto dá a entender que foi um dos méritos de Lênin ter compreendido a representação de classe como representação propriamente política. Vejamos:

O partido é o instrumento pelo qual a fração consciente da classe operária ingressa na luta política e prepara o enfrentamento com o Estado burguês centralizado, chave mestra da formação social capitalista (...) (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 20).Dito de outra maneira, a política, que é a ordem a que pertence o partido, é irredutível ao social: a classe como conceito permanece como sujeito teórico e não prático da história; a mediação do partido, pelo qual ela acede ao político, continua sendo indispensável (...) (Bensaïd; Nair, 1980, p. 31)Na realidade, o terreno político não existe a priori; só se constitui com a estruturação das próprias forças políticas. É por isso que “a expressão mais vigorosa, mais completa e melhor definida da luta de classes política é a luta de partidos”[citação de Lênin]. Por esta luta, cujo objetivo é o Estado, se instaura a especificidade do político que é o lugar de irrupção da crise revolucionária (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 37).

É óbvio que a teoria de que a classe é apenas o sujeito teórico-histórico da revolução, enquanto a vanguarda é o sujeito político-prático e, ainda, que a política é a luta de partidos pelo poder de Estado, reconhece como sujeito da história e da política a vanguarda agrupada no partido e não a classe em sua ampla configuração e em suas múltiplas formas de organização e práticas políticas. A vanguarda aparece quase como um substituto e não uma direção da classe.5 Os autores esclarecem que o “modo de produção capitalista” é um conceito abstrato-formal, não tendo existência real. Nenhuma formação social específica coincide com ele. Citando Poulantzas, os autores afirmam que a formação social é “uma superoposição específica de muitos modos de produção puros” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 14).

proletariado” (MANDEL, 1984, p. 62). Ao contrário, apenas se os operários acumulam uma experiência de luta que não se limita a reivindicações parciais nos limites do capitalismo, podem formar uma consciência de classe revolucionária. Essas demandas mais avançadas podem ser trazidas apenas “através dos esforços de uma massa ampla de operários avançados que estão estreitamente vinculados às massas e que são os que disseminam e publicam essas demandas (que, em geral, não surgem espontaneamente da experiência diária da classe)(...)” (MANDEL, 1984, p 63)

4) A concepção leninista do partido pressupõe “uma teoria da essência da teoria marxista e de sua relação específica com a ciência por uma parte e a luta de classes proletária por outra” (MANDEL, 1984, p. 7). Isto implica que o programa socialista pode ser elaborado pela teoria marxista e posteriormente difundido às massas. “A construção do partido revolucionário de classe é o processo pelo qual o programa da revolução socialista é fundido com a experiência que adquiriu na luta a maioria dos trabalhadores avançados” (MANDEL, 1984, p. 40).

5) A centralização defendida por Lênin refere-se a um conteúdo político, mais do que a um processo formal, organizativo. O plano seria o da centralização de todas as revoltas e movimentos de resistência elementares, espontâneos, dispersos ou locais.

O texto de Mandel apresenta, também, uma polêmica com Rosa Luxemburgo, criticando-a pelo que seriam seus erros a respeito da questão do partido. Afirma o autor:

O conceito de Luxemburgo de que ‘o exército proletário é recrutado e chega a estar consciente de seus objetivos no curso da própria luta’ foi definitivamente refutado pela história. Mesmo nas lutas operárias mais amplas, abrangentes e vigorosas, as massas trabalhadoras não adquiriram uma compreensão clara das tarefas da luta ou o fizeram apenas de modo insuficiente (MANDEL, 1984, p. 25).

Como veremos adiante, a delimitação das diferenças políticas com Rosa Luxemburgo em torno da questão da organização partidária estabelecida pelo próprio Trotski é bem diferente. Tentaremos sugerir, ainda, que o agrupamento da vanguarda de classe em torno de uma política correta (uma tática-plano, como se dizia na esquerda européia da época) e a possibilidade dessa vanguarda dirigir a massa dos trabalhadores é um processo que depende muito menos do regime partidário e muito mais das condições sociais/históricas. O regime partidário do centralismo-democrático pode tanto contribuir para a formação de uma vanguarda revolucionária efetiva, como de um aparelho partidário auto-suficiente, ou de uma seita política.

Recorreremos a outro teórico, a fim de que possamos perceber outras facetas da apreensão da teoria leninista do partido pelos trotskistas, ou pelo menos pela

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Para concluir este breve comentário ao texto de Bensaïd e Nair, é necessário registrar os momentos de polêmica com Rosa Luxemburgo. A crítica substantiva formulada pelos autores reprova o prognóstico de Rosa de uma marcha inevitável do capitalismo para a catástrofe e a suposição de que o agravamento incessante das contradições sociais engendraria, por um lado, um proletariado espontaneamente revolucionário, e por outro, um partido que deveria ser apenas um “ponto de união organizativa de todas as camadas postas em movimento contra a burguesia por esta revolução”. A conclusão: “Assim, esta visão simplesmente trágica do capitalismo conduz Rosa a superestimar o movimento de massas e a subestimar a necessidade e o papel do partido no sistema capitalista” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 18 e 19)

Além dessa crítica mais séria, aliás já formulada por Lukács em 1921, os autores afirmam, de forma surpreendentemente pouco respeitosa, que a concepção organizativa de Rosa era “muito mais trivial, às vezes emocional e com freqüência infra-teórica”, acusam-na de um “vitalismo ingênuo, um naturalismo organizativo”, de “simplismo entusiasta” e ainda afirmam que Rosa teria empunhado “a bandeira de ‘liberdade’ e da ‘democracia’ contra as posições ‘extremas’ de Lênin” (BENSAÏD; NAIR, 1980, p. 17).

Cabe observar que, mesmo um Trotski já plenamente bolchevique-leninista, em 1935, delimita suas diferenças com Rosa Luxemburgo no campo das concepções de organização de maneira muito diferente dos autores citados até aqui. Vejamos como Trotski recupera as posições de Rosa a respeito do problema da relação entre espontaneidade e organização:

É inegável que Rosa Luxemburgo contrapôs apaixonadamente a espontaneidade das ações de massas à política conservadora “coroada pela vitória” da social-democracia alemã, sobretudo depois da revolução de 1905. Esta contraposição tinha um caráter absolutamente revolucionário e progressivo. Muito antes que Lênin, Rosa Luxemburgo compreendeu o caráter retardatário dos aparatos partidário e sindical e começou a lutar contra eles. Na medida em que contou com a agudização inevitável dos conflitos de classe, sempre prognosticou com certeza a aparição elementar independente das massas contra a vontade e a linha de conduta do oficialismo. Neste amplo sentido histórico está comprovado que Rosa tinha razão. Porque a revolução de 1918 foi “espontânea”, isto é, as massas a levaram a cabo contra todas as previsões e precauções do oficialismo partidário. Mas, por outro lado, toda a história posterior da Alemanha demonstrou amplamente que a espontaneidade por si só está longe de ser suficiente para conseguir a vitória; o regime de Hitler é um argumento de peso contra a panacéia da espontaneidade.A própria Rosa nunca se encerrou na mera teoria da espontaneidade (...) Rosa Luxemburgo se esforçou por educar de antemão a ala revolucionária do proletariado e por reuni-lo organizativamente tanto quanto possível. Na Polônia constituiu uma organização independente muito

rígida. O máximo que se pode dizer é que na avaliação histórico-filosófica do movimento operário, a seleção reparatória da vanguarda era deficiente em Rosa, em comparação com as ações de massa que se poderiam esperar; Lênin, sem consolar-se com os milagres das futuras ações, tomava os operários avançados e constante e incansavelmente os soldava em núcleos firmes, legais ou ilegais, nas organizações de massa ou na clandestinidade, mediante um programa claramente definido. (TROTSKI, 1979a, p. 39-41)

Este artigo é concluído de forma instigante, jogando por terra toda a interpretação estreita que se observou tanto entre marxistas-leninistas quanto entre trotskistas, da polêmica e das divergências entre Lênin e Rosa:

Os tresnoitados confusionistas do espontaneísmo têm tanto direito de referir-se a Rosa como os miseráveis burocratas do Comintern a Lênin. Deixemos de lado as questões secundárias, superadas pelos acontecimentos e com plena justeza podemos colocar nosso trabalho pela Quarta Internacional sob o signo dos “três L”, não apenas sob o signo de Lênin, mas também de Luxemburgo e Liebknecht (TROTSKI, 1979a, p. 44)6.2

Defendemos a tese de que a experiência do Partido bolchevique não foi originalmente concebida como modelo por seus dirigentes. Monty Johnstone lembra que a idéia de partido de Lênin não se reduzia a um único modelo organizativo. Houve o modelo do partido de quadros ou de massas, com estruturas internas que iam do cupulismo conspirativo à mais ampla democracia. “Comum a todos estes modelos era a idéia de uma vanguarda centralizada que se emprenhasse em fundir a teoria e a consciência socialistas com o movimento espontâneo dos operários” (JOHNSTONE, 1988, p. 16).

A experiência de organização partidária dos bolcheviques esteve, portanto, indissoluvelmente imbricada com as tarefas e processos próprios da esquerda na Rússia. Assim sendo, cabe indagar: como e por que foi erigida em modelo e adotada como paradigma nos quatro cantos do mundo? A primeira resposta, e a mais óbvia, é apontada por Monty Johnston: “Os bolcheviques haviam conquistado a primeira vitória da revolução socialista e era inevitável que isso incrementasse o poder de atração do único tipo de partido que podia se vangloriar de uma vitória tão formidável” (JOHNSTONE, 1988, p. 14).

No momento em que o caminho bolchevique vai se consolidando como modelo, após a Primeira Guerra,

6 Creio que fica claro aqui que a intenção de Trotski era apoiar-se em uma ampla e aberta tradição marxista para construir o novo partido mundial e não em um único modelo artificialmente abstraído da experiência histórica. Ainda que, talvez, o próprio Trotski possa ser criticado por não ter sido absolutamente coerente com a proposição formulada nesse texto. É interessante observar que, segundo Hobsbawm, Karl Liebknecht, embora fosse filho de um dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão e amigo de Marx e Engels, Wilhem Liebknecht, nem sequer se dizia marxista. (HOBSBAWM, 1995, p. 378.)

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defender e adotar a concepção leninista da organização, sua experiência impedia que as concepções e tradições bolcheviques se tornassem um modelo rígido e formal.

Ainda em maio de 1917, Trotski recusou um convite para somar-se às fileiras do partido de Lênin, pois tinha planos de formar uma nova organização (ABOSCH, 1974, p. 47). Desde 1904, mantivera-se numa posição acima das frações, pretendendo unificar bolcheviques e mencheviques (AUTHIER, 1976, p. 43). Seria superficial atribuir a distância entre Lênin e Trotski em questões de organização a simples imaturidade deste último. Por que Trotski e seu grupo de camaradas (ex-bolcheviques e ex-mencheviques que mantinham publicações e certa influência em distritos operários de Petrogrado, integrado, entre outros, por Lunatcharsky, Riazanov, Manuilski, Yoffe) (DEUTSCHER, 1984, p. 277) só adereriam ao Partido Bolchevique às vésperas da Revolução Russa?

Em primeiro lugar, havia divergências quanto à concepção estratégica da Revolução Russa, suficientemente explicitadas por Trotski em vários momentos, especialmente no artigo Três concepções da Revolução Russa (TROTSKI, 1977, p. 75). Entretanto, também estavam presentes graves divergências político-organizativas. Como se sabe, Trotski, Rosa Luxemburgo e toda a social-democracia européia se opuseram às posições de Lênin no II Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, em 1903 (CARLO, 1976, p. 84). As posições de Rosa Luxemburgo no episódio, sintetizadas no texto Problemas de organização da social-democracia russa, foram amplamente divulgadas e são bem conhecidas. Entretanto, os dois textos nos quais Trotski formula suas divergências, quais sejam: As nossas tarefas políticas e Relatório da delegação siberiana, não tiveram a mesma fortuna. Trotski e seus seguidores se opuseram à republicação dos textos, que hoje são pouco conhecidos (AUTHIER, 1976, p. 7). Ora, este mesmo fato é revelador dos processos históricos que fizeram parte da afirmação do sistema leninista de partido como modelo – algumas das idéias alternativas foram apagadas por seus próprios autores!

Não obstante, em busca de respostas para problemas colocados por sua prática, o movimento socialista vem abrindo e divulgando o conteúdo dos arquivos que conservam registros de sua história. Assim, o Relatório da delegação siberiana voltou a ser publicado na década de 1970.

O Relatório é um informe dirigido aos comitês do Partido Operário Social Democrata Russa (POSDR), escrito por Trotski na condição de membro da delegação da União Siberiana ao II Congresso do Partido, prestando contas e analisando o encontro político8.2 O Relatório foi escrito nos dois dias que sucederam o Congresso e a partir

8 O outro membro da “delegação siberiana” era Dimitri Ulianov, irmão mais novo de Lênin, que defendeu as posições do irmão no Congresso (TROTSKI s/d/, p 170).

com o triunfo da Revolução de Outubro e a formação da III Internacional, o movimento socialista mundial vive uma polarização: de um lado, a vitória bolchevique; de outro, a tradição da social-democracia alemã e européia, alinhada patrioticamente ao lado de suas burguesias na guerra imperialista, ou a derrota das outras opções socialistas: esmagamento da Revolução Alemã, assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Em momentos de crise, a força de atração de um modelo salvador é ainda maior.

O poder de atração do modelo leninista talvez se origine, ainda, de estratos mais profundos das práticas sociais. Como lembra Henri Lefebvre:

O fetichismo nasce e renasce incessantemente das profundezas da prática e da vida social (...) Então, tendo desaparecido o processo real do qual emergia, a obra parece incompreensível, maravilhosa. O seu prestígio fica a ganhar, o conhecimento torna-se ainda menos claro. O homem eminente, o homem eficaz, o indivíduo criador fetichizam-se num afastamento que os torna misteriosos e temíveis, sagrados e amaldiçoados. (LEFEBVRE, 1977, p. 62)

Sim, mesmo a organização revolucionária, obra criada para destruir a sociedade da qual emerge o fetichismo das mercadorias, foi absorvida e passou a circular nas relações sociais como fetiche – mitificada, esvaziada de sua história, do contexto de seu nascimento e vida.

Certamente, esse não foi um processo espontâneo. O leninismo, o marxismo e até o socialismo foram apropriados e transformados em ideologia por uma casta burocrática estatal parasitária e mesquinha. Tornou-se fator de coesão e justificação ideológica de interesses e privilégios sociais de casta7.1 Para este fim, nada mais útil do que um modelo rígido, esvaziado de qualquer conteúdo histórico verificável e discutível.

Como é sabido, uma das armas empregadas pela burocracia stalinista contra Trotski foi a acusação de sua tardia adesão ao Partido Bolchevique. Este se defendeu lembrando que, após a entrada no partido, tornara-se um bolchevique disciplinado, merecendo plena confiança de Lênin; ao mesmo tempo, admitiu que sua trajetória anterior em assuntos de organização partidária revelara imaturidade. Tentaremos aqui reconstituir alguns momentos desse percurso anterior a 1917, não como erro, mas como parte integrante das experiências necessárias da esquerda russa e européia naquele período. O objetivo é demonstrar que, por mais que Trotski tenha passado a 7 Talvez seja interessante mencionar a descrição do sistema político soviético feita por Hobsbawm, pois ajuda a compreender o quanto a adoção de um caricatural “modelo leninista” de partido é funcional como legitimação do satus quo mantido pela burocracia stalinista dentro da URSS e do exercício da dominação dessa burocracia sobre os partidos comunistas do mundo. “Baseavam-se num partido único fortemente hierárquico e autoritário que monopolizava o poder do Estado – na verdade às vezes praticamente substituía o Estado -, operando uma economia centralmente planejada e (pelo menos em teoria) impondo uma única ideologia marxista-leninista compulsória aos habitantes do país” (HOBSBAWM, 1995, p. 365.)

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de então teve ampla divulgação: “Fizeram-se cópias do que eu tinha escrito e cópias dessas cópias, abundantes (...) Este processo natural encontra-se em tal estado de desenvolvimento que a intervenção de Gutemberg é quase inevitável” (TROTSKI 1976, p. 89).

O texto é uma polêmica com as concepções de organização partidária e estratégia política de Lênin, vitoriosas no II Congresso. Basicamente, Trotski opõe ao que seria uma concepção formal, mecânica e mesmo metafísica, uma concepção mais complexa, dialética (TROTSKI 1976, p. 70). Afirma que o centralismo defendido por Lênin no Congresso era “uma construção formal ao contrário”, uma “antítese lógica do diletantismo”. A disciplina proposta nesse centralismo não adviria de um sentimento desenvolvido de disciplina de Partido, mas

(...) do sentimento de se achar perdido, sentimento resultante do “crack” do diletantismo anárquico. “Venham reinar e governem-nos” eis como podemos formular o estado de espírito da maioria. Um praticismo estreito, que se mostrou impraticável, foi substituído por uma desconfiança total para com os militantes de base e por uma fé cega na onipotência da Redação no exílio (TROTSKI 1976, p. 123).

Por outro lado, na avaliação de Trotski, o combate encabeçado por Lênin contra o economicismo e o tradeunionismo nos anos anteriores – leit-motiv de Que fazer? – não trouxera resultados muitos animadores. Trotski reproduz uma carta de um militante social-democrata à redação do jornal partidário, Iskra: “A agitação política tomou, durante o último período, um caráter demasiado abstrato, está muito pouco ligada à vida concreta e às exigências diárias das massas operárias. Nossa agitação política transforma-se por vezes numa declamação política completamente oca” (TROTSKI, 1976, p. 89). Aprovando a crítica do militante, Trotski acrescenta: “No arsenal do agitador social-democrata não encontramos neste momento nada mais do que fórmulas políticas sentimentais, apelos estereotipados para derrubar a autocracia, fórmulas e apelos que, pela sua abstração, se tornaram vazios de todo conteúdo revolucionário” (TROTSKI, 1976, p. 89).

Trotski conclui sua crítica ao que qualifica ironicamente como a tendência política, afirmando que, se o economicismo se caracterizava por uma incapacidade de ligar os interesses profissionais particulares com as tarefas gerais da política de classes, a política dos seguidores de Lênin se caracterizava pela incapacidade de “ligar as tarefas da luta política revolucionária (que eles, no fundo, apenas reconhece formalmente) com as reivindicações imediatas, cotidianas e, em particular, com as necessidades profissionais limitadas” (TROTSKI, 1976, p. 90).

Com relação à famigerada polêmica a respeito do Artigo I dos estatutos, Trotski adere claramente à proposição dos mencheviques: “É membro do Partido aquele que reconhece o seu programa, o apóia por

meios materiais e lhe fornece uma colaboração pessoal regular sob a direção de uma das suas organizações”. Na fórmula de Lênin, em vez de colaboração regular os estatutos definiam que o membro do Partido “participa da atividade de uma das organizações do Partido”. Trotski investe contra esta fórmula afirmando que é impossível que a direção partidária controle todos os membros da organização. Segundo a fórmula de Lênin, “o Comitê Central, onipresente, penetrando em tudo e tudo tomando em conta, poderá apanhar todos os membros do Partido no local do crime. Na realidade, trata-se de um sonho burocrático bastante ingênuo(...)” (TROTSKI, 1976, p. 95).

Trotski argumenta, ainda, com o exemplo das Organizações Operárias, existentes em várias cidades importantes, que vinham funcionando mais ou menos sob o comando do Partido, tendo sido, entretanto, criadas de acordo com princípios diferentes dos da organização partidária. A fórmula de Lênin deixaria à ação partidária apenas duas opções: ou a exigência de que as Organizações Operárias se dissolvessem e ingressassem no Partido ou a expulsão dos membros das mesmas do seio do Partido. A fórmula dos mencheviques, argumenta Trotski, permitiria uma tática mais flexível:

Se quereis permanecer no Partido – dirá este aos representantes da Organização Operária – deveis colocar-vos sob a direção do Partido, o Comitê local. Isto bastará para que a Organização Operária aceite no seu seio um representante do Comitê, que tentará fazer passar à ação – apenas pela força de sua influência, bem entendido, a “linha” conforme à opinião geral do Partido (TROTSKI 1976, p. 96-97).

As concepções de Trotski sobre o problema da organização não eram muito diferentes daquelas hegemônicas na social-democracia européia, às quais, aliás, o próprio Lênin aderiu formalmente até 19149.3 Também Trotski defendia a necessidade da organização de um partido baseado no centralismo democrático. Apenas considerava que sua construção era um processo que envolvia a relação com o movimento de uma classe social num contexto histórico. Naquele momento, Trotski via as soluções de Lênin como artificiais e burocráticas. Argumentava: “Há só uma saída: uma organização comum a todo o Partido com um Comitê Central à cabeça. Um Congresso convocado para este efeito não pode resolver a questão. É indispensável criar primeiro o centro antes de o proclamar” (TROTSKI 1976, p. 130).

9 A esse respeito, em polêmica com os stalinistas, Trotski afirma no texto Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo, de 1933, que Stalin havia inventado uma Rosa Luxemburgo “centrista” desde 1904 e um Lênin “100% bolchevique” desde o começo. Trotski lembra que até 1914 “Lênin considerava Kautsky seu mestre e não perdia a oportunidade de afirma-lo”. Até 1914 Lênin afirmava que “o bolchevismo não era uma corrente independente, mas a tradução às circunstâncias russas da tendência Bebel-Kautsky (...) Lênin considerava o bolchevismo como a versão russa do kaustskismo, que, por sua vez, ele identificava com o marxismo. (TROTSKI 1979, p. 335-337).

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O aparelho do Partido Bolchevique, antes da chegada de Lênin, em abril, portanto ainda em pleno período revolucionário, comportava-se apenas como oposição leal no âmbito da democracia burguesa e estava de acordo que os sovietes entregassem o poder ao Governo Provisório (TROTSKI 1967, p. 246).

Enquanto isso, os operários bolcheviques da fábrica Viborg se reuniam e exigiam do partido a tomada do poder pelos sovietes11.2

Trotski deixa bastante claro que o oportunismo do aparelho do partido não era casual, provinha de sua própria estratégia e concepções sobre a Revolução Russa. Colhendo depoimentos de velhos militantes bolcheviques, Trotski identifica o problema: o partido havia insistido demais na ditadura democrática do campesinato e do proletariado. O consenso, então, era de que a revolução que se anunciava só poderia ser uma revolução burguesa. Um velho dirigente bolchevique chega a uma formulação paradoxal: “Nós (muitos de nós) orientamo-nos inconscientemente para a revolução proletária pensando que nos dirigíamos para a revolução democrático-burguesa” (TROTSKI, 1967, p. 277).

Ora, a pretensão de Lênin, afirmada a reafirmada no Que Fazer? era de que o partido, armado com a chamada tática-plano (ou seja, uma linha política claramente definida), fosse capaz de nuclear e educar uma vanguarda que, por sua vez, educasse e conduzisse as massas pelo caminho antevisto pelo partido. Ocorre que na prática, a tática-plano tão cuidadosamente cultivada, quase pôs tudo a perder: todos os dirigentes ou militantes próximos à direção haviam, durante anos, se habituado a pensar a Revolução Russa como uma revolução democrático-burguesa, que seria dirigida por uma coalizão chamada ditadura democrática do proletariado e do campesinato. Ora, o governo de Kerensky era perfeitamente compatível com essa definição teórica. Por sua vez, foram, segundo o relato de Trotski, os operários de base, menos doutrinados pela tática-plano e mais ligados ao chão das lutas sociais, que representaram a força fundamental para a reorientação partidária. É certo que, das páginas da História da Revolução Russa, Lênin sai gigantesco. Contra tudo e contra todos, a partir de abril, ele teria reorientado o partido no rumo da ditadura do proletariado e da revolução socialista. Entretanto, o fez com a base do partido, contra o seu aparelho e não o contrário.

Nada do que foi dito até aqui deve obscurecer o fato de que, a partir de 1917, as concepções de organização partidária às quais Trotski se mantêm fiel até o fim de seus dias, e que orientaram a construção da IV Internacional, são as concepções bolcheviques, da III Internacional. Cremos que se pode afirmar que, no núcleo

11 É, aliás, bastante conhecido o fato de que os bolcheviques “des-cobriram” os sovietes depois que o movimento espontâneo de massas os havia criado. Segundo Authier, havia, nos primeiros anos do sécu-lo, uma fratura entre o POSDR e o “movimento de massas organiza-das” (AUTHIER, 1976, p. 33).

Diga-se de passagem que as fórmulas expostas por Lênin no Que Fazer? pareceram tão estranhas a Plekhanov, que, em um artigo de 1904, ele indagava: “onde ele poderia ter ido pescar suas teses”? (AUTHIER, 1976, p. 48)101.

Embora a partir de 1917, a mudança de Trotski tenha sido coerente e verdadeira, é difícil encontrar em sua obra alguma passagem que explicite a teoria leninista do partido, ou faça menção a um sistema organizativo acabado.

Comecemos pelo capítulo de Minha Vida dedicado ao II Congresso do POSDR. Embora seja possível argumentar que se trata de um texto memorialístico, é difícil acreditar que, se Trotski atribuísse às concepções de Lênin a qualidade de um achado teórico, isto deixaria de transparecer no capítulo que trata exatamente da cisão do partido. Em primeiro lugar, mesmo aprovando a posteriori as decisões de Lênin, Trotski não deixa de apontar os aspectos pessoais envolvidos na disputa. Em segundo lugar, fica claro também que, naquele momento, havia muita confusão e ninguém estava demasiadamente preocupado em formular teorias. A divisão entre duros e moles, ou seja, bolcheviques e mencheviques, era concebida assim: “Se não havia uma linha divisória, existia, contudo, uma diferença sensível na maneira de abordar as questões, na decisão, da perseverança em relação aos fins” (TROTSKI s/d, p. 164). Portanto, tratava-se, muito mais, de diferenças de atitude do que de diferenças teóricas.

A única passagem neste capítulo da qual se pode extrair algo que diga respeito a um modelo de partido é aquela em que Trotski fala sobre o centralismo leninista:

Eu estava entre os centralistas. É incontestável, porém, que não podia então ter uma opinião clara a respeito do centralismo severo e imperioso reclamado por um partido revolucionário que fora criado para lançar milhões de homens ao assalto da velha sociedade (...) Por ocasião do Congresso de Londres, em 1903, a revolução tinha para mim ainda muito de abstração teórica. O centralismo leninista não podia ainda brotar em meu cérebro de uma concepção revolucionária clara e definida à qual tivesse chegado por minha conta (TROTSKI, s/d, p. 1745-175).

O relato histórico da Revolução Russa por Trotski, especialmente os capítulos Os bolcheviques e Lênin e O rearmamento do Partido, deixam bastante abalado um dos postulados centrais da chamada teoria leninista da organização, qual seja, o de que a medula política da concepção leninista da organização corresponde a uma compreensão estratégica científica da natureza e da dinâmica da revolução social. Trotski observa que

10 Cabe notar que, quando Que fazer? foi escrito, Lênin e Plekhanov eram aliados, contra as tendências economicistas, o alvo central da crítica do texto. O artigo de Plekhanov, publicado três anos após Que Fazer?, e depois do II Congresso, pode ser sintomático de uma tomada de consciência e revisão crítica das teses leninistas sob o impacto da crise posterior ao II Congresso do POSDR.

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desta apreensão da concepção leninista por Trotski, está uma idéia sobre a dinâmica da relação entre programa, partido, vanguarda e massas. Cabe ao partido formular um programa correto para a revolução socialista. Com base num regime flexivelmente construído, de acordo com a fórmula do centralismo democrático, o partido deve nuclear solidamente uma vanguarda operária que, por sua vez, seja capaz, na dinâmica dos acontecimentos, de orientar politicamente as massas nos momentos decisivos da ação política. Depois de 1917, Trotski não mais se afastou dessa concepção central, assim formulada por ele:

É mister preparar a revolução mediante a incessante e implacável luta de classes, no curso da qual a direção ganha a confiança inabalável do partido, une a vanguarda com o conjunto da classe e converte o proletariado em direção de todos os explorados da cidade e do campo (TROTSKI 1979a, p. 21).

Neste sentido, no processo de construção da IV Internacional, Trotski foi sempre peremptoriamente contrário a qualquer unificação híbrida ou amorfa com as correntes que então lhe eram próximas, preferindo cultivar um núcleo de revolucionários que tivesse clareza política e programática. Quando lançou, em 1935, a Carta aberta pela criação da IV Internacional, o revolucionário russo sublinhou: “As tarefas revolucionárias de nossa época condenam de antemão ao fracasso toda unificação híbrida e amorfa”.

Três anos depois, em carta dirigida a um militante belga que discordava do lançamento imediato da IV Internacional, Trotski ponderava:

Parece que para você o nome IV Internacional impediria às organizações simpatizantes ou meio simpatizantes se aproximarem de nós. É completamente errôneo. Nós só podemos atrair a outros com uma política clara e correta. Para isto, devemos ter uma organização e não uma mancha nebulosa (TROTSKI 1979c, p. 505).

Porém, ao mesmo tempo em que aderia à concepção segundo a qual o núcleo partidário (ou seria aparelho partidário?) deveria educar a vanguarda e esta educar as massas numa política clara e correta, Trotski também afirmava que, na dinâmica das revoluções, as massas sempre estavam à esquerda do mais revolucionário dos partidos e a base do partido sempre estava à esquerda de sua direção. Creio que esta formulação paradoxal é mais representativa das concepções de organização partidária de Lênin e Trotski do que as teorias e sistemas que se tentou construir depois.

Para terminar esta abordagem do conceito de organização política revolucionária em Trotski, gostaríamos de recorrer a algumas passagens de seus escritos que ressaltam dois aspectos um pouco esquecidos: primeiro, sua abordagem historicamente concreta, mesmo daquele núcleo mais conceitual do sistema partidário: o centralismo democrático; e, segundo, a ênfase que ele confere ao aspecto da democracia, relacionada com o centralismo, no regime partidário. Vejamos.

Sobre a impossibilidade de abordar o problema de organização de um ponto de vista formal, Trotski afirma:

Tampouco penso que eu possa dar uma fórmula tal sobre o centralismo democrático que “de uma vez por todas” elimine mal-entendidos e falsas interpretações. Um partido é um organismo vivo. Desenvolve-se em luta contra obstáculos externos e contradições internas (...) O regime de um partido não cai pronto do céu, mas forma-se gradualmente na luta. A linha política predomina sobre o regime; em primeiro lugar é necessário definir problemas estratégicos e métodos táticos corretamente com o objetivo de resolvê-los (...) A fórmula para um centralismo democrático deve encontrar inevitavelmente uma expressão diferente nos partidos de diversos países e em diferentes estados de desenvolvimento de um mesmo partido.A democracia e o centralismo não se encontram em absoluto numa proporção invariável uma com relação ao outro. Tudo depende das circunstâncias concretas, da situação política do país, da força e da experiência do Partido, do nível geral de seus membros, da autoridade que a direção consiga adquirir (TROTSKI.1979b, p. 133).

Sobre a questão da democracia:O regime interno do partido bolchevique se caracterizava pelo método do centralismo democrático (...) Liberdade de crítica e confronto de idéias eram os poderosos fatores de sustentação da democracia interna. A presente doutrina de que o bolchevismo não tolera facções é um mito da decadência. Na realidade, a história do bolchevismo é uma história de conflitos de facções. E, de fato, como poderia uma organização genuinamente revolucionária, estabelecendo para si própria a tarefa de transformar o mundo e unindo sob sua bandeira os mais audaciosos iconoclastas, lutadores e rebeldes, crescer e desenvolver-se sem conflitos intelectuais, sem agrupamentos e facções temporárias? O comando bolchevique sempre fez o possível para atenuar os conflitos e encurtar a duração do trabalho fracionário, mas não pôde ir além disso. O Comitê Central apoiava-se neste agitado suporte democrático, de onde extraiu a audácia de tomar decisões e dar ordens. A precisão óbvia do comando em todos os estágios críticos é o que investiu da alta autoridade, o capital moral insubstituível para o centralismo (TROTSKI, 1981, p. 145).

Pode-se concluir, portanto, que toda teoria da organização partidária, extraída de Lênin ou Trotski, que pretenda ir muito além da defesa do centralismo democrático e do nucleamento e formação política de uma vanguarda de classe, estará forçando a nota. Mesmo estes dois princípios só poderão contribuir para o avanço político da luta de classes se outras condições - sociais, históricas e políticas – permitirem a organização de classe, o desenvolvimento de experiências políticas significativas, a manutenção de um agrupamento político de vanguarda dinâmico, vivo, isento dos vícios do culto à personalidade, das lutas fraticidas, de teoricismo, do seguidismo, do sectarismo...a mera importação de um modelo ou de uma suposta teoria não protege ninguém desses perigos.

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