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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LEANDRO FRANCISCO DE PAULA TROPAS DE PRETOS E PARDOS EM MINAS GERAIS: O RECRUTAMENTO PARA A GUERRA LUSO-CASTELHANA (1766-1780). CURITIBA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LEANDRO FRANCISCO DE PAULA

TROPAS DE PRETOS E PARDOS EM MINAS GERAIS: O

RECRUTAMENTO PARA A GUERRA LUSO-CASTELHANA (1766-1780).

CURITIBA 2008

LEANDRO FRANCISCO DE PAULA

TROPAS DE PRETOS E PARDOS EM MINAS GERAIS: O RECRUTAMENTO PARA A GUERRA LUSO-CASTELHANA (1766-1780).

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Luiz Geraldo Silva

CURITIBA 2008

Dedico aos meus pais Gregório e Tereza,

por terem me preparado para enfrentar a vida.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por estar sempre presente na minha vida.

À professora Ana Paula, por ter sido a primeira a ter me dado incentivo a iniciar na pesquisa histórica.

Ao professor Peninha, por abrir minha cabeça com relação a diversas idéias que estavam confusas em mim, e por sempre me dar apoio.

À professora Andreazza, por acreditar na minha capacidade. Ao professor Carlos Lima, por ter me dado a oportunidade de fazer um intercâmbio

nos Estados Unidos. Ao professor Robert Anderson, um novo amigo que fiz.

Ao professor Bryan Jack, um sujeito incrivelmente carismático, o qual me ajudou muito na questão da motivação.

Agradeço muito ao professor e amigo Luiz Geraldo Silva, por ser meu orientador e mestre nas questões acadêmicas. Ele atua realmente como se fosse um treinador,

sempre mostrando os caminhos corretos a se seguir. Agradeço a ele por me frear nos momentos em que quero dar vôos extremamente altos mesmo sem possuir estrutura. Aos meus colegas de intercâmbio, principalmente o Igor Costa. Tenho saudades de

nossas conversas. À Natália, por enfrentar comigo as dificuldades no estrangeiro.

Agradeço aos colegas do curso de história da UFPR, principalmente Lorena, Stefani e Marlon.

À minha muito amiga Priscila, por ser a pessoa gentil e bondosa que é, e por aturar minhas idiotices.

Ao meu grande amigo de todas as horas, Fernando Prestes de Souza. Companheiro fiel dos momentos bons e ruins. Agradeço por aguentar minhas crises de

megalomania. Agradeço a todos meus familiares. Sem vocês não seria nada.

À CAPES, por me dar auxílio financeiro e me proporcionar um intercâmbio.

RESUMO

A presente monografia analisou o recrutamento de pretos e pardos em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, dando ênfase ao período compreendido entre os anos de 1775 e 1777, ou seja, no momento em que se intensificaram os conflitos luso-castelhanos ocorridos nas partes meridionais da América portuguesa. Para isso nos servimos de ampla documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), disponível através do Projeto Resgate e referente ao período focalizado e à capitania de Minas Gerais. Para efeito desta análise, cruzamos as informações obtidas na dita documentação com outras relevantes ao tema abordado, existentes nas coleções Marcos Carneiro de Mendonça, Século XVIII: século pombalino do Brasil; Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo; as Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776), do Marquês do Lavradio; e a Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780), de João José Teixeira Coelho. Utilizou-se, para a melhor compreensão dessas fontes, abundante literatura específica e relativa a este tópico. Pretendeu-se, com isso, entender todo o processo envolvido no recrutamento de pretos e pardos para a guerra luso-castelhana das partes meridionais da América portuguesa, bem como compreender o envio desses homens para a área de conflito, além das conseqüências políticas, econômicas e, principalmente, sociais, que, nessa conjuntura, se seguiram na capitania de Minas Gerais.

Palavras-chave: reformismo ilustrado, mobilização militar, tropas de pretos e pardos.

ABSTRACT

This paper was focused on the restructure of military institutions in Portuguese America in the second half of Eighteenth Century, with the objective of examine the conjunctures involving Black Militias in the captaincy of Minas Gerais during the Luso-Castilian War. Between the decades of 1760 and 1780, Portugal introduced the practice of recruit individuals coming from those social groups in its domains. In the State of Brazil many captaincies were forced to adopt those direct solicitations from de Portuguese crown in that period. Each of the captaincies of the State of Brazil had to fulfill those exigencies in the manner that was possible. The captaincies had many social, economical or political limitations to perform all of those demands. The war in the meridional parts of Portuguese America accelerate the military restructure in the Portuguese domains, but also occasioned the utilization of unprepared troops, conflicts between cities councils and governors, and also debates about the use of slaves as soldiers. Keywords: enlightenment, military institutions, colored troops.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 01 2 CAPÍTULO 1: A GUERRA LUSO-CASTELHANA E A MOBILIZAÇÃO MILITAR

03

2.1 A formação da capitania de Minas Gerais na América portuguesa...................................................................................................................

03

2.2 O cenário europeu e as tensões nas partes meridionais do Estado do Brasil...........................................................................................................................

06

2.3 A mobilização militar na América portuguesa...................................................................................................................

07

3 CAPÍTULO 2: OS HOMENS DE COR NA REESTRUTURAÇÃO MILITAR DE MINAS GERAIS

11

3.1 Os homens de cor nas terras do ouro: interdependência entre grupos sociais...... 11 3.2 Organização e reestruturação militar de Minas Gerais......................................... 12 3.3 Os governos coloniais no período de reestruturação militar de Minas Gerais (décadas de 1760 1770)...............................................................................................

15

4 CAPÍTULO 3: RECRUTAMENTO MILITAR DE PRETOS E PARDOS PARA A GUERRA LUSO-CASTELHANA

21

4.1 O impacto das reformas militares de 1760 e 1770 em Minas Gerais..........................................................................................................................

21

4.2 Dom Antônio de Noronha e as dificuldades práticas no recrutamento de indivíduos para a guerra Luso-castelhana....................................................................................................................

23

4.3 O envio de 4000 recrutas para o palco da guerra..........................................................................................................................

26

CONSIDERAÇÕES FINAIS 29 FONTES 31 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 32

1

1 – INTRODUÇÃO

Na A segunda metade do século XVIII foi marcada por reformas de

cunho ilustrado implementadas nas regiões dominadas pela coroa portuguesa. Entre

essas medidas, estavam aquelas destinadas ao aprimoramento do aparato militar

português. Essa reestruturação militar se estendeu para a América portuguesa, em meio

aos conflitos com a coroa espanhola nas partes meridionais do Estado do Brasil. Dentro

desse quadro, houve uma ampliação efetiva dos habitantes da América portuguesa que

deveriam atuar no emprego das armas. Buscou-se estender, sob o controle do Estado, o

poder militar para todo o conjunto da população. Essa ação atingiu também as camadas

sociais compostas por homens de cor.

Nessa monografia, procuramos entender como se deu esse processo na capitania

de Minas Gerais entre os anos de 1766 e 1780. Buscamos compreender o

desenvolvimento da capitania em questão no contexto da América portuguesa, levando

em conta a importância da exploração do ouro nesse processo, e a consequente

formação de um quadro populacional com taxas elevadíssimas de população composta

por indivíduos livres de cor e cativos. Dessa forma, analisamos o impacto que as

reformas militares de cunho ilustrado ocasionaram na mencionada capitania, pois

exigiam a formação de corpos militares constituídas por homens de cor, os quais eram a

principal força de trabalho que Minas Gerais possuía naquele momento. Portanto, nos

debruçamos nessa pesquisa sobre as diferentes representações das diversas camadas

sociais de Minas Gerais com relação a esses indivíduos de cor no interior de corpos

militares.

Para tanto, analisamos fontes presentes no Arquivo Histórico Ultramarino –

disponíveis através do Projeto Resgate; a coleção Documentos Interessantes Para a

História e Costumes de São Paulo; Século XVIII, século Pombalino do Brasil, coleção

de Marcos Carneiro de Mendonça; Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776), do Marquês

do Lavradio, impressas pelo Instituto Estadual do Livro do Rio de Janeiro em 1978; e a

Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780), da autoria de João

José Teixeira Coelho, impressa em 1994 pela Fundação João Pinheiro de Belo

Horizonte, pertencente ao conjunto de documentos impressos da Coleção Mineiriana.

O trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro, procuramos enfatizar o

quadro geral que possibilitou a intensa mobilização militar no Estado do Brasil. No

2

segundo, se destacou a reestruturação militar na capitania de Minas Gerais na década de

1770 e a presença de homens de cor nesses corpos militares reestruturados. No terceiro

capítulo, ressaltamos o impacto das mencionadas reformas militares na capitania, bem

como a prática de recrutamento e o envio de pretos e pardos para a região de conflito.

3

2 – A GUERRA LUSO-CASTELHANA E A MOBILIZAÇÃO MILITAR

1.1 A formação da capitania de Minas Gerais na América portuguesa.

Na última década do século XVII, foram descobertas jazidas de ouro no

território chamado de Rio das Velhas, pertencente à região que posteriormente se tornou

Minas Gerais. Após o anúncio da descoberta, se iniciaram as “corridas de ouro”: levas

humanas foram aos poucos se assentando na capitania na busca de riqueza. Não só

houve um grande deslocamento de pessoas no interior da própria Colônia, pois a

descoberta do ouro atraiu cerca de 400 mil imigrantes portugueses durante todo o século

XVIII.1 O processo de ocupação do território foi, desde o início, tumultuado, o que

gerou muitos conflitos na capitania; por esse motivo os esforços da coroa em se impor

na região, criando vilas e instalando um aparato burocrático, mesmo em meio às

resistências dos colonos em relação e esse tipo de política.2 Cabe aqui ressaltar que o

ápice da atividade de extração do ouro em Minas Gerais ocorreu na década de 1750,

seguido do declínio dessa mesma atividade já na década seguinte;3 a partir dessa década

de 1760, houve o renascimento da agricultura no Estado do Brasil,4 principalmente com

a produção de açucar, tabaco e algodão. Toda essa dinâmica teve seu reflexo na

constituição da população da capitania.

Desde o descobrimento, Minas era integrada a São Paulo e ao Rio de Janeiro. Na

carta régia de 9 de setembro de 1709, separou-se do Rio de Janeiro e foi criada a

capitania de Minas de Ouro, ainda em união com São Paulo. Na primeira metade do

século XVIII, a região adquiriu suficiente relevo que se tornou impossível a apenas um

1 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e

alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estud. - CEBRAP., São Paulo, n. 74, 2006. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

33002006000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 June 2007, p. 113. 2 Ibidem., p. 114. 3 RUSSEL-WOOD, A. J. R-WOOD, A. J. R. O Brasil colonial: o ciclo do ouro, c. 1690-1750. In: BETHEL, Leslie (Org.). América Latina colonial. Trad. Mary. A. L. de Barros & Magda Lopes. São Paulo: Edusp/FUNAG, 1999p. 479-484. 4 ALDEN, Dauril. O período final do Brasil Colônia (1750-1808). In: BETHEL, Leslie (Org.). América

Latina colonial. Trad. Mary A. L. de Barros & Magda Lopes. S. Paulo: Edusp/FUNAG, 1999.

4

governador controlar tanto São Paulo quanto Minas Gerais.5 Em 1720, Minas Gerais

separou-se de São Paulo. Deste referido ano até o de 1780, 11 governadores

administraram a região, incluindo nessa contagem os interinos. Desde a última década

do século XVII, Minas contava com uma constante movimentação de sujeitos que para

lá se dirigiam instigados pela possibilidade de riqueza instantânea, a qual poderia se

tornar realidade através da atividade de mineração. Todos aqueles que passaram pelo

governo da capitania aprenderam na prática que administrá-la não era tarefa fácil, pois a

pressão das diversas camadas sociais que compunham aquela população sobre as

decisões de seus respectivos governantes era realmente imensa6.

O primeiro governador da capitania de Minas Gerais recém separada de São

Paulo foi D. Lourenço de Almeida (1720-1732), governou a capitania por pouco mais

de 10 anos. Da década de 30 do século XVIII até a de 60, a administração da região

ficou praticamente nas mãos de dois sujeitos pertencentes à família Freire de Andrade:

dois irmãos que receberam o título de Conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrade e

José António Freire de Andrade. Em 1763, António Alvarez da Cunha, o conde da

Cunha, passou da função de governador interino da capitania para o importante cargo de

vice-rei do Estado do Brasil. O substituto do conde da Cunha no governo de Minas

Gerais foi Luís Diogo Lobo da Silva. Ficou no cargo até o ano de 1768, quando entrou

no seu lugar José Luis de Meneses Castelo Branco e Abranches, o conde de Valadares,

o qual permaneceu na função até o ano de 1773. Após um governo interino, em 1774

assumiu a função D. Antonio de Noronha, e ficou nela até 1780.

É importante mencionar que até a década de 1760 o objetivo principal dos

governadores de Minas Gerais era garantir a produção do ouro e, com isso, enriquecer a

metrópole. No entanto, na mencionada década os conflitos nas partes meridionais do

Estado do Brasil se tornaram cada vez mais intensos, o que fez com que a defesa militar

se transformasse num objetivo tão importante para a capitania quanto aquele da

produção aurífera.

O volume do tráfico de escravos aumentou consideravelmente com as

descobertas do ouro e com as consequentes migrações para Minas Gerais. Entre os anos

de 1701 e 1720, quase 300 mil escravos africanos desembarcaram nos portos

brasileiros, a maioria deles destinados a abastecer de mão-de-obra a região mineira;

entre 1720 e 1740, foram mais de 310 mil sujeitos. Nas próximas duas décadas, o 5 RUSSEL-WOOD, op. cit., p. 485. 6 Ibidem., p. 493-494.

5

número subiu para mais de 350 mil cativos desembarcados no Brasil7. O historiador

Dauril Alden nos traz algumas estimativas acerca da população do Estado do Brasil para

o ano de 1776 (Tabela 1):8

TABELA 1: DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO DO BRASIL, 1776.

Capitania Número de Habitantes Percentagem

Pernambuco 239,713 15,4

Bahia 288,848 18,5

Rio de Janeiro 215,678 13,8

Minas Gerais 319,769 20,5

Como se pode notar, segundo as estimativas de Alden, em 1776, a população

total da capitania de Minas Gerais era a maior do Estado do Brasil: 319,769 mil

indivíduos, o que perfazia o equivalente a 20,5% do total de habitantes de toda a

América portuguesa no período. É importante mencionar que as capitanias de

Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro também aparecem com uma taxa populacional

relevante para o período, lembrando-se que nesses locais caracterizavam-se como

regiões costeiras onde havia os principais portos do Estado do Brasil, os quais eram os

principais centros de exportação de gêneros básicos da América portuguesa. Juntas,

essas regiões somavam mais de 50% do total da população do Brasil, segundo as

estimativas de Dauril Alden.

O mesmo historiador trouxe números acerca da composição populacional de

Minas Gerais entre os anos de 1772 e 1780: aproximadamente 76.700 brancos, 76.100

pardos e 167.000 negros cativos; essa última cifra significa pouco mais de 50% do total

da população da capitania. Até aquela década de 1780, portanto, segundo Alden, o

número de brancos ainda era um pouco superior ao de indivíduos livres de cor.9 Para o

ano de 1810, o historiador em questão trouxe outras estimativas: a capitania teria

naquele ano, em sua composição social, 23,6% de brancos; 33,7% mulatos e negros

livres; 40,9% de escravos; 1,8% de índios, ou seja, na passagem do século XVIII ao

XIX, o número de indivíduos livres de cor havia superado em pouco mais de 10% o de 7 MARQUESE, Rafael de Bivar. op. cit., p. 114. 8 ALDEN, op.cit., p. 529. 9 ALDEN, Dauril. The population of Brazil in the late eighteen century: a preliminary study In: The Hispanic American Historical Review.. , Vol. 43, No. 2. (May, 1963), p. 196.

6

brancos.10 Para o ano de 1814, Herbert Klein apresentou números semelhantes: a

capitania teria naquele ano aproximadamente 83.700 brancos; 143.000 indivíduos livres

de cor; 150.500 indivíduos escravos de cor.11 A partir da década de 1760 esses números

passaram a interessar cada vez mais a coroa de Portugal, pois houve uma intensificação

dos conflitos com os castelhanos nas partes meridionais do Estado do Brasil.

Para a coroa, portanto, se os conflitos ocorriam nos territórios coloniais, o

principal mecanismo de defesa da colônia era a utilização de seus próprios habitantes

em corpos militares. Todavia, para se entender esses conflitos nas partes meridionais do

Estado do Brasil, é necessário que se leve em consideração o cenário europeu da

segunda metade do século XVIII.

2.2 O cenário europeu e as tensões nas partes meridionais do Estado do Brasil.

Em 1756, Inglaterra e França, rivais de longa data, iniciaram uma luta armada

posteriormente denominada Guerra dos Sete Anos, pois se encerrou em 1763.12 A

Espanha era a aliada da França no conflito. Já Portugal, como sempre, havia adotado

uma política de neutralidade, até ser pressionado pela Inglaterra a entrar na guerra,

quando esta se encontrava próxima ao fim. O adversário mais direto de Portugal nessa

disputa bélica era a própria Espanha.13 O conflito entre esses dois reinos no próprio

continente europeu incendiou as questões relativas às fronteiras meridionais da América

portuguesa, região disputada por ambas as coroas desde as últimas décadas do século

XVII.

Desde a fundação da Colônia de Sacramento, em 1680, situada na margem do

Rio da Prata, os conflitos entre Portugal e Espanha nas fronteiras meridionais foram

10 ALDEN, Dauril. op. cit. p. 528. 11 KLEIN, Herbert S. Os homens livres de cor na sociedade escravista brasileira. Dados - Revista de Ciências Sociais, 17, 1978, p. 8; KLEIN, H. Journal of Social History, Vol. 3, No. 1. (Autumn, 1969), p. 36. 12 MELLO, Christiane F. Pagano de . A Guerra e o Pacto. A política de intensa mobilização militar nas

Minas Gerais.. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. (Org.). A Nova História

Militar Brasileira. Rio de Janeito: FGV / Bom Texto, 2004, v. , p. 69; MAXWELL, K. op. cit., p. 119-

122; ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil – with special reference to the administration

of the marquis of Lavradio, viceroy, 1769-1779. Berkeley/Los Angeles, 1968, p. 96-99. 13 MELLO, C. F. P. De. op. cit., p. 70.

7

relativamente constantes.14 O Tratado de Limites, o qual foi assinado em Madrid em

1750, tinha o objetivo de amenizar tais conflitos territoriais. Por problemas internos aos

territórios disputados e dificuldades de demarcação de fronteiras, o compromisso não

obteve êxito. O Tratado de El Pardo, assinado em 1761, deu fim aos acordos selados

naquele documento de 1750.15

Em 1762, França e Espanha invadiram Portugal. Como havia uma precariedade

do aparato defensivo lusitano, a coroa teve de pedir auxílio ao seu aliado principal: a

Inglaterra. Por esse motivo, a hostilidade fronteiriça foi curta. Porém, o conflito serviu

para explicitar a questão da fragilidade defensiva de Portugal. Era preciso ser feita uma

reforma militar com urgência. Para isso, Pombal contratou Conde de Lippe, um

ilustrado e muito experiente militar de origem alemã, o qual se encontrava naquele

momento a serviço da Inglaterra.16

Se a contenda foi breve no território europeu, na América ela se estendeu por

vários anos. Em 1763, D. Pedro de Cevallos, comandante das forças espanholas, invadiu

a Colônia de Sacramento, os fortes de São Miguel e de Santa Tereza, e o Rio Grande de

São Pedro. Era o ínicio do denominado período de dominação espanhola no sul da

América portuguesa, o qual se prolongou até 1776.17 Esses fatores contribuíram para

que a década de 1760 fosse de intensa mobilização e reestruturação do aparato

defensivo do Estado do Brasil.

2.3 A mobilização militar na América portuguesa.

A primeira medida de Pombal visando a defesa da América portuguesa foi a

transferência da capital do vice-reino de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763. A

região se tornaria o centro de comando defensivo do Estado do Brasil. Como estava

situada mais ao sul, seria mais eficaz na defesa de qualquer ataque vindo daquela

direção, bem como seria mais fácil mobilizar tropas no conjunto da América

14 POSSAMAI, Paulo César. A Colônia do Sacramento, o “jardim da América”. In.: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre : PUCRS, v. 30, n. 1, p. 33-46, jun./2004, p. 40-41. 15 ALDEN, Dauril. op. cit., p. 86-96. 16 MAXWELL, K.. op. cit., p. 119-123. 17 KÜHN, Fábio. A fronteira em movimento: relações luso-castelhanas na segunda metade do século XVIII. In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre : PUCRS, v.XXV, n.2, pp. 91-112, dez./1999, p. 91.

8

portuguesa. Pombal também enviou oficiais estrangeiros ao Brasil para auxiliarem nessa

reestruturação defensiva e militar. Entre eles, o austríaco Johann Böhm e o sueco

Jacques Funk, os quais já haviam servido sob as ordens do já mencionado Conde de

Lippe no território lusitano. Tal qualidade de oficialato teria a função de comandar as

principais tropas no Estado do Brasil. Dois aristocratas ilustrados e aliados ao serviço

das armas também foram enviados por Pombal: o morgado de Mateus, nomeado

governador da capitania de São Paulo, a qual foi reestabelecida em 1765; e o marquês

do Lavradio, o qual havia sido governador da Bahia em 1768, e que foi nomeado vice-

rei do Estado do Brasil em 1769. Lavradio também teria a função de governador e

capitão-general da capitania do Rio de janeiro.18 Sem dúvida, o nome mais forte na

tarefa de reestruturação defensiva e militar de toda a América portuguesa, na década de

1770, assim como no conflito luso-castelhano nas fronteiras meridionais do Estado do

Brasil foi o do próprio marquês do Lavradio.

O vice-rei foi o responsável por uma ampla reformulação do tabuleiro político-

administrativo do Estado do Brasil. Como sua função principal naquele momento era a

de exercer o comando na mencionada guerra, impôs ao marquês de Pombal a condição

de recomendar experientes militares nos governos de diversas capitanias. Essa

imposição foi aceita instantaneamente pelo ministro de Portugal. Dessa forma, Manoel

da Cunha Meneses (1769-1774) deixou o governo de Pernambuco e foi transferido para

a Bahia, sendo lá também nomeado governador; José César de Meneses (1774-1787)

ocupou o seu lugar em Pernambuco; Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782)

substituiu o morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775); Francisco de Souza

Meneses (1765-1775) ocupou o governo de Santa Catarina e Jozé Marcelino de

Figueiredo (1769-1771 e 1773-1780) o do Rio Grande; D. Antônio de Noronha (1775-

1780) substituiu Antônio Carlos Furtado de Mendonça (1773-1774) em Minas Gerais .19

Após toda essa modificação do quadro político-administrativo do Estado do Brasil,

Lavradio pôde agir com mais eficiência no que diz respeito a solicitações de socorro em

tropas e mantimentos direcionados à manutenção da guerra.

Esses governadores teriam o objetivo de iniciar uma intensa atividade de

recrutamento militar, cada qual em sua respectiva capitania. Dessa forma, o Estado do

Brasil sofreu de uma reestruturação militar em todo o seu território, mesmo que isso

18 ALDEN, op. cit., p. 13-28 ; MAXWELL, op. cit., p. 126. 19 ALDEN, op. cit., p. 139-140, 453-455.

9

tenha ocorrido com muitas dificuldades de acordo com os limites existentes em cada

região. Como foi dito, na década de 1760 a coroa portuguesa passou a se interessar mais

nos números relativos à população do Estado do Brasil, pois esta seria, segundo o

pensamento em ascensão na época, a principal defesa que aquela região detinha em

termos militares. Um documento muito importante que ressalta a necessidade lusitana

de incorporar todos os setores sociais da América portuguesa em forças militares é a

carta régia de 22 de março de 1766. A ordens existentes em tal documento impactaram

nas diversas capitanias do Estado do Brasil, de modo que o caso específico referente ao

impacto dessa carta em Minas Gerais será tratado no terceiro capítulo desse trabalho.

No entanto, cabe aqui analisar alguns pontos importantes do mesmo documento.

Em primeiro lugar, a carta régia em questão foi enviada a todas as capitanias do

Estado do Brasil com o intuito de que cada governador cumprisse as ordens lá

existentes. Segundo a carta, as tropas da América portuguesa se encontravam em estado

de “irregularidade e falta de disciplina”, todavia consistiam em “uma das principais

forças que tem o mesmo Estado para se defender”. Portanto, para esse efeito, cada

governador deveria “alistar todos os moradores das terras” de sua “jurisdição que se

acharem em estado de poderem servir nas Tropas Auxiliares, sem exceção de Nobres,

Plebeus, Brancos, Mestiços, Pretos, Ingênuos e Libertos, e a proporção dos que tiver

cada uma das referidas classes formeis Terços de Auxiliares e Ordenança”.20 Cada

governador também teria de atentar para a boa conduta da hierarquização de cada tropa,

pois os oficiais destas venceriam “o mesmo soldo que vencem outros Sargentos Mores

das Tropas Regulares dessa Capitania; pago na mesma forma pelos rendimentos das

Câmaras dos respectivos Distritos”. Todos os oficiais e soldados das tropas formadas

seriam obrigados a terem “à sua custa espadas e armas de um mesmo adarme”. Os

soldados e oficiais da cavalaria precisavam arcar com as despesas de pelo menos “um

cavalo e um Escravo para cuidar nele, sem que nas ditas armas e cavalos e Escravos se

lhes possa fazer penhora, embargo, ou execução alguma”21

Como se vê, a carta tem um conteúdo que mescla tanto uma perspectiva

ilustrada, trazida ao campo militar pelas reformas empreendidas em Portugal pelo

Conde de Lippe, como o reflexo das representações da ordem barroca antes

20 Cf: Carta régia de D. José, ordenando ao Conde da Cunha, vice-rei do Brasil, para que mande alistar, sem exceção, todos os moradores em estado de poderem servir nas Tropas Auxiliares e Ordenanças de Cavalaria e Infantaria. AHU – MG, cx. 85, doc. 42. Lisboa, 22 de março de 1766. 21 Cf: Idem, ibidem.

10

prevalecente em Portugal.22 O temor de uma guerra de grandes proporções também está

presente no documento. A ameaça iminente fez com que a coroa formasse corpos

militares de todos os setores sociais da América portuguesa com o objetivo de defender

aquele vasto território; entre esses setores estavam aqueles constituídos por homens de

cor. Essa ação, como veremos, impactou nas diversas capitanias do Estado do Brasil.

Cada capitania reagiu ao seu modo a essa recomendação, de acordo com suas relações

com o tráfico de escravos, com a população de cor de cada capitania e com os recursos

materiais que cada uma detinha, visto a população negra ser responsável pela principal

força de trabalho no Estado do Brasil. O caso de Minas precisa ser analisado com muita

atenção, pois a capitania possuía naquele momento, como vimos, o maior número de

cativos de toda a América portuguesa, e também uma imensa parcela populacional

constituída por indivíduos livres de cor.

22 SILVA, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e radicalismo ilustrado. Raça e nação em Pernambuco no tempo da Independência (1817-1823). In: Jancsó, István (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005 ; SILVA, Luiz Geraldo. Negros patriotas. Raça e identidade social na formação do Estado-nação (Pernambuco, 1770-1830). In: Jancsó, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Injuí: Hucitec/Unijuí, 2003.

11

3 – OS HOMENS DE COR E A REESTRUTURAÇÃO MILITAR DE MINAS

GERAIS

3.1 Os homens de cor nas terras do ouro: interdependência entre grupos sociais.

Ao chamarmos atenção para o fato de Minas suportar, no século XVIII, uma

vasta camada populacional constituida por homens de cor, não queremos com isso dizer

que essa informação é auto-explicativa e tem um fim em si mesma.23 O sujeito social

constrói a si mesmo pela própria ação, a qual é exercida de acordo com o papel desse

sujeito na sociedade. 24 No entanto, ao se estudar um grupo social específico num dado

recorte espaço-temporal, deve-se tomar cuidado para que não se superdimensione

apenas uma perspectiva possível de análise. Como, por exemplo, no caso da população

de homens de cor em Minas Gerais no século XVIII, dar muita ênfase nas ações de

resitência desses indivíduos diante da escravidão.25 Os homens de cor das Minas Gerais

setecentistas, como indivíduos componentes dessa sociedade específica, nessa

configuração social, estão envoltos numa tensa rede de poder, em constante

interdependência com os indivíduos do próprio grupo e com os de outros grupos

sociais.26

23 Por mais que as análises de Frank Tannenbaum tenham influenciado toda uma geração de historiadores, não concordamos com o autor quando o mesmo – baseado somente em dados numéricos - enfatiza o impacto da “cultura negra” na formação da cultura e dos valores presentes no Novo Mundo. Esta análise está presente em: TANNENBAUM, Frank. Slave and Citizen. Boston: Beacon Press, 1992. 24 THOMPSON, E. P. The making of the English working class. New York: Vintage Books, (1966). (ver

páginas prefácio). 25 Para os trabalhos referentes a Minas Gerais que seguem esse tipo de perspectiva, podemos apontar a autora Laura de Mello e Souza, em: MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Ediçoes Graal, 2° edição, 1986; e também Eduardo França Paiva, nos livros: PAIVA, E. F. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: ANNABLUME, 1995; e PAIVA, E. F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. João José Reis, por sua vez, analisou essa questão pensando em todo o território do Brasil no livro: REIS, J. J. & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. Fora do âmbito da historiografia brasileira, podemos citar Eugene Genovese em: GENOVESE, Eugene D. From the rebellion to revolution: Afro-American slave revolts in the making of the modern world. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1992, entre muitos outros historiadores que poderíamos mencionar. 26 Aqui utilizamos como referência teórica a visão analítica de Norbert Elias: ELIAS, Norbert. Introdução. Ensaio Teórico sobre as relações estabelecidos-outsiders. In Elias, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 19-50; ELIAS, Nobert. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Tradução de Ruy Jurgman. 2 ed. Rio de

12

Sem dúvida, no decorrer do setecentos, a categoria mais desfavorecida em Minas

Gerais era constituída por escravos, porém, segundo Julita Scarano “sobretudo a partir

da segunda metade do século, forros e mulatos, e mesmo brancos pobres, viviam

precariamente” 27, com exceção de alguns poucos que conseguiram adquirir algum tipo

de riqueza ou bens. No mencionado século, os homens de cor eram a principal força de

trabalho da capitania de Minas Gerais. A maior parte dos escravos se dedicava à

agricultura, todavia a extração mineral marcava o cotidiano dos indivíduos,

principalmente nos espaços urbanos, onde o fluir de pessoas de todos os tipos era

constante.28

Os indivíduos livres de cor, pertencentes ao grupo social com maior crescimento

populacional nos últimos decênios do século XVIII, realizavam trabalhos de variadas

categorias. Eram carpinteiros, ferreiros, músicos, cozinheiros, alfaiates, entre outras

atividades existentes nas diversas áreas da capitania. Nada impedia que escravos

também exercecem essas funções.29 Indivíduos livres de cor sociabilizavam-se com

escravos, tanto em festas quanto nas próprias irmandades religiosas; esses grupos se

relacionavam no cotidiano com sujeitos oriundos das diversas categorias sociais

existentes nas Minas Gerais setecentistas. Portanto, a capitania em questão precisa ser

analisada levando-se em conta toda essa complexidade social, com essas trocas de

experiências entre sujeitos e interdependência recíproca. Esse tipo de perspectiva

analítica é importante para o melhor entendimento do processo de mobilização militar

ocorrido em todas as regiões do Estado do Brasil a partir da década de 1760,

principalmente no que diz respeito ao impacto da estruturação de corpos militares

compostos por homens de cor.

3.2 Organização e reestruturação militar de Minas Gerais.

A força terrestre no Estado do Brasil na segunda metade do século XVIII era

dividida em: tropa de primeira linha, ou tropa paga; as forças auxiliares e as Janeiro: Zahar, 1993; ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2001; ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994. 27 SCARANO, J. Negro nas terras do ouro: cotidiano e solidariedade século XVIII. São Paulo:

Brasiliense, 2002, p. 9. 28 Ibid., p. 25. 29 Ibid., p. 33.

13

ordenanças.30 A tropa paga geralmente era composta por homens brancos com elevado

status social; muitas vezes, tratavam-se de sujeitos vindos de Portugal e que já haviam

sido soldados no próprio continente europeu. Um homem branco nascido na colônia só

poderia se tornar um soldado de tropa de primeira linha se possuísse um elevado status

social. Essas tropas atuavam principalmente nas fronteiras, geralmente em conflitos

contra inimigos estrangeiros; também eram utilizados na defesa de locais importantes

para a administração do poder real, como por exemplo na guarnição da sede do vice-

reino.31

As ordenanças se institucionalizaram em Portugal no ano de 1570. Essa ação

tinha o objetivo de municipalizar a prática de recrutamento, tornando a tarefa uma

operação localizada. Essa prática se estendeu até a América portuguesa, estando

presente na organização militar de Portugal até o século XIX. No entanto, isso não

significa que não houve mudanças na estrutura de tais corpos militares até esse período.

As ordenanças eram grupos de homens sem instrução militar sistemática e que só

seriam acionados para o serviço das armas em caso de perturbação da ordem pública.

Deveriam possuir suas próprias armas e equipamentos. Atuavam necessariamente a

nível local. Participavam das ordenanças todos os homens aptos a atuarem nos serviços

das armas e que tivessem entre 16 e 60 anos.32 No entanto, com o agravamento dos

conflitos na partes meridionais do Estado do Brasil, na década de 1760, seria necessário

que se mobilizasse mais indivíduos para o serviço da guerra. Havia também a

necessidade de se criar corpos militares passíveis de substituírem as tropas de primeira

linha. Assim, a Carta Régia de 1766 foi um importante mecanismo para o

fortalecimento dos corpos militares na América portuguesa, pois ordenou que nas

diversas capitanias daquela região se reestruturassem as tropas de auxiliares, as quais se

encontravam reduzidas naquele momento.

Na teoria, os auxiliares deveriam possuir suas próprias armas e equipamentos,

assim como as ordenanças, mas teriam treinamento militar para que pudessem a

qualquer momento substituir as tropas de primeira linha. Também como as ordenanças,

não receberiam soldo, com exceção de seus mais altos oficiais. Eram separadas em

regimentos de cavalaria e infantaria. Para participar de um regimento de cavalaria, o

30 MELLO, op. cit., p. 71. Discordamos na autora quando ela se refere às tropas de primeira linha como composta por indivíduos solteiros, em contraposição às tropas de auxiliares, as quais seriam, segundo a autora, compostas por homens casados. 31 COTTA, op. cit., p. 37. 32 Ibid., p. 110-113.

14

indivíduo deveria ser branco e possuír pelo menos um cavalo e um escravo; o último

seria preciso para o tratamento do animal e para o auxílio do próprio cavaleiro. Todo

aquele que não possuísse cavalo ou escravo seria transferido para a infantaria. Nela

congregariam, em corpos separados, tanto homens brancos quanto pardos e negros

libertos.

Havia uma série de privilégios para os membros dos corpos auxiliares. Segundo

Cotta:

“gozariam de foro militar. Seriam isentos de contribuir com fintas, taxas e outros encargos ou

tributos impostos pelas câmaras. Gozariam dos privilégios dos soldados pagos. Seriam isentos dos

serviços a que eram obrigadas as ordenanças. Não se poderia tomar ou embargar-lhes casas, carros,

bestas, estrebarias, pão, vinho, palha, cevada, galinhas, gado ou outros gêneros. Não seriam constrangidos

a servirem em cargos públicos contra a vontade. Não seriam presos em enxovia”. 33

Com a mobilização e reestruturação militar das décadas de 1760 e 1770, em Minas

Gerais, essas questões tiveram que ser pensadas também com relação ao homens de cor

que fariam parte de corpos auxiliares. As companhias auxiliares de infantaria de pretos e

pardos receberam a denominação de terço. No seus comandos estavam os mestres-de-

campo. Essas companhias por si só, quando estavam separadas e não formavam um

terço, eram denominadas de companhias francas.

Contudo, não era somente em corpos auxiliares que se podia encontrar homens

de cor no serviço das armas até a reestruturação militar das décadas de 1760 e 1770:

havia também as companhias de ordenanças de pé, os corpos de pedestres e os corpos

de homens-do-mato. Agiam localmente, a grosso modo nas expedições, no ataque aos

quilombos, contra indígenas hostis, e também na proteção de territórios onde se fazia a

extração de metais preciosos. 34 É provável que muitos desses indivíduos componentes

desses corpos militares irregulares tenham sido deslocados para os mencionados terços

quando houve a reestruturação dos mesmos na década de 1770 na capitania de Minas

Gerais. Nessa década, quando houve uma intensificação dos conflitos nas partes

meridionais do Estado do Brasil, a responsabilidade do envio desses indivíduos para a

guerra era totalmente daquele que estava no governo da capitania. As duas décadas

mencionadas, a de 1760 e a de 1770, foram períodos em que os governadores que

passaram pela capitania de Minas Gerais tiveram que agir no sentido de aprimorar a

33 Ibid., p. 111. 34 Ibid., p. 194.

15

estrutura militar, administrar recursos destinados à guerra, enviar homens para o

conflito, e ainda tratar das questões internas à própria capitania.

3.3 Os governos coloniais no período de reestruturação militar de Minas Gerais

(décadas de 1760 e 1770).

Para as décadas de 1760 e 1770, período de reformas nos corpos militares do

Estado do Brasil, 3 governadores que passaram pela capitania de Minas Gerais merecem

destaque: Luiz Diogo Lobo da Silva (1763-1768); Dom José Luiz de Meneses

Abranches Castelo Branco e Noronha (1768-1772) , mais conhecido como Conde de

Valadares; e Dom Antonio de Noronha (1775-1780). Analisando o livro de Instrução

para o governo da capitania de Minas Gerais, publicado por João José Teixeira Coelho

em 1780, podemos perceber algumas semelhanças e diferenças entre as ações desses

governadores na administração da capitania em questão e quais as preocupações mais

imediatas que cada um detinha nos momentos de tomadas de decisões. É importante se

levar em conta o fato de a visão de Teixeira Coelho ser interna, pois o mesmo era um

funcionário da coroa em Minas Gerais, tendo trabalhado como intendente do ouro da

Casa de Fundição em Vila Rica. Ficou nesse cargo por pelo menos 11 anos, entre fins

da década de 60 até 178035. Portanto, acompanhou de perto os governos do Conde de

Valadares e de Dom Antonio de Noronha.

Nas descrições dos governos mencionados, Teixeira Coelho nos apresenta

algumas preocupações em comum a todos, as quais nortearam muitas de suas ações: a

pressão da coroa para se explorar novas terras em busca do ouro já escasso; a segurança

interna da capitania, com a punição mais severa de criminosos e a disciplinarização dos

considerados “vadios”; e a reestruturação dos corpos militares da capitania.

Luis Diogo Lobo da Silva é pouco comentado por Teixeira Coelho. Na sua

descrição das ações administrativas do governador, o autor chama atenção para alguns

descobertos que o mesmo fez durante o período de sua administração. Notou que Lobo

da Silva “publicou bandos excitando a observância de algumas leis e ordens sobre

sesmarias, sobre o extravio de diamentes, sobre o direito de entradas, sobre

calhambolas, vadios, etc”; aqui percebemos claramente que havia uma preocupação em

35 Artigo da FFLCH USP inserir.

16

garantir a segurança interna da capitania, principalmente quando esse tipo de ação

assegurava a extração do ouro e dos diamantes. Para Teixeira Coelho “este governador

foi muito prudente, zelosíssimo, incansável e ativo na administração e arrecadação da

Real Fazenda, muito interessado e amante dos povos”. O autor finaliza a descrição do

governador queixando-se que “a sua bondade natural deu causa a que alguns indivíduos

que figuram naquela capitania lhe faltassem ao respeito e que fizessem espalhar

falsamente, em toda a América e neste Reino, diferentes calúnias para macularem as

suas intenções retas e seus procedimentos justos”. 36

Como se pode perceber, a pressão de alguns grupos específicos de Minas Gerais

sobre as ações administrativas dos governadores era imensa. Cada ação governamental

que pudesse ir contra os interesses individuais e coletivos dessas camadas sociais

recebia inúmeras formas de resistência. Nota-se também que o boato, ou como o define

Norbert Elias, a fofoca, cumpria uma função sociológica em Minas Gerais, não só

agindo como obstáculo de integração entre grupos e como meio de diferenciação social,

mas também como forma de se desautorizar medidas governamentais, dando às mesmas

descrédito.37 Como veremos adiante, no terceiro capítulo, quando o mencionado

governador lançou uma carta circular destinada aos capitães-mores de Minas com o

intuito de cumprirem com as exigências presentes na Carta Régia de 1766, e ainda

acrescentou nessa missiva a vontade de separar indivíduos cativos em corpos militares,

a desautorização da ação de seu governo também ocorreu através da prática da fofoca.

A descrição da administração do Conde de Valadares é mais extensa. Algumas

páginas são dedicadas a questão do subsídio voluntário, o qual era um imposto a ser

cobrado das capitanias da América portuguesa por 10 anos consecutivos para a

reconstrução de Lisboa, arrasada com o terremoto de 1755. Em 1766, o prazo de

cobrança do imposto havia sido encerrado, mas a coroa ordenou a Valadares iniciar um

prolongamento da cobrança na capitania de Minas Gerais; consequentemente algumas

câmaras resistiram à idéia. Teixeira Coelho enfatiza a tranquilidade do governador em

resolver essas questões com as câmaras.38

O Conde de Valadares também é louvado pelo desembargador por exercer um

controlo social mais rígido contra os “vadios” da capitania. Segundo o autor, “o sossego

36 COELHO, J.J.T. Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780), p. 145-146. 37 ELIAS, Norbert. Introdução. Ensaio Teórico sobre as relações estabelecidos-outsiders. In Elias, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 25. 38 COELHO, op. cit., p. 147-148.

17

público estava perturbado com as frequentes mortes violentas, ferimentos e roubos que

praticavam escandalosamente” alguns indivíduos que “viviam como feras nos arraiais,

nos sertões e nos lugares inacessíveis. E conhecendo que a origem de todas estas

desordens” praticadas pelos “vadios, os quais, vivendo na ociosidade, se precipitam em

alguns absurdos até que, perdendo o horros aos delitos, se fazem assassinos e

roubadores, e que as justiças ordinárias não podiam extirpar estes membros infectos” o

governador resolveu então tomar, “nesta matéria, algumas providências”.39

Há uma descrição mais extensa ainda acerca dos “vadios” de Minas Gerais, a

qual foi utilizada posteriormente pelo governador Dom Antonio de Noronha como

discurso com o intuito de demonstrar ao vice-rei Lavradio as dificuldades em se recrutar

indivíduos e enviá-los em tropas para a proteção do Rio de Janeiro. Segundo a

descrição

“Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas e contra eles se tem muitas vezes legislado, porém,

as regras comuns relativas a este ponto não podem ser aplicáveis ao território de Minas, porque estes

vadios, que em outra parte seriam prejudiciais, são ali úteis. Eles, à exceção de um pequeno número de

brancos, são todos mulatos, cabras, mestiços e negros forros. Por estes homens atrevidos é que são

povoados os sítios remotos do Cuieté, Abre Campo, Peçanha e outros; deles é que se compõem as

esquadras que defendem o presídio do mesmo Cuité da irrupção do gentio bárbaro e que penetram, como

feras, os matos virgens, no seguimento do mesmo gentio. E deles é, finalmente, que se compõem as

esquadras que muitas vezes se espalham pelos matos para destruir os quilombos dos negros fugidos, e que

ajudam nas prisões dos réus”.40

Como se pode notar no trecho acima, há uma tentativa de associação entre a idéia de

“vadio” com homens de cor. Aqui devemos lembrar que essa camada social foi a que

teve o maior crescimento populacional na segunda metade do século XVIII em Minas

Gerais. Segundo o trecho, por mais que os “vadios” representassem uma perturbação da

ordem pública, eram importantes para a exploração de outras regiões na incançável

busca por metais preciosos, e também no ataque a quilombos.

Finalizando a descrição das ações do mencionado governador na administração

da capitania de Minas Gerais, surge novamente a idéia de que a fofoca, assim como

aconteceu no governo de Luís Diogo Lobo da Silva, foi utilizada por alguns setores

sociais com o objetivo de desautorizar o Conde de Valadares. Para Teixeira Coelho, o

governador “tinha uma compreensão grande”, e era “um gênio indagador, constante e 39 Ibid., p. 149. 40 Ibid., p. 150.

18

inalterável. Foi prudentíssimo e de um procedimento exemplar”, além de “muito zeloso

na administração da cobrança da Real Fazenda; foi incançável no serviço de Sua

Majestade”. Contudo, “não foram bastantes estas qualidades e estas virtudes para que se

preservasse o crédito do Conde de Valadares das calúnias com que os habitantes de

Minas costumam declamar contra as pessoas mais caracterizadas”, portanto para

Teixeira Coelho, em alguns habitantes de Minas “a virtude é sufocada pela ambição,

pela soberba e pelo orgulho”. E ainda enfatiza o fato de que “se animaram os

roubadores e os assassinos” quando o governador deixou a administração da capitania,

pois o mesmo havia exercido uma forte coerção sobre esses tipos de indivíduos.41

Portanto, no governo de Valadares a fofoca como mecanismo de desautorização

também foi adotada por parte de grupos resistentes às medidas executadas por ele na

administração da capitania de Minas Gerais.

Em certo momento, Teixeira Coelho salienta o fato de ter sido o Conde de

Valadares o responsável por disciplinar “a tropa paga, que estava em desordem, e” criar

“os regimentos auxiliares que hoje existem, por virtude da carta régia de 22 de março de

1766”.42 No entanto, foi no governo de Dom Antonio de Noronha, iniciado em 1775,

que houve medidas mais efetivas com relação a reestruturação dos corpos militares

existentes na capitania.

Em 29 de maio de 1775, Dom Antonio de Noronha, assumiu o governo de

Minas Gerais; teria a responsabilidade de reestruturar militarmente toda a capitania.

Militar experiente, aliado das idéias provindas da ilustração portuguesa, Noronha tinha

fortes conexões com a família de Pombal, bem como a amizade do próprio marquês de

Lavradio. Sem dúvida, Dom Antonio de Noronha utilizou da rede de poder que o

entrelaçava para chegar ao posto de governador de Minas Gerais.43 Teixeira Coelho

inicia a descrição do governo de Noronha dizendo que

“naquele tempo não se cuidava, na América, mais do que fortificar os postos e em pôr as forças da terra e

as marítimas em estado de rebater a fúria castelhana: esta nação belicosa, estimulada dos progressos que

os portugueses haviam praticado no Rio Grande do Sul para se empossarem das terras que ela

41Ibid., p. 155-156. 42 Ibid., p. 154. 43 Cf: Decreto de D. José I nomeando D. Antônio de Noronha como governador e capitão-general da capitania de minas. AHU – Minas Gerais, cx. 107, doc. 69. Minas, 13 de dezembro de 1774; Cf: Carta de D. Antônio de Noronha, governador de Minas, informando Martinho de Mello e Castro, secretário de Estado, entre outros assuntos, sobre a necessidade que tem em conservar a mesma praça que deixou em Campo Maior. AHU – Minas Gerais, cx. 108, doc. 31. Minas, 14 de junho de 1775.

19

injustamente retinha contra a boa fé dos últimos tratados, preparava armada numerosa no porto de Cádiz,

para desafrontar com ela a honra das suas armas”44

Aqui se observa o momento de tensão em que se encontrava toda a América portuguesa

devido aos conflitos nas partes meridionais. Noronha teria de agir com competência nos

assuntos militares da capitania de Minas Gerais. A qualquer momento poderia ser

solicitado por Lavradio o envio de alguns corpos militares para a defesa da sede do

vice-reinado no Rio de Janeiro.

Isso de fato ocorreu, pois Teixeira Coelho afirma que Noronha “mandou

duzentas e quarenta e uma praças do dito regimento pago, que estava disciplinado, ao

socorro do Rio de Janeiro”, além de ter mandado “diversos corpos de tropa auxiliar e

companhias francas, todos fardados e bem armados” na defesa daquele importante

centro estratégico.45 Ademais, segundo o desembargador,

“o dito vice-rei lhe pediu recrutas para engrossar o exército que estava acampado no Rio Grande, e com

brevidade incrível, aprontou quatro mil pessoas que fez logo pôr em marcha para o dito continente, em

corpos separados, dando todas as providências que eram necessárias para que estes corpos não

experimentassem falta de víveres no seu dilatado trânsito”.46

Entretanto, Teixeira Coelho não menciona dificuldades tanto no que diz respeito ao

envio de corpos militares para a defesa do Rio de Janeiro, quanto no envio desses 4 mil

recrutas ao Rio Grande. Essas questões serão melhor trabalhadas no terceiro capítulo

deste trabalho.

Noronha é descrito por Teixeira Coelho não só como um experiente militar, mas

como um explorador ansioso por encontrar novos centros de mineração. Novamente,

aqui, após elogiar as ações do governador na capitania de Minas Gerais, Teixeira

Coelho deixa transparecer a idéia de que o mecanismo da fofoca de grupos resistentes

realmente exercia pressão efetiva nas ações dos governadores de Minas. Por mais que

Noronha tenha se esforçado para garantir tanto a reestruturação militar da mencionada

capitania quanto a arrecadação dos metais preciosos, para Teixeira Coelho “nada foi

bastante para que algumas pessoas da capitania de Minas deixassem de desfigurar as

ações grandes de Dom Antonio de Noronha e de lhe imputarem defeitos. Entre elas

foram alguns daqueles ministros que só cuidam em adiantar os negócios de que vencem

44 COELHO, op. cit., p. 157. 45 Ibid., p. 158. 46 Idem., Ibidem.

20

salários e que nunca querem ajudar os governadores nas matérias que respeitam ao

interesse público”. Esses indivíduos, para Teixeira Coelho, se enchiam de “soberba e

querem dominar os mesmos governadores. Se este lhes resistem, conspiram logo contra

o seu descrédito, persuadem os povos ignorantes, fazem liga com os maus e espalham

na Corte imposturas falsas e abomináveis”. Ademais, “esta foi já a origem da difamação

dos governadores Luiz Diogo Lobo da Silva e do Conde de Valadares, e esta a será a

dos governadores futuros”.47 Portanto, governar Minas Gerais era uma tarefa que exigia

do indivíduo que a administrava a capacidade de resistir à pressão de diversas camadas

sociais nos momentos de encaminhar ações que modificassem de alguma forma as vidas

daqueles que residiam na capitania.

Como já foi mencionado, as décadas de 1760 e 1770 foram períodos de intensa

mobilização e reestruturação militar em todo o Estado do Brasil. Camadas sociais

resistentes a reformas também pressionaram as autoridades na questão da formação de

corpos militares compostos por indivíduos de cor, além da possibilidade de se formar

tropas constituídas por escravos.

47 Ibid., p. 163.

21

4 – RECRUTAMENTO MILITAR DE PRETOS E PARDOS PARA A GUERRA

LUSO-CASTELHANA

4.1 O impacto das reformas militares de 1760 e 1770 em Minas Gerais.

No ano do lançamento da Carta Régia de 1766, Luis Diogo Lobo da Silva era o

governador de Minas Gerais. Não hesitou em tentar cumprir as ordens existentes no dito

documento. Para isso, expediu uma carta circular a todos capitães-mores da capitania.

Estes deveriam fazer o possível para formar tropas auxiliares - destinadas aos brancos -

e terços de pretos e pardos; tais corpos necessitavam também de oficiais e suboficiais,

nomeados pelos próprios capitães-mores.48 Um ponto específico da carta circular que

suscitou impacto imediato em toda a sociedade mineira foi a idéia de se criar tropas

compostas pela quinta parte dos escravos de Minas Gerais.49 Essa medida, tão rechaçada

por boa parte da gente de Minas, já havia sido empregada por Luis Diogo Lobo da Silva

em Pernambuco, quando lá foi governador.50

Como já foi mencionado, em Minas Gerais, desde meados do século XVIII, se

fixara o maior número de cativos da América portuguesa. Dessa forma, a utilização de

escravos como força militar era uma carta na manga das autoridades que não podia ser

facilmente descartada; até mesmo o marquês de Lavradio chegou a cogitar, em pleno

ano de 1775, a idéia de se armar escravos para a defesa do Estado do Brasil, dizendo

para Dom Antonio de Noronha, então governador da capitania, que “se isto se puder

praticar em Minas, poderás ter uns corpos formidáveis com que me socorras”.51

Todavia, a ordem para se criar o “quinto dos escravos” em Minas Gerais não foi

a única coisa que incomodou boa parte dos habitantes da capitania: em 1772 a câmara

de São João del Rei escreveu uma carta direcionada ao rei em repúdio aos terços de

48 Cf: Carta de Luís Diogo Lobo da Silva, governador das Minas, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a reação das Câmaras e de alguns comandantes das tropas das ordenanças auxiliares às ordens da Carta Régia de 22.03.1766, respeitante ao abastecimento de um corpo de tropas de milícias para expedição quando necessário. AHU – Minas Gerais, cx. 88, doc. 36. Vila Rica, 4 de outubro de 1766. 49 Cf: Idem, ibidem. 50 Cf: Mapa de toda Infantaria, Artilharia paga e Auxiliares de pé e cavalo, Pardos, Henriques, e Ordenanças de pé, Índios e Quinto de Negros Cativos que constituem as forças e defesa da Capitania de Pernambuco. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. Mapas Estatísticos da Capitania de Pernambuco. 3, 1, 38, fl. 03. 51 LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Educação e Cultura. Instituto Estadual do Livro, 1978, p.160-161.

22

pretos e pardos e seu oficialato integralmente negro.52 Segundo a carta, Minas estava

cheia de “inumeráveis escravos pretos e mulatos, cada um dos quais é inimigo

doméstico de todos os brancos. São quase tantos como estes os pardos e negros, que ou

nasceram forros ou se acham libertos”, por isso os integrantes da dita câmara

acreditavam que “não é neles menor o ódio que nos tem, mas maior a soberba de que

naturalmente são dotados”. Além disso, deixando transparecer o estigma social que os

homens de cor sofriam em Minas Gerais, a carta é finalizada com a idéia de que

“a pobreza e a dependência para com os brancos é que contém alguns deles na paz necessária para a

nossa conservação e do Estado; porém, como se formaram todos em companhias, dando-se-lhes oficiais

das mesmas castas, justamente se deve que o livre uso das armas os fez atrevidos e poderosos, e que

chegará o tempo em que unindo-se aos escravos, seus semelhantes, rompam em algum excesso,

disputando-nos o domicílio”.53

A sugestão da dita câmara para que tal receio não se tornasse realidade foi

sujeitar os ditos negros “a oficiais brancos, porque o respeito, o temor destes, melhor os

fará conter nos limites da sua obrigação”.54 Entretanto, com a intensificação da guerra

luso-castelhana na década de 1770, houve uma demanda pelo fortalecimento de todos os

corpos militares da capitania, incluindo os terços de pretos e pardos.

No ano de 1775, o governador de Minas Gerais era o experiente e ilustrado

militar Dom Antônio de Noronha. Duas ações por ele exercidas merecem destaque, pois

foram predeterminadas pelo próprio Pombal: a criação de regimentos de cavalaria, tanto

auxiliar como a de primeira linha; e também a reestruturação dos terços de pretos e

pardos, os quais, talvez pela pressão social, se encontravam, em 1775, bastante

desmobilizados.55

Os terços de pretos e pardos reestruturados estavam conectados a duas comarcas

principais: a de Vila Rica e a de Rio das Mortes. O terço da comarca de Vila Rica era

comandado pelo mestre de campo Francisco Alexandrino, um homem de cor. Era

composto por 17 companhias da própria Vila Rica e mais 13 companhias da cidade de

Mariana, constituindo, assim, 4 esquadras. Por sua vez, o mestre de campo Joaquim

52 Cf: representação dos oficiais da Câmara da Vila de São João del Rei, dirigida a D. José I, solicitando providências cautelares no sentido de evitar possíveis levantamentos por parte dos mulatos e escravos pretos. AHU – Minas Gerais, cx. 107, doc. 27. Minas, 30 de julho de 1774. 53 Cf: Idem, ibidem. 54 Cf: Idem, ibidem. 55 COTTA, op. cit., p. 193-198.

23

Pereira da Silva liderava o terço da comarca do Rio das Mortes, composto pelas

esquadras de São João del Rei e a da vila de São José. Constituíam 22 companhias de

60 praças. Ao todo, Francisco Alexandrino comandava 1.800 homens, e Joaquim

Pereira da Silva 1.320 praças.56 Porém, o lugar de atuação dos terços era a própria

capitania de Minas Gerais. Poderiam ser enviados para fora de Minas somente no caso

de invasão do Rio de Janeiro, ou se fosse ordenado pelo vice-rei Lavradio, portanto,

somente em casos muito especiais. No entanto, como já vimos no segundo capítulo,

Teixeira Coelho afirmou que houve efetivamente o envio de algumas companhias

francas para a defesa do Rio de Janeiro em 1775. Por outro lado, a pressão maior por

parte de Lavradio era pelo envio de recrutas de Minas Gerais para o principal palco do

conflito luso-castelhano: as partes meridionais da América portuguesa.

4.2 Dom Antônio de Noronha e as dificuldades práticas no recrutamento de

indivíduos para a guerra Luso-castelhana.

Essa ordem aconteceu numa carta enviada a Dom Antonio de Noronha em 19 de

outubro de 1776. Nela, o vice-rei ordenou que “seriam muito convenientes todos

aqueles recrutas que V. Ex.a me pudesse mandar sem bulha nem detrimento maior dessa

capitania”.57 Noronha não demorou muito para responder essa primeira carta. No dia 28

de outubro escreveu para Lavradio com relação aos ordenamentos anteriores: “pelo que

respeita a recrutas, é impossível que estas se façam sem que se sigam os inconvenientes

que V. Ex.a judiciosamente recomenda eu evite”; ou seja, o governador já previa que

poderiam ocorrer desordens, sublevações, caso praticasse tal ato.58 Só que algo

inesperado aconteceu: dois dias depois do envio dessa primeira carta de Noronha,

Lavradio escreveu uma segunda carta endereçada ao governador. A ordem naquele

momento não era somente para que se enviassem os recrutas, mas para mandar ao Rio

56 Cf: Carta de D. Antonio de Noronha, governador de Minas, informando Martinho de Melo e Castro sobre a sua chegada a Vila Rica, assim como sobre as medidas que tem tomado no sentido de reorganizar os corpos militares da referida capitania. AHU – Minas Gerais, cx. 108, doc. 32. Minas, 14 de junho de 1775. COTTA, Francis Albert. Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares nas Minas do século XVIII. In: MNEME – Revista de Humanidades. UFRN – CERES, 2003. 57 Cf: Carta (cópia) do Marquês do Lavradio, Luís de Vasconcelos e Sousa, vice-rei do Brasil, informando o governador de Minas, D. Antônio de Noronha, acerca das distinções conferidas aos soldados que mais se evidenciaram contra os castelhanos no sul do Brasil. AHU – Minas Gerais, cx. 110, doc. 37. Minas, 19 de outubro de 1776. 58 Cf: Idem, ibidem.

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de Janeiro os terços de pretos e pardos, bem como todos os regimentos de cavalaria

auxiliar e de primeira linha. E ainda mais: diz Lavradio “como El Rey meu senhor dá a

liberdade que V. Ex.a com a sua presença venha animar esta tropa, e por consequência

ajudar-me nos meus trabalhos, sendo este um dos maiores socorros que eu posso ter,

não posso deixar de instar por ele”59

Noronha afirmou que estava a praticar as ordens existentes ainda na primeira

carta de Lavradio quando, já no quartel, recebeu a segunda, cujo conteúdo o assustou.

Nessa segunda resposta, escrita no dia 7 de novembro de 1776, o governador ressalta

que sobre “ser preciso que eu marche na retaguarda do corpo auxiliar, para que os

soldados dele não desertem”, não era possível ser feito rapidamente, pois Noronha

deveria primeiramente resolver problemas referentes a uma devassa de inconfidência na

comarca de Sabará. Afirma que por esses motivos “é que demoro a minha marcha.60

Em 2 de novembro de 1776, Lavradio recebeu a primeira resposta de Noronha e

rapidamente aprontou uma nova carta. Com grande astúcia, chegou até a adiantar o

conteúdo da segunda, a qual não havia recebido ainda. Quanto aos recrutas, aliviou

Noronha, pois “por hora se acha suprida a necessidade, com 400 homens que

presentemente aqui chegaram vindos das ilhas, mandados por El Rey meu senhor, para

completar os corpos regulares que eu aqui tenho”; entretanto, os regimentos de cavalaria

e os terços de pretos e pardos deveriam com toda a rapidez ser mandados para o Rio de

Janeiro.61 Na mesma carta, afirma que os “vadios”, ociosos, precisavam ser

incorporados às tropas, para se disciplinarem e se tornarem mais úteis ao Estado do

Brasil.

Adivinhando a resistência por parte de Noronha no que respeita a marchar junto

com as tropas para o Rio, presente na segunda resposta do governador, a qual Lavradio

ainda não havia recebido, disse: “Se V. Ex.a julgar que o separar-se dessa capitania

poderá fazer algum prejuízo considerável ao Real Serviço, espero que V. Ex.a queira

regular tudo por modo que aos reais interesses não possam seguir consequências que lhe

sejam menos vantajosas”; e ainda completa, para pressionar ainda mais o governador de

Minas: “me animou fazê-lo lembrar que o conde de Bobadela do Rio de Janeiro

governava Minas, e quando o fosse preciso que ele passasse a mesma capitania a dar

59 Cf: Idem, ibidem. 60 Cf: Idem, ibidem. 61 Cf: Idem, ibidem.

25

alguma providência que precisasse da sua pessoal assistência, o faria com grande

facilidade, sem receber prejuízo o Real Serviço”62

Dom Antonio de Noronha recebeu essa última carta de Lavradio no dia 8 de

novembro de 1776, e demorou mais de 10 dias para elaborar uma resposta que fosse

bem convincente. Essa resposta, escrita no dia 19 de novembro, é uma defesa de

Noronha a todas as ordens provindas de Lavradio que pudessem prejudicar o governo

da capitania de Minas Gerais. Nela, disse que não poderia sair da capitania sem a

nomeção de um governador interino; fez propaganda do seu governo; acentuou as

dificuldades em se governar a dita capitania - pelo motivo da pressão social vinda de

todas as partes, principalmente em relação às medidas dirigidas em favor da guerra luso-

castelhana. Por fim, aliviou-se com a notícia de que podia suspender o envio de

recrutas, mas defendeu a utilidade dos ditos “vadios” na capitania de Minas com um

discurso não muito original. Para Noronha,

“eles, exceptuando um pequeno número de brancos, são todos mulatos, mestiços, cabras e negros forros.

Por estes atrevidos homens é que se mandam povoar os remotos centro do Cuyeté, Abre Campo e outros.

Deles é que se compõem as esquadras que defendem o mesmo Cuyeté das invasões do Gentio bárbaro e

que penetram como feras os matos virgens no seguimento do mesmo gentio. Deles é que se compõem

também as esquadras que entram pelos matos para destruir os quilombos dos negros fugitivos”.63

É curioso ressaltar o fato de esse trecho existir, na íntegra, também na já

mencionada Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais, publicada em

1780 e escrito por João José Teixeira Coelho. Não se pode dizer ao certo se já havia

algum esboço dessa obra em 1776, e que Noronha a havia lido, ou se Teixeira Coelho o

retirou da própria carta do governador e o incluiu posteriormente64. Todavia, o

importante é entender que a demanda por recrutas retornou, e mais cedo do que o

desejado por Dom Antonio de Noronha.

62 Cf: Idem, ibidem. 63 Cf: Idem, ibidem. 64 COELHO, J.J.T. Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais (1780). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.(Coleção Mineiriana), p. 149.

26

4.3 O envio de 4000 recrutas para o palco da guerra.

Não havia maneira de Noronha resistir a toda a pressão exercida por Lavradio.

O governador deveria trabalhar bem, e precisava ser rápido. Repetindo as palavras do

próprio João José Teixeira Coelho, acerca do envio de recrutas para o palco da guerra:

“o dito Vice-rei lhe pediu recrutas para engrossar o exército que estava acampado no

Rio Grande, e, com brevidade incrível, aprontou quatro mil pessoas que fez logo pôr em

marcha para o dito continente, em corpos separados, dando todas as providências que

eram necessárias para que estes corpos não experimentassem falta de víveres no seu

dilatado trânsito”. Esse discurso é apresentado para demonstrar que essa ação de enviar

4000 mil homens para lutarem na guerra Luso-castelhana foi realizada sem dificuldades

por Dom Antonio de Noronha. Entretanto, outras fontes revelam que não foi bem isso o

que ocorreu.

Já em abril de 1777, em várias partes do Estado do Brasil se ouviu falar da dita

tropa de Minas Gerais que iria reforçar os exércitos do sul. Uma grande expectativa foi

construída com relação a esses mais de 4 mil recrutas. Por onde quer que as companhias

que formavam essa tropa passassem, os oficiais ligados aos corpos militares deveriam

providenciar mantimentos, abrigo para esses homens. No entando, logo o general e

governador de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, atentou para as dificuldades

em abastecer a dita tropa; os capitães-mores queixavam-se que não tinham comida nem

para alimentar os próprios soldados regulares, quem dera para aqueles homens.65 A

tropa deveria chegar em Curitiba para dali se juntar com outros corpos militares e

seguirem em marcha até a ilha de Santa Catarina. Uma vez chegando lá, formariam uma

linha de frente para atacarem os castelhanos, enquanto as demais tropas ficariam na

retaguarda.66 Contudo, o problema de abastecimento da tropa era realmente grave.

Saldanha teve conhecimento de todas as desordens que esses homens cometeram desde

sua saída da capitania de Minas Gerais, e responsabilizou os sargentos-mores que a

acompanhavam.67 A fome desses recrutas foi tão grande, que ao passarem na região de

Araçarigoama, arrombaram a porta de um armazém e roubaram os mantimentos lá

65 Cf. Para o Sargento Mor Lucas de Siqueira Franco, da Atibaya. DI. Vol. LXXVIII, p. 48. São Paulo, 12 de abril de 1777. 66 Cf. Para o Coronel Manoel Mexia Leite, de Porto Alegre. DI. Vol. LXXVIII, p. 58. São Paulo, 15 de abril de 1777; Cf. Para o Sargento Mor Francisco José Monteiro, de Paranaguá. DI. Vol. LXXVIII, p. 106. São Paulo, 23 de abril de 1777. 67 Cf. Para o Sargento Mor Lucas de Siqueira Franco, da Atibaya. DI. Vol. LXXVIII, p. 134. São Paulo, 3 de maio de 1777.

27

existentes.68 Não é difícil se deduzir que outros incidentes como esse ocorreram durante

o percurso da tropa.

A falta de alimentos não era o único problema com relação a esses recrutas: a

deserção também era grande, de modo que Saldanha ordenou que os capitães-mores

caçassem e prendessem os desertores, os quais seriam castigados para dar exemplo aos

demais.69

Finalmente, em junho de 1777, Lavradio tomou conhecimento da qualidade

desses recrutas de Minas Gerais. Segundo a descrição de Saldanha, era uma multidão

composta, em sua maioria, de negros, que se encontravam “inteiramente nus, sem mais

que umas ceroulas e camisas, com muitas poucas armas particulares, e estas

desconcertadas”.70 Ainda nas palavras de Saldanha:

“estava a expedir ordem aos comandantes dos destacamentos de Minas Gerais, que iam em marcha para o

continente do Sul, a fim de voltarem logo para suas respectivas comarcas, pois assentou ultimamente

comigo o senhor marquês Vice-rei, a quem tinha representado o miserável estado desta tropa, ser mais

proveitoso ao Real Serviço fazê-las retroceder do que infestar a campanha do sul, com um troço de gente

quase inútil para o ministério da guerra”.71

É curioso o fato de que alguns desses homens, quando estavam nos Campos de

Curitiba, foram ali utilizados no cultivo das roças. Nesse sentido, Saldanha ordenou ao

capitão-mor Miguel Ribeiro Ribas para que daquela gente “se tirasse até o número de

cem homens, entre pardos e negros, para serem empregados na cultura das roças (..)

para este efeito, escolherá de todos os destacamentos que estiverem nessa vila, ou que

por ela passarem, o dito número de pessoas que julgar mais robustas (...) e terá sobre

eles toda a vigilância, para que não desertem”.72 Como se pode ver, o mecanismo da

coerção era empregado para a contenção desses homens. Essa violência provavelmente

esteve presente na marcha das companhias de Minas Gerais que formariam a badalada

tropa de 4000 mil homens que lutariam na guerra Luso-castelhana.

68 Cf. Para o Sargento Mor Antonio Correya de Lemos Leite, de Parnaiba. DI. Vol. LXXVIII, p. 136. São Paulo, 5 de maio de 1777. 69 Cf. Para o Sargento Mor Antonio Pacheco da Silva, de Itu. DI. Vol. LXXVIII, p. . São Paulo, 12 de maio de 1777. 70 ALDEN, op. cit., p. 250. 71 Cf. Para o Capitão Mor Antonio Correya Pinto, das Lages. DI. Vol. LXXVIII, p. 204. São Paulo, 2 de junho de 1777. 72 Cf. Para o Capitão Mor Miguel Ribeyro Ribas, de Curitiba. DI. Vol. LXXVIII, p. 205-206. São Paulo, 2 de junho de 1777.

28

Se já havia o problema da falta de alimentos destinados a esses indivíduos

quando eles saíram de Minas em direção à região do conflito, no retorno não foi o

contrário. Em um trecho, se torna claro como havia uma divisão no tratamento de

brancos e negros nessas tropa, com a provável exceção dos homens de cor que eram

oficiais: Saldanha ainda ordena, para o capitão-mor de Mogi das Cruzes, o qual havia

sido indicado para acompanhar o retorno dos recrutas de minas: “fará muito bem em

não dar quartel mais do que aos oficiais e homens brancos, e pelo que respeita aos

pretos, façam ranchos, visto a sua má conduta”.73 Tudo leva a crer que houve ainda mais

dificuldades em se fazer retornar essa multidão para a capitania de Minas Gerais.

73 Cf. Para o Capitão Mor Manoel Rodrigues da Cunha, de Mogi das Cruzes. DI. Vol. LXXIX, p. 61-62. São Paulo, 22 de julho de 1777.

29

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O período compreendido entre a década de 1760 e 1780 foi de intensa

mobilização militar na capitania de Minas Gerais. Partindo dessa premissa

apresentamos a reorganização dos corpos militares compostos por homens de cor

naquela capitania nesse momento, considerando os acontecimentos levados a efeito nas

partes meridionais da América portuguesa, as estratégias de defesa criadas para o

Estado do Brasil, o replacement dos governadores e capitães generais das capitanias e,

principalmente, a Carta Régia de 1766. Além disso, mencionamos as relações entre os

governadores que passaram pela capitania em questão com as diversas camadas socias

presentes na região. Apresentamos, também, relação de amizade conflituosa que o vice-

rei do Estado do Brasil, marquês de Lavradio, tinha com o governador de Minas Gerais,

Dom Antônio de Noronha.

Nossa intenção foi destacar as ações que esse governador acima citado levou a

efeito no sentido de reestruturar os corpos militares na capitania, entre eles os

compostos por homens de cor. Desse modo, enfatizamos conflitos e continuidades

entre as visões barroca de mundo e a perspectiva iluminista, e a forma pela qual o

iluminismo influenciou o campo militar no império português. No nosso modo de ver, a

reestruturação militar proposta pelo marquês de Pombal após 1762, bem como a escolha

por ele feita de quem deveria comandar essa tarefa no Estado do Brasil – ou seja, o

marquês de Lavradio – constituiu uma ação marcada pela perspectiva iluminista. O

replacement de governadores – a maior parte deles, senão todos, com vínculos estreitos

com Lavradio – garantiu a imposição de novas estratégias militares, de novas visões

acerca do que é ser militar e de como agir como um militar. A ampliação dos efetivos,

ou seja, a utilização de homens de cor nos corpos militares, representou mais um passo

em direção a esse desiderato. Porém, esse processo, como foi demonstrado na

monografia, não se seguiu sem conflitos. As guerras nas partes Merididonais da

América Portuguesa fizeram com que se acelerasse essa reestruturação militar, o que

ocasionou a utilização de tropas despreparadas, conflitos entre câmaras e governadores

e debates sobre utilização de escravos como soldados.

Dentro desse quadro, procuramos enfatizar as diversas representações que

governadores, câmaras, homens das armas e população geral da capitania de Minas

Gerais formavam acerca dos homens de cor presentes nos corpos militares. Em alguns

momentos eram vistos como a força de trabalho indispensável para a manutenção da

30

capitania, em outros eram associados a “vadios” e ociosos. Muitas vezes apareciam nos

discursos como bravos guerreiros, os quais adentravam nas matas para enfrentarem os

índios ferozes e os quilombos; no entanto, em outros momentos, são representados

como soldados inúteis, desordeiros, indisciplinados, que poderiam se unir aos escravos

para se revoltar contra os brancos de Minas Gerais.

A nosso ver, essa complexidade dos discursos é mais um indício de que a ordem

barroca portuguesa na América estava em constante confronto com a perspectiva

ilustrada em ascensão na segunda metade do século XVIII.

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