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    Guerra dos gneros & guerra aos gneros

    Suely Rolnik*

    No visvel, o bvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seusinteresses; especialmente o assim chamado gnero feminino oprimido em luta contrao assim chamado gnero masculino, seu opressor. Mas s aqui d para captar algodesta ordem, j que neste plano os personagens so feitos de figuras atravs dasquais eles se representam, assim como ns os representamos; tais figuras soefetivamente classificveis em identidades ou gneros e funcionam segundo umalgica binria de oposies e contradies, cujo atrito pode transformar-se emconflito.

    J no invisvel a coisa se complica, impossvel aqui registrar algo da ordemdo gnero, com sua lgica binria e suas oposies. E mais: neste plano o que secapta a produo do que justamente acaba por desestabilizar as figuras e, juntocom isso, o quadro classificatrio dos gneros, sejam eles sexuais, raciais, tnicos ououtros quaisquer. So movimentos de foras/fluxos desenhando certas composiese desfazendo outras; aglutinaes de novas composies produzindo diferenas,origem de pequenos abalos ssmicos nas figuras vigentes; acumulaes progressivasde diferenas/abalos provocando terremotos. Figuras se desmancham, outras seesboam; gneros e identidades se embaralham, outros se delineam - e a paisagem

    vai mudando de relvo. Uma lgica das multiplicidades e dos devires rege asimultaneidade dos movimentos que compem este plano. Estamos longe dosbinarismos.

    Entre os planos, portanto, uma disparidade inelutvel; nada a ver comoposio. No invisvel, a infinitude do processo de produo de diferenas; novisvel, a finitude das figuras nas quais os personagens se reconhecem, com suasidentidades e seus gneros. notrio o mal-estar que tal disparidade mobiliza: hsempre um ou mais personagens tomados por um estranho estado de

    desterritorializao, como que perdidos numa terra desconhecida sem no entantosequer ter sado do lugar. So os momentos em que os personagens mais se apegam

    * Psicanalista. Professora Titular da PUC/SP (Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Ps-Graduao de Psicologia Clnica). Autora de ensaios publicados no Brasil e no exterior e dos livrosCartografia Sentimental. Transformaes contemporneas do desejo (Estao Liberdade, So Paulo, 1989) e,em co-autoria com Flix Guattari, deMicropoltica. Cartografias do desejo (Vozes, Petrpolis, 3a edio1993); organizadora da coletnea de textos de Flix Guattari,Revoluo Molecular. Pulsaes polticas dodesejo (Brasiliense, So Paulo, 3a edio 1987); tradutora de livros e ensaios.

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    ao gnero, como numa espcie de tbua de salvao; passam a reivindic-lo em altosbrados e, raivosamente, atribuem ao gnero oposto a origem de seu desassossego.Este estado por vezes os leva a agrupar-se e o tumulto ento se avoluma.

    Isto o que registrariam radares caso pudessem rastrear a guerra dos gneros

    tal como vem se travando nas ltimas dcadas.

    No campo da subjetividade, pode-se distinguir culturas e pocas tomandocomo referncia quanto e como se transita entre os planos visvel e invisvel;quanto e como se lida com a disparidade entre a finitude das figuras e a infinitude daproduo de diferenas; quanto e como se encara o mal-estar que tal disparidademobiliza. Muitas so as modalidades praticadas.

    No contemporneo, por exemplo: se amplissemos o espectro de nossos

    radares de modo a rastrear o ambiente em que eclode a guerra dos gneros, ossensores sem dvida registrariam a predominncia de uma modalidade desubjetivao em que pouco se transita entre os planos. O que exatamente veramos?

    Personagens que tendem a viver confinados no plano da representao, comose s existisse o que o olho alcana, insensveis s foras e, consequentemente, sdiferenas que suas composies engendram. Quase nada se registra no ambienteque parea acolher o estranhamento que a disparidade entre os planos provoca; pelocontrrio, quase tudo leva a crer que possvel instalar-se vitalcio numadeterminada figura sem que jamais tremam seus contornos; a impressso de que se

    acredita que tremores so pura expresso de fraqueza e que os fortes no tem isso.H uma glamourizao destas supostas figuras estveis e donas de si, especialmenteinsuflada pela mdia, e que produz miragens de eternos vencedores. No reluzenteespelho de tais miragens, grande a chance de, em algum momento, os personagensenxergarem-se como fracassados: a cada vez que um deles abalado peladisparidade entre os planos, a reao mais comum tomar o mal-estar que este abalomobiliza como sinal de alarme anunciando perigo de desagregao; um verdadeirocalvrio.

    Quando diferenas irrompem em cena, convulsionando as figurasestabelecidas, no se observa qualquer esboo de movimento de construo demodos de existncia que as corporifiquem; o que cai na trama do espectro sopersonagens correndo esbaforidos de um lado para o outro, feito baratas tontas.Atordoados, eles parecem estar cata de figuras idealizadas para identificar-se, demodo a reconstituir-se o mais rapidamente possvel e encontrar seu lugar nestemagma homogeinizado de subjetividades. Quando conseguem, alimentam sua iluso

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    de estabilidade e parecem apaziguar-se; mas o pro que pagam ver a vidaenquanto potncia de diferenciao, escapando de suas mos. ntida suadesvitalizao.

    Mas certamente no seria apenas isto o que detectariam radares, se

    implantados nesta virada de sculo. Um espantoso avano das tecnologias deinformao e de comunicao de massa, faria aparecer na trama de seu espectro umfato curioso: a maioria dos personagens, independentemente de onde estejam,encontram-se habitados pelo planeta inteiro ao mesmo tempo; uma imensa riquezade foras/fluxos e, por consequncia, de mestiagens virtuais, aumentaindubitavelmente a potencialidade de engendramento de diferenas e de criao demundos. Paradoxalmente, evidente a limitao destes personagens para processartamanha abundncia; intolerantes desestabilizao, eles no se deixam facilmente

    afetar pelos efeitos das misturas em sua subjetividade. gritante o contraste que seobserva entre a exuberncia de mundos virtuais e a mesmice das figuras em tornodas quais se organizam.

    Prognstico: o quadro pede uma mudana na poltica de subjetivao vigente.Parece que se h uma guerra a ser travada ela teria como um de seus principais alvosa libertao do confinamento no visvel. Para isso seria preciso criar condies paraque a experincia do mal-estar provocado pela disparidade fosse menos traumtica emais produtiva. Seno, corre-se o risco de a riqueza da paisagem contemporneatransformar-se em inferno: quando as figuras estabelecidas so tomadas como

    identidades e seu abalo traumaticamente interpretado como ameaa dedesagregao, para manter-se no mesmo lugar, se capaz de fazer qualquer coisa,inclusive matar. A guerra dos gneros um exemplo disto, sem dvida dos maisamenos se pensarmos no que se tem feito em nome de identidades nacionais,religiosas, tnicas e raciais.

    Mas esta viso da guerra dos gneros no contradiz o sentido emancipadorque se costuma atribuir-lhe?

    Sim e no: verdade que esta guerra de certo modo indispensvel para quepersonagens do gnero oprimido, desqualificados socialmente, conquistem direitoscivis e dignidade; mas no menos verdade que ela os mantm confinados numaidentidade, invertendo apenas seu valor, que de negativo se transforma em positivo.E o mais curioso que esta simples inverso, alm de manter tais personagens nomesmo lugar, s vezes at os refora em seu modo de subjetivao identitrio: ficaadiado o confronto com a finitude e o trabalho que se faz necessrio para dar vaso

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    s diferenas emergentes. que este trabalho implica a criao de contornossubjetivos singulares e efmeros - e portanto no generalizveis -, j que singulares eefmeras so as misturas de foras/fluxos de que feita cada diferena que vai seproduzindo ao longo da existncia.

    Caso de fato existissem radares apropriados para rastrear este tipo de guerra,o que eles implacavelmente nos mostrariam que enquanto gneros se degladiam noplano visvel por uma causa politicamente correta - a luta por uma igualdade dedireitos, que alis no Brasil so especialmente desiguais -, no plano invisvel, huma proliferao de diferenas produzidas por uma hibridao cada vez maior deforas/fluxos, que no conseguem encontrar canais para sua existencializao. Equanto mais se degladiam os gneros, mais se afirmam as identidades e menoscanais se abrem para as diferenas; reciprocamente, quanto mais proliferam

    diferenas e mais aumenta sua presso, mais apavoradas ficam as subjetividadescom suas supostas identidades e mais defensivamente as enrijecem na tentativa demanter a iluso de sua eternidade e proteger-se do terror que a finitude provoca.

    Avaliar esta situao fazendo um esforo para nos deslocar de uma lgica darepresentao em direo a uma lgica das multiplicidades e dos devires, prpria dadinmica entre os planos, nos deixa um tanto perplexos. Explorada destaperspectiva, a guerra entre gneros revela sua faceta de guerra a favor daperpetuao de gneros e contra a processualidade da vida enquanto produo dediferenas. Concluso: se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e

    pelos gneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, serpreciso travar simultaneamente uma guerra contra a reduo das subjetividades agneros, a favor da vida e suas misturas.

    Neste ponto, o Brasil parece ter algo a dizer na questo dos gneros.Trazemos a marca de uma certa facilidade para nos desfazer das figuras vigentes, ecom elas das identidades e gneros, sempre que necessrio. Nossa fundao e nossahistria pontuada por mestiagens. Habituados a nascer e renascer das misturas,

    somos constitutivamente hbridos; borram-se em ns desde o incio as fronteirasentre figuras.Um dos movimentos do Modernismo brasileiro colheu esta marca de nossa

    cultura e decidiu afirm-la positivamente, chamando-a de "Antropofagia"1.

    1O termo "antropofagia" foi proposto por um movimento muito polmico que se desenrolou nos anos 20, nocontexto do Modernismo no Brasil. Trata-se doMovimento Antropofgico, do qual a figura e a obra deOswald de Andrade uma das mais vigorosas expresses. Originalmente a noo designa uma das marcas

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    Estendendo esta idia, hoje, para o campo do desejo, diramos que antropofgico oprprio processo de composio e hibridao das foras/fluxos, o qual acaba sempredevorando as figuras da realidade objetiva e subjetiva e, virtualmente, engendrandooutras.

    O grau de abertura para a antropofagia das foras/fluxos pode ser um critriopara distinguir diferentes modos de subjetivao. Por este critrio, diramos que ummodo de subjetivao antropofgico quando tende a se constituir comoexistencializao das virtualidades engendradas na mestiagem das foras/fluxos eno como resistncia contra a finitude. Em outras palavras, um modo antropofgicode subjetivao se reconheceria pela presena de um grau considervel de abertura,o que implica numa certa fluidez: encarnar o mais possvel a antropofagia dasforas, deixando-se desterritorializar, ao invs de se anestesiar de pavor; dispor do

    maior jogo de cintura possvel para improvisar novos mundos toda vez que isso sefaz necessrio, ao invs de bater o p no mesmo lugar por medo de ficar sem cho.A antropofagia seria o princpio organizador deste modo de subjetivao. Um

    princpio radicalmente ateu, imanente produo da realidade, cuja referncia aprocessualidade: as diferenas emergentes a partir das quais se traar novosterritrios e, indissociavelmente, suas cartografias. Opera-se aqui um deslocamentodo princpio que tem por referncia uma representao de si e do mundo tomada apriori, seja ela qual for, mesmo que em nome de uma causa politicamente correta.

    Se o Brasil tem algum know how a oferecer para a guerra dos gneros seria

    mais na direo de uma guerra contra a perpetuao dos gneros. Isto passa pelorastreamento de dispositivos que permitam desmobilizar o terror que a antropofagianos causa, condio indispensvel para incorpor-la como princpio organizador denossos processos de subjetivao.

    A importncia deste tipo de know how extrapola a guerra dos gneros. Amiscigenao contempornea requer que mudemos o princpio que rege nossosprocessos de subjetivao, depurando-o dos resqucios do modelo que reduz asubjetividade representao, se quisermos ampliar nossas chances de processar a

    riqueza que temos em mos.Ao lado da guerra de gneros preciso cada vez mais levar uma guerra doshabitantes dos devires contra os adictos dos gneros, inclusive e antes de mais nada,

    presentes na cultura brasileira; ns a retomamos aqui para problematiz-la no campo especfico dos processosde subjetivao no Brasil.

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    na arena de nossa prpria subjetividade. Uma guerra de hbridos, mestios,antropofgicos.

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    Resumo

    Primeira opo:

    A guerra dos gneros abordada no sentido macro e micropoltico. A macropolticaconcerne a realidade individual e coletiva enquanto representao, cujas figurasdefinem identidades e suas classificaes dualistas - por exemplo, a classificao emgneros. A micropoltica concerne a mesma realidade, mas enquanto multiplicidadede fluxos, cujas composies engendram as transformaes de suas figuras e,portanto, de identidades e gneros. Se a guerra dos gneros, do ponto de vistamacropoltico, condio para que o gnero oprimido conquiste igualdade dedireitos e dignidade, j do ponto de vista micropoltico ela implica o risco de uma

    reduo das subjetividades ao gnero, o que pode brecar os processos de mudana. sugerido que ao lado da guerra macropoltica dos gneros seja travada uma guerramicropoltica contra tal tendncia redutora. A marca da antropofagia virtualmentepresente nas subjetividades brasileiras as tornaria potencialmente aptas para levareste segundo tipo de guerra.

    Segunda opo:

    A guerra dos gneros abordada no sentido macro e micropoltico. Se do ponto de

    vista macropoltico esta guerra condio para que o gnero oprimido conquisteigualdade de direitos e dignidade, j do ponto de vista micropoltico ela implica orisco de uma reduo das subjetividades ao gnero, o que pode brecar os processosde mudana. sugerido que ao lado da guerra macropoltica dos gneros sejatravada uma guerra micropoltica contra tal tendncia redutora. A marca daantropofagia virtualmente presente nas subjetividades brasileiras as tornariapotencialmente aptas para levar este segundo tipo de guerra.