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Três Vezes Você Roteiro por Cintia Henriques

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Page 1: Três Vezes Você - cintiahenriques.com.br · Não há solução quando há uma predisposição genética. Cláudio. ... eu quero que você e a Céu se preocupem somente com os estudos

Três Vezes Você

Roteiro por Cintia Henriques

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Personagens Cláudio: Dono de uma Empresa Farmacêutica. Está na faixa dos cinqüenta anos, estatura mediana, um tanto calvo, olhos castanhos. Marta: Esposa de Cláudio. Baixa estatura, 42 anos, cabelos curtos e muito escuros, olhos verdes. Roberto: Filho de Cláudio. Alto, 18 anos, cabelos curtos e escuros, como os da mãe, olhos castanhos. Mariana: Filha de Cláudio. Estatura mediana, 16 anos, cabelos cumpridos, claros e cacheados, olhos castanhos. Danilo: 18 anos de idade. Estatura mediana, cabelos curtos, enrolados, olhos castanhos. Otávio: Irmão de Danilo. Tem 22 anos, é alto, magro, olhos verdes. Marilda: Mãe de Danilo. Senhora de 40 anos, baixinha e magra. Cabelos compridos, sempre presos, e olhos castanhos. Rita: Irmã caçula de Danilo. Tem 12 anos e devido à sua doença (fibrose cística) tem problemas de crescimento, não aparentando a idade que tem. Celina (Céu): Irmã de Danilo. Tem 17 anos é alta, magra, tem cabelos compridos e cacheados, e seus olhos são castanhos. Bianca: Amiga de Celina. Tem a mesma idade que ela. Matheus: Administrador recém-formado. Tem 23 anos, é alto, forte e bonito. Sandra: Mãe de Matheus. Hélio: Pai de Matheus. Paulo: Amigo de Matheus. Tem a mesma idade que ele. Carlos: Amigo de Matheus. Tem a mesma idade que ele. Celso: Sócio de Cláudio. Tem a mesma idade que ele. Geraldo: Supervisor de Matheus no escritório de contabilidade. Tem 37 anos Marcelo: Dono da Empresa de Contabilidade. Um senhor com mais de sessenta anos, alto e um tanto acima do peso. Tem os cabelos bem grisalhos. Patrícia: Colega de Matheus na Contabilidade. Jovem como ele. Ana Bela: Farmacêutica da empresa de Cláudio. Tem 34 anos. Amanda: Secretária de Cláudio na Empresa. Tem 25 anos. Edgar: Gerente da lanchonete. Tem 38 anos. Bernardo: Farmacêutico diurno da farmácia. Tem 35 anos. Eduardo: Dono da Farmácia, tio de Ana Bela. Júlio: Balconista da farmácia. Rapaz de 19 anos. Médico1: Médico de Cláudio Médico2: Médico que atende Celina. Enfermeira Repórter Cinegrafista

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Cena 1 (Cláudio parte 1)

Cláudio está no consultório médico. O consultório é amplo, com paredes muito brancas. Há uma janela ao fundo que permite que uma vasta claridade invada o ambiente. Há uma mesa com vários

objetos e uma cadeira, do outro lado há uma maca. Ele está sentado de frente para a mesa, esperando ansiosamente por algo. O médico está sentado em sua cadeira, segurando alguns papéis

e envelopes na mão.

Médico Gostaria, sinceramente, de ter melhores notícias para lhe dar.

Cláudio

Eu sei que é algo grave, doutor. Só diga logo o que eu tenho e como podemos consertar.

Médico Você tem câncer, Cláudio. Câncer de pulmão. Não está em estágio avançado, nós descobrimos a

tempo. Você terá que fazer uma cirurgia e, depois, tratamento com quimioterapia.

Cláudio Câncer de pulmão! (falando para si mesmo) Logo eu que nunca coloquei um cigarro na boca.

Médico

O cigarro aumenta as chances de uma pessoa ter câncer. Mas isso não quer dizer que uma pessoa que não fuma tenha suas chances reduzidas. Não há solução quando há uma predisposição genética.

Cláudio

Droga! (Cláudio bate na mesa do médico, que se espanta com sua atitude)

Médico A revolta não vai ajudá-lo. É preciso aceitar e fazer o tratamento corretamente.

Cláudio

Eu sei, doutor. Só que é muito difícil de aceitar.

Médico Não precisa se desesperar. Como eu disse, nós descobrimos a doença a tempo. As chances de

recuperação são grandes. É claro que o tratamento não é fácil, mas você nunca teve outros problemas graves de saúde e tenho certeza que o seu organismo suportará.

Cláudio

Como vou contar isso a minha esposa? Ela ficará arrasada.

Médico Mas tenho certeza de que o apoiará. E é disso que você precisa agora. (Após um breve pausa,

durante a qual Cláudio fica olhando para a aliança) Então, posso marcar a cirurgia?

Cláudio (Olhando para o médico) O mais rápido possível.

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Cena 2 (Danilo parte 1)

Uma casa humilde. Na cozinha há uma geladeira, um fogão, um armário e uma mesa com cinco cadeiras díspares, todos já antigos. Sobre a pia há um escorredor cheio de louça. A sala,

conjugada à cozinha, tem uma pequena estante com uma televisão de 21 polegadas e um sofá no outro canto, onde há um jovem sentado.

Otávio está sentado à mesa da cozinha. Tem à sua frente uma porção de papéis, recibos e receitas médicas. Ele faz o orçamento da casa.

Otávio

Que droga! Acho que vou ter que pedir mais algumas horas extras para conseguir pagar todos os remédios (falando para si mesmo).

Danilo, que estava sentado no sofá, levanta-se e senta-se na cadeira ao lado do irmão.

Danilo

Está tudo bem?

Otávio Tudo certo. É só o dinheiro que continua curto.

Danilo

Eu já disse a você que posso arrumar um emprego. Aí você não precisaria ficar se matando de tanto trabalhar.

Otávio

Eu já disse que está tudo bem. Você não precisa se preocupar. Sua única preocupação é a escola. Você está no último ano, deve se preocupar em estudar e ir pra faculdade.

Danilo

Mas você nem concluiu o colegial…

Otávio Nós já tivemos essa conversa antes. Enquanto for possível, eu quero que você e a Céu se

preocupem somente com os estudos. Eu não tive oportunidade, mas vocês têm. E não se preocupe com o dinheiro. Com algumas horas extras, eu consigo o dinheiro para o mês. E a Rita está

melhorando, então acho que logo ela não precisará mais dos remédios.

Danilo Ainda acho que eu podia ajudar…

Otávio

Chega dessa conversa. Eu quero ver você na faculdade. Agora, se não está fazendo nada de útil, vá pegar um livro e estudar um pouco.

Otávio faz sinal com o braço para que o irmão saia da cozinha, e volta a atenção aos seus

papéis. Danilo volta para a sala, pega um livro que está sobre o sofá e começa a lê-lo.

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Cena 3 (Matheus parte 1)

Matheus está em um escritório. Há uma grande mesa, uma cadeira e algumas prateleiras com livros e outros papéis. Ele está sentado em outra cadeira, de frente para a mesa. Ele espera por

alguém. Parece um pouco ansioso. Olha com freqüência para a janela no fundo do escritório onde é possível ver uma infinidade de prédios. Um homem entra pela porta atrás dele e senta-se na outra

cadeira.

Marcelo Então é isso, rapaz! O salário será realmente esse. (Marcelo entrega algumas folhas para Matheus) Aí também tem a lista de documentos necessários e a data do exame médico. Você pode começar na

segunda-feira.

Matheus Eu agradeço infinitamente a oportunidade. Me esforçarei ao máximo para aprender tudo o que eu

puder e trabalhar da melhor forma possível. O senhor não se arrependerá por ter me escolhido.

Marcelo Eu acredito que não haverá arrependimentos. (pegando uma folha de papel de cima da sua mesa)

Você cursou uma ótima faculdade e tem ótimas referências do seu período de estágio.

Alguém bate na porta e entra. É Geraldo.

Geraldo O senhor me chamou?

Marcelo

Sim. Este é Matheus. Ele é o nosso novo funcionário. Matheus, este é Geraldo. Ele será seu supervisor. Qualquer dúvida, problema ou dificuldade que encontrar, deverá reportar a ele.

Matheus

(estendendo a mão a Geraldo) Será um prazer trabalhar com o senhor.

Geraldo: Certo, rapaz. (correspondendo o cumprimento) Você vai gostar muito de trabalhar aqui.

Marcelo

Agora você já pode ir, Matheus. (Marcelo se levanta e aperta a mão do rapaz) Nos vemos na segunda-feira.

Matheus sorri e sai da sala.

Cena 4 (Cláudio parte 2)

Um escritório grande, uma mesa e duas cadeiras. Sobre a mesa, vários porta-retratos. Nos cantos, vasos com plantas. Cláudio está sentado em uma das cadeiras, analisando vários papéis, quando a

porta abre e Celso entra.

Celso Queria falar comigo?

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Cláudio

Sim. Pode se sentar. O assunto é grave.

Celso Você não parece bem. (Celso senta-se na outra cadeira) Está acontecendo alguma coisa? Você foi

ao médico como eu falei.

Cláudio Sim, eu fui ao médico já faz um tempo. Já fiz os exames e já tenho um diagnóstico. É por isso que

eu te chamei aqui.

Celso Pode falar, sou todo ouvidos. Você está doente? É algo grave?

Cláudio

Eu tenho câncer, Celso. Preciso fazer uma cirurgia e depois um tratamento com quimioterapia. Isso significa que terei que ficar afastado da empresa por um bom tempo.

Celso

Eu sinto muito. Espero que você melhore logo. Posso lhe ajudar em alguma coisa?

Cláudio Preciso que você fique responsável pela empresa enquanto eu estiver fora.

Celso

Isso será uma grande honra para mim.

Cláudio Nós fomos criados juntos, meus pais o consideravam um filho e sei que posso confiar em você.

Talvez eu consiga vir aqui de vez em quando, mas isso vai depender do desenrolar do tratamento. Portanto, conto com você para cuidar de tudo na minha ausência. Sei que não entende muito de

farmácia, mas estou deixando Ana Bela como farmacêutica responsável, você pode tirar qualquer dúvida com ela. Tudo o que eu quero é que você me apresente relatórios mensais sobre o

funcionamento da empresa.

Celso Pode contar comigo. Vou cuidar da empresa como se fosse minha. Você precisa cuidar de sua saúde

agora, não pode ficar se preocupando com outras coisas.

Cláudio Nesta pasta (pegando uma pasta da mesa e entregando-a a Celso) estão todos os documentos que você precisa para administrar a empresa. Você terá que cuidar dos pagamentos dos funcionários e dos fornecedores, além de manter constante contato com os clientes. Com o resto não há o que se

preocupar, eu tenho uma empresa que cuida da contabilidade e das questões legais. Você só tem que se inteirar de tudo e me manter informado.

Celso:

Vou fazer o meu melhor.

Cláudio Agora você já pode ir. Preciso ajeitar algumas coisas por aqui antes de tirar minha licença.

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Celso sai da sala carregando a pasta. Cláudio pega um dos porta-retratos de sua mesa, com a foto

de sua família, e afunda na cadeira, colocando a mão sobre o peito.

Cena 5 (Danilo parte 2)

Um quarto humilde, com uma cama de casal e uma de solteiro. Há um pequeno guarda-roupa e um rádio no chão, entre as camas. Marilda está sentada na cama de casal, sua filha Rita está deitada.

A menina está tendo uma crise respiratória. A mãe tenta ajudá-la.

Marilda Se acalma, minha querida. Tenta respirar devagar. Tudo vai ficar bem.

A garota coloca a mão sobre o peito e tenta respirar mais forte, tossindo várias vezes.

Rita

Minha cabeça está doendo muito, mamãe.

Marilda Eu sei, querida. Tenta ficar calma, tudo vai ficar bem.

Marilda abraça a filha, tentando conter suas próprias lágrimas. Danilo aparece na porta do

quarto.

Danilo Mãe, você ainda não fez o almoço. Eu estou faminto. (ao perceber que algo está errado) O que está

acontecendo?

Danilo se aproxima da cama e senta-se ao lado da irmã.

Marilda Ela está tendo outra crise. E os remédios acabaram. Eu não tenho nada para dar a ela.

Danilo

Me dá o dinheiro que eu vou lá na farmácia.

Marilda Não tem dinheiro. Seu irmão não deixou nada e eu não tenho mais nada. Não há como comprar

remédio algum.

Danilo Eu falo com o farmacêutico. Eu dou um jeito.

Marilda

Não há jeito. Nós já estamos devendo muito. Ele não pode nos ajudar mais. Fique aqui com ela que eu vou fazer um chá para acalmá-la. Seu irmão recebe hoje, nós só temos que esperá-lo. Tudo vai

ficar bem. (e voltando-se para a menina) Você me ouviu, querida? Tudo vai ficar bem.

Rita Eu sei, mamãe.

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Marilda levanta-se da cama e vai para a cozinha. Danilo se acomoda melhor na cama e abraça a irmã, acariciando seu rosto, enquanto ela ainda tenta respirar.

Cena 6 (Matheus parte 2)

Matheus está em uma lanchonete. Está sentado em uma das mesas, junto com dois amigos, Paulo e Carlos. Eles estão rindo e bebendo cerveja.

Paulo

Bom, ao menos um de nós deu sorte. Eu até agora não consegui emprego. Em compensação, o que eu já fiz de entrevistas…

Carlos

Talvez você possa colocar isso no seu próximo currículo: Vasta experiência em entrevistas.

Os dois riem. Matheus permanece sério.

Matheus Eu já disse a vocês que só conseguirão alguma coisa quando aprenderem a adular as pessoas certas. Eu só consegui esse emprego porque o meu supervisor de estágio me adorava. Depois que li aquela carta de recomendação, percebi que valeu a pena ter suportado tudo o que suportei daquele idiota.

Carlos

Eu não tenho esse sangue frio. Não suporto humilhação de forma alguma.

Matheus Desse jeito nunca vai deixar de ser office-boy.

Paulo

Isso não faz diferente agora. Nós viemos aqui para comemorar o seu novo emprego, não para ficar discutindo sobre os nossos. Eu vou buscar mais algumas cervejas.

Paulo se levanta da mesa e caminha em direção ao balcão. Na mesa em frente à deles há duas

jovens sentadas. Uma delas é Celina, a outra é sua amiga Bianca. Celina está sentada exatamente em frente a Matheus. Ela sorri para ele. Ele sorri de volta e ergue o copo. Ela retribui o

cumprimento. Carlos olha para as garotas e depois para Matheus.

Carlos Como um filho-da-mãe como você pode ser tão sortudo?

Matheus

Quem sabe um dia você aprende.

Carlos ri e bate nas costas do amigo. Paulo volta com as cervejas e eles continuam a conversar.

Cena 7 (Cláudio parte 3)

Cláudio está deitado numa maca em um quarto de hospital. Sua esposa Marta está ao seu lado. Ele está muito nervoso.

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Cláudio E se algo der errado? Se eu não sobreviver, quero que você continue com a sua vida. Cuide bem das

crianças e…

Marta Nada vai dar errado. (parecendo zangada) Você não vai morrer. Pare de falar asneiras. Tudo vai dar certo. Você ainda vai ver seus filhos se formando na faculdade e vai conhecer os seus netos.

Não fale asneiras, (agora segurando o choro) pare de falar essas coisas horríveis…

Cláudio Tudo bem! (segurando as mãos da esposa) Eu prometo que vou ficar bem. Vou viver para

continuar cuidando de vocês. (beijando as mãos da esposa) Eu te amo, amo muito. E é por isso que vou cumprir minha promessa.

Marta

Se atreva a não cumprir e você verá como vou ficar zangada. (Marta, esboçando um sorriso, beija o marido.)

Duas enfermeiras entram no quarto.

Enfermeira

Com licença. Está na hora. Precisamos levá-lo.

As enfermeiras se colocam uma de cada lado da cama e começam a empurrá-la para fora do quarto.

Marta

Eu estarei aqui mesmo, esperando você voltar. (Cláudio acena para ela antes que a maca saia completamente do quarto) Eu espero que você volte. (Marta cochicha para si mesma)

Cena 8 (Danilo parte 3)

Danilo está sentado à mesa, jantando. Otávio chega ao cômodo e se larga em uma das cadeiras, jogando sua mochila no chão.

Danilo

Está tudo bem?

Otávio Como sempre esteve.

Danilo

As coisas nunca estiveram bem de verdade para nós.

Otávio Eu sei. Eu tento fazer o meu melhor.

Danilo

Não estou reclamando. Valorizo muito o que você faz. E quero muito lhe ajudar, mas você não deixa. Você também é filho, sabia? Você não é o nosso pai. Você deveria nos deixar ajudar.

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Otávio Está tudo bem. (tentando parece confiante) Acontece que eu estourei o meu limite de horas extras

na fábrica. E não consegui o dinheiro suficiente para zerar nossas dívidas. (agora se exaltando) Mais uma vez, vamos entrar o mês devendo para os outros. Eu não consigo pagar as nossas dívidas. E a Rita está sempre doente, sempre precisando de remédios, sempre sofrendo. E eu não posso fazer

nada com relação a isso.

Danilo Ninguém pode e ninguém tem culpa. Ela nasceu assim. Não é culpa de ninguém.

Otávio

Eu queria poder fazer mais.

Danilo Eu posso fazer mais. Eu posso arrumar um emprego.

Otávio apertou o braço do irmão e aproximou o seu rosto do dele.

Otávio

Eu vou dar um jeito nisso. Já cansei de falar que você tem que estudar. Estudar e não deixar que eu me arrependa do investimento que estou fazendo em você. Enquanto eu der conta, você estuda. Se

um dia eu precisar de ajuda, e espero que não precise, você ficará sabendo.

Otávio largou o braço do irmão, que parecia muito assustado, pegou a mochila do chão e foi para o quarto. Danilo, um tanto irritado, bateu a mão na mesa, derrubando no chão o garfo que usava.

Cena 9 (Matheus parte 3)

Matheus está em sua mesa no escritório. Sua mesa fica no fundo do escritório. Ele está trabalhando com alguns papéis e digitando algo no computador. Geraldo se aproxima.

Geraldo

Matheus, você tem um minuto?

Matheus Claro. Eu fiz algo de errado?

Geraldo

Não. Está tudo perfeito. Na verdade eu vim até aqui lhe fazer uma proposta.

Matheus (estranhando) Proposta?

Geraldo

Sim. (Geraldo puxou uma cadeira próxima e sentou-se junto à mesa de Matheus) Você já está trabalhando aqui há algumas semanas e eu percebi que você é muito esforçado…

Matheus

Tento fazer o melhor que posso, senhor.

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Geraldo Pois é. Mas também percebi que você é um tanto ambicioso…

Matheus

Há algum problema com isso, senhor? (sempre na defensiva) Pois eu acho que ambição pode ser uma qualidade…

Geraldo

Não, eu sei. Escute rapaz, me deixa terminar de falar. Acho que você é ambicioso e inteligente, e acho que você ainda pode ir muito longe.

Matheus

E é o que eu pretendo, senhor. Não estou nesse mundo passeio. Sei bem o que quero.

Geraldo Por isso mesmo acho que você é o homem para o trabalho. Preciso de alguém que me ajude em um

trabalho extra.

Matheus Trabalho extra?

Geraldo

Sim. Não é nada demais. Eu tenho dois ou três clientes que gostariam de um serviço extra, algo além do que o chefe faz aqui.

Matheus

Algo ilegal?

Geraldo O que é isso, meu rapaz? (fingindo indignação) Não é nada de mais. Nós só precisamos fazer algumas alterações em alguns documentos. São questões de impostos, sabe como é. Eles não

querem deixar que o governo leve embora uma parcela tão grande.

Matheus Sei. (desconfiado) E tudo o que eu tenho que fazer é lhe ajudar a alterar alguns documentos.

Geraldo

Apenas isso. E sem deixar que o chefe saiba. Ele é contra essas coisas.

Matheus E o que eu ganho com isso?

Geraldo

Isso nós podemos discutir. Mas tenho certeza de que você não se arrependerá se aceitar minha proposta.

Matheus

Eu aceito. Não tenho nada a perder, certo? (ainda desconfiado)

Geraldo Não, você só tem a ganhar trabalhando comigo.

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Geraldo aperta a mão de Matheus e se levanta, indo embora. Matheus observa-o se afastar, ainda pensativo.

Cena 10 (Cláudio parte 4)

Cláudio está sentado em uma maca, em um quarto de hospital. Ele tem nas mãos uma espécie de balde, que segura com certa dificuldade. Sua esposa está em pé, ao seu lado. Ele está passando mal

e vomita na lata. Marta passa as mãos em suas costas.

Cláudio Acho que agora acabou. (deixando que Marta tira o balde de suas mãos e a coloque no chão.)

Definitivamente coloquei para fora todo o pouco almoço que comi.

Marta Você está melhor? (Marta entrega ao marido uma toalha e um copo de água)

Cláudio

Acho que está tudo bem, por enquanto. Não queria que você me visse assim.

Marta Não posso deixar de te ver só porque você está assim. Pelo contrário, prefiro estar aqui para ajudá-

lo.

Cláudio Como estão nossos filhos?

Marta

Querendo muito te ver.

Cláudio Não quero que eles me vejam assim. Gostaria que ninguém me visse assim.

Marta

Todo mundo tem os seus problemas em determinada altura da vida. Você não pode se esconder por causa disso.

Cláudio

Eu sei. Só estou um pouco cansado.

Marta As crianças querem vê-lo e eu vou trazê-las amanhã, depois da escola.

Cláudio

Tudo bem, eu sinto muita falta deles.

Marta O Celso veio te ver?

Cláudio

Ainda não. E não sei quando ele virá. Sinceramente, não estou preocupado com isso agora. Você acha que o meu cabelo está caindo? (colocando as mãos sobre a cabeça e apontando-as para a

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esposa). A enfermeira disse que está tudo bem, que eu tenho sorte, que talvez seja uma exceção, mas eu tenho a sensação de que meu cabelo está caindo.

Marta

(sorrindo, aproxima-se do marido e passa a mão por seus cabelos) Você não está mais careca do que estava antes. (rindo) Seu cabelo está todo aí.

Cláudio

Isso é bom. Talvez eu tenha mesmo sorte.

Marta beija o rosto do marido e faz com que ele se deite, sentando-se ao seu lado na cama.

Cena 11 (Danilo parte 4)

Marilda está sentada no sofá, assistindo televisão com Danilo. Otávio chega em casa. Ele parece muito abatido. Entra sem falar nada e senta-se no sofá ao lado da mãe.

Marilda

Está tudo bem, meu filho? (passando o braço por cima do seu ombro) Você parece cansado.

Otávio É só cansaço mesmo, trabalhei muito hoje.

Marilda

Você quer que eu esquente a sua janta?

Danilo (levantando-se rápido do sofá) Deixa que eu esquento, mãe. Você também está cansada.

Danilo vai para a cozinha. Otávio vira-se para melhor encarar a mãe.

Otávio

Como está a Rita?

Marilda Por hora, ela está bem. Quando conseguimos manter a medicação ela fica bem.

Otávio

E onde está a Céu?

Marilda (parecendo cansada) Para variar ainda não chegou. Deve estar na casa de alguma amiga. Ela

prefere ficar com os outros do que com a gente.

Otávio Tenho outras coisas pra me preocupar, não posso ficar pensando nela o tempo todo. Se ela quer

ficar com as amigas, que fique.

Marilda Está tudo bem mesmo, querido?

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Otávio Não, mamãe. Ouvi um boato hoje de que a fábrica anda mal das pernas. Parece que vai haver

demissões.

Marilda Isso é muito ruim.

Otávio

Isso é péssimo. Eu não posso ser demitido. Como nós faremos para pagar as contas? Como vamos conseguir comprar os remédios da Rita?

Marilda

Ainda não é hora para desespero, meu filho. Você ainda tem o seu emprego. E se algo acontecer, tenho certeza que você logo arruma outro trabalho. Você é esperto, inteligente, esforçado. Alguém

vai te dar uma nova chance.

Otávio Não sei, mãe. As coisas estão realmente difíceis.

Marilda

Não esquente a cabeça com isso agora, guarde suas energias.

Marilda abraça o filho. Próximo à porta, Danilo escuta a conversa. Agora, ele também parece muito preocupado.

Cena 12 (Matheus parte 4)

Matheus está sentado em sua mesa, trabalhando, quando Geraldo aproxima-se novamente. Ele traz dois envelopes grossos, cheios de documentos. Coloca os documentos sobre a mesa de Matheus e

senta-se em uma cadeira ao seu lado.

Geraldo Trouxe mais alguns papéis para você.

Matheus

E o que você quer que eu faça agora?

Geraldo O mesmo que da outra vez. É só dar uma mascarada nesses números de modo que os ganhos fiquem

menores e o gastos fiquem maiores, sem que ninguém perceba.

Matheus Eu posso fazer isso. Mas agora já não estou mais certo de que seja apenas uma questão de

impostos.

Geraldo Claro que é, Matheus! (mais uma vez se mostrando indignado) Não fazemos nada ilegal aqui. É

apenas um protesto contra as taxas abusivas que o governo cobra.

Matheus Já que estou arriscando meu pescoço por isso, quero uma parcela maior.

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Geraldo

Mas eu mesmo não ganho quase nada por isso…

Matheus Quero metade do que você estiver ganhando.

Geraldo:

Você acabou de entrar no esquema e já quer ganhar a mesma quantia que eu? (realmente indignado, alterando a voz)

Matheus

É melhor você falar mais baixo se quer que esse esquema continue. (Geraldo olha ao redor e percebe que Patrícia, uma moça que trabalha numa mesa próxima, está olhando para eles. Ela

logo desvia o olhar) Eu disse que não vim a esse mundo a passeio. Você sabia como eu era quando me envolveu nisso. Tudo o que eu quero é uma parcela justa, já que sou quem faz a maior parte do

trabalho.

Geraldo Está certo! Faça a sua parte e depois acertamos isso.

Geraldo levanta-se da cadeira, muito irritado, e caminha de volta para a sua sala. Matheus o

observa, com um leve sorriso no rosto.

Cena 13 (Cláudio parte 5)

Cláudio já está em casa. Está deitado em sua cama, lendo um livro em seu quarto. Celso bate à porta e entra. Ele carrega um envelope nas mãos.

Celso

E aí? Como você está?

Cláudio Me recuperando. Bem melhor do que estava há algumas semanas atrás. E você?

Celso

Eu vou bem, obrigado por perguntar.

Cláudio E a empresa?

Celso

É sobre isso mesmo que eu vim lhe falar. Trouxe os balanços para que você veja. (Celso entrega o envelope a Cláudio, que se acomoda melhor na cama para ler os papéis.) As coisas vão mal. O mercado está passando por uma crise e a empresa foi pega no meio disso tudo. Os fornecedores

aumentaram os preços e perdemos uma parcela significativa de compradores.

Cláudio Estava tudo bem quando eu deixei a empresa. Como as coisas chegaram nesse ponto?

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Celso O mercado é imprevisível. Eu fiz o melhor que pude, mas não pude conter a avalanche. Eu ainda

estou tentando manter as coisas nos eixos, mas está um pouco complicado.

Cláudio Você conversou com o pessoal da contabilidade? Será que não há um jeito de conter esse estrago?

Celso

Já consultei o contador e estou fazendo o melhor possível. Acho que conseguiremos colocar a empresa em ordem. Mas até lá, talvez seja preciso demitir pessoal. Eu não queria, mas precisamos

reduzir custos.

Cláudio Faça o que for possível para consertar as coisas.

Celso

Eu farei, não há com o que se preocupar. Só vim lhe colocar a par das coisas porque você me pediu, mas logo as coisas voltarão ao normal. (Celso recolhe os documentos da mão de Cláudio) Você não deve se preocupar com isso agora; deve se preocupar com sua saúde. Já sabe quando

poderá voltar ao trabalho?

Cláudio O médico pediu que ficasse em casa por mais alguns dias, acho que duas semanas no máximo.

Assim que ele me liberar, eu voltar para a empresa.

Celso Isso é muito bom. Todos o aguardam ansiosamente. A sua secretária inclusive pediu que eu lhe

desejasse melhoras, quando soube que eu vinha te ver.

Cláudio Diga a ela que agradeço a atenção.

Celso

Acho que é tudo por agora. Vou voltar para a empresa e deixar você descansar. Quanto mais descansar mais cedo poderá voltar ao trabalho, certo?

Cláudio

Certo. (ensaiando um sorriso)

Celso apertou a mão de Cláudio e saiu do quarto. Cláudio fechou a cara, parecendo muito desconfiado.

Cena 14 (Danilo parte 5)

Marilda está na cozinha preparando o jantar quando Otávio entra. Ele joga a mochila no chão, assustando a mãe.

Marilda

Tavinho, o que aconteceu?

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Otávio O pior, mãe. Eu fui demitido. Eu e mais dez. Estão fazendo uma reestruturação na empresa e eu fui

uma das peças descartadas desta vez.

Marilda Meu Deus. (Marilda larga a faca que estava usando e senta-se numa cadeira próxima ao filho) O

que nós vamos fazer agora?

Otávio Eu não sei. Já faz algum tempo que estou distribuindo currículos, mas até agora não tive resposta. É duro conseguir algo quando não se terminou o colegial. Eu realmente não sei o que vamos fazer.

O pouco dinheiro que eu vou ganhar com a demissão não vai durar muito tempo.

Marilda A gente não pode se desesperar agora. Nós vamos dar um jeito. Se for preciso, eu volto a trabalhar

e…

Otávio E quem cuida da Rita, mãe?

Marilda

A gente dá um jeito. Talvez a Céu e o Danilo se revezem cuidando dela.

Otávio A Céu nunca está em casa e o Danilo, por mais boa vontade que tenha, não entende nada de cuidar

de uma criança doente.

Danilo entra na cozinha ao escutar o seu nome.

Danilo O que é eu não entendo?

Marilda

Seu irmão foi demitido.

Otávio (zangado) Não precisava contar para ele agora.

Marilda

Precisava sim. Seus irmãos já são bem grandinhos para compreender a situação. Você não pode protegê-los para sempre. Você não é pai dele, não pode tomar toda a responsabilidade para si.

(voltando-se para Danilo) Seu irmão perdeu o emprego. E agora não sabemos como vamos pagar as contas.

Danilo

Eu posso arrumar um emprego. Eu já disse isso a ele milhares de vezes. Eu posso ajudar nas despesas.

Otávio

Eu dou conta. Não preciso de ajuda…

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Marilda Deixa de ser orgulhoso, menino. Seu irmão já passou de idade de ajudar. Ele pode fazer isso.

Danilo

Eu posso e quero ajudar.

Otávio Está certo! (grita a fim de acabar com a discussão) Você pode procurar emprego, mas, assim que

eu conseguir trabalho e as coisas voltarem ao normal, você volta a se concentrar só nos seus estudos.

Danilo

Tudo bem. Como você quiser.

Marilda Nós vamos ficar bem, filho. (Marilda abraça Otávio e beija sua testa) Nós sempre ficamos bem.

Marilda volta à atenção as panelas. Danilo bate no ombro do irmão e sai da cozinha. Otávio tomba

a cabeça sobre a mesa, desolado.

Cena 15 (Matheus parte 5)

Um restaurante elegante. Várias mesas, a maioria ocupada. Os garçons caminham entre as mesas, atendendo os clientes. Matheus entra no restaurante, acompanhado de Celina. O garçom lhes

indica uma das poucas mesas desocupadas. Eles se sentam. O garçom lhes entrega o cardápio.

Celina Esse lugar é muito lindo.

Matheus

É mesmo um ótimo lugar para jantar.

Celina Mas deve ser muito caro, não? (olhando para o cardápio)

Matheus

Um pouco. Mas eu posso pagar.

Celina Você está ganhando bem no escritório?

Matheus

As coisas estão melhorando. Estou trabalhando direito, fazendo tudo o que meu chefe precisa. Eles gostam de mim por lá. Acho que posso ser promovido logo.

Celina

Isso é muito legal. (olhando ao seu redor, reparando nos detalhes do restaurante)

Matheus Eu sempre faço o melhor que posso para as garotas com que eu saio.

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Celina

Há outras garotas além de mim? (voltando rapidamente o olhar para ele, totalmente indignada)

Matheus E se houver? (mostrando-se indiferente à reação dela) Nunca prometemos exclusividade, Celina.

Celina

Eu sei. (se acalmando) Eu sei disso. Não estou cobrando nada. Só fiquei curiosa.

Matheus Você não quer saber de nada. Agora, você vai pedir ou não?

Celina

Claro, claro que vou!

Celina baixa o rosto, olhando para o cardápio. Ela parece chateada. Matheus sorri, satisfeito, enquanto olha para o seu cardápio.

Cena 16 (Cláudio parte 6)

Novamente o consultório médico. O médico está sentado em sua cadeira, olhando os exames. Cláudio bate à porta e entra.

Cláudio

Bom dia, doutor.

Médico Bom dia, Cláudio. Muito bom vê-lo aqui.

Cláudio

E eu espero que as notícias que você tem pra me dar sejam boas também.

Médico: Ótimas notícias. Seus últimos exames chegaram.

Cláudio

(sentando-se na cadeira em frente ao médico) E o que eles dizem, doutor. Eu estou bem? Estou pronto para voltar ao trabalho?

Médico

Você está ótimo. O Câncer entrou em remissão. Tudo está sob controle. Você vai poder voltar ao trabalho logo.

Cláudio

Isso é ótimo, doutor. Já estava enlouquecendo por ter que ficar em casa. Sinto muita falta do trabalho na fábrica.

Médico

Eu disse que você ia superar tudo isso, não disse?

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Cláudio

(sorrindo) Disse. E quando eu poderei voltar de vez ao trabalho?

Médico Eu gostaria que você ainda aguardasse alguns dias, gostaria de acompanhar o seu progresso de

perto. E quando você voltar à sua vida normal, nada de excessos, certo? Apesar de estar tudo bem, não acredito que você já esteja pronta para correr uma maratona, por exemplo. É preciso uma certa

moderação.

Cláudio A Marta jamais deixaria que eu me excedesse. Ela é mais severa que uma enfermeira de verdade.

Médico

Muito bem. Nos vemos daqui alguns dias e, quem sabe, eu finalmente poderei autorizar a sua volta ao trabalho.

Cláudio

Obrigado por tudo, doutor. Nos vemos daqui a alguns dias.

Cláudio levanta, aperta a mão do médico e sai da sala.

Cena 17 (Danilo parte 6)

Danilo está sentado no sofá assistindo televisão. Já passa da meia-noite. Ele está quase cochilando quando a porta é aberta e Otávio entra.

Danilo

Onde você estava? A mamãe estava preocupada.

Otávio O que você está fazendo acordado até essa hora? Não tem aula amanhã?

Danilo

Tenho aula sim, mas estou falando sobre você. Onde você estava?

Otávio Trabalhando.

Danilo

Você conseguiu um emprego?

Otávio Não, estou fazendo um bico.

Danilo

Você desistiu de procurar emprego? Eu não vejo você sair para distribuir currículos.

Otávio Não, eu não desisti de arrumar emprego. Mas essa família tem que sobreviver, então eu não posso

ficar escolhendo trabalho. E eu não tenho que ficar lhe dando satisfações.

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Otávio dá as costas ao irmão, vai até a estante e pega uma caixinha de madeira. Tira um punhado

de notas do bolso, separa metade e coloca dentro da caixa. Danilo observa os movimentos do irmão.

Danilo

Não é muito dinheiro para um bico? No que é que você está trabalhando?

Otávio Eu já disse que não lhe devo satisfações. Agora vá dormir que já passou da sua hora.

Otávio desliga a televisão e sai da sala, deixando Danilo sozinho no escuro.

Cena 18 (Matheus parte 6)

Um escritório pequeno, uma mesa, três cadeiras, alguns fichários de arquivos. Geraldo está sentado, mexendo no computador. Alguém bate à porta.

Geraldo

Entre.

Matheus abre a porta se aproxima de Geraldo, sentando na cadeira à sua frente.

Matheus Você queria falar comigo.

Geraldo

Sim. Tenho mais uma empresa para lhe passar. (Geraldo procura entre os arquivos espalhados sobre sua mesa. Encontra a pasta que procura e a entrega à Matheus) Esse caso aqui é simples. As

alterações são mínimas, os valores estão aí dentro.

Matheus pega a pasta, abre e dá uma olhada nos documentos em seu interior.

Matheus Esse aqui sim, são questões de impostos. Fácil, trago pra você no fim da tarde.

Geraldo

Ótimo. Então você já pode ir. (Geraldo volta a atenção para o computador)

Matheus Ainda não. Eu estava pensando se já não é dia de pagamento.

Geraldo volta o olhar para ele e o encara. Matheus o encara de volta. Geraldo abre um das gavetas de sua mesa, e tira algumas notas de alto valor, entregando-as a Matheus.

Geraldo

Você é muito pior que eu. Se não fizesse o serviço tão bem já teria arrumado um jeito de me livrar de você.

Matheus

Tudo o que sei devo a você. Sou apenas um discípulo. (guardando o dinheiro no bolso)

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Geraldo

Ah, (irritado) faça o favor de sair da minha sala.

Geraldo novamente volta a atenção ao computador. Matheus sorri, se levanta e sai da sala, carregando a pasta.

Cena 19 (Cláudio parte 7)

Cláudio chega em casa afoito. Entra na sala, chamando por sua esposa.

Cláudio Marta! Marta!

A mulher aparece correndo, secando as mãos em um pano de prato.

Marta

O que houve? Por que essa gritaria?

Cláudio Onde estão as crianças?

Marta

Ainda não chegaram da escola.

Cláudio Eu posso voltar a trabalhar na segunda, querida. O médico me liberou.

Marta

Isso é ótimo. Já não estava agüentando mais você por aqui o tempo todo. Sinto muita falta de você trabalhando.

Cláudio

Eu também. Preciso volta à empresa e tentar dar um jeito na situação. Agora já não tenho certeza se fiz uma boa escolha colocando o Celso no comando. Acho que ele não é tão bom administrador

quanto pensei que fosse.

Marta As coisas vão voltar ao normal. É só questão de tempo. Você voltou ao normal, não é?

Cláudio

É. Eu posso consertar as coisas.

Barulhos do lado de fora da casa. O portão é aberto.

Marta Eles estão chegando. Vou voltar para a cozinha. A Yolanda está fazendo uma lasanha para nós.

Marta beija o marido e volta para a cozinha, antes que os jovens abram a porta.

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Cena 20 (Danilo parte 7)

Danilo está em pé, andando pelo seu quarto. Nesse cômodo há duas camas de solteiro e um guarda-

roupa menos que o do outro quarto. Ele está muito ansioso. Ele ouve a voz de Otávio.

Otávio Onde está todo mundo? (Otávio alcança o quarto, parando na porta.) Eu trouxe pizza. Onde estão

a mãe e a Rita? Elas não estão no quarto delas.

Danilo A Rita teve outra crise. Mamãe pediu carona ao vizinho para levá-la ao hospital. Ela ligou agora

pouco, ainda não conseguiram ser atendidas. Eu fiquei aqui para avisá-lo. A Ritinha está muito mal.

Otávio Calma aí. Me deixa pensar. (Otávio olha em volta, buscando uma solução) Vamos levá-la a uma

clínica particular.

Danilo Com que dinheiro?

Otávio corre até o seu armário, abre uma das portas e tira uma caixa de sapato do alto. Abre a

caixa e tira algumas notas de grande valor. Danilo se aproxima e vê que dentro da caixa há uma arma. Ele pega a arma antes que o irmão perceba.

Danilo

Desde quando você tem uma arma?

Otávio (Assustado ao perceber o gesto do irmão, que olha para a arma e não para ele) Coloca isso aqui.

Ninguém mandou mexer em nada.

Otávio tira a arma das mãos do irmão e coloca-a de volta na caixa, guardando a caixa de volta no guarda-roupa e fechando a porta. Danilo o observa.

Danilo

Desde quando você tem uma arma?

Otávio É apenas para proteção, não é nada de mais. (voltado para o guarda-roupa, sem olhar para o

irmão)

Danilo Como é que você conseguiu uma arma? Que tipo de trabalho você tem agora? Está fazendo

assaltos?

Otávio Não! (virando-se para o irmão) Eu não estou tirando nada de ninguém.

Danilo

Então o quê?

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Otávio

Você não precisa saber.

Danilo Preciso saber quando tem uma arma na nossa casa. Você está mexendo com drogas ou coisa

parecida?

Otávio permanece em silêncio. Olha para os lados, tenta evitar o olhar do irmão.

Danilo É isso, não é? Você está vendendo drogas?

Otávio

Não me julgue. Eu só fiz o que era necessário para sustentar esta família. Eu não conseguia emprego e não podia esperar mais. Tudo o que eu faço é conseguir o que aqueles filhinhos de papai querem. Eu não me importo em como eles estragam suas vidas desde que eu tenha como manter a

minha família.

Danilo Mas, Otávio, você sempre foi contra essas coisas.

Otávio

Eu não uso, tá legal? E nós não temos tempo para ficar discutindo isso.

Otávio coloca o dinheiro na mochila e sai do quarto. Danilo, ainda assustado, o acompanha, apagando a luz do cômodo.

Cena 21 (Matheus parte 7)

Matheus e Celina estão no quarto dele. Estão deitados na cama, debaixo dos lençóis. Matheus presta atenção na televisão, que está ligada; Celina olha para o teto.

Celina

Minha família nunca foi muito normal, sabe? Meu pai largou a gente logo depois que a minha irmã nasceu. Então minha mãe teve que trabalhar dobrado para sustentar nós quatro. Ela é enfermeira.

Acontece que minha irmã nasceu doente, e conforme ela crescia, foi ficando pior. Minha mãe precisou largar o emprego para cuidar da minha irmã em tempo integral e o meu irmão mais velho

começou a trabalhar para sustentar a gente.

Celina virou-se e abraçou Matheus.

Celina Minha irmã tem uma doença chamada fibrose cística. É um negócio muito chato. Ela tem crises constantes. Toma um monte de remédios caros e nunca tem os remédios no posto de saúde.

Então meu irmão tem que comprá-los. E é por isso que nunca sobra dinheiro para nada. (Celina faz uma pausa, olhando para o vazio) Eu só queria ter uma família normal…

Celina olha para o rosto de Matheus e percebe que ele está vidrado na televisão.

Celina

Você ouviu o que eu disse?

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Matheus (sem tirar os olhos da televisão) Você não vai para sua casa, não?

Celina

(magoada) Eu pensei em passar a noite aqui com você de novo. É perigoso ir pra casa agora. E eu não gosto de ficar na minha casa, não me sinto bem lá.

Matheus

Então fica quietinha que eu estou assistindo o noticiário, tá?

Matheus beija a mão de Celina, sem olhar para o seu rosto. Celina, muito chateada, vira para o outro lado da cama e fecha os olhos, tentando adormecer.

Cena 22 (Cláudio parte 8)

Cláudio chega na ante-sala de seu escritório na empresa. Amanda, a secretária está sentada em sua mesa, trabalhando no computador.

Cláudio

Amanda…

Amanda Seu Cláudio, que bom que o senhor voltou! O senhor está de volta, não está?

Cláudio

Completamente.

Amanda Isso é muito bom.

Amanda levanta-se e aperta a mão do patrão.

Cláudio

Estou muito feliz por voltar. O Celso está ocupando minha sala? Porque eu passei pela sala dele e não o encontrei.

Amanda

Ele estava ocupando sua sala sim, senhor. Mas não aparece por aqui já faz três dias. Eu liguei para a casa dele e ninguém atendeu. Eu não sei o que está acontecendo.

Cláudio

Eu o deixo no comando da empresa e ele desaparece por três dias? O que há com esse homem?

Amanda Eu não sei. Mas para falar a verdade, ele vem agindo estranhamente nos últimos dias.

A conversa dos dois é interrompida por Ana Bela, entre entra no recinto.

Ana Bela

Cláudio, você realmente está aqui. Quando me disseram lá embaixo que viram você chegar, eu subi correndo.

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Cláudio

O que há, Ana Bela?

Ana Bela Eu não sei, Cláudio. As coisas não parecem ir bem por aqui. Eu não sei o que está acontecendo, mas o pagamento dos fornecedores está atrasado. Alguns deles já cancelaram o fornecimento, não estão vendendo para nós. A nossa linha de produção está uma bagunça. Tive que cancelar a fabricação de alguns produtos da linha de banho, pois não temos matéria-prima nem funcionários, já que o Celso

demitiu quase metade deles.

Cláudio Como a situação chegou nesse ponto? Você chegou a conversar com o Celso?

Ana Bela

Várias vezes. E todas as vezes ele disse que estava resolvendo a situação. Mas não resolveu nada. Quando eu disse que talvez fosse uma boa idéia ligar para você, ele disse que não deveríamos

incomodá-lo, que você estava tratando de sua saúde. Inclusive, ele me ameaçou de demissão, caso eu continuasse a questionar a sua autoridade. Estou feliz que você esteja de volta, assim, quem sabe,

pode dar um jeito nele.

Amanda Senhor, desculpa interromper, mas muitos dos nossos representantes comerciais ligaram

reclamando. Os clientes queriam produtos que a fábrica já não estava dando conta de fazer. E por causa disso, deixavam de comprar outras coisas. Perdemos muitos clientes com isso.

Ana Bela

E os salários estão atrasados. Todos os salários.

Amanda : Estamos no meio do mês e eu ainda não recebi o salário do mês passado.

Ana Bela

Você já conversou com o Celso? Ele está por aqui?

Cláudio Não encontrei Celso em lugar nenhum. Amanda disse que ele não aparece desde a semana passada.

Ana Bela

Isso é ruim.

Cláudio Estou pressentindo que isso é pior do que eu imaginava. Por favor, deixem que eu reassuma a

fábrica e veja o tamanho do estrago. Assim que eu tiver uma resposta, farei uma reunião com os funcionários e direi o que iremos fazer.

Ana Bela

Se precisar de mim, estou lá embaixo no laboratório.

Cláudio Obrigado.

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Ana Bela aperta a mão de Cláudio e sai. Cláudio finalmente entra em seu escritório. Amanda volta a atenção ao seu computador.

Cena 23 (Danilo parte 8)

Rita está sentada no sofá, tendo Marilda de um lado e Danilo do outro. Eles assistem televisão. Rita tosse.

Marilda

Você está bem, filha? (Marilda cobre a filha com a manta)

Rita Estou bem, mãe. Não precisa se preocupar.

Danilo

Ela está ótima. É uma mocinha muito forte. Danilo beija a mão da irmã. Rita sorri para ele. Eles voltam a atenção à televisão. Agora

prestam atenção na notícia.

Repórter Mais uma vez um tiroteio agitou a vida dos moradores do Morro do Tatu.

Rita

Essa não é a favela perto daqui?

Repórter O tiroteio começou na entrada da favela e prosseguiu morro acima. Testemunhas dizem ser mais

um conflito entre traficantes rivais. Um cinegrafista amador conseguiu imagens do início do tiroteio.

Imagens do conflito são exibidas. Algumas casas simples, um bar com vários jovens conversando.

De repente, um tiro é ouvido e um dos jovens cai. As pessoas começam a correr. Mais tiros e é possível ver pessoas armadas correndo entre os demais.

Rita

Mãe, aquele não é o Otávio?

Rita aponta para um dos jovens que saiu correndo do bar. Outro tiro é ouvido e Otávio cai no chão. Marilda dá um grito e começa a chorar.

Cena 24 (Matheus parte 8)

Matheus está sentado em sua mesa. Está distraindo mexendo em seu computador. Não percebe a aproximação de Geraldo, que fala em seu ouvido.

Geraldo

É bom você ficar esperto. (cochichando)

Matheus (após o susto) Do que é que você está falando?

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Geraldo

O chefe está de olho nas coisas por aqui. Ele está revisando o trabalho de todo mundo.

Matheus Por que? Ele nunca faz isso. Ele tem suas próprias contas para cuidar.

Geraldo

Ele recebeu a reclamação de um cliente.

Matheus Reclamação?

Geraldo

O cara é dono de uma das empresas em que estávamos trabalhando. O sócio é quem pediu nossos serviços, ele ficou no comando por um tempo. E parece que agora sumiu e levou todo o dinheiro da

empresa com ele.

Matheus E o chefe tem como descobrir que fomos nós que o ajudamos? Você disse que eu nunca teria

problemas trabalhando com você.

Geraldo O chefe não vai descobrir nada. Não por enquanto. A empresa nem era responsabilidade minha, era

da conta do André. Ele vai ter que responder primeiro e tentar descobrir o que aconteceu. Talvez nem cheguem à gente. Só estou dizendo para você ficar esperto. Nós vamos parar os serviços por

um tempo, até as coisas se acalmarem.

Matheus Eu não preciso desse problema agora, Geraldo.

Geraldo

Fica frio. Já disse que provavelmente não vão descobrir a gente. É só você ficar esperto. Vou voltar para minha sala. Temos que ter cuidado agora.

Geraldo vai embora. Matheus fecha os punhos e bate sobre a mesa. Patrícia olha para ele. Ele

finge que não fez nada e volta ao trabalho, ainda de cara amarrada.

Cena 25 (Cláudio parte 9)

Cláudio está sentado em sua mesa. Vários papéis e pastas à sua frente. Ana Bela está sentada do outro lado da mesa. Amanda está em pé, observando os dois e tomando anotações.

Cláudio

Eu não entendo como as coisas chegaram a esse ponto! (Cláudio muda alguns papéis de lugar) Você diz que os fornecedores não recebem pagamento há dois meses, mas esses papéis aqui

(Cláudio entrega algumas folhas à Ana Bela) dizem que está tudo em ordem, que os pagamentos foram feitos. Há até notas fiscais.

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Ana Bela Eu não sei o que te dizer, Cláudio. Eu falei diretamente com os fornecedores. Há muitas dívidas a

serem pagas. Eu calculei o montante, é muito alto. E ainda tem as dívidas com os funcionários.

Cláudio Vou ter que repassar as finanças e ver o que é possível de ser feito. Talvez tenhamos que vender o

terreno atrás da empresa. Eu pretendia ampliar a fábrica, mas o mais importante no momento é conseguir mantê-la inteira.

Amanda

Seu Cláudio, aquele terreno não pertence mais à empresa.

Cláudio Como assim? Claro que pertence, aquele terreno é meu. Comprei há alguns anos.

Amanda

Mas o senhor Celso vendeu o terreno. Eu já vi pessoas vindo olhar o lugar e fazendo anotações. Acho que eram arquitetos.

Cláudio

Ele não pode ter feito isso. Ele não tinha esse direito. Não podia ter feito isso sem me consultar. Onde foi parar esse dinheiro?

Cláudio revira os papéis sobre a mesa, derrubando alguns no chão. As duas mulheres o

observam, receosas. Cláudio finalmente encontra o que procurava. Leva o papel ao alto, na altura dos olhos.

Cláudio

Eu não acredito que ele fez isso.

Ana Bela Cláudio, acho que temos que encarar a situação aqui. O Celso não é a pessoa que você pensou que

era. Ele além de mau administrador, é um ladrão. Ele, obviamente, desviou muito dinheiro da empresa.

Cláudio

Mas meus pais o consideravam um filho, eram padrinhos deles.

Ana Bela Parece que assim como você, eles cometeram um erro de julgamento. Temos que enfrentar a

situação e ver o que é possível de ser feito aqui.

Cláudio Não acho que haja muito a ser feito. As contas bancárias estão vazias, os fornecedores se foram, os

clientes se foram. E a nossa única chance que eu achei que tinha de salvar a empresa não existe mais. Tudo o que eu tenho está nessa fábrica. Não há mais nada que eu possa fazer. Infelizmente

vou ter que declarar falência e ver o que consigo salvar desse furacão.

Ana Bela Cláudio, tem certeza que não há nada que possamos fazer?

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Cláudio A única coisa que vocês podem fazer é procurar por novos empregos. Esta empresa não sobrevive.

Sinto muito.

Cláudio amontoa os papéis sobre a mesa, pega sua pasta que está a um canto, levanta-se e sai da sala. As duas mulheres ficam sem reação. Amanda começa a chorar.

Cena 26 (Danilo parte 9)

Rita está dormindo na cama de casal. Marilda está sentada na outra cama, chorando baixinho. Ainda está vestida com roupas pretas. Danilo está sentado ao seu lado, tentando consolá-la.

Danilo

Mãe, por favor, não fique assim. Precisamos que você seja forte. Você não pode desmoronar agora.

Marilda Me deixa chorar um pouco. Eu tenho esse direito.

Danilo

Tudo vai ficar bem, mamãe.

Marilda Como? Me diz como as coisas vão ficar bem.

Danilo

Eu vou arrumar um emprego. Vou arrumar um emprego e sustentar a casa. Vou distribuir mais currículos e tenho certeza de que arrumarei um emprego logo.

Marilda

E a escola?

Danilo Posso estudar um período e trabalhar dois. Não tem problema, eu dou conta.

Marilda

Eu ainda não entendo o que seu irmão estava fazendo naquela favela. Aquele lugar é cheio de traficantes e outros criminosos.

Danilo

Ele só estava conversando com alguns amigos, mãe. Não estava fazendo nada de errado.

Marilda Me sinto tão vazia, tão fraca.

Danilo

Descansa um pouco. Dorme e você vai ver como amanhã tudo vai estar melhor. A gente não pode perder a fé. O Otávio não gostaria de ver a senhora desse jeito. Ele seria o primeiro a dizer:

“Levanta a cabeça e segue em frente, mãe”.

Marilda ensaia um sorriso para o filho.Ela escorrega o corpo, deitando na cama, e fecha os olhos. Danilo beija seu rosto, seca suas lágrimas, apaga a luz e sai do quarto.

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Cena 27 (Matheus parte 9)

Matheus e Celina estão sentados em um barzinho. Ela conversa com ele, mas ele mantém o olhar

fixo em algum ponto distante.

Celina Nunca vi minha mãe tão arrasada. Foi muito triste quando eles fecharam o caixão. Eu não sei

porque isso aconteceu. Não sei o que meu irmão estava fazendo lá. Acho que estava fazendo algo ilegal. Depois que perdeu o emprego começou a trazer mais dinheiro para casa do que trazia antes.

Eu não sei mesmo.

Celina pára de falar. Olha para Matheus e percebe que ele não presta atenção nela.

Celina Você ouviu alguma coisa do que eu disse?

Matheus acorda do transe em que se encontrava e olha para a jovem.

Matheus

Você estava falando comigo?

Celina (irritada) Como quem mais se estamos só nós dois aqui? Você acha que eu falaria essas coisas para

um estranho ou ficaria falando sozinha.

Matheus Sei lá, Celina. Me deixa quieto que eu não estou bom hoje.

Celina (parecendo preocupada) O que você têm? Está doente?

Matheus

Não é nada disso. Só estou preocupado com o trabalho. As coisas não vão bem por lá.

Celina O que foi? O que está acontecendo?

Matheus

Nada que você seja capaz de entender.

Matheus volta a olhar para o ponto em que olhava antes, desviando de Celina. A jovem fica chateada.

Celina

Você sempre vai me tratar assim?

Matheus Assim como?

Celina

Como uma criança que não merece ser levada a sério.

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Matheus Falando essas coisas você realmente parece uma criança que não merece ser levada a sério. Vamos

embora, estou cansado, vou deixar você na sua casa.

Celina Eu não quero ir pra casa. O clima está péssimo lá.

Matheus

Está bem. Eu deixo você ficar na minha casa, contanto que você não fique me enchendo o saco.

Celina fica em silêncio. Matheus levanta-se da cadeira, coloca algum dinheiro sobre a mesa e caminha em direção à saída. Celina fica algum tempo parada, olhando para a cadeira vazia, antes

de levantar-se também e seguir Matheus.

Cena 28 (Cláudio parte 10)

Cláudio está sentado na mesa que fica na cozinha de sua casa. Está cabisbaixo. Marta está sentada ao seu lado. Ela chora baixinho. Eles aguardam. Um barulho é ouvido da entrada da casa. Logo

Mariana e Roberto entram na cozinha. Estranham ao ver os pais na cozinha daquele jeito.

Mariana Pai, você em casa a essa hora? Está tudo bem?

Roberto

É claro que não está tudo bem. Não está vendo a cara deles?

Cláudio Acho melhor vocês se sentarem.

Mariana sentou-se próximo ao pai. Roberto sentou-se ao lado dela. Mariana segura a mão do pai.

Mariana

A doença voltou, pai?

Cláudio Não é nada disso, filha. (ensaiando um sorriso) Eu estou ótimo de saúde.

Roberto

Então o que é? Por que vocês estão com essa cara de enterro?

Cláudio Ninguém morreu. Mas o que eu tenho que falar para você é grave.

Mariana

Você está me assustando.

Cláudio A minha empresa sofreu um grande golpe. Nós sofremos um grande golpe. Durante o período em que me tratava, deixei a administração nas mãos do Celso. Ele desviou muito dinheiro da empresa, deixou de fazer pagamentos e ainda vendeu o terreno que me pertencia. Desapareceu deixando a empresa quebrada. Não contei nada pra vocês antes, pois estava tentando encontrar uma solução

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para o problema. Mas não há nada o que fazer. Tudo o que nos sobrou foi essa casa, o carro e um punhado de dívidas.

Mariana

O tio Celso fez isso com você? Com a gente? Como ele pode?

Cláudio Também fiquei surpreso com tudo isso. Acho que ele não fez sozinho, não saberia fazer. Acho que teve ajuda, e estou tentando descobrir quem foi. Mas enquanto não conseguimos o que nos pertence

de volta, vamos ter que dar um jeito em nossas vidas. E isso vai afetar a todos.

Roberto Do que você está falando, pai?

Cláudio

Vou vender a fábrica com todos os equipamentos. Será suficiente para pagar a dívida da empresa. No entanto, teremos que vender essa casa e o carro para conseguirmos nos sustentar enquanto eu

não ajeito minha situação, enquanto não arrumo um emprego.

Roberto Nós crescemos nesta casa. Você vai simplesmente se desfazer dela dessa forma?

Marta

Isso é necessário, filho. Seu pai não venderia a casa se não precisássemos do dinheiro.

Cláudio E vocês terão que sair da escola particular também. Não temos condições de mantê-los estudando

numa escola tão cara.

Roberto Isso é tão injusto. Eu estou em época de vestibular. Deveria estar me preocupando com estudar,

fazer as provas e entrar em uma boa faculdade. E agora vocês jogam essa bomba em cima de nós. Nós nunca estudamos em escola pública.

Cláudio

Para tudo tem uma primeira vez na vida.

Roberto Você faz as coisas erradas e nós pagamos por isso.

Mariana

Deixa de ser egoísta. Você não está vendo que o papai fez o melhor que pôde? Ele estava doente, caramba.

Roberto

Eu sei! Mas isso é tão injusto. Onde é que nós vamos morar? Onde vamos estudar?

Cláudio Acho que depois que conseguirmos vender a casa e o carro, pagaremos as dividas e sobrará dinheiro

para comprar uma casa pequena, num bairro mais afastado. Eu já andei dando uma olhada. Achei um lugar que será ótimo para nós. Talvez até sobre algum dinheiro para comprar um carro usado.

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Marta E eu já procurei por escola para vocês. Encontrei uma que dizem ser muito boa.

Roberto

Não tão boa quanto a nossa.

Mariana Nós vamos ficar bem, pai. (Mariana segura a mão do pai e beija o seu rosto) A gente já passou por

situação pior e conseguimos sobreviver, todos nós, juntos. Nós vamos passar por mais esta.

Cláudio É muito bom que você pense assim, querida.

Mariana

O Roberto também pensa assim. Ele só está um pouco assustado.

Roberto Com certeza estou muito assustado.

Marta

Nós vamos ficar juntos. E vamos ficar bem. Seja onde for e como for.

Marta beija o rosto do marido. Ela tenta controlar o choro. Cláudio seca sua lágrimas. Roberto levanta-se e abraça a mãe.

Cena 29 (Danilo parte 10)

Danilo está sentado em um pequeno escritório. O gerente da lanchonete, Edgar, está sentado à sua frente. Eles conversam.

Edgar

Você não tem nenhuma experiência, não é, rapaz?

Danilo Não, senhor. Meu irmão era quem sustentava a casa.

Edgar

E o que aconteceu? Ele perdeu o emprego?

Danilo Ele perdeu a vida.

Edgar

Me desculpa, não queria ser indiscreto.

Danilo Não tem problema. Ele morreu e agora eu preciso do emprego para sustentar a minha mãe e as

minhas irmãs.

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Edgar Aqui na empresa nós temos a política de dar uma primeira chance a jovens como você. Você me

parece ser um rapaz determinado…

Danilo E sou. E aprendo rápido também.

Edgar

Acredito nisso. Você pode começar amanhã. Seu horário é das 2:00 da tarde às 10:30 da noite, com meia hora de intervalo.

Danilo

O horário é perfeito, senhor.

Edgar Não vai atrapalhar a escola?

Danilo

Não, eu estudo de manhã, saio da escola 12:30.

Edgar Então está ótimo. Aqui está a lista de documentos que você precisa trazer amanhã para que

possamos registrá-lo. Você já tem carteira de trabalho, não?

Danilo Não tenho, mas vou fazê-la agora mesmo. Amanhã estarei aqui com meus documentos e minha

carteira de trabalho. Não se preocupe.

Edgar Não me preocupo. Espero você aqui, amanhã, às duas.

Danilo

Estarei aqui, senhor.

Danilo levanta-se, aperta a mão de Edgar e sai do escritório.

Cena 30 (Matheus parte 10)

Matheus está sentado em sua mesa. Ele parece nervoso e ansioso. Tenta se concentrar em seu trabalho no computador, mas está disperso, olhando para os lados com freqüência. Geraldo se

aproxima dele e acaba o assustando.

Geraldo Você está bem, Matheus?

Matheus

O que é que você acha?

Geraldo: Você não pode ficar assim, cara. Vai acabar chamando a atenção para si. E isso é o que menos

precisamos no momento.

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Matheus

Eu não sei como você pode ficar tão tranqüilo.

Geraldo A contabilidade é enorme. Nenhuma daquelas empresas está sob nossa responsabilidade. Não há

com o que se preocupar.

O telefone de Matheus toca. Matheus fica tenso.

Geraldo Vou voltar ao meu trabalho e deixar você atender seu telefone. Mas vê se relaxa. Qualquer coisa,

estou na minha sala.

Geraldo se afasta. Matheus respira profundamente e atende ao telefone.

Matheus Alô.

Celina

Alô. Má, eu preciso falar com você. É urgente.

Matheus Nada tão urgente que não possa esperar até outro dia.

Celina

Como assim outro dia? Nós não vamos nos ver hoje?

Matheus Hoje não. Eu preciso de um tempo só pra mim. Acho melhor a gente ficar alguns dias sem se ver.

Eu te ligo semana que vem.

Celina Mas…

Matheus desliga o telefone antes que ela termine de falar e volta à atenção ao computador,

tentando trabalhar.

Cena 31 (Cláudio parte 11)

Cláudio, Marta, Mariana e Roberto estão parados em frente a um pequeno sobrado. Há um caminhão de mudanças estacionado próximo. Dois carregadores tiram a mobília de dentro da

caçamba e levam para dentro da casa.

Roberto Bem pequena essa casa, não?

Cláudio

Pelo menos é nossa, filho. O aluguel já é uma preocupação a menos.

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Roberto Mas só tem dois quartos. Vou ter que dividir o quarto com a Mariana.

Mariana

Eu é que deveria estar preocupada. Você é o maior bagunceiro que existe.

Marta Agora não é hora para nos preocuparmos com isso. O importante é que, apesar de tudo, nós temos

um teto. E vocês têm onde estudar.

Mariana Eu acho que seremos felizes aqui. Não sei se minhas antigas amigas virão me visitar, mas está tudo

bem. Se não vierem é porque não são amigas de verdade.

Marta Se elas não vierem, você com certeza terá novas amigas. Nós vamos ficar bem.

Cláudio

Se Deus quiser, vou arrumar um emprego logo e então nós ficaremos melhor ainda.

Cláudio abraça a esposa. Mariana pega sua mala do chão.

Mariana Eu vou escolher o meu lado do quarto. (e corre para dentro da casa)

Roberto

Não vai, não. Eu sou mais velho. Eu tenho esse direito.

Roberto corre atrás da irmã. Cláudio olha para a esposa. Ela sorri para ele.

Cena 32 (Danilo parte 11)

Mariana está sentada em um banco no pátio da nova escola. Ela está sozinha, com a mochila largada ao seu lado. Ela finge ler um papel, mas na verdade observa todos ao seu redor. Os jovens chegam na escola aos poucos. Danilo está sentado com um grupo de amigos. Ao notar a presença da jovem, ele caminha em sua direção. Ao perceber que Danilo se aproxima, Mariana finge que

está lendo o papel.

Danilo Este lugar está ocupado? (apontando para o banco)

Mariana

(pegando a mochila e colocando-a no colo) Acho que não mais.

Danilo Você é aluna nova, né? Ou é aluna nova ou é muito antipática pra ficar aqui sozinha.

Mariana

Eu sou aluna nova. Acabei de me transferir. E não estou sozinha. Meu irmão também se transferiu.

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Danilo E onde ele está?

Mariana

Foi até a secretaria. Ele está muito neurótico com essa coisa de vestibular. Foi perguntar se a escola tem algum programa de estudos para os alunos que vão fazer a prova no final do ano.

Danilo

E te largou aqui sozinha no seu primeiro dia.

Mariana Pois é.

Danilo

Qual é o seu nome?

Mariana Mariana. E o seu?

Danilo Danilo.

Mariana estende a mão para cumprimentá-lo, mas ele segura sua mão e lhe dá um beijo da

bochecha. Ela fica ruborizada. O sinal da escola toca.

Danilo Já sabe qual é sua sala?

Mariana

Não tenho muita certeza. Sei que é sala 10, mas não sei onde fica. Essa escola é muito grande.

Danilo Eu te levo lá.

Danilo levanta-se e pega a mochila de Mariana. Ela levanta-se e o acompanha escola adentro. Os

dois estão sorrindo.

Cena 33 (Matheus parte 11)

Mateus desce do elevador e encontra Celina parada na porta de seu apartamento. Fecha a cara. Celina, ao vê-lo, abre um sorriso.

Matheus

Eu não disse que te ligava? (abrindo a porta e entrando no apartamento)

Celina Mas você não ligou. E eu não podia esperar mais.

Celina também entra no apartamento. Matheus larga sua pasta sobre a mesa e joga-se no sofá.

Pega o controle remoto e liga a televisão antes que Celina sente-se ao seu lado.

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Celina Nós precisamos conversar.

Matheus

Pode falar que estou ouvindo.

Celina Eu não tenho certeza de que esteja.

Matheus, muito irritado, desliga a televisão e vira-se para Celina encarando-a.

Matheus

Estou olhando para você. Será que é atenção suficiente?

Celina Não fale desse jeito comigo. Você sabe que eu não gosto.

Matheus

Pára de enrolar e fala logo.

Celina Eu estou grávida.

Matheus O quê?

Celina

É isso mesmo. Eu estou grávida. Nós vamos ter um filho.

Matheus Mas como isso aconteceu? A gente sempre usou camisinha. Você não toma pílula?

Celina

Com que dinheiro eu posso comprar pílula, Matheus?

Matheus Eu tenho dinheiro. Posso te dar dinheiro e você se livra desse problema, não deve ser difícil.

Celina

Do que você está falando?

Matheus Do que mais eu falaria. Você tem que tirar esse filho.

Celina

Eu não quero tirar esse filho. (indignada) Eu quero ter esse filho.

Matheus Você não pode. É uma criança. (Matheus levanta-se e começa a andar pela sala)

Celina

Você não achou que eu era uma criança quando me levou pra cama.

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Matheus

Eu não posso ter um filho agora. Tenho que me preocupar com a minha carreira. (falando mais para si do que para Celina)

Celina

Mas nós vamos ter um filho. E será uma criança linda. E você vai mudar de idéia quando vir o rostinho dele.

Matheus

(zangado, segurando Celina pelos ombros) Não vai haver criança. Você vai tirar esse bebê. Eu não posso ser pai agora. Eu não quero ser pai.

Celina solta-se de Matheus, levanta do sofá, pega a sua bolsa e pára na porta do apartamento.

Celina

Agora é tarde demais. Eu vou ter esse bebê. E você vai ser pai, querendo ou não.

Celina sai do apartamento, batendo a porta. Matheus pega um copo que está sobre a mesa e o atira contra a parede.

Cena 34 (Cláudio parte 12)

Cláudio está em uma sala de espera, em uma grande empresa. Há uma secretária, que trabalha sem prestar atenção na presença dele.

Uma porta, com uma placa de “Recursos Humanos”, é aberta e um jovem sai por ela, acompanhado de um outro homem um pouco mais velho. Os dois riem. O jovem cumprimenta o

homem e a secretária, saindo do local. O homem volta para o escritório e fecha a porta, sem prestar atenção em Cláudio.

O telefone da secretária toca e ela atende.

Secretária Sim, senhor. Como o senhor quiser. Agora mesmo.

A secretária desliga o telefone e volta-se para Cláudio.

Secretária

Sinto informar, mas a vaga já foi preenchida.

Cláudio se levanta e vai até a mesa da secretária.

Cláudio Mas ele nem falou comigo ainda, nem me deu a chance de uma entrevista.

Secretária

Sinto muito, senhor. Mas a vaga já foi preenchida.

Cláudio Isso não é justo. Eu tenho muito mais experiência que qualquer um que tenha atravessado aquela

porta hoje.

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Secretária Senhor, se me permite a sinceridade, talvez seja esse o motivo.

Cláudio

Como assim?

Secretária Com o devido respeito, o senhor já tem certa idade. Eles preferem contratar gente nova, com menos

experiência. Assim podem pagar salários menores. O senhor não tem a menor chance nessa empresa. E vai ser muito difícil conseguir em outros lugares.

Cláudio

E o que esperam que eu faça? Esperam que eu simplesmente me aposente ou coisa parecida? (zangado)

Secretária

Não precisa ficar bravo comigo. Só digo o que ouço por aqui. Eu espero que o senhor consiga uma oportunidade. Só não acho que vá acontecer aqui. Sinto muito.

A secretária entrega a Cláudio o envelope com seu currículo. Ele pega o envelope e sai da sala sem

se despedir.

Cena 35 (Danilo parte 12)

Danilo está trabalhando na lanchonete. Ele caminha entre as mesas, anotando pedidos e entregando as refeições. Sua mãe entra na lanchonete e acena para ele. Ela parece bem chateada.

Ele atende o último cliente e caminha até a entrada, para falar com ela.

Marilda Oi, meu filho.

Danilo

Mãe, o que você está fazendo aqui? Eu não posso ficar parando para conversar. A lanchonete está cheia.

Marilda

Me desculpa, querido. Mas eu não sabia mais o que fazer. Eu levei sua irmã ao médico de novo. Ela está com outra infecção.

Danilo

De novo, mãe?

Marilda Você sabe como é a saúde dela. Mal melhora de um problema e logo aparece outro. O médico

passou outra receita. Eu passei no postinho e, para variar, eles não têm o remédio. E eu não tenho mais dinheiro. Vim aqui saber se você tem algum.

Danilo

Eu não tenho dinheiro nenhum, mãe. Ainda não recebi. Mas acho que eu posso pedir um adiantamento.

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Marilda Tem certeza? Isso não vai te prejudicar?

Danilo

Acho que não, o gerente é um cara legal. Fique aqui um minuto que eu vou falar com ele.

Danilo volta para o interior da lanchonete. Marilda tenta controlar uma lágrima que insiste em rolar pelo seu rosto enquanto ela observa o interior da lanchonete. Danilo logo volta para junto

dela.

Danilo Mãe, eu conversei com ele. Ele disse que até pode liberar parte do meu salário, mas só pode fazer

isso no final do expediente.

Marilda E a Rita vai ficar esperando o resto do dia?

Danilo

: Sinto muito, mamãe. É o melhor que eu posso fazer. Deixa a receita comigo que eu compro os remédios quando meu turno acabar e os levo para casa.

Marilda

Tudo bem. (Marilda abre a bolsa, tira uma folha de papel e entrega ao filho). Provavelmente estaremos esperando por você acordadas.

Danilo

Chegarei o mais cedo possível.

Marilda beija a testa do filho e vai embora. Um cliente chama a atenção de Danilo, pedindo para ser atendido. Danilo volta ao serviço.

Cena 36 (Matheus parte 12)

Matheus está no escritório de contabilidade. Ele acaba de sair do banheiro e caminha em direção à sua mesa quando é interrompido por uma colega que senta ao seu lado.

Patrícia

O seu telefone tocou e eu atendi para você. Era sua mãe. Ela disse que tinha um assunto urgente para tratar com você e pediu que ligasse de volta.

Matheus

Minha mãe? Como ela conseguiu esse número?

Patrícia Eu não sei, mas ela é sua mãe. E parecia muito exaltada.

Matheus

Obrigado pelo recado. Ligo para ela depois.

Matheus senta-se em sua cadeira e volta ao trabalho no computador. O telefone toca, ele atende.

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Matheus

Escritório de Contabilidade, Matheus falando.

Sandra Oi, meu filho. Que bom que você está aí. Preciso muito falar com você.

Matheus

Mãe, você não pediu que eu retornasse. Eu ia retornar, só que não agora. Eu tenho muito trabalho a fazer não posso ficar conversando com a senhora.

Sandra

Mas é urgente, querido.

Matheus Então fale logo.

Sandra

Uma mocinha ligou para nós ontem. Ele disse se chamar Celina e disse também que é sua namorada.

Matheus

Ela não é minha namorada. Só estamos saindo juntos. E ela não deveria ter te ligado. Não dei essa liberdade para ela.

Sandra

(espantada com a atitude do filho) Mas ela está grávida. E disse que o filho é seu.

Matheus Foi um acidente, eu não fui esperto o suficiente para perceber o que ela queria desde o começo. Mas

eu vou dar um jeito nisso.

Sandra Ela disse que você sugeriu aborto. Isso é verdade?

Matheus

Talvez. É a única solução que eu vejo para o caso agora.

Sandra Meu filho, nós somos católicos. Isso é contra tudo o que nós lhe ensinamos a vida inteira. Além de

ser ilegal.

Matheus Vocês são católicos, eu não.

Sandra

Essa moça parece realmente gostar de você, não devia dizer essas coisas para ela.

Matheus Já sou bem grandinho e não dependo mais de você, então me deixe em paz para tomar as minhas

decisões, certo?

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Sandra Mas, filho…

Matheus

Eu preciso trabalhar. Tchau, mãe! Até outro dia.

Matheus desliga o telefone e percebe que Patrícia está olhando para ele. Patrícia logo desvia o olhar e ele volta ao trabalho.

Cena 37 (Cláudio parte 13)

Cláudio está sentado na mesa da pequena cozinha de sua casa nova. Ele está com a cabeça deitada sobre a mesa, desolado. Marta entra na cozinha carregando algumas sacolas e entranha a

presença do marido em casa.

Marta Querido, você está bem?

Marta coloca as sacolas sobre a mesa e passa as mãos na cabeça do marido.

Marta

Por que você está em casa a essa hora? Não disse que ia procurar emprego?

Cláudio levanta a cabeça e olha para a esposa. Seus olhos estão marejados. Ele indica que ela se sente numa cadeira próxima a ela.

Marta

O que houve, meu querido?

Cláudio Isso está mais difícil do que eu achei que seria. Tenho 25 anos de experiência e não sou páreo para

garotos que acabaram de sair da faculdade. Nem sequer tenho chance de passar por entrevista. Duas empresas já me dispensaram sem nem falar comigo.

Marta

Você tem muito mais experiência que todos eles juntos. Não fique assim. Alguma empresa ainda vai perceber o seu valor.

Cláudio

E sem um emprego não consigo dinheiro para pagar um advogado. Como vou conseguir processar o Celso e ter de volta o que era nosso?

Marta

Não pense no que ficou para trás agora. Deixe isso para depois, quando conseguirmos nos reerguer.

Cláudio O pouco dinheiro que temos está acabando. O que vamos fazer quando isso acontecer?

Marta

Não se preocupe com isso agora. Nós vamos dar um jeito. Você logo vai arrumar um emprego.

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Cláudio Para que são todas essas compras? Achei que estávamos com a despensa cheia.

Marta

Estou tentando multiplicar o nosso dinheiro. Há um bufê no bairro e eu consegui um bico. Toda vez que eles não derem conta da produção repassarão uma parte pra mim. Hoje consegui minha

primeira encomenda. E eles pagam muito bem.

Cláudio Isso é ótimo, querida. Mas faz muito tempo que você não trabalha com isso.

Marta

A gente nunca perde o jeito.

A campainha da casa toca. Marta corre atender. Cláudio tira a compras da sacola. Marta volta para a cozinha acompanhada de Ana Bela.

Ana Bela Boa tarde!

Cláudio entranha a presença da moça e levanta-se para cumprimentá-la.

Cláudio

Bela, que bons ventos a trazem por aqui?

Ana Bela Vim ver como vocês estão.

Marta

Estamos como Deus quer. Aceita um café?

Ana Bela Aceito sim, Marta. Obrigada.

Cláudio

Sente-se aí e me conte as novidades.

Ana Bela Eu estou bem. Consegui um emprego em um dos nossos concorrentes. Começo a trabalhar na

segunda-feira.

Cláudio Isso é ótimo. Fico muito feliz que você esteja se ajeitando.

Ana Bela

E você, Cláudio? Conseguiu alguma coisa?

Cláudio Ainda não. E vai ser difícil. Dizem que eu sou muito velho.

Ana Bela

Isso é uma bobagem. Você tem muita experiência. Isso tem que contar de alguma forma.

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Cláudio

Nem sempre conta.

Ana Bela Olha, eu vim aqui para lhe falar sobre uma vaga de farmacêutico que abriu em uma das farmácias do meu tio. Não é grande coisa, sei que você merece muito mais, mas acho que já é alguma coisa,

enquanto você não acha nada melhor.

Cláudio Você está me oferecendo um emprego? (surpreso)

Ana Bela

Meu tio estava precisando de alguém e eu indiquei você. A farmácia fica não muito longe daqui, mas o trabalho é para o turno noturno. Eu disse que falaria com você para ver se estaria interessado. O salário não é grande coisa, mas pode ajudar bastante. Como eu disse, é para ser algo temporário.

Mas se você não estiver interessado…

Cláudio Claro que estou interessado. (se animando) Eu não me importo em começar de novo. Afinal é o

que estamos fazendo desde que tudo aconteceu. Eu adoraria a oportunidade.

Ana Bela (sorrindo) Ótimo. Vou falar com ele hoje mesmo e ele te liga de volta.

Marta

(colocando uma xícara de café e um prato com alguns biscoitos na frente de Ana Bela) Você não sabe o bem que está nos fazendo, Bela.

Ana Bela

Imagine, Marta. Depois de tudo que você fizeram por mim me sinto em dívida, principalmente depois de não ter ajudado a evitar o que o Celso fez a empresa.

Cláudio

Você não podia fazer nada. A culpa é toda dele e ele ainda vai pagar pelo que fez.

Marta Não vamos mais falar nele. O importante é que estamos bem. E vamos ficar melhor ainda.

Ana Bela

E eu adoro o seu café, Marta.

Os três riem e Ana Bela toma café com os biscoitos oferecidos por Marta.

Cena 38 (Danilo parte 13)

Mariana e Danilo estão no pátio da escola, durante o intervalo. Eles estão próximos, de braços dados, encostados em um muro que dá para a quadra.

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Mariana Meu pai ainda não conseguiu um emprego. As coisas estão ficando cada vez mais complicadas.

Meu irmão é quem está lidando pior com tudo isso. É difícil quando você está acostumado com um tipo de vida e tudo muda de repente. De certa forma, ele ainda culpa meu pai.

Danilo

Mas seu pai estava doente…

Mariana Eu sei, o Roberto também sabe. Mas ele está muito preocupado com o futuro, com o vestibular, e a

crise da empresa bagunçou todos os planos dele. Ele procurou alguém em quem colocar a culpa.

Danilo Seu irmão está na minha sala. Eu vejo o quanto ele é dedicado. É até chato, às vezes, perguntando

coisas o tempo todo e exigindo mais matéria. Tem gente na sala que não vai muito com a cara dele.

Mariana E você?

Danilo

Eu acho que ele está certo, apesar de não ter o mesmo ritmo que ele. Quando meu irmão era vivo e sustentava a todos nós, eu tinha todo o tempo para estudar. Agora, trabalhando dois turnos para

sustentar minha família está ficando cada vez mais difícil.

Mariana Você é o único que trabalha na sua casa?

Danilo

Minha mãe é técnica de enfermagem formada, mas não pode trabalhar e deixar a Rita sozinha. A Rita precisa de cuidados constantes e minha mãe é a única que sabe como lidar com ela. E a minha

irmã Céu quase nunca pára em casa. E quase nunca aparece na escola. Ela estuda aqui também. Está na mesma série que você.

Mariana

Não conheço sua irmã.

Danilo Como eu disse, era aparece pouco por aqui. E nós não temos tempo nem paciência para ficar

brigando com ela. Há outras coisas para se preocupar.

Mariana O que sua irmãzinha tem é grave, não é?

Danilo

É. Ela precisa de cuidados constantes, além de muitos remédios. E é por isso que a nossa situação é sempre tão difícil. A maioria dos remédios nós não conseguimos no posto de saúde e custam muito

caro. Só com o salário que eu ganho, não está dando para sustentar a casa e pagar os remédios.

Mariana E o que você vai fazer?

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Danilo Acho que vou largar a escola e tentar mais um período na lanchonete.

Mariana

Mas e a sua educação? Você disse que seu irmão queria muito que você se formasse. E falta tão pouco.

Danilo

Mas meu irmão não está mais aqui eu não posso esperar. Preciso fazer algo agora.

Mariana Assim eu não vou te ver mais. (Mariana vira-se para ele e lhe dá um beijo)

Danilo

Você pode ir almoçar na lanchonete de vez em quando. E podemos sair no fim de semana, quando eu não estiver trabalhando.

Mariana

Eu queria poder te ajudar.

Danilo Mas não pode, linda. Você já tem os seus próprios problemas.

Danilo beija Mariana e eles ficam abraçados, em silêncio, olhando a movimentação na quadra,

onde alguns alunos jogam bola.

Cena 39 (Matheus parte 13)

Matheus está na cozinha, arrumando a mesa, quando alguém bate à porta.

Matheus Pode entrar. Está aberta.

Celina entra no apartamento. Ela está um tanto insegura. Fecha a porta atrás de si e espera que

Matheus olhe para ela.

Celina Você queria me ver?

Matheus

Queria sim. Senta aí. (indiferente)

Celina (sentando-se em uma cadeira) Você está zangado comigo?

Matheus

Você ligou para os meus pais.

Celina Eu não sabia mais o que fazer…

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Matheus Quem te deu esse direito? Quem disse a você que poderia mexer nas minhas coisas, pegar o

telefone deles e ligar reclamando sobre a nossa situação. E quem disse que você poderia dar à minha mãe o telefone do meu trabalho?

Celina Eu não sabia mais o que fazer. Você não me ouvia.

Matheus

Não é assim que as coisas funcionam. Você não vai resolver nenhum problema ligando para os meus pais. Eles não têm mais nada a ver com a minha vida. Sou eu quem resolve os meus

problemas.

Celina Eu estou grávida. Eu só queria formar uma família com você. Ter o nosso filho, uma vida normal, uma família normal, como a minha família nunca foi. Pai, mãe, filhos. Isso é tudo o que eu quero,

tudo o que meus pais nunca puderam me dar.

Matheus Eu também quero coisas que meus pais nunca puderam me dar, mas eu não ligo para os seus pais

pedindo por isso, ligo?

Celina Me desculpa, eu sei que não deveria ter feito isso. Estou muito arrependida. Mas eu estava preocupada com o nosso filho. Eu não quero tirá-lo. Eu já consigo senti-lo dentro de mim.

Matheus

Não vamos mais falar disso. Eu fiz o jantar para você. Strogonoff, do jeito que você gosta.

Celina Você cozinhou para mim? (emocionada) Você me perdoou?

Matheus

Não vamos mais falar nisso.

Matheus coloca os pratos sobre a mesa e serve a refeição.

Celina Você fez tudo isso sozinho? Nunca imaginei que você soubesse cozinhar. Parece delicioso.

Celina começa a comer. Matheus abre a geladeira e retira uma jarra de suco. No armário retira dois copos, um deles contendo um pó branco no fundo. Enche os dois copos com suco e coloca o suco adulterado na frente de Celina e o outro copo e a jarra perto de seu prato, e senta-se para

comer junto com ela.

Celina Está muito bom. Onde você aprendeu a cozinhar desse jeito?

Matheus

Minha mãe é cozinheira. Ele me ensinou algumas coisas. Agora beba seu suco. Eu fiz especialmente para você.

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Celina bebe alguns goles do suco e coloca o copo de volta na mesa.

Celina

Está com um gosto diferente. Forte.

Matheus É só o adoçante. Beba mais um pouco.

Matheus enche o copo novamente. Celina continua comendo e bebendo o suco. Ela está muito feliz.

Celina

Nós vamos formar uma família, não vamos?

Matheus Coma primeiro, depois nós veremos isso.

Celina segura a mão de Matheus. Ele sorri falsamente, se desvencilha dela, e começa a comer.

Cena 40 (Cláudio parte 14)

Cláudio entra em uma grande farmácia. No balcão há um rapaz usando um jaleco e senhor, usando roupas sociais. Cláudio se aproxima e fala com o senhor.

Cláudio

Bom dia. Eu vim aqui para uma entrevista de emprego.

Bernardo Você é o Cláudio?

Cláudio

Sim, sou eu mesmo.

Bernardo O senhor Eduardo disse que você viria hoje. Ele pediu para que eu lhe apresentasse o lugar e

explicasse o funcionamento de tudo.

Cláudio Mas eu achei que ele estaria aqui para me entrevistar.

Bernardo

Entrevistar? Não, você já está contratado.

Cláudio Já estou contratado, mas ele nem me conheceu ainda.

Bernardo:

Mas foi a Ana Bela quem te indicou. Ele confia muito na sobrinha. Disse que depois passa aqui para lhe conhecer melhor. Você quer conhecer a farmácia ou não quer? (sorrindo)

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Cláudio É claro que eu quero.

Bernardo

Ah, antes de qualquer coisa, este é o Júlio. (apontando para o jovem atrás do balcão) Ele está cobrindo o turno do outro rapaz, mas trabalha à noite, junto com você.

Cláudio

(estendendo a mão para o rapaz) É um prazer conhecê-lo.

Júlio Igualmente, senhor. Soube que o senhor era dono de uma fábrica de cosméticos.

Cláudio

Sim, eu era. Mas as coisas não deram muito certo.

Júlio Eu sinto muito.

Cláudio

Está tudo bem.

Bernardo Vamos, Cláudio. O chefe disse que você começa a trabalhar hoje mesmo, há muito sobre o que se

interar. Estou muito feliz que ele tenha encontrado outro farmacêutico. Eu não agüentava mais fazer horas extras, a minha esposa estava começando a reclamar.

Cláudio sorri e acompanha Bernardo até o estoque da farmácia. Um cliente entra e Júlio corre

atendê-lo.

Cena 41 (Danilo parte 14)

Danilo está sentado em sua cama lendo quando Rita entra em seu quarto. A garota está fraca, tendo outra crise respiratória. Ele está sozinho em casa com ela. Danilo faz com que ela deite-se

ao seu lado. Está assustado por não saber o que fazer.

Rita Eu não consigo respirar.

Danilo

Eu não entendo. Você não estava tomando seus remédios?

Rita Os remédios acabaram há dois dias e eu não melhorei.

Danilo

Eu não sei o que fazer. Eu não tenho dinheiro para comprar mais remédios

Rita Eu não consigo respirar. Está doendo.

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Danilo Se acalma. Tenta respirar devagar. Não é assim que a mamãe faz?

Rita

(sorrindo ao mesmo tempo em que tenta respirar) É quase assim. Onde ela está?

Danilo Ela precisou sair. Aconteceu alguma coisa com a Céu.

Rita

É grave?

Danilo Eu não sei. Mas você não tem que se preocupar com isso agora. Os remédios realmente fazem

falta, não é?

Rita Um bocado. Mamãe foi até o posto de saúde ontem, mas eles só tinham alguns, e não eram os que

eu preciso.

Danilo Eu me lembrei de uma coisa.

Danilo levanta-se da cama e corre até a parte do guarda-roupa que era ocupada pelo irmão. Abre a porta e tira a caixa de sapato, colocando-a sobre a cama desocupada. Tira a tampa e encontra

algum dinheiro. Encontra também a arma. Fica olhando para ela por um tempo, sem tocá-la.

Rita O que você achou aí? Essa caixa não é do Otávio?

Danilo acorda de seu devaneio e tampa a caixa, colocando-a no lugar. Senta-se novamente ao lado

da irmã.

Danilo Acho que o Otávio deixou uma pequena herança para a gente.

Danilo mostra o dinheiro a Rita. Ela sorri.

Rita

É bastante dinheiro. O que você vai fazer com ele?

Danilo Que pergunta, garotinha. Nós vamos comprar os seus remédios. Talvez seja bom você ir ao médico

de novo. É muito ruim para a sua saúde ficar interrompendo o tratamento o tempo todo.

Rita Eu já estou melhor.

Danilo

Então tenta dormir um pouco que já está tarde.

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Danilo abraça a irmã. Passa as mãos por seus cabelos. Ela fecha os olhos e deita sobre o seu peito, ainda tentando respirar. Danilo olha fixamente para o guarda-roupa.

Cena 42 (Matheus parte 14)

Celina está em uma enfermaria. Há muitas macas, a maioria ocupada. Celina está deitada em uma delas, próximo da porta. Ela chora baixinho. Matheus está sentado em uma cadeira ao lado da

maca, lendo um jornal. Está bem despreocupado. A porta da enfermaria é aberta. Marilda entra e corre para a maca da filha.

Marilda

Céu, querida. Eu tentei chegar mais cedo, mas já não tinha nenhum ônibus. O que foi que aconteceu com você, meu anjo?

Celina

Eu não sei, mamãe. Eu comecei a passar mal e o Matheus me trouxe para cá.

Matheus E já que a senhora está aqui, eu vou embora.

Celina

Você não vai ficar? Não quer saber se está tudo bem? (apontando para a barriga)

Matheus Você me dá notícias depois. Com licença.

Matheus sai da enfermaria sem olhar para trás. Marilda olha espantada para ele.

Marilda

Quem é esse?

Celina Meu namorado. Eu estava na casa dele quando passei mal.

Marilda

Ele é tão frio, insensível. Você está se sentindo melhor? Fiquei tão assustada quando a vizinha veio me dizer que ligaram do hospital.

Celina

Acho que já estou melhor, mamãe. Eu desmaiei e ele me trouxe. O médico ainda não voltou para me ver.

Marilda

Oh, meu Deus. Não faz mais isso comigo. Eu já tenho muita preocupação com a sua irmã.

Celina Eu sei, mamãe.

O médico entra na enfermaria e vai até a maca de Celina.

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Médico Desculpe pela demora, mas isso aqui está meio caótico hoje. Como você está sentindo?

Celina

Um pouco melhor. Mas eu ainda sinto muitas dores no estômago.

Médico : Você não deveria ter tentado uma coisa dessas. Isso é muito perigoso. Além de perder o bebê você

poderia colocar a sua vida em risco.

Marilda Que bebê?

Celina

Eu perdi o meu bebê? Como assim eu perdi o meu bebê?

Marilda Você estava grávida? E não me contou nada?

Médico

Você tomou uma grande quantidade de Misoprostol. Eles são altamente abortivos. Seu bebê não resistiu. Tivemos que fazer uma curetagem.

Celina

Vocês tiraram o meu bebê?

Médico Celina, ele já não estava mais vivo. Os remédios que você tomou…

Celina

Eu não tomei remédio algum. (muito nervosa)

Médico Eu não sei o que lhe dizer. Os exames mostraram que havia uma grande quantidade desse

medicamento em seu organismo. Se você não tomou por espontânea vontade, deve ter tomado por engano. (não muito convencido disso) Você já está melhor agora, seu organismo já está quase

limpo. Assim que amanhecer eu lhe darei alta. Agora, durma um pouco. Quando acordar, você se sentirá melhor.

O médico sai da enfermaria. Marilda olha espantada para a filha. Celina volta a chorar.

Celina

Me desculpa, mãe. Eu não quis te contar nada antes. Eu queria resolver minha situação primeiro. E agora eu perdi o meu bebê. E eu nem sei como isso aconteceu…

Celina chora. Marilda abraça a filha, tentando acalmá-la.

Marilda

Está tudo bem, querida. Mamãe está aqui. Nada de mal vai te acontecer agora.

Marilda senta-se na cama com a filha e tenta consolá-la.

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Cena 43 (Cláudio parte 15)

Marta está na cozinha, fazendo salgados. Cláudio entra e senta-se na mesa.

Cláudio

Você não deveria estar na cama? Já passa da meia-noite.

Marta Eu sei. (Marta deixa de lado o que está fazendo e vai até o marido dar-lhe um beijo) Mas tenho que terminar essa encomenda. Tudo tem que ser entregue amanhã cedo. É uma festa em uma escolinha.

Cláudio

E esses aqui são pra mim? (Cláudio aponta para um prato de salgadinhos fritos sobre a mesa.)

Marta São. Achei que talvez você chegaria com fome.

Cláudio

Você acertou. (Cláudio pega um salgadinho e come) Você realmente não perdeu o jeito.

Marta Obrigada. Como foi o seu dia?

Cláudio

Ótimo. Eu tinha me esquecido o quanto eu gostava de lidar com o público. Na fábrica eu ficava a maior parte do tempo no escritório. Na farmácia eu vejo as pessoas, converso com elas. Isso é bom.

Marta

Fico feliz que você tenha achado algo bom no meio de tudo isso.

Cláudio O patrão passou por lá. É um cara muito legal. Eu contei a ele sobre a minha idéia de começarmos a trabalhar com remédios manipulados e ele disse que pensaria no assunto. Me disse, inclusive, que se

der certo poderemos transformar a sala em cima da farmácia em um laboratório.

Marta Isso é ótimo, querido. Fico muito feliz que você esteja se dando bem.

Cláudio

As coisas estão entrando nos eixos novamente.

Marta Sim, estão. Deus nunca deixa seus filhos desamparados. É como dizem, quando ele fecha uma

porta…

Cláudio … abre uma janela.

Marta

E nós acabamos de atravessar essa janela. Agora, acho que você deveria dormir. Parece muito cansado.

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Cláudio

As crianças já estão dormindo?

Marta A Mariana deve estar. O Roberto deve estar estudando. Não faz outra coisa agora.

Cláudio

Isso é bom. Ele também está tentando compensar a oportunidade perdida.

Marta Eles estão lidando com isso do jeito que podem.

Cláudio

Você deveria vir dormir comigo. Deixe isso para amanhã. Você também parece cansada.

Marta Eu estou bem. Pode ir que eu logo vou, assim que acabar aqui.

Marta volta aos seus afazeres. Cláudio levanta-se e a beija, saindo da cozinha logo em seguida.

Cena 44 (Danilo parte 15)

Danilo está servindo mesas na lanchonete. Mariana entra acompanhada de duas amigas. Elas sentam-se em uma das mesas. Ele se aproxima.

Danilo

O que você está fazendo aqui a essa hora? (surpreso)

Mariana Não gostou da surpresa?

Danilo

Gostei, claro que gostei.

Mariana Você fala tão bem daqui que eu trouxe as meninas para lanchar. Já está na hora do seu intervalo?

Danilo

Quase. Eu vou avisar o gerente.

Danilo caminha para o interior da lanchonete. Mariana continua conversando com suas amigas. Danilo logo volta, sem o avental, acompanhado de outro garçom.

Danilo

Moças, esse rapaz irá anotar os seus pedidos. Você, (apontando para Mariana) lá fora, comigo.

Danilo vai para fora da lanchonete. Mariana sorri para as amigas e elas sorriem de volta. Mariana levanta-se e vai até Danilo.

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Mariana Eu sinto tanto a sua falta…

Antes que Mariana fale mais, Danilo a beija.

Mariana

(após o beijo) Bom, isso ameniza um pouco as coisas.

Danilo Eu queria tanto poder ver você todos os dias.

Mariana

Eu também. Mas eu não posso vir aqui sempre. Nem o seu patrão nem a minha mãe gostariam disso.

Danilo Eu sei.

Mariana

Eu queria que você ainda estivesse na escola.

Danilo Eu também. Mas nem tudo é como a gente quer. Eu tenho que trabalhar o máximo que eu posso.

Todo o meu salário desse mês já está comprometido, eu preciso de horas extras.

Mariana As coisas continuam ruins?

Danilo

Piores. A Rita está sempre doente e eu nunca tenho dinheiro. Eu achei um dinheiro que meu irmão deixou, mas não durou por muito tempo. Se ela ficar doente de novo, eu não sei o que vou fazer.

Não posso pedir mais nenhum adiantamento.

Mariana As coisas vão se arrumar, não se desespere. Não vê o meu caso? Meu pai conseguiu um emprego.

E está mais feliz do que nunca.

Danilo E para piorar as coisas, minha irmã Céu sofreu um aborto. Nós nem sabíamos que ela estava

grávida.

Mariana Ela está bem?

Danilo

Fisicamente, sim. Mas isso só tornou o clima na minha casa pior.

Mariana Não fica triste. Eu estou aqui com você. Não tanto quanto eu gostaria, mas você sabe que pode

contar comigo.

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Danilo Às vezes, quando eu penso num jeito de melhorar a nossa situação, acabo pensando numa porção de

coisas que não deveria pensar.

Mariana Não vá fazer nenhuma besteira. Você me contou sobre o seu irmão. Ele arrumou um jeito mais fácil de resolver o problema, mas acabou se dando mal e complicando ainda mais as coisas para

vocês.

Danilo Eu sei. Ele estava desesperado. Mas eu não cheguei nesse ponto ainda.

Mariana

Nem vai chegar. Eu não vou deixar você perder a cabeça.

Danilo beija Mariana novamente. Eles se abraçam e ficam assim por um bom tempo.

Danilo Acho melhor voltarmos para dentro. Suas amigas estão te esperando e o meu serviço está me

esperando. Além do mais as pessoas estão olhando para nós.

Mariana sorri para Danilo e eles voltam para o interior da lanchonete.

Cena 45 (Matheus parte 15)

Matheus está em sua mesa trabalhando. Celina entra no escritório e, ao encontrá-lo, caminha em sua direção.

Celina

(gritando) Como você pode fazer isso comigo?

Matheus levanta a cabeça, assustado com a presença da jovem. Todos no escritório olham para eles.

Matheus

O que você está fazendo aqui?

Celina Como você pode fazer isso comigo?

Matheus

Eu não sei do que você está falando?

Celina Você sabe muito bem do que eu estou falando. Você me drogou. Você me drogou para que eu

perdesse o nosso bebê. Você fez com que eu perdesse o meu bebê. Você é um assassino.

Matheus (segurando o braço de Celina) Você não sabe do que está falando. Acho melhor você sair daqui.

Nós conversamos outra hora, no meu apartamento.

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Celina (soltando-se de Matheus e falando mais alto) Eu nunca mais vou voltar ao seu apartamento. Eu nunca mais quero ver você na minha frente. E se eu tivesse como provar que você fez isso com a

gente, eu iria até a polícia.

Marcelo sai de sua sala, atraído pelo barulho vindo do escritório. Geraldo, logo depois, também sai de seu escritório.

Marcelo

O que está acontecendo aqui?

Celina (aproximando-se de Marcelo) O senhor deveria saber que trabalha com um assassino. (falando

para os demais) Vocês deveriam tomar cuidado com ele. Ele se mostra uma pessoa boa, simpática, mas isso é assim até conseguir o que quer. (e voltando-se para Matheus) Eu vou contar tudo para os seus pais. Eles pensam que você é um santo, o filhinho perfeito. Mas eles precisam, e vão, saber a

verdade sobre você. Depois disso, nunca mais quero saber de você.

Celina sai por onde entrou. Marcelo está confuso. Matheus olha apavorado para a porta e depois para o chefe.

Marcelo

Todo mundo voltando ao trabalhando.

As pessoas que haviam se levantado para ver o que acontecia, se sentam e voltam a trabalhar, ainda cochichando entre si. Matheus senta em seu lugar. Marcelo vai até ele.

Marcelo

Você pode me dizer quem era aquela moça e o que aconteceu aqui.

Matheus (gaguejando) É só uma ex-namorada. Ele não se conformou com o fim do nosso relacionamento.

Marcelo

Ela disse coisas bem pesadas ao seu respeito.

Matheus O senhor me conhece. Não é nada. Ela está zangada, é só isso.

Marcelo

Seja como for eu não quero que isso aconteça no meu escritório novamente. Você tem que resolver os seus problemas pessoais lá fora, não durante o horário de serviço. Principalmente atrapalhando o

trabalho dos outros.

Matheus Isso nunca mais vai acontecer, senhor. Eu prometo.

Marcelo

É melhor mesmo.

Marcelo volta para a sua sala. Alguns funcionários ainda olham para Matheus e cochicham. Geraldo se aproxima.

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Geraldo:

Isso é exatamente o tipo de coisa que você não precisava neste momento.

Geraldo vira as costas e volta para o seu escritório. Matheus leva as mãos à cabeça, tombando-a sobre a mesa logo em seguida.

Cena 46 (Cláudio parte 16)

Cláudio está sentado no sofá, assistindo ao noticiário do almoço. Marta entra na pequena sala, acompanhada de Marcelo.

Marta

Querido, você tem visita.

Cláudio se vira e percebe quem veio vê-lo. Levanta-se para cumprimentar o senhor.

Cláudio Senhor Marcelo, o que o traz à minha casa? Alguma boa notícia?

Marta

Sente-se, senhor. Vou buscar um café para vocês.

Marta vai para a cozinha. Os dois homens sentam-se no sofá.

Marcelo Gostaria de ter notícias melhores, mas ainda estamos averiguando o seu caso. Nada foi encontrado até agora. Os registros que estavam com a pessoa responsável pela administração de sua empresa

estão completamente diferentes daqueles que você me apresentou. Eu não sei quem é o responsável por aquela documentação.

Cláudio

Eu tenho certeza que o Celso teve ajuda para fraudar aqueles documentos.

Marcelo Se alguém da minha contabilidade o ajudou nisso, nós descobriremos, cedo ou tarde. Eu gostaria de

pedir desculpas a você. Minha empresa está crescendo e há muito tempo eu não tenho controle sobre tudo o que meus funcionários fazem…

Cláudio

Não é culpa sua. A culpa é de quem fez isso, de quem o ajudou a destruir a minha empresa.

Marcelo Mas eu ainda me sinto culpado e gostaria de fazer algo para me redimir.

Cláudio

Isso não é necessário, Marcelo.

Marcelo Eu faço questão. Eu soube que vocês estão passando por uma fase difícil…

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Cláudio

As coisas estão melhorando. Eu até já arrumei um emprego.

Marcelo Mas você ainda não tem condições de pagar por um advogado para processar o seu ex-sócio.

Cláudio

Não, isso não. Eu o denunciei, mas ele tinha uma procuração assinada por mim. Não há nada o que a polícia poderia fazer. Eu preciso entrar com um processo contra ele, pedindo que explique o que

fez com o dinheiro da minha empresa e todas essas coisas.

Marcelo Eu quero lhe ajudar. Quero colocar os serviços dos meus advogados ao seu dispor. Eu já conversei

com eles, já estão a par do seu caso e disseram que podem começar a trabalhar assim que você autorizar.

Cláudio

Isso é muito bom.

Marta volta para a sala carregando uma bandeja com xícaras de café.

Cláudio Você ouviu isso, querida? O Marcelo está nos oferecendo os serviços dos advogados da empresa

dele. Nós poderemos dar entrada ao processo contra o Celso.

Marta Isso é ótimo! (Marta coloca a bandeja sobre a mesinha de centro e entrega uma xícara a Marcelo)

O senhor não sabe o quanto isso é importante para nós.

Marcelo Eu sei sim. Ele fez um estrago na vida de vocês, merece pagar por isso. Vocês merecem ter de volta

aquilo que lhes pertence.

Cláudio Eu vou aceitar a sua ajuda, Marcelo.

Marcelo

Muito bem. E eu vou aceitar outro cafezinho, Marta. Por favor.

O casal sorri. Marta volta para a cozinha com a bandeja. Os dois homens continuam a conversar.

Cena 47 (Danilo parte 16)

Danilo entra em uma farmácia. É dia, saiu de casa cedo. Ele tem uma receita médica nas mãos. Vai até o balcão, onde Júlio está atendendo outro cliente. Ele espera. O outro cliente sai.

Júlio:

Em que posso ajudá-lo?

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Danilo Eu gostaria desses remédios.

Danilo entrega a receita para Júlio. O rapaz percorre as prateleiras pegando as caixas de

medicamentos.

Júlio Aqui está. Mais alguma coisa?

Danilo

Não, é só isso.

Júlio O total é de R$ 45,00.

Danilo

Eu não tenho todo esse dinheiro.

Júlio Me desculpe, mas se você não tem dinheiro, eu não posso lhe vender os remédios.

Bernardo sai do estoque e caminha em direção a eles.

Bernardo

O que está acontecendo?

Danilo Senhor, minha irmã precisa desses remédios. Ela está muito mal, está com outra pneumonia e mal

consegue respirar.

Bernardo E esses são os remédios que ela precisa? (olhando os nomes dos remédios na caixa)

Danilo

Sim, o médico os receitou.

Bernardo Quanto dinheiro você tem aí?

Danilo

Eu só tenho R$ 25,00.

Bernardo Eu sinto muito, filho. Se eu pudesse, eu o ajudaria. Mas eu não posso.

Danilo

Minha irmã está muito mal. Ela precisa muito desses remédios.

Bernardo Você já tentou consegui-los num posto de saúde?

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Danilo Ele nunca tem os remédios lá. Eu realmente preciso desses remédios.

Bernardo olha para Danilo e depois para Júlio, que parece muito confuso. Volta a olhar para

Danilo.

Bernardo Vamos fazer o seguinte: você leva esses dois remédios (separando duas caixas), acho que eles são mais importantes. Eu lhe dou um desconto e você leva por R$ 25,00. Está bem assim para você?

Danilo

(desanimado) Acho que a gente pode se virar com isso.

Bernardo Ótimo. Vou colocar numa sacola para você.

Bernardo embala os medicamentos e entrega a Danilo. Ele lhe entrega o dinheiro.

Danilo

Obrigado, senhor.

Bernardo Não por isso.

Danilo sai da farmácia. Bernardo coloca os outros remédios no lugar.

Júlio

É cada doido que aparece.

Bernardo Ele só está desesperado. Isso é mais comum do que deveria ser. Sei que você está cansado,

trabalhou ontem até tarde, mas fique atento ao movimento que estou trabalhando lá no fundo.

Bernardo volta para o fundo da farmácia. Júlio olha à sua volta, tentando permanecer acordado.

Cena 48 (Matheus parte 16)

Matheus desce do elevador e vê seus pais na porta de seu apartamento. Caminha até eles.

Sandra Meu filho, você demorou a chegar.

Hélio

Nós estamos esperando você há muito tempo.

Matheus O que vocês estão fazendo aqui?

Sem esperar resposta, Matheus abre a porta e entra no apartamento. Seus pais o seguem.

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Sandra Aquela moça nos ligou de novo. Ela contou coisas horríveis ao seu respeito.

Matheus

Mãe, eu já estou com a cabeça cheia. Não estou a fim de discutir isso agora, principalmente com vocês.

Sandra

Ela disse que perdeu o bebê. E que você foi o responsável por isso.

Matheus E o que vocês querem que eu diga?

Hélio

A verdade. Nós queremos a verdade.

Matheus A verdade é que finalmente eu tenho tudo o que quero. E vou conquistar mais ainda…

Sandra

Não estamos falando disso…

Matheus … E a última coisa que eu preciso agora é uma adolescente doida com um filho que eu não quero.

Sandra

Você fez, não foi? Você provocou o aborto do bebê. Seu próprio filho. Como pode fazer algo assim?

Matheus

Eu estou em busca de tudo o que vocês não puderam me dar. Cansei de levar uma vida miserável, vivendo da ajuda dos outros, da caridade dos outros. Eu quero mais para mim e acredito que já

achei o meu caminho. E não preciso de ninguém me atrasando.

Sandra O que aconteceu com você? (olhando para Hélio) Esse não é o filho que criamos com tanta

dificuldade e carinho.

Matheus Eu sempre fui assim, mãe. Mas você estava muito ocupada, trabalhando como escrava na casa dos

outros, para perceber isso.

Sandra A gente sempre trabalhou muito para poder sustentar você e seus irmãos. Nós fizemos o nosso

melhor.

Matheus Mas foi pouco. Sempre pouco. E agora eu não dependo mais de vocês. Eu tenho minha própria

vida. E gostaria muito que vocês voltassem para a sua vidinha miserável e me deixassem em paz.

Sandra aproxima-se do filho. Ele a encara. Ela lhe dá um tapa na cara.

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Hélio Sandra!

Hélio afasta a esposa do filho. Sandra chora.

Sandra (gritando) Você é um ingrato. Depois de todo o nosso trabalho vem nos dizer que não precisa mais

de nós…

Matheus E não preciso mesmo. Acho melhor vocês saírem da minha casa.

Sandra

Eu espero realmente que você nunca mais precise de nós, porque se algum dia isso voltar a acontecer, não haverá ninguém para ajudá-lo. Você está por conta própria. Você vai morrer sozinho.

Hélio

Sandra, não fale coisas que farão com que se arrependa depois.

Sandra Estou bem certa do que digo. Pessoas como ele morrem sozinhas. Vamos embora, não agüento

respirar o mesmo ar que esse moleque.

Sandra sai do apartamento. Hélio volta-se para o filho.

Hélio Pense bem sobre suas atitudes. Depois de certas coisas feitas, não podemos voltar atrás.

Matheus

(indiferente) Acho melhor você ir atrás dela.

Hélio balança a cabeça, desolado, e sai atrás da mulher. Matheus bate com força a porta do apartamento. Está mais irritado do que nunca. Dá um murro na porta, depois encosta sua cabeça

nela.

Cena 49 (Cláudio parte 17)

Cláudio, Marta, Mariana e Roberto estão almoçando em casa. Eles conversam durante a refeição.

Cláudio E aí, filho? Está preparado?

Roberto

Acho que sim. Eu me saí bem na prova da semana passada. Acho que também vou me sair bem hoje.

Marta

Eu sabia que conseguiria. Você ainda vai chegar longe. Vai passar em várias universidades e poderá escolher a que mais lhe agrada.

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Roberto

Deus te ouça, mamãe.

Marta Ele ouve sim.

Cláudio

E você, minha filha? Quais são as suas novidades.

Roberto A Mariana está namorado.

Cláudio

Isso é verdade?

Mariana É. Mas eu ia contar a vocês, não era para esse intrometido falar.

Marta

E quando é que nós vamos conhecê-lo?

Mariana Eu não sei, mãe. Ele trabalha muito. Eu mesma quase não o vejo.

Roberto

Ele estudava comigo, mas parece que largou a escola.

Mariana Ele precisa sustentar a família. Não estava dando conta de fazer os dois. Mas ele prometeu que vai

voltar para a escola assim que for possível.

Cláudio É bom que volte mesmo. O estudo é algo muito importante para uma pessoa.

Mariana

E o emprego, pai? Como vai? Geralmente, quando eu chego da escola, você já foi trabalhar e chega sempre tão tarde.

Cláudio

Eu gosto de trabalhar lá. Tive muita sorte ao conseguir esse emprego.

Marta Apesar de tudo nós tivemos muita sorte em tudo.

Roberto

(levantando-se da cadeira) Então me desejem mais sorte, que eu preciso ir para a prova.

Marta Não está cedo ainda?

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Roberto Vou me encontrar com alguns amigos da minha antiga escola lá no centro. Nós vamos juntos.

Cláudio

Boa sorte, filho.

Roberto beija a mãe, o pai e a irmã, pega a mochila que estava a um canto e sai da cozinha. Marta segura a mão do marido.

Marta

Eu disse que nós ficaríamos bem.

Mariana Nós estamos ótimos.

Eles voltam a comer e continuam a conversar.

Cena 50 (Danilo parte 17)

Danilo acorda assustado. Ele ouve um barulho vindo do quarto da mãe. Olha para o lado e vê sua irmã Celina deitada na cama que era de Otávio. Levanta-se, tentando não fazer barulho e vai até o quarto da mãe. Encontra Rita deitada na cama de casal, dormindo. Marilda está sentada na cama

de solteiro, chorando. Danilo aproxima-se e senta-se ao lado dela.

Danilo Mamãe, o que foi?

Marilda

Desculpa, filho. (tentando controlar as lágrimas) Eu te acordei?

Danilo Não foi nada. Mas porque você está chorando?

Marilda

Eu não agüento vê-la desse jeito.

Marilda aponta para Rita. A garota dorme, mas respira com dificuldades, e ainda tosse por algumas vezes.

Marilda

Ela está cada vez mais fraca. Nós precisamos daquelas vitaminas que você não conseguiu comprar. Ela não anda comendo direito e você sabe o quanto isso é prejudicial para ela.

Danilo

Eu faço o melhor que eu posso, mãe. Eu pedi outro adiantamento ao gerente da lanchonete, mas ele disse que eu já estou devendo muitas horas, ele não pode me ajudar.

Marilda

Eu sei que você faz o melhor, filho. Eu só estou muito triste por essa situação. Ela é uma garota tão esperta, tão linda, não merecia esse tipo de vida. Eu não entendo como Deus pode ser tão injusto.

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Danilo Vamos ter que pedir à Celina que arrume um emprego para ajudar nas despesas.

Marilda

Eu não posso pedir isso a ela agora. Ainda está muito triste com a perda do bebê e tudo o mais que aconteceu.

Danilo

Eu vou dar um jeito.

Marilda Eu gostaria tanto de poder dar uma vida diferente para vocês.

Danilo

Você fez o melhor que pôde, mamãe. Não tem que se lamentar por isso.

Marilda Vai dormir, querido. Você está cansado.

Danilo

Você também deveria tentar. Deve estar tão cansada quanto eu.

Marilda Vou tentar. Vou parar de interromper o seu sono com minhas lamentações.

Danilo

Boa noite.

Danilo beija a testa da mãe. Ela ainda tenta segurar o choro. Ele passa a mão por seu rosto e sai do quarto. Marilda deita-se e fecha os olhos, mas ainda chora.

Cena 51 (Matheus parte 17)

Matheus está em sua mesa no escritório. Ele segura um copo de água. Abre sua maleta e tira uma cartela de aspirinas. Há apenas um comprimido. Ele toma o remédio e joga a cartela de volta na maleta. Volta a atenção ao computador, ainda massageando as têmporas. Marcelo se aproxima

dele, segurando uma pasta.

Marcelo Matheus, você está muito ocupado?

Matheus

Não senhor, só um pouco de dor de cabeça. Mas pode falar. Em que posso ser útil?

Marcelo Eu conversei com o Geraldo e ele me disse que você é o responsável por esses documentos.

Marcelo coloca a pasta sobre a mesa. Matheus abre a pasta e examina o seu conteúdo.

Matheus

Sim, senhor. Fui eu quem revisou esses documentos. Por quê? Há algo errado?

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Marcelo

Sim, os números não batem. Os números que você lançou na contabilidade da empresa não estão batendo com os números destas notas. Como você é um excelente administrador eu me pergunto

como isso poderia ter acontecido.

Matheus Eu posso ter cometido algum engano, senhor. (Matheus gagueja) Normalmente isso não acontece comigo, mas não é impossível. Se o senhor me permitir posso revisar o meu trabalho e logo lhe

entrego o resultado. Prometo que tudo estará na mais perfeita ordem.

Marcelo (desconfiado) Aguardo essa documentação até amanhã cedo no meu escritório. Nós ajudamos a

cuidar do patrimônio dos outros, não podemos cometer erros.

Matheus Sim, senhor. Isso não vai acontecer de novo.

Marcelo volta para a sua sala. Matheus massageia as têmporas, enquanto tira as folhas da pasta e

as espalha sobre sua mesa.

Cena 52 (Cláudio parte 18)

Cláudio está na farmácia. Ele o Júlio arrumam os remédios nas prateleiras enquanto conversam.

Cláudio Você ainda estuda, Júlio?

Júlio

Não, senhor. Conclui o colegial ano passado. Pretendo começar a faculdade no ano que vem. Resolvi tirar um ano de descanso.

Cláudio

Descanso, trabalhando desse jeito?

Júlio Pois é. Eu preciso juntar dinheiro para pagar a faculdade.

Cláudio

Meu filho está prestando vestibular. Está muito ansioso com as provas, mas é um menino inteligente, acho que vai conseguir o que quer.

Júlio

Isso é muito bom. Eu quero fazer veterinária. Sou louco por animais, mas minha mãe nunca me deixou ter cães ou gatos porque meu irmão é alérgico.

Cláudio

É sempre bom correr atrás dos sonhos.

Júlio E o senhor? Conseguiu realizar os seus sonhos?

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Cláudio

A maioria deles. Me formei em farmácia, me casei, tive dois filhos…

Júlio E construiu a sua própria empresa.

Cláudio

Sim. Eu tive minha própria empresa. E foi bom enquanto durou. Infelizmente, há pessoas que se fazem à custa dos outros. Mas eu acredito na justiça. Ele ainda vai pagar pelo que fez comigo.

Júlio

Eu espero que o senhor consiga tudo de volta.

Cláudio Mas isso está longe e nós temos que nos preocupar com o que está perto. Esses remédios não vão se

repor sozinhos, rapaz.

Júlio sorri e os dois voltam a trabalhar.

Cena 53 (Danilo parte 18)

Danilo está na entrada da lanchonete. Seu turno já acabou. Ele olha para a receita médica de sua irmã. Abre a mochila e pega a carteira. Abre, ela está vazia. Abre outro bolso da mochila e observa

a arma de seu irmão, que retirou do guarda-roupa. Ele está agitado, ansioso, olhando para os lados.

Um dos garçons sai da lanchonete e ao vê-lo o cumprimenta. Ele retribui. Danilo guarda a carteira e a receita médica na mochila. Coloca a mochila nas costas e começa a

caminhar para longe da lanchonete.

Cena 54 (Matheus parte 18)

Matheus está sozinho no escritório. Já é noite. Todos foram embora. Ele está com uma outra pasta sobre a mesa. Remexe os papéis sem prestar muita atenção a nada. Passa as mãos pela cabeça,

está muito agitado. Abre sua maleta e encontra a cartela de aspirinas vazia. Fecha a pasta, amontoa os documentos sobre a sua mesa, levanta-se e caminha em direção à saída. Apaga as

luzes do escritório e sai.

Cena 55 (Cláudio parte 19, Danilo parte 19, Matheus parte 19)

Júlio está no balcão da farmácia. Danilo entra. Ainda está muito agitado. Abre a mochila e coloca a receita médica sobre o balcão.

Danilo

Eu preciso desses remédios. Todos eles.

Júlio Você de novo.

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Danilo Eu preciso desses remédios.

Júlio

Você tem dinheiro dessa vez?

Danilo (gritando) Eu preciso desses remédios. Me dá logo os remédios.

Júlio

Rapaz, se você não tem dinheiro, não tem remédio. Sinto muito.

Danilo coloca a mão dentro da mochila. Cláudio aparece.

Cláudio O que está acontecendo aqui?

Danilo tira a arma e aponta para Júlio.

Danilo

Eu preciso desses remédios. Não estou brincando.

A arma treme na mão de Danilo. Júlio está muito assustado. Cláudio caminha lentamente em direção a eles.

Cláudio

Se acalma, filho. Você tem um argumento. Nós vamos dar os remédios para você. Agora, por favor, abaixa essa arma antes que você acabe fazendo uma bobagem.

Danilo

Vocês não entendem. A minha irmã está sofrendo, ela não respira direito, não pára de tossir, não consegue dormir normalmente à noite. Eu só quero dar a ela alguma vida. Eu só quero que ela

consiga chegar aos 30 anos. Eu só quero que ela possa respirar.

Cláudio Escute aqui, rapaz. Vamos fazer um trato. Eu sei que você só está fazendo isso por que está muito

desesperado. Eu percebo que você é um rapaz bom e não faria isso em outras circunstâncias…

Danilo Eu não sou bandido…

Cláudio

Eu sei que não e é por isso que eu quero fazer um trato com você. Você abaixa a arma, nós lhe damos os remédios e esquecemos que tudo isso aconteceu. Você pode ir embora, cuidar da sua

irmã, e não contamos a ninguém o que você fez, certo?

Danilo Acho que sim. (ainda com a arma tremendo em suas mãos)

Cláudio

Então abaixa a arma, por favor.

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Danilo olha de Cláudio para Júlio e então começa a baixar a arma lentamente.

Cláudio Agora, Júlio, separe os remédios que ele precisa. Coloque duas ou três caixas de cada. Coloque o

que tivermos aí. Mas vá devagar.

Júlio Sim, senhor.

Júlio treme muito enquanto separa os remédios e coloca-os em uma sacola.

Danilo

Eu não queria fazer isso. Eu trabalho, eu não sou bandido.

Cláudio Eu sei disso, filho.

Danilo

Mas o dinheiro não é suficiente. Minha irmã está sempre doente, mal sobra dinheiro para comer.

Cláudio Está tudo bem. Ela vai ficar bem agora.

Danilo está atento à movimentação de Júlio. Matheus entra na farmácia. Ele vê a arma na mão de Danilo e percebe o que está acontecendo. Cláudio tenta sinalizar a ele que não faça nada. Danilo

sente a presença de alguém e se vira. Matheus o ataca, tentando lhe tirar a arma.

Cláudio Não, por favor, parem com isso.

Júlio larga a sacola sobre o caixa e se esconde atrás do balcão, observando a movimentação

através do vidro. Danilo está assustado, não sabe o que fazer, não esperava por essa reação. Luta para evitar que

Matheus tome o controle da arma. Matheus segura a arma com as duas mãos. Ele dá uma cabeçada em Danilo, deixando-o tonto, mas Danilo não desiste de brigar pela arma. Cláudio

continua parado no mesmo lugar, muito assustado.

Cláudio Por favor, parem com isso. Não vamos a lugar nenhum desse jeito.

Um tiro é ouvido. Cláudio é atingido no estômago. Danilo se assusta e solta-se de Matheus, que ainda segura a arma, dedo no gatilho. Cláudio perde as forças e senta-se, encostando-se em um

dos balcões. Danilo vai até ele.

Danilo Me desculpa, eu não sabia que a arma estava carregada. (Danilo começa a chorar) Eu não queria

nada disso. Eu não queria nada disso.

Cláudio Está tudo bem, filho. Vai ficar tudo bem. Eu só preciso de ajuda.

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Danilo Eu vou conseguir ajuda para o senhor. (Danilo tira a blusa que usava e pressiona o ferimento,

tentando evitar a hemorragia. Está mais assustado do que nunca. Começa a gritar.) Alguém chama uma ambulância, por favor! (e voltando-se para Cláudio) Eu vou conseguir ajuda para o senhor.

Danilo se levanta e outro tiro é ouvido. Ele é atingido nas costas. Ainda consegue se virar e vê que Matheus segura a arma apontada para ele. Danilo tenta falar algo, mas perde as forças e cai no

chão, ao lado de Cláudio. Ainda olha mais uma vez para o rosto do Cláudio antes de ouvir o barulho das sirenes e fechar os olhos.

Cena 56 (Matheus parte 20)

(Este trecho deve ser exibido juntamente com os créditos finais do filme, com o ângulo da câmera do repórter cinegrafista)

Matheus está em seu apartamento, sentado no sofá. Uma jornalista está ao seu lado, segurando um microfone. Um cinegrafista apronta a câmera.

Matheus

Está tudo pronto? Eu já posso falar?

Repórter Só mais um minuto.

Cinegrafista

Aqui está tudo certo.

Repórter Vamos começar pelo seu nome, idade e profissão.

Matheus

Meu nome é Matheus dos Santos, tenho 24 anos e sou formado em administração de empresas.

Repórter Agora você pode começar contando por que estava na farmácia e como tudo aconteceu.

Matheus

Eu saí mais tarde do escritório e estava com muita dor de cabeça, devido à quantidade de trabalho que fiz no dia. Passei na farmácia para comprar algumas aspirinas. Quando entrei, vi aquele marginal apontando uma arma para a cabeça do balconista. Como ele não percebeu a minha

presença, resolvi tirar a arma dele. Mas ele acabou atirando no farmacêutico. Quando eu finalmente consegui tirar a arma das mãos deles, ele tentou me atacar e eu me defendi, atirando nele.

Repórter

E o que você me diz sobre o relatório da perícia que diz que o assaltante foi atingido pelas costas, sem representar nenhum perigo ao senhor.

Matheus

Ele estava tentando atacar o farmacêutico. Estava totalmente fora de controle, tentando atacar a todos nós. Tudo o que eu fiz foi acertá-lo para impedir que machucasse mais alguém.

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Repórter A polícia está dizendo que há muitas contradições no seu depoimento. Além disso, o depoimento do

balconista da farmácia é totalmente diferente do seu. Ele disse que a situação estava sob controle, que o assaltante tinha abaixado a arma e não representava perigo…

Matheus

Eu fiz o que qualquer um faria para proteger a própria vida e a vida de outros inocentes. O balconista não sabe o que fala. Está muito abalado, pois teve uma arma apontada para sua cabeça. Eu salvei a vida dele e tirei um criminoso das ruas. Não posso ser condenado por isso. Eu sou um

herói.

Repórter Mesmo que o farmacêutico tenha morrido devido às suas ações?

Matheus

Não fui eu quem atirou no farmacêutico. Eu tentei salvar a vida dele. Eu sou um herói. Vocês vão se dar conta disso cedo ou tarde. E essa reportagem acaba aqui.

Matheus se levanta do sofá e sai do enquadramento da câmera. A repórter olha espantada para o

cinegrafista, que desliga a câmera logo em seguida.