três correspondências de octavio paz
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Dentre os projetos literários conduzidos por Octavio Paz destaca-se a revista Vuelta que foi editor durante largo tempo. Enrique Krazue chegou ao periódico na década de 1970 e construiu ao lado do escritor mexicano uma parceria que foi além do lado profissional - Enrique tornou-se um amigo pessoal de Paz e a ele foi confiada muita da correspondência que escreveu durante as suas viagens. Reúnem-se aqui três dessas correspondências traduzidas ao português pela primeira vez (em tradução livre de Pedro Fernandes). Os arquivos originais foram publicados pela Revista Letras Libres em dezembro de 2006.TRANSCRIPT
México, D. F. a 16 de março de 1977
Querido Enrique:
Envio-lhe vários textos, a saber:
a) O ensaio de A. W. Gouldner que nos propõe Zaid. É interessante mas um pouco
extenso. Havia que reduzi-lo um pouco, como propõe Gabriel. Há que decidir, primeiro,
em que número poderia sair e, segundo, quem podia traduzi-lo. Além disso, a quem
devemos pedir os direitos? Leia-o e dê-me sua opinião. Gracias.
b) O artigo que me deixou o Embaixador polaco. Não apenas eu gosto. Oxalá que você
e Zaid lhe lessem e dessem sua opinião. Em todo caso, se o publicamos, há que fazê-lo
com uma nota e acompanhado do outro (ponto c) que nos tem enviado Zaid.
c) Uma estratégia da oposição polaca, por Adam Michnik. Interessantíssimo. Há que
reduzi-lo um pouco. Se o publicamos devemos pedir a permissão do caso a Esprit.
d) Le Nouvel Observateur que me enviou Julieta Campos. A meu juízo, há que publicar,
em Letrillas, precedidas de uma breve nota, mas ou menos inspirada no que publica
Nouvel Observateur, a entrevista de Bukowski (págs. 26-27). (Envio-lhe, como
“documento”, as incríveis e estúpidas declarações de Corvalán em L. N. O. anterior). Há
outro artigo (pág. 48) sobre o caso de Huber Matos. Podíamos utilizá-lo em uma
Letrilla mas me parece que o caso dos prisioneiros políticos de Cuba – e em primeiro
lugar de Matos – requer um texto mais sério e documentado. Devemos buscar para um
número próximo, muito próximo, um bom texto sobre este assunto. No mesmo número
há um excelente artigo de Claude Roy (pág, 50-52) mas, se o publicamos, pode parecer
que insistimos demasiado no tema. Que pensa você? Na troca, para um número
vindoura, podemos utilizar parte do artigo de Jacques Julliard (a parte sobre a atitude
dos comunistas franceses). Eu poderia agregar algum leve comentário referindo-me a
atitude (melhor dizendo: a ausência de atitude) da esquerda mexicana e latino-
americana sobre este tema. Sublinho-lhe as partes que podiam traduzir-se (Por certo: os
parágrafos sublinhados são de Julieta ou de seu marido). Minhas marcas são azuis (pág.
63-64).
e) The Journal. Nas páginas 12-17 encontrará você um charmoso texto de Lowry
Burgess (um jovem artista estadunidense amigo meu). Gostaria de publicá-lo
acompanhado, claro (sem elas se perde todo o afeto) das fotos que incluo dentro da
revista. Todas ou uma parte. Fale com Abel para saber se, com nossos pobres recursos
gráficos, podemos atrevermo-nos a publicar essas fotos.
f) O pequeno livro de Javier Sologuren. Um excelente poeta menor. Escolhi alguns
poemas que poderia ir com os do jovem venezuelano na seleção Plaza de la Nueva
Poesía (o como decidamos chamar finalmente a essa página). Guarde o caderno com o
poeta venezuelano (seu nome me escapa agora).
g) Uma entrevista com Ginsberg. Impublicável – difusa e confusa. Mas guarde-a – devo
escrever a jornalista que o entrevistou.
h) Um texto de um “espontâneo”. Também impublicável.
i) Uma carta que enviei a Rossi e De la Colina, mas que devolveram por um erro (nas
senhas) dos correios. Leia-a e transmita-lhe aos dois. Obrigado!
j) O texto sobre Berlim: tenho minhas dúvidas. Já falaremos (amanhã).
Um abraço grande
Octavio
Envio-lhe também os sonetos de Camões. Poderiam ir no próximo número? O 6? Ou no
7?
O. P.
From the American Stanhope Hotel Collection
Temperance American School, Circa 1850
© 1981 American Stanhope Hotel
Nova York
A 10 de novembro de 1984.
Querido Enrique:
Esta longa viagem tem sido rica em surpresas e descobrimentos mas também em
confirmações. Mais que uma exploração tem sido um reconhecimento. Nosso primeiro
alto foi Bombaim. Depois da prosperidade de Alemanha, a realidade da Índia nos
golpeou. Chegamos na madrugada e vimos o despertar dos subúrbios, uma chaga viva
que se estende desde o aeroporto ao centro da cidade.
Uma miséria realmente indescritível e que produz, mais que compaixão, desesperança.
Nos hospedamos em nosso velho e querido Taj Mahal Hotel, monumento [...] do British
Raj e das quimeras da classe dirigente indiana ao começo do século. Mas a onda dos
miseráveis não cessa de bater contra essa arquitetura vã e pródiga. Nada, nem sequer as
esculturas da ilha de Elefanta, alcançou dissipar a terrível visão. Em quinze anos,
Bombaim tem se convertido em outra Calcutá – a mesma mistura, alucinante e atroz, de
modernidade e miséria abjeta. Abjeta no sentido literal da palavra e também no
teológico. A parada seguinte foi Hong Kong. A mudança tem sido imensa (não havia
voltado desde 1963, há mais de vinte anos). A alegria e a prosperidade de Hong Kong,
tanto como a beleza da baía e das pitorescas colinas, hoje cobertas de arranha-céus,
surpreenderam e fascinaram a Maria José. A mim também. Um cosmopolitismo
amarelo. O pragmatismo é mais poderoso e eficaz que as ideologias. Mais humano
também. Sem dúvidas o excesso de mercantilismo de Hong Kong, suas ostentações de
novo rico, seu mau gosto chinês (há um mau gosto chinês como há outro mediterrâneo e
outro saxão) e sua sensualidade epidérmica, me fizeram apreciar ainda mais a elegância
e a sobriedade do Japão. O país conquistou a Marie José e ressuscitou meu antigo
fervor. Voltei a sentir o que sem dúvidas sentiram muitos mexicanos ao começo do
século; viram no Japão um símbolo do que poderiam ser (ou melhor: fazer) os países
não europeus: modernizar-se sem deixar de ser eles mesmos. Os quinze dias de Japão
foram de uma rara perfeição: um outono límpido como uma tanka clássica ou um
desenho de Buson, a esquisita elegância dos monumentos e os objetos (no Japão, ainda
mais que na China, a beleza não é simétrica: o arquétipo do artista não é a geometria,
como no Ocidente desde os gregos, mas a natureza, que é sempre irregular), a cortesia
da gente, sua diligência, sua eficácia, sua honradez. Donald Keene me disse: vivo oito
meses a um ano em Tóquio porque já não aguento mais a barbárie de Nova York. Tem
razão. Para nós a viagem teve um encanto particular: Marie José descobriu uma
realidade nova e eu me internalizava em minhas próprias leituras. Uma e outra vez
reconheci lugares que nunca havia visto mas que, por dizê-lo assim, havia visitado ao
ler os poetas e romancistas japoneses. “Viagens ao redor de tuas leituras”, me disse
Marie José. Não sigo: o tema do Japão merece muitas páginas e muitas horas. Só lhe
direi que esse mundo – me refiro ao que chamamos tradicionalmente Extremo Oriente,
composto basicamente por China, Japão, Coreia, com seus prolongamentos: Hong
Kong, Taiwan e Singapura – não somente é uma realidade presente mas futura. O centro
do poder econômico e político se movimenta do Atlântico ao Pacífico e nesta nova
constelação histórica a presença sino-japonesa será decisiva. É desolador que nem
nossos políticos – seu horizonte é provinciano – nem nossos intelectuais – fechados em
seus cárceres ideológicos – se deem conta de que amanhece em outra costa do México,
a que olha ao Pacífico. Japão deveria ser nosso modelo por extraordinária fusão de
modernidade e tradicionalismo, eficácia técnico-científica e gosto estético (e o Primeiro
Ministro Nakasono fez um hakai durante a incineração de Indira Gandhi!), solidariedade
social (o grupo, não o indivíduo, é a unidade básica) e liberdade política, capitalismo
(competência) e cooperativismo... O segredo, quiçá, está na essência mesma da cultura
japonesa – e o mesmo deve dizer-se de Coreia e, amanhã, de China: uma civilização
fundada não nos princípios de uma tradição, identidade e terceiro excluído, senão na
coexistência dos contrários e ainda em sua fusão. O pragmatismo – para usar um termo
ocidental – dos chineses é consubstancial: um mandarim era, na vida política e social,
confuciano, mas em sua vida íntima (religiosa, filosófica, estética e erótica) podia ser
budista ou taoista, ou ambas as coisas. No Japão todo mundo é, sem contradição,
budista e shitoísta, sem que isto lhe impeça professar a ideologia científica e técnica do
século XX. Ao contrário do que ocorre na América Latina e em tantas outras partes, no
Extremo Oriente se pensa que a gente não serve às ideias: se serve delas. (Um jornalista
da Agência EFE me fez uma entrevista em Tóquio e aproveitei a ocasião para falar
disto: publicou a imprensa mexicana essas declarações? Provavelmente não ou, como de
costume, desfiguraram o que disse.)
Graças à Fundação Japão, conheci vários poetas, romancistas e ensaístas japoneses.
Surpreendeu-me sua inteligência, sua cultura, e seu fervor. Estão mais inteirados que
seus congêneres europeus, norte-americanos e latino-americanos. Quase todos eles
havia lido não apenas os livros meus traduzidos ao japonês mas os outros – em inglês,
francês e, às vezes, em espanhol. Encontrei uma gente de grande talento. Devemos
dedicar um número de Vuelta à literatura japonesa contemporânea, não lhe parece?
Depois de Tóquio, voltamos a Bangkok. Dias deliciosos – os ecos da crise político-
militar da Tailândia se afogam no fluir do rio que corre abaixo da janela de nosso hotel.
A cidade é medíocre e inclusive muito feia, mas o rio, a beleza das árvores, as plantas,
os pássaros, as mariposas, a arquitetura brilhante e decorativa – feita de lantejoulas,
como uma dança de formas –, a gente sonolenta e viva, sensual e cerimoniosa – tudo,
tem um encanto que faz recordar, às vezes, a Conrad e outras, a maioria, a Pierre Loti. A
arquitetura faz evocações ao estilo churriguera, um churrigueresco budista e ainda mais
retorcido que o novo-hispano de Tepotzotlán. Na realidade, é uma profecia (seus
edifícios são de finais do século XVIII) do que veio a ser a Belle Époque. O budismo se
mesclou aqui – como acontece a quase todas as partes e com todas as religiões – com os
antigos cultos aos poderes naturais e se converteu em ritual, lenda, superstição e arte
popular. Mas o melhor é o sorriso. É a essência do budismo: sorrir é começar a
compreender – e a perdoar. A semana que vem saímos para Delhi – a conferência foi
suspensa mas devo apresentar minhas condolências a Nehru Memorial Fund. A Índia
não sabe sorrir: é uma terra sublime e terrível. A pátria do idealismo e dos sistemas
absolutos. A Alemanha (em farrapos) de Ásia...
Não toquei, com toda intenção, o tema da reação da esquerda mexicana ante meu
discurso de Frankfurt. Principalmente: repito-lhe minha gratidão. A mensagem sua, de
Alberto e Tulio me comoveu. Eu não sabia nada. As primeiras notícias as tive em
Tóquio, por um cabo e pelo Embaixador do México, excelente pessoa, Sergio González
Gálvez, que trabalhou comigo quando eu diplomata. Sua mulher foi colega de Isabel no
Colégio do México. Sergio e o agregado cultural, Jaime Nualart, cordial e inteligente,
me mostraram os recortes. Paixão mal empregada, mesquinharia e rancor, má fé. Almas
pequenas e sombrias em que o fanatismo ideológico se unem ao ressentimento. A
ideologia a serviço da inveja. Mas são uma minoria. Em Niko encontrei-me com um
grupo de turistas mexicanos: todos se aproximaram a saudar-me e a dizer-me que
estavam comigo. Aqui em Bangkok me encontrei com um ítalo-equatoriano e um
espanhol, que viram há um mês na televisão mexicana e me felicitaram pelo que disse –
ainda, disse um deles, se zangavam muitos dos seus colegas mexicanos. Em minhas
declarações à Agência EFE me referi, rapidamente, ao tema. De todo modo, não há que
lhe dá muita importância. Há que sorri. Disse-lhe Darío: “Coloca o pavilhão e sorria!” E
aqui findo esta carta tão longa (compreenderá você minha má caligrafia?) com muitas
saudações para Alberto, sua mulher e seu filho (Marie José o relembra com especial
carinho), Tulio, os amigos de Vuelta, Isabel e, para você
Um duplo abraço de Marie José e de Octavio
Oxalá que possam enviar-me o número de Vuelta de novembro à Gallimard –
passaremos uns dias com eles. Também penso que seria bom publicar o discurso do
Presidente da Alemanha: na Vuelta ou onde? Saudações
Octavio
nrf
5 Rua Sébastien-Bottin 75007 Paris
A 21 de Junho de 1989
Querido Aurelio:
Esta carta está dirigida a você mas também a Enrique. Não lhe escrevo a ele diretamente
porque [...] não sei se está no México ou nos Estados Unidos. Creio lembrar que me
disse que provavelmente iria a Los Angeles ou a Nova York a alguma reunião
universitária.
Chegamos em Paris faz alguns dias, em plena celebração – os festejos duraram mais de
um mês – do Bicentenário da proclamação dos direitos humanos e da invenção da
guilhotina (curioso par). [...]
Envio-lhe com estas linhas a versão corrigida de meu Exercício de Memória, sobre
Mixcoac. Além das correções (numerosas) adicionei duas páginas – irrupção súbita da
memória afetiva. Não tive tempo de passar o texto a limpo. Oxalá que minha escrita não
lhe resulte ininteligível. O texto aparecerá também no TLS, na NFR e na Revista de
Ocidente (les demoiselles d’Avignon da literatura europeia).
Deixamos aos espanhóis entregues à frenética alegria de descobrirem-se de imediato
ricos, democráticos e europeus. O país inteiro vive numa exaltada europforia. É uma
febre que, em menor ou maior grau, padece todo o continente, sem excluir aos cada dia
menos fleumáticos ingleses. Eles também tem descoberto as “nourritures terrestres” –
para falar como Gide – e, além disso, com uma sorte de hedonismo filisteu. Cada país
europeu encontra, não sem razão, maravilhoso neste fim de século: tem sobrevivido a
duas guerras e ao comunismo totalitário. Sobreviverão à prosperidade? Isso está por se
ver: os homens não resistem a felicidade por muito tempo. Enfim, o nível de vida é
muito alto em todos estes países, mas e o nível da verdadeira vida? Talvez Baudelaire
viu mais fundo e mais claro: há uma baixa tensão espiritual, um filisteísmo que degrada
ao europeu médio.
A imprensa, os políticos e os intelectuais discutem com paixão o que ocorre nos
impérios totalitários: o renascimento da Hungria e Polônia, as mudanças na URSS (a
viagem de Gorbatchov à Alemnha me completa de inquietude: os alemães são capazes
de abandonar a Europa – é um povo que nunca acaba de exorcizar seus demônios – e os
distúrbios sociais e religiosos das nações orientais soviéticas confirmam as previsões de
Tiempo Nublado) e, enfim, a matança em Pequin. Um esturro de um tigre agonizante –
quantos durará sua agonia? E que dizem nós escritores e intelectuais do que ocorre no
mundo? Quando penso que muitos deles se precipitaram a saudar e a aplaudir a Fidel
Castro apenas há uns meses. Que têm pensado fazer em Vuelta? Como comentaremos
tudo o que ocorre? Cada me aleijo do México, repito o que disse o jovem Luís XIV ao
visitar Blois pela primeira vez: “esta cidade não está a cinquenta léguas de Paris mas a
cinquenta anos”.
Um duplo abraço
Octavio
Saímos dentro de uma hora para Valognes – a terra de Tocqueville.
Tradução livre por Pedro Fernandes de Oliveira Neto. Arquivos publicados em dezembro de
2006 na Revista Letras Libres.