maria edith de azevedo marques direitos fundamentais: o...

221
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o direito à paz no pensamento de Hannah Arendt. Reflexões e Propostas. DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010

Upload: hacong

Post on 30-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Edith de Azevedo Marques

Direitos Fundamentais: o direito à paz no pensamento de Hannah Arendt.

Reflexões e Propostas.

DOUTORADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2010

Page 2: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Maria Edith de Azevedo Marques

Direitos Fundamentais: o direito à paz no pensamento de Hannah Arendt.

Reflexões e Propostas.

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Gabriel Benedito Issaac Chalita.

SÃO PAULO

2010

Page 4: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

Page 5: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

AGRADECIMENTOS

Os meus agradecimentos ao professor Doutor Gabriel Benedito Issaac

Chalita, sempre disposto a ensinar com amor, deixando-me sempre a certeza de

que é possível acreditar e lutar por um mundo melhor.

Ao professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho, exemplo de sabedoria, a

quem respeito e admiro.

À professora Doutora Márcia Cristina de Souza Alvim, por sua atenção,

estímulo e dedicação para comigo no curso desse trabalho.

Page 6: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho ao meu pai Washington Roberto de Azevedo

Marques, in memoriam, pelo constante incentivo aos meus estudos, e à minha mãe

Edith M. de Azevedo Marques, por tudo que me ensinou.

Ao meu filho Octavio, que me fez conhecer e sentir o significado do maior e

verdadeiro amor. E aos meus filhos de coração, Sérgio, Maurício e Paula, que me

permitem partilhar o meu amor.

Ao meu companheiro Octavio Borba de Vasconcellos Filho, por seu

incentivo à elaboração desse trabalho, pela admiração por sua postura ética, sua

atuação profissional impecável, sua serenidade e pelo ser humano maravilhoso que

é.

Page 7: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF Constituição Federal

ONU Organização das Nações Unidas

OPANAL Organização para a Proscrição das Armas Nucleares na América

Latina

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura

BENELUX Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo

OLP Organização para a Libertação da Palestina

FEB Força Expedicionária Brasileira

UDN União Democrática Nacional

SNI Serviço NacionaI de Informações

MDB Movimento Democrático Brasileiro

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PT Partido dos Trabalhadores

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCdoB Partido Comunista do Brasil

PDT Partido Democrático Trabalhista

PDS Partido Democrático Social

Page 8: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

RESUMO

A linha de desenvolvimento do presente trabalho tem como objetivo uma

reflexão sobre o direito à paz, na classificação dos direitos fundamentais. A análise

dessa pretensão nasce de uma reflexão voltada para a pensadora Hannah Arendt,

considerada uma combatente em defesa do povo judeu, sujeito à perseguição

nazista, culminada com o holocausto, onde foram exterminados milhões de judeus,

de forma extremamente cruel. Essa violência contra os judeus fez com que Hannah

Arendt fizesse, durante toda sua vida, uma constante luta pela paz entregando-se

com determinação em ações de grande coragem e destemor. Essa paz, tratada

nesse estudo, refere-se à paz não como o contrário da guerra, mas da violência,

considerada a guerra um tipo de violência. São analisadas, de forma breve, duas

obras de Hannah Arendt: ―Origens do totalitarismo‖ e ―Eichmann em Jerusalém: um

relato sobre a banalidade do mal‖, desenvolvendo também aspectos históricos,

sociais e políticos sobre os acontecimentos que suscitaram o interesse de sua

autora. Para finalizar, apresenta-se a concepção de paz no âmbito da norma

jurídica, tratando a paz social decorrente da função do direito de harmonizar as

relações intersubjetivas.

Palavras-chaves: Paz. Direito fundamental. Hannah Arendt. Antissemitismo. Paz na

norma jurídica.

Page 9: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

ABSTRACT

The development of the present paper has as objective a reflection on the

right to peace in the classification of fundamental rights. The analysis of this intention

lies in a reflection on the thinker Hannah Arendt, considered a fighter for the Jewish

folk under Nazi persecution that culminated in the holocaust, in which millions of

Jews were exterminated in an extremely cruel way. This violence against Jews made

Hannah Arendt turn her life into a constant battle for peace with great determination

in actions of courage and bravery. The peace we will talk about in this study refers to

the peace not meaning the opposite of war but of violence, considering war a type of

violence. We will briefly analyze two works of Hannah Arendt: ―The Origins of

totalitarianism‖ and ―Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil‖, also

developing historical, social and politic aspects, about the facts that raised the

interest of their author. Finally, we present the concept of peace within the juridical

norm, talking about social peace that derives from the function of the right of

harmonizing relationships between subjects.

Keywords: Peace. Fundamental right. Hannah Arendt. Anti-Semitism. Peace in the

juridical norm.

Page 10: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................011

1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................014

1.1 Noções teóricas dos direitos fundamentais .................................................014

1.2 Classificação dos direitos fundamentais conforme a Constituição

Federal brasileira de 1988.....................................................................................016

1.3 Dimensões dos Direitos Fundamentais x Gerações de Direitos

Fundamentais - Primeira a Quinta Gerações ......................................................020

1.4 A posição de Carl Schmitt no tocante aos direitos fundamentais ..............029

1.5 A ética e o direito fundamental ......................................................................030

1.6 O direito à paz como direito de quinta geração ............................................032

1.6.1 O reconhecimento da paz como direito na doutrina e na jurisprudência 034

1.6.2 A visualização da paz enquanto direito de quinta geração ......................036

1.6.3 A era da legitimidade resultando em uma pré-concepção de paz ...........038

1.6.4 A necessidade precípua de preservar a soberania e fazer da paz um

direito .....................................................................................................................041

1.6.5 O direito à paz como um direito fundamental de nova dimensão............042

2 SOBRE A PAZ .....................................................................................................045

2.1 Significado de Paz ...........................................................................................045

2.2 A Tradição Grega ............................................................................................048

2.3 A Tradição Romana .........................................................................................049

2.4 A Tradição Judaico-cristã ...............................................................................051

2.5 Na Idade Média ................................................................................................057

2.5.1 A Idade Média cristã pacifica os povos ......................................................057

2.5.2 A igreja é o árbitro ........................................................................................060

2.6 Na Modernidade ..............................................................................................062

3 HANNAH ARENDT, A PENSADORA QUE VIVEU PARA BUSCAR A PAZ ......067

3.1 Dados Biográficos Importantes de Hannah Arendt .....................................067

3.2 Os Judeus e o Nascimento do Antissemitismo ............................................072

3.3 O Sionismo e o Sionismo Reconsiderado por Hannah Arendt ...................074

3.4 Ajuda aos Judeus. Militância pela Criação de uma Brigada Judaica no

Interior das Forças Antinazistas ..........................................................................084

3.5 Conflito árabe-judaico .....................................................................................092

Page 11: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

3.6 A Busca Incessante pela Paz .........................................................................097

3.6.1 “Origens do totalitarismo”: importância da obra como caminho para a

paz ..........................................................................................................................097

3.6.2 A controvertida obra “Eichmann em Jerusalém”: enfoque para a

justiça e a paz ........................................................................................................112

4 A CONCEPÇÃO DA PAZ NO ÂMBITO DA NORMATIVIDADE JURÍDICA........133

4.1 Paz Social Decorrente da Função do Direito de Harmonizar as

Relações Intersubjetivas ......................................................................................133

4.2 Histórico das Constituições Federais Brasileiras com Enfoque na Paz ....136

4.2.1 A Constituição do Império ...........................................................................136

4.2.2 O Poder Moderador, a “constitucionalização do absolutismo” ...............137

4.2.3 A evolução liberal da Carta do Império, um código constitucional

de compromisso da sociedade com o Estado ....................................................139

4.2.4 Rigidez e ductilidade da constituição imperial ..........................................141

4.2.5 Uma Carta com a sensibilidade precursora para o social ........................143

4.3 A Constituição Federal de 1891 .....................................................................145

4.4 A Constituição de 1934 ...................................................................................147

4.4.1 A instabilidade da ambiguidade ..................................................................147

4.5 A Constituição de 1937: uma Carta outorgada .............................................156

4.5.1 As fontes da Carta outorgada .....................................................................157

4.6 A Constituição de 1946 ...................................................................................157

4.6.1 A instabilidade democrática ........................................................................157

4.6.2 O Estado social e a Constituição de 1946 ..................................................160

4.6.3 A declaração de direitos da Constituição da terceira República

patenteia o esforço de conciliação do Estado liberal com o Estado social .....162

4.7 A Carta de 1967 ...............................................................................................166

4.7.1 A origem da Carta de 1967: a controvérsia sobre o poder constituinte

congressual e sobre o vício decorrente da mutilação de mandatos

representativos ......................................................................................................166

4.7.2 Os atos institucionais como elementos de coação ao trabalho

constituinte ............................................................................................................168

4.7.3 A tramitação do projeto na constituinte congressual ...............................169

4.7.4 O problema de legitimidade e a Emenda nº 1 ............................................171

4.7.5 A transição democrática ..............................................................................173

Page 12: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

4.8 A Constituição Federal de 1988 .....................................................................177

4.8.1 Perfil ideológico da Constituinte ................................................................177

4.8.2 A Constituinte e a participação popular .....................................................181

4.8.3 Sugestões e emendas ..................................................................................184

4.8.4 Reflexões preliminares sobre a lei básica e o controle do poder pelo

poder ......................................................................................................................190

4.8.5 Os fundamentos da nova Constituição: uma visão interpretativa ...........193

4.8.6 A Constituição de 1988 e o problema da legitimidade ..............................197

CONCLUSÃO .........................................................................................................201

REFERÊNCIAS .......................................................................................................206

Page 13: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

11

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva uma reflexão sobre a paz, voltada para o campo

jurídico, com o propósito de trazê-la para o status de direito: direito à paz, na

classificação dos direitos fundamentais.

A essência dessa pretensão nasce de uma reflexão voltada para a pensadora

Hannah Arendt, quanto à sua postura como judia-alemã. Elegeu-se Hannah Arendt

porque, a par de ter sido não apenas uma intelectual, filósofa e escritora, foi também

uma mulher que conhecia o sofrimento, a distância entre si e o mundo, e que no

curso de sua vida teve sempre a coragem de combater em busca da paz. A paz que

lhe foi tirada - dela e do povo judeu -, justamente pelo fato de ser judia, em

decorrência da perseguição nazista. Buscou a paz porque acreditava na força do

bem, nos recursos de nossa humanidade, no futuro do bem comum, na superação

de nós mesmos por uma sociedade mais fraternal. Ela acreditou que temos a

capacidade de agir e que nossa liberdade deve ser inalienável.

Há que se esclarecer que a paz, centro desse estudo, não é o contrário da

guerra, mas da violência, considerando a guerra um tipo de violência, embora não a

única.

Mas, por que pensar a paz como um direito?

Justamente por observar que o estado de violência que temos vivido em

nosso país vem num crescendo assustador. Acredita-se que para todos nós,

cidadãos brasileiros, a violência tem ultrapassado os limites do suportável, e suplica-

se, portanto, por medidas que nos devolvam a paz. Se não atingidos de forma direta

pela violência, basta assistir aos noticiários, ler os jornais, para comprovar o terror

que estamos vivenciando. Exemplos não nos faltam: a guerra do tráfico no Rio de

Janeiro que criou um estado paralelo, onde não apenas o crime é organizado, mas

também os ―comandos‖ que acabaram por se institucionalizar e que fizeram dos

morros seus territórios; a criação de milícias formadas inclusive por ex-policiais, que

agem clandestina e arbitrariamente; os elevados índices de homicídios nas grandes

cidades; os latrocínios, os seqüestros; os crimes bárbaros contra crianças, inclusive

praticados pelos próprios pais; violência contra os idosos e contra a mulher; os

inúmeros assaltos também a carros-forte, bancos, depósitos de armas; as

Page 14: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

12

execuções sumárias, a violência nas escolas inclusive através do bullying - conduta

ofensiva, aviltante, humilhante, por meio de comportamento violento, físico ou

psicológico, e muitos outros crimes e situações que alimentam a lista da violência.

O desenvolvimento desse trabalho é, portanto, a razão da necessidade de

paz, em virtude da enorme violência que assola nosso cotidiano, e, principalmente,

usando uma expressão ―arendtiana‖, de não nos deixarmos vencer pela ―banalidade

do mal‖.

Para tanto, inicia-se esse estudo no Capítulo 1, - que se limita a tratar

exclusivamente dos direitos fundamentais, perpassando por suas noções teóricas,

sua classificação, dimensões e gerações, incluindo a posição de Carl Schmitt e a

ética. Ainda nesse capítulo, menciona-se o direito à paz como direito de quinta

geração, com o seu reconhecimento como direito na doutrina e na jurisprudência, a

visualização da paz enquanto direito de quinta geração, a era da legitimidade

resultante de uma pré-concepção de paz, a necessidade precípua de preservar a

soberania e fazer da paz um direito, e, por fim, o direito à paz como um direito

fundamental de nova dimensão.

A seguir dedica-se o Capítulo 2 para o desenvolvimento do significado de paz:

na tradição grega; na tradição romana; na tradição judaico-cristã; na Idade Média e

na Modernidade.

O Capítulo 3 trata, exclusivamente, da reflexão proposta sobre a pensadora

Hannah Arendt, trazendo informações importantes de sua vida através de dados

biográficos, discorrendo sobre os judeus e o nascimento do antissemitismo,

abordando o sionismo e o sionismo reconsiderado por Hannah Arendt, o conflito

árabe-judaico, bem como sua ajuda aos judeus através da militância pela criação de

uma brigada judaica no interior das forças antinazistas.

Ainda nesse capítulo é tratado do conflito árabe-judaico, que ainda hoje

permanece sem solução, envolvendo muita violência. Ressalta-se, também, sua

busca incessante pela paz, com destaque a duas de suas obras: ―Origens do

totalitarismo‖ e ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖.

O derradeiro - Capítulo 4 -, focaliza a concepção de paz no âmbito da

normatividade jurídica, tratando da paz social decorrente da função do direito de

Page 15: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

13

harmonizar as relações intersubjetivas. A seguir é desenvolvido um histórico de

todas as Constituições Federais do Brasil, com enfoque na paz, por entender-se que

tanto o nascimento como a vida de cada uma dessas Constituições, dentro do

contexto histórico e político de cada época, revelam-se importantes para o

entendimento da nossa atual Constituição Federal: Constituição do Império,

Constituição Federal de 1891, Constituição Federal de 1934, Constituição Federal

de 1937, Constituição Federal de 1946, a Carta de 1967, com destaque para os atos

institucionais como elementos de coação ao trabalho constituinte, a Emenda n° 1 e,

finalmente, a atual Constituição Federal de 1988.

Page 16: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

14

1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 Noções teóricas dos direitos fundamentais

A Constituição Federal de 19881 trouxe em sua essência o mandamento de

renovar a ordem jurídica natural, na exata medida em que foi gerada em uma nova

base, o que tem significado um dasafio para os estudiosos do Direito. Imperativo,

portanto, reinterpretar o Direito brasileiro, agora sob a égide da Constituição da

República Federativa do Brasil.

Para tanto há que se fazer uso da interpretação da Lei Maior, através de

estudos que possam dar subsídios teóricos para essa tarefa de interpretar, ou seja,

concretizar a Constituição.

No entanto, essa interpretação apresenta características e peculiaridades que

a diferenciam de forma clara da inteligência de normas infraconstitucionais.2

O cumprimento ou a concretização dos mandamentos constitucionais

decorrerá de sua aplicação, resultante de um processo que tende a ter a natureza

de um processo constitucional. Para que essa aplicação ocorra, obviamente a

interpretação deverá, da mesma forma, caracterizar-se como uma interpretação

também constitucional.

Na expressão do constitucionalista português José Joaquim Gomes

Canotilho3, em alusão ―a Vorverständnis da filosofia hermenêutica de Gadamer‖,

bem coloca Willis Santiago Guerra Filho4:

[...] uma teoria dos direitos fundamentais, especialmente quando se pretende interpretar uma Constituição como a que temos atualmente, onde se adotou um padrão inaugurado contemporaneamente com a Constituição alemã de Bonn e já seguido antes de nós pelo legislador constitucional dos países da Península Ibérica, Espanha e Portugal, com quem estamos unidos por estreitos laços históricos e culturais. De acordo com esse padrão, próprio das constituições que, como a nossa, se propõem a

1BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado

Federal, 1988. 2GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS,

2005. p. 46. 3CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1989. p. 425.

4GUERRA FILHO, op. cit., p. 30-31, nota 2.

Page 17: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

15

instaurar um ―Estado Democrático de Direito‖ (CF, Art. 1º, caput)5, ocupa

uma posição central a consagração de ―Direitos e Garantias Fundamentais‖, tal como é feito, exaustiva e amplamente, no Título II de nossa Constituição, bem como de forma esparsada em todo seu corpo, notadamente no Título VIII, ―Da Ordem Social‖.

Em todas as disposições concernentes ao texto constitucional, é

indispensável ter em mente toda a série de direitos fundamentais que, por certo,

queremos que sejam preservados no seio do Estado brasileiro, com base nos

princípios e objetivos fundamentais expostos no Título I da Constituição Federal de

1988.6

Para entendermos bem os direitos fundamentais, temos que nos ater aos

temas compartilhados com a filosofia do direito e política, como os direitos humanos,

em termos práticos, que buscam menos a ênfase em sua efetivação7, utilizando-se

também das conclusões de estudos que alimentaram a discussão, na esfera da

filosofia prática, sobre teoria da justiça, argumentação e ética do discurso a partir de

obras como as de Viehweg, Gadamer, Rawls, Habermans, Alexy, Hoffe, Perelman e

Ricour.8

Há, ainda, que se situar os direitos fundamentais no cerne de concepções

diversas a respeito do Estado e das Constituições como marco conceitual básico

para uma teoria do Estado e para a teoria constitucional.9

Assim, a teoria dos direitos fundamentais pretendida, para que seja

desenvolvida, abraçaria a função de trazer para o estudo de seu objeto contribuições

emanadas de várias disciplinas, tanto filosóficas como científicas.

Entretanto, seu compromisso é com o esclarecimento de um material jurídico

positivo, para se configurar como um empreendimento, nas palavras do jurista

português José Joaquim Gomes Canotilho: ―No sentido de uma concepção

5BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado

Federal, 1988. 6BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado

Federal, 1988. 7BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:

Campus, 1992. p. 24. 8GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS,

2005. p. 32. 9VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Politico. Madri: Tecnos, 1987. p. 402.

Page 18: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

16

sistemática orientada para o caráter geral, finalidade e alcance intrínseco dos

direitos fundamentais‖.10

Aqui é importante definir o estudo epistemológico de análises dessa natureza

e, a seguir, desenvolver um exame formal, sem ligação direta com o material

empírico-normativo da norma jurídica que consagra direito fundamental, assim

como, paralelamente, das situações jurídicas subjetivas dela advindas. Somente

assim se terá cumprido com as tarefas propedêuticas à abordagem dos direitos

fundamentais na ordem constitucional brasileira.11

Essa ampla institucionalização de direitos e garantias fundamentais da

pessoa, individual e coletivamente, por ser nova em nosso ordenamento, precisa do

recurso ao estudo da legislação estrangeira, ou seja, ao direito constitucional

comparado.

Entre os vários sistemas jurídicos, há que se evidenciar, pela própria

qualidade de sua elaboração doutrinária e jurisprudencial, o da Alemanha Federal,

onde se tem obras-padrão, como são as de Konrad Hesse e Klaus Stern.12

1.2 Classificação dos direitos fundamentais conforme a Constituição Federal

brasileira de 1988

A teoria dos direitos fundamentais de que se pretende tratar, esclareça-se de

pronto que, em termos de definição do seu estatuto epistemológico, é uma teoria

jurídica. Em se tratando de ―teoria‖ nos reportamos ao pretenso estudo com caráter

científico, pois se caso assim não fosse, o melhor seria falarmos em doutrina.

Qualificar essa teoria de ―jurídica‖ remete-nos à ciência praticada por juristas, a

―dogmática jurídica‖. Mas aqui depara-se com um grande ―obstáculo epistemológico‖

na opinião de Gaston Bachelard13, posto que a cientificidade dessa disciplina tem

sido questionada a partir do momento em que foi explicitamente proposta.

10

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1989. p. 429. 11

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS, 2005. p. 33.

12Ibid., p. 36.

13BACHELARD, Gastón. La formation de l’espirit scientifique: contribution à une psycanalyse de la connaissance. Paris: J. Vrin, 1938. p. 37.

Page 19: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

17

Willis Santiago Guerra Filho, em sua dissertação de mestrado em Direito14,

aborda esse assunto, optando por evitar um confronto direto com essa vexata

questio, para caracterizar a maneira como se concebe que deva ser elaborada uma

teoria dogmático-jurídica dos direitos fundamentais, pronta a ser qualificada como

científica.

A formação epistemológica da dogmática jurídica que se defende pode ser

chamada de ―inclusiva‖, por pleitear que se considere uma multiplicidade de

perspectivas de estudo de direito, quando da construção de respostas aos

problemas colocados, às quais se possa associar a qualidade da cientificidade,

compatível com o caráter prático desses problemas e, consequentemente, também

da ciência a eles pertinente.15

Pode-se comparar dentro desse espírito uma formulação oferecida por Half

Dreier, a qual é retomada e aplicada, especificamente, da ―Teoria dos Direitos

Fundamentais‖, por Robert Alexy. É por eles qualificada como ―tridimensional‖, onde

temos uma dimensão analítica, outra empírica e uma normativa, no estudo

dogmático do direito.16

Então a proposta é eleger o ―modelo Dreier - Alexy‖ como referencial, porém

com modificações que a tornem compatível com ideias próprias em epistemologia

jurídica anteriormente desenvolvidas.

No que se refere à dimensão analítica, assim se posiciona Guerra Filho17:

Na ―dimensão analítica‖ estão colocados os estudos voltados para a construção e aperfeiçoamento de um sistema conceitual no âmbito jurídico, com os atributos de clareza e coerência, de maneira a corresponder cada vez melhor o objetivo, a que compete todo o trabalho científico. Para aqui convergem as relevantes contribuições do pensamento formalista, de origem alemã, notório já na elaboração do direito privado pela pandectística - Windscheid -, o primeiro Ihering no século XIX, por influência também de juspublicistas como Gerber, Laband, G. Jellinek e a Escola de Viena, formada em torno de Hans Kelsen, e do processualista da chamada ―época

14

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Do litisconsórcio necessário nas ações do Estado. 1986. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 8.

15GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS, 2005. p. 33-36.

16GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teorias tri e multidimensionais em epistemologia jurídica: o modelo Dreier – Alexy e o modelo integrativo polonês. Anais do IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito.

17GUERRA FILHO, op. cit., p. 37-38, nota 15.

Page 20: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

18

de construção científica‖, como Büllow, Köhler e Goldschimidt. Acrescente-se, ainda, uma tradição anglo-saxônica de pensamento analítico na esfera jurídica com Hobbes, destacando em Benthan e seu discípulo John Austin, com ―The Province of jurisprudence determined‖, a qual tem como grande representante na atualidade o autor de ―The Concept of Law‖ (1962), de Herbert Hart. E na obra desse último se tem já a influência contemporânea analítica, em destaque o nome de Ludwig Wittgenstein, como o mais representativo.

Correntes filosóficas contribuíram com uma abordagem analítica, como

também aquisições contemporâneas no intuito de melhorar na formalização e

expressão do pensamento jurídico, tais como a semiótica, a lógica deôntica, novas

teorias da argumentação e do discurso prático, para ser incluídos para maior

aperfeiçoamento da dimensão analítica de estudo do Direito. E é nela que se

elabora, por exemplo, de maneira precisa, o conceito de direitos fundamentais,

diferenciando-o de noções afins, da mesma forma como se elabora o conceito da

norma jurídica que os consagra, que refere-se ao delineamento das situações

jurídicas e titularidades subjetivas que decorrem de norma desse tipo, de sua

especial posição no ordenamento jurídico e eficácia.

Quanto à ―dimensão empírica‖ da dogmática jurídica, segundo Robert Alexy,

existem dois sentidos. O primeiro, enquanto se ocupa de um direito positivo, que é

um dado objetivo, embora pertencente a uma ordem normativa do real,

humanamente constituída. O segundo, quando se trata de empregar, na

argumentação jurídica, premissas constatáveis empiricamente na realidade fática. E,

ainda, na opinião de Willis Santiago Guerra Filho18:

Em seguida, declara só levar em conta, na elaboração da Teoria dos Direitos Fundamentais, a empiria no primeiro sentido, o qual seria o mesmo utilizado por Kant, quando distingue, na primeira parte da ―Metafisica dos Costumes‖ (1797), a ―Teoria apriorística do Direito‖ de uma ―doutrina meramente empírica do Direito‖, o que significa dizer, no primeiro caso, o estudo do fundamento de todo e qualquer Direito positivo, feito inquirindo a

razão pura, abstraindo-se das formas históricas de manifestação do Direito. Aqui, em consonância com o projeto epistemológico esboçado já ao tempo da dissertação de mestrado penso que não devermos reduzir à ordem jurídica vigente em determinado país, numa certa época, a base empírica, que afinal vai se prestar à verificação ou negação das hipóteses levantadas para estudo e, assim, fornecer algo indispensável para credenciá-lo como científico. Compõem igualmente a empiria jurídica soluções dadas por ordens jurídicas e doutrinas de outras épocas e países, aos problemas colocados em face do Direito positivo estudado desde que se mostre com ele compatível.

18

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS, 2005. p. 38-39.

Page 21: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

19

A ―dimensão normativa‖ é aquela em que os estudos mais dependem do

recurso à faculdade de crítica, exercida na avaliação do material positivo em seu

mais amplo sentido, onde se incluem o discurso normativo oriundo não só do

legislador, mas também de outros operadores jurídicos, especialmente aqueles

integrantes do judiciário e os doutrinadores, havendo entre os proferimentos de

ambos o que já se denominou, usando expressão originária da filosofia foucaultiana,

―unidade do discurso‖.

Nessa terceira dimensão, que seria melhor denominar de ―crítico-normativa‖,

nota-se a assunção do componente axiológico, imanente ao Direito, e tão mais

visível quando se lida com assunto como esse dos direitos fundamentais. É,

portanto, o momento em que se há de lançar mão de uma metodologia como aquela

proposta pela chamada ―jurisprudência das valorações‖:

Também a crítica da ideologia subjacente às construções legislativas, doutrinárias e judiciais deverá preocupar-nos quando da realização de estudos a esse nível, para o que se apresenta como adequado o paradigma científico desenvolvido a partir de Marx e outros teóricos socialistas, retomado com grande vigor mais recentemente, nas mais diversas paragens e, é de se ressaltar, que nessa dimensão da teoria dos direitos fundamentais ela se mostra também como uma doutrina, produto da razão prática, quando resolve o que Alexy denominou ―problemas de complementação e fundamentação‖ (Ergânzungs-und fundierungs problemen, loc. ult. cit, p. 25 e s.), por oferecer uma complementação do conteúdo e do sentido das normas, extremamente vagas e abstratas, que tratam da matéria dos direitos fundamentais no plano constitucional, bem como uma fundamentação racional dos juízos de valor necessários à sua

aplicação.19

Revisando o anteriormente exposto, está-se tratando de um modelo de

ciência jurídica anteriormente já mencionado, denominado ―Modelo Dreier - Alexy‖, o

qual é considerado, por seus elaboradores principais, como multi ou tridimensional,

e pode ser visto como uma tentativa de conciliar de modo produtivo as três principais

correntes do pensamento jurídico, a saber, o positivismo normativista, o positivismo

sociológico ou realismo, e o jusnaturalismo. Será feito um resumo dos seus aspectos

essenciais, antes de prosseguir.

A primeira dimensão em que devem se realizar os estudos jurídicos é a

chamada ―analítica‖, sendo aquela onde se modela o aparato conceitual a ser

19

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS, 2005. p. 40.

Page 22: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

20

empregado na investigação, num trabalho de distinção entre as diversas figuras e

institutos jurídicos situados em nosso campo de estudo. Uma segunda dimensão é

denominada ―empírica‖, por ser aquela em que se toma por objeto de estudo

determinadas manifestações concretas do Direito, tal como aparecem não apenas

em leis e normas do gênero, mas também e, principalmente, na jurisprudência.

Finalmente, a terceira dimensão é a ―normativa‖, enquanto aquela em que a teoria

assume o papel prático e deontológico que lhe está reservado no campo do Direito,

tomando-se o que com maior propriedade se chamaria doutrina, por ser uma

manifestação de poder, apoiada em um saber, com o compromisso de

complementar e ampliar, de modo compatível com suas matrizes ideológicas, a

ordem jurídica estudada.

1.3 Dimensões dos Direitos Fundamentais x Gerações de Direitos

Fundamentais - Primeira a Quinta Gerações

O lema revolucionário do século XVIII, moldado pelo gênio político francês,

experimentou em três princípios cardeais o completo conteúdo dos direitos

fundamentais, antevendo inclusive, a sequência histórica de sua paulatina

institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.

Assim, descoberta a fórmula de generalização e universalidade, faltava tomar

as direções que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de cada

ordenamento político os direitos e conteúdos materiais referentes àqueles

postulados.

E dessa forma, aparecem direitos da primeira, da segunda e da terceira

gerações, tais como, direitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade, conforme

tem sido amplamente destacado, com muita propriedade, por abalizados juristas.

Quanto às gerações de direitos fundamentais seriam: a primeira geração de

direitos, que dominou o século XIX, e é composta dos direitos de liberdade, que

correspondem aos direitos civis e políticos. Tendo como titular o indivíduo, os

direitos de primeira geração são oponíveis ao Estado, sendo traduzidos como

faculdades ou atributos da pessoa humana, ostentando uma subjetividade que é seu

traço marcante. São os direitos de resistência face ao Estado, e entram na categoria

Page 23: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

21

do status negativus da classificação de Georg Jellinek, fazendo também ressaltar na

ordem dos valores políticos a clara separação entre a Sociedade e o Estado. E sem

o reconhecimento dessa dicotomia, não se pode mensurar o real caráter antiestatal

dos direitos da liberdade, como tem sido professado com tanto cuidado teórico pelas

correntes do pensamento liberal de teor clássico.

São os direitos individuais que consagram as liberdades individuais impondo

limitações ao poder de legislar do Estado. Necessariamente estão inseridos no texto

constitucional e decorrem da evolução do direito natural, sofrendo decisiva influência

dos ideais iluministas como se percebe no Contrato Social de Jean-Jacques

Rousseau, também conhecidos como direitos negativos ou direitos de defesa.

A segunda geração de direitos, da mesma forma que a primeira, foi

inicialmente objeto de formulação especulativa em campos políticos e filosóficos que

possuíam grande cunho ideológico. Dominaram o século XX assim como os de

primeira geração dominaram o século XIX. Tiveram seu nascedouro nas reflexões

ideológicas e no pensamento antiliberal desse século.

Proclamados nas declarações solenes das constituições marxistas20 e

também na Constituição de Weimar21, os direitos de segunda geração exerceram

um papel preponderante nas formulações constitucionais após a segunda guerra.

Cingidos ao princípio da igualdade, sendo esse a razão de ser daqueles, os

direitos de segunda geração são considerados como sendo os direitos sociais,

20

Constituições marxistas correspondem àquelas em que os países são definidos por uma forma de

governo na qual o Estado governa sob um sistema unipartidário e declara fidelidade à ideologia Marxista-Leninista. De acordo com o Marxismo-Leninismo, as constituições desses países afirmam que todo o poder pertence à classe trabalhadora, que uma ditadura democrática do proletariado foi implementada dentro de suas fronteiras, e que eles estão construindo o socialismo, com o objetivo de alcançar o comunismo algum dia. Estados que atualmente declararam-se Marxistas-Leninistas: China - República Popular da China, desde 1° de outubro de 1949; Cuba - República de Cuba, desde 1º de janeiro de 1959; Laos - República Popular Democrática de Laos, desde 2 de dezembro de 1975; Coreia do Norte - República Popular Democrática da Coreia, desde 9 de setembro de 1948. Vietname - República Socialista do Vietnã, oficialmente no Vietnã unificado em 2 de julho de 1976, porém o Vietname do Norte é desde 1954. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_países_socialistas>. Acesso em: 24 mar. 2010.

21A Constituição de Weimar era o documento que governou a curta república de Weimar (1919-1933) da Alemanha. Formalmente era a Constituição do estado alemão. A palavra alemã Reich é traduzida geralmente como ―império‖; entretanto, uma tradução mais exata seria ―reino‖ ou ―comunidade‖. O termo persistiu mesmo após o fim da monarquia em 1918. O nome do oficial do Estado alemão era Deutsches Reich até a derrota da Alemanha Nazista no final da Segunda Guerra Mundial. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Constituição_de_Weimar>. Acesso em: 23 mar. 2010.

Page 24: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

22

culturais, coletivos e econômicos, tendo sido inseridos nas constituições das

diversas formas de Estados sociais.

Quando da declaração desses direitos, exigiram do Estado determinadas

prestações impossíveis de serem concretizadas naquele dado momento e, dessa

forma, com a juridicidade questionada, os direitos de segunda geração foram

lançados como diretrizes, ou programas a serem cumpridos, ou seja, esses direitos

foram remetidos à esfera programática.

São os direitos sociais, culturais e econômicos decorrentes dos direitos de

primeira geração e exigindo do Estado uma postura mais ativa no sentido de

possibilitar tais conquistas, sobretudo as decorrentes da regulamentação do direito

do trabalho. Estão intrinsecamente ligados ao estatuto da igualdade, de sorte que se

materializam através do trabalho, da assistência social e do amparo à criança e ao

idoso. As normas constitucionais consagradoras desses direitos, que também são

conhecidos como direitos positivos ou direitos de prestação, exigem do Estado uma

atuação positiva, através de ações concretas desencadeadas para favorecer o

indivíduo.

Quanto a esses direitos de segunda geração, salienta Paulo Bonavides22:

[...] atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. De tal sorte, os direitos da segunda geração tendem a tornar-se tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programático da norma.

Com o advento dos direitos fundamentais da segunda geração, os publicistas

alemães, a partir de Carl Schmitt, descobriram também o aspecto objetivo, a

garantia de valores e princípios com que proteger as instituições.

Os direitos sociais fizeram brotar a consciência de que tão importante quanto

salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica, dos direitos da

liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à

participação criativa e a valoração da personalidade que o quadro tradicional da

solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e isolado,

22

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 518.

Page 25: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

23

sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social

proporciona em toda plenitude.

Descobria-se, assim, um novo conteúdo dos direitos fundamentais: as

garantias institucionais. Porém, essa concepção de direitos fundamentais e que

contém garantias institucionais deve ser recebida com cautela, pois a liberdade, ao

contrário do que acontece com a propriedade, não é suscetível de ―institucionalizar-

se‖ como garantia. Se isto ocorresse, destruída ficaria a natureza mesma desse

direito, sem dúvida o mais clássico direito dos direitos a que o homem aspira. Foi o

que judiciosamente assinalou Albert Bleckmann, analisando a fundamentação

teórica dos direitos fundamentais.23

Graças a garantias institucionais, determinadas instituições recebem uma

proteção especial, conforme disse Carl Schmitt, para resguardá-las da intervenção

alteradora da parte do legislador ordinário. São, segundo o mesmo publicista, uma

categoria de direitos fundamentais, direitos que não se confundem, porém, com os

da liberdade, porquanto a estrutura dos mesmos é lógica e juridicamente outra.

Demais, é da essência da garantia institucional a limitação, bem como a destinação

a determinados fins e tarefas.24

Dessa forma, não resultou difícil a tarefa empreendida por aquele jurista de

identificar, entre outras, as seguintes garantias institucionais: as que rodeiam o

funcionalismo público, o magistério, a autonomia municipal, as confissões religiosas,

a independência dos juízes, a exclusão de tribunais de exceção etc.

Não se pode confundir, no entanto, as garantias individuais institucionais com

as ―garantias do instituto‖. Estas últimas, segundo Schmitt, ocorrem sempre em

proveito de institutos jurídicos de direito privado: a propriedade, o direito sucessório,

a família, o casamento. Sendo também garantias de direito constitucional, garantem

relações jurídicas e complexos normativos típicos, tradicionalmente sólidos, ao

passo que as garantias institucionais são pertinentes a instituições de direito público

que compõem ―uma parte da administração de assuntos públicos‖.25

Proceda-se agora à análise dos direitos fundamentais de terceira geração.

23

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 564. 24

Ibid., p. 566. 25

Ibid., p. 567.

Page 26: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

24

O mundo atual encontra-se dividido em blocos muito distintos. Seriam três

blocos, especificamente. Enfatizando, um primeiro bloco representa os países

desenvolvidos; num segundo bloco estão os países em busca de desenvolvimento

e, por fim, representando o que seria um terceiro bloco, os países subdesenvolvidos.

Dividindo desse modo, torna-se mais fácil a percepção da desigualdade

existente entre as nações. Guerras acontecem nesse dado momento que nem

sabemos existir. Milhares de pessoas morrem todos os dias, vitimadas por guerras,

doenças, pobreza, fome etc., sem que isso seja levado em consideração, ou, o que

é pior, sem que ao menos se torne fato conhecido.

Os países desenvolvidos, com suas tecnologias de ponta, ameaçam -

aguçando o pessimismo, quiçá o realismo - até a existência da própria humanidade.

É diante desse quadro que surgem os direitos de terceira geração

(fraternidade ou solidariedade). São identificados como sendo o direito ao

desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de

propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação.

São direitos fundamentais preocupados com o destino da humanidade,

basicamente relacionados com a proteção do meio ambiente, o desenvolvimento

econômico e a defesa do consumidor. Ligados a um profundo humanismo e ao ideal

de uma sociedade mais justa e solidária, materializam-se na busca por um meio

ambiente equilibrado, na autodeterminação dos povos, na consolidação da paz

universal, etc. São decorrentes da própria organização social, sendo certo que é a

partir dessa geração que surge a concepção que identifica a existência de valores

que dizem respeito a uma categoria de pessoas consideradas em sua unidade e não

na fragmentação individual de seus componentes isoladamente considerados.

Inequívoca a contribuição dessa geração para o surgimento de uma consciência

jurídica de grupo e consequentemente o redimensionamento da liberdade de

associação e de outros direitos coletivos, também conhecidos como direitos

transindividuais homogêneos, metaindividuais ou difusos.

Tecendo comentários sobre a terceira geração de direitos, Norberto Bobbio26

comenta que ―os direitos de terceira geração se tratam, sobretudo, de direitos cujos

26

BOBBIO, Norberto. El problema de la guerra y las vias de la paz. Barcelona: Gedisa, 1992. p. 89.

Page 27: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

25

sujeitos não são os indivíduos, mas sim, os grupos de indivíduos, grupos humanos

como a família, o povo, a nação e a própria humanidade‖.

Reconhecidos esses direitos de terceira geração, tendo seu gênero como

sendo a solidariedade ou fraternidade, seu desenvolvimento se exprime de três

maneiras:

1) O dever de todo Estado particular de levar em conta, nos seus atos, os

interesses de outros Estados (ou de seus súditos);

2) Ajuda recíproca (bilateral ou multilateral), de caráter financeiro ou de outra

natureza para a superação das dificuldades econômicas (inclusive coauxílio

técnico aos países subdesenvolvidos e estabelecimento de preferências de

comércio em favor desses países, a fim de liquidar déficits);

3) Uma coordenação sistemática de política econômica.

Ante essas considerações, o que resta é lutar e acreditar, para tornar possível

e viável o desenvolvimento dos direitos de terceira geração.

Lançadas as bases por Paulo Bonavides27, tem-se que ―a globalização

política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos de quarta geração,

que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social‖.

Segundo ele, os direitos da quarta geração consistem no direito à

democracia, direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a

materialização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima

universalidade, para a qual parece o mundo quedar-se no plano de todas as

afinidades e relações de coexistência.

São direitos, de quarta geração, os relativos à manipulação genética,

relacionados à biotecnologia e à bioengenharia, tratando de discussões sobre a vida

e a morte, pressupondo sempre um debate ético prévio. Sua consolidação é

irreversível, sendo certo que, através deles, se estabelecem os alicerces jurídicos

dos avanços tecnológicos e seus limites constitucionais. Essa geração se ocupa do

redimensionamento de conceitos e limites biotecnológicos, rompendo, a cada nova

incursão científica, paradigmas e, por fim, operando mudanças significativas no

27

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 524-526.

Page 28: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

26

modo de vida de toda a humanidade. Urge a necessidade de seu reconhecimento

para que não fique o mundo jurídico apartado da evolução científica.

Enquanto direito de quarta geração, a democracia positivada há de ser,

necessariamente, uma democracia direta, que se torna a cada dia mais possível,

graças aos avanços tecnológicos dos meios de comunicação, e sustentada

legitimamente pela informação correta e aberturas pluralistas do sistema.

É de se lembrar, também, que deve ser uma democracia isenta, livre das

contaminações, vícios e perversões da mórbida mídia que manipula.

No que se refere à terminologia - alvo de discussão quando cuidamos das

dimensões dos direitos - salienta Paulo Bonavides que28:

Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‗dimensão‘ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‗geração‘, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo. Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem - sem, todavia, removê-la - a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos de primeira geração.

E continua, dizendo que ―tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem,

senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica,

podendo, doravante, irradiar-se a todos os direitos da sociedade e do ordenamento

jurídico‖.

Assim, pode-se partir para a assertiva de que os direitos da segunda, terceira

e quarta geração não se interpretam, mas sim, concretizam-se. E é no seio dessa

materialização, dessa solidificação, que se encontra o futuro da globalização política,

o início de sua legitimidade e a força que funde os seus valores de libertação.

28

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 525.

Page 29: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

27

Enfim, conforme enfatiza Paulo Bonavides29: ―os direitos da quarta geração

compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-

somente com eles será legítima e possível a globalização política‖.

Os direitos de quinta geração representam os direitos advindos da realidade

virtual, demonstrando a preocupação do sistema constitucional com a difusão e

desenvolvimento da cibernética na atualidade, envolvendo a internacionalização da

jurisdição constitucional em virtude do rompimento das fronteiras físicas através da

―grande rede‖. Os conflitos bélicos cada vez mais frequentes entre o Ocidente e o

Oriente explicam o quão urgente é a regulamentação de tais direitos. A verdade é

que, a pretexto de integrar, a Internet acaba por servir ao propósito daqueles que

pretendem destruir indiscriminadamente a cultura do Oriente e do Ocidente,

promovendo uma uniformização dos padrões comportamentais norte-americanos em

todo o planeta.

Por outro lado, contra isso se levantam vozes nem sempre pacificadoras no

Oriente e os conflitos só tendem a piorar. É fato incontestável que na sociedade

moderna o grau de agressividade em virtude de relações cada vez mais

globalizadas acaba repercutindo nas outras gerações de direitos, levando, por

exemplo, ao aniquilamento de qualquer tentativa de efetivação dos direitos de

primeira geração; a total impossibilidade de se implantar os de segunda; a uma

visão demagógica dos de terceira; e a total indiferença com os de quarta geração.

Torna-se, portanto, impostergável o reconhecimento jurídico efetivo dos

direitos de quinta geração, cabendo aos operadores do Direito a busca de um

caminho harmônico para sua implantação e regulamentação internacional,

respeitando as salutares diferenças de crenças e etnias que só ajudarão a colorir o

mundo de paz.

Vencidas as colocações pertinentes às ―gerações‖ dos direitos fundamentais,

veja-se as ―dimensões‖ dos direitos fundamentais.

Tomando inicialmente a dimensão analítica, em que se há de elaborar

precisamentos conceituais, em trabalho verdadeiramente construtivista, defronta-se

com a possibilidade - que logo se revela, igualmente, uma necessidade teórica - de

29

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 526.

Page 30: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

28

situar os direitos fundamentais em várias dimensões, quando, então, assumem

conotações e uma diversidade tal que torna-se recomendável distingui-las,

nomeando-as diferentemente.

Uma primeira dessas distinções é aquela entre ―direitos fundamentais‖ e

―direitos humanos‖. De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão empírica,

os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. Contudo,

estabelecendo um corte epistemológico, para estudar sincronicamente os direitos

fundamentais, é necessário distingui-los, enquanto manifestações positivas do

Direito, com aptidão para a produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados

direitos humanos, enquanto pautas eticopolíticas, ―direitos morais‖, situados em uma

dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as

normas jurídicas, especialmente aquelas de direito interno:

Já no âmbito do próprio direito interno, há que se distinguir direitos fundamentais dos ―direitos de personalidade‖, por serem esses direitos que se manifestam em uma dimensão privatista, onde também se manifestam os direitos fundamentais, mas de forma indireta, reflexa, como mostra a doutrina alemã da eficácia perante terceiros (Drittwirkung) desses direitos.

30

E, ainda:

Já numa dimensão publicista, não há que se confundir direitos fundamentais com ―direitos subjetivos públicos‖, pois se os primeiros são direitos que os sujeitos gozam perante o Estado, sendo, portanto, nesse sentido, direitos subjetivos públicos, não há aí uma relação biunívoca, já que nem todo direito subjetivo público é direito com a estatura constitucional de um direito fundamental. Além disso, e o que é mais importante, como ensina KONRAD

HESSE, não têm apenas uma dimensão subjetiva, mas também, uma outra, objetiva, donde se falar em seu ―duplo caráter‖, preconizando-se a figura do status como mais adequada do que a do direito subjetivo para categorizá-los. A dimensão objetiva é aquela onde os direitos fundamentais se mostram como princípios conformadores do modo como o Estado que os consagra deve organizar-se e atuar. Enquanto situação jurídica subjetiva o status seria a mais adequada dessas figuras porque é aquela donde ―brotam‖ as demais, condicionando-as.

31

Na abalizada opinião de Willis Santiago Guerra Filho, ao invés de ―gerações‖

é melhor se falar em ―dimensões de direitos fundamentais‖. Nesse contexto, não se

justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem

com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos ―gestados‖ em

30

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RCS, 2005. p. 44-45.

31Ibid., p. 46-47.

Page 31: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

29

uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da

geração sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais

recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada - e,

consequentemente, também para melhor realizá-los. Assim, por exemplo, o direito

individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão

dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social e

com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função

ambiental.

Não obstante as formas que acima foram expostas, há doutrinadores, tal

como José Afonso da Silva, que estudam e classificam os direitos fundamentais da

mesma forma consagrada pela Constituição, onde se tem ordenados os direitos e

deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade, de

cidadania (direitos políticos) e, por fim, as garantias constitucionais.

Percebe-se, assim, que não se preocuparam em classificá-los como sendo

dimensões ou gerações de direitos. Preocuparam-se, sim, em estudá-los e

classificá-los individualmente, abordando um a um, de acordo com as disposições

de nossa Lei Maior.

1.4 A posição de Carl Schmitt no tocante aos direitos fundamentais

Não obstante as formas variadas em que são classificados, Carl Schmitt, por

sua vez, estuda os direitos fundamentais estabelecendo dois critérios formais e um

critério material de caracterização. Dessa feita, pelo primeiro critério formal, podem

ser indicados como direitos fundamentais todos os direitos e garantias explicitados e

alcunhados no documento constitucional. Já pelo segundo critério formal os direitos

fundamentais são aqueles que recebem da constituição um grau mais elevado de

proteção, ou segurança, ou pelo menos de alteração dificultada.

Do ponto de vista material, Schmitt entende que os direitos fundamentais

variam de Estado para Estado, dependendo de sua ideologia, de sua forma, ou seja,

cada Estado com sua especificidade de direitos. Assim, como pondera Paulo

Bonavides32:

32

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 564.

Page 32: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

30

[...] vinculando os direitos fundamentais propriamente ditos a uma concepção de Estado de Direito Liberal, sem levar em conta a possibilidade de fazer-se, como se fez, desses direitos primeiro uma abstração e, a seguir, uma concretização, independente da modalidade de Estado e ideologia, em ordem a torná-los compatíveis com o sentido de sua universalidade, Carl Schmitt, nas considerações sobre o assunto, retrata com inteira exatidão o caráter de tais direitos enquanto direitos da primeira geração.

Pelas próprias palavras de Carl Schmitt, percebe-se com facilidade o que fora

ensinado por Paulo Bonavides, pois o professor alemão diz o seguinte33:

O autêntico direito fundamental do indivíduo é sempre absoluto, e corresponde ao princípio de distribuição do Estado de Direito, segundo o qual a liberdade do indivíduo é ilimitada em princípio, e a faculdade do Estado limitada em princípio. Dessas condições de absoluto e de ilimitado em princípio não se segue a impossibilidade absoluta de ingerências e limitações. Mas estas aparecem como exceção e certamente como uma exceção calculável, mensurável e controlável como regra ao suposto e contido. Por isso, não podem ter lugar senão a base de leis, entendendo por Lei, no conceito próprio do Estado de Direito, como uma norma geral, e não como qualquer ato particular do Rei e do corpo legislativo, realizado em forma de lei. O direito fundamental e de liberdade se encontra, pois, sob a salvaguarda da lei.

Ressalte-se, também, a existência de doutrinadores que não estudam os

direitos fundamentais no âmbito da dimensão e nem da geração. É o caso de José

Afonso da Silva, que classifica e estuda os direitos fundamentais em cinco grupos de

acordo com a norma positiva, e também Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da

Silva Martins, estudando os direitos da forma em que eles se encontram positivados

em nossa Lei Maior.

1.5 A ética e o direito fundamental

Diversamente da Constituição brasileira, a italiana consagra um título

específico para tratar das relações ético-sociais. Todavia, note-se que princípios de

essência originalmente ética foram insertos no preâmbulo da Carta da República de

1988, exatamente no Título I, que trata dos princípios fundamentais. E, aqui, é

necessário abrir um pequeno parêntese para entender o que é ―princípio‖, antes

mesmo de falar sobre princípios fundamentais, inclusive porque será tratado

também, no próximo capítulo, do ―princípio da proporcionalidade‖.

33

SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constituicion. Tradução de Manoel Sanches Sarto. Madri: Tecnos, 1983. p. 133.

Page 33: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

31

Márcia Cristina de Souza Alvim com clareza ensina34:

Princípio é a base fundamental de demonstração de algo em qualquer ciência, natural ou humana, seja esta jurídica ou não. Os princípios são simultaneamente considerados autônomos e valorativos. Autônomos porque, sendo base de idéias que sustentam a experiência humana, não dependem de outras idéias, possuem vida própria. Valorativos porque contêm idéias de valor significativo, podendo exprimir verdades universais. Podemos ainda acrescentar: princípio é toda norma jurídica considerada determinante, a quem outras normas estão subordinadas. O fato de possuir alto grau de indeterminação deriva de seu caráter mais genérico, e da posição hierárquica superior que ocupa dentro do ordenamento jurídico. A função derivada dos princípios é fundamental no sistema jurídico. Eles constituem a base de aplicabilidade das normas aos casos concretos. Os princípios proporcionam equilíbrio ao sistema jurídico. Ocupam posição no ápice da pirâmide normativa e são considerados a norma das normas, e também a fonte das fontes. Por constituírem os princípios jurídicos a base do ordenamento legal, não podemos conceber a existência de normas que com eles colidam. Os princípios são, na verdade, os fundamentos de uma sucessão de outras normas.

Vale salientar, ainda, a opinião de Alvim no que concerne ao reconhecimento

das dificuldades da distinção entre princípios e regras, aduzindo alguns

questionamentos que elucidam a questão. Propõe duas indagações: ―Qual a função

dos princípios? Possuem função argumentativa ou são normas de conduta?‖ Nas

suas palavras ―os princípios podem exercer função argumentativa ou podem

identificar normas que não são expressas por qualquer lei, possibilitando àqueles

que devem aplicar a lei ao caso concreto o desenvolvimento, a integração e

complementação do direito‖.35

Os princípios fundamentais, portanto, consistem na liberdade, igualdade e

justiça: valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,

com fulcro na harmonia social. Para tanto, cumpre destacar a cidadania, a dignidade

da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a

erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais,

a eliminação dos preconceitos e de qualquer forma de descriminação.

No entanto, sob enfoque jurídico-constitucional, mostra-se sem técnica o

método de atribuir a tais princípios a natureza meramente ética, tendo em vista que,

34

ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Ensino do Direito: o conceito de educação com fundamento no Art. 205 da Constituição Federal. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro Universitário UNIFIEO, Osasco, 2006.

35ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Ensino do Direito: o conceito de educação com fundamento no Art. 205 da Constituição Federal. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro Universitário UNIFIEO, Osasco, 2006.

Page 34: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

32

conquanto tenham na origem esse perfil, após a positivação assumem a conotação

preponderante de princípio constitucional, como bem ensina José Renato Nalini36:

A solene dicção dos direitos e garantias fundamentais guarda verdadeira identidade com os preceitos éticos. Antes de serem positivados, são deveres éticos assegurar-se a igualdade de todos, a não submissão à tortura ou a tratamento desumano ou degradante, a liberdade do pensamento, o direito de resposta, a inviolabilidade da liberdade de consciência e todos os demais, naquele longo e casuístico rol.

A Constituição de 1988, assim, contempla em inúmeros dispositivos temas de

conteúdo originário meramente morais e éticos que, nela insertos, assumem status

de princípios constitucionais, embora, à obviedade, tenham fonte ético-moral.

1.6 O direito à paz como direito de quinta geração

A concepção da paz no âmbito da normatividade jurídica configura um dos

mais notáveis progressos já alcançados pela teoria dos direitos fundamentais.

Karel Vasak, o grande precursor, ao inseri-lo no rol dos direitos da

fraternidade, de terceira geração, o fez, no entanto, de maneira incompleta,

teoricamente lacunoso, não desenvolvendo as razões que o elevam à categoria de

norma. Principalmente aquelas que lhe conferem relevância pela necessidade de

caracterizar, encabeçar e polarizar toda uma nova geração de direitos fundamentais,

como era mister ter sido feito. E talvez face a essa ligeira e também superficial

menção, perdida entre os direitos fundamentais da terceira dimensão, o direito à paz

caiu em um esquecimento injusto.37

Porém, pelo oportunismo histórico e por sua originalidade criativa e inovadora,

o memorável artigo em prol de uma terceira geração de direitos do homem teve

ressonância universal.

36

NALINI, José Renato. Usina de injustiças. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A2, 18 jun. 2008. 37

Karel Vasak nasceu na Checoslováquia e, mais tarde mudou-se para França para estudar Direito. Ele decidiu permanecer lá após a invasão soviética da Checoslováquia em 1968. Ele adquiriu a cidadania francesa e trabalhou para o Conselho da Europa em vários cargos. Em 1969, tornou-se o primeiro Secretário-Geral do Instituto Internacional de Direitos Humanos em Estrasburgo, posição que ocupou até 1980. Atuou como diretor da Divisão de Direitos Humanos e Paz e depois como Assessor Jurídico da UNESCO e Organização Mundial do Turismo. Vasak foi o editor de um livro de 1982, chamado As dimensões Internacionais dos direitos humanos. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Karel_Vasak>. Acesso em: 25 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

Page 35: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

33

O abalizado publicista da Organização das Nações Unidas para a Educação,

a Ciência e a Cultura (UNESCO) assinala, naquele estudo: ―a emergência da paz

como norma jurídica‖, enunciado que por si só representava, indubitavelmente, um

largo passo avante. Mas não foi assim percebido ou conscientizado sequer pelo

próprio autor.38

Karel Vasak refere que essa emergência começou a ocorrer com a expedição

de dois documentos históricos.

O primeiro documento foi a Declaração da Organização das Nações Unidas

(ONU) sobre a preparação das sociedades para viver em paz, constante da célebre

Resolução 33/1973, aprovada na 85ª Sessão Plenária da Assembleia Geral de

15.12.1978.39

Na referida resolução a Assembleia Geral da ONU decreta que ―toda nação e

todo ser humano, independente de ração, convicções ou sexo, tem o direito

imanente de viver em paz, ao mesmo passo que propugna o respeito a esse direito

no interesse de toda a Humanidade‖.

Nas palavras de Paulo Bonavides40: ―O direito à paz é concebido ao pé da

letra qual direito imanente à vida, sendo condição indispensável ao progresso de

todas as nações, grandes e pequenas, em todas as esferas‖.

A resolução anteriormente mencionada, referindo a necessidade de

reconhecimento do direito à paz, recorda dois instrumentos de consenso

internacional que ela toma por base de apoio: a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, de 10.12.194841, e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de

16.12.1966.42

38

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 580. 39

III. Resolutions adopted on the reports of the First Committee. Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/res/33/ares33r73.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2010.

40BONAVIDES, op. cit., p. 580, nota 38.

41Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 14 mar. 2010.

42Programa Interlegis - Comunidade Virtual do Poder Legislativo, Brasília, 19 mar. 2010. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 16.12.1966. Disponível em: <http://www.interlegis.gov.br/processo_legislativo/copy_of_20020319150524/20030616104212/20030616113554>. Acesso em: 14 mar. 2010.

Page 36: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

34

O segundo documento é da Organização para a Proscrição das Armas

Nucleares na América Latina (OPANAL) acerca da paz como direito do homem,

conforme consta da não menos significativa Resolução 128 (VI), de 27.04.1979.43

A resolução aprovada pela OPANAL durante a Conferência Geral celebrada

em Quito, no Equador, diz que compartilha o critério adotado na Resolução 22/1973

da Assembleia Geral ONU, de 18.12.1978, no sentido de que todas as pessoas, os

Estados e a humanidade têm direito a viver em paz.44

Da mesma maneira, pede que a resolução por ela adotada seja levada ao

conhecimento de Secretário-Geral das Nações Unidas e do Diretor-Geral da

UNESCO, ―com expressão da vontade dos Estados que firmaram o Tratado de

Tratelolco de reconhecer, afirmar e garantir o direito à paz de seus países e de todas

as pessoas que habitam em seus territórios‖.45

Por fim, é de se destacar a Declaração de Direito dos Povos à Paz, contida na

Resolução 39, da ONU, de 12.11.1984.

A Declaração “proclama solenemente que os povos de nosso Planeta têm

direito sagrado à paz‖. E, empregando a mesma linguagem solene, acrescenta que

―proteger o direito dos povos à paz e fomentar sua realização é obrigação

fundamental do Estado‖.

1.6.1 O reconhecimento da paz como direito na doutrina e na jurisprudência

Não constituiu tarefa fácil reconhecer, admitir e proclamar a natureza jurídica

da paz, em sede teórica, como um conceito definido, autônomo, infenso a objeções

porventura suscitadas.

O constitucionalista uruguaio Héctor Gross Espiell disso teve ciência e

consciência quando colocou em reflexão, a respeito desse direito, algumas

dificuldades com as quais se depara o jurista:

O direito à paz [...] é um direito mais complexo e que apresenta mais interrogações aos juristas. Por quê? Porque hoje em dia se tem buscado

43

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 125. 44

Ibid., p. 126. 45

Ibid., p. 580.

Page 37: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

35

conceituar o direito à paz como um direito do qual podem ser titulares, segundo os diferentes casos ou situações, os Estados, os povos, os indivíduos e a Humanidade. De tal modo que se tem podido dizer, como fez Petiti, que como direito individual tem efeitos internos e internacionais e

como direito coletivo também os têm.46

No que tange à doutrina, o contributo a respeito do direito à paz tem sido

deveras escasso, consideravelmente aquém da importância que se lhe deve

conceder.

Isso vem ocorrendo desde a publicação do artigo de Karel Vasak, o

formulador da cognominada ―terceira geração‖ de direitos fundamentais, como já

amplamente citado no corpo desse estudo.

No tocante à jurisprudência, o direito à paz, como bem acentua Nestor Pedro

Sagüés, já figurou numa sentença da Sala Constitucional da Corte Suprema de

Justiça da República da Costa Rica proferida em 08.09.2004.47

Naquela ocasião o Tribunal declarou inconstitucional o ato executivo de

ingresso daquela República na coligação de Estados que, debaixo da liderança dos

Estados Unidos, se propunham a intervir no Iraque caso o governo desse país não

cumprisse as resoluções da ONU pertinentes à proibição de armas estratégicas

supostamente depositadas no território iraquiano pelo regime de Sadam Hussein.

O arresto é também de suma importância em matéria de jurisprudência

constitucional, porquanto se afasta da célebre e clássica doutrina de John Marshall,

juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos, o qual mantinha arredadas da esfera de

sindicabilidade as questões políticas, salvo aquelas que porventura implicassem

violação ou quebrantamento de direitos fundamentais, como bem assinalou Rui

Barbosa.48

Porém, o interesse maior a respeito da decisão da Corte da Costa Rica

entende como um dos fundamentos do acórdão, a saber, o direito à paz,

reconhecido e aplicado como direito positivo. Admirável passo este que colocou a

46

ESPIELL, Héctor Gross. El derecho a la paz. In: ______. Derechos humanos y vida internacional. Montevidéo: UNAM y CNDH, 2006. p. 125-126.

47SAGÜÉS, Néstor Pedro. Constitución y sociedad: la revisión de lãs cuestiones políticas no justiciables (a propósito de la Coalición contra Iraq). Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 8, Fortaleza, 2007.

48BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 582.

Page 38: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

36

paz fora das esferas abstratas e programáticas e a introduziu num direito

constitucional que tem vida e realidade e concretude!

A seguir, as palavras de Nestor Sagüés, presidente da Associação Argentina

de Direito Constitucional, como se houve a Sala Constitucional costarriquenha ao

aplicar aquele direito49:

Paralelamente, a Sala detecta a presença, nestas ações, do direito à paz, a que reconhece a condição de direito da terceira geração, do qual dá legitimidade a qualquer costarriquenho para defendê-lo. O Tribunal entende que se trata de um direito que diz respeito à coletividade em seu conjunto, como o atinente ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, à defesa da integridade territorial do país e ao bom manejo do gasto público, e, por fim, segundo o Art. 75, parágrafo 2º, da Lei de Jurisdição Constitucional (que em Costa Rica equivale a um código de processo constitucional), se reconhece legitimação processual a qualquer cidadão do país.

Até o Congresso Internacional Ibero-Americano de Direito Constitucional de

2006, celebrado em Curitiba, Paraná, a paz, nas considerações teóricas da literatura

jurídica e nomeadamente da ciência constitucional contemporânea, como já visto

anteriormente, era um direito quase desconhecido.

1.6.2 A visualização da paz enquanto direito de quinta geração

Nas palavras do ilustre Paulo Bonavides50:

Karel Vasak o classificara entre os direitos da fraternidade, fazendo avultar, acima de todos, o direito ao desenvolvimento, o mais característico, portanto, em representar os direitos de terceira geração. Tão característico e idôneo quanto a liberdade o fora em relação aos da primeira geração, a igualdade aos da segunda, a democracia aos da quarta, e doravante a paz há de ser com respeito aos da quinta.

Por fim, o direito à paz deixa a obscuridade a que ficara relegado para galgar

um degrau superior, onde, cabeça de uma geração de direitos humanos

fundamentais, sua visibilidade fica muito maior, colocando-se, portanto, em lugar de

destaque.

No passado, a Europa e a América do século XIX testemunharam o início da

era constitucional, na Idade Moderna, em termos de universalismo.

49

SAGÜÉS, Néstor Pedro. Constitución y sociedad: la revisión de lãs cuestiones políticas no justiciables (a propósito de la Coalición contra Iraq). Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 8, Fortaleza, 2007.

50BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 583.

Page 39: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

37

Porém, os dois continentes inauguravam, na realidade, nas primeiras décadas

daquele século, um constitucionalismo de vocação programática e idealista,

inspirado no contrato social, doutrinário e abstrato, filosófico e racionalista, desde as

nascentes.

Hoje, no entanto, o Ocidente, ao contrário, contempla o advento irresistível de

outro constitucionalismo, o da normatividade, dinâmico e evolutivo e, ao mesmo

tempo, principiológico e fecundo na gestação de novos direitos fundamentais.

Importante atentar que a concretização, bem como a observância desses

direitos, humanizam a comunhão social, temperam e amenizam as relações de

poder, fazendo com que o peso da autoridade seja menor sobre os foros da

cidadania.

O novo Estado de direito das cinco gerações de direitos fundamentais vem

coroar, via de consequência, aquele espírito de humanismo que, no perímetro da

juridicidade, habita as regiões sociais e perpassa o Direito em todas as suas

dimensões.51

Em termos de dignidade jurídica da paz, salientemos que esta deriva do

reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto qualitativo da

convivência humana, elemento de conservação da espécie, reino de segurança dos

direitos.

Referida dignidade só se obtêm, em termos de direitos constitucionais,

mediante a elevação autônoma e paradigmática da paz a direito da quinta geração.

É isso o que se pretende fazer nas reflexões seguintes, em busca de uma

legitimação teórica imprescindível.

Para tanto, o direito à paz será abstraído da invisibilidade em que ela foi posta

pelo construtor da categoria dos direitos da terceira geração.

E para isso é necessário desvelar esse direito na doutrina, impedindo que

esteja presente nos compêndios, nas lições, do magistério de sua normatividade,

trazendo-lhe luz, abrindo novos caminhos. Ou seja, partir para o preenchimento

dessa lacuna.

51

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 583.

Page 40: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

38

Mas, como fazê-lo?

A resposta é única: inserindo-a nas declarações de direitos, nas cláusulas da Constituição como se fez no Art. 4º, VI, da nossa Carta Magna de 1988, na didática constitucional, até que se transforme, sem nenhuma dúvida, positivo e normativo, e, uma vez elaborada a consciência de sua imprescindibilidade, proclamá-lo por norma das normas dentre as que garantem conservação do gênero humano sobre toda a face da terra. Tornando-se, portanto, a paz, o centro dos direitos da mais nova dimensão, ela se destaca, de tal modo, a obter um status jurídico que a investe no mesmo grau de importância e ascendência que teve e tem o desenvolvimento enquanto direito da terceira geração.

52

Ambos legitimados pela força e virtude e nobreza da respectiva titularidade:

no desenvolvimento, o povo; na paz, a humanidade.

Com essa gama de abrangência dos direitos fundamentais ainda há espaço

para construir a quinta geração, que se afigura ser aquela cujo lugar é o direito à

paz, objeto dessa reflexão.

Face à importância de guindar o direito à paz a quinta geração, ainda é

preciso trazer a esse estudo argumentos, razões, ponderações, para legitimar

referida assertiva.

1.6.3 A era da legitimidade resultando em uma pré-concepção de paz

Hoje o Direito está nas constituições, como ontem esteve nos códigos. Sua

legitimidade após perpassar pela crise das ideologias está assentada sobre

princípios. E entre esses princípios, um se destaca por envolver todo o Direito: o

princípio da constitucionalidade.

No passado a legitimidade cabia toda na lei e nos códigos, porque não se

dissociava da legalidade.

O princípio legal, derivado da razão que o amparava, regia todas as

ramificações do poder.

Porém, atualmente, com a legitimidade sobreposta à lei, governa a

Constituição os órgãos por onde a soberania se exerce.

52

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 584.

Page 41: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

39

De algumas décadas para cá a axiologia da justiça é o portal da legitimidade.

Seu grau normativo é superior ao da legalidade.

Antes, a lógica da razão, com a regra, a lei, o código. Doravante, o

humanismo das ideias, com o valor, o princípio, a Constituição, a justiça.

Concomitante, em termos de primazia, aparece nessa escala evolutiva a nova

hermenêutica, em substituição à hermenêutica clássica.

E o princípio, donde tudo deriva, se faz de todo raiz da normatividade.

Valendo-se das sábias palavras de Paulo Bonavides53:

Desde o romper da idade principiológica, desserve à sociedade a figura do constitucionalista neutro. Afogado, por inteiro, na teoria pura e na metodologia do formalismo, do dedutivismo, da subsunção, fica ele de costas voltadas para a circunjacência social, onde se insere a vida, e a vida de seus semelhantes. Em boa parte das Repúblicas do Hemisfério a teoria constitucional faltará a um dever histórico de reflexão e discernimento se não refutar as diretrizes políticas e ideológicas da Escola Neoliberal. Ou seja, a fatalidade de seus rumos, a inanidade de seu magistério, a frouxidão de seus propósitos e também a estranheza e impropriedade de sua receita amarga, dirigida a países privados de bases econômicas e sociais estáveis, onde ainda os direitos da primeira geração carecem, com freqüência, de garantias efetivas no tocante à execução e positividade. Certo é que a Constituição não precisa de afirmar que a ditadura constitucional é uma criação inaceitável, pela própria certeza de ser uma anti-normatividade incrustada no ordenamento, sinônimo do mais puro arbítrio, traduzindo o assassinato das Cartas Magnas, por aqueles que deflagram crises, perpetuam golpes de Estado, utilizam-se da exceção, enfim, geram a ditadura constitucional que acaba por significar a inconstitucionalidade nas instituições.

Em face às palavras acima bem definidas estão a miséria política e social,

que estabelecem a oportunidade da invasão das ―ditaduras constitucionais‖, termo

esse bem utilizado pelo constitucionalista acima citado, e que merece ser

trabalhado:

O testemunho da história não tem sido este: com a guerra os liberticistas abatem povos e sacrificam nações; com a paz os libertadores edificam Repúblicas, restauram democracias, previnem genocídios. A paz é, assim, obra da divindade; a guerra, arte do demônio. Toda democracia, em geral, é paz. Toda ditadura, ao revés, é guerra: aquela guerra civil latente entre opressores e oprimidos.

54

53

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 585. 54

Ibid., p. 586.

Page 42: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

40

Se prosseguir o cotejo, fácil verificar que a guerra aparelha a ditadura,

enquanto a paz aparelha a democracia, a qual, por sua vez, faz as nações

prosperarem.

A paz cria valores; a guerra os destrói. Abençoada a paz, que organiza e

protege a liberdade do cidadão! Maldita a guerra, que gera súditos e escravos e

esparge servidão e vassalagem entre os povos, propaga a morte e arruína

civilizações!

Com a paz, o civismo constitucional forma a consciência da cidadania, e esta

já não admite a Constituição como um código de retórica política, inchado de

promessas, em que há mais ficção e demagogia que concretude e normatividade;

mais desafeição e desfaçatez que fidelidade a valores e princípios.

A paz há de ser sempre jurídica; a guerra, sempre criminosa. A paz pertence

à Constituição, como um direito; a guerra, ao Código Penal, com um delito.55

Assim é que a ditadura constitucional fere a liberdade, as garantias do Estado

de direito, a legitimação dos Poderes, negando, por conseguinte, os valores

consagrados, os princípios, a democracia, a própria lógica, a verdade e a justiça.

É preciso assim, face a essa inconstitucionalidade material, colocar-se um

freio a essa praga que ataca principalmente as Repúblicas do Terceiro Mundo e que

frauda e ofende a Lei Suprema, através de medidas provisórias de um Poder que já

não tem cuidado nem consciência de seus deveres constitucionais.

À medida que os textos magnos permanecem silentes, nos países de

periferia, fica clara a ausência de medidas efetivas para impedir e exterminar a

ditadura constitucional. A propósito, como bem disse na tribuna portuguesa José

Maria Latino Coelho, considerado o grande publicista da liberdade: ―O silêncio da

Constituição é lei tão obrigatória como sua palavra‖.56

55

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 589. 56

COELHO, José Maria Latino. O preço da monarquia. Lisboa: David Corazzi, 1886. p. 24.

Page 43: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

41

1.6.4 A necessidade precípua de preservar a soberania e fazer da paz um

direito

Ao mencionar os países periféricos analise-se a seguinte assertiva: em

termos de legitimidade e democracia, jamais há de prosperar, em países periféricos,

Estado de direito sem Estado social.

A máxima aspiração dos povos desses países na atualidade gira em torno da

concretização dos direitos fundamentais das quatro dimensões ou gerações já

conhecidas e consagradas: direitos individuais, direitos sociais, direitos dos povos,

direitos universais. Compõem o alicerce da liberdade e o mandamento de

consciência que percorrem o campo da política e do constitucionalismo na América

Latina. E da mesma essência fazem a doutrina da soberania resgatar ali o dogma de

sua inviolabilidade.

Assim é que as nações subdesenvolvidas do subcontinente não podem nem

devem desfazer-se da qualidade soberana de seu poder, nem tampouco deixar de

professar um constitucionalismo de substrato principiológico. Se o fizerem, a alma

de liberdade e resistência que confere o ânimo do povo, amparando a causa da

nacionalidade, rapidamente decai e se extingue.

Soberania é um princípio superlativo que permite a um povo concretizar a

autodeterminação.

Os princípios constantes na Constituição, por serem princípios, regem e

encabeçam toda a hierarquia normativa do regime. Unidos com os direitos

fundamentais, que também operam como princípios, a principiologia da Constituição

forma a pedra fundamental do novo Estado de direito. E a legitimidade deste advém

do encontro desses componentes normativos, ou seja, os princípios e direitos

fundamentais.

Cabe aqui acrescentar um terceiro elemento constitutivo no seio da

democracia: a paz, como direito fundamental da quinta geração. Adicione-se aqui o

comentário a seguir a propósito da assertiva acima57: ―vamos mais longe no sonho e

57

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 589.

Page 44: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

42

na utopia, porque vislumbramos a esperança de que ela, a paz, concretize a

associação da justiça com a democracia e a união do Direito com a liberdade‖ .

1.6.5 O direito à paz como um direito fundamental de nova dimensão

No século atual, após tanto progresso e tantas conquistas em diversas áreas,

a par de tudo o que ainda temos para melhorar, podemos tornar a concórdia a tônica

da nossa civilização.

Essa ideia atrai a alma contemporânea, porque, sob o aspecto juspolítico,

acena-nos com uma ética que traz a probabilidade de governar o futuro, dando uma

direção ao comportamento da classe dirigente, legitimando-lhe os atos e relações de

poder.

Mas o elemento da concórdia vai além dessa direção, impulsionando a

necessidade de criar e promulgar aquele novo direito fundamental: o direito à paz

enquanto direito de quinta geração.

Aspiração coletiva de vários séculos, a paz é a essência de todas as

justificações em que a razão humana, sob o manto da lei e da justiça, fundamenta o

ato de reger a sociedade, de modo a punir o terrorista, julgar o criminoso de guerra,

encarcerar o torturador, manter invioláveis as bases do pacto social, estabelecer e

conservar, por intangíveis, as regras, princípio e cláusulas da comunhão política.

Como bem colocado a seguir pelo douto constitucionalista Paulo Bonavides58:

O direito à paz é o direito natural dos povos. Direito que esteve em estado de natureza no contratualismo social de Rousseu ou que ficou implícito como um dogma na paz perpétua de Kant. Direito ora impetrado na qualidade de direito universal do ser humano.

Observando-se a ordem interna dos ordenamentos jurídicos deste continente,

claro está que o ramo constitucional dos Poderes que mais colide com a harmonia

civil da sociedade é o Poder Executivo, cuja competência infla, cujos abusos se

traduzem não raro nas intervenções funestas à economia, ao desenvolvimento

social, à política e à legitimidade do sistema. Note-se, ainda, que o Poder Executivo

tudo pode onde não prepondera a Constituição, onde a liberdade é roubada através

58

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 590.

Page 45: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

43

de estratagemas, onde a centralização dos poderes desfigura o regime político,

onde a debilitada cidadania acentua a vocação dos caudilhos.

Limitado o Judiciário, a República se desfaz, a ditadura tende a ressuscitar, a

Federação perde sua natureza, e a sociedade, humilhada, passa a descrer na

justiça, que sempre foi, é e será a mais poderosa das garantias sociais e a maior

força auxiliar da liberdade.

Configurada essa desintegração, a justiça não desempenha mais o seu papel

de escudo protetor do cidadão, de guardiã da sociedade, de guardião dos direitos

individuais e sociais. Passa também a não exercer, por sua magistratura suprema e

pela jurisdição de seus tribunais, a proteção da Constituição e a tutela da ordem

republicana.

Face essa linha de pensamento cabe-nos o dever constitucional de levantar a

bandeira da paz. A paz levantada ao máximo de juridicidade, em nome da

conservação e do primado de valores impostos à ordem normativa pela dignidade da

espécie humana.

E assim, e a tal modo que possamos fazer migrar essa paz das zonas da

metafísica, da utopia, dos sonhos, para a esfera da positividade jurídica, onde se

almeja vê-la atada por norma do novo direito constitucional que ora inicia seu

contorno - o direito constitucional do gênero humano - utilizando-se de uma

expressão de Paulo Bonavides59:

Direito à paz, sim. Mas paz em sua dimensão perpétua, à sombra do modelo de Kant. Paz em seu caráter universal, em sua feição agregativa de solidariedade, em seu plano harmonizador de todas as etnias, de todas as culturas, de todos os sistemas, de todas as crenças que a fé e a curso de dignidade do homem propugnam, reivindicam, concretizam e legitimam.

Mas o que ocorrerá com quem de alguma forma conturbar essa paz ou a

negar? Cometerá crime contra a sociedade humana.

E aqui se desvela, então, o sentido mais essencial, passado de valores

intrínsecos da alma na humanidade. Valores esses que contêm imperturbável e

única força legitimadora, com capacidade de construir a sociedade da justiça, que é

59

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 590.

Page 46: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

44

fim e regra para o estabelecimento da ordem, da liberdade e do bem comum na

convivência dos povos.

Assim, o Estado que incorrer em crime ou fizer a paz faltar como direito, há de

responder perante o tribunal das nações, primeiramente no juízo contemporâneo e

depois no juízo futuro perante a História.

A seguir cabe pontuar que a defesa da paz se converteu em princípio

constitucional, inserido no Art. 4º, VI, da Constituição Federal. A partir de 1988 figura

entre os princípios que o legislador constituinte estatuiu para governarem o país na

esfera de suas relações internacionais. Assim, como todo princípio na Constituição,

tem ele a mesma força, a mesma virtude, a mesma expressão normativa dos direitos

fundamentais. Resta universalizá-lo, guindando-o a cânone de todas as

constituições.

Dessa forma, o direito à paz deve ser pleiteado como se pleiteia a igualdade,

a moralidade administrativa, a ética na relação política, a democracia no exercício do

poder.

Observe-se que, no mundo globalizado, onde as economias são

desnacionalizadas, as soberanias relativizadas e os poderes constitucionais

desrespeitados, ou opta-se pela força do direito ou pelo direito da força. Não parece

haver alternativa, posto que a primeira opção liberta, mas a segunda escraviza. E

como bem enquadra a seguinte citação60: ―uma é a liberdade; o outro, o cárcere;

aquela é Rui Barbosa em Haia, este é Bush em Washington e Guantánamo; ali se

advogam a Constituição e a soberania; aqui se canonizam a força e o árbitro, a

maldade e a capitulação‖.

60

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 591.

Page 47: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

45

2 SOBRE A PAZ

2.1 Significado de Paz

A paz é, provavelmente, uma das noções mais empregadas atualmente e

mais incorporadas ao cotidiano, seja direta ou indiretamente. As pessoas a

discutem, ou pelo menos falam sobre ela, nas conversas familiares, nas rodas de

bares, nas escolas, nas igrejas, nos parlamentos.

Esse consenso e unanimidade em torno da paz advêm de algumas razões

que devem ser salientadas. Inicialmente o fracasso de uma modernidade que

desejava a tolerância e o emergir de um sem número de guerras étnicas e religiosas

que colocaram a temática da paz como um dos principais pontos da agenda do fim

do século XX.

Por outro lado, a expansão universal da civilização técnica e científica

favoreceu a percepção das necessidades mundiais, possibilitou a integração, bem

como a interdependência entre os membros do planeta através de diversas

experiências e estruturas associativas como rede, interconexões, dando às ações

humanas tamanha repercussão universal e ampliando o conceito de cidadania.

Outra razão que convém destacar é o contexto da degradação do meio

ambiente, da economia e da cultura, que fazem a humanidade experimentar o

problema da debilitação do ser e levantar um programa ético comum, exigindo uma

ação conjunta e clamando por uma responsabilidade solidária universal.

Não se pode deixar de destacar as experiências-limite que a humanidade fez

no decorrer do século XX, como a bomba atômica e o holocausto, aliadas ao risco

destruidor das ações bélicas e aos efeitos da técnica industrial, que ameaçaram a

própria extinção da humanidade impondo a busca de uma solução global para além

dos particularismos éticos. E, por fim, o avanço da consciência da humanidade

sobre si mesma, expressa em símbolos tais como a Declaração Universal de

Direitos Humanos e os diversos pactos universais que se seguiram, provocaram

uma nova sensibilidade face aos problemas humanos, como o aumento da

percepção da violência e de suas consequências.

Page 48: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

46

Dessa forma, a paz tem emergido não apenas como clamor universal, mas

como um dos campos onde opera um certo consenso, no qual a civilização ocidental

exprime sua ideia de bem. Os estudos sobre a paz começam a se libertar do

domínio dos estudos militares sobre a guerra para ganhar autonomia e abrangência

próprias. A própria problemática da paz está sendo circunscrita de forma

abrangente, desde aspectos psicológicos, passando pela organização

socioeconômica e política, até atingir o plano cultural.

Proliferam os estudos sobre cultura de violência e cultura de paz,

estimulados, especialmente, pela UNESCO.61 As análises compreendem desde a

recusa categórica de que a guerra esteja inscrita no programa genético humano até

a proposição de novas perspectivas, passando pelo desvelar dos mecanismos de

formação, expressão e produção de uma cultura de violência e pelo conhecimento

do papel de certas agências, tais como os meios de comunicação, a escola, a

família, as instituições religiosas, o lazer. Este interesse mundial fez a ONU declarar

o ano 2000 como ―Ano Internacional por uma Cultura de Paz‖, promovendo uma

mobilização mundial em torno da temática.62

O conceito de paz positiva, tal qual desenvolvido por Johan Galtung,

permanece por demais vinculado à noção de violência. O esforço realizado pela

ONU em 2000, através do Manifesto 2000 para uma Cultura de Paz e Não-violência,

desenvolve-se em outra direção, incorporando à noção de paz elementos tais como:

respeito à vida; prática da não-violência ativa; partilha do tempo e dos recursos

materiais; defesa da liberdade de expressão e diversidade cultural; promoção de um

consumo responsável e um modelo de desenvolvimento que tenha em conta a

importância de todas as formas de vida e o equilíbrio dos recursos naturais do

planeta; solidariedade, participação, igualdade de gênero e respeito aos princípios

democráticos.63

61

GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Por uma cultura de paz. Fala, Brasil! Disponível em: <http://www.brazil-brasil.com/content/view/629/78/>. Acesso em: 26 mar. 2010.

62Direitos humanos. Por um novo começo. DHnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/bibpaz/textos/m2000.htm> Acesso em: 26 mar. 2010.

63GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: EUDCS, 2008. p. 189.

Page 49: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

47

A partir das análises realizadas, quatro elementos parecem ser importantes

para associar com a noção de paz, estreitamente vinculados entre si: justiça, direitos

humanos, democracia e não-violência.

São vários os autores de educação para a paz que insistem nessa vinculação

entre paz e justiça. Betty Reardon define a paz como ―uma ordem social, ou um

conjunto de relações humanas, na qual se pode conseguir justiça sem violência‖.64

Também o colombiano Jaime Diaz alerta para essa vinculação estreita entre

paz e justiça, lembrando que ―a deposição das armas não será feita enquanto não

for possível viver em dignidade, ganhar seu pão honestamente e fazer escutar sua

voz na arena política‖.65

Por essas razões de vinculação estreita entre justiça e paz, o educador

peruano, Azril Bacal, professor de Uppsala, Suécia, criou um termo que parece

apropriado para expressar estas conotações positivas à noção de paz: justipaz.66

No entanto, esta unanimidade sobre a paz se desfaz no próprio momento em

que se começa a pontuá-la mais detalhadamente. Nasce, então, não só uma

pluralidade de sentidos em torno da paz, mas um conflito de interpretações

propriamente dito.

Daí a importância e a necessidade de fundamentar qualquer trabalho em

torno deste eixo com uma pergunta e uma investigação sobre o sentido deste

conceito hoje tão importante.

Num primeiro momento, serão levantados e recuperados os principais

símbolos e sentidos que a humanidade foi atribuindo à paz. Num segundo momento,

serão debatidas compreensões de paz para, em seguida, serem levantados alguns

elementos para uma nova compreensão do conceito.

Essa investigação sobre o sentido da paz começa recuperando a simbólica

da paz que a humanidade, no decorrer de sua história, foi construindo. Por simbólica

64

REARDON, Betty; CABEZUDO, Alicia. Rationales for and approaches to peace education: learning to abolish war, teaching toward a culture of peace. New York: Hague Appeal for Peace, 2002.

65DIAZ, Jaime. Peace education in a culture of violence. Tronso-Norway: Magnus, 1993. p. 70.

66BACAL, AZRIL. Culturas de justipaz y desarollo humano sustentable en America Latina: aportes de una educación popular para la paz. México: Axtepec, 2000. p. 17.

Page 50: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

48

da paz entende-se o conjunto de expressões - discursos, mitos, criações artísticas,

ritos do cotidiano, através dos quais a humanidade expressou sua valoração da paz.

Para efeito didático e numa tentativa de sistematização, foram colhidas as

expressões simbólicas de acordo com o seu nascedouro cultural, em cinco grandes

tradições - grega, romana, judaico-cristã, moderna e dos contemporâneos

movimentos pacifistas -, consciente dos limites de tal divisão, tanto no que se refere

ao desconhecimento de outras tradições, quanto ao que diz respeito à multiplicidade

de sentidos que se estabelece dentro de cada tradição e dos entrelaçamentos e

emaranhados entre tradições culturais diferentes.

2.2 A Tradição Grega

Segundo os versos de Hesíodo, Eirene, a Paz, é uma das três Horas, filhas

de Têmis e de Zeus.67 As Horas - Equidade, Justiça e Paz - são figuras das

estações, divindades da natureza, zeladoras do ciclo da vegetação. Eirene é

conhecida como a deusa dos frutos, representada tendo nas mãos ou Plutão, deus

da riqueza, menino, ou a cornucópia ou um ramo de oliveira ou, ainda, um caduceu,

uma espécie de archote virado para baixo com espigas de trigo: em todos os casos,

trata-se de um símbolo que evoca prosperidade, abundância e fartura.

É importante observar esta associação da paz com a justiça e a equidade,

expressa como uma relação familiar. Ligada ao equilíbrio da natureza e da polis, a

simbólica grega da paz se associa tanto à noção de harmonia e beleza, como a de

ausência de perturbação. Há uma ordem na natureza que garante a abundância e a

fecundidade da vida, cabendo aos humanos não atentar ou quebrar este sentido

harmônico dado pelos deuses A filosofia estoica e epicurista, com seus ideais de

vida sem paixões e de serenidade da alma serão expressões destes ideais.

Depois do tratado de paz de 371 a. C. que pôs fim aos conflitos entre Atenas

e Esparta, uma estátua de bronze de Eirene, deusa da paz, esculpida por

Cefisodoto, o velho, foi erguida na praça do mercado de Atenas. Colocando a

estátua da deusa da paz no mercado, no local de maior circulação, os gregos

67

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995. v. 901, p. 157.

Page 51: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

49

expressam a função de protetora e guardiã da polis grega, amiga do Estado, sólido

fundamento da cidade, que atribuem à Eirene. As Horas, além de serem deusas da

natureza, são também divindades da ordem, que asseguram o equilíbrio da vida em

sociedade. Moradora do Olimpo, Eirene é perseguida por Polemos, a personificação

da guerra. A paz grega é experimentada como relatividade e negatividade da guerra,

interrupção, providenciada pelos deuses, do estado bélico normal.68

A fragmentação do mundo grego clássico e o advento do helenismo

provocaram mudanças nesta compreensão de paz. Quando Atenas se rendeu a

Demétrios, dito Poliorcetes, isto é, conquistador de cidades (336-282 a. C.), rei da

Macedônia, filho de Antígono, vencedor da batalha das Termópilas, os atenienses

apresentaram a ele esta prece:

Os outros deuses são distantes, ou talvez eles não escutem, ou talvez mesmo não existam, ou, quem sabe, não dão atenção a nós; a ti, ao contrário, te vemos presente, não em madeira, nem em pedra, mas verdadeiramente. Nós te imploramos, ó caríssimo, dá-nos logo a paz, tu és o Senhor.

69

Uma outra simbólica da paz estava emergindo.

2.3 A Tradição Romana

Em 13 a. C., na volta de Otávio Augusto da campanha militar da Espanha e

da Gália, o senado romano mandou construir, em comemoração às suas vitórias, um

altar à deusa da paz, a Ara Pacis Augustae, o altar da paz de Augusto.

Na íntima comemoração das vitórias imperiais, ereto exatamente no campo

de Marte, deus da guerra, local dos desfiles militares e das celebrações das vitórias,

o altar a Augusto revela as conexões entre o exército romano e a simbólica da paz.

Foi Sêneca quem utilizou, pela primeira vez, a expressão Pax Romana, ao afirmar

que sem a presença do Imperador, como chefe do exército, a Pax Romana ruiria.70

A tradição romana de paz liga-se, assim, indissoluvelmente ao poder de Roma:

68

GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: EUDCS, 2008. p. 94.

69COMBLIN, Joseph. Teológie de la paix. Paris: Éditións Universitaires, 1960. p. 51.

70SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Tradução de Ingeborg Braren; Antônio da Silveira Mendonça. Petrópolis: Vozes, 1990. v. III, p. 51.

Page 52: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

50

Paz é a paz estabelecida pelo centro do poder, desejada politicamente pelo imperador e estabelecida e garantida militarmente pelo exército romano. Toda vez que a força de Roma se impunha e o império gozava de sua paz, o imperador mandava fechar o templo de Jano Quirino, deus de todas as portas e guardião das moradas e cidades, pois a ação imperial e estatal dispensava a proteção divina. Não é à toa que Pax Romana fosse também sinônimo de Paci Augustae, isto é, a paz do imperador.

Essa concepção militarista é especialmente visualizada nas moedas

cunhadas neste período, onde a deusa da paz é representada colocando o pé direito

na cabeça de um vencido ou junta com legionários e Marte, o deus da guerra. A paz

deixa de ser associada à justiça e à equidade, como na Grécia, para se vincular à

guerra e à vitória.

A paz romana é uma paz armada, como já aconselhava Vegécio, no século

IV71: ―quem deseja a paz, prepare-se, portanto, para a guerra; quem aspira à vitória,

aplique-se a formar seus soldados‖. O ensinamento de Vegécio perpetuou-se no

célebre ditado latino Si vis pacem para bellum, repetidas vezes estampado nos

quartéis e escolas do ocidente.

A paz assume uma dimensão de segurança estabelecida sobre um sistema

centralizado, na qual a ideia de autoridade ocupava um lugar de primado em relação

à liberdade. Os versos de Virgílio: “Tu, ó romano, lembra-te de governar os povos

com o teu império. Estas artes são para ti: impor as condições de paz, poupar os

submissos e destruir os soberbos‖72 expressam esta dimensão imperialista da paz. A

paz, aqui, é concebida como dom, concessão, presente do vencedor ao vencido, por

um lado e, por outro, submissão e subserviência do vencido ao vencedor. Começa a

conjugação do verbo pacificar e apaziguar, como imposição da ordem vigente,

sendo introduzida uma ambiguidade no próprio conceito. Do lado do vencido, a paz

é experimentada como dominação, saque, escravidão. Tácito registra o sentimento

de Calgaco, chefe britânico, derrotado no ano 85: ―Saquear, degolar, depredar, a

estas coisas dão o falso nome de Império. Criam um deserto e o chamam de paz‖.73

Ao mesmo tempo, difunde-se um sentimento de tranquilidade e bem-estar

entre as fronteiras do Império. Nas regiões cobertas pela dominação romana, a

71

VEGÉCIO. Les instituitions militaires. Paris: Fírmin Didot Frères, Fils et Cie., 1969. p. 668. 72

VIRGÍLIO. Eneida. Porto: Livraria Simões Lopes, 1955. v. VI, p. 183. (Versos 851-853). 73

TÁCITO. La vie d’agricole. Tradução de Henri Marel. Paris: Bordas, 1973. p. 77. (Capítulo III: La Gemaine lês dialogues dês orateurs).

Page 53: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

51

guerra não devasta mais os campos nem as cidades. Desenvolvem-se a agricultura,

as artes, os ofícios e constroem-se novas cidades. As palavras de Ovídio expressam

este bem-estar: ―Demos graças aos deuses e à tua casa (do imperador). Já há muito

tempo, as guerras, presas em correntes, jazem sobre os vossos pés. Os bois podem

ser postos em canga e as sementes plantadas nas terras aradas. A paz nutre Ceres

e Ceres nutre a paz‖.74

Esta evocação a Ceres, divindade romana da agricultura, sinaliza um

entrelaçamento entre as simbólicas romana e grega de paz.

A condição objetiva de estabilidade política e social, em contraposição às

lutas internas do regime republicano, possibilitou o desenvolvimento, ao menos para

os cidadãos romanos, do ideal de manter a alma livre dos turvamentos e paixões,

permitindo-lhe concentrar-se sobre si mesmo e aspirar à alegria da vida

contemplativa. Aqui são colocados alguns conceitos que influenciarão,

sobremaneira, a visão ocidental: humanidade, serenidade e dignidade,

compreendidas como aversão à guerra externa, aos conflitos civis, a adesão a

certos modelos de governo justo e de equilíbrio entre as classes sociais. A

compreensão de paz experimenta uma interiorização decisiva enquanto

tranquilidade e concórdia da alma.

A tradição romana retomou alguns elementos da simbólica grega e os releu

em novos contextos. Deu à ideia de harmonia e equilíbrio o acento da ação do

Estado. Não mais a compreensão de paz para a civilização, como condição de

desenvolvimento e florescimento desta, mas a paz da civilização, consequência da

organização e ação imperial. A simbólica da paz torna-se expressão da

autoconsciência do cidadão romano. Ao mesmo tempo, imprimiu conotação de

serenidade, tranquilidade e concórdia à noção de paz, que, junto com a noção de

segurança, marcaram indelevelmente a simbólica ocidental.

2.4 A Tradição Judaico-cristã

O judaísmo, nascido a partir de um grupo de tribos que fazem a experiência

de serem libertadas de uma situação de opressão e celebram um pacto, a aliança,

74

OVÍDIO. Lês fastes. Paris: Librarie Garnier Frères, 1940. p. 42-43. (Versos 701-704).

Page 54: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

52

com a divindade pela qual creem terem sido libertadas, elaborou, através da

literatura, uma compreensão própria de paz. São textos poéticos, oráculos

proféticos, fragmentos legislativos, orações, com uma variedade de expressões e

contextos. O termo shalom aparece 239 vezes no Antigo Testamento75, apontando

para uma pluriformidade e complexidade de significados, tais como: prosperidade,

bem-estar, felicidade, saúde, segurança, salvação, relações sociais equilibradas,

harmonia com Deus, vida em plenitude, metáforas para a realização e completude

humanas. Segundo o Dicionário Bíblico de Mackenzie,

[...] o verbo cognato do substantivo significa coisas tais como terminar, completar, pagar (por exemplo, completar uma transação, pagando um débito); assim, pode-se dizer que a palavra significa em geral completitude, perfeição, talvez mais precisamente, uma condição à qual não falta nada.

76

A dimensão da aliança, com seus significados de compromissos e

promessas, marca profundamente a simbólica bíblica da paz, como se pode notar

em textos tais como Lev. 26, 3-1377; Sal. 29, 1178; Is. 26, 1279; Núm. 25, 1280; Núm 6,

26.81 Esta mesma conotação de aliança dá origem aos mais conhecidos símbolos da

paz: a pomba e o ramo de oliveira. O relato se encontra em Gên. 8, 6-1182, dentro do

ciclo de Noé e da narrativa sobre o dilúvio. Após os 40 dias de dilúvio, Noé soltou

uma pomba para ver se as águas haviam baixado na superfície do solo. A pomba,

não encontrando onde pousar, voltou a ele na arca. Sete dias depois, soltou

novamente a pomba. ―À tarde, ela voltou a ele, tendo no bico um ramo novo de

oliveira‖. Após este relato, firma-se uma aliança entre Deus e a humanidade (Gên.

9).83

75

GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: Editora Universidade Caxias do Sul, 2008. p. 99.

76MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1995. p. 703.

77BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 168. (Antigo Testamento).

78BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 704. (Antigo Testamento).

79BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 851. (Antigo Testamento).

80BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 214. (Antigo Testamento).

81BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 184. (Antigo Testamento).

82BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 9. (Antigo Testamento).

83BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 9-10. (Antigo Testamento).

Page 55: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

53

A prática da aliança, porque baseada na promessa, cria a expectativa da

chegada de um tempo pleno, os tempos messiânicos. A chegada do Messias,

descrito ele mesmo como ―Príncipe da Paz‖ (Is. 9, 6)84, é gerada em imagens

antimilitaristas: espadas transformadas em arados e lanças transformadas em

podadeiras e o fim do ensinamento para a guerra, botas que batem com estrépito e

mantos revolvidos em sangue sendo queimados, carros de combate sendo

eliminados, os arcos de guerra sendo despedaçados e a paz sendo proclamada às

nações (Zac. 9,10).85 O fim das guerras faz parte da maioria das representações

escatológicas, onde é o próprio Deus quem quebra as armas de guerra (Os. 2, 20).86

Essa paz messiânica é expressa também através de uma simbólica da

confraternização universal, pautada por imagens como o lobo habitando junto com o

cordeiro, o leopardo deitando-se perto do cabrito, o bezerro e o leãozinho sendo

alimentados juntos e conduzidos por um menino, a criança de peito brincando no

ninho da áspide e colocando a mão na boca da víbora (Is. 11, 6)87; (Ez. 34, 25)88;

(Os. 2, 20).89

Outro veio no qual se expressa a simbólica da paz judaica liga-se às tradições

referentes à cidade de Jerusalém, etimologicamente cidade do ―Deus da Paz‖, ou

visão de paz. Além de Salmos como 12190 e 14691 com suas invocações como ―a

paz reine dentro de tuas muralhas‖ ou ―paz sobre Israel‖, é preciso lembrar os textos

do assim chamado Terceiro Isaías que, no contexto da volta do exílio da Babilônia,

em 520 a. C., proclama a criação de uma Nova Jerusalém. As imagens para

expressar esta cidade da paz relacionam-se muito com os textos precedentes: não

haverá nem choro, nem gemidos, será velho quem morrer aos cem anos, os

84

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 836. (Antigo Testamento).

85BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 1116. (Antigo Testamento).

86BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 1068. (Antigo Testamento).

87BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 839. (Antigo Testamento).

88BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 1024. (Antigo Testamento).

89BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 1068. (Antigo Testamento).

90BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 768. (Antigo Testamento).

91BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 777-778. (Antigo Testamento).

Page 56: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

54

agricultores plantarão suas vinhas e comerão seus frutos, os operários construirão

casas e morarão nelas (Is. 60-62)92; (Is. 65, 18-25).93 A paz, no conceito filosófico, é

compreendida como obra da justiça, segundo a belíssima expressão plástica do

Salmo 85: ―justiça e a paz se beijaram‖ (Sal. 85, 10).94 E aqui vale destacar o tema

da Campanha da Fraternidade de 2009: ―Sem justiça não há paz‖, valendo lembrar

que o referido tema, ao atrelar a paz à justiça, inserida na força de uma campanha

dessa envergadura, mostra a necessidade de assim ser.

A paz, assim simbolizada, entra em conflito com outras tradições de paz

presentes nos próprios textos bíblicos. É preciso assinalar, em primeiro lugar, a

denúncia que os profetas fazem de certas compreensões de paz. Por fim, é preciso

lembrar a coexistência e a interpenetração da simbólica da paz acima referida com

outra simbólica, a da guerra santa e do Deus guerreiro.

Percebe-se, na compreensão judaica de paz, alguns elementos já presentes

na tradição grega, como a simbólica da abundância e a vinculação com a justiça, e,

em muitos círculos, uma recusa e oposição da simbólica militarista romana. Esta

oposição à pax romana será aprofundada, de maneira especial, com o cristianismo.

O cristianismo, a princípio, faz-se herdeiro da simbólica profética. O próprio

evento Jesus de Nazaré é lido a partir da categoria da paz, como alguém que

derruba fronteiras e limites e recusa a guerra e a violência. Alguns textos mostram

esta autoconsciência da comunidade cristã primitiva: ―Ele apareceu aos que se

acham nas trevas e na sombra da morte, a fim de guiar os nossos passos no

caminho da paz‖ (Luc. 1, 79).95 Ainda: ―É ele, com efeito, a nossa paz; do que era

dividido fez uma unidade; em sua carne destruiu o muro de separação, o ódio‖. (Ef.

2, 14).96 Segundo Maria Clara Lucchetti Bingemer: ―esta importância dada a tal

conceito e palavra, no fundo, está conectada com o evento central do Novo

92

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 888-890. (Antigo Testamento).

93BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 893. (Antigo Testamento).

94BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 741. (Antigo Testamento).

95BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 84. (Novo Testamento).

96BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 275. (Novo Testamento).

Page 57: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

55

Testamento, que é a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, evento ligado de modo

característico à idéia de paz‖.97

Na boca de Jesus, a expressão atinge complexidade. Shalom é, com efeito, a

primeira palavra do Ressuscitado, quase como um programa. Jesus usa, diversas

vezes, a expressão ―vai em paz‖. No Sermão da Montanha, proclama felizes os que

promovem a paz (Mat. 5, 9).98 No entanto, ao definir sua missão, afirma

expressamente que ―não veio estabelecer a paz sobre a terra, mas a divisão‖,

certamente numa crítica à pax romana. Neste mesmo sentido, João registra a

palavra de Jesus aos discípulos na última ceia: ―eu deixo a paz, eu dou a paz, mas

não como o mundo a dá‖ (João 14, 27).99 Esta polêmica pode ser encontrada na

expressão paulina: ―a paz de Deus que supera toda compreensão‖ (Fil. 4, 7).100

Palavras como as ditas por Jesus durante sua prisão, repreendendo a atitude

de Pedro: ―Embainha a tua espada, pois todos os que tomam a espada morrerão

pela espada‖ (Mat. 26, 52)101 repercutiram enormemente no imaginário cristão

primitivo. Tertuliano, um cristão do século II, ao comentar este texto, afirmava102:

Como pode alguém fazer a guerra, como pode alguém prestar o serviço militar, mesmo em tempo de paz, se o senhor lhe tirou a espada? De fato, vieram soldados a João para receber regras para sua conduta; de fato, um centurião chegou à fé; mas com o desarmamento de Pedro, o Senhor tirou a espada de todo soldado.

Muitas comunidades, como a de Roma, no século III, recusaram o batismo

aos soldados. As primeiras comunidades autoentendem-se como realizadoras da

profecia de Isaías, das espadas transformadas em arados e do fim de toda guerra.

Orígenes, no século III, assim se expressa103: ―Pois nós não pegamos mais em

97

BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; COSTA, Rosemary F. da; RIBEIRO, Márcio H. da S. F. Violência e não violência na história da Igreja. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 59, n. 236, p. 842, dez. 1999.

98BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 7. (Novo Testamento).

99BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 157. (Novo Testamento).

100BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 284. (Novo Testamento).

101BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. p. 45. (Novo Testamento).

102ZAMBAGLIONE, Gerardo. L’Idea della pace nel mondo ântico. Torino: Ediziomi Raí Rasiotelevisione italiana. 1967. p. 352.

103ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Marcel Borret. Paris: Garnier, 1969. v. 3, p. 99.

Page 58: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

56

espada contra nenhum outro povo e nem nos dedicamos a fazer a guerra: em Jesus

Cristo nos tornamos filhos e filhas da paz‖.

Justino de Roma, no século II, ao se dirigir ao imperador para justificar o

proceder cristão, insiste (in verbis)104:

Nós estávamos antes cheios de guerra, de mortes mútuas e de toda maldade, mas renunciamos em toda a terra aos instrumentos guerreiros e transformamos as espadas em arados e as lanças em instrumentos para cultivar a terra, e cultivamos a piedade, a justiça, a caridade, a fé e a esperança.

Esta prática é legitimada teologicamente, quando o autor da Carta a Diogneto

afirma: ―Em Deus não há violência‖.105

Esta insistência em marcar a recusa de toda violência é acompanhada com a

preocupação em encetar, naquelas comunidades à margem do Império, um

relacionamento marcado pela unanimidade e equidade. Para os cristãos primitivos, a

paz é um dom messiânico e não apenas uma simples disposição da alma. Como

dom messiânico, deve ganhar expressão no cotidiano. Assim, a paz assume

conotações próprias da concórdia, compreensão que marcará indelevelmente a

simbólica ocidental da paz.

Quando o cristianismo assumiu a cultura helenista, a compreensão cristã, até

hoje hegemônica, recebeu influências do neoplatonismo e do estoicismo, passando

a se aproximar do conceito greco-romano. Os homens e mulheres que, após o fim

das perseguições, reagiram a um certo laxismo do cristianismo e migraram para o

deserto, incorporaram em seus ensinamentos elaborações e conceitos como os de

paz da alma, oriundos dos estoicismo. Santo Ambrósio, bispo de Milão, no século IV,

abandona a recusa categórica da violência, ao afirmar106: ―que se pode servir da

violência, própria dos animais, se a discussão, característica da humanidade, não for

mais possível‖. Santo Agostinho se aproxima do ideal greco-romano de equilíbrio da

natureza e da sociedade, subsumindo neste a compreensão bíblica de justiça, na

sua clássica definição de paz como ―tranqüilidade da ordem‖.107

104

HIPÓLITO DE ROMA. Tradição apostólica. Petrópolis, Vozes, 1981. p. 47-48. 105

GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: EDUCS, 2008. p. 104.

106COSTE, René. Theologie de la paix. Paris: Editions Du Cerf, 1997. p. 140.

107SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo: Edaméris, 1964. v. 3, p. 127.

Page 59: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

57

Uma profunda transformação na simbólica cristã estava sendo operada. Esta

vai perdendo não apenas sua dimensão de contraponto em relação à Pax Romana,

mas seu próprio eixo estruturante em torno da justiça. Ao invés de pensar a paz e

sua vinculação com a justiça, os teólogos iniciam suas elaborações sobre a guerra

justa. É verdade que tais preocupações geraram instituições significativas como a

Pax Dei e a Tregua Dei, quando os combatentes erguiam suas bandeiras brancas,

símbolo da trégua que se estabelecia nos dias santos. Mas o caminho para outras

instituições, como as cruzadas e a inquisição, totalmente estruturadas na violência e

no poder bélico, estava aberto. A autoconsciência cristã de recusa total às armas e à

violência estava distante demais.

Mas a simbólica da paz continuava presente no ritual cristão, no Osculum

pacis, na oração pela paz, no reiterado clamor Da nobis pacem, em hinos como

―Gloriosa Jerusalém, alegre visão de paz‖, nas preces exequiais Requiescat in

pacem. Mas já era uma simbólica demasiadamente íntima e privada, paz dos

claustros e paz dos cemitérios, sem força de protagonizar e liderar um projeto global

para a humanidade.

2.5 Na Idade Média

2.5.1 A Idade Média cristã pacifica os povos

A Idade Média, tal como se apresentava, corria o risco de nunca conhecer

senão caos e decomposição. Nascida de um império desmoronado e de vagas de

invasões sucessivas, era formada por povos desarmônicos.

Esta Europa tão dividida, tão perturbada quando do seu nascimento,

atravessa uma era de harmonia e de união tal como ela nunca conhecera e não

conhecerá talvez mais no decorrer dos séculos.

Sabe-se que a Europa inteira estremeceu à palavra de homens como Urbano

II, como Pedro, o Eremita, e mais tarde de outros, como São Bernardo ou como

Foulques de Neuilly. Monarcas que preferiram a arbitragem à guerra submeteram-se

ao julgamento do Papa ou de um rei estrangeiro para regularizar as suas

dissensões.

Page 60: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

58

Praticamente, a cristandade pode definir-se como a ―universidade‖ dos

príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma doutrina, animados de

uma mesma fé e reconhecendo desde logo o mesmo magistério espiritual.

Essa comunidade de fé traduziu-se numa ordem europeia assaz

desconcertante para cérebros modernos, bastante complexa nas suas ramificações,

grandiosa, contudo, quando a examinamos no seu conjunto. A paz na Idade Média

foi muito precisamente, segundo a bela definição de Santo Agostinho, a

―tranquilidade‖ desta ordem.

Nas relações entre a Igreja e os Estados, estamos habituados a ver na

autoridade espiritual e na autoridade temporal dois poderes claramente distintos.

Contudo, se nos integrarmos na mentalidade da época, não é a Santa Sé que impõe

o seu poder aos príncipes e aos povos, mas estes príncipes e estes povos, sendo

crentes, recorrem naturalmente ao poder espiritual, quer eles queiram fazer

fortalecer a sua autoridade ou respeitar os seus direitos, quer desejem fazer

solucionar as suas questões por um árbitro imparcial. A tentativa audaciosa de unir

os dois poderes, o espiritual e o temporal, para o bem comum se salda num êxito.

Era uma garantia de paz e de justiça este poder moral (da Igreja) do qual não se

podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos, entre outros o de se ver

despojado da sua própria autoridade e afastado da estima dos seus súditos.

Durante a maior parte da Idade Média, o direito de guerra privada continua

considerado como inviolável pelo poder civil e pela mentalidade geral; manter a paz

entre os barões e os Estados apresenta, portanto, imensas dificuldades, e, se não

fosse a cristandade, a Europa corria o risco de nunca passar de um vasto campo de

batalha.

O sistema feudal maneja toda uma sucessão de arbitragens naturais: o

vassalo pode sempre recorrer de um senhor ao suserano deste último; o rei, à

medida que a sua autoridade se estende, exerce cada vez mais o seu papel de

mediador; o Papa, enfim, continua o árbitro supremo. Basta, frequentemente, a

reputação de justiça ou de santidade de um grande personagem para que se

recorra, assim, a ele.

Page 61: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

59

A Idade Média não contestou o problema da guerra em geral mas, por uma

série de soluções práticas e de medidas aplicadas no conjunto da cristandade,

restringiu sucessivamente o domínio da guerra, as crueldades da guerra, as

durações da guerra. É assim, com leis precisas, que se edificou a cristandade

pacífica.

A primeira destas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde o fim o século

X: é também a primeira distinção que foi feita, na história do mundo, entre o fraco e

o forte; é feita proibição de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os

clérigos; as casas dos agricultores são, como as igrejas, declaradas invioláveis.

A grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação do soldado, é

ter feito do soldado da velha guarda um cavaleiro. Aquele que se batia por amor dos

grandes golpes, da violência e da pilhagem tornou-se o defensor do fraco;

transformou a sua brutalidade em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem

consciente, a sua turbulência em atividade fecunda. A cavalaria é a instituição

medieval da qual com maior gosto se guardou a recordação.

O cavaleiro deve ser piedoso, dedicado à Igreja, respeitador das suas leis: a

sua iniciação começa com uma noite inteira passada em orações diante do altar

sobre o qual está deposta a espada que ele cingirá.

A cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média; o sentido da palavra

―cavalheiresco‖, que ela nos legou, traduz muito fielmente o conjunto de qualidades

que suscitavam a sua admiração. Basta percorrer a sua literatura, contemplar as

obras de arte que dela nos restam, para ver por todo o lado, nos romances, nos

poemas, nos quadros, nas esculturas, surgir este cavaleiro que se representa.

Quando uma máquina de guerra é demasiado mortífera, o papado proíbe o

seu emprego; o uso da pólvora de canhão, cujos efeitos e composição se conhecem

desde o século XIII, só começa a propagar-se no dia em que a sua autoridade já não

é suficientemente forte e em que já se começam a esboçar os princípios da

cristandade.

Page 62: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

60

Escreve Orderic Vital: ―por temor de Deus, por cavalaria, procurava-se

aprisionar de preferência a matar. Guerreiros cristãos não têm sede de espalhar

sangue‖.108

Outro ponto interessante a salientar é o que concerne às negociações de paz

que estão sempre ligadas à diplomacia.

Ela é uma das práticas mais antigas da humanidade e consiste na condução

de negociações e na habilidade de lidar com assuntos sem causar hostilidade. Há

mais de quatro mil anos, mensageiros já viajavam pela Mesopotâmia em missões de

guerra e de paz.

Na Grécia antiga, os ―embaixadores‖ eram enviados a cidades-estados para

entregar mensagens de seus governos. O termo ―diplomacia‖ vem do grego

―diploma‖ e, em Roma, foi usado para designar documentos de viagem.

Segundo escreveu Demétrio Magnoli, organizador do livro ―História da

Paz‖109:

A diplomacia moderna nasceu nas cidades livres da Itália renascentista. Naquela época consolidaram-se as convenções diplomáticas, como a apresentação de credenciais ao governo estrangeiro e a instituição do privilégio da imunidade dos diplomatas.

2.5.2 A igreja é o árbitro

O período entre o fim do Império Romano, em 476, e a Paz de Westfália (que

colocou fim na Guerra dos Trinta Anos) e a formação dos Estados nacionais

modernos (1648) foi dominado pela associação Igreja-Estado. Os acordos eram

feitos entre soberanos. ―A partir de Westfália a negociação é feita entre atores, que

são Estados nacionais‖, explica o cientista político Christian Lohbauer.110

Até o século XVI, muitos tratados ainda eram feitos por meio de juramentos

testemunhados por membros da igreja. A partir do século XVII, a maioria dos

documentos passou a ser escrito, com os príncipes descrevendo todas as suas

108

PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Tradução de António Manuel de Almeida Gonçalves. Lisboa: Publicações Europa América, 1996. p. 36.

109MAGNOLI, Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. p. 15.

110ROMANO, Roberto. História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. p. 84.

Page 63: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

61

posses, como garantia. Outra forma de garantir o cumprimento dos acordos era a

troca ou entrega de reféns.

Roberto Romano assim nos informa (in verbis)111: ―Antes da Reforma

Protestante, o papa assume o papel de maior figura internacional. Por não ter

ligações com esta ou aquela potência em conflito, seu arbítrio é geralmente acatado.

Nas relações internacionais da Idade Média, a Santa Sé determina o fim das guerras

e as disputas são examinadas no tribunal do papa‖.

Segue texto de Santo Agostinho que traduz a importância de pacificar (in

verbis)112:

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus‖ (Mt 5, 9). Quem são os pacíficos? São aqueles que fazem as pazes. Vês pessoas desavindas? Sê entre elas ministro da paz. Mas se queres ser pacífico entre dois amigos em discórdia, começa por ser pacífico em relação a ti mesmo: deves pacificar-te interiormente, onde talvez travas contigo próprio uma luta quotidiana. Porventura não lutava consigo mesmo aquele que dizia: ―A carne tem desejos contrários ao espírito, e o espírito contrários aos da carne. Um e outra opõem-se mutuamente, pelo que não podeis fazer o que vos apetece‖ (Gal 5, 17)? São palavras do santo Apóstolo, que diz também: ―Deleito-me com a lei de Deus, segundo o homem interior; vejo, contudo, outra lei nos meus membros, contrária à lei da minha mente, que me aprisiona na lei do pecado que reside nos meus membros‖ (Rom 7, 22-23). Se, portanto, existe no próprio interior do homem uma rixa quotidiana, e o objectivo dessa luta louvável é impedir que as coisas mais importantes sejam superadas pelas inferiores, que a libido vença a mente e que a concupiscência vença a sabedoria. Nisto consiste a recta paz que em ti deves conseguir: que o que há de melhor em ti domine sobre o inferior. Ora, o que há de melhor em ti é onde reside a imagem de Deus. A isto se chama mente, se chama inteligência; aí arde a fé, aí se fundamenta a esperança, aí se acende a caridade. Quer, pois, a tua mente ser capaz de vencer as tuas concupiscências? Submeta-se a quem é maior e vencerá quem lhe é inferior, e haverá em ti uma paz verdadeira, certa, ordenadíssima. Qual é a ordem desta paz? Deus impera sobre a mente, a mente sobre a carne: não há nada de mais ordenado.

Essa atitude de tranquilidade estabelecida advém do platonismo, através do

cristianismo, via Santo Agostinho, concebendo a paz como tranquilidade da ordem.

Platão associa a paz em todos os níveis à ordem estabelecida, à concórdia, à

calma e à temperança, como domínio das paixões, chamada por ele de ―déspotas

furiosas‖ que arrancam os homens das virtudes.113 Sem dúvida, a paz é atributo do

111

ROMANO, Roberto. História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. p. 86. 112

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 263-264. (Sermão 53).

113PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 5-9. (Livro I).

Page 64: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

62

homem justo, subordinação da paixão à razão. E o que é válido para o homem,

tomado individualmente, é aplicável também para a coletividade, de forma que um

homem em paz, senhor de si mesmo, pertence a si plenamente e vive em paz com

seus vizinhos. Nenhuma sedição se levanta nele. Assim a paz não é tanto o

contrário da guerra, como da discórdia. Nada é pior para uma cidade ou um lar que

uma sedição: a sedição é a pior de todas as guerras.114

Para Santo Agostinho, a paz assume a conotação de repouso harmonioso,

ordenado e hierárquico, tornando-se o fim de toda a atividade humana. A partir

dessa definição, Santo Agostinho entrelaça a guerra e a paz, de forma que, para

ele115, ―a paz é o verdadeiro fim da guerra. O homem com a guerra busca a paz,

mas ninguém busca a guerra com a paz‖.

Entendendo que a perturbação da ordem da paz é também desprezo pela

ordem divina, Santo Agostinho reconhece o emprego da violência bélica como meio

necessário para restabelecer e manter a paz; não deixando, ele mesmo, de pedir o

uso da força militar para reprimir os cismáticos donatistas que, segundo sua

compreensão, ameaçavam a unidade da Igreja na África do Norte.

2.6 Na Modernidade

O esfacelamento da cristandade medieval, o surgimento dos Estados

nacionais, a emergência do capitalismo, a ascensão da burguesia, o aparecimento

da racionalidade moderna, foram fatores que contribuíram para redimensionar a

simbólica da paz, até então caracterizada pela atribuição de uma dimensão divina à

paz, concebida seja como divindade, seja como dom da divindade dado à

humanidade. Quando, no entanto, caem os fundamentos religiosos e místicos, surge

a necessidade de uma justificativa não religiosa da aspiração da humanidade à paz.

Foi na filosofia, especificamente num gênero literário da filosofia moderna do

Direito, em torno do eixo da assim chamada paz perpétua, que a simbólica moderna

da paz ganhou expressão.

114

PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 248. (Livro V).

115SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo: Edaméris, 1964. v. 3, p. 166-167.

Page 65: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

63

O ponto de partida foi a obra do holandês Hugo Grotius (1583-1645), ―O

direito da guerra e da paz‖ (De jure belli ac pacis), publicada em 1625, que,

influenciado fortemente pelo humanismo cristão, postula um direito comum a todos

os povos, válido para a guerra e na guerra, de forma que ela só possa ser

desenvolvida de acordo com normas explícitas. A contribuição de Grotius, ao

mesmo tempo em que colaborou para o fim da doutrina da guerra justa, radica em

abrir um caminho para a doutrina da mediação e da arbitragem nas questões de

guerra e paz, introduzindo o elemento do debate e da discussão em relação a essas

questões para além da aceitação tácita. Também contribuíram as reflexões de

Thomas Hobbes (1588-1679), no ―Leviatã‖; de Bento de Espinosa (1632-1677), no

seu ―Tratado Político‖, e de John Locke (1632-1704), no ―Segundo tratado sobre o

governo civil‖, especialmente pela ênfase em acentuar o papel do Estado na

consecução da paz.116

Para Hobbes, o estado da natureza é um estado bélico, segundo a clássica

expressão da guerra de todos os homens contra todos os homens, de forma

que117: ―a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens

podem chegar a acordo‖. Assim, Hobbes afirma não apenas a paridade entre Estado

e paz, mas a identidade entre o estado civil da soberania estatal e o estado da paz.

Uma paz sem estado é para ele tão inconcebível quanto um estado sem paz.

Também Espinosa compartilha dessa compreensão do Estado como

condição de paz ao defender que118 ―o fim em vista do qual um estado civil se funda;

este fim não é senão a paz e a segurança da vida”.

Se, para ele, o melhor estado ―é aquele em que os homens vivam na

concórdia‖119, isso implica condições, tais como a milícia não receber qualquer

pagamento, em tempo de paz, ou nenhum cidadão possuir bens fixos.

Locke, por sua vez, contrapõe o estado natural de guerra ao direito natural

que ordena a paz. Para ele, foi para evitar a guerra que os homens se reuniram em

116

GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: Universidade Caxias do Sul, 2008. p. 113.

117HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1988. v. 2, p. 77. (Coleção Os Pensadores).

118ESPINOSA, Bento de. Tratado político. Tradução de Manuel de Castro. Lisboa: Esperança, 1997. p. 47.

119Ibid., p. 48.

Page 66: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

64

sociedade120, ―pois onde há uma autoridade, um poder sobre a terra, onde se pode

obter reparação através de recurso, está excluída a continuidade do estado de

guerra e a controvérsia é decidida por aquele poder‖.

Fundamentados nessa concepção jurídica da paz pelo Estado, são dezenas

os autores que, entre os séculos XVII e XVIII, elaboraram reflexões onde a temática

da paz perpétua foi incluída no título ou no conteúdo, todos eles visando à

superação de uma série de guerras e conflitos que compunha o cotidiano da vida

das nações naquele tempo.

Assim, à guisa de exemplo, o Duque de Sully, ministro de Henrique IV de

França, em suas ―Memórias‖ (1638-1662) propõe o reajuste territorial da Europa e o

fim das aduanas. Willian Penn, membro da Igreja Quacker, em seu ―Ensaio para

chegar à paz presente e futura da Europa‖ (1693) torna-se um precursor da

comunidade europeia, propondo a instalação de um parlamento. O Abbé de Saint-

Pierre (Charles Irénée Castel), de Paris, escreveu, em 1712, ―Projeto de paz

perpétua‖, texto comentado posteriormente por Jean-Jacques Rousseau em

―Julgamento sobre a paz perpétua do Abbé de Saint-Pierre‖. Jeremy Benthan (1748-

1832), em ―Um plano para a paz universal e perpétua‖, de 1789, propõe o desarme e

o abandono das colônias e insiste no papel decisivo da publicidade, em oposição à

diplomacia secreta. Em 1792, Jean Baptiste Cloots publicou ―La République

Universel‖, enquanto Immanuel Kant escreveu, em 1795, ―À paz perpétua‖, que vem

a ser um marco profundo na filosofia moderna e na modernidade.121

Analisando o texto kantiano, três aspectos chamam a atenção. Em primeiro

lugar, a expressão largamente usada de paz perpétua. Kant assinala que o adjetivo

―perpétua‖ é um pleonasmo suspeito, distinguindo entre armistício (adiamento das

hostilidades) e paz (fim de todas as hostilidades). Assim como os homens livres se

associam para instaurar a paz, os Estados deveriam se confederar para instituir a

paz perpétua. Formariam, assim, uma federação de paz distinta do pacto de paz,

uma vez que este simplesmente procura pôr fim a uma guerra, enquanto aquela

intenta acabar com todas as guerras para sempre.

120

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes; Marisa Lobo da Costa. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. p. 94.

121Cf. GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: Universidade Caxias do Sul, 2008. p. 176.

Page 67: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

65

Em segundo lugar, a ênfase na aliança e no pacto. O próprio texto de ―À paz

perpétua‖, que contém o subtítulo de ―um projeto filosófico‖, foi redigido em forma de

um tratado, com direito a artigos preliminares, artigos definitivos, cláusulas secretas

e até mesmo um apêndice. Aqui já se encontra, através do estilo, uma conotação

dada pelo pensamento moderno: a paz nasce de um pacto, portanto, fruto de uma

decisão racional. Immanuel Kant toma como ponto de partida o fato de que a paz

não é natural, devendo ser, por isso, instaurada. Como a omissão de hostilidades

não é ainda a garantia de paz, é preciso detalhar positivamente em que consiste o

estado da paz internacional.

Em terceiro lugar, o estatuto de projeto filosófico que é dado à paz perpétua.

Definindo a paz como projeto, Kant redefine a própria ideia de paz. As diversas

distinções feitas ao longo do texto - entre armistício e paz, entre omissão de

hostilidades e garantia de paz, entre tratado de paz e liga de paz - mostram que

Kant recusa o conceito de paz como intrincada rede de astúcias, derivada do jogo do

poder e como ideia vazia, descrevendo-o como ―uma tarefa que, solucionada pouco

a pouco, aproxima-se continuamente de seu fim (porque os tempos em que iguais

progressos acontecem tornar-se-ão oxalá cada vez mais curtos)‖.122

Pelo próprio fato de defini-la como um projeto filosófico, Kant torna a paz um

tema filosófico relevante. Desta forma, Kant retira o tema da paz do domínio

religioso, do imaginário utópico e do sentimento comum, dota-o de racionalidade e

incorpora-o na filosofia crítica.

Como projeto filosófico, a paz assume uma perspectiva transcendental,

radicando sua essência no sujeito racional e livre. Ao enunciar o segundo artigo

definitivo, Kant afirma que123: ―a razão, de cima de seu trono do poder legislativo

moralmente supremo, condena absolutamente a guerra como procedimento de

direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato‖.

122

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Antônio Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989. p. 80.

123Ibid., p. 67.

Page 68: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

66

No apêndice que trata da discordância entre a moral e a política, dá à paz

perpétua não apenas o estatuto de um bem físico, ―mas também como um estado

proveniente do reconhecimento do dever‖.124

É a partir deste fundamento filosófico que começa a ser utilizada a figura da

construção para definir a obra da paz. Até então, paz e guerra eram consideradas

realidades inalteráveis na filosofia, direito e moral. O máximo que se podia fazer era

erguer as bandeiras brancas, quando os víveres, as munições ou a resistência se

esgotavam e a derrota apresentava-se como iminente. A bandeira da paz era, neste

contexto, ao mesmo tempo afirmação da paz e da guerra, da paz na guerra, mas

não da paz contra a guerra. O Iluminismo começou a duvidar da inevitabilidade da

guerra e a pesquisar as bases de uma ordem de paz baseada na razão. A paz

passou a fazer parte do projeto da modernidade de vencer a barbárie.

124

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Antônio Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989. p. 68.

Page 69: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

67

3 HANNAH ARENDT, A PENSADORA QUE VIVEU PARA BUSCAR A PAZ

3.1 Dados Biográficos Importantes de Hannah Arendt

Faz-se mister para melhor compreender a pensadora Hannah Arendt pontuar

alguns aspectos de sua biografia.

Arendt nasceu em 14 de outubro de 1906, em Linden, próximo a Hanover,

mas passou a infância e adolescência em Königsberg, hoje Kaliningrado. Ela vem de

uma família judia liberal, culta e com boa situação financeira. Era muito ligada ao

avô paterno, Max Arendt, personalidade influente da cidade, por sua combatividade

em promover a integração dos judeus no Estado alemão, opondo-se ao sionismo

(tema que será tratado nesse trabalho), responsável segundo ele, por querer

separar os judeus da comunidade nacional. Avô e neta dividem suas emoções, seus

modos de vida. A relação de Arendt com sua origem judaica passou primeiramente

pelo avô, eis que não foi constituída de textos talmúdicos ou pela leitura da Bíblia,

mas pelos cantos que ouvia na sinagoga, pelas conversas do rabino em casa de seu

avô durante o jantar, pelos deliciosos pratos da festa do Pessach. No entanto, a

palavra ―judeu‖ nunca foi pronunciada entre sua família, pois, para seu avô, ser

judeu não constituía um signo sem distinção, ser judeu era uma evidência. 125

A relação de Arendt com a judeidade vai constituir o fio condutor de sua vida,

tanto pessoal como intelectual. Ela própria revela que: ―Foi por intermédio dos

comentários anti-semitas das crianças da rua - que não valem a pena ser lembrados

- que a palavra me foi pela primeira vez revelada. A partir desse momento que fui,

por assim dizer, ‗esclarecida‘‖.126

Antes de completar sete anos morrem, sucessivamente, seu avô e seu pai.

Em 1914 explode a guerra. Hannah Arendt e sua mãe fogem para Berlim,

onde se abrigam em casa de parentes, voltando para Königsberg, dez semanas

mais tarde, onde a vida voltou ao normal, apesar da continuidade da guerra.

125

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 25. 126

ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A dignidade da política. Tradução de Antonio Abranches; César Almeida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. p. 123-143.

Page 70: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

68

A mãe de Hannah, Martha Arendt, não se pode também deixar de mencionar,

pelo fato de que sempre teve engajamento político, principalmente com a guerra.

Seu apartamento, a partir de 1916, se transforma em lugar de encontros e

discussões políticas dos social-democratas. É nessa ocasião, inclusive, que Martha

Arendt torna-se admiradora de Rosa Luxemburgo, tida como uma das ―agitadoras‖

mais extremistas e revolucionárias da social-democracia, que participa de reuniões

para defender suas posições com o lema: ―Abaixo a guerra. Abaixo o governo‖,

mesmo depois de já ter sido presa por incitar os militares à desobediência. Na

verdade, o propósito de Luxemburgo eram as posições pacifistas, que passam a ser

seguidas por Martha, por parte da juventude e alguns intelectuais da época, que

admiram e compactuam com sua postura.

Luxemburgo participou do movimento ―espartaquista‖127 que ainda hoje se

conhece muito pouco, mas que marcou o lugar das mulheres durante esses anos de

guerra. Nas grandes cidades da Alemanha, mulheres se organizavam para dar voz a

suas ideias de cidadãs engajadas contra a guerra e de mães em revolta contra a

penúria alimentar. Em 18 de novembro de 1915, duzentas mulheres fazem uma

passeata em frente ao Palácio de Reichstag. Em 28 de maio de 1916, elas

organizam uma manifestação pela paz diante do parlamento. Em 28 de novembro,

entre duzentas e trezentas mulheres conseguem que sua manifestação seja lida

pelo comitê de direção do partido social-democrata. As mulheres não cessarão, até

o fim da guerra, de multiplicar suas ações. Na casa de Martha Arendt, ressoarão

durante esses quatro anos querelas e contradições que dividem partido social-

democrata.128

O acima exposto torna-se importante para este estudo, à medida em que

Hannah Arendt acompanha a mãe nessas reuniões políticas e nas manifestações de

rua, vivenciando, apesar da pouca idade, esse clima que ficará gravado na história

da Europa, pois o destino da Alemanha está em suspenso e, entre a guerra e a paz,

a utopia da revolução e a edificação da república de Weimar se fazem presentes.

127

Espartaquista: A Revolução Alemã de 1918-1919 é uma série de eventos que ocorreram entre aqueles anos e que marcou o final da Primeira Guerra Mundial. Tal revolução culminou com a derrubada do Kaiser e o estabelecimento de uma república democrática. Liderada por Rosa Luxemburgo, a Liga Espartaquista, de tendência próxima ao comunismo libertário, teve um importante papel na revolução, apesar de o evento não se resumir à atuação da Liga. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolução_Alemã_de_1918-1919>. Acesso em: 20 mar. 2010.

128ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 31-32.

Page 71: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

69

Isso faz com que ela, no limiar de sua infância, com essa explosão de violência,

passe ao um questionamento intelectual que vai persegui-la até a morte.

Quanto à Rosa Luxemburgo, apesar de toda a agitação e de todo sangue

que envolvem as respostas às suas posturas, ela não desiste e acreditará até o fim

na continuação e no contágio da revolução. E Hannah Arendt vai admirar até seus

últimos dias a capacidade de Luxemburgo de, em qualquer circunstância, mostrar a

necessidade de uma liberdade absoluta, não apenas individual, mas pública. Em

Berlim, na noite de 15 de janeiro de 1919, Luxemburgo, depois de ter passado por

um interrogatório no estado-maior da cavalaria da guarda, foi assassinada no parque

de Tiergarten e seu corpo jogado no Landwehr Kanal, mas com a versão oficial de

que fora morta por desconhecidos, não tendo sequer direito a um velório. Um poeta

ainda desconhecido na época, Bertolt Brecht, que se tornará mais tarde amigo de

Arendt, lhe dedicou um poema com o título de ―Epitáfio 1919‖.129

No entanto, face a esses acontecimentos, Arendt se mostrará cética em

relação à crença inabalável na mudança da sociedade. Reforma ou revolução? Essa

questão também vai acompanhá-la, por toda sua vida, e será objeto de suas obras.

Arendt prepara-se para a Universidade, apresentando grande precocidade

intelectual, mas também no amor. Ela começa um relacionamento com Ernst

Grumach, um rapaz apaixonado por filosofia e que segue os primeiros cursos de

Martin Heidegger, relatando a ela a emoção que suscita nele essa paixão por

compreender as coisas. Ela teve a sorte de encontrar muito cedo uma turma de

amigos formada por jovens excepcionalmente dotados, abertos para o mundo,

entusiastas e generosos. Eles pertenciam a um mundo desaparecido, no qual a

cultura servia de cimento, no qual a erudição era algo normal e onde o judaísmo

evocava uma história mais que uma crença. A maioria deles quase nunca tinha

sofrido com o antissemitismo. Eles se consideravam alemães judeus e alemães,

mas intelectuais acima de tudo. Entre eles, Walter Benjamin, Hans Jonas, Gershom

Sholem.130 Benjamin, já aberto à mística, tem um único astro que o guia em suas

129

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 34-35. 130

Gershom Scholem (5 de dezembro de 1897 - 21 de fevereiro de 1982), também conhecido como Gerhard Scholem, foi um filósofo e historiador judeu. Ele é amplamente considerado como o fundador do moderno estudo acadêmico da Kabbalah, tornando-se o primeiro professor de misticismo judaico na Universidade Hebraica de Jerusalém. Seus discursos e ensaios selecionados, publicados como ―Da Kabbalah e seu simbolismo‖ (1965), ajudaram a difundir o

Page 72: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

70

inúmeras pesquisas políticas e filosóficas: Friedrich Hölderlin131. Gershom Sholem

relê Platão, estuda matemática e começa a se interessar pela renovação do

judaísmo com os escritos de Martin Buber.132

Hannah Arendt estuda filosofia e também teologia. Quando entra na

Universidade de Marburg, aos dezoito anos, feudo do neokantismo, segue os cursos

de Paul Natorp133, um dos principais pensadores da ―escola de Marburg‖ cuja

palavra de ordem era o retorno a Immanuel Kant. O referido curso era sobre a

―Crítica da faculdade de julgar‖, a terceira crítica escrita por Kant, e considera a

filosofia transcendental a energia criativa do conjunto da filosofia. Apesar da pouca

idade ela está preparada, pois aprendeu filosofia clássica sozinha, iniciou-se em

Soren Kierkegaard em Berlim, leu a ―Crítica da razão pura‖ de Kant aos dezesseis

anos e experimenta entusiasmo por tudo o que tem relação com o mundo das

ideias. A esse desejo de erudição mistura-se também a vontade de encontrar

soluções para os tormentos existenciais que a assaltam.134

Em 1924 Arendt é aceita no seminário de Edmund Husserl e procura se

inscrever no cenáculo fechado da comunidade de estudantes que já idolatra Martin

Heidegger. Ele se proclama aluno de Husserl, mas também de Karl Jaspers135, de

quem ela futuramente se tornará grande amiga e a quem havia descoberto

conhecimento do misticismo judeu entre os não-judeus. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Gershom_Scholem>. Acesso em: 20 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

131Johann Christian Friedrich Hölderlin nasceu em 20 de março de 1770, em Lauffen am Neckar e morreu em 7 de junho de 1843, em Tübigen. Foi um poeta lírico e romancista alemão. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Hölderlin>. Acesso em: 20 mar. 2010.

132Martin Buber (Viena, 8 de fevereiro de 1878 - Jerusalém, 13 de junho de 1965) era filósofo, escritor e pedagogo, judeu de origem austríaca e de inspiração sionista. Tinha educação poliglota: em casa aprendeu ídiche e alemão, e, na escola, hebraico, francês e polonês. Sua formação universitária se deu em Viena. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Buber>. Acesso em: 20 mar. 2010.

133Paul Gerhard Natorp (24 de janeiro 1854 – 17 de agosto de 1924) foi um alemão neokantiano, filósofo e pedagogo, da Escola de Marburg. Ele era conhecido como uma autoridade em Platão. Nasceu em Dusseldorf. Ele foi uma influência sobre os primeiros trabalhos de Hans Georg Gadamer e teve um profundo efeito sobre o pensamento de Edmund Husserl. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Paul_Natorp>. Acesso em: 20 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

134ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 49.

135Karl Theodor Jaspers (Oldelburg, 23 de fevereiro de 1883 – Basiléia, 26 de fevereiro de 1969). Foi filósofo e psiquiatra alemão. Após estudar medicina e trabalhar no hospital psiquiátrico da Universidade de Heidelberg, tornou-se professor de psicologia da Faculdade de Letras dessa instituição. Desligado de seu cargo pelo regime nazista em 1937, foi readmitido em 1945 e, três anos depois, passou a lecionar filosofia na Universidade de Basel. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Jaspers>. Acesso em: 20 mar. 2010.

Page 73: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

71

adolescente, através da obra ―A psicologia das concepções do mundo‖. Essa leitura

teve uma influência determinante sobre ela, pois lhe permitiu rejeitar a filosofia dos

professores e compreender que a verdadeira interrogação filosófica tem como tarefa

única o questionamento dos problemas da existência.

Quando Hannah Arendt passa a assistir aos cursos de Martin Heidegger, que

são disputadíssimos, percebe que ele é um homem que intriga, seduz, fascina. A

partir daí nasce um relacionamento entre eles, apesar dos ideais políticos

antagônicos, pelo fato de em um futuro breve ele aderir ao nazismo, contra o que ela

luta durante toda sua vida adulta.136

Arendt conhece Günther Stern em 1925, durante um curso de Heidegger, que

fazem juntos, e tornam-se em breve marido e mulher.

No verão de 1930, Arendt se vê obrigada a abandonar Berlim. Acaba sendo

detida pela Gestapo137, mas consegue escapar, refugiando-se em Paris, onde

permanece até 1940, momento em que o exército alemão invade a França,

trabalhando para organizações sionistas e no resgate de crianças judias do Terceiro

Reich levadas à Palestina.

Arendt conhece também Heinrich Blücher, procedente de Berlim, membro

refugiado da Liga Espartaquista de Rosa Luxemburgo e filósofo autodidata, com

quem se casa em 1940, poucos meses antes da entrada do exército alemão na

França.

A estada em Paris é abruptamente interrompida em maio de 1940. Arendt é

detida pelas autoridades francesas como ―estrangeira inimiga‖ e enviada, junto com

outros refugiados procedentes da Alemanha, ao campo de internamento de Gurs,

nos Pirineus, triste lembrança na memória dos refugiados da Guerra Civil espanhola.

Como ela ironizaria, ―[...] a história contemporânea criara um novo gênero de seres

humanos: aqueles que tinham sido levados aos campos de concentração por seus

136

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 51. 137

Gestapo - significando polícia secreta ―do Estado‖. Sob a administração geral da SS, era supervisionada pela RSHA e considerada uma organização dual da Sicherheitsdienst e até 1939 uma parte da Sicherheitspolizei. Reinhard Heydrich foi o principal chefe de operações, sendo substituído por Gestapo Müller após o atentado contra a vida de Heydrich. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gestapo>. Acesso em: 20 mar. 2010.

Page 74: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

72

inimigos e aqueles levados aos campos de internamento por seus amigos‖138. Por

sorte, o caos provocado pela entrada do exército alemão na França permite-lhe

novamente fugir e reencontrar seu marido, com quem, em maio de 1941, empreende

o caminho para o exílio nos Estados Unidos.

Hannah Arendt chega aos Estados Unidos como apátrida e recebe a

nacionalidade norte-americana apenas em 1951. Ali, compartilha o destino de

muitos intelectuais europeus refugiados, geralmente acolhidos com pouco

entusiasmo no país. Os primeiros anos de exílio são duros. No entanto, será nesse

país que ela desenvolverá sua luta em defesa dos judeus como seres humanos,

através de seus escritos, suas obras, sua postura, suas atitudes.139

Certamente há muito para expor sobre sua vida, porém esse não é um

trabalho biográfico. Como explicitado no início desse capítulo, essa parte da

pesquisa tem apenas o condão de pontuar momentos importantes da vida dessa

pensadora, o que ajudará a melhor desenvolver e compreender a proposta de elegê-

la como a pensadora que, durante toda sua vida, teve como preocupação buscar a

paz.

3.2 Os Judeus e o Nascimento do Antissemitismo

Antes de iniciarmos essa reflexão faz-se necessário saber algo sobre o

antissemitismo.

Segundo a definição dos dicionários, antissemita é todo inimigo do povo

judeu, de sua cultura ou de sua influência. Também pode ser considerada uma

aversão ao judaísmo como etnia. Contudo, devido à ampla difusão da cultura judaica

pelos povos do mundo, nem sempre é possível identificar um judeu etnicamente nos

dias de hoje.140

A definição nominal de ―antissemita‖ apresenta uma determinada

incongruência na sua formação: os ―semitas‖, que segundo a Bíblia seriam os

descendentes de Sem, filho de Noé, não só são apenas os judeus, mas também os

138

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 175. 139

Ibid., p. 339. 140

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 132.

Page 75: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

73

povos árabes. Por estes motivos há autores como Gustavo Perednik que preferem

utilizar o termo judeofobia, significando ―aversão a tudo o que é judaico‖.141

A palavra alemã antisemitismus foi usada pela primeira vez em 1873, já com

seu sentido atual, pelo jornalista e escritor político alemão Wilhelm Marr, que a

aplicou como um eufemismo no lugar da expressão ―ódio aos judeus‖. Nessa época

a ciência racial estava na moda na Alemanha, mas o ódio religioso ainda não lá

constava. Este termo serviu de alternativa à palavra alemã mais antiga Judenhass,

significando ódio aos judeus.142

Tanto quanto pode ser confirmado, a palavra foi impressa pela primeira vez

em 1880. Nesse ano, Marr publicou ―Zwanglose Anti-semitische Hefte‖ (cadernos

informais antissemitas) e Wilhelm Scherer usou o termo Anti-semiten no jornal ―Neue

Freie Presse‖ de janeiro. A palavra relacionada ―semitismo‖ foi cunhada por volta de

1885.143

Muitos fatores motivaram e fomentaram o antissemitismo, incluindo fatores

sociais, econômicos, nacionais, políticos, raciais e religiosos, ou combinações

destes fatores.

Na Idade Média, as principais raízes do ódio contra judeus foram religiosas,

baseadas na pretensa ―doutrina‖ da Igreja Católica de que os judeus são

coletivamente e permanentemente responsáveis pela morte de Jesus Cristo (note-se

que essa visão surgiu na Idade Média e não é mais aceitável pela Igreja Católica);

socioeconômicas, devido à ação de autoridades locais, governantes, e alguns

funcionários da Igreja que fecharam muitas ocupações aos judeus, permitindo-lhes

no entanto as atividades de coletores de impostos e emprestadores, o que sustenta

as acusações de que os judeus praticam a usura.

Um dos grandes repercussores do antissemitismo ao longo da História foi o

regime do nazismo, na Alemanha do século XIX. Atualmente, o ódio ao judeu

frequentemente apoia-se em ideais nazistas, mesmo sendo o próprio pensamento

141

Antissemitismo. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antissemitismo>. Acesso em: 20 mar. 2010.

142Antissemitismo. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antissemitismo>. Acesso em: 20 mar. 2010.

143CAVALCANTE, Ania. Holocausto e Antissemitismo. Artigo publicado em 11 mar. 2009 no site: LEI (Laboratório de Estudos sobre a Intolerância). Disponível em: <http://www.rumoatolerancia.usp.br/material/Artigos/holo>. Acesso em: 22 mar. 2010.

Page 76: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

74

antissemita muito mais antigo.

3.3 O Sionismo e o Sionismo Reconsiderado por Hannah Arendt

Em uma prévia observação desse estudo no que tange ao sionismo, convém

primeiramente, alguns esclarecimentos a respeito de sua origem bem como de seu

significado.

Obtendo o seu nome de Sião (Sion, Zion), que é o nome de um monte nos

arredores de Jerusalém, o sionismo é um movimento político que defende o direito à

autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado Judaico, por isso

sendo também chamado de nacionalismo judaico144. Ele se desenvolveu a partir da

segunda metade do século XIX, em especial entre os judeus da Europa Central e do

leste europeu, sob pressão de pogroms145 e do antissemitismo crônico destas

regiões, mas também na Europa Ocidental, em seguida ao choque causado pelo

caso Dreyfus.146

Em 1896, o livro ―Der Judenstaat‖ do austro-húngaro Theodor Herzl, um dos

líderes do Movimento Sionista, pregava que o problema do antissemitismo só seria

resolvido quando os judeus dispersos pelo mundo pudessem reunir-se e

estabalecer-se num Estado nacional independente.

Formalmente fundado em 1897, o sionismo era formado por uma variedade

de opiniões sobre em que terra a nação judaica deveria ser fundada, sendo cogitado

de início estabelecê-la no Chipre, na Argentina e até no Congo, entre outros locais

julgados propícios.147

144

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 1593.

145Pogrom: historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus e outras minorias étnicas daEuropa. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pogrom>. Acesso em: 21 mar. 2010.

146O caso Dreyfus foi um escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do século XIX. Centrava-se na condenação por alta traição de Alfred Dreyfus em 1894, um oficial de artilharia do exército francês, de religião judia. O acusado sofreu um processo fraudulento conduzido s portas fechadas. Dreyfus era, em verdade, inocente: a condenação baseava-se em documentos falsos. Quando os oficiais de alta-patente franceses se aperceberam disto, tentaram ocultar o erro judicial. A farsa foi acobertada por uma onda de nacionalismo e xenofobia que invadiu a Europa no final do século XIX. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus>. Acesso em: 21 mar. 2010.

147MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

Page 77: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

75

A chamada diáspora judaica, ou seja, a dispersão dos judeus pelo mundo, foi

o principal argumento de ordem religiosa a vindicar o estabelecimento da pátria

judaica na Palestina.

A tese do retorno ao lugar de origem ganhou a grande maioria dos adeptos

por ter forte apelo religioso, baseado na redenção do povo de Israel e na ―terra

prometida‖. Por outro lado, outras correntes a consideravam uma compulsão retórica

heroica e sentimental, e alguns até a reprovavam duramente, alegando que esta

―redenção‖ teria de ser obra de Deus, não de ações políticas.

A partir de 1917 o movimento focou-se definitivamente no estabelecimento de

um estado na Palestina, a localização do antigo Reino de Israel.

Porém, quando o movimento sionista moderno se consolidou, no final do

século XIX, a região da Palestina já estava cultural e etnicamente arabizada, ou

seja, era habitada por uma população de esmagadora maioria árabe, lá enraizada

por longa e consistente migração e assimilação iniciada por volta do ano de 650 e

que perdurou e floresceu por mais de 400 anos, durante as dinastias árabes

Omanida, Abássida e Fatímida e que, apesar de dominações posteriores, manteve

suas principais características. Os judeus que habitavam a região formavam uma

minoria.148

Era portanto evidente que, para o estabelecimento de um Estado judeu, os

sionistas teriam de fazer uma grande alteração para mudar o equilíbrio étnico e

demográfico da região, mesmo porque o projeto de um Estado judaico padrão

deveria basear-se em utopias religiosas e culturais bem próprias, exclusivas e

definidas com os costumes e o idioma do povo judeu que habitavam o leste

europeu, uma cultura totalmente estranha à pequena comunidade judaica local.

Observe-se que o objetivo primordial do sionismo, que era o estabelecimento

de uma pátria judaica, sempre foi bem visto pelos organismos internacionais, tanto

que a Liga das Nações (Mandato de 1922) como a ONU aprovaram desde logo os

princípios básicos do sionismo, extensíveis aliás, a qualquer povo da terra. Esta

148

MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

Page 78: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

76

simpatia aumentou, e muito, após a descoberta do genocídio dos judeus praticado

pelos nazistas alemães durante a Segunda Guerra Mundial.149

Apesar de não haver evidência de qualquer interrupção da presença judaica

na Palestina há mais de três milênios, é fato incontroverso o concurso de várias

migrações substitutivas em massa, com a saída de judeus e a entrada de outros

povos, notadamente árabes.

Na segunda metade do século XIX, havia, na região, comunidades judaicas

remanescentes, quando se organizou a migração de retorno de judeus,

notadamente de ideário socialista, que se propunham a reformar a região,

estabelecendo-se nela imediatamente.

Assim Mikveh - Israel - foi fundada em 1870 através da Aliança Israelita

Universal, seguida por Petah Tikva (1878), Rishon LeZion (1882) e outras

comunidades agrícolas fundadas pelas sociedades Bilu e Hovevei Zion.150

Em 1897, o Primeiro Congresso Sionista proclamou a decisão de restabelecer

a antiga pátria judia em Eretz Yisrael. Naquele momento, a Palestina era parte do

Império Turco Otomano. Esta decisão fez o sionismo diferente da maioria dos outros

nacionalismos, porque seus proponentes reivindicavam para a etnia um território

que, na sua maior parte, não era por eles habitada.

A Grã-Bretanha expressou seu apoio ao sionismo com a Declaração de

Balfour, de 1917. Na mesma época, instalou-se de fato o Mandato Britânico da

Palestina, em consequência da perda dos territórios pelo Império Otomano,

derrotado na Primeira Guerra Mundial. Nos anos seguintes, verificou-se um

crescimento substancial na imigração de judeus, com grande aumento da população

de origem judaica.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, na fase final do Mandato

Britânico, já era flagrante a violência mútua e descontentamento entre árabes e

judeus, agravada com a chegada de novas levas de imigrantes, oriundos das

perseguições nazistas na Europa. Como solução para os conflitos, em 1947 a ONU

149

MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010.

150FOLHA ON LINE. Saiba mais sobre a fundação de Israel. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u399537.shtml>. Acesso em: 07 mai. 2008.

Page 79: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

77

propôs e foi aceito o Plano de Partilha da Palestina, que consistia na formação de

dois estados - um judeu e outro árabe, concedendo 55% da terra para o estado

judeu e o restante ao estado árabe. A representação judaica aceitou o plano, que foi

no entanto rejeitado pelos países árabes.151

No dia 14 de maio de 1948, véspera do fim do mandato britânico da Palestina,

já em meio a um estado de guerra civil entre árabes e judeus, foi declarada pela

Agência Judaica a criação do Estado de Israel. No dia seguinte, teve início a

chamada guerra árabe-israelense de 1948, quando cinco estados árabes vizinhos

(Transjordânia, Líbano, Egito, Síria e Iraque) iniciaram movimentos de exércitos

regulares para invadir a região e destruir o recém-criado estado judaico. Ao longo

dos meses seguintes, os judeus alcançaram vitórias decisivas, aumentando seu

domínio territorial na região, o que causou a fuga de cerca de 900 mil palestinos da

áreas incorporadas, os quais se tornaram refugiados nos países vizinhos.152

A esta guerra, seguiriam-se a Guerra de Suez (1956), a Guerra dos Seis Dias

(1967), a Guerra do Yom Kippur (1973) e diversos outros conflitos.

Atualmente, Egito, Jordânia e a Organização para a Libertação da Palestina

(OLP), como representante dos palestinos - isto é, dos árabes que habitavam a

Palestina à época do Mandato Britânico e que devem constituir o povo do futuro

Estado árabe-palestino, previsto pelo Plano de Partilha - reconheceram o Estado de

Israel. Esta não é, entretanto, a posição do Líbano, Síria, Iraque e Arábia Saudita,

nem do Hamas - organização política palestina majoritária na Autoridade Nacional

Palestina - desde as eleições de 2005 e que atualmente controla a Faixa de Gaza -

e nem tampouco da organização política xiita libanesa Hezbollah.153

Apesar de tudo, ao longo dos sessenta anos da existência de Israel, o

movimento sionista continuou a atuar no apoio ao fortalecimento do Estado e

promovendo a integração de imigrantes judeus no país.

151

FOLHA ON LINE. Saiba mais sobre a fundação de Israel. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u399537.shtml>. Acesso em: 07 mai. 2008.

152ALVAREZ, Ricardo. A formação de Israel. Disponível em: <http://geografiaeconjuntura.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010.

153ALVAREZ, Ricardo. A formação de Israel. Disponível em: <http://geografiaeconjuntura.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010.

Page 80: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

78

Diversas correntes de pensamento são importantes para a compreensão do

sionismo hoje. Achad Haam, por exemplo, foi o criador de uma visão peculiar do

sionismo mas que é intimamente ligada aos dias atuais. Há ainda Rav Kook, com o

sionismo religioso, e Jabotinsky, criador da União Mundial dos Sionistas

Revisionistas.154

Relativamente às críticas dirigidas ao sionismo, de que seria um movimento

de cunho racista, seus partidários defendem-se alegando que o sionismo não é

doutrinariamente unificado e coeso, possuindo diversas versões divergentes umas

das outras. Além disso, alguns também discordam afirmando que palestinos e

judeus não são racialmente distintos, e assim não se aplicaria o termo já que a

discriminação não se funda na raça.

Após as detalhadas colocações acima, sobre o que significa o sionismo, a

seguir será tratado do que representou para Hannah Arendt o sionismo e qual foi

sua posição.

Em 1945, no Oriente Médio, a situação política fica tensa, e o terror é

praticado dos dois lados. Os atentados perpretados pelos extremistas judeus contra

estabelecimentos britânicos complicam as negociações com a Grã-Bretanha para a

fundação de um Estado judeu. Nessa época Arendt luta para publicar os

manuscritos de seu amigo Walter Benjamin e recebe insistentes convites de seus

amigos que moram na Palestina para que junte-se a eles, indo também lá morar,

para que possam refletir e discutir a situação dos judeus. Porém ela se recusa, pois

entende de maneira diferente deles, que para lutar pela causa dos judeus não é

necessário estabelecer-se na Palestina.

De Nova York, Arendt pleiteia que seja acordado um status jurídico aos

sobreviventes da Shoah155, todos esses judeus que, desde 1940, não têm

154

Sionismo. Pensadores sionistas. Wikipédia, enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sionismo>. Acesso em: 21 mar. 2010.

155A palavra ―holocausto‖ tem origens remotas em sacrifícios e rituais religiosos e da Antiguidade, em que plantas e animais (até mesmo seres humanos) eram oferecidos às divindades sendo completamente queimados durante o ritual. Nesse caso, holocausto quer dizer cremação dos corpos (não necessariamente animais). Este tipo de imolação corpórea, post mortem, também foi usado por tribos judaicas, como se evidencia no Livro do Êxodo: ―Então, Jetro, sogro de Moisés, trouxe holocausto e sacrifícios para Deus; [...]‖. A partir do século XIX, a palavra holocausto passou a designar grandes catástrofes e massacres até que, após a Segunda Guerra Mundial, o termo Holocausto (com inicial maiúscula) foi utilizado especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime

Page 81: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

79

documentos, identidade nem nacionalidade, que são apátridas, portanto refugiados,

mas refugiados tratados como estrangeiros hostis. Ela fica indignada com essa

situação de ―não direito‖ que os rejeita e humilha. Não concorda também, que só a

Palestina pode absorvê-los. Ela acredita que o povo judeu sobreviverá à guerra e

afirma que a queda de Adolf Hitler não significa automaticamente o fim do

antissemitismo na Europa.156

A partir de agosto de 1944, Hannah Arendt se opõe cada vez mais

veementemente à política sionista conduzida na Palestina. Propõe à revista

―Commentary‖ um artigo histórico e político sobre a própria essência do sionismo,

em que recapitula os cinquenta anos de política sionista. Porém a citada revista

recusa, sob a alegação de que um leitor mal intencionado poderia detectar muitas

implicações antissemitas. Face a essa resposta, ela entende que está sendo levada

a questionar o significado de sua judeidade ou a dividir as dificuldades do judaísmo

e as contradições com as quais o movimento sionista tem de lidar na Palestina.

Correndo o risco de cair no idealismo, prefere levantar os problemas, antes que seja

tarde demais, em vez de fugir deles. Mas o ―Memorial Journal‖ decide publicar esse

texto, que parece mais um ensaio do que um artigo de jornal, com o título ―Sionismo

reconsiderado‖. Esse texto foi para ela o início das novas pesquisas que a

conduzirão na direção da obra ―Origens do totalitarismo‖, objeto também desse

estudo. Ao longo de sua vida ela inspirará suas reflexões sobre a nação, o Estado e

a própria possibilidade de sobrevivência da democracia.157

Ela constata o fracasso do sionismo, critica a última resolução da maior seção

da Organização Sionista Mundial, que adotou, por unanimidade, a reivindicação de

um território judeu, livre e democrárico, abarcando toda a extensão da Palestina,

sem divisão nem diminuição desta. Teme que essa resolução seja um golpe fatal

para os partidos judeus de esquerda e extrema esquerda, que lutaram por um

acordo entre árabes e judeus, e que reforce consideravelmente a minoria de David

nazista fundado por Adolf Hitler. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto>. Acesso em: 21 mar. 2010.

156ARENDT, Hannah. Sans droit et avilis (15 décembre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 135-138.

157ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 222.

Page 82: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

80

Ben Gurion158, ―que, sob a pressão de numerosas injustiças na Palestina e terríveis

catástrofes na Europa, se tornou mais nacionalista do que nunca‖.159

Hannah Arendt julga a política praticada na Palestina oportunista,

contraditória, inconsequente em relação aos árabes. Para ela, as coisas são

simples: o projeto sionista só pode existir se os árabes forem aceitos. Para Arendt,

os governos passam, mas o povo fica. Se olharmos o mapa, a Palestina é delimitada

pelos países árabes, e um Estado judeu na Palestina puramente judaica constituiria,

na falta de acordo prévio com os povos árabes que vivem em suas fronteiras, uma

solução demasiadamente precária.

Arendt sustenta a ideia de uma cooperação que louve uma harmonia

permanente entre os dois povos, com uma administração binacional e a

possibilidade para esse novo Estado de se integrar numa federação com os países

vizinhos. Ela fica indignada com o desprezo que os sionistas demonstram pelos

árabes e se revolta contra a ideia, pregada pelos próprios sionistas, de que a terra

da Palestina pertenceria aos judeus em nome de uma ―justiça superior‖.160

Ela critica o fato de os sionistas esquecerem que os árabes viviam e ainda

vivem nessa terra e observa que, na última resolução da reunião do Congresso

Judaico de Atlantic City, a palavra ―árabe‖ não é mais mencionada. Para Arendt,

―isso não lhes deixa outra escolha senão a emigração voluntária ou o status de

cidadão de segunda classe‖.161

O nacionalismo, ―já bastante nefasto por confiar exclusivamente na força

bruta da nação‖162, nessa situação geográfica difícil, com territórios tão pequenos, só

pode desembocar num conflito trágico.

158

David Ben-Gurion, judeu polaco, nasceu em Plonisk, 16 de outubro de 1886 e morreu em Tel Hashomer, 1 de dezembro de 1973. Foi o primeiro chefe de governo de Israel. Ben-Gurion foi um líder do movimento sionista socialista e um dos fundadores do Partido Trabalhista. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/David_Ben-Gurion>. Acesso em: 21 mar. 2010.

159ARENDT, Hannah. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 97-133.

160ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 223.

161ARENDT, op. cit., p. 97-133, nota 159.

162ARENDT, Hannah. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 99.

Page 83: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

81

Premonitória, Hannah Arendt já estigmatiza o esquecimento voluntário do

povo palestino, o pagamento do contexto mediterrâneo, a falta de vontade política

dos sionistas em aceitar a existência do povo palestino na Palestina e dos povos

árabes que a cercam.

Para ela, considerada a pensadora da liberdade, a força nunca foi caminho

para a liberdade, por isso seu sonho se despedaça. Também se decepciona com a

esquerda do sionismo e recrimina aqueles que inventaram o ideal pioneiro dos

Kibuttzin, pequena fazenda coletiva em Israel163, por não terem tido nenhuma

influência política na natureza do movimento, inconscientes que eram do destino

geral do seu povo. Julga-os sectários, autossatisfeitos, mais preocupados em

divulgar suas propagandas do que em inculcar uma moral à política, que acabou se

tornando a esfera dos políticos da pior espécie, que fazem reinar a relação de forças

em vez de aplicar as regras mais elementares da democracia.164

Ante todas essas colocações que Arendt faz dos sionistas, através de seus

artigos, de forma contundente, bem fundamentada, sem qualquer véu ilusório, torna-

se muito clara não apenas sua luta, mas também sua persistência em seguir sempre

o caminho para a paz. Sua marca indelével de pacificadora se faz presente ante

todas as suas posturas até então demonstradas nesse estudo.

E Arendt não cessa a manifestação de sua indignação, à medida que marca

com firmeza suas posições, sempre com a esperança de ainda conseguir, de

alguma forma, salvar o povo judeu que continua sofrendo as consequências do

nazismo. Bem como, por outro lado, persevera em deixar documentado o que foi

realmente o nazismo para os judeus, à medida que escreve, discursa, apresenta

projetos e, principalmente, não deixa nada do passado ser ocultado. Assim é que em

nome do tribunal da memória e da dignidade humana ela persegue os sionistas, os

responsabiliza e os culpa por terem feito negócios com Adolf Hitler desde 1933. O

acordo entre sionitas e nazistas ainda é uma parte maldita da história. Arendt tem a

coragem de lembrar essa negociação, que começou apenas alguns meses após a

ascensão de Hitler.165 Se hoje parece indecente aproximar o nazismo do sionismo, é

163

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 998.

164ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 224.

165Ibid., p. 105.

Page 84: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

82

preciso, entretanto, ter conhecimento de que David Ben Gurion desejava que o

nazismo provocasse uma imigração maciça na Palestina. E que um dirigente

sionista, chamado Arthur Ruppin166, foi procurar responsáveis nazistas para propor

uma negociação. O contrato de Haavara-transfer foi fechado em abril de 1933. Ele

se fundava nos interesses complementares dos dois partidos: os nazistas queriam

os judeus fora da Alemanha, e os sionistas queriam os judeus na Palestina. Cada

judeu alemão que emigrava para a Palestina era autorizado a levar mil libras

esterlinas, o preço exigido pela Grã-Bretanha para se instalar ―como capitalista‖ em

divisas estrangeiras, e poderia mandar buscar por navio mercadorias no valor de

vinte mil marcos ou mais. As companhias de seguro, judaicas e alemãs, controlavam

as transferências financeiras. Uma parte dos lucros foi para a aquisição de terras e a

implantação das colônias. O sistema funcionou até meados da guerra e permitiu a

emigração de cerca de vinte mil judeus alemães. Mas os esforços de salvamento

foram insuficientes, e os sobreviventes dos campos foram recebidos com dureza.167

Esse acordo dilacerou os sionistas. Os revisionistas o estigmatizaram,

dizendo que a nação judaica se vende a Adolf Hitler pelo salário de uma prostituta.

Os dirigentes se justificaram afirmando se tratar de razões de ordem prática. Para

Arendt é nesse ponto que o sionismo muda então de natureza e de essência. Ele

tem como único objetivo a realização da independência do povo judeu na Palestina.

A maior parte desses judeus alemães que irá se refugiar na Palestina graças a esse

acordo o fará para salvar a própria pele. Eles terão dificuldade em integrar os

valores fundamentais do sionismo e se refugiarão em seus códigos ocidentais.

Serão chamados, até logo após a guerra, de ―os sionistas de Hitler‖.168

É relembrando isso que Hannah Arendt coloca em questão a própria natureza

do movimento sionista. Para ela, o fato de que a vanguarda revolucionária judaica

na Palestina não tenha se oposto ao acordo nazi-sionista confirma o fracasso do

sionismo enquanto movimento de libertação. A partir de então, a seu ver, o

166

Arthur Ruppin (1876-1943) foi um pensador e líder sionista. Ele também foi um dos fundadores da cidade de Tel-Aviv e um sociólogo pioneiro creditado como sendo ―o pai da sociologia judaica‖, dirigindo em Berlim o departamento de Estatística e Demografia judaicas de 1902 a1907. Em 1926 Ruppin se juntou à Universidade Hebraica de Jerusalém e fundou o departamento de sociologia. Um edifício lá é agora nomeado em sua honra. Sua obra sociológica mais célebre é ―Os judeus no mundo moderno‖, de 1934. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Arthur_Ruppin>. Acesso em: 21 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

167ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 225.

168Ibid., p. 225.

Page 85: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

83

movimento perde seu ideal e pode até se tornar perigoso, pois deixa o terreno livre

para todo tipo de fanatismo. Hannah Arendt se pergunta: o sionismo ainda existe?

―Morto antes de poder nascer, perambula feito um fantasma vivo entre as ruínas de

nossa época‖, escreve ela.169

Arendt é antissemita porque diz a verdade? Para a comunidade de sionistas

americanos a quem se dirige, essas coisas não são para serem ditas, muito menos

discutidas. O importante para eles é prosseguir, construir o futuro Estado sem se

preocupar com a base dos valores dos quais ele deve se fundar. Arendt só precisa

agir. Para ela, a política é o viver junto, e não a relação de forças. Estimando que

não seja tarde demais, interpela os judeus refugiados nos Estados Unidos e os

dirigentes sionistas. Acredita no governo do povo pelo povo e faz em apelo para que

isso aconteça. Para ela, a Palestina não pode e não deve ser a resposta ao

antissemitismo. Os judeus da Palestina estão errados de se desdobrarem sobre si

mesmos, pensando que, nessa nova terra, estarão protegidos do antissemitismo,

recusando-se a constatar a estreiteza do território e os inimigos que o cercam. No

entendimento da autora, o nacionalismo extremista e o filo-semitismo como resposta

ao antissemitismo são as piores soluções. Com essa conclusão ela prega uma

revisão radical do sionismo e os incita a abandonar uma ideologia que julga sectária,

irrealista e de visão pequena. Ela se volta para a defesa da pureza do ideal sionista.

Acredita que uma nação só pode e deve se construir pela e com a soberania do

povo, reflete com uma intuição notável e uma análise histórica e política rigorosa

sobre os vícios de processo, os esquecimentos voluntários, sobre as mentiras

conscientes e inconscientes em que os dirigentes sionistas se afundam. Para ela,

―Não será fácil salvar os judeus nem a Palestina no século XX, e é completamente

improvável que isso se possa fazer com a ajuda das categorias e dos métodos do

século XIX‖.170 Essa é a marca de que ela traça uma reconsideração do sionismo,

ante todas as posições e atitudes por ela descritas até então no que concerne a

esse assunto.

O pensamento de Arendt, potente, independente, audacioso, se transportado

para os dias de hoje nos parece profético, ainda que se alimente de ilusões de uma

169

ARENDT, Hannah. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 107.

170Ibid., p. 133.

Page 86: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

84

utopia revolucionária e verse nos excessos de um internacionalismo teórico

irrealista, esquecendo, voluntariamente, a atitude de recusa dos países árabes e a

violência que eles manifestaram em face das autoridades sionistas. Lembre-se que,

conforme já mencionado anteriormente, antes mesmo da existência de um Estado-

nação de Israel, Hannah Arendt já tinha emitido a hipótese de que só um Estado

binacional seria viável.171

Assim Arendt não irá à Palestina, embora calorosamente aguardada. Isso a

faz romper com seus amigos que vivem lá. A desavença com a comunidade judaica

ressoará publicamente por ocasião de sua reportagem sobre o processo de Adolf

Eichmann em 1963. Esse ponto, no entanto, será tratado nesse trabalho, quando da

breve análise da obra ―Eichmann em Jerusalém‖.

Fato é que a situação da imigração judaica recusada pelos árabes, a par das

disputas teóricas e das hipóteses políticas, não evoluiu em nada, e que a situação

permanece igualmente dramática. As propostas formuladas por Arendt, antes da

criação do Estado de Israel, são as mesmas que foram levantadas pelos intelectuais

árabes e judeus do movimento ―A Paz Agora‖, que ainda hoje deseja encontrar uma

solução de paz que passe pelo reconhecimento mútuo dos dois povos.

3.4 Ajuda aos Judeus. Militância pela Criação de uma Brigada Judaica no

Interior das Forças Antinazistas

Em 14 de novembro de 1941, Arendt assina seu primeiro artigo para o

―Aufbau‖, um jornal da emigração judaica alemã publicado em Nova York, com o

título: ―O exército judeu, o início de uma política judaica?‖, no qual ela sustenta a

criação de uma brigada judaica no interior das forças antinazistas. Ela acredita

serem necessários soldados judeus, em unidades judaicas e com a bandeira

judaica, para reunir os judeus de todo o país contra Adolf Hitler e sua guerra

antissemita, a par da ameaça que pesa sobre a existência econômica dos judeus,

forçada pelo boicote, e do perigo da formação de guetos para o qual tendem os

acontecimentos.

171

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 227.

Page 87: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

85

Desde 1941 a referida autora escreve que Adolf Hitler conduz, antes de tudo,

uma guerra contra um povo, o povo judeu. Afirma que não se pode se enganar de

adversário nem de combate. Não é enquanto judeu alemão, francês ou inglês que

cada homem dever lutar, mas enquanto judeu. E pede para que judeus de todos os

países unam-se.172 E ainda, parafraseando Georges Clemenceau, ela escreve: ―A

existência de um povo é uma coisa séria demais para que fique na mão de homens

ricos‖.173 Hannah Arendt faz um chamado a uma verdadeira política judaica

conduzida não por homens influentes no segredo das cabines e das negociações,

mas por milhares de homens do povo prontos a lutar, com as armas na mão, pela

liberdade e pelo direito de viver.174

Esse já é o início da idéia que posteriormente Arendt sustentará por ocasião

do processo de Adolf Eichmann em Jerusalém, que também será tratado em outro

momento desse estudo: ―[...] ser judeu é ser livre, e ser livre é morrer com as armas

na mão‖.175 Ser judeu para a referida pensadora é não aceitar nenhum compromisso

com as autoridades, nem com as autoridades nazistas nem com os conselhos

judeus, muito menos consigo mesmo, apagando sua própria identidade pela

assimilação. Com isso já surgem sinais de sua revolta contra os poderosos, os ricos,

os influentes, sejam eles judeus ou não, assim como a certeza de que o combate

pela Palestina passa antes de tudo por um combate pela liberdade do povo judeu:

―Só se o povo judeu estiver pronto a se entregar a esse combate poderemos

também defender a Palestina‖.176 Ela quer que os judeus combatam, mas não indica

como poderiam fazê-lo numa Europa dominada pelas leis nazistas.

Os judeus da Palestina tentarão criar o seu próprio exército, o que levará três

anos para acontecer. Depois da derrota da França, a Jewish Agency for Israel177 e

Arendt fazem acordos com o alto comando britânico e assim constituem unidades

172

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 202. 173

Ibid., p. 203. 174

Ibid., p. 203. 175

Ibid., p. 204. 176

Ibid., p. 205. 177

A Agência Judaica para a Palestina assumiu a partir da Comissão Sionista em 1923 para representar e administrar a comunidade judaica durante o período do Mandato Britânico da Palestina, que durou entre 1921 e 1948. Ele recebeu o reconhecimento oficial em 1922. Durante o período do mandato, a Agência Judaica para a Palestina era uma organização quase governamental que servia às necessidades administrativas da comunidade judaica. Sua liderança foi eleita pelos judeus de todo o mundo por representação proporcional. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Agency_for_Israel>. Acesso em: 21 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

Page 88: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

86

palestinas de voluntários. Mas não há um comando único e os voluntários estão

disseminados. Será preciso esperar setembro de 1944 e a decisão de Winston

Churchill para que a Jewish Brigade Groupe seja reconhecida como uma única

formação militar.178

Hannah Arendt frequenta, além dos círculos sionistas, o grupo de exilados

socialistas alemães. Com todas as suas forças, esses exilados antifascistas tentam

alertar a opinião pública americana da ameaça de Adolf Hitler. Arendt se torna uma

europeia convicta. Ainda acredita na possibilidade da vitória, na força da dignidade

humana. E não é a única, pois outros refugiados alemães como ela ainda acreditam

não ser tarde demais. Assim, testemunham as alocuções radiofônicas de Thomas

Mann que, nos Estados Unidos, se endereçam aos ouvintes:

Queremos que a Alemanha se torne européia. Hitler quer tornar a Europa alemã. Mantenham inabaláveis a firmeza e a paciência de vocês. São vocês mesmos que criarão a verdadeira Europa, que será uma federação européia no quadro mais vasto da colaboração econômica entre os povos civilizados do mundo.

179

O redator-chefe de ―Aufbau‖, jornal da comunidade, Manfred George, a

contrata para fazer uma crônica bimestral que ela intitula ―É com você‖. ―Aufbau‖, no

início um simples boletim de ligação da comunidade judaico-alemã, se torna de fato

um jornal semanal de opinião, lido por todos os emigrantes judeus alemães

politizados de Nova York. George descobre nela ―uma potência e uma firmeza de

homem‖.180 Assim Arendt torna-se colaboradora regular do jornal, com a liberdade

de intervir no domínio político e criticar a atitude das instâncias oficiais do sionismo.

Para ela, a urgência não é de se gabar das ações já passadas, mas de encontrar

uma resposta política ao antissemitismo pois, a seu ver, desde 1941 a Palestina não

deu uma resposta certa. O fato de encontrar uma parcela pequena de terra onde nos

sentimentos em paz é apenas um perigoso sonho, posto que para ela a solução da

questão judaica não passa pela terra prometida. Se o sionismo é o presente que a

Europa deu aos judeus, é preciso, estima ela, que a política da Palestina seja feita

por judeus europeus, e não que a política palestina determine a política geral

judaica. A Palestina não foi nada. Ela é merecida pela autoemancipação. Para 178

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 202-203. 179

MANN, Thomas. Appels aux allemands: messages radiodiffusés addresses aux allemandes d‘ octobre 1940 à juin 1945. Tradução de Pierre Jundt. Paris: Balland, Martin Flinker, 1985.

180BRUEHL, Elisabeth Young. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Joel Roman; Etienne Tassin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. p. 11.

Page 89: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

87

Hannah Arendt, a Palestina é uma história de futuro para o povo judeu, a massa do

povo judeu, e não para os privilegiados, judeus da corte, judeus do dinheiro.181

Alguns artigos escritos por Arendt merecem destaque posto que evidenciam

sua luta para salvar o povo judeu que se encontra sob a égide do nazismo.

Em abril de 1942, num artigo intitulado ―Papel e realidade‖, ela interpela a

opinião pública sobre o silêncio que recobre a sorte reservada aos judeus da

Europa, enviados à morte, aos judeus presos atrás do arame farpado nos campos

franceses, aos judeus da Palestina ainda sem um exército autônomo. Mostra sua

indignação com o clima de derrota que tomou conta das instituições judaicas, como

Jewish Labor Committee182, American Jewish183 e Agoudath Israel184, por não

apresentarem medidas concretas de luta para salvar o povo judeu.185

Em maio de 1942, num texto cujo título é ―A eloqüência do diabo‖, ela se

inquieta de novo com a conspiração do silêncio relativo aos judeus, e designa o

extermínio como razão essencial, principal, da guerra de Adolf Hitler. Arendt afirma

que apenas dois povos estão embarcados na guerra: os alemães e os judeus,

―sendo que os alemães têm um governo reconhecido, enquanto o dos judeus é

oculto. Todos os povos, salvo o povo alemão, seriam governados pelos judeus‖. Só

a ―igualdade original e incondicional de todos os humanos‖ pode servir de arma para

calar a eloquência do diabo.186

181

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 204. 182

O Jewish Labor Committee é uma organização secular judaica dedicada a promover interesses das comunidades judaicas e os interesses judaicos dentro dos sindicatos. Foi fundada em 1934 em resposta ao aumento do nazismo na Europa. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Labor_Committee>. Acesso em: 21 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

183A American Jewish Historical Society, fundada em 1892, é a mais antiga organização nacional histórica étnica da nação. Oferece acesso a mais de 20 milhões de documentos e 50.000 livros, fotografias, arte e artefatos que refletem a história da presença judaica nos Estados Unidos a partir de 1654 até o presente. Disponível em: <http://ajhs.org/about/>. Acesso em: 21 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

184Agoudath ou Agudat de Israel – movimento sionista-socialista e corrente religiosa ortodoxa da Polônia e países vizinhos que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, apesar da perseguição de Hitler e continuou atuando organicamente, tanto em Israel como nos EUA, em menor medida. Museum of the History of Polish Jews. Disponível em: <http://www.jewishmuseum.org.pl/index.php?miId=2&lang=en> Acesso em: 21 mar. 2010 (Texto de Howard Sochar, publicado na Revista Morashá, n. 66, dez. 2009).

185ARENDT, Hannah. Papier e réalité (10 avril 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 32.

186ARENDT, Hannah. L'éloquence du diable (8 mai 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 34.

Page 90: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

88

Em maio de 1942, no artigo ―O pretendido exército judeu‖, ela suplica que a

opinião pública abra os olhos e pare de se resguardar por trás das mentiras.

Gritando seu desespero, chorando os mortos, clama sua angústia diante de uma

exterminação completa. Apela a toda a comunidade judaica para que não acredite

mais em um milagre:

Se pudéssemos combater esse inimigo sem lutar, se os milhões de judeus dos campos de concentração e dos guetos pudessem morrer apenas nos documentos de estatísticas, se tivéssemos a milagrosa garantia de que a Palestina não se encontra na costa mediterrânea, mas na lua e que está fora de alvo de qualquer ataque, se os mortos do Struma

187 pudessem

ressuscitar, resumindo, se minha avó tivesse rodas e fosse um ônibus, então nós, loucos e homens do povo, começaríamos talvez a nos interessar pela questão de saber se esse ônibus vai virar à direita ou à esquerda.

188 (Grifo da autora).

Hannah Arendt continua a mostrar sua indignação quanto à causa dos judeus

e suas consequências. Em 19 de junho de 1942, no jornal ―Aufbau‖, escreve um

artigo, seis meses após a Conferência de Wannsee, onde quinze dignatários

nazistas decidiram secretamente a ―solução final para a questão judaica‖, explicando

que a partir de 1941 a política antissemita do regime nazista mudou de natureza.

Depois de tentar expulsar os judeus, ela agora consiste em matá-los, praticando o

assassinato em massa. Arendt é uma das poucas pessoas a levar a sério e ao pé da

letra o que diz Paul Joseph Goebbels189, o protagonista do Reich: ―O extermínio dos

judeus da Europa, e talvez dos que estão fora da Europa, começou‖.190 Arendt

escreve: ―O destino dos judeus se tornou ainda mais claro, agora se sabe para onde

vai a viagem‖.191 No entanto, toda sua consciência se nutre de uma esperança ativa

de uma humanidade mais humana, declarando:

187

Struma: nome de um navio de refugiados desaparecido no mar Negro em fevereiro de 1942, tendo a bordo 769 judeus que queriam emigrar para a Palestina. O navio fora rechaçado pelo governo turco. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Struma_(ship)>. Acesso em: 21 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

188ARENDT, Hannah. La prétendue armée juive (22 mai 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 35.

189Paul Joseph Goebbels (Mönchengladbach, 29 de outubro de 1897 - Berlim, 1º de maio de 1945) foi o ministro do Povo e da Propaganda de Adolf Hitler (Propagandaminister) na Alemanha Nazista, exercendo severo controle sobre as instituições educacionais e os meios de comunicação. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Goebbels>. Acesso em: 21 mar. 2010.

190ARENDT, Hannah. On ne prononcera pas le kaddish (19 juin 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 39.

191Ibid., p. 39.

Page 91: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

89

Não rezaremos a missa, não pronunciaremos o Kaddish.192

Os mortos não deixam para trás nenhum testamento escrito. Deixam apenas um nome, não podemos lhes prestar as últimas homenagens, consolar suas viúvas ou seus órfãos. Eles são as vítimas de um sacrifício que não existia desde a época de Cartago e a destruição do Moloque

193. A única coisa que podemos

fazer é sonhar seus sonhos até o final.194

E Hannah Arendt continua sua luta procurando agir enquanto há tempo. Ela

tenta convencer as instituições judaicas americanas da amplitude da catástrofe em

curso e as incita a pressionar o governo americano para formar esse exército judeu,

que ela apela por seu voto, e que ainda poderia salvar os judeus na Europa. Mas o

American Jewish Congress e as outras coordenações judaicas se negam a enfrentar

a administração. Os judeus americanos, na época, são profundamente devotos de

Franklin Roosevelt, que empregou na equipe colaboradores de origem judaica. Os

antissemitas chamam seu governo de ―Jew Deal‖.

Essa resistência por parte dos judeus americanos revela o quanto Arendt está

isolada em sua luta, posto que seu combate incessante, obstinado, pelo salvamento

dos judeus europeus não constitui uma prioridade absoluta para as organizações

judaico-americanas. Surpreende a ignorância sobre a amplitude dos massacres,

quando na realidade estes eram reivindicados pelas próprias autoridades nazistas.

As organizações judaicas, informadas das atrocidades nazistas, sublimam que elas

dizem respeito não só aos judeus, mas também aos protestantes, católicos, tchecos,

poloneses, russos. Arendt é a única a acentuar primeira e unicamente os judeus.

Aliás, na mesma época, o redator-chefe de seu jornal escreve: ―O sofrimento dos

judeus, por mais fora do comum e agravante que seja, é apenas um aspecto do

sofrimento de todas as vítimas da selvageria atual‖. No mesmo número, um rabino

russo acrescenta: ―Os judeus se tornaram vítimas porque são os protagonistas

inflexíveis da liberdade, da fé e da democracia‖. Enquanto Arendt diz o contrário: ―Os

judeus se tornaram vítimas porque são judeus‖.195

192

Kaddish (do aramaico sagrado) é o nome dado à prece especial dita regularmente nas rezas cotidianas e em enterros em memória aos entes falecidos, onde se dá ênfase à glorificação e santificação do nome de Deus. Geralmente é realizado pelos filhos ou parentes próximos do falecido. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Kadish>. Acesso em: 21 mar. 2010.

193Moloque é o nome de um antigo deus adorado pelos povos presentes na península e na região do Oriente Médio. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Moloque>. Acesso em: 21 mar. 2010.

194ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 207.

195Ibid., p. 207.

Page 92: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

90

Mesmo assim, a referida autora não desiste de sua luta e, juntamente com o

marido, tentam diversos procedimentos para ajudar exilados alemães encurralados

na França, mas os vistos são liberados a conta-gotas e os americanos só admitem

em seu solo quem já tem família no país. Hannah Arendt fica sabendo então que o

combate que ela evoca por um exército judeu também é pregado em Nova York por

emissários de um partido revisionista da Palestina que luta pela independência de

Israel e que ela considera extremista e aventureiro. Como ela não quer envolvimento

com esses militantes, decide com um novo amigo, também colaborador do jornal

―Aufbau‖, constituir um novo grupo, o Grupo da Juventude Judaica. Em março de

1942 organiza a primeira reunião, conclamando a todos que, convictos da derrocada

das ideologias do passado, queiram lutar pela sobrevivência de seu próprio povo.

Nessa reunião, dirigida por ela, prepara um texto para fundar teoricamente o que

entende por apelo a uma nova política judaica.196

Arendt trabalha simultaneamente sobre a história do antissemitismo, a

filosofia política e as condições de nascimento de uma nação. Se é uma militante

obstinada pelo combate imediato pelo salvamento dos judeus, também deseja, no

mesmo movimento, teorizar o que acontece: pensar o acontecimento, extrair-lhe

suas consequências, inscrevê-lo em reflexões mais gerais, não se dobrar diante do

real, mas tentar ordená-lo intelectualmente para permitir ação. Essa orientação de

sua filosofia já está plenamente afirmada, até mesmo reivindicada. Em meio a

grandes questões teóricas que apresenta nessa primeira reunião, ela lança eixos de

reflexão que são reencontrados bem mais tarde em suas obras ―Origens do

totalitarismo‖ e ―A condição do homem moderno‖. Inspirada pelas teses filosóficas de

Walter Benjamin, convida a um pensamento novo desligado de qualquer hipótese

sobre o futuro.197 Para ela, construir um projeto inscrevendo-o no tempo é uma

contradição, até mesmo um erro: só a liberdade e a justiça, que devem ser

reconquistadas o tempo todo, num presente em suspenso, podem constituir os

princípios da política. Evocando o sofrimento do judaísmo, recusa o conceito de

―povo eleito‖ que para ela é sinônimo de derrotismo, de aceitação do sofrimento

eterno, de sobrevivência a todo custo, de religiosidade absurda da vida.198

196

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 208. 197

Ibid., p. 208. 198

BRUEHL, Elisabeth Young. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Joel Roman; Etienne Tassin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. p. 232.

Page 93: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

91

Seu grupo passa por tensões internas e as discussões sobre o futuro da

Palestina se multiplicam. Hannah Arendt, que se diz sionista, ataca o sionismo

oficial, que considera que a Palestina é o ponto de ―cristalização judaica‖.199 Entre os

sionistas de redenção e os sionistas de salvação, ela escolhe o seu campo. Para ela

Israel não é a terra prometida, e a visão nacionalista que se desenvolve no

movimento sionista e encara a terra de Israel como solução contra o antissemitismo

não lhe parece a resposta adequada. Internacionalista, Arendt recusa a ideia de

fazer a guerra com todos os meios, inclusive o terrorismo, para conquistar um

território e obter independência. Fustiga violentamente o comportamento de certos

grupos extremistas judeus, dentre os quais os militantes de Irgoun, que ela acusa no

artigo de 6 de março de 1942 de ―judeus fascistas‖.200

Todo esse comportamento de Arendt em defesa dos judeus europeus, bem

como sua posição com relação aos judeus extremistas na Palestina, revela não

apenas o quanto ela se dedicou à questão do povo judeu, mas o seu objetivo de

construir a paz em meio a uma situação de tantos desencontros em termos de

atitudes para uma mesma causa, também eivada de violência extrema.

Para ela, ser judeu não é o suplemento da alma, uma singularidade, nem

mesmo um fardo, mas um dever moral, uma afirmação da dignidade, uma

consciência de vigilância superior, uma obrigação de viver como cidadão do mundo.

Ela recusa a própria idéia de representatividade do ser judeu e ataca, cada vez mais

frontalmente, a política dos sionistas oficiais, ―[...] os plutocratas e os filantropos por

quem nos deixamos persuadir há dois séculos de que a sobrevivência consistia em

passar por morto‖.201 E Arendt lhes pergunta: ―Nós, judeus, ainda estamos vivos ou

já estamos mortos?‖. Ela experimenta essa sensação física e psíquica de não saber

mais se é ela ou seu fantasma que fala, pensa e age em seu lugar. O mundo no qual

estamos obrigados a viver é um mundo de mentiras e aparências. Escrever sua

verdade a condena à vingança de seus camaradas e a isola. O Grupo da Juventude

Judaica se dissolverá no final de junho de 1942.202

199

BRUEHL, Elisabeth Young. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Joel Roman; Etienne Tassin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. p. 232.

200Ibid., p. 233.

201ARENDT, Hannah. Le dos au mur (03 juillet 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 44.

202ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 209.

Page 94: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

92

Hannah Arendt conserva sua crônica no jornal ―Aufbau‖, o que lhe permite

continuar a tomar posição publicamente na crise que o sionismo atravessa. Ela se

desespera com a política em geral, que não pode mais organizar um mundo

democrático, face ao nazismo que domina a Europa, e se levanta contra os políticos

judeus que fizeram de tudo para que seu povo se desinteressasse pela política

judaica. Fica indignada ao ver as organizações judaicas enterrarem a idéia do

exército judeu e caírem na apatia. Alguns dirigentes, como Nahum Goldmann,

emitem a hipótese de criação de um Estado conduzido por uma justiça mais elevada

que a dos homens. Mas Arendt não acredita nessa ideia, pois não pode entender

por que esse Estado seria uma exceção e em que condições o povo judeu pode

formular direitos sobre a Palestina. A pergunta que não lhe cala: como ter a força e a

possibilidade, quando a comunidade judaica européia desaparece fisicamente,

cotidianamente, sem que os judeus americanos se deem conta da amplitude do

extermínio? Ela está atormentada com o silêncio e a inatividade de seus irmãos

sionistas americanos.203

Arendt tem razão de sublinhar a passividade da comunidade. Os arquivos do

American Jewish Committee e do American Jewish Congress evocam a questão do

extermínio só por alto. A questão do salvamento nem figura na ordem do dia da

maior reunião organizada pela American Jewish Conference em 1942. Porém, ela foi

levantada pró-minoritários e, finalmente, inscrita para ser debatida, mas infelizmente

foi abordada rapidamente e logo expedida.204

3.5 Conflito árabe-judaico

Arendt se engaja cada vez mais no dossiê do conflito árabe-judaico, pois

estava regularmente informada sobre a situação da Palestina, através de seus

amigos, bem como graças à sua colaboração regular para diversas revistas sionistas

de esquerda, como já abordamos anteriormente, que a levavam a entrar em contato

com os líderes do movimento operário sionista americano, além de sua participação

na nova revista judaica de esquerda, ―Commentary‖, que serve de fórum de

203

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 210. 204

Ibid., p. 210.

Page 95: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

93

discussão, além de escrever para a ―Jewish Frontier‖.205 Perante a ascensão da

violência na Palestina, ela critica cada vez mais abertamente a política de David Ben

Gurion e se aproxima das posições do grupo Brit-Shalom, uma organização sem

laço com nenhum partido, que defende a ideia de um Estado binacional e de um

acordo com os árabes. Ela luta ativamente contra a reivindicação de um Estado

judeu na Palestina. Durante o verão de 1947, a Assembleia Geral da ONU vota pela

partição. Hannah Arendt se inquieta com o caos que aumenta a cada dia na

Palestina, à medida que os ingleses saem da região da Palestina. Em 14 de maio de

1948 é proclamado o Estado de Israel. No mesmo mês Arendt publica um artigo na

revista ―Commentary‖ intitulado ―Para salvar o lar judaico ainda há tempo‖.206 Ela

opõe-se às atitudes racistas que envenenam os debates por ocasião do nascimento

do Estado de Israel, não compartilha o entusiasmo guerreiro de suas primeiras

vitórias militares e estigmatiza as pretensões nacionalistas e até mesmo fanáticas.

Para ela pouco importa o sucesso contra mal-armados e maltreinados, pois o que

conta, como expressou em outro artigo publicado em 23 de outubro de 1948 no

jornal ―New Leader‖, é a pequenez, a estreiteza, a localização geográfica desse

novo país, circundado em outubro de 1948, pela oposição dura e ameaçadora que

representam milhões de homens do Marrocos ao Oceano Índico.207

A fundamentação de sua análise da posição judaica no Oriente Médio é feita

a longo termo, o que a estimula a examinar, longe dos encantamentos das

justificativas ideológicas, as condições de viabilidade e existência do Estado de

Israel. Mais uma vez Arendt se mostra mais pragmática, já que para ela só a

realidade conta. E isso deve-se à sua grande capacidade de análise e ao seu

sentido de perspectiva política, de maneira que consegue sair dos discursos

apelativos e nacionalistas para encontrar o real e, a partir dos fatos, desdobrar as

perspectivas.

205

A Jewish Frontier é o órgão intelectual do trabalho americano sionista e, como tal, representa um

ponto de vista definitivo. Ela vê no sionismo não apenas uma tentativa de criar um grande assentamento judeu na Palestina, com possibilidade de um desenvolvimento econômico, político e cultural normal. Ela também defende fortemente o estabelecimento de um Estado judeu ou, conforme a terminologia corrente, um Estado comum judaico. O socialismo da Jewish Frontier diferencia-se das publicações sionistas em geral. Ela afirma que a Palestina judaica deveria ser construída nas bases da cooperação econômica ao invés de concorrênciaa capitalista. Commentary. Disponível em: <http://www.commentarymagazine.com/viewarticle.cfm/jewish-frontier-anthology-56>. Acesso em: 27 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

206ARENDT, Hannah. Penser l‘événement. Tradução de Pierre Pachet. Commentary, Paris, p. 135-153, 05 mai. 1948.

207ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 270.

Page 96: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

94

Lutando contra a histeria dos políticos do tudo ou nada, seus artigos são

apreciados pelos dirigentes sionistas de esquerda, que não perderam a esperança

de que um Estado viável, reconhecedor dos árabes, seja um dia construído na

Palestina. Entre eles está Judah Magnes208, figura importante da oposição à Agência

Judaica que, impressionado com a profundidade das análises de Hannah Arendt e

com sua coragem política, pede para conhecê-la. A entrevista é decisiva ao

constatar que ela está mergulhada na política. Os laços com Magnes são

aprofundados, a ponto de se tornarem amigos e confidentes. Ele, que está na

Palestina desde 1922, é presidente da Universidade Hebraica, luta desde 1920 por

este ideal de conciliação árabe-judaica no contexto do renascimento de uma

civilização mediterrânea. Acredita que os judeus da diáspora e os que vivem no

Estado de Israel sejam de igual importância para a nação judaica. A renovação da

comunidade judaica de Israel só pode ser feita pela e com a contribuição intelectual

e cultural constante da diáspora. Arendt entra no seu círculo de trabalho na metade

de maio de 1948. Dedica-se a definir as condições desse acordo árabe-judaico e

prepara as propostas de paz que Magnes pretende submeter às Nações Unidas,

tornando-se sua conselheira e colaboradora emérita, inclusive sendo contratada

como conselheira política.

Arendt dedica-se dia e noite ao estudo dos planos da paz, volta-se para os

estudos diplomáticos, observa mapas, disseca discursos, redige comunicados à

imprensa, relê todos os telegramas, ganhando cada vez mais responsabilidades.

Prepara para Magnes notas de síntese, convoca o comitê de direção do grupo e faz

o papel de protagonista. Participa ainda, das discussões entre o mediador da ONU e

Magnes, redigindo moções explicando que nacionalismo e confederação não são

necessariamente contraditórios. Mostra-se contra a política de David Ben Gurion,

que ela considera terrorista, e opõe-se à possibilidade que ele deixa em aberto de

ganhar mais territórios em favor de uma iniciativa armada. Arendt acredita que nem

os árabes nem os ingleses são inimigos. Para ela o novo Estado não precisa de

soldados partidários, mas de cidadãos responsáveis. Será preciso viver em paz uns

208

A carreira do rabino Judah Magnes como líder em assuntos judaicos comunitários refletiu sua dedicação, ao longo da vida, para servir a seu povo. Nascido em San Francisco em 1877, Magnes passou a maior parte de sua vida profissional em Nova York. Lá ele ajudou a fundar o influente Comitê Judaico Americano em 1906. Disponível em: <http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/biography/magnes.html>. Acesso em: 18 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

Page 97: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

95

com os outros. A luta na Palestina se inscreve num vasto contexto internacional

comum, e a distinção entre os amigos e os inimigos se tornará uma questão de vida

ou morte para o Estado de Israel.209

Hannah Arendt acredita na possibilidade de instauração de conselhos em

Israel, num governo local, em conselhos municipais e rurais mistos, árabe-judaicos,

muito numerosos e em escalas pequenas. Ela gostaria que Israel fosse o modelo de

seus sonhos de um mundo político melhor. Projeta suas utopias, seus modelos de

reflexão, desprezando a realidade que se desenrola. Sugere uma plataforma de

reivindicações com propostas tão concretas que vão até a construção de uma

estrada em Tel-Aviv-Jerusalém sob mandato internacional. Encontra inúmeras vezes

o delegado das Nações Unidas responsável pelas negociações palestinas. Judah

Magnes propõe a mediação de seu movimento caso seja aceita uma tutela da ONU

a Israel, e pede a Arendt para que se torne presidente de seu comitê no seio do

Ikhud. Ela recusa, mas continua militando. Apercebe-se que o ideal sionista está

desmoronando, contrariando aquilo com que tanto sonhou, um Estado modelo. Com

o Estado de Israel que se edifica, não é a hipótese de uma sociedade igualitária que

se constrói, mas um país como os outros, com seus clãs, sua política pequena, suas

relações de força.210

Arendt convence Magnes a integrar em suas propostas uma cláusula

suplementar sobre a imigração. Ela insiste que a restrição de tempo e número é o

problema211 crucial da compreensão entre árabes e judeus e que, do ponto de vista

árabe, não pode haver outra garantia contra a utilização da imigração como

instrumento de uma política expansionista.

Arendt luta para que os árabes reconheçam Israel e propõe ao representante

de Israel nas Nações Unidas, Audrey Eban, o modelo do BENELUX (Bélgica, Países

Baixos e Luxemburgo) como matéria do diálogo árabe-judaico. Em setembro de

1948, a Assembleia Geral da ONU se reúne em Paris e o Conde Bernadotte,

mediador da ONU, apresenta um relatório referido, mas que retoma o mesmo mapa

de divisão já apresentado. Alguns dias depois é assassinado pelo grupo Stern, o que

209

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 272. 210

Carta inédita de Gershom Scholem para Hannah Arendt, fundos da New School, Nova York, datada de 6 de março de 1945.

211ADLER, op. cit., p. 273, nota 209.

Page 98: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

96

faz com que Hannah Arendt se desespere e faça uma homenagem no ―New

Leader‖, apelando para que as ideias do conde, e particularmente a tutela da ONU

nessa parte do mundo para interromper a guerra de independência, ainda sejam

levadas em conta. Essa homenagem toca profundamente Judah Magnes e faz com

ele acredite que ainda há uma solução, encorajando-o a continuar a luta. Ela ainda

anima o seu círculo nova-iorquino e centra os debates na questão dos refugiados

árabes, posto que em sua opinião seria pouco inteligente e bastante embaraçoso

proibi-los de retornar. A Assembleia Geral da ONU acaba não adotando o plano de

Bernadotte, por causa da oposição conjugada da União Soviética, dos países árabes

e de Israel. A partir de então, Arendt prega a existência em Israel de uma parte

árabe que deveria dispor de uma igualdade completa. Mas Magnes não poderá lhe

responder, porque morre em 27 de outubro de 1948, terminando com um sonho da

paz entre árabes e judeus. Mesmo sofrendo essa perda ela não desiste de continuar

a luta, associando-se com amigos para criar a Fundação Magnes e juntando-se ao

grupo de intelectuais, do qual Albert Enstein faz parte, para combater Menahem

Begin.212 Unidos escrevem uma carta de protesto para o jornal ―The New York

Times‖ quando Begin vem buscar apoio entre os americanos, intitulada ―A visita de

Begin e seus objetivos políticos‖.

A carta assevera com todas as letras que Begin está intimamente ligado aos

partidos fascistas e nacional-socialistas, tanto pela estrutura de sua organização

quanto por seus métodos, sua filosofia política e seu poder de atração social. A carta

pretende, ainda, informar a opinião americana sobre o passado de Begin e lembrar o

massacre de Deir Yassin, um vilarejo árabe pacífico, onde suas tropas assassinaram

duzentos e quarenta homens, mulheres e crianças. Destaca também que longe de

mostrar vergonha, os terroristas se dizem orgulhosos do massacre. Os signatários

do artigo fazem um apelo para que a verdade sobre Begin seja revelada e

encorajam os que estão envolvidos com seu partido a não apoiar essa nova

expressão de fascismo.213

212

Menahem Volfovitz Begin nasceu em 16 de agosto de 1913 em Brest-Litovsk e faleceu em 9 de março de 1992, em Jerusalém. Foi o homem da política israelense, o sétimo primeiro ministro de Israel, de maio de 1977 a agosto de 1983. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Menahem_Begin>. Acesso em: 18 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

213ARENDT, Hannah. La visite de Menahem Begin et les objectifs de son mouvement politique (04 décembre 1948). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. p. 165.

Page 99: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

97

Hannah Arendt participa de uma reunião em Massachusetts perante um

auditório hostil. Volta muito triste, pois as reações de ódio se voltam para ela, que é

acusada de má judia e de colaboradora. Sua reação é se distanciar definitivamente

da proposta de engajamento político, porque considera-se emotiva demais, que não

tem jeito para isso, além de ser muito comprometida com a verdade. Reconhece ter

virado a página com o sentimento de dever cumprido.214

Entende-se que a profundidade desses pontos de vista da referida autora,

acima apontados, bem como a análise realista que faz da situação e sua insistência

em destacar a importância da questão dos refugiados árabes, que ainda hoje é um

dos pontos centrais do conflito, mostra não apenas sua coragem e determinação em

expor suas ideias, agindo, mas também o quanto ela se expôs, além de lutar para

promover o apaziguamento dos povos árabes e judeus.

3.6 A Busca Incessante pela Paz

3.6.1 “Origens do totalitarismo”: importância da obra como caminho para a paz

Não é por acaso que o cineasta Jean-Luc Godard lê extratos das ―Origens do

totalitarismo‖ no filme que sua mulher, a também cineasta Anne-Marie Miéville dirigiu

em 1997, ―Nous sommes nous encore ici‖, cujo próprio título soa como uma

homenagem à ideia principal de Hannah Arendt dessa comunidade que nós, vivos,

formamos no mundo.215

―Origens do totalitarismo‖ é um livro considerável, um enorme volume de mais

de 900 páginas. O texto se decompõe em três partes: ―Anti-semitismo‖ e

―Imperialismo‖ foram publicadas juntas. ―Totalitarismo‖ apareceu depois e foi

modificada até o último momento, no alvorecer dos acontecimentos da atualidade

contemporânea. Ler e reler nos permite conceber a potência intelectual da autora. É

preciso saber acompanhar Arendt em sua impetuosidade, suas bruscas mudanças

de direção, seus argumentos, suas passagens lentas e pesadas, mas também sua

clareza de pensamento e suas intuições de gênio. Escrito no pós-guerra, é um

projeto de rara ambição, tanto no plano intelectual quanto no filosófico e político. Ela

214

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 276-277. 215

Ibid., p. 309.

Page 100: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

98

disseca os elementos do totalitarismo e não a globalidade que os constitui. Em um

misto do mundo corrompido pelo atrativo do lucro, a exaltação da nação em

detrimento da soberania do Estado, Hannah Arendt coloca em dia os grandes

movimentos mortíferos que, desde muito tempo, desmembram inexoravelmente o

corpo das nações que constituíam a Europa. O Velho Continente não é mais uma

configuração de Estados, mas uma fábrica de destruição da própria ideia de

democracia.

Mas esse livro é também a profissão de fé de uma mulher que sofreu, na

própria carne, o exílio, os campos, o fato de não ser mais alemã, de não ser

refugiada francesa e ainda não ser cidadã americana. Ela mergulha nas

problemáticas da cisão interior e tenta compreender o que significa ainda estar vivo

após o fim da Segunda Guerra Mundial.

Apesar de sua sensibilidade e de sua capacidade de sonhar, essa obra não

traduz nenhuma esperança, nenhum encantamento, mas o face a face com o real.

Nenhuma solução, apenas análises. Arendt nos ensina os amanhãs que

desencantam, a ideologia como crença, a ideia de progresso definitivamente

arruinada. Em tudo isso, ela se nivela aos pensadores modernos mais atentos com o

político: Leo Strauss, Raymond Aron, Michel Foucault, Claude Lefort. É uma mulher

do século XX que tentou dar conta dos tormentos do século e que soube descrever

como essas cisões da humanidade haviam arruinado a crença numa razão capaz de

explicar o que havia acontecido, atacando, no interior de cada uma das mulheres, a

própria ideia universal. Simone Weil216, como ela, tentou pensar a destruição do

político como uma erradicação da própria possibilidade de futuro. Seu suicídio,

porém, impediu-a de continuar a trabalhar sobre esse impensado da história,

incandescente e perigoso. Tanto Arendt como Weil foram tomadas pelo desejo de

saber entender, mas entender sem aceitar. Elas definem-se como irmãs de almas,

elas têm coragem de abordar as zonas mais obscuras de nossa obstinação que

216

Simone Adolphine Weil (Paris, 3 de fevereiro de 1909 - Ashford, 24 de agosto de 1943) foi uma escritora, mística e filósofa francesa, tornou-se operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas. Lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e morreu em greve de fome, protestando contra as condições em que eram mantidos os prisioneiros de guerra na França ocupada. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Simone_Weil>. Acesso em: 18 mar. 2010.

Page 101: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

99

colocam em falência os direitos do homem, e nossa pertinácia em aceitar a servidão

voluntária.217

―Origens do totalitarismo‖ é um mapa dos males do século XX, é uma obra-

prima para se compreender como os povos puderam aderir à ideia de genocídio,

como nosso pacto social foi definitivamente quebrado, como aceitamos o inaceitável:

a inutilidade da existência, a sensação de estar sobrando, a recusa do outro. No

livro, Hannah Arendt fala dela e de sua experiência apenas em alusões. Exprime-se

como uma intelectual apaixonada pelos tempos modernos e cuja missão - pois ela

tem a ideia que cada um está na Terra para fazer alguma coisa e que ela seria para

pensar - é dar elementos de compreensão para decifrar o que acontece conosco.

Confronta nessa travessia longa e perigosa a história, a literatura, a sociologia, as

filosofias de Aristóteles e Thomas Hobbes. O homem é um animal político, ou seja,

alguém que, por definição, vive em comunidade. Mas o homem também é um ser

que deseja o poder, um ser desprovido de razão, sem livre-arbítrio, regido pelo

medo, incapaz de verdade e responsabilidade.218

O totalitarismo enquanto regime envolve poder e violência. Essa violência que

se permite nesse trabalho ―acusar‖, de forma metafórica, para que sendo condenada

devolva a paz.

Faz-se necessário distinguir esses termos que compõem o totalitarismo, até

para melhor compreendê-lo.

O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas

também para agir em concreto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo;

pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se

conserva unido. Assim, quando dizemos que alguém ―está no poder‖, na realidade

nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um número de pessoas para

agir em nome dele. A partir do momento em que o grupo do qual se originara o

poder desde o começo desaparece, ―seu poder‖ também esvanece. Em seu uso

corrente, quando falamos de um ―homem poderoso‖ ou de uma ―personalidade

217

DENAMY, Sylvie Courtine. Trois femmes dans de sombre temps: Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil. Tradução de Marion Curi. Paris: Albin Michel, 1996. p. 27.

218ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 311.

Page 102: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

100

poderosa‖, já usamos a palavra ―poder‖ metaforicamente, pois na realidade aquilo

que nos referimos é o ―vigor‖.219

Em obra intitulada ―Sobre a violência‖, Hannah Arendt, assim se manifesta

quanto a esse assunto220:

[...] distingue-se por seu caráter instrumental. Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo.

É bastante comum a combinação de violência e poder, mas incomum

encontrá-los em sua forma pura e, portanto extrema. Todavia, deve ser admitido que

é particularmente tentador pensar o poder em termos de comando e obediência e

assim equiparar poder e violência. Na discussão, aquilo que, de fato, é apenas um

dos casos especiais de poder, isto é, o poder de governo. Visto que nas relações

internacionais, tanto quanto nos assuntos domésticos, a violência aparece como o

último recurso para conservar intacta a estrutura de poder contra contestadores

individuais, o inimigo externo, o criminoso nativo, ―de fato é como se a violência

fosse pré-requisito do poder, e o poder, nada mais do que uma fachada, a luva de

pelica que ou esconde a mão de ferro ou mostrará ser um tigre de papel‖.221

Em uma linguagem conceitual, o poder é de fato a essência de todo governo,

e não a violência. Tanto que jamais existiu um governo exclusivamente baseado na

violência. Nem mesmo o governo totalitário, cujo principal instrumento de dominação

é a tortura, precisa de uma base de poder, como a polícia secreta e seus

informantes. A violência é por natureza instrumental, como todos os meios ela

sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que

necessita de justificação por outra não pode ser a essência de nada. Dizia Arendt222:

O fim da guerra - fim tomado em seu duplo sentido - é a paz ou a vitória; mas para a questão ―e qual é o fim da paz‖ não há resposta. O poder está na mesma na mesma categoria; ele é, como se diz, ―um fim em si mesmo‖ (Isso, com certeza, não implica negar que os governos sigam políticas e empreguem seu poder para alcançar objetivos prescritos. Mas a própria estrutura de poder precede e supera todas as metas, de sorte que o poder,

219

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 61.

220Ibid., p. 62.

221Ibid., p. 64.

222Ibid., p. 68.

Page 103: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

101

longe de ser o meio para um fim, é de fato a própria condição que capacita um grupo de pessoas a pensar e a agir em termos das categorias de meios e fins). O poder não precisa de justificação, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas, o de que ele realmente precisa é de legitimidade.

Para resumir, politicamente falando, é insuficiente dizer que poder e violência

não são o mesmo. Poder e violência são opostos, onde um domina absolutamente,

o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada

a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder. Isso implica ser incorreto

pensar o oposto da violência como a não violência, falar de um poder não violento é

de fato redundante. A violência pode destruir o poder, ela é absolutamente incapaz

de criá-lo.

Hannah Arendt acredita, quando escreve ―Origens do totalitarismo‖, que as

regras econômicas constituem uma grade de leitura dos mecanismos políticos.

Reticente a qualquer sistema de crença religiosa, ideológica ou política, demonstra

ser um espírito livre, independente de toda catequese, num momento em que muitos

intelectuais tendem a se engajar no comunismo ou no liberalismo. Considera que

escrever, refletir, também é integrar os pensamentos e os escritos dos outros em

seu próprio intelecto.223

Convém esclarecer que Arendt não foi a única, nem mesmo a primeira, a se

dedicar a esse tipo de problemática. Disseca Raymond Aron, desde 1939, nos textos

sobre Nicolau Maquiavel, os mecanismos dos regimes autoritários e analisa a

política em termos de eficácia, e não de virtude. Em ―Maquiavel e as tiranias

modernas‖, ele se inquieta com o futuro da democracia e se questiona sobre a

ascensão dos totalitarismos.224

Arendt é, assim como Aron e David Rousset225, uma das iniciadoras do

pensamento totalitário. Ao lado de Alexandre Kojève226, cujo seminário ela havia

223

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 312. 224

ARON, Raymond. Machiavel et les Tyrannies modernes. Tradução de Norma Arruda Feijó. Paris: Gallimard, 1993. p. 46.

225David Rousset (18 de janeiro de 1912, Roanne, Loire - 13 de dezembro de 1997), francês, foi um escritor e ativista político, ganhador do Prêmio Renaudot, um prêmio literário francês. É famoso por seus livros sobre campos de concentração. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/David_Rousset>. Acesso em: 18 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

226Alexandre Kojève (russo, 28 de abril de 1902 - 4 de junho de 1968) foi um filósofo marxista-hegeliano e estadista. Teve uma enorme influência sobre filosofia francesa do século XX e em seu aluno, o filósofo americano Allan Bloom. Como um estadista no governo francês, ele foi

Page 104: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

102

feito em Paris, Leo Strauss, Max Horkheimer227, Theodor Adorno228 e Eric

Voegelin229, ela se inscreve na linhagem dos críticos que refletem sobre a natureza e

a essência do político a partir de textos de Platão, Georg Hegel, mas, sobretudo,

Thomas Hobbes, Carl Schmitt, desde 1938230, depois Franz Leopold Neumann em

1942, com seu ―Behemoth‖.231

―Origens do totalitarismo‖ é considerado o primeiro texto sobre o problema do

totalitarismo. A novidade da obra se deve à incorporação de elementos

heterogêneos a seu tema com suas análise sobre Lawrence da Arábia232, suas

descrições sobre o imperialismo britânico, ou mesmo o caso Dreyfus, visto por

Marcel Proust pela mise en abyme da imagem do judeu e do homossexual,

encarnações para a burguesia e aristocracia, ao mesmo tempo do desejo, do

desespero e da fascinação233. Aliás, na obra em destaque, há algo de ―busca da

judeidade perdida‖, assim como uma tentativa de explicar o inexplicável: por que o

antissemitismo, de uma doutrina radical localizável historicamente, dotada de um

funcionamento econômico e social explicável em períodos de perda de autoridade,

teve a possibilidade de se transformar numa nova religião transnacional? Como o

fundamental na criação da União Europeia. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Kojève>. Acesso em: 18 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

227Max Horkheimer (Estugarda, 14 de fevereiro de 1895 — Nuremberga, 7 de julho de 1973) foi um filósofo e sociólogo alemão. Como grande parte dos intelectuais da Escola de Frankfurt, era judeu de origem. Por intermédio de seu amigo Friedrich Pollock, Horkheimer associou-se em 1923 à criação do Instituto para a Pesquisa Social, do qual foi diretor, em 1931, sucedendo o historiador austríaco Carl Grünber. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Horkheimer>. Acesso em: 18 mar. 2010.

228Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (Frankfurt am Main, 11 de setembro de 1903 — Visp, 6 de agosto de 1969) foi um filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão. É um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, juntamente com Max Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Jürgen Habermase outros. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Theodor_ludwig_wiesengrund-adorno>. Acesso em 18 mar. 2010.

229Eric Voegelin, de nome completo Erich Hermann Wilhelm Vögelin, (Colônia, 3 de janeiro de 1901 — Palo Alto, 19 de janeiro de 1985) foi um filósofo, historiador e cientista político alemão radicado nos Estados Unidos. Na sua juventude, foi aluno da Faculdade de Direito da Universidade de Viena entre 1919 e 1922. Seus orientadores sobre a sua dissertação foram Hans Kelsen e Othmar Spann. Ele se tornou professor associado de ciência política daquela instituição. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Voegelin>. Acesso em: 18 mar. 2010.

230SCHMITT, Carl. Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et d' un symbole politique. Tradução de Denis Trierweiler. Paris: Seuil, 2002.

231NEUMANN, Franz Leopold. Behemoth, structures et pratique du national-socialisme. Paris: Payot, 1987.

232Thomas Edward Lawrence (16 de agosto de 1888 - 19 de maio de 1935), conhecido profissionalmente como T. E. Lawrence, foi tenente-coronel do Exército britânico, oficial conhecido principalmente por seu papel de ligação durante a Revolta Árabe de 1916-1918. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Edward_Lawrence>. Acesso em: 18 mar. 2010.

233ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 102.

Page 105: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

103

antissemitismo pode fazer do judeu a figura do anti-homem, aquele que deve ser

exterminado para que uma nova ideia de humanidade, que carrega em si a negação

do humano, possa perdurar?234

Hannah Arendt não inventou o conceito de totalitarismo. Tampouco é a

fundadora desse movimento de pensamento, isolado mas fecundo, de intelectuais

que, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, tentavam refletir sobre os efeitos

destruidores do poder absoluto e o reino das tiranias. A própria palavra tenta

designar uma nova realidade: uma sociedade mais ou menos submetida a um

partido-Estado. O adjetivo se propaga desde os ano 1920, na Itália. Desde 1925,

Benito Mussolini evoca perante as tropas sua feroz vontade totalitária. O adjetivo

adquire direito de Estado em todos os lugares da Europa. Adolf Hitler não o utiliza,

mas Joseph Goebbels sim. Ernst Jünger235, desde 1930, faz desse conceito o

argumento principal de sua obra ―La mobilisation totale‖236, justificando

antecipadamente o Estado nazista. Esse termo se torna frequente desde o fim dos

anos 1930 entre os intelectuais antinazistas para denunciar e analisar o nazismo. A

própria análise da palavra mostra, como explica de forma tão convincente François

Furet em ―Le passé d‘une ilusión‖237, que o termo tinha sido escolhido no meio

intelectual para comparar a Alemanha hitlerista e a União Soviética. Arendt, como

uma verdadeira pesquisadora, conseguirá extrair os elementos comuns da prática

autoritária, dissecando esse novo regime, terror da pós-modernidade, desconstrução

definitiva de uma ordem aparente do mundo.

O totalitarismo é filho do século XX. Sua vontade de absoluto é total. Nisso

Arendt é a mestra de uma nova escola espiritual e antitotalitária.

Não é por acaso que o primeiro título da obra é ―Os elementos da vergonha‖ e

que ela começa com uma análise sobre o antissemitismo. Pode-se ainda lembrar

que as condições e as razões da elaboração do livro são a tentativa de pensar a

inutilidade dos massacres dos judeus. De início, ela não acreditou na amplitude do

234

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 313. 235

Ernst Jünger (Heidelber, 29 de março de 1895 — Riedlingen, 17 de fevereiro de 1998) foi um escritor, filósofo e entomologista alemão. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernst_Jünger>. Acesso em: 18 mar. 2010.

236JÜNGER, Ernst. La mobilisation totale. Tradução de Henri Plard; Marc B. de Launay. Paris: Gallimard, 1990. p. 37.

237FURET, François. Le passé d'une ilusión, essai sur l'idée communiste au XXe siècle. Paris: Livre de Poche, 1996. p. 261-347.

Page 106: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

104

extermínio. Isso não tinha mais nada a ver com a guerra. Era de outra ordem. Como

pensar o impensável? Como fazer para pensar depois da descoberta dos

campos?238

O primeiro tomo da referida obra é constituído, ao mesmo tempo, de artigos já

redigidos e reflexões novas sobre o futuro do sionismo. É atravessado por uma dor,

um sofrimento, mas também por uma incompreensão do que aconteceu nos campos

de concentração. Por que as vítimas obedeceram? Por que foram ao abatedouro?

Por que não resistiram? Nesse primeiro tomo de ―Origens do totalitarismo‖ encontra-

se um questionamento incessante e atormentador: por que as vítimas se tornaram

vítimas?

Para responder a essas perguntas, Hannah Arendt volta no tempo e analisa

as causas estruturais do antissemitismo. Faz-se mister uma explicação essencial

que ela traz239:

Entre o anti-semitismo como ideologia leiga do século XIX (que de nome, embora não de conteúdo, era desconhecida antes da década de 1870) e o auto-semitismo como ódio religioso aos judeus, inspirado no antagonismo de duas crenças em conflito, obviamente há profunda diferença. Pode-se discutir até que ponto o primeiro deve ao segundo os seus argumentos e a sua atração emocional. A noção de que foram ininterruptamente contínuas as perseguições, expulsões e massacres dos judeus desde o fim do Império Romano até a Idade Média, e, depois, sem parar, até o nosso tempo, freqüentemente conjugada com a idéia de que o anti-semitismo moderno nada mais é senão uma versão secularizada de populares superstições medievais, não é menos preconceituosa (embora seja, naturalmente, menos nociva) que a noção anti-semita de uma secreta sociedade judaica, que dominou ou procurou dominar o mundo desde a Antiguidade. Historicamente, o hiato entre os fins da Idade Média e a época moderna, no que se refere à questão judaica, é ainda mais marcante do que a brecha entre a Antiguidade romana e a Idade Média, ou o abismo - freqüentemente considerado o ponto decisivo e o mais importante da história judaica - que separou os massacres perpetrados pelas primeiras Cruzadas e os primeiros séculos medievais. Esse hiato durou quase duzentos anos, do início do século XVI, quando as relações entre judeus e gentios estiveram mais frágeis do que nunca, quando ‗a indiferença [judaica] às condições e eventos do mundo exterior‘ foi mais profunda do que antes e o judaísmo se tornou ‗um sistema fechado de pensamento‘. Foi essa época que os judeus, sem qualquer interferência externa, começaram a pensar que ‗a diferença entre o povo judeu e as nações era fundamentalmente não de credo, mas de natureza interior‘, e que a antiga dicotomia entre judeus e gentios ‗provinha mais provavelmente de origem étnica do que de discordância doutrinária‘. Essa mudança na avaliação do caráter diferente do povo judeu - que só ressurgiu entre os não-judeus muito mais tarde, na Era do Esclarecimento, constituiu certamente a condição sine qua non do nascimento do anti-semitismo, e é de certa importância observar que ela

238

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 314. 239

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 17-18.

Page 107: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

105

ocorreu primeiro no ato da auto-interpretação judaica, surgido na época da fragmentação da cristandade européia em grupos étnicos, os quais depois alcançariam a autonomia política, formando o sistema de Estados-nação.

Nessa primeira parte de ―Origens do totalitarismo‖ Hannah Arendt reflete

sobre os judeus ―poderosos‖, chamados ―judeus-da-corte‖, que eram considerados

financistas particulares do Estado.240

Esses judeus-da-corte eram servos de um grupo social apenas: serviam tão-somente a pequenos senhores feudais, que, como membros da nobreza, não aspiravam a representar qualquer autoridade centralizada. As propriedades que administravam, o dinheiro que emprestavam, as provisões que compravam constituíam problemas particulares do senhor, de modo que essas atividades não podiam envolver judeus em questões políticas. Portanto, odiados ou favorecidos, os judeus tampouco podiam transformar-se em questão política de alguma importância.

Do colapso da ordem feudal surgiu o conceito revolucionário de igualdade,

segundo o qual não se podia mais tolerar uma nação dentro de outra nação. Por

conseguinte, as restrições, bem como os privilégios dos judeus, tinham de ser

abolidos juntamente com todos os outros direitos especiais. No entanto, essa

expansão de igualdade dependia em grande parte do crescimento da força de uma

máquina estatal independente, que fosse superior às classes e aos partidos e que

pudesse, em total isolamento, funcionar governar e representar os interesses da

nação como um todo. Assim, quando, a partir do final do século XVII, a expansão

econômica estatal aumenta a necessidade de créditos e, portanto, o aumento da

esfera de influência econômica do Estado, era natural que se recorresse à ajuda dos

judeus, antigos e experimentados emprestadores de dinheiro, com ligações com a

nobreza europeia, à qual deviam muitas vezes proteção local e cujas finanças

costumavam administrar, enquanto nenhum outro grupo entre as populações da

Europa estava disposto a conceder crédito ao Estado. Por essa razão era de

interesse do Estado conceder aos judeus certos privilégios em troca de tratá-los

como grupo à parte. Esses eram os judeus que Arendt classifica de ―poderosos‖.

Dessa feita, de modo algum o Estado poderia consentir que os judeus fossem

assimilados pelo resto da população, a qual lhe recusava crédito, negando-se a

participar dos negócios do Estado e a fomentá-los.241

240

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 40. 241

Ibid., p. 31.

Page 108: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

106

Nessa primeira parte da obra em questão, ela também trata da assimilação,

assim se manifestando242:

Não há dúvida de que o interesse do Estado-nação no sentido de conservar os judeus como grupo especial e evitar que fossem assimilados pela sociedade de classes coincidia com o interesse dos judeus no sentido de sobreviverem ao grupo. Também, é mais do que provável que, sem essa coincidência, as tentativas dos governos teriam sido vãs: as fortes tendências de igualar todos os cidadãos, por parte do Estado, e de incorporar cada indivíduo numa classe, por parte da sociedade, implicavam claramente a completa assimilação dos judeus e só podiam ser frustradas por uma combinação de dois elementos: intervenção do governo e cooperação voluntária.

Portanto, os judeus, em contraste com todos os outros grupos, eram definidos

pelo sistema político, bem como sua posição por ele determinada. No entanto, esse

sistema político precisava assentar-se em uma base de realidade social, mas eles

se situavam no vazio. Sua desigualdade social era bem diferente da desigualdade

decorrente do sistema de classes, posto que era resultado da relação do Estado, de

maneira que, na sociedade, o próprio fato de o indivíduo ter nascido judeu

significava que ele era superprivilegiado, pela proteção que recebia do governo,

como já mencionamos anteriormente, ou subprivilegiado, à medida que era privado

de certos direitos e oportunidades, negados aos judeus justamente para não permitir

a assimilação.

Assim, Hannah Arendt ressalta a assimilação, em vez de aumentar a

indistinção, apenas acusando a suspeita de diferença.243

Convém salientar ante a pertinência do tema tratado nesse estudo, a paz, que

os judeus eram, no tempo de guerra, fornecedores, mas, embora servos do rei,

jamais participavam dos conflitos. Quando os conflitos cresceram e se tornaram

guerras nacionais, eles continuaram mantendo a característica de grupo

internacional, posto que, como já explicitado, os judeus não tinham representação

política no Estado, cuja importância e utilidade decorriam exatamente do fato de

nunca se terem ligado a qualquer causa nacional (uma única vez os judeus

procuraram engajar-se na política, fundando um partido de classe média

denominado ―Partido do Estado‖, na véspera da tomada de poder por Adolf Hitler).

Não sendo mais banqueiros estatais nem fornecedores em tempo de guerra, os

242

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 33. 243

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 315.

Page 109: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

107

judeus passaram a ser consultores financeiros em tratados de paz, e, de modo

menos organizado e mais indefinido, mensageiros e intermediários na transmissão

de notícias. Os tratados de paz após a Primeira Guerra Mundial foram os últimos nos

quais os judeus desempenharam papel proeminente como consultores.244

Por certo, os judeus se destacavam no âmbito internacional, em termos de

prestígio. Os judeus da corte da família Rothschild, que foram os primeiros a se

tornarem banqueiros estatais, formam um bom exemplo. Eles internacionalizaram

seus serviços, pondo-os à disposição dos governos da Alemanha, França, Grã-

Bretanha, Itália e Áustria, a ponto de tornarem-se famosos pela grande fortuna que

acumularam, bem como pela fama, o que os tornou conhecidos por toda a Europa.

Em ―Origens do totalitarismo‖, Hannah Arendt assim se refere a Rothschild:245

A posição exclusiva da casa Rothschild no mundo judaico substituiu até certo ponto os antigos laços de tradição espiritual e religiosa, cuja gradual dissolução, provocada pelo impacto da cultura ocidental, pela primeira vez ameaçava a própria existência do povo judeu. Para o mundo exterior, essa família tornou-se também o símbolo da realidade prática do internacionalismo judaico no mundo de Estados-nações e povos organizados politicamente em bases nacionais.

No que concerne à participação dos judeus nos negócios de guerra e paz,

Arendt manifesta-se246:

É óbvio que os governos anti-semitas não usassem os judeus para os negócios de guerra e paz. Mas a eliminação dos judeus do cenário internacional tinha um significado mais amplo e mais profundo do que o anti-semitismo propriamente dito. Os judeus eram valiosos na guerra na medida em que, usados como elemento não-nacional, asseguravam as possibilidades de paz; isto é, enquanto o objetivo dos beligerantes nas guerras de competição era a paz de acomodação e o restabelecimento do modus vivendi. Mas, quando as guerras tornavam-se ideológicas, visando a completa aniquilação do inimigo, os judeus deixaram de ser úteis.

Ela também, nessa primeira parte da obra, rastreia as causas estruturais do

antissemitismo europeu e ressalta a assimilação em vez de aumentar a indistinção,

apenas acusou a suspeita de diferença. Ela recorre ao judeu de exceção, restitui o

que está em jogo no caso Dreyfus, acentua a oposição ―judeu em casa, judeu na

rua‖, exprime luminosamente o conflito que opôs, ao longo do século XIX, ricos e

intelectuais judeus e explica como os judeus se tornaram, no decorrer do tempo, um

244

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 41. 245

Ibid., p. 46. 246

Ibid., p. 41.

Page 110: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

108

grupo social que não se define nem pela nacionalidade nem pela religião, mas por

suas características psicológicas. Hannah Arendt não quer ceder a uma visão da

história excessivamente maniqueísta e aponta certos judeus que não quiseram

endossar suas origens, culpados por terem transformado o ―crime‖ que é o judaísmo

num ―vício da moda‖ que é a judeidade. Ela tenta encontrar as explicações que

poderiam ter escapado aos historiadores e que nos permitiriam compreender de que

forma o antissemitismo ―puramente político‖ se encontrou num caminho em que

jamais teria controle de si.

O segundo tomo de ―Origens do totalitarismo‖ trata do imperialismo que por

ela é dissecado a partir do conceito de expansão, revelando que o imperialismo

funda sua autoridade no poder e seu poder na violência. Sua escrita define sob

forma brilhante os estragos da colonização que produz essa nova sociedade de

brancos que, por todo o mundo, fazem reinar a ordem do capitalismo em populações

subjugadas. Para ela, no imperialismo, primeira fase de dominação política da

burguesia, encontra-se a semente da possibilidade do totalitarismo. A violência se

torna o fundamento político e a destruição do corpo da comunidade e meio de

alcançá-lo. O homem se transforma então num ser sem razão, sem liberdade, sem

responsabilidade, um valor que pode estar em alta ou em baixa, dependendo das

circunstâncias.

Arendt também retoma as teses de Thomas Hobbes, da sociedade como

pacto de paz contra o medo de cada um, a sociedade como igualdade de

assassinos em potencial e as aplica a essa nova ordem mundial que vê se formar

diante dela.247 Ela faz do pensador inglês o teórico profético de uma sociedade sem

fé nem lei, fundada na acumulação do poder e do dinheiro, regida pela relação de

forças, ronda da morte e dos negócios.248

Em meio a essas reflexões, Arendt trata também das teorias da raça humana,

assim como as análises de rara profundidade sobre a destruição da humanidade249:

O racismo pode destruir não só o mundo ocidental mas toda a civilização humana. Quando os russos se tornaram eslavos, quando os franceses assumiram o papel de comandantes da mão de obra negra, quando os ingleses viraram ‖homens brancos‖, do mesmo modo como, durante certo

247

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 172 248

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 318. 249

ARENDT, op. cit., p. 187, nota 247.

Page 111: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

109

período, todos os alemães viraram arianos, então essas mudanças significaram o fim do homem ocidental. Pois, não importa o que digam os cientistas, a raça é, do ponto de vista político, não o começo da humanidade mas o seu fim, não a origem dos povos, mas o seu declínio, não o nascimento natural do homem mas a sua morte antinatural.

Essa perspectiva vai desaguar na teoria dos direitos do homem. Assim é que,

no último capítulo, intitulado ―O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do

homem‖, Hannah Arendt atualiza a partir dos fatos uma teoria sobre os ―sem-

direitos‖, aqueles a quem ela chama de ―a escória da terra‖ e que estão no centro da

reflexão política. Não há como deixar de se perturbar e de se admirar diante dessa

força de pensamento que esclarece tão cedo na história do pensamento político um

tema que acabou se tornando tão fundamental. Ao colocar em primeiro plano os

esquecidos da história contemporânea, aqueles que não são mais nada nem

ninguém, aqueles de quem as guerras tiraram tudo, pátria, nação, identidade, ela

ilumina algo que não foi pensado do político: por que os Estados modernos

aceitaram que esses milhões de refugiados, à margem da sociedade, vivessem nos

campos, sem lugar algum à sua espera, sem ninguém a querê-los, como um fardo

embaraçoso para os países que se livram deles enviando-os aos países vizinhos

que, por sua vez, os aprisionam? Arendt explica esse jogo perverso do tráfico

geográfico e humano ao qual se entregam os Estados para melhor ressaltar esses

tempos sombrios da nova modernidade, em que o apagamento da identidade se

torna carta principal do político. Esses refugiados são homens que não são tratados

como tais. E ela esclarece:250

Os apátridas e as minorias, denominados com razão ―primos em primeiro grau‖, não dispunham de governos que os representassem e protegessem e, por isso, eram forçados a viver ou sob as leis de exceção dos Tratados das Minorias - que todos os governos (com exceção da Tchecoslováquia) haviam assinado sob protestos e nunca reconheceram como lei -, ou sob condições de absoluta ausência da lei.

Pertinente destacar que mais perturbador ainda era o modo pelo qual os

regimes totalitários tratavam a questão constitucional. Nos primeiros anos do poder,

os nazistas desencadearam uma avalanche de leis e decretos, mas nunca se deram

ao trabalho de abolir oficialmente a Constituição de Weimar. Chegaram até a deixar

mais ou menos intactos os serviços públicos, fato que levou muitos observadores

locais e estrangeiros a esperar que o partido mostrasse comedimento e que o novo

250

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 301-302.

Page 112: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

110

regime caminhasse rapidamente para a normalização. Mas, após a promulgação

das Leis de Nuremberg251, verificou-se que os nazistas não tinham o menor respeito

sequer pelas suas próprias leis. Em vez disso, continuou a constante caminhada na

direção de setores sempre novos, de modo que, afinal, o objetivo e a alçada da

polícia secreta do Estado, bem como de todas as outras instituições estatais ou

partidárias criadas pelos nazistas, não podiam de forma alguma definir-se pelas leis

e normas que as regiam. Na prática, esse estado de permanente ilegalidade era

expresso pelo fato que muitas das normas em vigor já não eram do domínio público.

Teoricamente correspondia ao postulado de Adolf Hitler, segundo o qual o Estado

total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética, porque quando se

presume que a lei em vigor é idêntica à ética comum que emana da consciência de

todos, então não há mais necessidade de decretos públicos.252

Esses excluídos acabam por caracterizar a desnacionalização que se tornou

uma poderosa arma da política totalitária.

Portanto, é preciso julgar um regime a partir da sua capacidade de respeitar

os direitos do homem.

Hannah Arendt coloca no centro do debate político o apátrida que

representava, a seu ver, o fenômeno mais novo da história contemporânea, o

sintoma mais grave de toda a política contemporânea. Apátridas dos tratados de paz

de 1919, refugiados dos Estados-nações da grande Europa, que não lhes atribuíam

mais o status de cidadãos, sobreviventes dos campos, pessoas deslocadas, essa

população sem direitos que, após a Segunda Guerra Mundial, representa mais de

dez milhões de pessoas cujo destino não é preocupação de ninguém.253

Arendt aponta, com relação aos apátridas, o cinismo dos políticos, pelo fato

de que os direitos do homem nunca tenham se tornado leis. Apresenta uma reflexão

filosófica sobre a significação dessa tribo de mulheres e homens em excesso, que 251

Leis de Nuremberg, ou ainda Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães é o nome dado às leis antissemitas adotadas pela Alemanha Nazista. Tendo como base a origem dos quatro avós de um indivíduo, se estabelecia se este era alemão (os quatro avós alemães), judeu (os quatro avós judeus) e mestiço, se descendia de um ou dois judeus. Baseados nesta distinção, os nazistas determinaram leis de segregação racial, que proibiam a união matrimonial, coabitação e relações sexuais entre judeus e alemães, por exemplo, além de estabelecer uma divisão social que relegava os judeus a cidadãos de segunda categoria. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Nuremberg>. Acesso em: 29 mar. 2010.

252ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 444.

253Ibid., p. 313.

Page 113: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

111

vivem feito contrabando, de quem mal se tolera a existência nas margens dessa

Europa devastada, arruinada economicamente e que abdicou da moral. Para ela o

apátrida se torna o problema de qualquer Estado-nação, que carrega em si a ruína

de seu futuro caso ceda em seu princípio da igualdade perante a lei. Ressalta

também que, na negação da igualdade entre os cidadãos, o novo Estado de Israel

não se distingue de nada dos outros. Ao contrário254, ―a solução da questão judaica

meramente produziu uma nova categoria de refugiados, os árabes, acrescentando

assim cerca de 700 mil a 800 mil pessoas ao número dos que não têm Estados nem

direitos‖.

Ela descreve em termos filosóficos essa longa travessia do aprendizado da

perda do mundo: ser privado dos direitos do homem é, antes de mais nada, ser

privado de um lugar no mundo. Desse mesmo lugar no mundo que sempre foi.

Para o ser humano que perdeu o seu lugar na comunidade, a condição política na luta do seu tempo e a personalidade legal que transforma num todo consistente as suas ações e uma parte do seu destino, restam apenas aquelas qualidades que geralmente só se podem expressar no âmbito da vida privada, e que necessariamente permanecerão ineptas, simples existência, em qualquer assunto de interesse público. Essa simples existência, isto é, tudo o que nos é misteriosamente dado por nascimento, e que inclui a forma do nosso corpo e os talentos da nossa mente, só pode ser aceita pelo acaso imprevisível da amizade e da simpatia, ou pela grande e incalculável graça do amor que diz, como Santo Agostinho, Volu ut sis (quero que sejas), sem poder oferecer qualquer motivo particular para essa suprema e insuperável afirmação.

255

Sabemos que desde os tempos dos gregos, a vida política altamente

desenvolvida gera uma suspeita em relação a essa esfera privada, uma constatação

incômoda no fato de que cada um de nós é feito como é, único, singular,

intransponível. Toda essa esfera do que nos é dado, relegada à vida privada na

sociedade civilizada, é uma constante ameaça à esfera púbica, porque esta é tão

consistentemente alicerçada na lei da igualdade como a esfera privada alicerçada na

lei de distinção e da diferenciação universal. A igualdade, oposta a tudo que se

relaciona com a mera existência, não nos é dada, mas resulta da própria

organização humana, sendo orientada pela justiça. Não nascemos iguais, tornamo-

nos iguais como elementos de um grupo por obra da nossa decisão de nos

garantirmos direitos reciprocamente iguais.256

254

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 323. 255

Ibid., p. 334. 256

Ibid., p. 335.

Page 114: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

112

A última parte de ―Origens do totalitarismo‖, talvez a mais radical e inovadora,

tem como epígrafe a frase de David Rousset: ―Os homens normais não sabem que

tudo é possível‖.

3.6.2 A controvertida obra “Eichmann em Jerusalém”: enfoque para a justiça e

a paz

Antes de iniciar a abordagem dessa obra, há que se esclarecer que,

naturalmente, não é possível traçar uma análise que abranja todos os aspectos pela

autora consignados. Limita-se, assim, a tecer comentários sobre os aspectos que

enfocam a justiça e a paz.

Ressalte-se também que ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a

banalidade do mal‖ é uma obra que desde a sua publicação foi objeto de muita

controvérsia, o que a tornou uma obra polêmica.

Em maio de 1960, é anunciado ao parlamento israelense que Adolf Eichmann

fora capturado pelo serviço de segurança israelense na Argentina, encontrando-se já

em Israel e que deveria ser julgado num futuro próximo, de acordo com as

disposições da lei sobre a punição dos nazistas e de seus colaboradores. Eichmann

é então desconhecido do grande público, pois ele não estava entre os grandes

criminosos de guerra julgados pelo tribunal militar de Nuremberg. Seu nome foi

pronunciado apenas no depoimento de uma testemunha, Dieter Wisliceny, que fora

delegado de Eichemann na Eslováquia, na Grécia e na Hungria. Chamado para

depor em 1946, ele declarou257: ―Eichmann tinha recebido poderes especiais; era

responsável pela solução da questão judaica na Europa [...]‖.

Mas àquela época ninguém sabia onde se encontrava Eichmann, alguns

pensavam até que estivesse morto, uma vez que ele próprio havia anunciado a

intenção de se suicidar após a capitulação.258

Na realidade, Eichmann foi feito prisioneiro de guerra pelos americanos e

assume uma nova identidade. Evade-se ao ser informado sobre o depoimento de

257

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 401. 258

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 31

Page 115: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

113

Wisliceny, testemunha acima mencionada, esconde-se durante quatro dias no lado

ocidental da Alemanha, sob nome falso, foge rumo à Áustria e à Itália. Em Gênova,

um monge franciscano providencia para ele um falso passaporte para a Argentina, e

dois anos mais tarde ele manda buscar a família. Em 1957, os alemães comunicam

a informação ao serviço secreto israelense. No mesmo ano Adolf Eichmann aceita

dar uma entrevista a um jornalista, um ex-nazista holandês chamado Willem S.

Sassen. Dois anos mais tarde, um agente israelense localiza a casa em que

Eichmann mora com a família em um bairro pobre de Buenos Aires. Em maio de

1960 é preso e trancado em uma casa em Buenos Aires, onde aceita assinar um

texto que lhe foi preparado.259 ―Compreendo que é inútil tentar escapar. Declaro-me

pronto para ir a Israel e comparecer diante de um tribunal competente‖. Em 20 de

maio desse mesmo ano, Eichmann embarca em um avião israelense com destino a

Tel-Aviv.

A polêmica sobre a captura de Eichmann inflama as mentes. Erich Fromm, já

à época célebre psicanalista de origem judaica, em uma carta publicada no jornal

―The New York Times‖, de 11 de junho de 1960, afirma que260:

A captura de Eichmann é um ato ilegal exatamente do mesmo tipo daqueles de que os nazistas ser tornaram culpados. É verdade que não há provocação pior do que os crimes cometidos por Eichmann, mas é justamente no caso de provocações extremas que o respeito à lei e à integridade dos outros países deveria ser posta à prova.

Hannah Arendt acompanha apaixonadamente as polêmicas e decide fazer de

tudo para acompanhar o processo. E então, como correspondente da revista ―The

New Yorker‖, ela irá acompanhar o julgamento de Eichmann. Antes de partir para

Israel, Arendt trabalha o dossiê jurídico. Para ela, ao contrário do que muitos

pensam, Israel tem o direito de julgar Eichmann. Fato é que a Alemanha poderia tê-

lo reivindicado mas não o fez. Fato que ele foi sequestrado, mas que também

escapava de todas as jurisdições uma vez que a Argentina recusava a extradição

dos nazistas refugiados em seu solo. É fato, também, que ele poderia ter sido

abatido em plena rua e o autor poderia ter se entregado à polícia. Arendt concorda

com a ideia de que Israel não pode pretender juridicamente falar em nome de todos

os judeus do mundo. Mas ela questiona: quem pode falar em nome de todos os

259

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 402. 260

Ibid., p. 402.

Page 116: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

114

judeus do mundo senão Israel? E rende-se à evidência: ―Era a única instância que

possuíamos. Ela não me agrada particularmente mas não posso fazer nada‖.261

Para Hannah Arendt, portanto, Israel tem o direito de falar em nome das

vítimas porque a maioria delas, trezentas mil, vive atualmente em Israel como

cidadãos. Outra questão a intriga: Israel ainda não existia na ocorrência dos fatos?

Ela refuta o argumento e, ao contrário, afirma: ―Poderíamos dizer que foi para essas

vítimas que a Palestina se tornou Israel‖.262

Assim, Adolf Eichmann é levado à Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril

de 1961, objeto de cinco acusações: ―entre outros‖, cometera crimes contra o povo

judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante todo o período do

regime nazista e principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial. A

Lei (de Punição) dos Nazistas e Colaboradores dos Nazistas, de 1950, sob a qual

estava sendo julgado, previa que ―uma pessoa que cometeu um desses [...] crimes

está sujeita à pena de morte‖.263

Saliente-se que a cada uma das acusações Eichmann declarou-se inocente,

no sentido da acusação. Mas em que sentido então ele se considerava culpado?

Para Arendt, na extensa inquirição do acusado, nem a defesa, nem a acusação,

tampouco nenhum dos três juízes se deu ao trabalho de lhe fazer essa pergunta

óbvia. Seu advogado, Robert Servatius, de Colônia, apontado por Eichmann e pago

pelo governo de Israel, seguindo um precedente estabelecido nos julgamentos de

Nuremberg, em que os advogados de defesa eram pagos pelo Tribunal dos poderes

vitoriosos, respondeu à pergunta numa entrevista à imprensa: ―Eichmann se

considera culpado perante Deus, não perante a lei‖264, mas essa resposta nunca foi

confirmada pelo próprio acusado. A defesa aparentemente teria preferido que ele se

declarasse inocente com base no fato de que, para o sistema legal nazista então

existente, não fizera nada errado, de que aquelas acusações não constituíam

crimes, mas ―atos de Estado‖, sobre os quais nenhum outro Estado tinha jurisdição,

de que era seu dever obedecer e de que, nas palavras de Servatius, cometera atos

261

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 404. 262

Ibid., p. 404. 263

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 32.

264Ibid., p. 32.

Page 117: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

115

pelos quais ―somos condecorados se vencemos e condenados à prisão se

perdemos‖.265

A atitude de Adolf Eichmann era diferente. Para ele, em primeiro lugar, a

acusação de assassinato estava errada. Assim relata Hannah Arendt, utilizando as

próprias palavras de Eichmann266:

Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não judeu - nunca tentei matar nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para matar fosse um judeu fosse um não judeu; simplesmente não fiz isso.

Ou, conforme confirmaria depois: ―Acontece [...] que nenhuma vez eu fiz isso‖,

pois não deixou nenhuma dúvida de que teria matado o próprio pai se houvesse

recebido ordem nesse sentido. Por isso ele repetia incessantemente que só podia

ser acusado de ―ajudar e assistir‖ à aniquilação dos judeus, a qual, declarara ele em

Jerusalém, fora um dos maiores crimes da história da humanidade.267

A defesa não prestou atenção à teoria do próprio Eichmann, mas a acusação,

no entender de Arendt, que assiste ao julgamento atentamente e tudo anotando,

considera que a acusação perdeu muito tempo num malsucedido esforço para

provar que Eichmann, pelo menos uma vez, matara, com as próprias mãos, um

menino judeu na Hungria, e gastou ainda mais tempo, e com maior sucesso, com

um perito judeu do Ministério das Relações Exteriores alemão, Franz Rademacher,

com um bilhete que rabiscara num dos documentos sobre a Ioguslávia durante uma

conversa telefônica, e que dizia: ―Eichmann propõe o fuzilamento‖. Essa era a única

ordem de execução, se é que o era, para a qual jamais existiu um mínimo de

prova.268

A acusação no julgamento de Eichmann é feita pelo procurador-geral, Gideon

Hausner. Ele se revela em sua atuação, para a quase totalidade dos jornalistas que

assumem a abertura do processo, mais de seiscentos, como o autor de uma das

mais perturbadoras lamentações de todos os tempos, um momento de misericórdia

durante o qual o público, à beira das lágrimas, como ele, retém a respiração. Ele

265

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 33.

266Ibid., p. 33.

267Ibid., p. 33.

268Ibid., p. 34.

Page 118: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

116

reconstitui o passado de todas as vítimas das quais se faz porta-voz e recorda o

massacre de mais de um milhão de crianças judias, cujo sangue inundou a Europa.

Na sala do julgamento, descreve Hannah Arendt, os jornalistas choram em silêncio,

fazendo desse um momento inesquecível para todos os que estavam presentes.269

Gideon Hausner retorna à definição dos crimes de guerra e dos crimes contra

a humanidade tal como foram definidos pela Carta de Nuremberg, e explica por que,

durante o processo, pretende dar um lugar particular ao crime contra o povo judeu:

―É normal. Os outros povos passaram por catástrofes. Mas não por um holocausto

[...]. Só há um povo de fato que o regime nazista havia decidido exterminar: era o

povo judeu‖.270

Porém, o procurador-geral não agrada a Arendt. Ela qualifica Hausner como

um judeu da Galícia muito antipático, que comete erros de gramática, sem dúvida

um destes indivíduos que não sabem língua nenhuma, impacientando-se com sua

atuação que ela classifica como uma encenação para tentar fazer desse processo

um processo-espetáculo. Para ela o ponto de sua crítica maior é que o procurador-

geral não deveria construir sua acusação em torno do sofrimento do povo judeu,

mas sobre os atos de Adolf Eichmann.

Ao momento dos depoimentos dos sobreviventes, Arendt manifesta também

impaciência e até certa irritação com o depoimento de algumas testemunhas. É

preciso lembrar que ela não é a única a ter esse comportamento, pois mesmo em

Israel, na época, a repugnância à ideia de considerar os judeus como vítimas era

forte. A imagem do judeu corajoso, revoltado, que lutou por sua independência e

pela criação de seu Estado tinha suplantado a do homem que chora e se lamenta

sem querer agir, aceitando, ao interiorizá-lo, o seu destino. Para o processo foram

escolhidas as testemunhas que sabiam se expressar melhor e pediu-se a elas que

dessem ênfase, em seus depoimentos, à resistência, à revolta, à vingança. O

procurador, assim, queria sensibilizar aquela juventude sem avós que não

compreendia o extermínio dos judeus ou não queria saber nada a respeito e que

havia até mesmo fabricado uma certa repulsa com relação ao passado. Era preciso

apagar a imagem recorrente dos judeus europeus levados ao abatedouro.271

269

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 408-409. 270

Ibid., p. 409. 271

Ibid., p. 412.

Page 119: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

117

Reconstituição de um desastre humano, o processo captará a atenção do

povo israelense, mas ressoará no mundo inteiro como uma lição de memória, de

dignidade e de honra conquistada.

O historiador Salo Baron, então professor da Universidade de Columbia,

titular da cátedra de história judaica, empresta ao processo importante testemunho,

referente à amplitude das destruições e das irreparáveis perdas sofridas pelo

judaísmo europeu. Evoca com ardor a potência deste judaísmo europeu farto e

diverso, rico em pensamentos e em ações, contribuição inestimável para a cultura

dos povos. Conclui com essas palavras272: ―Sem o hitlerismo, doze milhões de

judeus viveriam ainda hoje na Europa‖.

O advogado de defesa de Adolf Eichmann pergunta a Baron, que, tendo ele

falado em seu testemunho amplamente sobre o antissemitismo, como explicaria o

ódio que todos sentem dos judeus, qual o sentido de uma questão como essa e se

haveria uma fatalidade original que pesaria sobre os judeus? Baron responde que

―não se gosta do que é diferente‖.273 Entre Robert Servatius, o advogado de defesa,

e Baron se trava então um estranho diálogo em que entram em pauta o

determinismo, os problemas do espírito e do direito. Baron expõe a significação do

bem e do mal face à história, da responsabilidade do homem diante de seus atos.

Servatius lhe responde que a história é um processo cultural que tem continuidade

sem nenhuma influência direta do homem. Baron soube deixar o topo das

demonstrações filosóficas para retornar às terríveis realidades judiciárias. Lembrou

que ―nenhuma teologia da predestinação isentava os homens da responsabilidade

individual dos seus atos‖.274

Na condição de jornalista, Hannah Arendt tem acesso ao texto dos

interrogatórios de Eichmann, editados em seis volumes. Imediatamente toma

conhecimento deles. As confissões de Eichmann deixam nela a impressão de uma

confusão caótica, um discurso narcísico no qual lembranças de juventude se

misturam a considerações sobre si mesmo e seu destino, combinadas com

comentários pessoais sobre as estruturas e as práticas do Terceiro Reich. Eichmann

272

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 413. 273

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 48.

274ADLER, op. cit., p. 413, nota 272.

Page 120: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

118

se concede mais elogios do que culpas e não parece duvidar, no fim das contas, de

sua própria virtude. Em certos momentos parece atormentado de remorso, afirma

estar pronto para expiar seus crimes, não pede piedade e se diz disposto a se fazer

enforcar em público para que os antissemitas do mundo inteiro possam vê-lo.275

Ao ouvir e ao ler os depoimentos de Adolf Eichmann, Hannah Arendt tenta

compreendê-los como filósofa e não como moralista, dissociando a culpa da

responsabilidade. Tanto os depoimentos de Eichmann como os das testemunhas, no

desenrolar do processo, vão sendo analisados, pensados e repensados por Arendt,

de forma a irem gerando a obra ora em estudo.

A segunda fase do julgamento foi justamente o momento em que este atingiu

seu ponto de intensidade culminante. Nas próprias palavras de Arendt276: ―Desde

então o que estaria em questão não seriam mais crueldades e humilhações, mas

mortes em série. O horror se instalou inevitavelmente‖.

O primeiro depoimento dessa fase foi o de Leon Weliczker Wells, único

sobrevivente de uma família de setenta e seis membros, que sobreviveu por ter

trabalhado em um Sonderkommando, brigada de morte encarregada de suprimir

todos os traços dos massacres cometidos pelos nazistas. Nessa brigada, ele era o

―contador‖, que verificava se todos tinham sido queimados. Disse ele: ―Um dia,

participei da abertura de uma fossa da qual foram desenterrados 181 corpos e

tivemos que procurar o último corpo, o centésimo octogésimo segundo, que estava

faltando nas contas. O corpo que faltava devia ser o meu corpo‖.277

Esse depoimento, o mais longo dos que foram realizados durante essa fase

do julgamento, se encerrou pela narrativa da tentativa de rebelião do

Sonderkommando 1005, que permitiu que o jovem adolescente, que era então

testemunha, se evadisse. A essa testemunha, o procurador Gideon Hausner faz,

como às outras, a mesma pergunta, a pergunta leitmotiv, a pergunta que Hannah

Arendt considerará em seu livro ―tola e cruel‖, mas cuja paternidade lhe será, no

entanto, escandalosamente atribuída: ―Por que você não se rebelou?‖.278

275

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 415. 276

Ibid., p. 417. 277

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 212.

278ADLER, op. cit., p. 417, nota 275.

Page 121: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

119

Hannah Arendt, ao assistir os depoimentos, impressiona-se, emociona-se. E é

a partir daí que ela começa a pensar sobre a banalidade do mal, que será objeto da

obra em análise. Para ela o homem não se tornou pior, mas suas ações se tornaram

mais carregadas de consequência. O mal, monstruosamente banal, pode se

desenvolver no terreno da vida comum.

Ela acompanha apaixonadamente o fim do processo e faz com que lhe

enviem a documentação de Jerusalém. Mostrou-se decepcionada com o veredicto.

O Tribunal declarou Adolf Eichmann culpado de crimes contra o povo judeu, crimes

contra a humanidade e crimes de guerra, e condenou-o à pena de morte. Ela

confessa não ter uma opinião definitiva e quer estudar o caso de mais perto antes de

passar à redação da revista que a contratar como correspondente. E é por essa

razão que resolve mergulhar em toda a documentação sobre o processo, para

melhor compreendê-lo. Vive noite e dia imersa na história, que acompanhou apenas

parcialmente. Não ouviu a totalidade dos relatos dos sobreviventes, nem dos

resistentes, posto que precisou retornar aos Estados Unidos para cumprir

compromissos. Não ouviu a defesa de Eichmann e não estava presente nem no

momento da sentença, nem no do anúncio da execução. Na realidade, ao contrário

de outros jornalistas que lá estiveram, que o acompanharam do princípio ao fim e

acabaram transtornados, ela mantém com o próprio desenrolar do processo uma

relação essencialmente intelectual. Não trabalha com sua emoção e com a memória

desse momento inesquecível, mas com textos. Desse processo, longo curso de

histórias de sobreviventes que dão testemunho do indizível pela primeira vez desde

o fim da guerra no recinto de um tribunal, ela não viveu tudo.279

Em 31 de maio de 1962 Eichmann foi enforcado na prisão de Ramleh. Arendt

assim se manifesta, através de uma correspondência enviada a uma amiga280:

―Estou satisfeita por terem enforcado Eichmann. Não que faça diferença. Mas acho

que eles teriam feito um papel profundamente ridículo se não tivessem levado a

coisa até seu único desfecho lógico. Sei que estou em minoria quanto a esse

sentimento‖. De fato, em Israel, após a execução, Gershom Scholem manifestou sua

posição281: ―Do ponto de vista jurídico, Eichmann merecia mil vezes a pena de

279

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 432. 280

Ibid., p. 433. 281

Ibid., p. 433.

Page 122: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

120

morte‖. Ele duvida da virtude dissuasiva dessa execução e clama por uma nova

educação dos homens e das nações, uma nova tomada de consciência da

humanidade.

―A condenação é para Eichmann, sua execução é para nós‖282, explica o

escritor holandês Harry Mulisch, que acompanhou todo o processo. ―Ela nos dá o

sentimento de ter feito algo, de que podemos fazer algo. Que a justiça pode ser feita.

Mas o homem pode fazer justiça?‖283 Em Israel alguns chegam a lamentar que o

façam sofrer apenas uma morte, e não seis milhões.

Cabe observar que é de fato na ocasião do processo de Adolf Eichmann que

o que chamamos de holocausto ou Shoah foi apresentado à opinião como uma

dimensão particular, à parte, distinta, da barbárie nazista. Nos Estados Unidos,

depois do processo de Jerusalém, a palavra passa a ser solidamente associada ao

extermínio dos judeus na Europa e constitui o ponto de partida de controvérsias até

hoje.

Hannah Arendt, ao iniciar a obra ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a

banalidade do mal‖ faz reflexões gerais sobre a justiça e seus limites, e ressalta que

o criminoso é de um tipo novo284: ―veremos que estamos diante de um criminoso que

ninguém tinha previsto‖.

Para ela, um criminoso novo, uma justiça nova. É preciso, portanto, julgar

Eichmann com armas jurídicas novas.

Arendt se faz a pergunta mais obsedante e mais essencial a seus olhos:

existe o crime contra a humanidade? Constitui o genocídio uma singularidade na

longa história da barbárie humana? Ela se coloca em um plano jurídico: para ela, o

crime contra a humanidade foi mal definido em Nuremberg e confundido com os

crimes contra a paz. Afirma que o genocídio empreendido contra os judeus deve ser

considerado como um crime contra a humanidade:285

Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o povo judeu desaparecer da face da Terra, que passou a existir o novo crime, o crime

282

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 433. 283

Ibid., p. 433. 284

Ibid., p. 434. 285

Ibid., p. 434.

Page 123: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

121

contra a humanidade - no sentido de crime contra o status humano, ou contra a própria natureza da humanidade.

É por isso que ela acrescenta a propósito do processo286: ―Na medida em que

as vítimas eram judeus, era certo e adequado que uma corte judaica pudesse

conduzir o julgamento; mas na medida em que o crime era um crime contra a

humanidade, era preciso um tribunal internacional para fazer justiça a ele‖. Assim,

ela deixa bem claro que não se trata de evitar a acusação segundo a qual os judeus

são os juízes de sua própria causa, censura a seus olhos absurda, mas de

estabelecer a natureza própria do crime contra a humanidade.

A obra em epígrafe é dividida em quinze capítulos e segue a ordem

cronológica do processo. Inicia-se com a primeira aparição de Adolf Eichmann

diante da corte e se encerra com a execução. Hannah Arendt condensa os fatos,

extrai o que o processo pode trazer em termos de verdade histórica, de justiça, de

moral.

Ela explica que sua obra é o relato de um processo e que tem como fonte a

transcrição dos debates e do interrogatório de Eichmann, os documentos fornecidos

pela acusação, os depoimentos das testemunhas. Ela adotou uma perspectiva

estritamente judiciária e procedimental da qual resultava que várias dessas

testemunhas não tinham qualquer relação com o caso Eichmann. Arendt considera o

processo um espetáculo, tanto que de todas as pessoas que o acompanharam,

jornalistas e intelectuais, e que não hesitaram em transmitir e transcrever sua

profunda comoção, de maneira política, literária e filosófica, ela foi a única que assim

não se manifestou.

O ponto que causou mais polêmica, entre os judeus, na obra ―Eichmann em

Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖, certamente foi o que concerne ao

problema da ―passividade das vítimas‖. Para Arendt há a morte que ela chama de

―relativamente fácil‖: a câmara de gás ou o pelotão de execução. E em seguida, a

morte ―difícil‖: a daqueles que tentaram escapar, enfim as coisas que são muito

piores do que a morte, como os gestos de revolta realizados, em sua maioria, pelos

mais jovens, que se mostraram capazes de decidir que não queriam ir para o

286

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 434.

Page 124: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

122

abatedouro.287 O que Hannah Arendt escreve na citada obra será explicitado e

desenvolvido em uma entrevista que se encontra nos arquivos de Nova York.

Interrogada sobre a atitude dos judeus nos campos durante a guerra, ela

responde288:

Há vários fatores que podem contribuir para essa apatia. Em primeiro lugar, o fato simples e freqüentemente esquecido de que há uma grande diferença entre morrer de uma morte lenta e agonizante e morrer de uma morte relativamente fácil e rápida diante de um pelotão de execução ou em uma câmara de gás. A apatia deles era, em uma larga medida, a resposta quase física e automática ao desafio da absoluta insignificância.

Para Arendt, assim como há várias mortes e coisas muito piores do que a

morte, há muitas verdades. E sobre esse tema essencial, o processo de Adolf

Eichmann é para ela um fracasso, pois sob esse aspecto, talvez até mais

significativamente do que sob outros, a tentativa deliberada de contar apenas o lado

judeu da história no julgamento distorcia a verdade, até mesmo a verdade judaica.289

Ela maneja o paradoxo: censura David Ben Gurion por governar o Estado de Israel

como se não fosse um Estado como os outros, ao mesmo tempo em que tenta

incluir o povo judeu no interior da humanidade ao referir-se a uma verdade judaica, a

uma morte judaica.

Arendt não contesta de modo algum a responsabilidade de Eichmann, mas

explica sua falta de consciência de culpa pelo mecanismo do nazismo que havia

posto o comando do Führer no centro absoluto de toda a ordem jurídica. Eichmann

era, portanto, um cidadão obediente à lei durante Adolf Hitler, e o que ele fez só

constitui um crime aos seus olhos retrospectivamente. Para ela, Eichmann não

queria ser um daqueles que agora fingiam que tinham sido contra, quando na

verdade estavam muito dispostos a fazer o que lhes ordenavam, de maneira que o

que fez estava feito e não pretendia negar.290

Para Arendt o objetivo, o verdadeiro desafio do processo deveria ser o

seguinte: como julgar um indivíduo normal, uma pessoa média, que cometeu todos

esses crimes, mas que não tem consciência da natureza criminosa de seus atos?

287

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 443. 288

BRUEHL, Elisabeth Young. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Joel Roman; Etienne Tassin. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. p. 38.

289Ibid., p. 39.

290ADLER, op. cit., p. 444, nota 287.

Page 125: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

123

Todos ignoraram esse assunto no processo, talvez o único que importava. Pois

Adolf Eichmann era normal na medida em que era apenas um no meio de milhares

de outros. Hannah Arendt não tenta banalizar o comportamento de Eichmann, mas

recusa-se a ver nele uma exceção.291

E é aí que se situa a grande questão dessa obra de Arendt. Para ela é preciso

saber ouvir, pois Eichmann pode ter vários defeitos, mas não mente. Toma seu

depoimento ao pé da letra, ao contrário dos juízes, que interpretam incessantemente

suas palavras. Sua leitura, talvez, caracterize-se como audaciosa, mas de extrema

pertinência jurídica e de grande coragem intelectual, pois, no seu entender, devemos

nos afastar dos sofrimentos e tormentos, para poder e saber escutar os carrascos.292

Arendt se mostra brilhante quando analisa Eichmann em relação à língua.

Para ela, ele não sabe falar, não aderiu a sua língua, e, portanto, não entra em

acordo consigo próprio. A língua administrativa do nazismo lhe serve de habitáculo

de sobrevivência. O nazismo, de certa maneira, o salvou. Edificou, entre ele e a

realidade, uma muralha de palavras técnicas que lhe permitiram ficar cego. Ela o

considera uma vítima, dele mesmo e do nazismo293: ―Quanto mais se ouvia

Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente

relacionada com sua capacidade de pensar, ou seja, do pensar do ponto de vista de

outra pessoa‖. Arendt é essa outra pessoa que tenta penetrar o poço escuro deste

homem triturado pelo nazismo, transformado na encarnação da inumanidade ao

mesmo tempo em que mantém a aparência de um ser humano.

Na citada obra a autora também recorda, muito oportunamente, que as bases

jurídicas do processo de Eichmann estavam postas em Israel desde 1950, graças às

primeiras leis votadas no país. Estas tinham classificado uma série de atos

cometidos durante a Segunda Guerra Mundial em diferentes categorias: crimes

contra o povo judeu, crimes contra a humanidade, crimes de guerra. Ninguém

pensava, evidentemente, que Eichmann um dia seria julgado em Jerusalém.

Esclareça-se que a votação dessas leis tinha ocasionado debates ardentes no

Parlamento sobre a singularidade do genocídio. Golda Meir, então primeira-ministra

291

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 444. 292

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 251.

293Ibid., p. 152.

Page 126: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

124

de Israel, tinha repetido com firmeza que rejeitava a pena de morte, mas que, no

caso de genocídio, era favorável. Ela foi acompanhada. A lei, seguindo quanto a

esse aspecto as cláusulas da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre o

genocídio, recomendou a pena de morte. Evocando o problema da

responsabilidade, um deputado de esquerda propôs conceder circunstâncias

atenuantes a quem tivesse agido ―por obediência a uma ordem ou a uma lei e que

tivesse feito tudo o que estava a seu alcance para atenuar as conseqüências de seu

crime‖.294 Mas Meir respondeu: ―Obedecer a uma ordem não pode reduzir a

responsabilidade do crime: todo homem tem o dever de se rebelar contra uma tal

ordem‖.295

Hannah Arendt, no curso da obra em destaque, interpreta à sua maneira as

disposições de lei decretadas pelo Estado de Israel e se infiltra efetivamente em

uma anomalia jurídica, uma vez que a lei deixava subentender que os crimes contra

o povo judeu eram muito mais graves que os crimes contra a humanidade. E mesmo

ante a declaração oficial do ministro da Justiça, à época, de que esse projeto de lei

comportava uma série de deformações de grandes princípios jurídicos e de regras

de procedimentos processuais, deformações essas que se explicavam pela

amargura e pelos protestos do povo judeu contra os sofrimentos por que passou

durante a Segunda Guerra Mundial, Arendt não aceita esse tipo de arranjos. Ela

evoca o espírito da lei e a inviolabilidade de seus princípios. Funda sua

argumentação na consciência de Adolf Eichmann do que fez, ou do que finge ter

esquecido.296

É também apresentada na obra objeto de estudo, em termos bem diretos, a

questão da resistência ao hitlerismo. Segundo ela, não houve nenhuma resistência

socialista ou de esquerda a Adolf Hitler e o complô de julho foi organizado por ex-

nazistas.297 A esmagadora maioria do povo alemão acreditava em Hitler. Mas sem

dar conta disso o povo aderiu a um novo sistema de valores. Apenas indivíduos,

provenientes de rodas de todas as classes sociais, de todas as gerações, de todas

as confissões, se opuseram a Hitler sem vacilar. Para ela, foram resistentes os que

294

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 446. 295

Ibid., p. 446. 296

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 139.

297Ibid., p. 142.

Page 127: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

125

mantiveram a faculdade de distinguir o bem do mal e conservaram a sua

consciência. 298

Entende-se que o que para Hannah Arendt era resistir, conservar cada um a

sua consciência, traduz-se por tomar uma atitude, ou seja, agir conforme a

consciência significa tomar uma atitude, posicionar-se com relação a algo que não

aceitamos. E seria essa atitude que deveríamos ter sempre com relação a tudo

aquilo que não aceitamos dentro da nossa consciência.

Outro aspecto, deveras importante abordado pela autora em um capítulo

inteiro de sua obra, refere-se à Conferência de Wannsee, cujo objetivo era

concentrar todos os esforços na ―solução final‖, que se traduziu na exterminação do

povo judeu da Europa.299 No Tribunal, Adolf Eichmann confessa ter participado

dessa conferência sobre a ―solução final‖, afirmando que300: ―Naquele momento, eu

tive uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos, pois me senti livre de toda a culpa‖.

Eichmann foi designado para participar diretamente da ―solução final‖, que

corresponde ao extermínio total dos judeus. Arendt conta com emoção como a

ampla máquina de destruição foi posta para funcionar: 301

Eichmann e seus homens informavam aos Conselhos de Anciãos Judeus quantos judeus eram necessários para encher cada trem, e eles elaboravam a lista de deportados. Os judeus se registravam, preenchiam inúmeros formulários, preenchiam páginas e páginas de questionários referentes às suas propriedades [...] depois se reuniam nos pontos de coleta e embarcavam nos trens. Os poucos que tentavam se esconder ou escapar eram recapturados por uma força policial judaica especial. No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a cooperar.

Para Arendt, apenas a submissão não teria bastado para aplainar as enormes

dificuldades de uma operação como aquela, nem para apaziguar a consciência dos

executores. Eichmann declara no Tribunal que o fator mais decisivo para sua

consciência foi que não encontrou ninguém que se opusesse à ―solução final‖. A

única exceção foi o doutor Rudolf Kastner, com quem ele havia negociado, na

298

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 142.

299A Conferência de Wannsee, realizada no sudoeste de Berlim, foi a discussão por um grupo de oficiais nazistas acerca da "solução final da questão judaica‖, dando origem ao holocausto. A discussão centrou-se no objetivo de expulsão dos judeus de todas as esferas da vida do povo alemão. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Conferência_de_Wannsee>. Acesso em: 20 mar. 2010.

300ARENDT, op. cit., p. 128, nota 298.

301ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 130.

Page 128: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

126

Hungria, a oferta de soltar um milhão de judeus em troca de dez mil caminhões, mas

que não se consumou.302

No que diz respeito aos conselhos judaicos, Hannah Arendt também se

manifesta em sua obra. De maneira irônica ela insiste na responsabilidade desses

conselhos 303: ―Os funcionários judeus mereciam toda confiança ao compilar as listas

de pessoas e de suas propriedades [...]‖ e os caracteriza psicologicamente: Eles

―gostavam de seus novos poderes‖.304 Ela, que não gostava de apelar para a

psicanálise, fustiga as almas desses homens e afirma305: ―Sabemos o que sentiam

os funcionários judeus quando se transformaram em instrumentos de assassinatos‖.

Ela os censura por terem guardado segredo e por terem mentido ao fazê-lo, como

Leo Baeck, ex-rabino chefe de Berlim, que estava perfeitamente a par de que os

judeus eram mortos por gás, mas preferiu se calar. O resultado disso era que ia-se

voluntariamente a Auschwitz e aqueles que tentavam dizer a verdade eram

considerados loucos. Houve uma exceção, o presidente do conselho de Varsóvia,

Adam Czerniakow, que preferiu suicidar-se. Acusa-os de terem redigido as listas de

transporte daqueles que partiam para os campos, especialmente para

Theresienstadt. Ela escreve, com relação ao processo: ―A acusação teria

enfraquecido seu argumento se fosse forçada a admitir que a escolha dos indivíduos

mandados para o fim era, com poucas exceções, tarefa da administração judaica‖.306

Esclareça-se que todos esses fatos consignados estão contidos em uma obra,

Theresienstadt 1941-1945, de Hans Gunther Adler. A grande indignação de Arendt

quanto a essa conduta da acusação era pelo fato de o tribunal de Jerusalém não tê-

la citado.307

Para ela, designar um indivíduo é distingui-lo. Distingui-lo é escolhê-lo. Então

os conselhos judaicos escolheram poupar os mais ricos, os que tinham poder,

judeus eminentes.

Saliente-se, também, que o tema da colaboração judaica e da denúncia dos

conselhos judaicos já era objeto de inúmeras publicações, diários, memórias, de

302

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 133.

303ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 455.

304Ibid., p. 456.

305Ibid., p. 456.

306Ibid., p. 456.

307Ibid., p. 456.

Page 129: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

127

maneira que, ao abordar o assunto em seu livro ―Eichmann em Jerusalém: um relato

sobre a banalidade do mal‖, Hannah Arendt sabia o que estava afirmando, dando

prova de coragem intelectual ao sustentar esses propósitos.308

Sobre a responsabilidade dos conselhos judaicos, as pesquisas realizadas

depois não lhe dão razão. No entender do historiador Saul Friedländer, o Judenrat309

foi provavelmente um instrumento de destruição dos judeus da Europa, entretanto,

subjetivamente, os atores não tiveram consciência dessa função, e mesmo que

tivessem tido consciência, alguns dentre eles tentaram fazer o melhor de si no

âmbito de suas possibilidades estratégicas limitadas a fim de retardar a

destruição.310

O desejo de Arendt não era o de eximir Adolf Eichmann, mas de compreendê-

lo. Para isso, ela dedica o capítulo intitulado ―Deveres de um cidadão respeitador da

lei‖ na obra em análise. Mas poderia Eichmann ser considerado cidadão? Um

cidadão da lei do Führer que deu prova, com ele mesmo disse, de ―uma obediência

cega‖. Arendt fica indignada ao ver Eichmann citar Immanuel Kant, seu filósofo

preferido. Ela descreve em sua obra311:

A primeira indicação de que Eichmann tinha uma vaga noção de que havia mais coisas envolvidas nessa história toda do que a questão do soldado que cumpre ordens claramente criminosas em natureza e intenção apareceu no interrogatório da polícia, quando ele declarou, de repente, com grande ênfase, que tinha vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, e particularmente segundo a definição kantiana do dever. Isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega.

No que concerne às deportações, Arendt dedica dois capítulos da obra,

retomando as teses desenvolvidas em ―Origens do totalitarismo‖, também objeto

desse estudo, onde considera que a assimilação do judeu europeu permitiu que se

acreditasse que o problema judaico não mais existia e que a Europa podia prescindir

dos judeus. Durante centenas de anos eles se haviam acostumado a entender a

própria história, correta ou incorretamente, como uma longa história de sofrimento.

308

ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 457. 309

Judenrat, palavra alemã para "Conselho Judeu", corpos administrativos de gerência. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Judenrat>. Acesso em: 20 mar. 2010.

310ADLER, op. cit., p. 457, nota 308.

311ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 153.

Page 130: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

128

Mas por trás dessa atitude houve, durante muito tempo, uma convicção triunfante de

que o povo de Israel sobreviverá, indivíduos judeus, famílias judaicas inteiras

podiam morrer em pogroms, comunidades inteiras podiam ser eliminadas, mas o

povo viveria. Eles nunca haviam se confrontado com genocídio.312 A assimilação

havia feito deles, para melhor ou para pior, cidadãos que pertenciam à comunidade

europeia das nações. Os judeus europeus pensavam que faziam parte, de maneira

consubstancial, e vital, da civilização europeia. Mas para Hannah Arendt isso era um

―consolo secular‖ que não funcionava mais.

Para ela o fim do mundo para os judeus foi imaginado na Europa, pela

Europa. Retraça a gênese da ―solução final‖ em diferentes países. Elogia

longamente a Dinamarca, o comportamento de seu povo e de seu governo, única

exceção europeia a ter resistido ao nazismo.

De Adolf Eichmann, Arendt pensa que ―teria sido realmente muito

reconfortante acreditar que era um monstro‖. É a normalidade de Eichmann que é

monstruosa, ela nos diz.313 E essa normalidade se torna mais problemática por ter

sido compartilhada por inúmeros outros, da mesma maneira monstruosamente

banal314: ―O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e

muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e

assustadoramente normais‖. Esse era o horror indescritível mencionado por

Arendt315:

[...] como uma reação adequada ao sistema em geral, mas que se dissolve na sala do tribunal em que lidamos com pessoas no discurso ordenado da acusação, defesa e julgamento. A razão pela qual esses procedimentos do tribunal puderam ressuscitar questões especificamente morais - o que não é o caso nos julgamentos comuns - é óbvia; essas pessoas não eram criminosos comuns, mas antes pessoas comuns que tinham cometido crimes com mais ou menos entusiasmo, simplesmente porque fizeram o que lhes foi mandado. Entre elas, havia também criminosos comuns que no regime nazista podiam fazer com impunidade o que sempre tinham desejado fazer; mas por mais que os sádicos e os pervertidos estivessem sob o foco dos refletores na publicidade desses julgamentos, em nosso contexto eles são menos importantes.

312

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 170-171.

313Ibid., p. 299.

314Ibid., p. 299.

315ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. p. 122.

Page 131: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

129

A desigualdade de status entre a defesa e o acusado, no julgamento de Adolf

Eichmann, a choca moral e juridicamente. Ela acha que o processo foi mal

preparado e que, cruelmente, faltou uma equipe especializada de conselheiros

históricos para proceder à escolha dos documentos. Lamenta, assim, que a voz dos

alemães resistentes não tenha sido ouvida, subentendendo com isso que a das

testemunhas sobreviventes havia estado demasiado presente.

Destaque-se que ante a contestação ao processo de Eichmann, apresentada

por ela, Hannah Arendt se mostra tão pacifista que, mesmo tendo muito mais

motivos para desejar sua condenação e consequente execução, custasse o que

custasse, ela consegue separar a emoção dos fatos, do direito, a ponto de se ater à

justiça como resultado desse julgamento, o que por certo é prenúncio de um

comportamento que deseja a paz.

Isso está ligado ao seu otimismo inato, matizado por uma sombra de

exasperação em relação ao status das vítimas. Para ela, de fato, o passado está

escrito com letras de fogo e de sangue na memória coletiva. Para ela316: ―Os

buracos do esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e simplesmente

existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento. Sempre

sobra um homem para contar a história‖.

Para Arendt, a lição a ser tirada dessa história é simples e está ao alcance de

todos: face ao terror, a maioria das pessoas se inclina, mas não é assim em toda

parte. Por isso, ela conclui317: ―Humanamente falando, não é preciso nada mais, e

nada pode ser pedido dentro dos limites do razoável, para que este planeta continue

sendo um lugar próprio para a vida humana‖.

A propósito, vale transcrever a observação de Arendt a respeito do terror

acima mencionado, para uma melhor compreensão318:

Em nenhum outro lugar fica mais evidente o fator autodestrutivo da vitória da violência sobre o poder do que no uso do terror para manter a dominação, sobre cujos estranhos sucessos e falhas eventuais sabemos talvez mais do que qualquer geração anterior. O terror não é o mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém quando a violência,

316

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 300.

317Ibid., p. 301.

318ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 72.

Page 132: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

130

tendo destruído todo o poder, em vez de abdicar, permanece com controle total.

―O objetivo de um processo é fazer justiça, e nada mais‖319, escreve Hannah

Arendt em seu epílogo. Essa justiça, como resultado, enquadra-se no conceito de

justiça de John Rawls320: ―[...] justiça é um significado, um equilíbrio adequado entre

reivindicações concorrentes e uma concepção da justiça como um conjunto de

princípios relacionados com a identificação das causas principais que determina

esse equilíbrio‖. Mas esse processo tinha outros objetivos, que vão além do direito.

O julgamento de Jerusalém permite notar que, pela primeira vez desde o fim da

guerra, ―a catástrofe dos judeus ocupava o lugar central nos trabalhos de uma

corte‖.321 É o que o distingue de todos os outros processos. Para Arendt322, ―isso é,

na melhor das hipóteses, uma meia verdade‖. Pois, para ela, sem nenhuma dúvida,

se Adolf Eichmann foi capturado, é porque deve ser acusado de crimes contra o

povo judeu323: ―sua captura [...] certamente não se devia ao fato de ele ter também

cometido crimes contra a humanidade, mas exclusivamente a seu papel na ―solução

final‖ do problema judeu‖.324

Atinge-se aqui o cerne daquilo que assombra Arendt desde 1943, data em

que ela vem a saber da existência dos campos de concentração. Para ela, tanto

Israel quanto o povo judeu em geral estavam mal preparados para reconhecer, nos

crimes cometidos por Eichmann, um fato sem precedente. Os judeus, de fato,

pensam sua história unicamente a partir de seu próprio ponto de vista, e a catástrofe

que se abateu sobre eles desde Adolf Hitler se inscreve não como325 ―o crime sem

precedentes do genocídio, mas, ao contrário, [como] o crime mais antigo que

conheciam e recordavam‖. Aí reside o verdadeiro fracasso do processo de

Jerusalém, que não permitiu compreender o verdadeiro horror, a singularidade, a

própria natureza da existência de Auschwitz.

319

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 275.

320RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 11.

321ARENDT, op. cit., p. 280, nota 319.

322ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 280.

323Ibid., p. 284.

324Ibid., p. 290.

325Ibid., p. 290.

Page 133: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

131

Adolf Eichmann não deve ser o único a carregar o fardo da responsabilidade

pelo genocídio. Ele não é um monstro, nem um perverso, nem um sádico, mas um

indivíduo terrível e assustadoramente normal, como já afirmou Hannah Arendt

anteriormente. Milhares e milhares de Eichmann andam pelas ruas da Alemanha,

dormem bem, exercem tranquilamente seu ofício desfrutando da consideração geral.

Não é Eichmann que é, por natureza, monstruoso, é o sistema que o tornou assim

ao apagar nele a percepção da fronteira entre o bem e o mal.

Analise-se de forma breve a respeito das definições do mal. Serão pontuadas

duas definições. Por primeiro a definição do mal conforme o ensinamento socrático

e, por segundo, a pregação e o exemplo de Jesus de Nazaré. Para Sócrates o mal

seria tudo aquilo que não posso suportar ter feito, e o malfeitor seria alguém

impróprio para a interação, especialmente para a interação do pensamento entre ele

e ele mesmo. Encontra-se a mesma posição. ―Eu não posso ter feito isso‖, diz meu

orgulho, e permanece inflexível. Por fim ―a memória cede‖. Segundo Jesus o mal é

definido como ―obstáculo‖, skandalon, que os poderes humanos não podem

remover, de modo que o malfeitor real aparece como o homem que nunca deveria

ter nascido. O critério aqui já não é o eu e o que o eu pode ou não pode suportar,

aquilo com que pode conviver, mas a execução e as consequências da ação em

geral. O skandalon é aquilo que não está em nosso poder reparar, pelo perdão ou

pela punição, e o que, portanto, permanece como obstáculo para todas as demais

execuções e atos. E o agente não é alguém que, na compreensão platônica, pode

ser reformado pela punição ou que, se estiver fora do alcance do aprimoramento, vai

oferecer pelos seus sofrimentos um exemplo dissuasivo aos outros. O agente é um

ofensor à ordem do mundo como tal.326

Nessa obra, Arendt nos convida para uma viagem ao coração das trevas. Ela

nos faz tremer de pavor e vergonha pelo fato de alguns, homens como nós, terem

cometido um crime contra o outro, todos os outros: homens desarmados, indefesos,

e não inimigos de guerra. Eles desonraram para sempre a espécie humana e

mesmo assim continuam a habitar a terra. Desde então, impõe-se uma pergunta que

326

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. p. 191.

Page 134: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

132

Hannah Arendt é a primeira a ousar formular327: ―O genocídio pode recomeçar?‖

Quarenta anos depois, a História, infelizmente, lhe dá razão.

Dar razão a Arendt, no presente, é admitir que a nossa humanidade precisa

resgatar o humano, para que ele não se desconstitua a ponto de tornar-se

desumano, como já aconteceu nessa fatídica história revelada nas obras em análise.

Na atualidade, temos sido espectadores de incontáveis violências advindas

do comportamento humano, que vão nutrindo um campo propício a comportamentos

que, de tão violentos, tornam banais o mal, a vida, a morte e que poderão ser

caracterizados como desumanos, a ponto de que as atrocidades do passado

possam se tornar atrocidades do presente.

Por essa razão, torna-se fundamental relembrar sempre esse passado negro

de nossa história, mas também estar atentos para não deixar que ele volte, ainda

que com nova nomenclatura.

É preciso estar atento, mas também ser consequente como o filósofo, como

foi Arendt: ―Ser conseqüente é a obrigação principal de um filósofo‖, como dizia

Immanuel Kant.328

327

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 292.

328KANT, Immanuel. Kant I. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 132. (Coleção Os Pensadores)

Page 135: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

133

4 A CONCEPÇÃO DA PAZ NO ÂMBITO DA NORMATIVIDADE JURÍDICA

4.1 Paz Social Decorrente da Função do Direito de Harmonizar as Relações

Intersubjetivas

Racionalismo, numa sociedade pautada pela ideologia de um Estado

Democrático de Direito, esse projeto estatal, mais do que nunca, permanece vivo,

também no ordenamento jurídico globalmente considerado, mas essencialmente na

própria Constituição Federal.

É a Constituição Federal o fundamento de validade do ordenamento jurídico,

responsável pela corporificarão da própria atividade político-estatal, conforme ensina

Lenio Luiz Streck. Para além de um mero papel de ordenação, o Direito passa a

assumir função de transformação da realidade social. No Estado Democrático de

Direito, ainda seguindo a lição de Strek329:

[...] a Constituição é a explicitação de um contrato social, uma norma diretiva fundamental que se dirige aos poderes públicos e condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização dos valores constitucionais. Essa noção de Estado se acopla, pois, ao conteúdo material da Constituição, através dos valores substantivos que apontam para uma mudança do status quo da sociedade, servindo-se a lei de instrumento voltado à ação estatal na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-valorativo-principiológico.

Assim, a paz social é imperativa. A instituição de leis segue também rumo à

composição de conflitos intersubjetivos, os quais, se não controlados, inviabilizariam

a convivência social. Contudo, é essa ideia insuficiente para se compreender

adequadamente a finalidade do Direito na sociedade.

Hoje o ordenamento jurídico deve ser construído com alicerce na Constituição

e seu fim dirige-se também à promoção das metas nela definidas, ou seja,

Constituição como plano estatal, um plano de metas de um agir político-estatal, à

garantia e consecução de seu núcleo básico, representado pelos princípios

constitucionais e direitos fundamentais, num viés visivelmente transformador.

329

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. Florianópolis, Livraria do Advogado, 2005. p. 56.

Page 136: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

134

Dizer que não apenas o legislador encontra-se jungido aos ditames

constitucionais sequer é novidade na atualidade. O contrato social explicitado pela

Constituição obriga os órgãos do poder indistintamente, incluídos aí, pois, Executivo

e Judiciário. E se a esses órgãos atribui-se a interpretação e consequente aplicação

da lei, surgindo daí a verdadeira noção de Direito, essa interpretação sempre deverá

considerar os princípios constitucionais e direitos fundamentais, já que só assim, e

não apenas instituindo preceitos legais, será possível tornar concreta a realidade

utópica prevista nos valores e metas que preenchem substancialmente a

Constituição Federal.

Ao Judiciário, em especial, compete um papel preponderante. Celso

Fernandes Campilongo330, a esse respeito, esclarece caber a esse órgão o controle

da constitucionalidade e do caráter democrático das regulamentações sociais,

passando o juiz a integrar o circuito de negociação política, exercendo uma função

ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. É insuficiente

atribuir ao juiz a responsabilidade de simplesmente tutelar os direitos e situações

subjetivas, pois sua função na atualidade volta-se, igualmente, à atuação como um

dos titulares da distribuição de recursos e da construção de equilíbrio entre

interesses supraindividuais.

Num arremate, as precisas lições de Lenio Luiz Streck:331

[...] é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, em face do caráter compromissário dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, ocorre, por vezes, um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da jurisdição constitucional. Isto porque, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder / tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há (ou deveria haver) uma modificação desse perfil. Inércias do Poder Executivo e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser supridas pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.

Apenas numa concepção liberal-burguesa poder-se-ia afirmar ser o Direito

nada mais do que um conjunto de preceitos legais, os quais se direcionam a regular

a conduta dos homens, isso no afã de assegurar o bem comum. Mas somos filhos

330

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. São Paulo: Max Limonade, 2000. p. 42. 331

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. Florianópolis, Livraria do Advogado, 2005. p. 62.

Page 137: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

135

de outra época, ou, ao menos, fomos adotados por ela, e, por ser assim, devemos

pensar segundo os nossos tempos. E na atualidade esse conceito reducionista, hábil

a reduzir o Direito à lei, é absolutamente insatisfatório.

O Direito nasce, sim, da interpretação, que necessariamente deve levar em

consideração a realidade social, política, econômica e cultural da sociedade, e

sempre realizada à luz dos princípios constitucionais e direitos fundamentais. Uma

conceituação hodierna de Direito deve considerar o seu fim transformador, o ideal do

Estado Democrático de conduzir a sociedade a uma realidade preestabelecida pelo

núcleo básico da Constituição.332

Seguindo essa trilha, em uma sociedade pluralista e absurdamente complexa

não haveria sentido em relegar ao legislador responsabilidade única pela criação do

Direito. Não é, por igual, crível pensar-se no Judiciário como um mero repetidor de

leis, como se efetivamente fosse o legislador munido de sensibilidade e capacidade

produtiva hercúleas, que lhe autorizasse não só a intuir acerca das diversas

situações conflitantes que podem vir a surgir em sociedade, como também lhe

permitisse elaborar leis em número ainda mais açulado e plenamente afinadas às

inúmeras e diversificadas pretensões sociais. Por ser assim, e forte nas lições do

jurista alemão, Klaus Stern, conforme Sérgio Coelho Júnior333, hoje, mesmo diante

das grandes codificações legislativas, mostra-se impossível considerar-se o juiz

como um mero prolator mecanicista de algo previamente pensado na lei. O juiz

avançou à condição de intérprete da lei, por vezes vendo-se obrigado a

verdadeiramente assumir a função do legislador, isso quando a lei o abandona, por

falta de clareza, pelas lacunas ou por falta de determinação, compensando

eventuais ―déficits‖ legislativos para assegurar a proteção jurídica e a certeza do

direito às partes litigantes. Assim, a aplicação da lei não é mera interpretação

reprodutiva, mas, simultaneamente, produtiva e evolutiva. É função do juiz aplicar ou

implementar a lei, não apenas no sentido de repeti-la, mas complementá-la, pensá-

la até as suas últimas consequências, conforme o espírito do direito, sobretudo do

332

COELHO JR., Sérgio. O juiz e a aplicação do direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coords.). Homenagem ao professor Paulo Bonavides. Jus Navegandi, n. 852, mai 2005.

333COELHO JR., Sérgio. O juiz e a aplicação do direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coords.). Homenagem ao professor Paulo Bonavides. Jus Navegandi, n. 852, mai 2005.

Page 138: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

136

direito constitucional e da ordem de valores que o direito constitucional fornece como

orientação prévia.334

Com efeito, nos tempos hodiernos é truncada a definição de Direito que

apenas se limita a considerar seu aspecto pacificador. É abreviação descuidada e

alheia à ideologia do Estado Democrático de Direito. Não há mais como se conceber

o Direito relegando-lhe a inescusável atividade interpretativa, cuja finalidade é a de

conferir significação ao texto normativo, pincelando-o com tonalidades que digam

respeito também aos fatos envolvidos, às realidades (social, política, econômica e

cultural) da sociedade e, em especial, aos princípios constitucionais e direitos

fundamentais, isso sempre num norte voltado à consecução de valores explicitados

na norma diretiva fundamental, presente na Constituição Federal. Para além de

ordenar e conformar interesses, o Direito igualmente transforma e constrói.

4.2 Histórico das Constituições Federais Brasileiras com Enfoque na Paz

4.2.1 A Constituição do Império

Para uma melhor compreensão da atual Constituição Federal, torna-se

importante uma análise de todas as nossas Constituições Federais, inclusive com o

seu teor histórico. Assim, vejamos:

A Constituição do Império não foi, na história do nosso país, a Constituição

modelo do nosso liberalismo, que só ocorreu de forma plena com o advento da

República. Contudo, a Constituição teve destacado alcance, pela força de equilíbrio

e compromisso que significou entre o elemento liberal, disposto a acelerar a

caminhada para o futuro, e o elemento conservador, propenso a referendar o status

quo e, se possível, tolher indefinidamente a mudança e o reformismo nas

instituições. O primeiro era descendente da Revolução Francesa, o segundo, da

Santa Aliança e do absolutismo.

A Constituição retratava efetivo compromisso, tanto pelas origens como pelo

conteúdo.

334

COELHO JR., Sérgio. O juiz e a aplicação do direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coords.). Homenagem ao professor Paulo Bonavides. Jus Navegandi, n. 852, mai 2005.

Page 139: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

137

Pelas origens, porquanto o ato de outorga nascia na fase pós-constituinte,

quando a ferida do golpe de Estado ainda sangrava em Pernambuco, das províncias

mais influentes do Império e onde já se preparava a segunda comoção republicana,

a da Confederação do Equador. A Constituinte não passará, portanto, sem

consequência. Até certo ponto, a alma deste poder supremo, o poder constituinte,

parecia refugiar-se na vontade e nos anseios das Câmaras Municipais, onde os

povos do Império, conforme a linguagem mesma do Imperador lhe requeriam,

jurassem um novo Projeto de Constituição. Dessas casas representativas do poder

local, onde as aspirações constitucionais e o sentimento de liberdade ainda podiam

respirar, resultaria, pela invocação imperial, a suposta legitimidade do ato de

outorga.

Pelo conteúdo também, porque a Constituição mostrava com exemplar nitidez

duas faces incontrastáveis: a do liberalismo, mas que mal sobrevivia com o texto

outorgado, não fora a declaração de direitos e as funções atribuídas ao Legislativo, e

a do absolutismo, claramente estampada na competência deferida ao Imperador,

titular constitucional de poderes concentrados em clara violação dos princípios mais

enaltecidos pelos adeptos do liberalismo.

Faz-se mister salientar pontos importantes de compreensão das estruturas

políticas do Império, desde o Poder Moderador, que somava, direta ou

indiretamente, competências executivas e legislativas, até a natureza do sufrágio, da

representação e do poder de reforma constitucional. Urge combinar em todos esses

pontos as prescrições do texto com os eventos históricos, pois, fora da ambiência

fática, fica vedado o acesso à parte mais sólida da Constituição Imperial, de todas as

Constituições brasileiras a que esteve menos apartada da realidade e ao mesmo

passo a que nos proporcionou mais tranquilidade institucional, nas palavras de

Paulo Bonavides.335

4.2.2 O Poder Moderador, a “constitucionalização do absolutismo”

O Poder Moderador foi criação polêmica, por excelência, do direito

constitucional do Império e assim permaneceu durante toda a vigência da

335

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 105.

Page 140: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

138

Monarquia. Muito se discute, tanto a latitude, quanto a natureza e funções. Uma só

questão política, a do federalismo, excedeu talvez o calor da discussão sobre o

instituto, celebrado com encômios pelos adeptos da escola conservadora, mas visto

sempre com suspeita entre os liberais e opositores do trono.

Com efeito, havia fundadas razões para o temor e a desconfiança de

federalistas liberais e republicanos, com respeito àquela inovação que a praxe

constitucional de outros países desconhecia. Pelo menos a da Europa, cujas

instituições nos haviam servido de modelo.

Para quem lê a Constituição do Império, há de averiguar que havia

justificados fundamentos para concordar com o receio dos que opugnavam a

Introdução do novo poder. Seu ingresso no texto da Constituição, qual ocorrera, por

si já caracterizava uma ofensa ao princípio concebido para fazer a liberdade e a

harmonia dos poderes. O Poder Moderador fora aqui introduzido de forma diferente,

tamanha a soma, a profundidade e a extensão das competências assinaladas, ao

seu titular, que não o era de um só poder, senão de dois, visto que em sua pessoa

vinha acumular-se também a titularidade executiva.

O Poder Moderador da Carta do Império é literalmente a constitucionalização

do absolutismo, se isto fora possível. Com efeito, o Art. 101 estabelecia a

competência do Imperador, como titular desse poder, cabendo-lhe um feixe

constitucional de nove atribuições, assim determinadas: nomear senadores,

convocar assembleia geral extraordinária nos intervalos das sessões legislativas,

sancionar os decretos e resoluções da assembleia geral, aprovar e suspender

interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogar ou adiar a

assembleia geral e dissolver a Câmara dos Deputados, bem como fazer a livre

nomeação e demissão dos ministros de Estado, suspender magistrados em

determinados casos, perdoar ou mitigar penas e conceder anistia em caso de

urgência.336

Atribuições de importância tão fundamental para o direito e a liberdade, para a

vida e o funcionamento das instituições eram conferidas a um Imperador cuja

pessoa a Constituição fazia inviolável e sagrada, declarando, ao mesmo tempo, que

336

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 107.

Page 141: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

139

não estava ele sujeito à responsabilidade alguma (Art. 99). Outorga tão avultada de

poder se completava com a definição do Poder Moderador, contido no Art. 98, onde

ele aparece como ―a chave de toda organização política‖. Acrescentava o mesmo

artigo que tal poder era ―delegado privativamente ao Imperador, como chefe

supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele

sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes

políticos‖. Prosseguia a ditadura constitucional do Imperador dentro da Lei Maior

com o Art. 102, que o nomeava chefe do Poder Executivo. Nessa qualidade

exercitaria ele o Poder Executivo pelos seus ministros de Estado, os quais, como já

ficou dito, não passavam de pessoas de sua livre escolha e destituição. E, ainda,

sendo D. Pedro I um Bragança, a tradição autoritária da Casa não poderia deixar de

ter ingresso ao texto da Carta constitucional outorgada por um membro da família.337

4.2.3 A evolução liberal da Carta do Império, um código constitucional de

compromisso da sociedade com o Estado

Mas as Constituições não existem unicamente no papel. Uma vez saídas da

forja do constituinte, seja este uma assembleia, um príncipe, ou um ditador, correm o

seu destino, segundo as condições do meio humano e social que se aplicam. A

sociedade, portadora também de um poder constituinte originário, exercitado

invisivelmente fora dos quadros externos da legalidade, é que dirá, em última

análise, com a grande força legitimadora dos seus interesses, se a Constituição

jurídica terá ou não eficácia. Também os titulares do poder, os aplicadores do texto,

os senhores da decisão governativa são um elemento-força da maior importância

para a feliz concretização de um ensaio constitucional.

Assim aconteceu no Brasil com a figura do segundo Imperador e seu longo

reinado. O que vimos, então, foi apartar-se ele das prerrogativas do poder absoluto,

salvo quando o utilizou com raríssima ocasião para dar espaço consentido ao inteiro

exercício das liberdades públicas. De sorte que ao longo do Segundo Reinado se

corroborava a presença de um poder realmente eficaz em desempenhar

considerável parcela de suas funções: o poder da representação nacional.

337

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 108.

Page 142: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

140

Graças a um Pedro II tão distinto do Pedro I das Comissões Militares do

Primeiro Reinado, se tornou possível aqui um constitucionalismo costumeiro, que

medrou à sombra do cetro e cujo fruto mais valioso veio a ser a sábia experiência

parlamentar da monarquia.

De todas as Constituições brasileiras, a do Império, instituindo o sufrágio

restrito, foi a que mais ostensivamente patenteou, entre nós, a dimensão classista

do Estado liberal.

A Constituição do Império repartia o eleitorado em duas categorias: os

eleitores com direito a votar nas assembleias primárias de paróquia, que nós

chamaríamos eleitores de primeiro grau, e os eleitores aptos a votar na eleição dos

deputados, senadores e membros dos conselhos provinciais, a saber, os eleitores

de segundo grau, que em verdade eram os mesmos eleitores paroquiais, com

exceção daqueles que tivessem renda líquida anual inferior a uma determinada

quantia, por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego. Aliás, o obstáculo à

participação também se estendia nas assembleias paroquiais àqueles que não

tivessem determinada renda líquida anual por bens da mesma forma anteriormente

mencionada.338

O teor discriminatório de natureza econômica sobre as bases do sufrágio

prosseguia com a exigência constitucional de uma determinada renda líquida para o

cidadão poder eleger-se deputado. Essa exigência se elevava duas vezes mais para

os que postulassem a eleição de senador.

A natureza restritiva da elegibilidade para o Senado do Império, além desse

impedimento pecuniário, assentava também sobre um requisito típico do liberalismo

burguês do século XIX, relativo ao saber, à capacidade e às virtudes do candidato,

conforme rezava sobre a matéria o texto constitucional de 1824, em seu Art. 45.339

Inspirava-o compromisso da filosofia burguesa com os interesses remanescentes

das classes feudais. Selava-se, portanto, na esfera das elites o pacto dos liberais

vinculados ao contrato social com os conservadores do altar e do trono, afeiçoados

à tradição colonial. Pela forma como vimos o poder se institucionalizar na

338

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 112.

339BRASIL. Constituição (1824). Carta de Lei de 25 de Março de 1824. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 45).

Page 143: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

141

Constituição outorgada, não resta a menor dúvida que o Império era criação refletida

de uma sociedade agrária.340

A face liberal-burguesa das instituições transparece por igual com rara nitidez

quando se examina o projeto menos conservador e menos aderente ao status quo

autoritário da tradição dos Braganças. Impunha ele também o sufrágio restrito e o

fazia em disposições constitucionais vazadas de casuísmos e de expressões de

linguagem de todo impróprias a uma Constituição. Com rude materialidade dispunha

sobre a capacidade econômica dos candidatos a deputado, capacidade orçada no

valor de quinhentos alqueires de farinha de mandioca, conforme rezava literalmente

o singular texto.341

Não era somente na forma de regular a função representativa, fazendo-a em

larga parte um privilégio da burguesia em razão da maneira como organizava o

sufrágio, votar e ser votado, que a Constituição do Império sem disfarce se revelava

uma Carta de sustentação dos interesses do chamado terceiro estado, aquele que

na Europa fizera a Revolução Francesa e aqui, em sua versão patriarcal,

patrocinava a monarquia constitucional. Também a propriedade, garantida em toda a

sua plenitude, preenchia basicamente essa finalidade. Com efeito, a propriedade, ao

mesmo passo que recebia proteção constitucional, era proclamada, ao lado da

liberdade e da segurança individual, a base da inviolabilidade dos direitos civis e

políticos dos cidadãos (Art. 179)342. Convertera-se, portanto, no instituto mais amplo

a corroborar que a Lei Maior da monarquia se fizera uma coluna do liberalismo

individualista dos grandes interesses do patriciado rural.

4.2.4 Rigidez e ductilidade da constituição imperial

A maior ou menor rigidez das Constituições tem sido, no curso da nossa

história, um dos pontos mais polêmicos e cruciais do Direito Constitucional, desde

que este se positivou como codificação das liberdades e limitação às prerrogativas

dos governantes.

340

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 114.

341Ibid., p. 116.

342BRASIL. Constituição (1824). Carta de Lei de 25 de Março de 1824. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 179).

Page 144: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

142

Normalmente, o que se espera é que as regras constitucionais se façam para

ter o máximo de juridicidade, eficácia e permanência, de tal maneira que a emenda e

a mudança só venham a ocorrer em situações raras e excepcionais, cumprindo

assim a Constituição a finalidade superior de fundamentar e proteger, pelo largo

espaço de tempo possível, a ordem estabelecida. Primordial, portanto, resguardá-la

contra as surpresas de um reformismo ou de uma mudança sem critério, ao sabor

tão-somente do arbítrio e do casuísmo.

Nessa linha de raciocínio, que foi aquela que inspirou o constitucionalismo em

seus primórdios, a rigidez, instrumento de conservação derivado de imperativos

racionais e valores triunfantes, representava a regra, ao passo que a flexibilidade

configurava a exceção.343

A constância e imobilidade do lado da razão, a mudança do lado do elemento

histórico, e como a razão fora o pedestal de todas as Constituições do liberalismo,

não havia por que estranhar o predomínio das aspirações de rigidez, levadas a cabo

com os obstáculos postos normalmente pelo constituinte à reforma dos textos

constitucionais.

Não se havia, ainda, formado a consciência de que a Constituição pertence

também à sociologia e à ciência política, de que elementos fáticos e dinâmicos da

sociedade, à qual ela se aplica lhe decidem a eficácia ou que uma lei maior não é

obra unicamente do engenho, das abstrações e da metafísica política de teoristas

românticos, aferrados a princípios solenes, senão que se insere dialeticamente na

esfera do fático, do real e do histórico.344

Como a tendência maior da teoria constitucional com princípios do século

passado era, pois, a de sancionar o princípio da rigidez, só há que se que louvar a

posição originalíssima do constituinte pátrio pelas soluções propostas ao problema,

já de todo intuído e certamente meditado.

Efetivamente, o Projeto Antônio Carlos, no último Título, ocupando-se da

reforma constitucional, estabelecia, e com rigor teórico inexcedível para a época, a

distinção, dentro da própria Constituição, entre o que é substantivamente matéria

343

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 120.

344Ibid., p. 122.

Page 145: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

143

constitucional e aquilo que apenas tem forma constitucional. Em verdade, só era

constitucional o que entendesse com os limites a atribuições respectivas dos

poderes políticos e com os direitos políticos e individuais dos cidadãos. De tal sorte

que tudo mais que entrasse na Constituição seria apenas formalmente

constitucional.345

Essa disposição, assim estabelecida, pesava no processo de revisão do texto,

produzindo dois graus de rigidez. Um maior, quando se tratasse de disposições

materialmente constitucionais, que demandavam o exame da matéria por três

legislaturas consecutivas, seguida da convocação de uma assembleia única de

revista, equivalente a uma constituinte exclusiva, a ser dissolvida tão logo concluísse

seus trabalhos. Outro menor, referente a preceitos que não fossem matéria

constitucional propriamente dita. Nessa hipótese, a legislatura ordinária, por dois

terços de cada uma das Casas, fazia alteração cabível.346

Manteve a Constituição de 25 de março de 1824 a admirável distinção que

ainda hoje nos deveria servir de modelo e inspiração, quando a reflexão busca

remédios com que tolher a enxurrada de casuísmos invasores, por onde tem

resultado a obesidade e o desprestigio dos textos constitucionais.

A Carta imperial fez rígido o que era materialmente constitucional, tornou o

restante das regras e preceitos da Constituição demasiado flexíveis, de tal sorte que

poderiam ser alterados pelas legislaturas ordinárias, sem as formalidades requeridas

para a matéria basicamente constitucional, como a competência dos poderes e os

direitos dos cidadãos.

4.2.5 Uma Carta com a sensibilidade precursora para o social

O constitucionalismo do Império teve uma sensibilidade precursora para o

social, sem embargo do acentuado teor individualista que caracterizava os dois

documentos.

345

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 124.

346Ibid.,

p. 115.

Page 146: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

144

Senão vejamos. No Projeto Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e Silva havia

já o germe de uma declaração social de direitos, isto há mais de 150 anos. Com

efeito, ele ―prometia escolas primárias em cada termo, ginásio em cada comarca e

universidade nos mais apropriados locais‖ (Art. 150), bem como a ―catequese e

civilização dos índios‖, a par da ―emancipação lenta dos negros‖, pondo assim o

dedo na ferida da escravidão, fadada a ser o pesadelo da monarquia. Até o

problema do desemprego veio a ser considerado num dos artigos do Projeto que

instituía ―casas de trabalho para os que não acham empregos‖ (Art. 255).347

A seguir, a Constituição outorgada, ao contrário do silêncio e omissão dos

republicanos de 1891, enunciava o princípio, segundo o qual a ―Constituição

também garante os socorros públicos‖, ao mesmo passo que declarava a introdução

primária gratuita a todos os cidadãos; regras, portanto, de constitucionalismo social,

tão peculiar às conquistas de nosso século.

A Constituição do Império foi, em suma, uma Constituição de três direções: a

primeira, voltada para o passado, trazendo as graves sequelas do absolutismo; a

segunda, dirigida para o presente, efetivando, em parte e com êxito, no decurso de

sua aplicação, o programa do Estado liberal; e uma terceira, à primeira vista

desconhecida e encoberta, pressentindo já o futuro, conforme acaba de ser

apontado.

Como se vê, nossos antepassados abriram também uma janela para o social

nos direitos humanos do século XX, fora, portanto, das vistas acanhadas e egoístas

do liberalismo imperante, do qual eles, por força do tempo e da necessidade, se

fizeram órgãos ou instrumentos.

E essa evolução para o social consagra a certeza de que essa atitude volta-

se em direção à paz, pois à medida que caminhamos para posturas que defendem e

regram o social, mais pacífica torna-se a sociedade.

347

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 126.

Page 147: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

145

4.3 A Constituição Federal de 1891

Tanto a Constituinte como a Primeira República nasceram de um caudaloso

movimento de ideias que acompanhou toda a crise política do Segundo Reinado, até

espedaçar o trono constitucional de D. Pedro II e introduzir no país um novo regime:

o republicano.

Naturalmente, nem tudo derivou da proclamação da República, em 15 de

novembro de 1889, posto que foram também causas primárias do movimento as

raízes institucionais da insatisfação revolucionária, os acontecimentos que se foram

acumulando e sucedendo, até produzirem a densidade dos fatos cuja torrente, em

se precipitando, levou abaixo toda a organização imperial de poder. Houve, assim,

causas fundamentais entre causas políticas, econômicas e socioculturais que

contribuíram para a queda da monarquia e instauração da República.

Mas nem por isso se pode negar que a proclamação da República, os

decretos do Governo Provisório e a promulgação subsequente da Constituição de

1891 foram pelo aspecto formal uma ruptura completa da ordem política

anteriormente estabelecida no país.

O texto constitucional de 1891, com seus 91 artigos e oito disposições

transitórias, veio a ser, em termos jurídicos, o grande monumento de nossa erudição

liberal.348 Em matéria constitucional consagrava a separação de poderes de

conformidade com a proposta de Charles de Montesquieu, fórmula, aliás, peculiar a

todas as constituições do liberalismo.

Confirmava também o sistema federativo e introduzia de maneira tácita a

forma presidencial de governo.

Por seu turno, a declaração de direitos introduziu importantes inovações. Foi

clara em consignar que a República não admitia privilégios de berço e não

reconhecia foros de nobreza. Da mesma forma as ordens honoríficas foram extintas

e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como títulos nobiliárquicos e de

conselhos.

348

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 258.

Page 148: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

146

A República instituiu o casamento civil, de celebração gratuita, secularizou os

cemitérios, laicizou o ensino nos estabelecimentos púbicos, separou o Estado da

Igreja, aboliu a pena de morte, criou o habeas corpus.

O direito de propriedade, com a República, viu-se erguido em sua plenitude

máxima, confirmando a tradição clássica do Estado liberal nesse ponto. Apenas uma

ressalva existia que era a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mas

com prévia indenização.

Muitos outros direitos e garantias já existentes na Constituição do Império

foram incorporados à nova lei, como a isonomia, a livre manifestação de

pensamento, a liberdade de associação, o direito de reunião, a inviolabilidade da

casa como asilo do indivíduo e a instituição do júri.

O aperfeiçoamento liberal de garantia dos direitos da pessoa humana foi

coroado com o Art. 28 da Constituição Republicana349, que preceituava que a

declaração não excluía ―outras garantias e direitos não enumerados, mas

resultantes da forma de governo que ela estabelecia e dos princípios que

consignava‖.

O cerne desse dispositivo, como pedra angular do Estado de direito, tem-se

reproduzido em todas as Constituições republicanas que vieram a seguir, derivadas

do poder constituinte legítimo, garantindo assim o exercício jurisdicional de proteção

das liberdades fundamentais.

Porém, uma coisa foi a ordem constitucional formalmente estabelecida pela

vontade da Assembleia Constituinte, onde se patenteara o primado da ideologia de

elite da classe burguesa, que já recuara para posições comodamente conservadoras

de sustentação de seus interesses, e, outra coisa muito diferente, a realidade e a

organização social da nação republicana, proveniente da crise do cativeiro e da

derrubada das instituições imperiais.350

No que tange ao princípio da separação de poderes, onde foram depositados

pelos republicanos suas maiores esperanças, por terem acabado no país com o

349

BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 155).

350BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 262.

Page 149: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

147

incômodo do Poder Moderador, indubitavelmente logo transformou-se para a

ditadura de um só poder, mesmo como disfarce. Esse poder era o Executivo em cuja

política se estampava a face de um presidencialismo onipotente.351

Em volta da autoridade do presidente giravam todas as dependências, todos

os interesses, todas as influências, anulando, assim, desde as bases, a legalidade

republicana e federativa das instituições, saídas dos preceitos formais e substanciais

da Constituição de 1891.

Assim, entre a Constituição jurídica e a Constituição sociológica havia enorme

distância, de maneira que nesse espaço se formava também o fosso social das

oligarquias, configurando-se um abismo político do voto manipulado, que tirava a

autenticidade da participação do cidadão no ato soberano de eleição dos corpos

representativos.

Dessa forma, o instituto da intervenção federal, criado para equilibrar e

harmonizar poderes, resultara no mais poderoso instrumento político de arbítrio, que

contribuía para o absolutismo presidencial, estrangulando as autonomias estaduais.

Na verdade o Presidente da República era um monarca eletivo substituído de quatro

em quatro anos.

4.4 A Constituição de 1934

4.4.1 A instabilidade da ambiguidade

A Constituição de 1934 é resultado do movimento de 1930, das mudanças

operadas pelo Governo Provisório e da Revolução Constitucionalista de 1932. A

situação é então inteiramente diversa daquela que deu origem à Constituição de

1891. As preocupações sociais ganham preeminência; já não têm o caráter de

questão de polícia que marcou esse tema na República Velha.

A Assembleia Constituinte reunida em 1933 contrasta com a de 1891,

inicialmente pelo entusiasmo com que a população a acolheu, ao contrário da

351

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 264.

Page 150: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

148

indiferença que envolveu a primeira Constituinte republicana. Os constituintes eram

em número de 214, entre os quais uma inovação e peculiaridade: 40 deputados

―classistas‖; 18 representantes dos empregados, 17 dos empregadores, três dos

profissionais liberais e dois dos funcionários públicos. As correntes de pensamento

mais diversas estavam aí representadas, pois além dos ―classistas‖ viam-se, ainda,

deputados como Zoroastro Gouvêa e Lacerda Werneck, eleitos pelo Partido

Socialista. As preocupações parecem adquirir âmbito nacional. Um fato muito

importante não pode ser esquecido: as mulheres votaram pela primeira vez, o que

fez do Brasil um dos pioneiros do voto feminino em todo o mundo.352

Todos esses fatores apontam para o sentido eminentemente social da

Constituição de 1934. Seguindo uma certa tendência europeia do pós-guerra, mas

que na verdade só iria se firmar definitivamente ao término da Segunda Grande

Guerra, alguns dos preceitos do chamado ―Welfare State‖ 353 foram consagrados no

texto. Pela primeira vez na história constitucional brasileira, considerações sobre a

ordem econômica e social estiveram presentes. Uma legislação trabalhista garantia

a autonomia sindical, a jornada de oito horas, a previdência social e os dissídios

coletivos. A família mereceria proteção especial, particularmente aquela de prole

numerosa. O deputado Prado Kelly foi a larga medida o responsável pela inclusão

de um outro item social, até então inédito: um capítulo especial sobre a educação.

A divisão de poderes permaneceria tripartite, mas o Executivo foi fortalecido

com maiores faculdades para decretar o estado de sítio.

Uma conquista fundamental no campo jurídico foi dada pela instituição do

mandado de segurança, concedido ―para a defesa de direito certo e incontestável,

ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer

autoridade‖. Todos os avanços no campo dos direitos e garantias individuais da

352

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 268.

353Estado de bem-estar social (em inglês: Welfare State), também conhecido como Estado-providência, é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção (protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_de_bem-estar_social>. Acesso em: 22 mar. 2010.

Page 151: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

149

Constituição de 1891 foram mantidos, ignorando-se a reforma de 1926 que, entre

outras coisas, havia restringido a aplicação do habeas corpus.

É certo, no entanto, que muitos desses princípios não saíram do papel, o que,

aliás, os próprios constituintes já previam ao término dos trabalhos. Já se sabia que

muitos preceitos da legislação trabalhista não seriam, nem poderiam ser, segundo

os empregadores, cumpridos. Não se acredita, apesar disso, que devem ser

encontradas aí as causas da vida curta dessa Carta. Mais uma vez, não é a

inexequibilidade, a inadaptabilidade às realidades sociais, políticas e econômicas do

País que determinaram a ineficácia do texto constitucional.354

Vê-se antes uma certa contradição no cerne do próprio texto. De um lado, um

liberalismo insuspeito, herdeiro das formulações de 1891 e continuador dessa

tradição, interpretando à sua maneira a representação e justiça do ideário de 1930.

Ele se manifesta no capítulo das liberdades e garantias individuais, nas eleições

livres, no voto universal, na livre organização dos partidos, na autonomia dos

poderes, dos estados e municípios.

Mas há, também, por outro lado, uma forte tendência centralizadora, marcada

pela ampliação das atribuições do Poder Executivo, que vem aliada a um desejo de

regular todas as instâncias do corpo social, a uma maciça intervenção do Estado na

economia. Lembre-se aqui que não se justifica intervenção econômica, a não ser

com a finalidade de buscar a paz social. Some-se a isso o populismo em germe

espalhado nas preocupações sociais e teremos um quadro não muito distante do

que viria a ser o chamado Estado Novo.

A Carta é uma colcha de retalhos, em que pese seu brilhantismo jurídico e

sua lição histórica. Princípios antagônicos, formulados antagonicamente, inclusive,

são postos lado a lado. Eles marcam duas tendências claramente definidas, dois

projetos políticos diversos. Um deles havia de prevalecer. O que efetivamente

aconteceu: sobreveio a ditadura getulista a partir de 1937.

A Constituição de 1937 é o registro definitivo da derrota da tendência liberal.

Para o pesar de todos os brasileiros.

354

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 272.

Page 152: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

150

A Constituição Republicana de 1934 inaugura, com a nova declaração de

direitos, o Estado social brasileiro.

Veja-se como referida transformação se operou juridicamente, como ela se

reflete no constitucionalismo pátrio.

Veio tarde a reforma de 1926. As emendas foram tíbias e apenas presumiram

vagamente a questão social. A Constituição já estava morta, fossilizada no seu

individualismo inveterado, quando o movimento político e militar de 1930 escreveu o

epitáfio da velha ordem liberal, lançando, quatro anos depois, na Constituição de

1934, as primeiras bases a um constitucionalismo social, que consagrou

definitivamente teses e princípios sempre abjurados pelo liberalismo da

República.355

A ditadura do Governo Provisório e suas iniciativas no campo social

apresentavam um novo figurino tocante ao exercício do poder, volvido agora para as

aspirações menos oligárquicas e mais identificadas com a classe média e as classes

obreiras, cuja consciência a liderança revolucionária de 1930 despertou, até

convertê-la num fator novo de suma importância para a nossa história constitucional

subsequente.

O teor social domina, pois a Constituição de 1934, ocorrendo em relação à de

1891 uma justaposição hegemônica de valores, cuja incorporação ao texto recente

não importou, todavia em supressão dos direitos e garantias já contidas na primeira

declaração republicana, de marcado cunho individualista.

Aliás, o constitucionalismo social das quatro Constituições brasileiras deste

século jamais operou por via eliminatória, cancelando direitos e garantias expressos

nas antecedentes declarações, mas antes obrou com vistas a conservá-los,

modificando-lhes tão somente a índole e o espírito, de tal maneira que os

acréscimos de inspiração social se impusessem dominantes. Daqui resulta, pois, a

aparente consemelhança das nossas declarações constitucionais de direitos, cuja

leitura inadvertida poderia levar-nos a supor um certo imobilismo constitucional em

355

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 269.

Page 153: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

151

face das sensíveis variações doutrinárias, que alteraram de forma profunda as bases

do Estado brasileiro, desde a proclamação da República aos nossos dias.356

Consideradas assim e vistas meramente em termos de redação, ter-se-ia a

impressão - falsa impressão, é certo - de que nossas declarações de direitos foram

objeto de raríssimas inovações, com os nossos redatores de Constituição, no

exercício do poder constituinte, se cingindo mais a retoques de linguagem e

ampliações extremamente sóbrias, do que a reformas de envergadura.

Todavia, são largas as mudanças e podem ser aferidas em toda a sua

extensão, uma vez postas em conexidade com os capítulos da lei social, pertinentes

à ordem econômica, à família, à educação e à cultura, introduzidos no quadro da

Constituição.

No que concerne à Declaração de Direitos da Constituição de 1934, urge, em

primeiro lugar, louvar-lhe a boa técnica, abandonada em 1946 e em parte retomada

pela Constituição de 1967, de repetir os direitos políticos e garantias individuais em

capítulos distintos.

No entanto, é fora da Declaração de Direitos que a preocupação social e o

revestimento novo desses direitos proclamados pela Constituição se exterioriza com

toda a força e explicitude, apontando para os rumos inéditos que o

constitucionalismo pátrio tomou.

A introdução de dois títulos, desconhecidos à Constituição Republicana de

1891, e relativos à ordem econômica e social, outro à família, educação e cultura,

vem patentear a guinada constitucional no sentido de estabelecer juridicamente uma

democracia social.

Mas a Declaração mesma, a despeito de assemelhar-se bastante à de 1891,

logo no Art. 113, reportando-se à inviolabilidade dos direitos à liberdade, à

segurança individual e à propriedade, faz ampliação que não deve passar

despercebida: a que se refere ―à subsistência‖, ignorada no texto de 1891. E mais,

quando disciplina o direito de propriedade, furta-se a garanti-lo ―em toda a

plenitude‖, como fora da Constituição de 1891. Inova também de maneira

356

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 280.

Page 154: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

152

substancial ao dispor que esse direito ―não poderá ser exercido contra o interesse

social ou coletivo‖.357

Idêntica confissão relativa ao caráter social dos novos direitos do homem

reaparece no mesmo Art. 117.358 Onde se lê: ―A todos cabe o direito de prover a

própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto. O poder público

deve amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência‖.

Se o constitucionalismo de 1934, o primeiro que consagrou em toda a

extensão o teor social dos novos direitos, deu tanta ênfase a esse aspecto,

mostrando-se sensível, por conseguinte, às comoções ideológicas que abalavam

então os povos do Ocidente, verdade é que no domínio das garantias individuais

produziu uma extraordinária inovação, com o acolhimento dado a um instituto

desconhecido de defesa dos direitos da pessoa humana: o mandado de segurança,

a ser ministrado toda vez que houvesse direito certo e incontestável, ameaçado ou

violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade.

A introdução por via constitucional desse novo remédio judicial vem

sobejamente corroborar o que tem-se dito relativamente à aparição dos direitos

sociais: eles não vieram para eliminar os direitos individuais, mas para dar-lhes

dimensão nova, mais rica de promessas e adequação às variações impostas pela

acomodação da liberdade no âmbito das exigências sociais, antes que estas

venham a redundar em surpresas totalitárias.359

O Art. 115 da Constituição de 1934 levanta o brado a favor das novas ideias

que hão de impor a remodelação do Estado e ditar a reforma social, reiterando

princípios nacionalistas já em voga e que têm eco no texto constitucional ou

programando para a nova ordem econômica uma organização, ―conforme os

princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a

todos existência condigna‖.

357

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 178.

358BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 117).

359BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 280, nota 357.

Page 155: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

153

A seguir, nos artigos 116 e 117, o idealismo nacionalista da Constituição de

1934 se projeta em disposições que refletem por igual o teor intervencionista do

Estado na mesma ordem econômica, ao asseverar que ―a União poderá monopolizar

determinada indústria ou atividade econômica‖ ou que ―a lei promoverá o fomento da

economia popular, o desenvolvimento do crédito e a nacionalização progressiva dos

bancos de depósito‖.

Desencadeara-se no Brasil uma revolução industrial que cobrou alento com

as mudanças políticas estabelecidas desde 1930, as quais, graças à Constituição de

1934, tiveram o primeiro ensejo de institucionalização. Espelham essas mudanças o

descrédito do liberalismo parlamentar europeu, aqui imperante desde a Proclamação

da República e sempre neutralizado em presença das questões sociais. Sucumbia

esse liberalismo na Europa em consequência da batalha das ideologias, que foram

ao desenlace militar em 1939 e exercerão incontrastável influência sobre o destino

ulterior das instituições democráticas ocidentais.360

Mas, em 1934, quem se pusesse a analisar o trabalho da Constituinte

inspirado pelo movimento revolucionário de 1930, veria facilmente como a

Constituição fora já uma caixa de ressonância para as posições ideológicas em

antagonismo.

O ranço fascista da deputação de classe, que entra qual apêndice na

representação política da Nação parecia antecipar 1937. Pressagiava assim o que

nos aguardou três anos depois da instituição no Congresso, por via constitucional,

da ―bancada classista‖, aquela reminiscência viva das ideias mais diletas do

corporativismo de direita, em curso na Itália de Benito Mussolini e na Península

Ibérica, debaixo dos regimes de Francisco Franco e António de Oliveira Salazar.361

A par desse reflexo político na medição de forças, de que foi palco a

Constituinte, temos, por consequência também da influência ideológica manifestada

em termos de antiliberalismo, os preceitos constitucionais de fundo social,

indicativos da nova fase na qual ingressa o nosso direito público positivo. A

Constituição entrou de cheio em áreas nunca dantes devassadas. E o Art. 121,

360

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 184

361Ibid., p. 186.

Page 156: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

154

fazendo a escalada social do constitucionalismo pátrio diz textualmente que ―a lei

promovera o amparo da produção e estabelecerá as condições de trabalho, na

cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os

interesses econômicos do País‖.

Naquele celebrado artigo, preceitos da legislação do trabalho são postos em

pauta constitucional, como os referentes ao salário mínimo, à jornada máxima de

oito horas de trabalho, ao repouso hebdomadário, às férias anuais remuneradas, à

indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, à assistência médica ao

trabalhador e à gestante e ao reconhecimento das convenções coletivas de trabalho.

Pertinente ainda à ordem econômica e social temos as disposições do Art.

138362, amparando a maternidade e a infância, socorrendo as famílias de prole

numerosa, incumbindo ao poder público federal, estadual e municipal a adoção de

―medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a

morbidade infantis‖ e a proteger a juventude ―contra toda exploração, bem como

contra o abandono físico, moral e intelectual‖.

Converteu-se a Constituição nesse capítulo sobre a ordem econômica e social

numa apaixonada plataforma das ideias que marcam a índole nova do Estado

brasileiro, enriquecidas e completadas no título seguinte, respeitante à família,

educação e cultura.

Aí as conotações sociais avultam com a mesma expressão e energia. A

família é posta ―sob a proteção especial do Estado‖, a educação é direito de todos,

as artes, as letras e a cultura são objeto de favorecimento, amparo e estímulo de

poderes que se movem em três órbitas: União, Estado e Município.

Ademais, a competência da União em matéria educacional e instituem-se os

percentuais mínimos de renda orçamentária destinados à manutenção e

desenvolvimento dos sistemas educativos, iniciativa que só veio abaixo com a

Constituição de 1967. Assim, o Estado social é formalizado no texto da Constituição,

resultado da vitória jurídica da democracia de grupos em nosso país, buscando

emprestar à representação política uma filosofia do poder, volvida menos para o

362

BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 138).

Page 157: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

155

indivíduo do que para as categorias intermediárias, aquelas que o liberalismo se

habituara a converter em objeto de menosprezo ou indiferença.

Por fim, sob o sintoma dessa mudança onde a ideia social triunfa, a

catalogação dos crimes de responsabilidade do Presidente da República,

configurados, entre outros, nos atos que atentassem contra ―o gozo ou exercício

legal dos direitos políticos, sociais ou individuais‖.

Por conseguinte, a Constituição de 1934, trouxe a admirável marca social dos

direitos do homem. Posto que efêmera foi a confirmação, mais uma vez, de nossa

capacidade de transplantar para o direito público brasileiro princípios e instituições já

abonados pela experiência política de outros povos. A dose de socialismo inoculada

em nosso Estado liberal para reformá-lo de alto a baixo foi, porém, forte demais.

Pereceu a Constituição submersa nas agitações que abalaram o País, efeito de uma

efervescência ideológica de cunho evolucionário, da qual colheu a contrarreforma

ensejo para desferir o golpe Estado de 1937.363

No que concerne à paz o Art. 5º da Constituição de 1934 assim dispõe:

Art. 5º - Compete privativamente à União: I - manter relações com os Estados estrangeiros, nomear os membros do corpo diplomático e consular, e celebrar tratados e convenções internacionais; II - conceder ou negar passagem a forças estrangeiras pelo território nacional; III - declarar a guerra e fazer a paz; [...]

Na citada Carta, vários fatores colaboraram para a comprovação de uma

atitude de apaziguamento social: inovação da legislação trabalhista (jornada de

trabalho de oito horas, previdência social, dissídios coletivos), proteção especial à

família, um capítulo especial sobre a educação, inédito até então, e a conquista do

mandado de segurança. Muitas dessas inovações constitucionais, embora, na

prática, não tenham efetivado-se, como inclusive previsto pelos próprios

constituintes, não deixaram de mostrar a intenção de uma sociedade mais justa.

Assim é que uma sociedade mais equilibrada por essas inovações pressupõe uma

sociedade mais pacífica. Certo é, também, que houve contradições, como já descrito

anteriormente no corpo desse estudo, como a grande tendência centralizadora que

363

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 331.

Page 158: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

156

concede ao Poder Executivo uma maior amplitude de suas atribuições. Mas, mesmo

ante as contradições e as inexequibilidades face à inadaptalidade às realidades

sociais políticas e econômicas do país, não poderíamos deixar de reconhecer que

no texto constitucional depreendia-se, sim, a ideia de conquistar mais paz para a

sociedade brasileira à época.

4.5 A Constituição de 1937: uma Carta outorgada

O golpe de 10 de novembro de 1937 impôs uma Carta constitucional que

encerrou o rápido período de vigência da Constituição de 1934, nascida da

Assembleia Nacional Constituinte.

Até então as Constituições haviam sido resultantes de debates e decisões

constituintes. Porém, a Constituição de 1937 foi a primeira que dispensou o trabalho

de representação popular constituinte.

Por certo, a longa duração da primeira Carta, ou seja, de 1824 a 1891, se

explica pela sensibilidade política dos constituintes de 1823.

Pedro Autran da Matta Albuquerque, em seu tratado de ―Direito Público

Universal‖364, lembra com muita acuidade que: ―[...] a lei para ser sábia deve ser

obra de muitas inteligências, e para ser justa deve conciliar todos os interesses‖.

Aliás, o próprio Albuquerque lembra, ainda, que ―a primeira condição de toda

lei é a justiça, sem a qual não seria lei‖, sendo ―mister que ao poder legislativo se dê

uma forma tal, que ele seja naturalmente imparcial‖. E conclui perguntando e

respondendo: “E qual será esta forma senão a de um corpo que represente, quanto

for possível, todos os interesses? Pelo contraste dos interesses o corpo legislativo

se tornará imparcial‖.365

A longevidade, portanto, da Constituição de 1824, está explicada por essa

relativa imparcialidade para a época, resultante de uma vontade constituinte que,

representando os interesses gerais da Nação e utilizando-se dos seus contrastes,

conciliava as diversas tendências e reivindicações.

364

ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Tratado de Direito Público universal. Rio de Janeiro: FARJ, 1999. p. 27.

365Ibid., p. 20.

Page 159: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

157

4.5.1 As fontes da Carta outorgada

Atribuem-se a vários fatores e diversas fontes de inspiração a Carta de 1937.

Seguramente, a influência maior foi a da Constituição da Polônia, o que

permitiu aos críticos e analistas da época denominá-la maliciosamente de ―A

Polaca‖.

Mas é indispensável acrescentar a essa fonte inspiradora a influência do

fascismo de Benito Mussolini, vitorioso na Itália em 1922, e do nazismo implantado

por Adolf Hitler na Alemanha.

Em meio às agitações sociais, num período de vizinhança do

desenvolvimento industrial que se pronunciava, o fantasma do comunismo foi fonte

alimentadora do golpe e, portanto, da Carta de 37.366

Em nossa história, como a primeira Constituição que não saiu da

representação popular, a Carta de 10 de novembro de 1937 não se contentou com

os movimentos direitistas da Alemanha e da Itália, vindo buscar no corporativismo

português, até a denominção de ―Estado Novo‖, para tentar definir o regime.

4.6 A Constituição de 1946

4.6.1 A instabilidade democrática

A Constituição de 1946 nos traz a certeza de que toda ditadura, por mais

longa e sombria, está determinada a ter um fim.

A Carta de 46 recuperou com decisão o princípio federativo, estabelecendo

uma valiosa autonomia para os Estados e Municípios. Além da liberdade de culto,

estabeleceu-se a total liberdade de pensamento, limitada apenas no que dizia

respeito aos espetáculos e diversões públicas. As liberdades e garantias individuais

não podiam ser cerceadas por qualquer expediente autoritário, ficando a aprovação

366

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 336.

Page 160: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

158

do estado de sítio reservada unicamente ao Congresso Nacional, novamente

composto pela Câmara e pelo Senado Federal, tendo os membros da primeira o

mandato de quatro anos, e os senadores de oito anos. A organização partidária era

livre, apesar de que a ressalva que impedia a organização, registro ou

funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação

contrariasse o regime democrático, se tenha mostrado contraditória. Seria

desnecessário lembrar que o Brasil lutou com os aliados, na Europa, contra um

inimigo totalitário que era identificado também com os demais regimes ditatoriais,

sem contar o fato de que a guerra já mostrava por igual toda a sua intensidade e

perigo.367

Era a ideia, portanto, da tripartição e equipotência dos três Poderes que

pretendia caracterizar a Carta de 46. Ela buscava devolver ao Legislativo e ao

Judiciário a dignidade e as prerrogativas características de um regime efetivamente

democrático. O que, então, determinou a derrota dessa linha de pensamento nos

anos que se seguiram?

A análise da Constituição de 1937, parece, em parte, nos dar a resposta.

Vargas foi Presidente durante 15 anos ininterruptos, oito dos quais como ditador de

fato. Os jogos e intercâmbios políticos, que tinham seu canal natural de expressão, o

Parlamento, coarctados, acabaram por penetrar todas as camadas da burocracia,

fazendo com que as decisões políticas ganhassem cada vez mais um caráter

intransparente, espesso e incontrolável. O corporativismo alastrou-se por todos os

níveis da sociedade. Com isso, o Poder Executivo tomou ares imperiais, inchando

de modo a causar hipertrofia do Legislativo e do Judiciário.368

Mais do que a vitória do pensamento autoritário, o que se observou foi a

legitimação difusa desse pensamento entre algumas camadas da sociedade

brasileira. A figura de Vargas, antes de tudo, fez escola com o paternalismo que o

caracterizou. Não podemos esquecer que a Assembleia Constituinte que redigiu a

Carta de 46 foi eleita por apenas 15% da população, o que não permitiu auferir com

segurança a popularidade de que gozava Vargas, embora ela fosse evidente nas

classes mais simples.

367

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 415-416.

368Ibid., p. 417.

Page 161: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

159

Em outras palavras, a Constituição de 1946 não logrou se fazer presente no

dia-a-dia do povo, nem mesmo demonstrar que era instrumento de participação e

mudança. A ditadura do Estado Novo criou o mito de que as conquistas, como a

legislação, por exemplo, não significavam conquistas, mas dádivas do poder e do

seu chefe. A maioria das lideranças políticas, ao invés de trilharem o duro caminho

do esclarecimento e da penetração dos mecanismos de decisão democrática pelo

tecido social, preferiram o caminho fácil do populismo, no estilo inaugurado por

Vargas. As exceções, as honrosas exceções, sempre existiram e sempre existirão,

mas a verdade é que a grande maioria não optou por realizar, tornar efetivo os

princípios consagrados pela Constituição, e que deveriam ser as aspirações

máximas de nosso povo.

O fato então é que a consciência autoritária não se viu atacada em sua raiz, e

o populismo se fez uma alternativa trilhada de maneira irresponsável.

Como bem colocou Paulo Bonavides, na obra consultada369:

Os militares, empenhados na luta contra o fascismo e decididos a valorizar o modelo americano, derrubaram Getúlio, mas não se satisfizeram com os rumos da ―democracia brasileira‖. Só que, constatada a ―deturpação‖, não se empenharam aqueles que depois viriam a promover o golpe de 64 em auxiliar a implantação da democracia real. Se a tradição profissional e legalista das Forças Armadas conseguiu abafar e reprimir muitas das tentativas de instabilização dos governos civis, é certo que em um determinado momento as tendências intervencionais se tornaram hegemônicas entre os militares.

O populismo não percebeu que o caminho percorrido podia ser-lhe útil a curto

prazo, mas iria revelar-se deplorável a longo termo. Só a democracia, só a

consciência democrática real, orientadora dos comportamentos sociais, poderia

salvá-lo do germe autoritário que não havia sido extirpado. Foi por isso que o

movimento de 64, inspirado nos ideais americanos e dizendo-se preocupado com a

modernização do Brasil, assim como Getúlio durante o período pós-revolucionário

de 30, viu-se paradoxalmente entregue à necessidade de fortalecer o Poder

Executivo de maneira decisiva.

Observamos, então, que a famosa ―intervenção‖ dos militares, aquela que

pretendia colocar o Brasil no século XX, tinha inspirações de maior alcance, ao

369

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 416.

Page 162: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

160

contrário do que se poderia imaginar. Ela vinha comprometida com um processo

histórico que passava pela proclamação da República e descia ao papel atribuído às

Forças Armadas na Constituição de 1891, aos levantes tenentistas, à vitória das

correntes de pensamento autoritárias, ao Estado Novo, à campanha da Força

Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália. As contradições a que estava submetido o

movimento militar eram frutos da constatação de que o Brasil se apresentava

imaturo em todos os sentidos: econômico, social e político. Tais contradições se

alimentavam da convicção de que a sociedade era incapaz de realizar as

transformações necessárias, principalmente porque submetida ao jogo de ambições

de políticos despreparados para compreender, interpretar e promover o interesse

público.

O populismo não fez a opção consciente pela democracia que poderia

garantir-lhe a vida bem como a das instituições democráticas. É certo que, em

fazendo tal opção, o próprio populismo teria que mudar, extirpando o seu cerne

profundamente autoritário. Essa perene simpatia com o caudilhismo e com o

autoritarismo, apesar de ter o País uma Constituição francamente liberal, marcou a

dubiedade do populismo, fortalecendo o movimento golpista. Assim, fez-se a

―revolução‖ de 1964, a pretexto de defender a democracia, mas as consequências

políticas, sociais e econômicas desastrosas retraíam, na sua realidade, as duas

décadas de obscurantismo e de terror que se seguiram, caracterizadoras do governo

militar. A Constituição de 1946 fora destroçada. Sobre suas ruínas ergueu-se o País

autoritário dos atos institucionais; um País inteiramente desconhecido às tradições

paternalistas e liberais do regime republicano fundado no constitucionalismo dos

bacharéis de 1891 e 1934.370

4.6.2 O Estado social e a Constituição de 1946

A Constituição de 1946, mais conservadora em alguns aspectos, teve contudo

recuos e avanços que nada comprometeram a estrutura já formalmente implantada

do Estado social brasileiro. Com respeito à propriedade, a exigência de indenização

justa e prévia, acauteladora dos direitos individuais, recebeu um reforço ao dispor o

370

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 418.

Page 163: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

161

texto constitucional que ela se fazia em dinheiro. Essa indenização em dinheiro

punha termo ao silêncio e omissão da Constituição de 1934, representando uma

garantia para o elemento conservador em matéria de direito de propriedade. Com

efeito, a propriedade protegida ontem ao extremo pela lei no Estado de direito do

liberalismo, e a seguir exposta aos perigos, busca hoje proteger-se da lei no Estado

social de massas, concentração de capitais e alta tecnologia industrial. A lei já não é

serva do indivíduo, mas da sociedade. Deve o Estado contudo abster-se de alargar

sua esfera a ponto de absorver ou eliminar o sobredito instituto.371

Uma disposição restritiva também se acrescentou ao Art. 146 sobre a

intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou

atividade, quando se lhe deu por base o interesse público e por limite os direitos

fundamentais assegurados na Constituição.

Com essas disposições o Estado social se mantinha de acordo com o Estado

de direito, que assim retomava o prestígio compatível com sua fase áurea na

primeira Constituição republicana.

O Estado social também progredia, com a norma programática endereçada

ao legislador acerca da participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da

empresa, com a instituição do repouso semanal remunerado, o reconhecimento do

direito de greve, a aposentadoria facultativa do funcionário com 35 anos de serviço e

a inserção da Justiça do Trabalho na esfera do Poder Judiciário.

Mas um dos melhores aperfeiçoamentos introduzidos pela nova Constituição

se reportava ao Estado de direito quando ela declarou no Capítulo dos Direitos e das

Garantias Individuais que a lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário

qualquer lesão de direito individual.

A Constituição de 1946 assegurava, pois, um Estado social de direito vazado

na mais ampla tradição liberal dos juristas brasileiros.

De 1946 a 1964, ano em que ocorre o colapso das estruturas constitucionais

da terceira República com a outorga dos estatutos autoritários do movimento

armado de 31 de março, as instituições se caracterizam por um tríplice aspecto: a

371

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 420.

Page 164: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

162

Constituição é preponderantemente liberal, a ideologia é anti-individualista, a

sociedade é ainda arcaica nas suas estruturas. O Estado social se faz instável. A

Constituição entra em antagonismo com a sociedade. Da propaganda ideológica,

frequente durante a década de 30, passam os grupos extremistas à ação subversiva

direta, que solapa as bases do novo edifício constitucional. Nossa terceira República

foi menos social que a ditadura da Revolução de 30, que a efêmera segunda

República de 1934, que o próprio Estado Novo de Getúlio Vargas. Teria sido perfeita

se houvesse correspondido a uma sociedade liberal, com as estruturas sociais,

econômicas e empresariais do capitalismo individualista do século XIX.372

4.6.3 A declaração de direitos da Constituição da terceira República patenteia o

esforço de conciliação do Estado liberal com o Estado social

Ao volver agora para a Constituição de 1946, depara-se com as esperanças

de lograr-se um compromisso de bom senso realista, uma trégua institucional entre

as forças de renovação e as de conservação. Com aquele documento, aspirava-se a

um meio termo na transação de princípios.

Atente-se para o aspecto social da Constituição. Ai se acham definidos, num

tom menos agudo, os direitos sociais. Até mesmo a linguagem se nos afigura mais

concisa e moderada, menos solene e mais jurídica, pouco eivada de

impropriedades. As disposições do texto como que se ajustam a uma técnica mais

aprimorada. Do mesmo modo que em 1934, a ordem econômica, diz a Constituição,

deve ser organizada consoante os princípios da justiça, literalmente denominada

agora ―justiça social‖.

A Constituição a todos assegura ―trabalho que possibilite existência digna‖.

Eleva o trabalho a ―obrigação social‖. Proclama o princípio da intervenção do Estado

no domínio econômico. Traça-lhe as bases que assentam no interesse público;

projeta-lhe os limites, que são os direitos fundamentais, objeto das garantias

372

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 431.

Page 165: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

163

contidas na Constituição; condiciona enfim o uso da propriedade ao bem-estar social

e dispõe que a lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico.373

Com respeito à legislação do trabalho e à previdência social, o constituinte de

1946 declara a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da

empresa, institui o repouso semanal remunerado, confere ao trabalhador

estabilidade na empresa, proclama a assistência aos desempregados, determina a

indenização ao trabalhador despedido, estende a previdência às vítimas da doença,

da velhice, da invalidez e da morte, faz livre a associação profissional ou sindical e

reconhece por fim o direito de greve.

Estabelece o capítulo seguinte que a educação há de inspirar-se ―nos

princípios da liberdade e nos ideais da solidariedade humana‖, do mesmo passo que

reproduz adiante princípios já presentes em 1934, relativos à obrigatoriedade do

ensino primário e à sua gratuidade nos educandários oficiais. Debaixo da mesma

ordem de ideias, a inspiração dos direitos sociais, afirma que ―o amparo à cultura é

dever do Estado‖.

No capítulo segundo da Declaração de Direitos, a Constituição de 1946

oferece em proveito das liberdades humanas um instrumento novo de defesa contra

os abusos do Estado e sua ação cerceadora dos direitos individuais. Trata-se

daquela disposição sábia e tutelar, que contém um princípio de obrigatoriedade

segundo o qual ―a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer

lesão de direito individual‖.374

Temos nesta regra de direito constitucional a melhor das garantias com que

prevenir-se caso se despenhe o Estado numa legislação ofensiva do exercício dos

direitos da pessoa humana.

Desse capítulo é ainda a matéria de direito político referente à pluralidade dos

partidos e à garantia dos direitos fundamentais do homem, convertidos em princípios

constitucionais, que nenhum partido político ou associação poderá transgredir, visto

que naqueles princípios se esteia o regime democrático. Todo programa ou ação

373

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 434.

374Ibid., p. 436.

Page 166: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

164

contrária a essa forma de regime acarretaria pois a vedação da organização, registro

ou funcionamento do grêmio partidário.

Indubitavelmente, a nota dominante da Constituição de 1946, relativamente à

Declaração de Direitos, há de ser compendiada na desarmonia ainda observada

quanto aos dois princípios que lutam por impor-se desde 1934: o individualista e o

social. Deram amostra os constituintes de generoso esforço, malsucedido, embora,

ao querer conciliar o Estado liberal com o Estado social. Teve este um quinhão mais

mesquinho que em 1934, se o pesarmos na balança das concessões individualistas

feitas pela Constituição de 1946.

O quadro agora é distinto de 1934. Já não se tropeça em inovações

doutrinariamente radicais. Se a Declaração adianta um passo, recua outro tanto. O

constituinte cauteloso se arreda do reformismo teórico que inspirou a obra de 1934 e

se revela parcimonioso ou relutante em abrir estrada a reformas fáceis.

A tese social não era mais novidade. Estava sendo pensada, refletida,

conscientizada pelo elemento conservador, longe pois do que acontecera em 1934.

Naquele ano fora válido o raciocínio estampado, ou seja, sempre que os pontos

doutrinários se extremam num conflito dialético, e se deparam com a possibilidade

de um documento de transição, pode este conter, no aspecto inovado, conquistas

surpreendentes e adiantadíssimas. A Constituição do Império, por exemplo, com os

pés ainda no absolutismo, consagrava excepcionalmente, omitindo ou explicitando

princípios de liberalização tão acentuados que surpreende não vê-los depois

perfilhados pela Constituição diametralmente liberal de 1891 (o voto do analfabeto e

a instrução primária gratuita). Quando posteriormente, em 1934, o princípio social se

estreou em nossas constituições, observamos na confirmação do mesmo fenômeno,

e a par de todas as sobrevivências liberais resguardadas, uma dosagem dogmática

de certas teses sociais, dosagem bastante alta, cuja desaparição se deu depois com

os textos mais moderados de 1946 e 1967. Tal fenômeno é não raro sintoma de

imaturidade e fruto da exaltação constituinte, em presença de alguma novidade

ideológica, ainda não de todo assimilada, e sujeita portanto a retificações ulteriores,

promovidas quase sempre por via de expedientes supressivos, como efeito de

reações conservadoras.

Page 167: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

165

Esteve a Constituição de 1946 formalmente em vigor até 1967, posto que

bastante mutilada desde 1964, mas durante todos os seus vinte e um anos de

vigência a lei social da participação nos lucros nunca se elaborou. Em razão disso, o

princípio, não obstante seu elevado sentido e teor de justiça, ficou inscrito no rol das

ilusões constitucionais da primeira fase do nosso Estado social de direito.

O capítulo II da referida Carta375, em seu Art. 8º, inciso II, dispõe: ―Compete à

União: II - declarar guerra e fazer a paz‖.

Como já amplamente colocado, a paz a que se refere esse estudo não se

limita a paz, antônimo de guerra. O sentido mais amplo exige uma reflexão quanto a

tudo que nesse texto constitucional buscaria o desiderato de paz. Assim é que,

quanto ao enfoque da paz, o referido texto constitucional, conforme já explicitado

anteriormente, dispõe sobre o Estado social no seguinte contexto: a participação

obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, a criação do repouso

semanal remunerado, o reconhecimento do direito a greve, a aposentadoria

facultativa do funcionário com 35 anos de serviço e a inserção da Justiça do

Trabalho na esfera do Poder Judiciário. E principalmente, um dos melhores

aperfeiçoamentos introduzidos por essa nova Constituição, ao se reportar ao Estado

de direito quando declarado no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, que a

lei não poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito

individual. Todas essas inovações levam-nos a acreditar no resultado de mais paz à

sociedade, na exata proporção que essas conquistas passam a criar um processo

de sociedade mais justa, mais equilibrada, ainda que não de imediato. Diríamos que

seria uma centelha que começa a se desenvolver a caminho da paz.

375

BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. (Art. 8º).

Page 168: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

166

4.7 A Carta de 1967

4.7.1 A origem da Carta de 1967: a controvérsia sobre o poder constituinte

congressual e sobre o vício decorrente da mutilação de mandatos

representativos

Para retratar a Constituição de 1967, talvez fosse suficiente repetir as

palavras de Gustavo Capanema Andrade, conforme profere Paulo Bonavides376:

―Vocês, da UDN, que tanto combateram a ‗Carta Polaca‘, de 1937, aparecem-nos,

agora, em 1966, defendendo essa Carta Superpolaca‖.

A verdade é que, procurando legitimar-se, o Movimento de 1964 tentava

encontrar num texto constitucional novo uma forma de institucionalização.

Para tanto, afirmavam seus líderes que o expurgo ideológico era temporário,

embora com esse pretexto houvessem demitido, cassado, perseguido e torturado os

que se arriscavam a fazer oposição aos usurpadores do poder.

Era a procura da continuidade revolucionária e os primeiros passos para a

arquitetura artificial do que chamaram de ―milagre brasileiro‖.

A elaboração da Constituição de 1967 era, pois, um dos estágios do processo

institucionalizador do Movimento de 1964.

Humberto de Alencar Castello Branco, antes mesmo da escolha de Arthur da

Costa e Silva, já cuidava da nova Carta.

A Constituição de 1946, mesmo adotada, estava superada praticamente pelo

uso dos poderes excepcionais que foram atribuídos ao Marechal Castello Branco

pelo Ato Institucional de 1964 e reforçado pelo de 1965.

Entre 1965 e 1966, o Presidente Castello Branco baixou nada menos que três

atos institucionais, 36 complementares, 312 decretos-leis e 3.746 atos punitivos.

376

ANDRADE, apud BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 441.

Page 169: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

167

Pairava sobre tudo a chamada cláusula da excludência, isto é, o dispositivo

que eliminava do exame até mesmo do Judiciário e, portanto, de qualquer outra

autoridade, determinados pelo ―Poder Revolucionário‖.

Mas a determinação de preparar uma Carta constitucional que procurasse

institucionalizar o Estado consequente do golpe levou o Presidente Castello Branco

a decidlr-se pelo que se convencionou chamar de o Poder Constituinte Congressual.

Era uma adaptação do Legislativo para que, transformado em reformador ou redator

de um texto novo para o País, evitasse a convocação de uma assembleia popular e,

de outra parte, também evitasse mais um ato de força com a imposição de um texto

originário do Executivo.377

Caminhou o governo para atribuir essa faculdade constituinte ao Congresso

que não a recebera na ocasião da coleta dos votos populares.

O legislador, quando muito, podia usar simplesmente do poder de emenda,

dentro dos limites permitidos pela Constituição de 1946, ainda vigente, mas

desmoralizada na prática pelos atos de força. Jamais poderia arvorar-se em Poder

Constituinte.

Ainda recentemente, as reações foram intensas quando se atribuiu aos

constituintes eleitos em 1986 a dupla faculdade de legislador ordinário e de redator

da Constituição.

Movimentos de lideranças intelectuais, sindicais e mesmo de base popular

reclamaram contra a distorção que permitia o acúmulo das duas atribuições,

entendendo a elite jurídica do País que a Constituinte deveria encerrar suas

atividades com a promulgação da Carta constitucional e permitir que uma nova

eleição selecionasse os parlamentares que deveriam compor as duas Casas do

Congresso Nacional para suas atividades regulares.

Para a Carta de 1967, o governo utilizou-se do inexistente Poder Constuinte

Congressual, aproveitando-se da mutilação do Legislativo que as cassações

deformaram e aviltaram.

377

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 445.

Page 170: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

168

4.7.2 Os atos institucionais como elementos de coação ao trabalho

constituinte

O que houve foi uma farsa constituinte, não uma Constituinte.

Isso porque os parlamentares, além de não estarem investidos de faculdades

constituintes, estavam também cerceados pelos atos institucionais. A coação ao

trabalho dos parlamentares exercida pelos atos excepcionais impediu que os

representantes do povo, mesmo sem os poderes constituintes autorizados pelo

eleitorado, pudessem fazer uma Carta constitucional relativamente independente.

Sabe-se que o Serviço NacionaI de Informações (SNI) opinou pelo preparo de

uma Constituição que pudesse ―constitucionalizar o institucional‖, mas o que

pretendia o órgão de informações do período ditatorial era construir uma atmosfera

favorável ao ―sistema‖ que se impopularizava e formar opinião internacional com a

ideia de um regime com sua Carta constitucional votada pelo Parlamento.378

O Ato Institucional nº 4 programou a ação mecânica que resultou numa

Constituição que serviu para transmitir a impressão de que vivíamos em um Estado

democrático.

O governo reuniu suas lideranças no Senado e na Câmara, por ocasião do

encaminhamento do projeto de Constituição, dando-lhe conhecimento dos

dispositivos que não poderiam sofrer emendas.

E a impressão que procuravam fixar, de que se tratava de um texto

democrático, teve o seu apogeu com a sua promulgação pela Mesa do Congresso

Nacional.

Não havendo uma simples outorga de Constituição, o governo também tirou

proveito do levantamento do recesso em dezembro de 1966, quando a

representação parlamentar chegava ao fim de mandato.

Foi fácil, assim, condicionar o direito de emenda, limitar o período de

discussão, fixar o exíguo tempo de seu percurso legislativo, com o molde do AI-4, de

7 de dezembro daquele ano. 378

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 447.

Page 171: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

169

O texto do projeto do governo havia sido publicado na véspera. Mas, por mais

que procurasse esconder os objetivos da adoção de uma Carta constitucional, o

governo não conseguiu omitir sua vergonha ao fazer nela constar a expressão

―regime representativo‖, evitando a palavra ―democracia‖ em todo o seu texto.379

Talvez em razão da subserviência aliada ao terror imposto pelos atos

institucionais, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda tenha observado

percucientemente que380 ―Na Constituição de 1967 há mais subservidade do que

revolucionaridade‖ e que ―não se avança para o futuro, como seria de mister,

sabiamente‖.

Mas Pontes de Miranda admite que, ainda assim, ―o Congresso Nacional, a

despeito das pressões - que nunca existiram antes, na história do Brasil - conseguiu

atenuar o despotismo que se queria estabelecer e impor‖. Reconhece, todavia, que

―o Ato Institucional de 1964 foi erro grave na história do Brasil e produziu os outros

erros, em outros atos institucionais‖.381

4.7.3 A tramitação do projeto na constituinte congressual

O Congresso foi claramente submisso quando aceitou um texto centralizador

no plano federal com uma enorme concentração do poder político. Essa tramitação

mascarou o projeto oficial, dando-lhe aparência de legalidade e de legitimidade.

Alguns parlamentares não foram simples espectadores impotentes, mas

vítimas desse período, centralizando sua atuação na defesa da legalidade e da

ordem constitucional.

No Congresso, vozes se levantam contra382: ―Fica, assim, bem claro que a

revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe do Ato

Institucional a sua legitimação‖.

379

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 450.

380MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. v. I, p. 65.

381Ibid., p. 66.

382BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 452, nota 379.

Page 172: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

170

Triste a alternativa em que se colocava um Congresso que havia sido

escolhido pelo voto popular, obrigado a aprovar uma Constituição que não foi feita

por ele e que nem poderia sê-lo porque o eleitorado não havia escolhido

constituintes, mas parlamentares para uma legislação ordinária.

Era o Congresso mutilado que ia aprovar e promulgar um texto deformado

pela pressão do arbítrio oficial, que também viria a cassar vários parlamentares.

Nesse quadro, a oposição mostra-se singularmente enfraquecida com as

cassações de mandatos e de direitos políticos que haviam ceifado grande parte de

suas lideranças no Congresso.

Os atos institucionais eram a própria contestação de uma Carta democrática

como a de 1946 e seria impossível a convivência dos atos de arbítrio com um texto

constituinte de efetiva representação popular.

A primeira reação à predominância do Executivo foi a do jurista Seabra

Fagundes que se afastou da Comissão em razão das divergências que expôs em

suas reuniões.

Entre os argumentos de Seabra Fagundes estava, basicamente, o de que o

Congresso não dispunha de poder constituinte e o que poderia o legislativo fazer

seria simplesmente emendar a Constituição de 1946 e não substituí-la por outra.

Mas o Presidente Humberto de Alencar Castello Branco afirmou, na ocasião, que

―somente uma nova Constituição poderá assegurar a continuidade da obra

revolucionária‖.383

Mas, considerado o texto pelo governo como inaceitável, a tarefa ficou

inteiramente afeta ao ministro da Justiça.

O Art. 1º da Constituição de 1967, em seu parágrafo 1º, dispunha que ―todo o

poder emana do povo e em seu nome será exercido‖, como se as expressões

vazias, divorciadas da realidade, pudessem ter significação para a comunidade.

383

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 448.

Page 173: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

171

Vivia-se uma exceção da vida democrática com as consequências do

Movimento de 1964, a legislação eleitoral profundamente modificada, através de

atos institucionais, atos complementares, decretos-leis.

A introdução da eleição indireta de presidente e vice-presidente da República

pelo Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, ressalvando que as próximas

eleições de 3 de outubro de 1965 estavam mantidas nos termos da Constituição de

1946, com o sistema direto, foi a farsa que se reproduziu durante os anos seguintes

com os continuados atos de arbítrio. Entre eles, o AI-2, de 27 de outubro de 1965,

que introduziu as eleições indiretas também para o período que ficara sob o sistema

de escolha direta da Carta anterior.384

O governo manteve-se no ritmo de arbítrio que marcara o início de sua ação

direta sobre o Congresso e, afinal, foi o texto oficial que prevaleceu com pequenas

modificações admitidas previamente nas reuniões com as lideranças do Executivo

no Senado e na Câmara.

4.7.4 O problema de legitimidade e a Emenda nº 1

Arthur da Costa e Silva, Presidente da República, em 13 de dezembro de

1968 assina o Ato Institucional nº 5, reforçando o estado de exceção.

A junta de Ministros Militares, composta de três membros, outorga em 17 de

outubro de 1969 a Emenda nº 1, que foi antecipada pelo Ato Institucional nº 16, de

14 de outubro do mesmo ano, que deu nova redação ao Colégio Eleitoral para a

eleição indirela de presidente e vice-presidente da República prevista na

Constituição de 1967.

A Emenda nº 1 de 1969, ao substituir a Constituição de 1967, tornou-se de

fato a nova Carta, adaptando os vários atos institucionais e complementares. O

Executivo se fortaleceu a pretexto de que seguia critérios universais predominantes.

384

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 452.

Page 174: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

172

É o governo com a supremacia do Executivo, iniciando uma fase em que o

problema da legitimidade constitucional o preocupava, mas nem por isso o levou a

considerar os protestos da sociedade contra a concentração autoritária do poder.

A preocupação dessa legitimidade era de tal ordem que a Emenda de 1969

não foi considerada autonomamente pelos juristas.

Assim é que Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, examinando o texto de

1967 e a Emenda de 1969, manteve o título de seu importante estudo jurídico

―Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969‖. Isto é, a

Constituição permaneceu como a de 1967.385

Não há pois, Constituição de 1969, mas de 1967, cujo sistema não foi

alterado pela Emenda nº 1, embora esta tenha promovido algumas modificações no

seu texto.

Em seu ―Curso de Direito Constitucional‖, Pinto Ferreira não considera que a

Emenda nº 1 tenha revogado a Constituição de 1967, mas que esta ―passou a

vigorar com duzentos e um artigos‖.386

Outros, como Aliomar Baleeiro, quando trata da Constituição de 1967, a

classifica sempre como ―Constituição de 1967-1969‖.387

A procura da legitimidade constitucional e da institucionalização do sistema

não encontrou, mesmo com a Constituição de 1967 e a Emenda nº 1 de 1969,

condições de seriedade da proposta e das intenções do governo.

O poder arbitrário do sistema desnudou suas reais intenções, exatamente

quando os dispositivos formais dos textos que garantiram a liberdade de expressão,

de reunião, de imprensa, foram violentados pela censura e pela repressão policial.

385

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 454.

386FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1974. v. 3, p. 128.

387BONAVIDES; ANDRADE, op cit., p. 454, nota 385.

Page 175: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

173

4.7.5 A transição democrática

O período de transição da ditadura militar instalada em 1964 para a Nova

República foi, certamente, o mais doloroso de todos quantos a história marcou em

nosso País, por isso deve sempre ser lembrado.

Da Monarquia para a República não se observaram excessos que

registrassem, como neste período, a violência do poder autoritário, com presos

políticos sem culpa formada, torturas nos cárceres, assassínios cometidos em todo o

País sob a égide de uma doutrina de segurança que não era outra coisa senão a

segurança do poder arbitrário fugindo ao debate público e à eleição do presidente da

República, dos governadores e dos prefeitos.

O papel exercido pelas esquerdas e pelo agrupamento liberal-democrático

composto de empresários nacionalistas e profissionais autônomos, fazia convergir

para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) toda a força de coesão na defesa

das liberdades.

Ainda quando do MDB, em razão das decisões autoritárias, teve que se

transformar, adaptando sua denominação e compondo-se como PMDB - Partido do

Movimento Democrático Brasileiro, ainda aí as forças progressistas souberam

conjugar-se na legenda substitutiva ou prestigiá-la nas crescentes votações.

Abria-se o caminho para o encontro de soluções democráticas, forçando o

governo militar a admitir a participação da comunidade até então ilhada e

permanentemente sob suspeita, especialmente o setor universitário e os inlelectuais,

sitiados como se vivessem uma fase de guerra intestina.388

Mais tarde, renascia nas Forças Armadas o espírito democrático e várias

importantes patentes militares passaram a prestar declarações em favor das

eleições diretas.

Algumas manifestações foram abafadas pela censura. Punições se

verificaram nos quartéis, alcançando oficiais que reclamavam o retorno à prática

democrática.

388

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 463.

Page 176: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

174

Mas somente em 1984 se explicitaram as manifestações da sociedade e a

movimentação das organizações associativas como a Ordem dos Advogados do

Brasil, as federações e sindicatos de trabalhadores, com o apoio ostensivo da

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Em 17 de abril de 1984 iniciou-se a grande campanha popular de rua, com

mais de um milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, exigindo as

eleições diretas em todos os níveis.

O Presidente General João Baptista de Oliveira Figueiredo, pressionado pelo

movimento popular, anunciou pela televisão uma emenda constitucional propondo

as eleições para 1988.

As oposições se uniram com as dissidências do partido do governo em torno

do documento ―Compromisso com a Nação‖, subscrito em 7 de agosto de 1984 por

Tancredo Neves, Governador de Minas Gerais e virtual candidato a Presidência da

República; Ulysses Guimarães, presidente nacional do PMDB e Aureliano Chaves e

Marco Maciel, representando a Frente Liberal, depois organizada como Partido da

Frente Liberal.389

Com referência às eleições, o documento da Aliança Democrática era preciso

ao exigir o restabelecimento imediato das eleições diretas, livres e com sufrágio

universal para presidente da República.

Afinal, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves é escolhido pelo Colégio

Eleitoral como o 29º Presidente da República do Brasil, vencendo o candidato

governista Paulo Maluf, por 480 a 180 votos.

Restaria a posse, sempre posta em dúvida em dias que deixou a Nação em

suspenso.

Tancredo Neves, no Parlamento brasileiro, logo após a sua escolha, dirigia-se

em 15 de janeiro de 1985 aos congressistas com estas expressivas afirmações390:

Não sei avaliar quando o povo foi maior: se quando rompeu as barreiras da repressão, e veio para as ruas gritar pelas eleições diretas, ou se quando,

389

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 466.

390Ibid., p. 556.

Page 177: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

175

nisso vencido, não se submeteu, e com extrema maturidade política, exigiu que agíssemos dentro das regras impostas, exatamente para revogá-las e destrui-las.

Nesse diapasão, aliás, fixou-se, também o Vice-presidente José Sarney,

escolhido juntamente com ele e empossado na Presidência em razão do falecimento

do titular.

As divergências de interpretação foram aprofundadas pois, para alguns, se o

titular não havia tomado posse, como considerar o vice em condições de assumir em

seu lugar a Presidência da República? Mas essa questão, na prática e na realidade,

foi respondida através do acordo feito com base em entendimentos de lideranças e

com a audiência dos ministros militares, que resultou na confirmação do Senador

José Sarney para assumir a presidência.

A Constituição vigente, de 1967, com a Emenda de 1969, e a de nº 8 de 14 de

abril de 1977, previa o mandato de seis anos, enquanto as Constituições de 1891 e

1934 e mesmo originalmente a de 1967 fixavam-no em quatro anos.

Por todo o exposto, certo é que a Constituição Federal de 1967, com a

Emenda nº 1 de 1969, não se traduziu, muito pelo contrário, em uma Carta que

buscasse a paz. Muito embora o Capítulo II, Art. 8º, inciso II, disponha: ―Compete à

União: II - declarar guerra e fazer a paz‖, em nenhum momento sequer a paz, como

antônimo de guerra, operou-se. Nós, brasileiros, sabemos que esse período já

inaugurado em 1964 com a Revolução, define-se como o mais conturbado e triste de

nossa história nacional e constitucional, uma vez que imperou a ditadura com seus

reflexos desastrosos.

A Constituição de 1967 traz em seu bojo textos políticos de um período

caracterizado pelo ―estado de exceção‖, como o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril

de 1964, atos institucionais números 2, 3, 4 e 5, bem como a ―Constituição da Junta

Militar‖ que se traduziu na Emenda nº 1, de 17 de outubro de 1969.

O termo ―estado de exceção‖, já utilizado por juristas alemães, para indicar os

poderes excepcionais do presidente do Reich segundo o Art. 48 da Constituição de

Weimar (1923) e retomado por Clinton L. Rossiter391, que também equipara o

391

Clinton Rossiter (1917 - 1970) foi um historiador e cientista político que lecionava na Cornell University de 1946 até seu suicídio em 1970. Ele escreveu ―A presidência americana‖ juntamente

Page 178: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

176

referido termo com ditadura constitucional, merece destaque, na obra do mesmo

nome, do jus-filósofo italiano, Giorgio Agamben392:

À diversidade das tradições jurídicas corresponde, na doutrina, a divisão entre os que procuram inserir o estado de exceção no âmbito do ordenamento jurídico e aqueles que o consideram exterior a esse ordenamento, isto é, como um fenômeno essencialmente político ou, em todo caso, extrajurídico. Entre os primeiros, alguns - como Santi Romano, Hauriou, Mortati - concebem o estado de exceção como parte integrante do direito positivo, pois a necessidade que o funda age como fonte autônoma de direito; outros - como Hoeni, Ranelletti, Rossiter - entendem-no como um direito subjetivo (natural ou constitucional) do Estado à sua própria conservação. Os segundos - entre os quais Biscaretti, Balladore-Pallieri, Carré de Maberg - consideram ao contrário, o estado de exceção e a necessidade que o funda como elementos de fato substancialmente extrajurídicos, ainda que possam, eventualmente, ter conseqüências no âmbito do direito. Julius Hatschek resumiu os diversos pontos de vista na oposição entre uma objektive Notstandstheorie (teoria objetiva do estado de necessidade), segundo a qual todo ato realizado em estado de necessidade e fora ou em oposição à lei é contrário ao direito e, enquanto tal, juridicamente passível de acusação, e uma subjektive Notstandstheorie (teoria subjetiva do estado de necessidade), segundo a qual o poder excepcional se baseia ―num direito constitucional ou pré-constitucional (natural)‖ do Estado (Htschek,1923, p. 158 e seg.), em relação ao qual a boa fé é suficiente para garantir a imunidade jurídica

A simples oposição topográfica (dentro / fora) implícita nessas teorias parece

insuficiente para dar conta do fenômeno que deveria explicar. Se o que é próprio do

estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como

poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma

anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é

apenas uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei, como é

possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma situação

crucial? E qual é o sentido dessa lacuna?

Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem interior ao

ordenamento jurídico e o problema de sua definição diz respeito a um patamar, ou

uma zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem, mas se

indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia

por ela instaurada não é (ou, pelo menos, não pretende ser) destituída de relação

com a ordem jurídica. Donde o interesse das teorias que, como a de Schmitt,

transformam a oposição topográfica em uma relação topológica mais complexa, em

com 20 outros livros sobre instituições americanas e história. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Clinton_Rossiter>. Acesso em: 23 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

392AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p 38.

Page 179: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

177

que está em questão o próprio limite do ordenamento jurídico. Em todo caso, a

compreensão do problema do estado de exceção pressupõe uma correta

determinação de sua localização (ou de sua deslocalização). O conflito, portanto, a

respeito do estado de exceção apresenta-se essencialmente como uma disputa

sobre o locus que lhe cabe.

Fato é que enquanto estivemos sob a égide da Constituição de 1967, em

razão da própria forma com que esta Constituição se impôs, ou, melhor dizendo, foi

―imposta‖, como pelo exposto pode-se constatar, principalmente face aos atos

institucionais, também estivemos a mercê de um ―estado de exceção‖. Estado este

que nos colocou, enquanto sociedade, fora do ordenamento jurídico e, portanto, sem

a devida proteção legal. Ao contrário, esse foi um período que iniciado em 1964,

com o golpe militar, nos deixou entregues nas mãos do arbítrio que tornou essa

época repleta de violência, no seu sentido mais profundo, como por todos nós

cidadãos brasileiros é sabido e, por muitos, vivido.

4.8 A Constituição Federal de 1988

4.8.1 Perfil ideológico da Constituinte

Serão traçadas a seguir algumas observações inerentes ao perfil ideológico

da Constituinte de 1986.

A ação partidária foi substituída pela movimentação dos grupos e a imprensa

acusou a organização de lobbies de interesses, os mais variados, como o lobby

santo, da Igreja Católica; o lobby evangélico, das várias ramificações protestantes; o

lobby dos prefeitos, dos governadores, das multinacionais, das mulheres, dos

cartorários, dos servidores públicos, como influenciadores ou deformadores da

vontade da Constituinte.

O próprio governo central estruturou seu grupo de ação o chamado Centrão

(Centro Democrático), que coordenou os vários agrupamentos partidários,

apartidários, extrapartidários, suprapartidários, dispostos a votar com o Planalto,

Page 180: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

178

especialmente o dispositivo que adotava o sistema de governo e o que fixava o

período do mandato presidencial.393

Nesses dois pontos se fixou o Palácio do Planalto, desinteressando-se

praticamente dos demais temas, a tal ponto que o próprio capítulo dos direitos

sociais e da atividade tributária da União ficou secundarizado.

Os ministros e particularmente os governadores foram mobilizados para uma

ação direta sobre os constituintes.

Comprovou-se, então, a ação eficaz dos governadores e dezesseis deles

foram a Brasília e lá permaneceram durante os dois dias em que a Constituinte

debateu e votou os dois pontos polêmicos. Essa ação direta dos governadores não

se verificou apenas junto aos suplentes que dependem das licenças dos deputados

que ocupam Secretarias de Estado, mas, igualmente, sobre aqueles que, por uma

razão ou outra, se encontravam ligados à administração estadual, com indicações

específicas nos vários setores da atividade administrativa.

O enfraquecimento da ação partidária trouxe, por consequência, o

fortalecimento dos grupos com os quais o governo começou a dialogar e a formular

propostas ou encaminhar soluções de maioria para as votações.

Aliás, os partidos não se reformularam para essa fase constituinte. Saídos de

uma eleição geral, permaneceram sem qualquer modificação de seus programas ou

de ajustamento de suas práticas partidárias, com mandatos de diretórios

prorrogados por força de lei votada pelos próprios congressistas.

Observe-se que na França, na Itália, nos Estados Unidos, os partidos

reprocessam seus procedimentos, sua estrutura e atualizam constantemente as

respectivas posições, segundo a evolução dos acontecimentos sociais, políticos e

econômicos.394

Ainda na estrutura tradicional dos norte-americanos, a concentração

bipartidária dos democratas e republicanos tem levado as duas agremiações

políticas a constantes acomodações de terreno, inclusive ideologicamente. Assim,

393

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 466.

394Ibid., p. 467.

Page 181: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

179

esquerda e direita se reforçam dentro dessas organizações partidárias. Influindo nos

seus rumos políticos, administrativos e eleitorais, no seu reordenamento ideológico,

o que, aliás, se verificou mais marcadamente durante a década de 60, quando os

republicanos caminharam mais para a direita, absorvendo outras faixas

conservadoras até então ligadas aos democratas, enquanto estes penderam mais

para a esquerda com a incorporação dos direitos sociais mais modernos, a

reivindicação das minorias, a defesa dos direitos humanos em sentido mais

universal.395

As preocupações com o conforto, a segurança, o meio ambiente, o

consumismo, o feminismo, foram temas que influíram pesadamente nas decisões do

eleitorado, destacando-se também por ensejo das eleições de 1986 a reconquista da

maioria no Senado pelos democratas com a campanha se centralizando ao redor

dos problemas locais.

E, assim, o pragmatismo e não a ideologia acabaram marcando essas

campanhas nos Estados Unidos, ora mobilizando o sentimento do ―populismo anti-

establishment‖,396 ora a reação do partido do ―big government‖397. Se o perfil

ideológico se torna difícil definir nos Estados Unidos, onde a estrutura partidária é

estável e centenária, pois ali os partidos se revezam no poder e constituem a força

política e partidária nas decisões nacionais, como poderia ser fácil definir um perfil

ideológico para uma composição como a da nossa Assembleia Nacional

Constituinte, onde os agrupamentos partidários, com exceção de alguns pequenos

como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), e o

Partido Comunista do Brasil (PCdoB), não se apresentam ideologicamente

coerentes, brigando as próprias siglas com seu conteúdo programático?398

395

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 467.

396Anti-establishment é um adjetivo da língua inglesa usado para designar um indivíduo, grupo ou ideia que é contra as instituições oficiais, sejam elas políticas, econômicas ou sociais, da forma vigente da sociedade. Em português também se usa a expressão ―contra a ordem estabelecida‖. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Anti-establishment>. Acesso em: 24 mar. 2010.

397Big government é um termo geralmente utilizado por políticos conservadores, advogados neutros ou libertários para descrever um governo que eles consideram ser excessivamente grande, corrupto e ineficiente, ou inadequadamente envolvido em determinadas áreas de políticas públicas. Wikipedia, a enciclopédia livre. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Big_government>. Acesso em: 24 mar. 2010 (Tradução livre do autor).

398BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 468, nota 395.

Page 182: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

180

De qualquer forma, porém, duas tendências ficaram evidentes no debate e

votação dos temas sociais e direitos dos trabalhadores, na questão da terra e da

propriedade, da reforma agrária, do capital estrangeiro, das riquezas do subsolo, da

política de informática, da comunicação, da estrutura sindical com o pluralismo ou a

unidade (a esquerda dividida ou abstendo-se de votar como ocorreu com o PT), do

direito de greve, da reforma tributária.

Em algumas dessas questões é possível estabelecer uma certa divisão

ideológica, mas a interferência dos governos federal e estaduais chega a apagar a

marca doutrinária dos constituintes ou das próprias legendas, conflitando posições

pessoais ou partidárias.

Vez por outra, as posições extremas se tocavam como no sistema de

governo, parlamentarista ou presidencialista, para o qual o PT e o Partido

Democrático Trabalhista (PDT) adotavam a mesma posição do Partido Democrático

Social (PDS) e do grupo mais conservador da Assembleia.

Os extremos representados pelos deputados Roberto Cardoso Alves e

Amaral Netto, José Lourenço Morais da Silva e Antônio Delfim Netto estavam na

mesma posição de José Genoíno Neto ou de Luiz Inácio Lula da Silva.399

Pode-se, no entanto, pelas decisões assumidas, concluir que a maioria

constituinte era conservadora e o mais fiel retrato de sua composição pode ser

melhor aferido pelas votações de alguns pontos conflitantes.

Através dessas votações e da posição assumida pelos constituintes, conclui-

se que o perfil da Constituinte de 1987-1988, embora conservadora, tem

características muito especiais, às vezes até mesmo contraditórias, refletindo

interesses grupais ou regionais em detrimento do essencial, mas, na realidade,

representando a sociedade no seu conjunto, com todas as suas intranquilidades,

preocupações, instabilidade e deficiências de formação e de prática política.

Uma análise sociopolítica dos partidos e deputados na Constituinte foi feita

por Leôncio Martins Rodrigues400, com base em sólida pesquisa. Na apresentação

do trabalho, Maria Teresa Sadek observa401:

399

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 468.

Page 183: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

181

Evidentemente, a Constituição nem sempre reflete de forma exclusiva o próprio perfil daqueles que a elaboraram. A Carta de 1946, por exemplo, não é a imagem e a semelhança de seus constituintes. Portanto, nossa nova Lei Magna será o resultado das características pessoais de cada constituinte somadas aos desdobramentos e mediações das pressões políticas e sociais.

4.8.2 A Constituinte e a participação popular

Apesar das condições muito especiais da Constituinte de 1934 com a

representação classista e da Constituinte de 1946 com a presença das esquerdas,

como no momento oportuno já salientou-se, inclusive do PCB, foi a de 1987 que

obteve maior participação popular.

Pode-se afirmar que essa participação não resultou em adoção de propostas

populares, mas o fato é que sugestões e emendas com milhões de assinaturas

chegaram ao Congresso e foram submetidas à Comissão de Sistematização,

permitindo-se aos indicados pelos subscritores das mesmas o direito de palavra no

plenário.402

A circunstância de não terem sido consideradas para o efeito de inclusão no

texto do projeto da comissão ou mesmo nas votações de plenário não significa que

inexistiu a participação da sociedade.

Essa participação, todavia, enfraqueceu-se no curso do processo legislativo,

de tal forma que as reivindicações constantes das emendas populares passaram a

ser defendidas por alguns constituintes, sem que a sociedade se mantivesse

mobilizada para o acompanhamento dos debates e das votações.403

Talvez em razão mesmo dessa ausência, muitas das oportunas sugestões

tenham sido marginalizadas, embora exercendo uma determinada influência no

corpo legislativo quando cada uma das ideias expostas ou dos temas propostos

eram objeto de deliberação.

400

RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. São Paulo: OESP - Maltese, 1987. p. 97.

401BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 469.

402Ibid., p. 469.

403Ibid., p. 469.

Page 184: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

182

A respeito da participação popular na Constituinte, oportuno salientar a

posição de Michael Kanimen, professor de história e de cultura norte-americana da

Universidade de Cornell, Estados Unidos, que analisa o chamado constitucionalismo

popular.404 O exame que faz, especialmente a respeito da Constituição norte-

americana, permite conhecer o que ele chama de ―percepções certas e erradas, os

usos e abusos, o conhecimento e a ignorância dos norte-americanos comuns‖ em

relação à Lei Maior.

E penetra nessa análise, exatamente no campo da história constitucional do

seu país, destacando que as obras sobre o assunto, em geral, cuidam da Suprema

Corte, das chamadas biografias da Constituição e de seu exame jurídico, não tendo

qualquer delas procurado penetrar o que ele classifica como ―o lugar da Constituição

na consciência popular e na vida simbólica do povo americano‖.405

Ele entende que é preciso ouvir o povo acerca da Constituição e saber o que

ele pensa a esse respeito, indagando: ―Como a sociedade tem-se sentido no tocante

a sua estrutura de governo?‖ Mas não quer apenas saber isto. Quer, também,

indagar se a sociedade chega a pensar no assunto.

Lembra, ao mesmo passo, que os norte-americanos comuns, não

evidentemente os juristas, os advogados, os juízes, os professores, não vão

empenhar-se em debates sobre a constitucionalidade de determinados problemas,

como o protecionismo tarifário, e nem mesmo discutir as forças e fraquezas relativas

às constituições dos Estados Unidos em relação a outros textos constitucionais.

Fazer uma constituição é torná-la popular, acessível, manuseável, é tarefa quase

impossível.

As constituições, em geral, são obras de consulta e, ainda assim, em

ocasiões muito especiais.

A participação popular, no entanto, pode levar não apenas a comunidade ao

texto em preparo, como identificar esse texto com suas aspirações e, quando isso

404

KANIMEN, Michael. A machine that would go of itself: the Constitution in American culture. New York: Hardcover, 1986. p. 76.

405BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 480.

Page 185: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

183

ocorre, fica mais fácil a integração da comunidade com os dispositivos da Carta

Magna do País.

Michael Kanimen lembra que os fundadores, como são chamados os

formadores da pátria norte-americana, pensavam que estivessem elaborando uma

constituição acessível ao povo e, no entanto, mal foi adotada, verificaram que não

era ela compreensível pela população em geral. Os próprios autores discutiam, já

nos primeiros dias de sua vigência, dispositivos que pareciam ambíguos

relativamente à escravidão, aos impostos, poder do Congresso.406

O sonho dos construtores da América e de sua Constituição queriam, como

Thomas Jefferson, que as questões de constitucionalidade fossem submetidas

diretamente ao povo, não aos tribunais.

Como fazê-lo, porém?

A participação popular pode efetivar-se ainda na vigência da Carta, quando

por meio de suas entidades de classe, seus representantes no Congresso ou

mediante os novos recursos de representação popular admitidos pelo texto que

acaba de ser votado, e que permite uma participação maior da comunidade no

encaminhamento de projetos e sugestões, como, também, no acesso às

informações acumuladas em repartições oficiais ou bancos de dados, provados ou

não, para conhecer, retificar, anular ou substituir dados que mereçam tais

providências.

Por certo não podemos exigir da população que tenha de memória o texto

constitucional, especialmente se ele conta com um número tão grande de artigos.

Nem os especialistas, os estudiosos, os pesquisadores do Direito

Constitucional saberão responder a todas as indagações relativas ao texto

constitucional do nosso País, mas é essencial que a população saiba que seus

direitos e obrigações existem e estão na Constituição Federal.

406

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 471.

Page 186: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

184

4.8.3 Sugestões e emendas

A participação na Constituinte se efetivou não apenas nos debates de

plenário e nas reuniões extracongresso, quando a comunidade foi ouvida a respeito

de suas reivindicações. Foram apresentadas nas subcomissões e na Comissão de

Sistematização centenas de sugestões e emendas.

Destaquem-se algumas delas, embora todas tivessem o duplo objetivo da

atualidade e de mudança nos textos principais da nova Carta.

Muitas dessas sugestões e emendas foram aceitas.

Com relação às disposições transitórias, visando à Carta constitucional de

cada Estado, formulou-se uma emenda fixando prazo para sua elaboração.

Tal emenda foi a seguinte:

―Art. 2º - Os estados adaptarão suas constituições, no prazo de seis meses,

nelas incluindo os dispositivos constantes da presente Carta‖.407

Também houve posicionamento a favor da estabilidade dos servidores

públicos da União, Estados, Municípios e Distrito Federal que à data da

promulgação da Carta Magna contassem cinco anos de serviço na administração

direta ou indireta.

Pleiteou-se que a União concluísse dentro de cinco anos o processo de

demarcação das terras indígenas.

O Nordeste, embora atendido em outros capítulos, não pôde obter, pela

emenda apresentada, nas disposições transitórias ―a execução do plano de defesa

contra os efeitos da seca‖, até porque pela proposta obrigava-se a União a

despender nessa tarefa, anualmente, com obras e serviços de assistência

econômica e social, quantia não inferior a três por cento da renda tributária. A

emenda proposta nas disposições transitórias visando a impedir discriminação

existente contra a mulher entrou em outro capítulo.408

407

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 472.

408Ibid., p. 472.

Page 187: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

185

Muitos outros dispositivos incorporaram emendas que foram total ou

parcialmente aproveitadas.

A ordem social, envolvendo a previdência, a saúde, a educação, a cultura, a

ciência e a tecnologia, o meio ambiente, o adolescente, o idoso, a assistência em

geral e a comunicação de massa é capítulo dos mais importantes no conjunto da

matéria constitucional, pois que tem profundas implicações com os direitos do

cidadão e muito especialmente com aqueles que dizem de perto à informação, ao

acesso à notícia, à universidade e à vida digna, física e culturalmente.

A emenda sobre a previdência rural visou a obrigar a uniformidade e

equivalência dos benefícios e serviços para todos os segurados indistintamente.

A isenção de recolhimento à Previdência Social pelas entidades beneficentes

foi outro importante ponto pelo qual debateu-se com bom êxito.

Quanto à defesa dos aposentados, absurdamente ignorados durante tantos

anos, as emendas surtiram igualmente efeito, garantindo-se o reajustamento dos

benefícios de modo a preservar-lhes os valores.

A emenda apresentada relativamente à aposentadoria de professores ficou

adotada com o direito assegurado após trinta anos de efetivo exercício em funções

de magistério ou após vinte e cinco anos, respectivamente, para o homem e para a

mulher.

Outra emenda também acabou sendo adotada, embora não exatamente com

a mesma redação, garantindo a toda pessoa com mais de 65 anos de idade,

independentemente de ter ou não contribuído para a seguridade social e desde que

não possua outra fonte de renda, uma pensão mensal vitalícia, o que amplia o

campo da assistência social.

Quanto à comunicação, vários dos artigos relativos ao Capítulo V sofreram

modificação com emendas, especialmente atendendo à necessidade de livre

manifestação do pensamento através dos veículos de comunicação de massa;

proibição de apreender publicações; proibição de suspensão de emissoras através

de atos administrativos; fixação de faixas etárias para o cinema e o teatro evitando a

Page 188: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

186

censura como vem sendo feita nesse setor; a participação do Congresso nas

concessões de canais e frequências.

Se não conseguiu-se aprovar a emenda que impede o recebimento e

tramitação de projeto que possibilitasse qualquer tipo de censura, obteve-se, no

entanto, o essencial na defesa da liberdade de informação e do direito de crítica.

Um dos títulos e capítulos mais debatidos nas subcomissões temáticas e na

própria Comissão de Sistematização foi o da ordem econômica e financeira,

envolvendo o problema da terra, dos investimentos estrangeiros, da defesa da

economia brasileira, e, essencialmente, da função social da propriedade.

Emendou-se o projeto com referência ao aproveitamento do solo nas grandes

concentrações urbanas, particularmente das capitais, tendo em conta, ainda, as

condições de clima, salubridade, abastecimento, topografia, transporte e

comunicação. Emenda nesse sentido praticamente incorporou-se aos vários artigos

da comissão, distribuindo-se em diversos pontos do seu texto.

Para exemplificar, a emenda em favor da assistência creditícia prioritária às

pequenas, médias e microempresas, incluindo o aspecto de acompanhamento

técnico, ficou constando do texto, embora fosse exigida lei complementar que não

era prevista na proposta e que, portanto, se tornava autoaplicável.409

Relativamente à desapropriação de propriedade rural, emendou-se o projeto

com o objetivo de fazer com que a União visasse ao latifúndio improdutivo, mediante

justa indenização em títulos da dívida pública, pagando, porém, sempre à vista as

benfeitorias, e fixando zonas prioritárias para o efeito desse programa.

Na defesa do meio ambiente foi por igual um dos pontos essenciais de

propostas, em grande parte incorporada ao texto, embora com a adaptação a outras

emendas sobre o mesmo assunto.

O aspecto da função social do uso da propriedade e de sua desapropriação

ficou bem demarcado, conforme defendiam-se nas sugestões e emendas. Por isso

mesmo, na argumentação defendendo as emendas relativas à reforma e à política

agrárias, buscou-se distinguir entre o proprietário omisso que não pode ser 409

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 473.

Page 189: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

187

indenizado como se vigorasse o princípio do direito pleno de propriedade, pois que

só aí deve existir a indenização como vínculo desse direito. Do contrário, seria tratar

igualmente desiguais, premiar o omisso ou possibilitar um tipo de enriquecimento

ilícito.410

Reclamou-se através de emendas uma participação maior do Legislativo na

feitura do Orçamento da República e na repartição mais justa dos recursos, de tal

forma que os estados e os municípios não permaneçam desamparados, a ponto de

necessitarem ficar subjugados aos caprichos do Executivo federal para obter um

mínimo de verbas para as obras municipais.

Obtiveram resultado favorável as emendas relativas à não incidência de

tributos sobre empresas jornalísticas e sobre o papel utilizado para jornais, livros e

revistas, bem como a isenção tributária para os templos de quaisquer cultos.

O imposto sobre a riqueza que havia sido proposto em outro capítulo do

projeto ficou inserido em inciso próprio, consagrando, assim, um princípio segundo o

qual as grandes fortunas devem contribuir para minorar a miséria social e colaborar

na assistência aos necessitados, aos velhos, à criança, aos deficientes.411

Preocupado com a segurança externa e a defesa das instituições

democráticas, contribuiu-se para incluir nos textos constitucionais o estado de

defesa e o estado de sítio. No entanto, tais instrumentos não deveriam ficar isolados

de uma política criminal e penitenciária, absolutamente indispensáveis à

modernização desses sistemas.

Por isso, formulou-se emenda que obriga os estados a instalarem colônias

agrícolas ou industriais de recuperação para presidiários em todos os municípios

com população superior a 500.000 habitantes. A ideia não foi amparada pela

comissão, mas permanece viável, esperando que o Congresso venha a adotá-la,

contribuindo assim eficazmente para o combate à deliquência. O que é

indispensável, de outra parte, é que o conceito de segurança seja ajustado ao

estado democrático.

410

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 474.

411Ibid., p. 475.

Page 190: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

188

Não alcançou sucesso a proposta parlamentarista com mandato de cinco

anos e que ainda proporcionava, na fase de transição democrática e de sistema de

governo, mais poderes ao Executivo que no parlamentarismo puro.

Sintetizou-se o pensamento relativamente à proposta visando ao sistema

parlamentar, lembrando que nele não existe governo fraco, até porque a partir do

momento em que este se enfraquece, é substituído por outro escolhido pelo

gabinete.

As propostas relativas à maioria de votos, tendo em vista a realização do

segundo turno com os dois candidatos mais votados à Presidência da República, na

ocasião própria, foram formuladas com o objetivo de democratizar o processo de

escolha.

Com referência ao Legislativo, foi proposto, e as emendas aceitas, que se

extinguisse o privilégio dos parlamentares, bem como dos magistrados e militares,

relativamente à não incidência do Imposto de Renda para que, dessa forma, as

remunerações recebidas devessem ficar sujeitas aos impostos gerais ou

extraordinários. Propôs-se o subsídio uno que, por isso mesmo, elimina o jetom e o

vício das sessões extras acumuladas que acabaram se tornando praxe irregular em

várias casas legislativas do País.412

Valeu o esforço com a emenda que pôs fim ao decurso de prazo, medida

absurda que fazia considerar aprovada uma determinada propositura exatamente

porque não chegara a ser votada.

Quanto aos direitos individuais e coletivos destacou-se em emenda ―é

imprescritível e não anistiável o crime de tortura‖, aproveitada no texto da Carta

Magna.

Argumentou-se que era imperioso eliminar de uma vez por todas a tortura,

seja no crime comum, seja contra o preso político. A aceitação da emenda foi

decisão de relevância, até pela significação internacional da medida.

412

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 475.

Page 191: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

189

O direito de ampla defesa e a proibição da pena de morte, prisão perpétua e

banimento encontraram aprovação. O texto final incluiu a proibição de trabalhos

forçados.

Relativamente à liberdade de pensamento e de convicção filosófica e

religiosa, verifica-se que a emenda ―É plena a liberdade de convicção filosófica,

vinculada ou não a sistemas científicos ou religiosos, bem como a liberdade de

reunião para estudo, divulgação e prálica dos seus postulados, desde que

preservados a ordem pública e os bons costumes‖ foi utilizada para os vários

parágrafos que tratam da matéria.

Garantiu-se, ainda, no texto, a livre assistência religiosa nas entidades civis e

militares de internação coletiva, desde que solicitada pelo interessado. Também a

Constituinte aceitou emenda que dispunha que ―serão gratuitos todos os atos e

registros necessários ao exercício da cidadania‖.

A liberdade de manifestação do pensamento constante de emenda

configurou-se, ainda, com o direito de resposta, o direito à privacidade, o sigilo das

comunicações postais, telegráficas, telefônicas, de dados, e inadmissíveis, em

processo, as provas obtidas por meios ilícitos, o que implica a recusa às gravações

telefônicas clandestinas.413

Várias emendas relativas à liberdade de informação e à condenação da

censura foram aproveitadas, no Capítulo V do Título VIII, referente à comunicação.

A emenda que pleiteou maior abrangência para o direito do cidadão de

receber informações exatas de órgãos públicos ou privados contribuiu para a

melhoria do texto.

Foi proposto, através de emendas, que as regiões fossem dotadas de

estatutos de autonomia para permitir a sua organização político-administrativa, mas

o problema, no entanto, ficou para a lei complementar. Esta deverá dispor das

condições para a integração das regiões, a composição dos organismos regionais e,

em consequência, a disciplina legal que permita a prática da sugestão.

413

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 479.

Page 192: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

190

A proposta tratava da legislação federal sobre a criação, instalação e

expansão das cidades, enquadrando-se no capítulo relativo à política urbana.

Decisão de expressivo alcance social foi obtida com a inclusão no texto

constitucional de emenda que determina a implantação de uma política nacional de

emprego.

Vale destacar sobre a importante matéria o aspecto relativo à valorização do

mercado de trabalho e às correções que serão possíveis na política de pleno

emprego e de redução do índice do desemprego e do subemprego. Os constituintes

tiveram a exata medida e consciência de que a questão é fundamental para nosso

desenvolvimento com a participação popular na divisão da riqueza gerada pois,

embora com parecer contrário da relatoria, a proposta foi aprovada, quase por

unanimidade, posto que contra apenas os votos de Antônio Delfim Netto e Jorge

Bornhausen.414

Muitas outras sugestões estão incorporadas ao texto, de maneira que não

houve falha nos compromissos assumidos.

Evidente que hoje, após quase vinte anos da outorga da Constituição Federal,

sabe-se que muito ainda não se cumpriu, mas isso não cabe aqui analisar.

4.8.4 Reflexões preliminares sobre a lei básica e o controle do poder pelo

poder

A ideia de Constituição é solidária historicamente à de Nação e à aparição do

liberalismo econômico. Só quando surgiu e se consolidou a crença de que todos os

homens nascem iguais e que não há predeterminação da posição social e política

que devem ocupar até a morte é que o princípio legal ganhou força e a legitimidade

que desfruta até hoje.

Essa importante revolução no pensamento da humanidade indica que a

urbanização dos indivíduos como Nação e sua constituição como Estado mudaram a

relação dos homens com suas próprias vidas: eles se tornaram cidadãos, vale dizer,

414

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 480.

Page 193: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

191

tomaram a História em suas próprias mãos. Esse é o significado maior de toda

Constituição. Não podemos nunca nos esquecer disso.415

No momento em que os homens deixaram de encarar os monarcas como

únicos e exclusivos depositários do poder, que eles pretendiam lhes ser garantido

por Deus, essas relações de poder tinham necessariamente de ser alteradas. Não

havia mais lugar para o predomínio sem freios das relações pessoais de dominação.

Como reza a célebre fórmula de Charles de Montesquieu, ―a experiência eterna

mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele‖.416 Em lugar das

relações pessoais de poder, incontroláveis na medida em que dependem apenas da

vontade de uns poucos indivíduos, era preciso instituir o princípio impessoal da lei.

A Constituição, como lei básica, é princípio formal a que todo cidadão pode e

deve recorrer. Por isso, a Carta Magna não pode ser apenas um espelho da

sociedade e de suas relações, mas deve expressar as aspirações e os ideais dos

cidadãos, deve apontar sempre para o que o conjunto dos indivíduos encara como o

objetivo último da vida em comum. Todos temos o direito de nos rebelar contra

qualquer espécie de coerção e abuso de poder, em qualquer instância em que se

manifestem: nossa arma chama-se Constituição. Ela é a resposta à exigência

também de Charles de Montesquieu, há mais de dois séculos: ―Para que não se

possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o

poder‖.417

Mas não nos deixemos levar pela ilusão de que a Constituição resolva por si

mesma todos os problemas. Apesar de sua importância decisiva, faz-se mister

sempre lembrar que a lei básica é princípio formal, pois cabe ao cidadão zelar para

que ela seja cumprida. Para que isso aconteça, urge que a sociedade esteja

organizada para defender os princípios que consagrou em sua Constituição. É

preciso que o princípio formal seja trazido para o dia-a-dia para que ele se torne

vivo, constitutivo das relações sociais e políticas em todos os níveis. Isso, para que

se possa produzir aquela reação, misto de admiração e espanto, que nos relatou

Alexis de Tocqueville em seu ―A democracia na América‖: uma democracia

415

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 484.

416Ibid., p. 484.

417Ibid., p. 485.

Page 194: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

192

cotidiana, ―onde o princípio da soberania do povo não é estéril nem está escondido,

como sucede em outras nações; é reconhecido pelos costumes e proclamado pelas

leis; espalha-se livremente e chega sem impedimento às suas consequências mais

remotas‖.418

Não se pretende com isso, nem de longe, resolver e encerrar a questão. Ela

está antes colocada com mais força, à medida que se examina a sucessão das

Constituições brasileiras. No exame da nossa história constitucional, constata-se

que a passagem do nível legal para a realidade das relações sociais tem sido

extremamente penosa e na maioria das vezes fracassada.

Nas palavras de Paulo Bonavides419:

O que não quer dizer que devamos nos alinhar com grandes teóricos como Alberto Torres ou Oliveira Vianna, ensaístas que apontaram a distância entre o ―Brasil legal‖ e o ―Brasil real‖. Ao fazerem sua opção pelo que acreditavam ser a ―realidade‖, eles nos revelaram ser essa uma opção extremamente conservadora, quando não reacionária. Não descuramos das importantes e relevantes problemáticas por eles apresentadas, mas nos reservamos o direito de dar a elas uma resposta inteiramente diversa.

Trata-se, então, de tentar compreender o porquê dessa experiência de

instabilidade ou mesmo de inadequação que temos vivido ao longo de mais de 150

anos. Não se quer dizer com isso que a causa da instabilidade esteja no número de

Constituições. O ―mito‖ da Constituição americana, da sua durabilidade e resistência,

não nos ajuda a entender nossa própria realidade, mas, antes, turva nossa reflexão.

Grande número de Constituições não significa necessariamente instabilidade, como

podemos facilmente observar na Alemanha deste século.420

Essa é a tarefa proposta, antes de mais nada: examinar nossa experiência de

instabilidade constitucional, de 1924 a 1987, dando especial ênfase ao período pós-

1964 e à luta da resistência democrática que culminou com a nova Carta. Podem

ocorrer eventuais intromissões da paixão do político no trabalho imparcial do

analista, um híbrido estranho à rigorosa distinção de Max Weber do político e do

cientista. Mas essa paixão pelas liberdades e os direitos humanos não sacrifica o

realismo da análise, embora possa deixar suas marcas naturais, sempre, porém,

418

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 486.

419Ibid., p. 487.

420Ibid., p. 487.

Page 195: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

193

sem desfigurar a História. Não seria possível também prometer uma exaustividade

no acompanhamento da problemática, mas tão-somente indicar algumas conexões

relevantes que nos ajudem a pensar o nosso momento atual.421

O político busca motivos que lhe sirvam como imperativos para a ação,

perseverando no objetivo de persuadir seus semelhantes da justeza de seus

princípios e de sua atuação. Esses motivos foram encontrados em uma parte

importante da História de nosso povo, a sua história constitucional. Espera-se que

este ponto de vista possa ser partilhado pelos companheiros que se dispõem agora

a percorrer estas páginas. Entender o passado é uma arma, a fim de que não se

faça de antemão da nova Carta ―mais uma‖ constituição. Não existe fatalismo em

política. Ela será o que nós fizermos dela.

4.8.5 Os fundamentos da nova Constituição: uma visão interpretativa

Ingressa o País numa segunda transição. Em verdade, a lei fundamental de 5

de outubro de 1988 não é ainda uma Constituição, do ponto de vista da legitimidade:

é apenas uma Carta no rigor que constitucionalmente essa expressão assumiu. Uma

Carta do Legislativo e não do Executivo. Cartas foram também os atos básicos de

1967 e 1969; o primeiro outorgado por um presidente autoritário que fez instrumento

de sua vontade um Congresso coacto, o segundo, por um triunvirato militar, ambos

divorciados do povo, o qual, por transfiguração política, de sujeito se converteu em

objeto durante o ominoso período da ditadura.422

Nunca porém uma lei magna no Brasil esteve tão perto de reflelir as forças

reais do poder quanto este singular texto de 245 gordos artigos, escoltados por mais

de 70 outros, não menos volumosos, contendo disposições constitucionais

transitórias. A produção constituinte foi tão caudalosa que o ato das disposições

transitórias guarda a dimensão de uma Constituição, não sendo inferior em extensão

às Cartas do Império e da Primeira República.

Nas palavras de Paulo Bonavides423:

421

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 488.

422Ibid., p. 489.

423Ibid., p. 489.

Page 196: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

194

Tal contiguidade do texto em relação ao País real é, no caso brasileiro, sua força e ao mesmo passo sua fraqueza. Força, pelas óbvias razões de não ser um devaneio, um sonho programático ou metafísico, de constituintes nefelibatas; mas algo fecundado no ventre da Nação em crise produzido pela sociedade e não pelo Estado, posto que por uma sociedade que o Estado mesmo - leia-se o próprio Governo - fez enfermar perigosamente.

Principia a fraqueza do novo estatuto político com a presença que nele teve o

Estado, ao ministrar-lhe os pressupostos negativos concernentes ao processo

constituinte, gerando os fatores inibidores do bom êxito de sua legitimação. Fatores

esses que toda a opinião conhece, dentre os quais cumpre apenas assinalar o ato

convocatório da Constituinte congressual e a ambiguidade dos seus poderes.

Dessas medidas foram porém cúmplices, senão exclusivos autores, os que agora

com mais sanha e aversão infamam a Carta, com o único objetivo de paralisar-lhe a

eventual eficácia. Fazem-no justamente em razão do conteúdo social adiantado de

certas disposições concretas, mediante as quais o País constitucional deu alguns

passos avante, sem embargo de quantos recuou em terreno sabidamente não

menos importante. Pelo aspecto material, a Carta política apresenta também muitas

arestas, tem pontos consideravelmente negativos. Haja vista nesse tocante a fixação

da taxa bancária de juros, o perdão de dívidas a empresários inadimplentes, a

extrema timidez com que se houve na questão federativa tocante às regiões, a

profusão impertinente de casuísmos e o retrocesso na questão da reforma agrária.

Mas os conteúdos positivos, pode-se ver, sobrelevam os negativos,

principalmente no que tange a direitos e garantias fundamentais. A Constituição

avança e testifica a modernidade quando faz do racismo, da tortura e do tráfico de

drogas crimes inafiançáveis, quando estabelece o mandado de segurança coletivo, o

mandado de injunção e o habeas data, quando reforça a proteção dos direitos e das

liberdades constitucionais, quando restitui ao Congresso Nacional prerrogativas que

lhe haviam sido subtraídas pela administração militar, quando valoriza a função do

controle parlamentar sobre o Executivo por via de comissões parlamentares de

inquérito dotadas de poderes de investigação idênticos aos da autoridade judiciária,

quando substitui o Conselho de Segurança Nacional por dois novos conselhos de

assessoria do Presidente da República no propósito de fazer mais eficaz, mais

aberto e mais fiscalizado o sistema de defesa das instituições, quando define os

princípios fundamentais de um estado social de direito, quando determina os

Page 197: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

195

princípios da ordem econômica, a defesa do meio ambiente, a proteção aos índios,

as conquistas da seguridade social.

Sobre uma terceira faixa, onde a Constituição inovou profundamente, paira,

todavia, o mais aceso dos debates e a mais acre das controvérsias: as regras

nacionalistas sobre a ordem econômica, invectivadas de xenofobia e desatualização

com os rumos que, até mesmo das economias do mundo socialista, os ventos do

progresso fazem soprar.424

Se houve, porém, exageros, foram eles talvez obra da insegurança, da

incerteza e dos receios que circundam os povos do Terceiro Mundo, habitualmente

indefesos e constantemente espoliados nas relações econômicas com os países da

sociedade pós-industrial.

A promulgação da nova Carta representa, por conseguinte, um marco, mas

não representa ainda o coroamento de todo o processo de reconstitucionalização ou

mudança. Com efeito, estamos unicamente passando de uma a outra transição, a

saber, da transição discricionária para a transição constitucional, do governo de um

só poder para o governo dos três poderes, do regime do decreto-lei para o regime

da Constituição.

Mas tal sistema somente granjeará permanência e estabilidade quando

legitimar-se por inteiro. É a batalha em favor dessa legitimação que estamos vivendo

hoje, num segundo momento. O primeiro momento se encerrou com a elaboração

formal da Carta, podendo dizer-se que foi em parte muito bem-sucedido, porquanto,

sem embargo de suas origens comprometidas, a Constituinte abriu as portas à

presença popular e fez a sociedade participar por via de grupos e correntes que

ajudaram a formular, com iniciativas de colaboração, o projeto finalmente aprovado e

convertido em Lei Magna. Um fato, aliás, cabe acentuar, sem precedente em toda a

história constitucional do Brasil. Colocou-nos ele tão perto da realidade, do instante

concreto, que a Constituinte congressual, perdendo em parte o traço elitista, típico

das Constituintes passadas, soube congregar o povo e ouvir a sua palavra, soube

auscultar os centros de opinião e dialogar com o País.425

424

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 490.

425Ibid., p. 491.

Page 198: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

196

Durante o período constituinte o plenário do colégio soberano não funcionou

como um fórum de tribunos atenienses, um salão de debates acadêmicos ou um

campo de batalha de ideias abstratas. Foi, em primeiro lugar, uma praça de

interesses, uma feira nacional de serviços, uma bolsa de vantagens, onde tudo se

disputou politicamente palmo a palmo, da forma mais direta, crua e objetiva possível,

mas sempre por meios pacíficos e consensuais, mediante decisões majoritárias.

Mas é importante lembrar, não sendo despiciendo fazê-lo, que a Carta, salvo

o texto específico e formal, ainda não acabou de ser elaborada. Resta acrescentar-

lhe uma parte escrita importantíssima, suplemento mais relevante talvez, num certo

sentido, do que tudo quanto já fez a Casa da soberania em um ano e seis meses de

reunião: as leis complementares e ordinárias, previstas no texto constitucional.

Compõem essas leis a outra metade da Carta, sem a qual ela dificilmente se

aplicará, com sua eficácia diminuída a um grau baixíssimo e insuportável,

embargando todas as esperanças postas em tão valioso instrumento de direitos e

garantias fundamentais.426

Somente a efetivação do Estado social haverá então de escrever uma

Constituição definitiva, que será substancialmente a Constituição do povo e da

cidadania, unindo as três ordens do poder, a política, a econômica e a social, com a

organização das liberdades públicas e a independência da Nação.

Sem uma Constituinte do povo e sem uma Constituição emersa da

legimidade, o país verá Cartas e transições mas não verá jamais uma Constituição

verdadeira, duradoura e eficaz.

A Carta de 1988 vale por este aspecto: é um salvo conduto para o País sair

do arbítrio e caminhar rumo à legitimidade do futuro. Se ela for eficaz, a Nação

estará salva. Em 5 de outubro de 1988, perempto o regime do decreto-lei, o Brasil

promulgou no Planalto a maioridade da democracia representativa.

426

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 492.

Page 199: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

197

4.8.6 A Constituição de 1988 e o problema da legitimidade

Promulgada em 5 de outubro de 1988, a nova Carta constitucional do Brasil

se defronta com o problema de sua eficácia, a saber, de sua adequação à realidade,

ou, em termos mais precisos, de sua legitimidade.

Um ligeiro retrospecto nos evidencia que das Constituições elaboradas na

história constitucional do Brasil em épocas de abertura, a de 1988 é aquela que, de

princípio, em suas nascentes, menos títulos congregava para fazê-la a rigorosa

expressão da vontade popular soberana. Com efeito, basta examinar a primeira fase

do processo constituinte para chegar a essa conclusão necessária.

A Emenda Constitucional nº 26 convocatória da Assembleia Constituinte foi

obra de iniciativa do Poder Executivo, que se valeu do próprio Congresso - um poder

constituído e limitado - para transformá-lo em órgão de soberania.

A Constituinte congressual não era, indubitavelmente, a forma mais legítima

de assembleia para conduzir o processo ou exprimir sem pressupostos restritivos o

exercício da soberania nacional em toda a sua plenitude. Uma limitação prévia de

origem estava na operação eleitoral. Elegeram-se deputados e senadores, e estes

últimos, representando o ramo federativo do sistema, significavam já um

pressuposto originário de compromisso aparente com a base federativa da

organização do Estado, ao mesmo passo que diminuía politicamente a integridade

de expressão da vontade popular, em virtude da composição partidária do Senado,

com relevante inferiorização da manifestação global de vontade do eleitorado.427

A sub-representação política dos grandes Estados na composição do colégio

constituinte se tornava assim patente, sendo por conseguinte óbvio que essa

carência de plenitude e igualdade na representação conjunta do eleitorado fazia

baixar o teor de representatividade e democracia do poder soberano no exercício da

função constituinte, caindo consideravelrnente o grau de sua legitimidade. O ponto

de partida era, pois, o de uma legitimidade bastante reduzida, com suficiente

plenitude para executar uma reforma da Constituição, obra sempre de um poder

constituinte derivado ou de segundo grau, mas de legitimidade discutível, em se

427

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 493-494.

Page 200: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

198

tratando de concretizar a elaboração de uma nova Constituição, a qual, em rigor,

deve caber a uma Constituinte exclusiva e, se possível, desatada do vínculo

federativo prévio, a exemplo da de 1933.428

Em se tratando de passar das esferas da doutrina pura e da região dos

padrões irrepreensíveis para o campo raso da realidade e da história, onde as

instituições sempre deitam suas raízes mais profundas, verifica-se concretamente

que o importante mesmo, em face da revolta e insubmissão dos fatos, com os quais,

em algumas conjunções, ninguém pode deixar de transigir, não é a legitimidade em

si mesma, como conceito abstrato ou estático, mas a legitimação em figura de atos.

procedimentos, eficácia, aceitação e consenso. Ela acaba produzindo uma

legitimidade material do processo constituinte. Não importam nesse tocante as

colisões antecedentes com que se atropelou a legitimidade formal. A crise anterior

de formalismo pode ser então triunfantemente ultrapassada pelos conteúdos

introduzidos na Carta Magna, se estes de maneira efetiva logram o índice de

eficácia que decorre do consenso e da adequação às realidades concretas e

existenciais da Nação.429

Não resta dúvida que a esta altura, elaborada a Constituição de 1988, já se

pode formular um juízo estimativo da nova Carta, tendo em vista a natureza e o teor

de suas disposições, a par de todos os elementos valorativos presentes ao

respectivo processo de elaboração.

Os constituintes congressuais saíram, nesse entendimento, vitoriosos dessa

primeira fase de legitimação da Carta, aquela que vai da instalação da Constituinte à

promulgação da própria lei fundamental.

A Comissão Afonso Arinos, instituída por decreto do Poder Executivo para

fazer estudos constitucionais, acabou desde o primeiro momento por exercer a

missão que lhe fora atribuída, de tal sorte que ao invés desses estudos se inclinou

pela feitura de um projeto autônomo, embora não constasse da incumbência

recebida. Fêz-se pois o chamado ―Projeto dos Notáveis‖, alvo de tanta celeuma e

controvérsias no meio jurídico do País e em todos os círculos de opinião.430

428

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 494.

429Ibid., p. 494.

430Ibid., p. 494-495.

Page 201: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

199

A rejeição do Projeto pelo governo deu-se tacitamente por via omissiva. O

Executivo deixou de enviá-lo à Constituinte. Consta que a razão maior do silêncio e

omissão do Poder Central, ignorando o trabalho da Comissão dos Notáveis, resultou

unicamente de haver ele consagrado o sistema parlamentar de governo. O

Presidente José Sarney estava no propósito de não abrir mão dos poderes que

necessariamente seriam transferidos para o primeiro-ministro com a adoção do

parlamentarismo.

A consequência imediata do estranho procedimento, contrariando a velha

praxe dos projetos sobre os quais costumavam trabalhar as Constituintes passadas,

foi achar-se o colégio soberano sem um texto a partir do qual pudesse encetar sua

tarefa, como fizeram os constituintes republicanos de 1890, 1933 e 1967. Os de

1946, colocados numa situação semelhante se inspiraram na Constituição de 1934.

Em 1987, a Constituinte congressual principiou sem nenhum marco de referência.

Esse dado de início se mostrou deveras negativo, porquanto as primeiras semanas

da reunião constituinte se viram rodeadas de um véu de incertezas que cobria de

indecisão os trabalhos iniciais, não raro tumultuados e anárquicos, revelando um

aparente despreparo a par de muitas vacilações dos membros da Assembleia, até

que as comissões se consolidaram. Mas a falta de um projeto oriundo do poder

acabou sendo fator deveras positivo na legitimação do processo de espontaneidade

com que foi conduzido.431

A Constituinte, ausente a intermediação do Estado, teve que abrir e manter o

diálogo direto, imediato, constante e eficaz com a própria sociedade. Logrou-se

assim o acompanhamento e o debate de todas as regras temáticas por distintas

correntes sociais, que faziam convergir para a Constituinte aspirações, interesses e

reivindicações patrocinadas com todo o fervor e empenho. Os lobbies, que nunca

existiram em outras Constituintes, se tornaram uma presença familiar, e os grupos

de pressão, tanto do meio empresarial como das classes obreiras e respectivas

organizações sindicais, jamais se mostraram tão ativos e assíduos no Congresso

quanto neste período, trazendo à elaboração constitucional uma dimensão nova de

participação.

431

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 495.

Page 202: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

200

Enfim, uma Constituinte, como nunca, aliás, houve em nossa história

constitucional de várias repúblicas e um império, em que o povo esteve realmente

perto dos mandatários da soberania e sem quaisquer obstáculos lhes trouxe o

subsídio de sua colaboração e o préstimo de sua vontade. A presença da sociedade

nunca faltou, portanto, nas diversas ocasiões em que ocorreram dramáticos conflitos

de interesses, dos quais haveria de emergir afinal as regras básicas disciplinadoras

de matéria a ser posta no texto da Constituição.

O governo só não esteve distante em duas questões que se lhe afiguraram de

importância fundamental, sobre as quais concentrou todo o peso de sua pressão e

influência: a da manutenção do regime presidencial e a da preservação do mandato

de cinco anos do presidente nos termos impostos por ele mesmo. No mais, por

omissão do governo, a Constituinte se viu de braços livres para atuar na inserção de

todas as matérias do texto, lidando unicamente com os anseios sociais, em estreito

e íntimo contato com as forças de opinião.432

É de assinalar, por igual, a liberdade com que transcorreram os trabalhos da

Constituinte: nem estado de sítio, nem ameaça de golpe, nem censura à imprensa,

nem tampouco mutilação de mandatos como aconteceu em 1967.

Todos esses fatores, ora alinhados, bastam para explicar e demonstrar o alto

índice de legitimação alcançado pela Constituinte congressual.

Foi a ação participativa popular vivida na Assembleia que em verdade

legitimou a Constituinte e deu força e sustentação ao seu presidente no confronto

com o Executivo, como já mencionado anteriormente.

Atravessada essa montanha de dificuldades, a Constituição em vigor desde 5

de outubro de 1988 só se acha completa do ponto de vista formal, mas isso

unicamente se não inserirmos nessa assertiva o que ainda falta ser votado, com

abrangência portanto de todas as leis complementares e ordinárias, cuja elaboração

é de máxima urgência e necessidade para conferir aplicação ao texto constitucional

em inumeráveis pontos de capital importância.

432

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. p. 496.

Page 203: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

201

CONCLUSÃO

A reflexão proposta nesse estudo é pontual: guindar a paz à esfera do direito,

direito à paz.

Após descrever o significado de paz, nas tradições, grega, romana, judaico-

cristã, na Idade Média e na Modernidade, passou-se a pensar a paz na atualidade.

Pensar a paz em nosso tempo significa, inicialmente, ter de nos reconhecer como

participantes de uma época na qual se tornou possível a autodestruição da

humanidade, condição essa ―conquistada‖ em razão da violência, em todos os

sentidos, que domina nossa sociedade atual.

A paz muda, portanto, de lugar: do contrário de guerra, em sentido estrito,

para o contrário de violência, no sentido lato. Hoje vivemos numa sociedade

acentuadamente marcada pela indiferença e pela banalização da violência.

Há, por certo, que não mais ignorar a importância que adquire em nossas

vidas um processo de transformação cultural capaz de garantir as condições para a

vida presente e futura. Esse processo, para ser concretizado, envolve a educação

para a paz que pode e deve ser feita através de vários segmentos da sociedade,

como programas e projetos específicos, públicos ou privados, de que, inclusive, já

existem notícias de efetivação.

É justamente ao aspecto da educação para a paz que o Direito vem agregar-

se, investido de seu poder peculiar de estabelecer o ―dever ser‖, através das normas

jurídicas, inclusive, como uma forma, também, de educar para a paz.

A paz implica, portanto, uma ação que ultrapassa as fronteiras do

individualismo possessivo e do pensamento egocêntrico. Ela somente pode ser

realizada no âmbito da própria constituição de uma cultura que ultrapasse os

interesses individuais. É antes de tudo uma preocupação com o outro. Mas isso não

surge por si mesmo entre os humanos. Depende de grande processo de

aprendizado e reflexão. Assim, a paz deixa de ser uma abstração para se tornar

acontecimento coletivo. E é para efetivar uma nova postura da paz que o Direito vem

em seu auxílio.

Page 204: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

202

Então esse é o sentido do presente trabalho, que coloca como foco a

concepção da paz no âmbito da normatividade jurídica, pela própria função do direito

de buscar a harmonia social.

Para tanto, faz-se mister tratar dos direitos fundamentais, contidos na

Constituição Federal do Brasil de 1988, que nos trouxe o mandamento de renovar a

ordem jurídica naturalmente, posto que foi concebida em uma nova base.

Assim, desde o nascimento dessa Constituição Federal, reinterpretá-la tem

sido necessário, pois seu cumprimento tem decorrido de sua aplicação, resultante

de um processo constitucional, de maneira que sua interpretação tem que se

caracterizar, também, como uma interpretação constitucional.

Desta feita, abordou-se a classificação dos direitos fundamentais, no âmbito

da teoria jurídica, para usar-se como referência a Teoria ―Tridimensional‖, assim

qualificada por Half Dreier e Robert Alexy, onde há uma dimensão analítica, uma

empírica e uma normativa.

Além dessa colocação referente às dimensões dos direitos fundamentais,

tratou-se também das gerações dos direitos fundamentais. E é exatamente nessa

classificação dos direitos fundamentais, quer como dimensões, quer como gerações,

que surge o direito à paz. Karel Vazak, o respeitado publicista da UNESCO, já havia

assinalado em um de seus estudos a respeito da emergência da paz como norma

jurídica. Já existe, portanto, uma gestação do direito à paz que advém do direito à

vida.

Sem dúvida, não é tarefa fácil reconhecer, admitir e proclamar a natureza

jurídica da paz, até pelo lugar que a paz sempre ocupou: as esferas abstratas.

No entanto, é preciso reconhecer que, na atual conjuntura, a paz há que ser

introduzida como direito, direito constitucional, que tem vida e é concreto.

Dessa forma, o direito à paz tem efeitos também como direito coletivo, efeitos

internos e internacionais, tanto quanto no direito privado.

No corpo desse trabalho relataram-se decisões que reconhecem, tanto na

doutrina como na jurisprudência, o direito à paz. E isso, sem dúvida, pode ser

Page 205: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

203

considerado um avanço à pretensão, dando forma a um outro constitucionalismo, o

da normatividade, dinâmico e fecundo na criação de novos direitos fundamentais.

Reservou-se, também, para melhor compreensão de nossa atual Constituição

Federal, um histórico de todas as Constituições Federais do Brasil, desde a

Constituição do Império até a Constituição Federal de 1988.

O embasamento para a pretensa reflexão sobre a paz firmou-se através do

pensamento de Hannah Arendt. Para tanto, utilizaram-se como base duas de suas

obras específicas, a par de se servir de outras de suas obras: ―Origens do

totalitarismo‖ e ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖. Mas

como chegou-se à paz se essas obras tratam da violência? Exatamente porque é

preciso atenção ao que provoca a falta de paz, a violência. Essa violência presente

em todos os relatos contidos nas citadas obras, que se interligam, relatos esses

concernentes ao período da Segunda Guerra Mundial que gerou o nazismo, através

do qual realizou aquilo que se pode denominar de uma indescritível e inominável

crueldade, que foi a perseguição dos judeus da Europa, até o extermínio de milhões

deles sob a égide do regime totalitário.

Arendt, nas referidas obras, reveste-se de uma coragem ímpar,

principalmente pelo fato de ser judia, para tratar de forma profunda e direta assuntos

como o sionismo, o nazismo, todo o processo de ―expatriação‖ bem como de

eliminação dos judeus da Europa, até a ―solução final‖ nos campos de concentração

ou a caminho desses, o julgamento de Eichmann em Jerusalém, inclusive com

críticas na condução do processo e manifestações contundentes a respeito do

conflito árabe-judaico.

As duas obras objeto desse estudo comprovam ―o agir‖ de Arendt a favor da

paz, relatando e contestando toda a violência advinda dessa triste parte da História.

Mas não é apenas em suas obras que ela se mostra em busca da paz. No

desenrolar de sua própria vida, conforme consta em dados biográficos expostos

nesse estudo, é possível perceber o quanto ela se empenha pela paz. Em sua

defesa pelo povo judeu desprezado, desterrado, torturado, ela demonstra a bravura

daqueles que lutam pela justiça, desenvolvendo estudos, ministrando aulas,

proferindo palestras, participando de manifestações, cumprindo sua função de

jornalista, tomando posições políticas em público, auxiliando os judeus em fuga e

Page 206: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

204

também os apátridas após a guerra. Enfim, dedicando-se obstinada e corajosamente

ao seu ideal de paz.

Na obra ―Origens do totalitarismo‖ ela nos mostra sua descoberta de que o

regime totalitário não pode existir sem terror e que o terror não pode ser efetivo sem

os ―campos de concentração‖. E é por intermédio dessa descoberta que ela

desvenda a principal característica dos regimes totalitários: a destruição da condição

humana, que transforma homens, mulheres e crianças em simples ―coisas‖.

Suas críticas vão além dos horrores dos regimes totalitários, pois ela critica a

burguesia, as massas e as elites.

Enfim, ela mostra o quanto o regime totalitário é composto de terror, de horror

e de violência. Todos obstrutores da paz.

Apesar das muitas críticas recebidas por essa obra que se tornou polêmica e

por sua postura, Hannah Arendt não se curva e mantém suas posições e seus ideais

com convicção.

Na obra ―Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal‖,

Arendt descreve o julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann pelo Tribunal de

Jerusalém. Expõe o que vê, o que ouve, mas também sua análise pessoal do

julgamento, com suas críticas em todos os âmbitos do processo. Trata do problema

da ―passividade das vítimas‖, traçando uma diferença entre a morte ―relativamente

fácil‖ e a morte ―difícil‖. Ela adentra em todos os horrores concebidos e sob a

responsabilidade de Eichmann, deixando bem claro seu objetivo de caracterizar a

banalidade do mal.

E é essa banalidade do mal que advém da violência, que permanece de uma

atualidade inegável, infelizmente. Por isso devemos cada um de nós, a seu modo,

através de uma reflexão acurada, lutar para tornar a paz um direito, como meio de

combater a violência crescente instaurada nas nossas vidas, até como uma garantia

das futuras gerações de viver em paz.

Não olvidemos que o direito à paz faz parte da democracia, mantém o Estado

de direito, cria valores, protege o cidadão. Esses elementos constituem o equilíbrio

da sociedade.

Page 207: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

205

Todos nós devemos nos voltar para o interesse coletivo de ideal ao direito à

paz, como Hannah Arendt se voltou ao seu ideal de paz.

Arendt, através de suas obras, permanece viva, pois seu ideal de paz na luta

contra a violência continua atual.

Que a reflexão proposta nesse estudo sobre o direito à paz seja uma

inspiração e um entusiasmo, para concretizá-lo no combate à violência.

Page 208: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

206

REFERÊNCIAS ADLER, Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2007. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. AGUILLERA, Beatriz et al. Educar para la paz. Madrid: Centro de Investigacion para la Paz, s/d. ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Tratado de Direito Público universal. Rio de Janeiro: FARJ, 1999. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudos Constitucionales, 1997. ALVAREZ, Ricardo. A formação de Israel. Disponível em: <http://geografiaeconjuntura.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 21 mar. 2010. ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Ensino do Direito: o conceito de educação com fundamento no Art. 205 da Constituição Federal. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro Universitário UNIFIEO, Osasco, 2006. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teorias tri e multidimensionais em epistemologia jurídica: o modelo Dreier - Alexy e o modelo integrativo polonês. Anais do IV Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2009. ______. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. ______. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2004. ______. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. ______. Só permanece a língua materna. In: ______. A dignidade da política. Tradução de Antonio Abranches; César Almeida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. ______. O que é política? 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. (Fragmentos das obras póstumas compiladas por Úrsula Ludz.). ______. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ______. La prétendue armée juive (22 mai 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991.

Page 209: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

207

______. La visite de Menahem Begin et les objectifs de son mouvement politique (04 décembre 1948). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Le dos au mur (03 juillet 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. L'éloquence du diable (8 mai 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. On ne prononcera pas le kaddish (19 juin 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Papier e réalité (10 avril 1942). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Réexamen du sionisme (octobre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Sans droit et avilis (15 décembre 1944). In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Le sionisme reconsidere. In: ______. Auschwitz et Jérusalem. Paris: Deux Temps Tierce, 1991. ______. Penser l‘événement. Tradução de Pierre Pachet. Commentary, Paris, p. 135-153, 05 mai. 1948. ARON, Raymond. Machiavel et les Tyrannies modernes. Tradução de Norma Arruda Feijó. Paris: Gallimard, 1993. BACAL, AZRIL. Culturas de justipaz y desarollo humano sustentable en America Latina: aportes de una educación popular para la paz. México: Axtepec, 2000. (Consejo latinoamericano de investigación para la paz.). BACHELARD, Gastón. La formation de l’espirit scientifique: contribution à une psycanalyse de la connaissance. Paris: J. Vrin, 1938. BALAGUER CALLEJON, María Luisa. La interpretación de la constitución por la jurisdicción ordinaria. Madri: Civitas, 1990. BARBÉ, Domingos. A não-violência ativa: aspectos teológicos. São Paulo: Paulinas, 1982. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Geográfica, 2008. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti; COSTA, Rosemary F. da; RIBEIRO, Márcio H. da S. F. Violência e não violência na história da Igreja. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 59, n. 236, p. 842, dez. 1999.

Page 210: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

208

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ______. El problema de la guerra y las vias de la paz. 2. ed. Barcelona: Gedisa, 1992. BOSC, Robert. Evangelho, violência e paz. São Paulo: Paulinas, 1977. BOUTHOUL, Gasthon. Avoir la paix. Paris: Grasset, 1967. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2000. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Em campo aberto: escritos sobre a educação e a cultura popular. São Paulo: Cortez, 1995. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1993. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. BRASIL. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. BRASIL. Constituição (1824). Carta de Lei de 25 de Março de 1824. Brasília, DF: Fundação Projeto Rondom - Minter, 1986. BRUEHL, Elisabeth Young. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Joel Roman; Etienne Tassin. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. São Paulo: Max Limonade, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tópicos de um curso de mestrado sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e organização. Boletim da Faculdade de Direito da universidade de Coimbra. Coimbra, v. LXVI, 1990. ______. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1989.

Page 211: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

209

CARDINI, Franco. La culture de la guerre. Paris: Gallimard, 1992. CHALITA, Gabriel. O poder. São Paulo: Max Limonade, 1999. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 12. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998. COELHO JR., Sérgio. O juiz e a aplicação do direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coords.). Homenagem ao professor Paulo Bonavides. Jus Navegandi, n. 852, mai 2005. COELHO, José Maria Latino. O preço da monarquia. Lisboa: David Corazzi, 1886. COMBLIN, Joseph. Teológie de la paix. Paris: Éditións Universitaires, 1960. COSTE, René. Theologie de la paix. Paris: Editions Du Cerf, 1997. Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 14 mar. 2010. DENAMY, Sylvie Courtine. Trois femmes dans de sombre temps: Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil. Tradução de Marion Curi. Paris: Albin Michel, 1996. DIAZ, Jaime. Peace education in a culture of violence. Tronso-Norway: Magnus, 1993. ESPIELL, Héctor Gross. El derecho a la paz. In: ______. Derechos humanos y vida internacional. Montevidéo: UNAM y CNDH, 2006.

ESPINOSA, Bento de. Tratado político. Tradução de Manuel de Castro. 2. ed. Lisboa: Esperança, 1997. FALEIROS, Vicente de Paula. A questão da violência. In: CONFERÊNCIA NO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL E POLÍTICA SOCIAL, 1998, Brasília. 07 dez. 1998. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1974. v. 3. FISAS, Vicenço. Introducion al estudio de la paz y de los conflictos. Barcelona: Lerna, 1987. FURET, François. Le passé d'une ilusión, essai sur l'idée communiste au XXe siècle. Paris: Livre de Poche, 1996.

Page 212: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

210

GADOTTI, Moacir (org.). Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo; Brasília: Cortez; Instituto Paulo Freire; UNESCO, 1996. ______. A educação contra a educação: o esquecimento da educação e a educação permanente. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. GALLE, W. B. Os filósofos da paz e da guerra. Rio de Janeiro: Artenova, 1979. GALTUNG, Johan. Essays in peace research. Copenhague: Cristian Eglers, 1975. GANDHI, Mahatma. Minha vida e minhas experiências com a verdade. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: RCS, 2005. ______. Metodologia jurídica e interpretação constitucional. 1991. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 122 et seq. ______. Do litisconsórcio necessário nas ações do Estado. 1986. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, p. 8. ______. Ensaios de Teoria Constitucional. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1989. GUIMARÃES, Marcelo Rezende. Educação para a paz: sentidos e dilemas. Rio Grande do Sul: EDUCS, 2008. ______. Por uma cultura de paz. Fala, Brasil! Disponível em: <http://www.brazil-brasil.com/content/view/629/78/>. Acesso em: 26 mar. 2010. HELLER, Agnes; FEHER, Ferenc. Sobre el pacifismo. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 1985. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995. v. 901. HIPÓLITO DE ROMA. Tradição apostólica. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1988. v. 2, p. 77. (Coleção Os Pensadores). HOFFMANN, Stanley et al. Rousseau, la guerre et la paix. In: Rousseau et la Philosophie Politique. Paris: PUF, 1965. IHERING, Rudolf von. A luta pelo Direito. Tradução de J. Cretella Jr.; Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

Page 213: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

211

JACKSON, W. H. História da arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. JUSTINO DE ROMA. Apologia I e II: diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995. JÜNGER, Ernst. La mobilisation totale. Tradução de Henri Plard; Marc B. de Launay. Paris: Gallimard, 1990. KANIMEN, Michael. A machine that would go of itself: the Constitution in American culture. New York: Hardcover, 1986. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. À paz perpétua. Tradução de Marco Antônio Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1989. ______. Kant I. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 132. (Coleção Os Pensadores) KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Paulinas, 1993. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes; Marisa Lobo da Costa. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1995. MAGNOLI, Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz: caminhos da prevenção da violência. São Paulo: Moderna, 1997. MANN, Thomas. Appels aux allemands: messages radiodiffusés addresses aux allemandes d‘ octobre 1940 à juin 1945. Tradução de Pierre Jundt. Paris: Balland, Martin Flinker, 1985. MAY, Fritz. Apagando a identidade judaica de Ezequiel. Revista Notícias de Israel, Porto Alegre, jan. 1998. Disponível em: <http://www.chamada.com.br> Acesso em: 21 mar. 2010. MERTON, Thomas et al. Ofensiva de paz. Tradução de Alceu Amoroso Lima. Petrópolis: Vozes, 1965. MILANI, L. L’obedienza non é piu uma virtú. Perusa: Edizione del Movimento Noviolento, 1979. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1 de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. v. I.

Page 214: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

212

NALINI, José Renato. Usina de injustiças. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A2, 18 jun. 2008. NEUMANN, Franz Leopold. Behemoth, structures et pratique du national-socialisme. Paris: Payot, 1987. NUNES, Rizzatto. Manual de monografia jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Marcel Borret. Paris: Garnier, 1969. v. 3. OVÍDIO. Lês fastes. Paris: Librarie Garnier Frères, 1940. (Versos 701-704). PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Tradução de António Manuel de Almeida Gonçalves. Lisboa: Publicações Europa América, 1996. PETIT, Paul. A paz romana. São Paulo: Pioneira, 1989. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. REARDON, Betty; CABEZUDO, Alicia. Rationales for and approaches to peace education: learning to abolish war, teaching toward a culture of peace. New York: Hague Appeal for Peace, 2002. RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1968. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. São Paulo: OESP - Maltese, 1987. ROHDEN, Valério. Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: UFRGS, Goethe-Institut/ICBA, 1997. ROMANO, Roberto. História da paz. São Paulo: Contexto, 2008. ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1999. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Jugement sur le projet de paix perpétuelle. Paris: Gallimard, 1964. SAGÜÉS, Néstor Pedro. Constitución y sociedad: la revisión de lãs cuestiones políticas no justiciables (a propósito de la Coalición contra Iraq). Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 8, Fortaleza, 2007. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2007. (Sermão 53).

Page 215: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

213

______. A cidade de Deus. Tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo: Edaméris, 1964. v. 3. SCHMITT, Carl. Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et d' un symbole politique. Tradução de Denis Trierweiler. Paris: Seuil, 2002. ______. La Defensa de la Constituicion. Tradução de Manoel Sanches Sarto. Madri: Tecnos, 1983. SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Tradução de Ingeborg Braren; Antônio da Silveira Mendonça. Petrópolis: Vozes, 1990. v. III. SHARP, Gene. Poder, luta e defesa: teoria prática da ação violenta. Tradução de Getúlio Bertelli. São Paulo: Paulus, 1983. SHESTACK, Jerome. La paix sans les droits de l’homme n’est que néant ou la guerre ou la paix. Paris: UNESCO, 1980. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. Florianópolis, Livraria do Advogado, 2005. TÁCITO. La vie d’agricole. Tradução de Henri Marel. Paris: Bordas, 1973. THOREAU, Henry David. Desobedecendo: a desobediência civil e outros escritos. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1968. VAUGHAN, C. E. Jugement sur la polysynodie. Paris: Jean Jacques Rousseau, s/d. VEGÉCIO. Les instituitions militaires. Paris: Fírmin Didot Frères, Fils et Cie., 1969. VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Politico. Madri: Tecnos, 1987. v. II. VIRGÍLIO. Eneida. Porto: Livraria Simões Lopes, 1955. v. VI. (Versos 851-853). WENGST, Klaus. Pax romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. ZAMBAGLIONE, Gerardo. L’Idea della pace nel mondo ântico. Torino: Ediziomi Raí Rasiotelevisione italiana. 1967.

Page 216: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

214

Homepages e sites institucionais na internet BRASIL. DHnet. Direitos humanos. Por um novo começo. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/bibpaz/textos/m2000.htm> Acesso em: 26 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Jewish Agency for Israel. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Agency_for_Israel>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. The American Jewish Historical Society. Disponível em: <http://ajhs.org/about/>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. The Jewish Virtual Library. Disponível em: <http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/biography/magnes.html>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Conferência de Wannsee. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Conferência_de_Wannsee>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Constituição de Weimar. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Constituição_de_Weimar>. Acesso em: 23 mar. 2010. BRASIL. Wikipédia, a enciclopédia livre. Holocausto. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Alexandre Kojève Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Kojève>. Acesso em: 18 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Museum of the History of Polish Jews. Disponível em: <http://www.jewishmuseum.org.pl/index.php?miId=2&lang=en> Acesso em: 21 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Anti-establishment. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Anti-establishment>. Acesso em: 24 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Antissemitismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antissemitismo>. Acesso em: 20 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Arthur Ruppin. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Arthur_Ruppin>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Big government. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Big_government>. Acesso em: 24 mar. 2010. BRASIL. Holocausto e Antissemitismo. Disponível em: <http://www.rumoatolerancia.usp.br/material/Artigos/holo>. Acesso em: 22 mar. 2010.

Page 217: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

215

ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Clinton Rossiter. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Clinton_Rossiter>. Acesso em: 23 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Lista de países socialistas. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_países_socialistas>. Acesso em: 24 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. David Ben-Gurion. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/David_Ben-Gurion>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. David Rousset. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/David_Rousset>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Eric Voegelin. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Voegelin>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Ernst Jünger. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernst_Jünger>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Revolução Alemã de 1918-1919. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolução_Alemã_de_1918-1919>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Estado de bem-estar social. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_de_bem-estar_social>. Acesso em: 22 mar. 2010. BRASIL. Folha online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u399537.shtml>. Acesso em: 07 mai. 2008. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Gershom Scholem. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Gershom_Scholem>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Gestapo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Gestapo>. Acesso em: 20 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. III. Resolutions adopted on the reports of the First Committee. Disponível em: <http://www.un.org/documents/ga/res/33/ares33r73.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Friedrich Hölderlin. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Hölderlin>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Judenrat. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Judenrat>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Kaddish. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Kadish>. Acesso em: 21 mar. 2010.

Page 218: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

216

ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Karel Vasak. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Karel_Vasak>. Acesso em: 25 mar. 2010. BRASIL. Wikipédia, a enciclopédia livre. Karl Jaspers. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Jaspers>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Martin Buber. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Buber>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Max Horkheimer. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Horkheimer>. Acesso em: 18 mar. 2010. FRANÇA. Wikipedia, l‘encyclopédie libre. Menahem Begin. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Menahem_Begin>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Moloque. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Moloque>. Acesso em: 21 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Caso Dreyfus. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dreyfus>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Jewish Labor Committee. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_Labor_Committee>. Acesso em: 21 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Paul Natorp. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Paul_Natorp>. Acesso em: 20 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Joseph Goebbels. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Goebbels>. Acesso em: 21 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Leis de Nuremberg. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Leis_de_Nuremberg>. Acesso em: 29 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Pogrom. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pogrom>. Acesso em: 21 mar. 2010. BRASIL. Programa Interlegis - Comunidade Virtual do Poder Legislativo, Brasília, 19 mar. 2010. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 16.12.1966. Disponível em: <http://www.interlegis.gov.br/processo_legislativo/copy_of_20020319150524/20030616104212/20030616113554>. Acesso em: 14 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Simone Weil. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Simone_Weil>. Acesso em: 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Sionismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sionismo>. Acesso em: 21 mar. 2010.

Page 219: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

217

ESTADOS UNIDOS. Wikipedia, the free encyclopedia. Struma (ship). Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Struma_(ship)>. Acesso em: 21 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Theodor_ludwig_wiesengrund-adorno>. Acesso em 18 mar. 2010. BRASIL. Wikipedia, a enciclopédia livre. Thomas Edward Lawrence. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Edward_Lawrence>. Acesso em: 18 mar. 2010. ESTADOS UNIDOS. Commentary. Jewish Frontier Anthology. Disponível em: <http://www.commentarymagazine.com/viewarticle.cfm/jewish-frontier-anthology-56>. Acesso em: 27 mar. 2010.

Page 220: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 221: Maria Edith de Azevedo Marques Direitos Fundamentais: o ...livros01.livrosgratis.com.br/cp140354.pdf · Milhares de livros grátis para download. ... Ao meu filho Octavio, ... paz,

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo