translatio - gtfilosofiamedieval.files.wordpress.com · correção e superação do pensamento de...
TRANSCRIPT
ISSN 2176-8765
Translatio
Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval
e a Recepção da Filosofia Antiga
Vol. 8 (2016)
- 01 -
ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays (A. N. Oliveira Silva)
- 25 -
AMERINI, F. Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità (P. T. dos Santos Ferreira)
- 34 -
AREZZO, A. Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto scientifico
della teologia (G. B. Vilhena de Paiva)
- 48 -
CROSS, R. Duns Scotus’s Theory of Cognition (G. B. Vilhena de Paiva)
Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma
publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)
Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •
Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo
(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu
Mazzola Verza (UFMG)
Revisão: Gustavo Paiva
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, xi + 298 p.
Allan Neves Oliveira Silva* ___________________________________________
Abu ‘Ali Ibn Sina (980-1037 d.C.) está entre as figuras que mais
influenciaram o pensamento medieval, estendendo-se por gerações de
pensadores em diversas áreas do conhecimento e cruzando fronteiras
linguísticas, étnicas e religiosas. Seu destacado alcance, de fato, reflete sua
maestria em catalisar, sintetizar e inovar o conjunto de ideias que preenchiam o
rico ambiente intelectual circunvizinho de Bukhara (cidade próxima de onde
nasceu, hoje Uzbequistão) e de Khurasan (território onde viveu maior parte de
sua vida, hoje parte do Irã), ambas situadas no que foi o antigo império persa. No
limiar do século XI, o movimento de tradução do grego ao árabe já havia
chegado ao seu fim com a quase totalidade do corpus aristotélico traduzido,
assim como boa parte dos chamados comentadores neoplatônicos gregos de
Atenas e Alexandria; a escola de Bagdá, empenhada em comentar e definir o
pensamento do Estagirita, já havia tido seu apogeu com al-Farabi (m. 950); e a
teologia islâmica (kalâm), que se engajava em temas caros aos filósofos como a
criação, atributos divinos e o porvir da alma humana, assim como o gnosticismo
ismailiano, que importou fortemente do neoplatonismo grego e de sábios persas,
estavam marcantemente em voga. O contexto em que viveu, entretanto, não
minimizou seu potencial, que, como ele aponta em sua autobiografia, se firmava
singular e prolífico desde cedo; mas, antes, o que produziu a partir dele o fez se
projetar historicamente até as fronteiras opostas do império islâmico com seu
diálogo com Averróis (m. 1198), indo daí para a Europa cristã – onde seu nome
latino, Avicenna, se fazia soar – e adiante, mostrando-se ilustre no mundo
islâmico até tempos recentes.
* Doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do CNPq.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
2
A despeito da importância de Avicena, o relativo estreito leque de
pesquisas aprofundadas sobre suas doutrinas, a carência de edições críticas
apropriadas de suas obras e a ainda tímida abordagem compreensiva da
dimensão e extensão de sua influência se fazem sentir sobremaneira. A verdade é
que, considerando a magnitude de Avicena frente ao que contamos de material
sobre ele, temos em nossa frente um autor que ainda nos é estranho, revelando,
por efeito, o quando ainda é estranha ao próprio pesquisador da tradição
medieval a filosofia árabe islâmica. Tem havido, contudo, um crescente esforço
de estudo qualificado nas últimas décadas para aplainar tais lacunas. O livro
editado por Peter Adamson contribui em grande medida para isso. Trata-se de
uma coletânea de artigos redigidos por prestigiosos pesquisadores sobre as mais
diferentes facetas do autor, cobrindo também em boa dose seu legado. É um
título que apresenta a virtude de oferecer ao leitor de filosofia um panorama da
figura, doutrina e influência do pensador árabe de forma acessível e técnica,
localizando-o ao mesmo tempo no cenário atual de pesquisas e de disputas
interpretativas. Como aponta o próprio título, os escritos são ensaios críticos
que trazem a valiosa contribuição de fazer avançar as pesquisas sobre Avicena
com a apresentação de interpretações e informações originais, fazendo
contraponto ao que temos disponível e indicando ao estudioso da filosofia árabe
o caminho ainda a se trilhar.
As duas primeiras contribuições, de David Reisman1 e Dimitri Gutas2,
oferecem um acurado retrato do personagem na ambiência social, cultural e
intelectual em que estava inserido. Reisman destaca a importância crucial do
patronado para Avicena, primeiramente para sua própria formação filosófica e,
em seguida, para conseguir os próprios meios para redigir e para congregar seus
discípulos. O interessante é que o que faz com que Avicena seja adotado por
auxílio benfeitor de governantes e nobres não são (ao menos não inicialmente)
1 REISMAN, D. “The Life and Times of Avicenna: Patronage and Learning in Medieval Islam”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 7-27. 2 GUTAS, D. “Avicenna’s Philosophical Project”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 28-47.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
3
seus dotes filosóficos, mas o seu talento para curar. É este que lhe garante –
como narra em sua autobiografia – ocupar com a idade de 18 anos o posto de
médico na corte do governante samânida Nuh b. Mansûr, o qual lhe abre uma
biblioteca de rico e variado acervo. Reisman argumenta que essa adoção marca a
primeira de uma série de fases da produção filosófica do nosso autor, a saber, a
confecção sobretudo de compêndios em favor de seus protetores, tendo,
portanto, um modo de exposição próprio, mas que vem assinalar sua maturação
enquanto pensador autônomo (pp. 10-1). Esse foi um meio conveniente para
conseguir a estabilidade necessária para seu exercício intelectual, já que Avicena,
graças a sua autoproclamada e reconhecida capacidade autodidata, nunca esteve
filiado a um estabelecimento de ensino institucionalizado. Com isso, tem início a
sua fase de composição de obras pedagógicas para alunos que começaram a
agregar seus ensinos, as quais comportam um teor mais sistemático e
aprofundado. De fato, o progressivo conhecimento das obras do Estagirita –
mais primordialmente, do Organon – o faz se confrontar, em um primeiro
momento, com seus conterrâneos bagdadis, a quem acusa de não raciocinar com
exatidão segundo os princípios lógicos por eles próprios defendidos, e, em
seguida, com o próprio Aristóteles. Como aponta Reisman: “A interpretação
deles de Aristóteles e outros filósofos gregos conduziria em parte Avicena a
propor sua ‘filosofia dos Orientais’, que romperia com a prática servil de mero
comentário a Aristóteles” (p. 15). É nessa efervescência que tem início sua fase
de rivalidade e disputa, mesmo pública, com os sábios da época e sua firmação
enquanto autoridade. Um episódio marcante é a discussão de problemas lógicos
que Avicena protagoniza com o pensador bagdadi Abu l-Qasim al-Kirmani (pp.
14-9), que é intrigantemente apresentado pelo pesquisador em seu contexto de
turbulência política.
A fase de maturidade de Avicena é marcada pela composição de suas
duas maiores obras: Livro da Cura (Kitâb al-Shifâ’) e Indicações e notas (Al-Ishârât
wa-l-tanbîhât). Reisman ressalta que Avicena assume uma postura que se
caracteriza em três frentes (pp. 19-20): 1) seu embate com al-Kirmani e outros
adeptos da mesma Escola realça sua posição polemista contra os
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
4
autodenominados “aristotélicos”; 2) o confronto é intelectualmente fundado,
visto que Avicena, reconhecendo a competência de Aristóteles, se presta a
mostrar a falência dos métodos e práticas de seus seguidores na própria
linguagem lógica – silogístico-demonstrativa – do mestre grego; 3) superando o
Estagirita e seus seguidores no próprio território deles, Avicena procede a firmar
sua filosofia de modo próprio não apenas em conteúdo, mas também em meio
de veiculação e divulgação para a comunidade intelectual. As duas primeiras
frentes são materializadas no Livro da Cura, onde Avicena, no Prólogo, menciona
explicitamente os bagdadis e adverte o leitor sobre seu projeto de remodelagem,
correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo sistemático e
coeso. Nesse ínterim, Avicena nomeia sua própria investidura de “oriental”
(mashriq), que, como esclarece Reisman, seguindo a aclamada tese de Gutas,
trata-se de um qualificativo geográfico que remonta à parte oriental (Khurasan)
do império islâmico, em contrapartida aos “ocidentais” de Bagdá. Avicena não
apenas inova em conteúdo, mas no gênero literário sem precedentes com o qual
apresenta seu sistema nas Indicações. Aí, o filósofo adota largamente o recurso
do entimema (argumento que elide uma das premissas) e omite as conclusões,
permitindo que o leitor a elas chegue através de uma das premissas e de
pequenas descrições ou apontamentos que lhes “indicam”. Com essa forma de
exposição, tinha-se em vista seu discipulado e iniciados, que deviam chegar à
verdade por um esforço próprio de inferência e raciocínio (p. 22). Reisman
aponta ainda que a produção não fez Avicena dispensar o patronado, e que, de
fato, mesmo nos anos finais de sua vida outros nobres o comissionaram, o que
redundou em escritos com diferentes modos de exposição (pp. 22-6). Fica claro
como a filosofia de Avicena foi construída em um cenário altamente dinâmico e
como isso afetou a estrutura formal de sua escrita, sem, contudo, interferir no
projeto autônomo de filosofia que ele desde muito cedo concebeu.
Gutas vem destacar com sua contribuição os constituintes desse projeto
e os elementos importados para sua realização. Informa-nos que,
fundamentalmente, Avicena contava com uma formação alinhada à tradição
aristotélica. Primeiro, porque tinha à sua disposição a maioria dos textos do
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
5
Estagirita e boa parte de seus comentadores (esp. Nicolau de Damasco,
Alexandre de Afrodísia, Temístio, João Filopono), conhecendo apenas pouco e
indiretamente Platão. E, sobretudo, porque importou o currículo de ensino
filosófico da escola de Alexandria, principal e direta fonte grega dos árabes (pp.
29-30). De acordo com esse currículo, a lógica fomentaria a parte primeira e
propedêutica do conjunto restante das disciplinas filosóficas teóricas: física
(entende-se a física de Aristóteles e zoologia), matemática (i.e., quadrivium:
aritmética, geometria, astronomia e música) e metafísica. A partir daí se
seguiriam as disciplinas práticas como a ética e a política (p. 31). De fato, foi
exatamente nesta ordem que seu opus magnum, o Livro da Cura, foi redigido. Isso
porém, como enfatiza Gutas, não era um mero modo de divulgação organizada
do saber, mas, antes, era para Avicena o reflexo exato da estrutura da realidade.
Tal concepção lhe permitiu ir além da tradição que o influenciou. Como coloca
Gutas de modo significativo: “Ele foi o primeiro filósofo a escrever sobre todo
conhecimento filosófico (o que ele chamou simplesmente de al-‘ilm, conhecimento)
dentro de uma composição única como um todo unificado: ele desenvolveu a
summa philosophiae” (p. 32, suas ênfases).
Gutas nos apresenta ainda duas importantes teses. A primeira, já clássica
e aderida largamente pela comunidade acadêmica, é que a concepção aviceniana
da justaposição entre verdade científica e a estrutura ontológica é racionalmente
justificada através de um conceito nuclear e orgânico em seu sistema: hads (pp.
36-7). Abdicando da escolha em tempos anteriores de traduzi-lo como
“intuição” (intuition), Gutas opta por uma expressão mais neutra, “adivinhar
corretamente” (guess correctly), para descrever o vocábulo que Avicena usa
quando se refere ao ato intelectual de alcançar o termo médio no argumento
silogístico redundando na conclusão. Trata-se de um importe direto de
Aristóteles (Segundos Analíticos I.34), mas que Avicena usa de uma maneira
integrada em seu sistema de conhecimento, fazendo uso dele não apenas em
seus tratados, mas, de modo mais pessoal, em cartas a discípulos e na
autobiografia para descrever a aquisição do saber inteligível pela alma (inclusive a
dele próprio!) e o progresso científico do homem na história. É pela noção de
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
6
hads, em outras palavras, que Avicena fornece de maneira racional, pois
silogisticamente fundada, o link entre o mundo, seus efeitos e causas, e o que
conhece o homem dele. A outra tese de Gutas, mais recente, vem chamar
atenção ao “empirismo racional” (pp. 39-40) do filósofo árabe. Tal expressão não
vem apenas a qualificar as marcantes e numerosas colocações sobre os sentidos
externos e internos, assim como sobre as premissas de experiência (tajriba;
mushâhâdât), mas também a noção de autorreflexão ou consciência (qadâyâ
i‘tibâriyya) que é famosamente exposta pelo argumento do homem suspenso no
ar, uma experiência de si. Para Gutas, esses elementos sustentam o eixo empirista
da filosofia aviceniana, que, de certo modo antecipa o que veremos em John
Locke, e que varre qualquer carga exegética forte da terminologia emanacionista
– ou, antes, neoplatônica – ou quiçá inatista que emprega. Uma leitura similar é
oferecida por Deborah Black nesta coletânea.
Pela noção de hads estar essencialmente integrada com a concepção
silogística do mundo, o artigo de Tony Street3 na coleção, intitulado Avicenna on
the Syllogism, vem agregar a nosso entendimento esse tema fundamental na obra
lógica do autor. Street nos mostra como Avicena sofistica aspectos da teoria da
proposição e demonstração aristotélicas dialogando fortemente com a tradição e
se desvinculando dela. No que tange à proposição, uma questão bastante
disputada era sobre como compreendê-la na ausência de um operador modal,
isto é, de um termo que define a necessidade, possibilidade ou impossibilidade da
afirmação ou negação expressa no enunciado (pp. 54-5). Tal condição “absoluta”
(mutlaqa), que caracteriza a ausência do operador, foi diferenciada por Avicena
em proposição “absoluta geral” (mutlaqa ‘amma) e “absoluta especial” (mutlaqa
khassa). Tomemos o exemplo de um enunciado universal afirmativo como “Todo
A é B”. Como o componente modal não é expresso, ela pode ser lida de modo
geral, como “Todo A é ao menos uma vez B”, ou de modo especial, como
“Todo A é ao menos uma vez B e ao menos uma vez não-B”. Ao inserir
operadores temporais para discriminar proposições desprovidas de modalidade,
3 STREET, T. “Avicenna on the Syllogism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 48-70.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
7
Avicena, segundo a interpretação proposta por Street, estabelece novas
condições de verdade para elas. Assim, as contrárias “Todo A é B” e “Nenhum
A é B”, embora tenham qualificadores opostos, podem ser verdadeiras, já que,
sendo uma delas tomada em sentido especial, A está ao menos uma vez incluso
no domínio de B e ao menos uma vez no de não-B. Neste “ao menos uma vez”,
Avicena implica, de modo amplo, não apenas a possibilidade, mas a
potencialidade, do que é A realizar-se ou de existir como tal (wujûd), como B (tal
como na proposição absoluta “Todo homem morre”). A divisão proposta está
emoldurada em uma ontologia e, portanto, tem uma aplicação que extrapola sua
lógica alcançando a metafísica (p. 58). No que concerne à demonstração, Avicena
confronta a chamada “regra da mais fraca” defendida por Teofrasto, segundo a
qual a força de uma conclusão em um dado silogismo é definida pela quantidade,
qualidade e modalidade do que é expresso na mais fraca das premissas. Avicena
contesta isso argumentando que a força da conclusão é definida pelo que
expressa a premissa maior com algumas exceções reconhecidas. Essa teoria será
criticada por lógicos posteriores, em especial pela adesão da ontologia à lógica
modal. Como pontua Street: “Avicena está construindo sua lógica modal em
torno de insights quanto a naturezas e as diferenças essenciais entre naturezas
que são reveladas pelas potencialidades diferentes e constituintes” (p. 62).
Adotados ou criticados, seus desenvolvimentos no campo da lógica têm um
tremendo impacto entre os filósofos árabes posteriores (pp. 63-5). Street ainda
fornece ao leitor, como apêndice, um guia bibliográfico bastante útil das obras
lógicas de Avicena incluindo estudos especializados sobre a temática (pp. 67-70).
Seguindo a ordenação do saber concebida por Avicena, depois da lógica, a
filosofia da natureza é colocada em escrutínio, a começar por Jon McGinnis4, que
analisa conceitos fundamentais da Física (al-Tabî‘iyyât) da Cura, em contraste com
a tradição peripatética. O primeiro deles é o de movimento (haraka), sobre o
qual Avicena estabelece dois sentidos por meio de uma distinção que é estranha
a Aristóteles. Um deles é o sentido que se tem na imaginação (khayâl), pelo qual
4 MCGINNIS, J. “Avicenna’s Natural Philosophy”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 71-90.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
8
é apreendido que um determinado corpo se deslocou de um ponto a a um
ponto b em determinado tempo t. Nessa perspectiva psicológica, o movimento é
um processo visto como acabado, já que visualiza o corpo movido sob uma
contagem temporal com início e fim. Quando trazido ao mundo concreto (fî al-
a‘yân), entretanto, onde o tempo cede estritamente lugar ao instante (sua fração
indivisível), o movimento é dimensionado em sua dinâmica de processo que se
realiza. Avicena conecta a noção de instante à de movimento, afirmando que há
movimento em um instante. Enquanto que tal afirmação parece contraintuitiva
por sugerir a violação da lei de contradição, Avicena responde a isso
reendossando ao seu leitor a distinção feita entre os sentidos de movimento: a
contradição existiria, de fato, se compreendêssemos t¹ e t² em um instante, uma
compreensão fundada no nível psicológico, mas entender o movimento
radicalmente na perspectiva extramental significa que, se um corpo se move, ele
se encontra em um estado x em um instante, e, necessariamente, em um estado
y em um instante seguinte (pp. 72-5). A distinção de perspectivas entre a
psicológica ou conceitual e a concreta ou física também desempenha um papel
crucial na reflexão de Avicena sobre o contínuo e o átomo, pois ele admite que
o contínuo – um composto material uniforme – pode ser potencialmente
dividido ao infinito, mas isso só enquanto experiência de pensamento. No que
tange à divisibilidade do corpo físico do domínio concreto, contra o que pensa
Aristóteles, isso seria impossível (pp. 75-8). Ao contrário do que as expectativas
poderiam indicar, porém, dessa mesma arquitetura teórica também uma vigorosa
refutação do atomismo é ensaiada, atomismo este reinante e racionalmente
sustentado pelos teólogos islâmicos (mutakallimûn) asharitas. Isso porque estes
não endossam apenas a existência de uma parte indivisível da matéria (com o que
concordaria o filósofo persa), mas, no que sustentam, a noção de átomo
compreende também a indivisibilidade conceitual. McGinnis nos apresenta a
refutação aviceniana a essa possibilidade pelo argumento de agregação (ta’lîf):
para um corpo se constituir enquanto uma magnitude espacial única é necessário
que suas partes se agrupem, se conglomerem quantitativamente de modo a
formar um corpo qualquer. Mas isso não seria possível se eles fossem
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
9
conceitualmente indivisíveis, pois, teoricamente, eles não teriam limites (então,
partes), o que é indispensável para que a sobreposição de um componente a
outro dê origem a um todo físico (pp. 78-81).
Na categoria da qualidade e da substância com relação aos compostos
físicos, Avicena exibe o impulso criativo que o deixou conhecido enquanto
filósofo da natureza. A relação entre os elementos naturais (terra, água, ar, fogo)
com as qualidades sensíveis primárias (frio-quente, seco-úmido) é bem delimitada
por nosso autor, que argumenta contra a natureza substancial dessa relação,
defendida por alguns comentadores aristotélicos gregos, e contra a ideia de que
a origem dos elementos naturais ocorre em virtude do grau extremo que suas
respectivas qualidades sensíveis atingem – a água sendo resultado dos extremos
do úmido e do frio, etc. A respeito deste último, Avicena contra-argumenta que,
fosse esse o caso, não seria possível nomear água este elemento que pode tanto
congelar quanto entrar em ebulição. De fato, também a transição da água para o
ar, ou qualquer outra mudança substancial, isto é, a mudança que envolve a
passagem de uma forma substancial a outra, marca o contexto em que Avicena
recorre ao que ficou conhecido no mundo latino por dator formarum, uma feliz
tradução de wâhib al-suwar, “doador de formas”. Trata-se de uma inteligência
celeste separada (o intelecto agente de suas obras psicológicas) que fica
responsável por emanar a nova forma substancial sempre que o composto
estiver preparado ou predisposto para tal. É a causação metafísica fortemente
presente para explicar fenômenos físicos (pp. 86-8).
O artigo de Peter Pormann5 traz luz a um campo basilar do pensamento
aviceniano ainda por muito a ser explorado e que lhe rendeu um epíteto de
peso, o de médico. Avicena não apenas teorizou, enquanto filósofo e médico,
sobre a medicina (tibb), mas também a levou ao domínio prático, cujo exercício
desde cedo, como dito, lhe garantiu acesso à elite política e intelectual. Sua
reflexão sobre ela no campo filosófico consiste, do ponto de vista mais amplo,
5 PORMANN, P. “Avicenna on Medical Practice, Epistemology, and the Physiology of the Inner Senses”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 91-108.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
10
em classificá-la no quadro de disciplinas do saber. Neste quesito, Pormann
esclarece, o espaço que a medicina ocupa oscila desde ser uma ciência natural
derivativa (al-hikma al-tabî‘iyya al-far‘iyya) na Epístola sobre a Divisão das Ciências
(Risâla fî Aqsâm al-‘ulûm) até, na tardia Os Orientais (al-Mashriqiyyûn), a de possuir a
condição mais periférica de ciência corolária ao lado de astrologia e agricultura
(p. 93). Enquanto médico, Avicena escreve sobre essa ciência na introdução do
massivo Cânon de Medicina (Al-Qânûn fî al-tibb), classificando-a nas dimensões
teórica (nazarî) e prática (‘amalî). O médico compreende e lida com os
elementos, misturas e humores que constituem os organismos físicos, suas
faculdades e partes anatômicas, os compostos que reagem e interagem com eles
(comida, bebida etc.), e os que trazem ao equilíbrio e à cura, preservando sua
saúde. Esse é o limite de sua atuação; ir além, isto é, buscar pela causa daquilo
que constitui seu campo de atuação é trabalho do filósofo, do filósofo da
natureza. (p. 94). Na terminologia utilizada podemos notar a ressonância de
Galeno, que foi bem conhecido nas terras islâmicas. De fato, declara Pormann,
Avicena desenvolve a dimensão empírica da ciência médica, tão marcada pela
tradição grega, e enfatiza a noção de experiência (tajriba), meio pelo qual ele, de
modo qualificado e organizado, orienta o teste de drogas ou medicamentos em
faculdades orgânicas diversas e registra seus efeitos (pp. 98-99).
É interessante observar como Avicena combina, de modo apurado, suas
visões de médico e filósofo em temas que se tocam, e nenhum outro se faz mais
influente que o dos sentidos internos (al-hawâss al-bâtina) da alma. Trata-se das
faculdades anímicas que lidam com os dados sensíveis uma vez que eles são
percebidos e veiculados pelos órgãos externos. Nelas repousa o limiar da
questão entre corpo e alma e sua interação. Como nos informa Pormann,
Galeno foi peça de leitura importante, mas também o foram Posidônio e o
cristão Nemésio de Emesa (ambos do século IV d.C.), que propagavam suas
reflexões quanto à centralidade do cérebro na relação corpo-alma a partir da
notória descoberta dos nervos feita pelos gregos (pp. 102-3). Avicena aprofunda
essa gama de conhecimentos e define cinco sentidos internos para a alma, que
estão sediados em três ventrículos cerebrais – frontal, médio, dorsal – e que
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
11
sofrem quando suas específicas sedes corpóreas são danificadas, como consta no
De anima (Kitâb al-Nafs) da Cura. Com efeito, a razão de 5:3, em vez de 3:3, é
apenas detectada pelo filósofo e passa despercebida ao médico. A função de
perceber noções derivadas dos dados sensíveis difere da função de armazená-las,
o que exige a duplicação das faculdades perceptivas: o sentido comum (al-hiss al-
mushtarak) e a estimação (wahm), a última das quais se fez bem conhecida na
tradição latina (pp. 105-7). Pormann nos mostra ainda como passagens textuais
sobre sentidos internos na obra médica e na filosófica de Avicena se sobrepõem
mostrando seu nível de sistematicidade e a base empírica de que fazia uso para
fundamentar suas proposições teóricas.
Ascendendo das faculdades internas corpóreas ao nível intelectual, Dag
Hasse6 nos apresenta seu escrito em contornos polêmicos, tratando do mais
debatido tema da epistemologia aviceniana. O problema é fundamentalmente
exegético, pois Avicena em diversas obras explica sua teoria da intelecção, ou
aquisição das noções (s. ma‘nâ) ou formas inteligíveis (s. al-sûra al-ma‘qûla),
empregando dois arcabouços terminológicos que advêm de tradições diferentes
e que são aparentemente contraditórios. Ele, em certos momentos, explicita que
o intelecto (‘aql) humano alcança as formas inteligíveis por um procedimento de
abstração (tajrîd) sobre as formas sensíveis (s. al-sûra al-mahsûsa) que estão
armazenadas na imaginação, despindo-as completamente da materialidade que as
torna particulares. Entretanto, em outras ocasiões de uma mesma obra, a
aquisição intelectual humana é descrita como o resultado da emanação (fayd) dos
conceitos universais a partir do intelecto agente (al-‘aql al-fa‘‘âl), que é uma
inteligência celeste separada do mundo natural, quando quer que o intelecto
humano esteja pronto ou disposto para tal. Emerge, pois, a questão: de onde
vêm os universais inteligíveis, e como precisamente o ser humano os adquire?
Hasse, na primeira metade de seu artigo, realça as tradições – respectivamente,
aristotélica e neoplatônica – sobre as quais são baseadas as diferentes descrições
oferecidas por Avicena mostrando a correspondente segmentação em duas
6 HASSE, D. “Avicenna’s Epistemological Optimism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 109-119.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
12
correntes de leituras pela bibliografia especializada, correntes que, de modo
geral, ao aderir a uma das descrições, classifica a outra como apenas metafórica.
Essa foi a postura do próprio Hasse anos atrás em favor da leitura abstracionista,
e que ele, na segunda metade, tenta ajustar para comportar o vocabulário
emanacionista.
Hasse explora a distinção feita por Avicena (cuja origem remonta a
Alexandre de Afrodísia) entre as formas que se encontram na matéria e as
abstratas, estas sendo os existentes separados, inteligências celestes e Deus (pp.
114-5). Ademais, as mesmas essências ou quididades que se encontram unidas à
matéria enquanto formas do composto natural existem em um estado abstrato
(mujarrad) no intelecto agente separado. Se as formas são naturais, o vocabulário
da abstração para as adquirir de modo imaterial, universal, está justificado e
endossa ainda uma vez mais o empirismo com o qual se compromete Avicena.
Mas, e quanto à emanação e às formas abstratas no intelecto agente? Hasse
argumenta que, ao sustentá-las, um outro problema é visado, qual seja, não a da
fonte primeira dos inteligíveis alcançados pelo indivíduo cognoscente, mas a da
origem última deles e, portanto, sua proveniência de ser. Desse modo,
“[e]pistemologicamente, o modo normal de adquirir as formas universais é a
abstração dos particulares, mas ontologicamente as formas vêm do intelecto
agente” (p. 115). O emanacionismo, Hasse destaca, desempenha ainda um papel
específico na teoria do conhecimento de Avicena, que é o de responder às suas
interrogações sem precedentes sobre a existência de uma memória intelectual
na alma. Um tal repositório para os inteligíveis é rejeitado longamente no De
anima em razão 1) da materialidade do corpo que não pode comportar a
imaterialidade de noções abstratas e 2) de o intelecto humano, imaterial, não
poder conservar aquilo que pensa, pois, ao se encontrarem em um substrato
(mawdu‘) intelectual, elas devem ser pensadas em ato. Aqui notamos a distinção
cara ao nosso autor entre percepção e preservação, o intelecto agente
aparecendo como o substrato no qual os inteligíveis abstraídos pelo homem são
“armazenados” e eternamente inteligidos em ato. Para Hasse, a teoria da
emanação vem exatamente resolver o problema da memória intelectual e
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
13
preservar o homem de, para reaver noções já adquiridas, ter de se engajar em
uma nova e laboriosa busca empírica com seus correlatos processos cognitivos
(pp. 116-7). Nessa tentativa de interpretação conciliatória, então, o intelecto
agente é inexistente na aquisição primeira pelo homem dos inteligíveis e vem, de
modo auxiliar, resolver um problema que o próprio Avicena detectou. Estando
exclusivamente a encargo e em poder do homem adquirir as noções universais
por si próprio, estamos, finaliza Hasse, frente a uma complexa teoria que, porém,
resguarda um “otimismo epistemológico” (p. 119), expressão que dá título ao
artigo.
A investigação sobre a epistemologia continua com Deborah Black7, que
explora as diferentes proposições de conhecimento classificadas por Avicena
segundo a noção de assentimento (tasdîq), que está ultimamente ancorada no ato
elementar da alma de reconhecimento de sua própria existência, exemplificado
pela famosa experiência de pensamento do homem suspenso no ar. O filósofo
nos oferece uma extensa lista (Black enumera 11, p. 124) de tipos de
proposições que variam em grau de certeza (yaqin), desde as autoevidentes,
como proposições matemáticas simples (“O todo é maior que a parte”), até as
baseadas em testemunhas (“A torre Eiffel está na cidade de Paris”), ou que nos
são ditadas por opiniões geralmente aceitas e autoridades (“Mentir é mau”). A
força epistêmica de tais proposições, em seus distintos graus, nos declara
Avicena, se afastando da tradição aristotélica, não está na necessidade (ou
contingência) lógica que elas transmitem enquanto objetos cognitivos, mas é
diretamente proporcional ao ato do indivíduo cognoscente de assentir à
informação que se lhe apresenta. O assentimento, conceito central aqui, se
refere ao ato mental de conferir valor de verdade ao objeto conceitualizado de
conhecimento (tasawwur). A certeza stricto sensu é retratada como o grau
máximo de assentimento a uma dada proposição. Avicena parece flertar com o
inatismo quando admite que as proposições de primeiro tipo, as matemáticas,
7 BLACK, D. “Certitude, Justification, and the Principles of Knowledge in Avicenna’s Epistemology”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 120-142.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
14
são acessadas pela “inteligência natural” (fitra) de modo “inato” (gharîza) e
“imediato” (fi l-hâl). A despeito desses designativos sobre aquelas proposições,
Black esclarece que ele os emprega apenas para designar que “a aquisição delas
requer nada mais do que a concepção de seus termos” (p. 126). Sua atitude de
conectar a força epistêmica com a realidade intrínseca do indivíduo cognoscente,
que detém sua certeza primeira e imediata na autoconsciência (um campo
promissor de estudos), permite render-lhe, segundo Black, o título de
fundacionalista moderado (p. 123), possuindo sugestivas aproximações com Kant
(p. 127).
Vale ressaltar que também os princípios éticos são compreendidos no
enquadrinhamento epistemológico oferecido por nosso autor, e que, portanto,
se o rigor lógico e a investigação empírica a eles não chegam no mesmo teor que
a outras premissas do saber, seu estatuto de verdade não chega senão até onde
o indivíduo consegue assentir. Em outras palavras, proposições como “Mentir é
mau”, ou as ditadas por autoridades religiosas e círculos sociais, por não
poderem ser verificadas seja racionalmente, seja empiricamente, têm a força
dada apenas pelo consenso comunitário ou veiculado pelos instrumentos sociais
de poder. Analisa Black: “O bem e mal dos atos humanos não podem ser
intuídos intelectualmente, mas, antes, o reconhecimento deles é condicionado
pela educação, pelo temperamento individual do agente moral e experiência, e
por várias outras influências sociais. Avicena não vê isso como problemático ou
relativista” (p. 136). Temos aqui uma das poucas reflexões ainda existentes sobre
a ética em Avicena, que neste quesito estava em conflito com os teólogos
mutazilitas, para os quais as noções de bem e mal têm uma realidade em si que
pode ser apreendida intelectualmente pelo homem.
A metafísica (mâ ba‘da al-tabîa) é o tema tratado por Stephen Menn8, que
explora pontos doutrinais face às influências que Avicena recebeu para elaborá-la
enquanto a ciência magna que coroa seu sistema de filosofia. E nenhuma figura se
fez mais importante em seu empreendimento do que al-Farabi, que escreveu
8 MENN, S. “Avicenna’s Metaphysics”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 143-169.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
15
sobre a finalidade da Metafísica de Aristóteles, sua composição e importância
para as outras ciências em Sobre os Objetivos da Metafísica de Aristóteles. A
tradição peripatética via dificuldade (e se vê ainda hoje) de conciliar os dizeres de
seu mestre segundo os quais a ciência da metafísica estuda o ser enquanto ser e
seus atributos per se (livro gama) com os de que seu tratamento concerne a
Deus, primeiro motor, e às substâncias imateriais separadas (livro lambda). Al-
Farabi engenhosamente concilia ambas as colocações fazendo uma distinção
fundamental na universalidade e imaterialidade dos objetos de que trata essa
disciplina: ela não estuda apenas o conceito mais universal, isto é, existente
enquanto existente, e seus correlatos, mas também investiga o ente mais
universal, causa de todas as coisas, Deus (p. 145). Avicena adota tal reflexão que
concilia nesta ciência universal, respectivamente, o título de “filosofia primeira”
(al-falsafa al-ûla), ignorado pelos primórdios da falsafa com al-Kindi, com o de
“teologia” (al-ilahîyyât). Esse projeto é arquitetado por Avicena com um ponto de
partida, o sujeito (mawdû‘) – o existente enquanto tal –, cuja existência não
precisa ser provada por se tratar de uma verdade elementar alcançada de modo
necessário e imediato pela alma, e um ponto de chegada, o objeto (matlûb) –
Deus –, cuja existência deve ser provada. Diversas noções como as de quididade,
unidade (que recebe importante parcela de atenção por Menn), causalidade,
universais, atributos divinos, profecia e vida futura, delineiam o campo de atuação
dessa ciência.
O ponto em que a metafísica aviceniana mais radicalmente difere da
aristotélica é que para o filósofo árabe (esse é, de fato, um consenso que resulta
da veia neoplatônica da escola de Bagdá) Deus, a causa primeira, não é o
primeiro motor, nem mesmo é motor ou causa de movimento, mas trata-se,
antes, da causa de existência (p. 146). Quanto à noção de existente enquanto
existente, Avicena a esquadrinha com um sofisticado arcabouço metafísico que
importa e dialoga com o que é propriamente encontrado já em terras islâmicas.
A noção de existente é tratada e relacionada com outras noções primeiras como
“coisa” (shây’) e “um” (wâhid). Mais notadamente, é analisando a própria
constituição metafísica do existente que a aclamada distinção entre quididade ou
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
16
essência (mahîyya) e existência (wujûd) tem seu lugar na metafísica aviceniana.
Neste quesito, Menn aponta de modo bem argumentado o débito existente para
com o Livro das Letras (Kitâb al-Hurûf), de al-Farabi, (uma obra crucial que poucos
estudam), e as obras do cristão jacobita Yahya ibn ‘Adi (m. 974). Menn sugere
que há uma correlação entre os conceitos de “existência afirmativa” (al-wujûd al-
ithbâtî) – que é usado por Avicena para expressar a realização ou instanciação da
quididade na alma, enquanto conceito, ou no mundo enquanto ente natural – e
“existência própria” (al-wujûd al-khâss) – que descreve a condição da quididade
por si mesma, desconsiderando qualquer instanciação sua – os quais remontam a
uma distinção feita por al-Farabi na referida obra (pp. 151-3). A existência
“afirmativa” se diferencia, como dito, entre o ser da quididade no mundo
exterior e na alma. Mas Avicena admite na Metafísica V.1 da Cura uma outra
existência da quididade – enquanto tomada em si mesma (e que está relacionada
com a existência própria) – que é a chamada “existência divina” (al-wujûd al-ilâhî).
Esta é uma noção já presente em Yahya ibn ‘Adi, mas que recebe outras
conotações em Avicena, que rejeita a independência ontológica separada das
quididades proposta por Ibn ‘Adi, pressuposto das formas platônicas (pp. 154-5).
Cumpre ainda notar que, contra as formas platônicas, Avicena incrementa sua
“maquinaria metafísica” com raciocínios que serão empregados em sua doutrina
dos universais e em sua argumentação de Deus enquanto existente necessário
(wâjib al-wujûd), a qual Menn sugestivamente aponta como sendo inspirada nas
Quaestiones II.28 de Alexandre de Afrodísia (pp. 158-9, n. 30).
Peter Adamson9 dá sequência à investigação metafísica explorando um de
seus pontos mais elevados, a prova da existência de Deus. De fato, a motivação
de sua contribuição se baseia em uma constatação aguçada: a famosa prova que
conduz à afirmação de um existente necessário, isto é, cuja existência deve
somente a si mesmo sem qualquer apelo exterior, não se constitui na prova de
Deus, pois este inclui atributos que não são imediatamente evidentes na noção
de wâjib al-wujûd, lit. “necessário de existência”. Em outras palavras, como
9 ADAMSON, P. “From the Necessary Existent to God”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 170-189.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
17
Avicena passa da noção de ser necessário por si para a de um ser que é
incausado, uno, causa primeira, intelecto, bom, generoso? Ele mesmo se mostra
consciente da necessidade de explicar essa investida, pois desenvolve uma
estratégia argumentativa (por ex. na Metafísica da Cura VIII.7) para chegar aos
atributos divinos, reconhecendo que, além da própria necessidade de existência,
e partindo dela, ele pode ser descrito (wasf) por meio de negações e de relações.
Adamson salienta essa estratégia e sugere um modo mais esquemático de
compreendê-la que faz referência a um traço interno e a um traço externo da
divindade (pp. 174-5).
Segundo Adamson, a extração de atributos por meio de negações e
relações é uma estratégia prefigurada na própria noção de existência necessária.
Quando Avicena trata do ser necessário, ele trata de um ente que tem e deve a
si mesmo sua existência ou, em outras palavras, não tem uma causa que o faça
existir (o traço interno). Por sua existência, chegamos então imediatamente a
seu caráter de ser incausado, um atributo negativo que serve de base para outras
negações. Por outro lado, as relações que o necessário de existência possui
remonta a algo outro que si mesmo (o traço externo), e que acaba por ser –
dado que, como Avicena argumenta, não há senão um ser necessário por si
mesmo – seu efeito: o caráter de ser causa se revela, pois, um atributo que serve
de base para outras relações. Adamson, então, expõe como esse esquema opera
na enumeração dos atributos de unicidade (pp. 177-9), simplicidade (179-81),
inefabilidade (pp. 181-2), intelecção (pp. 183-5) e bondade (pp. 185-8), este
último aparentemente o mais distante de ser extraído, mas que está firmemente
ancorado no estatuto de Deus enquanto causa e, portanto, na relação que possui
com seus efeitos. Deus, por portar e ser a própria existência, é a perfeição que,
em vez de contentar-se em retê-la apenas para si, distribui-a, ao criar, a todas a
suas criaturas. Isso situa Deus, para Avicena, “acima da perfeição” (fawqa al-
tamâm). Adamson observa que essa mesma expressão é empregada na pseudo-
Teologia de Aristóteles, mas no filósofo árabe vem acomodar um significado
diferente: o que assinala Deus como causa por excelência, como doador de
existência (p. 187).
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
18
Os três artigos que finalizam a coletânea traçam um painel geral da
fortuna de Avicena nas tradições árabe-islâmica, judia e latina. Robert
Wisnovsky10 assume a tarefa de delinear o campo mais obscuro e complexo de
estudos do nosso autor, trilhando pelo oriente (fora, portanto, do ofuscamento
causado pela ascensão e legado de Averróis na Andaluzia) o caminho desde a
morte de Avicena, atravessando os séculos até a era contemporânea.
Primeiramente, o que fica manifesto é que, no oriente, Avicena foi tomado como
paradigma filosófico reinante, e Aristóteles foi quase que totalmente deixado de
lado, pois o primeiro, além de desenvolver todos os pontos do pensamento
deste, ainda agregava e discutia temas caros à agenda islâmica, como Deus, suas
provas e seus atributos, criação do mundo e profecia. Baseado nisso, a postura
dos filósofos e intelectuais em relação a sua filosofia foi tripla: a de adesão total, a
de aceitação com ajustes e transformações e a de completa rejeição (pp. 193-7).
Wisnovsky pioneiramente explora o primeiro grupo que mostra a ascensão de
um verdadeiro “avicenismo”, que explicava e defendia as ideias de seu mestre.
Acontece que Avicena, por brilhante que tenha sido, não era infalível, de modo
que em certos temas de extrema importância seu pensamento não se mostrava
claro o suficiente ou antes era assomado de inconsistência, já que eram tratados
aparentemente de maneira diferente em obras distintas. Isso fez com que seus
seguidores empreendessem um esforço de conciliar Avicena com ele mesmo –
um esforço similar, alude Wisnovsky, ao que filósofos gregos do período
helenístico fizeram com Aristóteles (pp. 199-202). Com isso visava-se blindar a
filosofia de Avicena contra seus críticos, que não eram poucos. Ainda assim,
entretanto, mesmo o mais destacado dentre eles, al-Ghazali (m. 1111), que
escreveu a Incoerência dos filósofos (Tahâfut al-falâsifa) para mostrar as doutrinas
dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”) como racionalmente equivocadas e contrárias à
fé islâmica, absorveu fortemente dos escritos do nosso autor (sua lógica,
psicologia, bem como distinções e conceitos de sua metafísica) e incorporou seu
pensamento na escola sunita, no kalâm e na espiritualidade sufista. Essa
10 WISNOVSKY, R. “Avicenna’s Islamic Reception”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 190-213.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
19
“influência indireta”, que encontramos também em filosofias tão distintas como
as elaboradas por Suhrawardi (m. 1191) e Ibn ‘Arabi (m. 1240), de orientação
mística-iluminacionista, mostra o duradouro e onipresente impacto de Avicena
(pp. 205-7).
Wisnovsky chama a atenção para a peculiar recepção de Avicena de
acordo com suas obras. Duas se destacam: a Cura e as Indicações, esta, como
dito, a última grande e sistematizadora obra redigida de maneira hermética para
fins didáticos avançados. A despeito da gigantesca diferença entre as duas obras
no que tange a inteligibilidade de leitura e clareza de exposição de doutrina, as
Indicações ocuparam acentuadamente o cenário nos comentários sobre a filosofia
aviceniana por mais de cinco séculos após a sua morte, enquanto a Cura passou a
preponderar do século XVI ao XIX (uma lista dos comentadores é oferecida na
página 191). A opção dos pensadores posteriores se torna ainda mais curiosa
pelo fato de a maioria das obras sistematizadores de Avicena serem escritas de
modo claro, antecipando ou sumarizando a Cura (Kitâb al-Shifâ’), como o Livro da
Salvação (Kitâb al-Najât) e os Elementos de filosofia (‘Uyûn al-hikma), entre outras.
A razão disso, analisa Wisnovsky, é que, no que se refere às Indicações, “seu
estilo compresso e opaco de composição permitiu aos comentadores provocar
implicações filosóficas do modo que eles queriam, ao contrário das mais
explícitas articulações na Najât e na ‘Uyûn al-hikma, que resistiam à interpretação
criativa. Isso deu a eles uma liberdade interpretativa que não teriam tido com a
Najât e a ‘Uyûn al-hikma, e, a fortiori, com a Shifâ” (p. 198). De fato, o grupo dos
avicenianos e o dos que extraíram seus pensamentos a partir de embates
teóricos com o filósofo persa mantinham em contínua atividade o ambiente
intelectual islâmico após o século XII segundo uma agenda exegética que acabou
perdendo força apenas a partir do século XVI, embora tenha seguido atuante. O
esfacelamento do império – sobretudo com a onda xiita no Irã relacionada à
dinastia safávida, e a consequente expulsão dos pensadores sunitas que tanto
beberam do saber aviceniano – enfraqueceu esse movimento, o que foi
alimentado por uma revisão do currículo de ensino nas madrasas (escolas
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
20
sunitas) em todo o mundo islâmico segundo uma orientação mais religiosa (pp.
209-11).
Gad Freudenthal e Mauro Zonta11 qualificam a recepção de Avicena entre
os filósofos e cientistas judeus de um under-appreciated enigma (p. 214) e
procuram minimizar isso com sua contribuição. Cumpre dizer, antes de tudo,
que entre os judeus há uma peculiaridade extra ao fato de que, como no caso
dos muçulmanos, haver uma extensão geográfica do oriente (Oriente Médio) ao
ocidente (Andaluzia): eles redigiram filosofia tanto no idioma árabe quanto no
hebraico. Portanto, a pergunta sobre quais ideias e doutrinas foram conhecidas
diretamente de Avicena pelos judeus é diferente da questão sobre quais de suas
obras foram traduzidas do árabe para o hebraico.
Do lado árabe, Moisés Maimônides foi a figura principal do pensamento
medieval judeu, além de ter sido médico. Ele declara conhecer Avicena em sua
mais importante obra, o Guia dos Perplexos, e mesmo estimá-lo (p. 216). Esse
apreço é justificado por seu débito em temas como teologia negativa, distinção
entre essência e existência e profetologia, uma constatação feita pelo estudioso
Sholomo Pines e aderida pela comunidade (p. 217). Entretanto, o “enigma”
começa a se mostrar quando se tenta rastrear que escritos exatos o filósofo
judeu conhecia e que tipo de contato foi esse. Além de não informar isso com
clareza, Maimônides não raro conflui os nomes de Aristóteles e Avicena,
atribuindo teses caras deste – como a noção de “existente necessário” – ao
Estagirita. Entretanto, como é bem documentado, um texto basilar que tinha
nesta época uma forte circulação no meio andaluz parece oferecer as pistas: são
as Intenções dos filósofos (Maqâsid al-falâsifa), de al-Ghazali, que não deve ser
confundido com sua Incoerência dos filósofos. Nas Intenções, al-Ghazali sumariza as
principais doutrinas dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”), para, em seguida, refutá-las
em sua Incoerência. Esse prelúdio teve sua fortuna como um excelente manual de
exposição do pensamento filosófico em vigor. E Maimônides, testemunho desse
11 FREUDENTHAL, G., ZONTA, M. “The Reception of Avicenna in Jewish Cultures, East and West”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 214-241.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
21
livro, sem reputar sua verdadeira procedência, atribuiu as ideias filosóficas aí
contidas diretamente a Avicena. Essa é uma leitura bem acolhida pelos
pesquisadores acadêmicos, mas Freudenthal e Zonta avançam uma sugestão do
porquê de o nome de Aristóteles ser pronunciado pelo pensador judeu neste
contexto: “na Andaluzia, Aristóteles continuou a ser visto como o líder e a fonte
principal do modo filosófico de pensamento. Maimônides (e seu meio) pode ter
associado as doutrinas encontradas na Maqâsid com o nome emblemático de
Aristóteles. Similarmente, quando Maimônides passa a julgar a filosofia de
Avicena, sem dizer qual, se qualquer, obra ele tinha em mente, ele pode
simplesmente estar expressando uma das mashhurât – ideias geralmente aceitas –
correntes e aceitas em seu meio cultural geral andaluz” (pp. 218-9). Al-Ghazali,
assim, desempenha um papel crucial na difusão do pensamento de Avicena, um
papel (até onde se consegue visualizar no estado corrente de pesquisas) mais
importante que o do próprio Avicena, de cujas obras filosóficas não se sabe se, e
ao certo quais, estiveram no painel intelectual judeu (p. 223).
Isso não impediu o nosso autor de ter tido declarados aderentes que dão
pistas de um contato direto: cumpre citar em especial Abraham Ibn Da’ud (este,
com toda probabilidade, o tradutor de Toledo de nome Avendauth, m. 1180) e
Moses ha-Levi (m. séc. XIII), que mostram ter uma familiaridade com a Salvação
(pp. 221-2). Do lado oriental, a evidência é patente: Ibn Kammuna (m. 1284),
nascido no Iraque, poderia ser chamado de aviceniano e, de fato, como era
costume intelectual corrente nessas terras, também escreveu um comentário às
Indicações (pp. 219-20). Ao todo, porém, o acesso a Avicena é difuso e tem um
quadro difícil de determinar pelo fragmentado e pouco confiável conjunto de
menções não-contextualizadas, o mesmo ocorrendo, no meio judeu arabófono,
com o Cânon de Medicina.
Do lado hebraico da filosofia judaica temos inicialmente um acesso ainda
mais mediatizado a Avicena. Não apenas al-Ghazali, com suas Intenções,
extensamente difundidas em hebraico, mas outra personagem ocupava o centro
da filosofia entre os judeus: Averróis. Seus escritos tiveram um profundo
impacto entre os intelectuais da Andaluzia e, como consequência, suas epítomes
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
22
e grandes comentários foram traduzidos para servir de ponte ao pensamento de
Aristóteles. De fato, nas epítomes, o jovem Averróis tinha sua ótica exegética
em muito inspirada por Avicena. Ademais, e em contrapartida, não apenas suas
ideias revistas em seus grandes comentários tardios, mas também seu
“aristotelismo” antiaviceniano concentrado na Incoerência da Incoerência (Tahâfut
al-tahâfut) (resposta à Incoerência dos filósofos, de al-Ghazali) foi conhecido em
hebraico (pp. 226-7). Assim, embora Avicena tenha sido ofuscado pela tradução
de obras mais condizentes com o ambiente geográfico e intelectual, seu nome foi
bastante pronunciado em hebraico, ainda que de maneira indireta. Uma dose de
contrabalanço a essa onda de Avicena malgré lui, destacam Freudenthal e Zonta,
foi dada por Shem Tov Ibn Falaqera (m. 1195), que, em sua erudição, tinha certa
preocupação de retornar a fontes e assim o faz quando realça o débito de
Maimônides ao filósofo de Bukhara (pp. 232-4). A medicina, porém, não teve o
mesmo destino, pois seu Cânon de Medicina, embora traduzido tardiamente (séc.
XIII), foi lido em hebraico em mais de 150 manuscritos parciais e completos, o
que ocorreu devido ao florescimento das universidades europeias e
intelectualidade latina. Nesta época, ironicamente, ficava claro que o Avicena
árabe para os judeus já estava distante, pois o Cânon de Medicina, “a obra
hebraica de ciência mais bem disseminada”, foi traduzido do latim (pp. 236-7).
Ao contrário do que acontece com os meios islâmico e judaico, a
recepção de Avicena na tradição filosófica latina com o movimento de tradução
iniciado em meados do século XII em Todelo tem sido um campo mais
privilegiado de atenção. Porém, visto que a quantidade de publicações sobre a
influência aviceniana nos latinos é desproporcional com o que de fato se sabe e
se tem de fonte primária crítica publicada, Amos Bertolacci12 nos traz uma
pertinente avaliação na primeira parte de seu artigo. É bem reconhecido que a
Cura de Avicena foi traduzida na Espanha em sua maior parte (lógica, física,
metafísica; com exceção, portanto, da parte matemática) assim como o Cânon de
12 BERTOLACCI, A. “The Reception of Avicenna in Latin Medieval Culture”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 242-269.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
23
Medicina. O fato de a comunidade acadêmica começar a ter acesso a edições
críticas dessas traduções apenas a partir da década de 1960 (com o projeto
Avicenna Latinus, coordenado por Simone Van Riet) não impediu que rótulos
generalizantes pouco fundados para classificar tendências ou pontos doutrinais –
como o de “agostinismo avicenizante”, para citar apenas a renomada expressão
de Étienne Gilson – viessem à tona (pp. 243-4). Do que está disponível do
Avicena latino, muito há ainda por ser publicado – a lógica ainda é matéria
totalmente ignorada – para que seja possível uma compreensão abrangente e
completa do tema da influência, e a fim de que evitemos a abordagem até aqui
desnivelada e, por extensão, potencialmente enviesada de estudos (a área da
psicologia recebe a maior fatia) (p. 248). Efeito grave disso é a lacuna
historiográfica existente entre o final do século XII e início do século XIII com os
primeiros contatos com a obra aviceniana – antes de figuras como Guilherme de
Auvergne (m. 1249) e Alberto Magno (m 1280) –, a começar por escritos
filosóficos de um de seus eminentes tradutores, Domingo Gundisalvo (m. 1190),
período que só agora começa timidamente a ser investigado (pp. 249-50).
Dado o status quaestionis da pesquisa sobre a influência de Avicena,
Bertolacci, na segunda parte, nos oferece a agenda para a qual a comunidade
deve atentar na busca de um diagnóstico e narração acurados. A orientação
ideológica por trás do Avicena latino deve ser precisamente considerada para
uma justa avaliação da questão. Bertolacci nos oferece exemplos preciosos
focando na metafísica. Quanto à tradução, ocorre que na Prima Philosophia (título
vertido da Metafísica da Cura) o rico extrato de vocábulos que Avicena emprega
para designar a existência como concomitante necessário (lazim) da essência é
quase que sumariamente expresso pelo único verbo accidere. Acontece que essa
escolha (proposital ou não), que dá seguimento às críticas difundidas de al-
Ghazali e Averróis contra a teoria da distinção entre a essência e a existência,
ajudou a difundir que, para o filósofo persa, a relação da existência para com a
essência é de natureza acidental (pp. 256-8). Ademais, há um claro propósito
“desislamizador” na concepção da Prima Philosophia, visto que parte do livro X,
onde um vasto uso de vocabulário islâmico é feito para descrever a filosofia
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
24
prática, é suprimido pelo tradutor (p. 259). De modo abrangente, a orientação
ideológica afeta a visão sobre o papel de Avicena no painel filosófico corrente.
Ao contrário do que ocorre na fortuna pós-aviceniana no oriente islâmico, no
mundo latino, Aristóteles era o expoente maior, mas se fazia necessário
encontrar outros materiais que esclarecessem seu pensamento. Segundo
Bertolacci, a escolha da Cura para ser traduzida, pela sua estrutura esquemática e
fama de síntese peripatética, ocorreu porque ela atendia a esse propósito. Essa
missão, entretanto, será transferida aos longos comentários de Averróis, que se
tornaram bastante influentes. Essa transmissão da autoridade exegética fez a
recepção de Avicena nos primórdios da filosofia na Europa pós-Averróis ser
realizada em fases (pp. 260-1). Ademais, a figura de al-Ghazali, que foi tomado
como “discípulo” de Avicena por ter sido conhecido somente por suas Intenções,
desempenhou um papel considerável na difusão do nosso autor (pp. 264-6). O
interessantíssimo embate entre Avicena e Averróis no mundo latino é ainda
explorado por Bertolacci como tendo despertado diferentes reações com
respeito ao pensamento do filósofo persa nos séculos XIII e XIV, isso depois de
já ter havido, quando as obras do árabe andaluz ainda estavam se tornando
familiares, uma audaciosa tentativa de harmonização dos dois empreendida por
Alberto Magno (pp. 266-8).
A imponente grandeza e o valor de Avicena na história das ideias são
muito bem representados no conjunto editado por Peter Adamson. Cumpre
frisar que tão importante quanto a exposição clara e rigorosa do que se sabe
dele, a apresentação daquilo que não se sabe – sobretudo no que tange à
recepção posterior de seu pensamento e à parcimônia por parte dos intérpretes
em suas conclusões – é uma marca que transforma o título editado por Peter
Adamson em um confiável guia de estudo e pesquisa.
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
AMERINI, F. Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità. Pisa: Edizioni ETS,
2013, 223 p. (Coleção Philosophica, volume 117, série Viola)
Pedro Thyago dos Santos Ferreira*
___________________________________________
Há disputas acaloradas entre os medievalistas acerca do papel da
intencionalidade na epistemologia tomista. Para alguns, a intencionalidade é
condição necessária e suficiente para que haja conhecimento. As formas
intencionais são intrinsecamente representativas (e, logo, cognoscíveis) e, por
isso, só podem ser encontradas nos sentidos e no intelecto.1 Para outros, a
intencionalidade possui um papel subalterno, pois a condição necessária e
suficiente para o conhecimento é a imaterialidade. As formas intencionais se
tornam representativas e cognoscíveis quando unidas a substratos imateriais, ou
seja, a faculdades cognitivas.2 Fabrizio Amerini está entre os defensores do papel
crucial da imaterialidade na epistemologia do Aquinate (pp. 73-74). Mesmo assim,
admite que a intencionalidade permanece como tema importante e
exaustivamente retomado no corpus thomisticum. Por isso, Tommaso d’Aquino e
l’intenzionalità terá como objetivo investigar a teoria do conhecimento de Tomás
de Aquino sob este aspecto.
* Mestrando no Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista da Capes. 1 Cf. PASNAU, Robert. Theories of Cognition in the Later Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1997; BROWER, Jeffrey E./BROWER-TOLAND, Susan. “Aquinas on Mental Representation: Concepts and Intentionality”, Philosophical Review 117 (2008), pp. 193-243; GEACH, Peter. “Form and Existence” In: DAVIES, Brian (ed.). Aquinas's Summa Theologiae: Critical Essays. Lanham: Rowman and Littlefield, 2006, pp. 111-128 (publicado originalmente em 1955). 2 Cf. WIPPEL, John F. “Thomas Aquinas and the Axiom ‘What is Received is Received According to the Mode of the Receiver’” In: Id. Metaphysical Themes in Thomas Aquinas II. Washington: Catholic University of America Press, 2007, pp. 113-122; MOSER, Robbie. “Thomas Aquinas, esse intentionale, and the congnitive as such”, The Review of Metaphysics 4 (2011), pp. 763-788; HERNÁNDEZ, Fernando Gabriel. “El criterio de cognoscibilidad en Tomás de Aquino: entre la intencionalidad e la inmaterialidad”, Revista de Humanidades 30 (2014), pp. 111-127.
26AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
Sua obra se divide em cinco capítulos. O primeiro apresenta algumas
linhas teóricas que guiarão a investigação como um todo. O segundo, dividido
em quatro partes, apresenta a teoria do conhecimento tomista, com especial
ênfase na descrição das etapas do processo cognitivo. O terceiro e o quarto,
partes centrais da obra, investigam de que modo a intenção se relaciona com as
espécies inteligíveis e os conceitos (capítulo 3) e com o
representacionalismo/realismo e a categoria de relação (capítulo 4). O último
capítulo, composto de três partes, visa apresentar os pontos de contato entre
intenção e linguagem mental/expressa. Nesta resenha procuraremos apresentar,
e na medida do possível discutir, temas que consideramos relevantes ou
controversos em cada capítulo. Nosso método de exposição será o seguinte:
elencaremos, para cada capítulo, os assuntos a serem abordados; depois,
apresentaremos a postura do autor, confrontando-a com outros comentadores
citados ou não por ele; por fim, faremos, quando nos for possível, um balanço
crítico de suas teses.
No primeiro capítulo, Amerini afirma que “os historiadores da filosofia
medieval sempre atentaram ao tema da intencionalidade” (p. 29).3 Desta atenção,
nasceram dois modos de lidar com a filosofia medieval e de relacioná-la com a
atual. A primeira, chamada de “Tese da Perenidade da Filosofia”, afirma que a
filosofia deseja resolver sempre os mesmos problemas, ainda que em contextos
históricos e com formulações diferentes. A segunda, de nome “Tese do
Antianacronismo”, sustenta que contextos e formulações diferentes implicam
conteúdos filosóficos diferentes, de modo que os problemas da filosofia medieval
nem sempre serão os mesmos dos de outras épocas. Embora Amerini não opte
por uma linha, a maneira como articula filosofia atual e medieval deixa claro que
seu ponto de análise é o primeiro. Para ele, o diálogo e a aproximação entre
filosofia medieval e moderna/contemporânea são profícuos para ambos os lados,
pois aquela tem intuições filosóficas úteis ao pensamento
3“Gli storici della filosofia medievale hanno sempre prestato attenzione al tema dell’intenzionalità”.
27AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
moderno/contemporâneo, e este oferece meios para uma análise mais
problematizada da filosofia medieval (p. 41).
O segundo capítulo expõe a teoria do conhecimento de Tomás. Há dois
assuntos que merecem especial atenção: a prova da imaterialidade do intelecto e
o processo de recepção das formas.
Amerini apresenta o argumento da imaterialidade do intelecto (ausência
de órgão corporal) assim: “se o intelecto está em potência para todas as formas,
então não pode ter em ato nenhuma forma em particular, portanto nem sequer
a da materialidade ou corporeidade, pois se possuísse tal forma ela impediria o
conhecimento das outras” (pp. 63-64).4 Ele salienta que há neste raciocínio uma
aparente confusão entre natureza real e intencional, pois o fato de não ser
constituído dos objetos que irá conhecer implica que o intelecto não tem
previamente as formas intencionais daqueles objetos (do contrário, já os
conheceria em ato) e não que a sua natureza, enquanto intelecto, seja imaterial.
Assim, a inferência, de fato, não vai, sem passos intermediários, do que o
intelecto conhece para o que ele é. Esta dificuldade ficou conhecida como falácia
de conteúdo (content fallacy) e foi observada especialmente por Joseph Novak e
Robert Pasnau.5
O comentador, no entanto, oferece três alternativas para fundamentar a
inferência e fugir da falácia. Primeiro, o intelecto recebe formas materiais e
imateriais. Se ele fosse material, seria uma faculdade sensitiva e só receberia
formas materiais. Disto se segue que ele é imaterial. Segundo, tendo em vista que
a operação segue o modo de ser, se o intelecto recebe formas imateriais, então
ele é imaterial. Terceiro, conhecer equivale, para o intelecto, à posse de uma
forma inteligível. Por estar em potência para todas as formas, o intelecto pode
recebê-las sem alteração em sua natureza. Ainda que a presença inteligível de
4 “se l’intelletto è in potenza a tutte le forme, l’intelletto non può avere in atto nessuna forma in particolare, quindi nemmeno quella della materialità o corporeità, perché se avesse tale forma, essa impedirebbe la conoscenza delle altre forme”. 5 Cf. PASNAU, Robert. “Aquinas and the Content Fallacy”, The Modern Schoolman LXXV (1998), pp. 293-314; NOVAK, Joseph. “Aquinas and the Incorruptibility of the Soul”, History of Philosophy Quarterly 4 (1987), pp. 405-421.
28AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
uma forma não altere a sua natureza, uma presença real, ao contrário, a alteraria.
Logo, o intelecto não pode ser material.
Contudo, tais argumentos, do modo como os entendemos, não alcançam
o sucesso desejado, pois continuam a confundir a natureza intencional do
intelecto com a sua natureza real. No primeiro caso, defende-se que faculdades
materiais, como os sentidos, recebem formas que representam naturezas
materiais e que faculdades imateriais, como o intelecto, recebem formas que
representam naturezas materiais e imateriais. Ora, aqui continua a ocorrer
passagem imediata do conteúdo da faculdade para sua natureza. No segundo, a
imaterialidade é, ao mesmo tempo, tomada no sentido de inteligibilidade
(aspecto intencional) e de ausência de materialidade (aspecto real). No terceiro,
passa-se diretamente da presença intencional das formas, justificada pelo fato de
não alterarem a essência do intelecto, para a natureza real imaterial do intelecto.
Por estas três observações evidencia-se que as respostas de Amerini são também
vítimas da falácia de conteúdo.6
Outro tema importante deste capítulo é o processo de recepção das
formas intencionais por parte do intelecto e dos sentidos. Uma das dificuldades
deste processo consiste em descrever como se chega às espécies inteligíveis, que
representam a essência do objeto, através da abstração dos fantasmas, que
representam acidentes. Conforme o comentador, o mais natural seria que as
espécies inteligíveis representassem a essência destas características acidentais e
não a essência em si do objeto. Por isso, ele apresentará a seguinte hipótese: as
espécies sensíveis são formas intencionais sensíveis que representam
características acidentais do objeto. O fantasma é o conjunto ordenado delas em
uma imagem. O papel do intelecto agente, pela abstração, será dar enfoque às
características acidentais que apresentam relacionamento direto com a essência
6 Para uma interessante discussão sobre o posicionamento de Tomás e uma tentativa de reconstrução de seus argumentos cf. KLIMA, Gyula. “Aquinas’s Proofs of the Intellect from the Universality of Human Thought”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 19-28; PASNAU, Robert. “Comments on Gyula Klima, ‘Aquinas’s Proofs of the Immateriality of the Intellect’”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 29-36; KLIMA, Gyula. “Reply to Bob Pasnau on Aquinas’s Proofs for the Immateriality of the Intellect”, Proceedings of the Society for Medieval Logic and Metaphysics 1 (2001), pp. 37-44.
29AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
do objeto através de dois critérios: (a) tais acidentes devem ser causa explicativa
dos outros acidentes e (b) devem se referir ao objeto como um todo. No
entanto, as informações selecionadas, que formam a espécie inteligível, são
confusas, pois ainda não se sabe claramente a que tipo de essência se referem.
Pela paulatina ação do intelecto, a essência à qual estes acidentes se relacionam
torna-se mais nítida, até que o intelecto esteja apto a formar um conceito que a
manifeste.
Todavia, parece-nos que, ao invés de solucionar o problema, o autor o
mantém. A noção de espécie inteligível proposta ainda é a de uma forma
intencional dos acidentes do objeto, embora o seja daqueles mais fundamentais.7
Ademais, a dificuldade percebida na passagem de formas intencionais que
representam acidentes para formas intencionais que representam essências
permanece. Se antes ela estava na passagem dos fantasmas à espécie inteligível,
agora ela está no caminho da espécie inteligível, que representa os acidentes
relacionados à essência, para o conceito, que representa a essência enquanto tal.
Os capítulos 3 e 4 são, como já dissemos, o núcleo da obra. Pela
amplitude dos temas tratados, enfatizaremos dois assuntos, a saber: de um lado,
a relação entre conceito e espécie inteligível e, de outro, o
representacionalismo/realismo de Tomás.
Para Tomás, o conhecer é uma ação imanente, cumprida e sofrida pelo
sujeito, que não ocasiona efeitos externos a si. No entanto, ele apresenta algo
em comum com a ação transitiva, devido à produção do conceito, algo diferente
7 O que o autor defende parece estar em descontinuidade com a posição de Tomás, por exemplo, em Quodl., VIII, q. 2, art. 2 [Taurini, 68416]: “quia sensus et imaginatio nunquam pertingunt ad cognoscendum naturam rei, sed solummodo accidentia, quae circumstant rem; et ideo species quae sunt in sensu vel imaginatione, non repraesentant naturam rei, sed accidentia eius tantum, sicut sensus repraesentat hominem quantum ad accidentalia, sed intellectus cognoscit ipsam naturam et substantiam rei. Unde species intelligibilis est similitudo ipsius essentiae rei, et est quodammodo ipsa quidditas et natura rei secundum esse intelligibile, non secundum esse naturale, prout est in rebus. Et ideo omnia quae non cadunt sub sensu et imaginatione, sed sub solo intellectu, cognoscuntur per hoc quod essentiae vel quidditates eorum sunt aliquo modo in intellectu.”. Sobre a diferença entre as formas intencionais recebidas pelo intelecto e pelos sentidos cf. KENNY, Anthony. “Intentionality. Aquinas and Wittgenstein” In: DAVIES, Brian (ed.). Thomas Aquinas. Contemporary Philosophical Perspectives. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 248.
30AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
do próprio ato de inteligir, mas que não é um produto exterior à ação. O
conceito (conceptus) teve interpretações diferentes ao longo das obras do
Aquinate. Amerini observa que em seus primeiros escritos,8 o filósofo medieval
endossa que a espécie inteligível, a operação intelectual e o objeto são três
fatores necessários para que ocorra o conhecimento, parecendo assimilar o
conceito à espécie. No entanto, em seus escritos mais maduros,9 defende que
para haver conhecimento são necessários o objeto, a operação intelectual, o
conceito e a espécie inteligível, definindo esta como aquilo pelo qual se conhece
(id quo intelligitur) e aquele como aquilo que é conhecido (id quod intelligitur). O
que certos autores, como Pasnau,10 veem como uma evolução de pensamento,
Amerini entende como uma clarificação ou precisão de certas intuições já
presentes nos escritos mais jovens do filósofo (p. 133).
Podemos sintetizar as semelhanças e diferenças entre espécie inteligível e
conceito, tal como expostas pelo autor, afirmando que são semelhantes
enquanto formas intencionais imateriais que representam uma determinada
essência e que têm o intelecto como sujeito. Contudo, são diferentes, porque a
espécie é uma forma intencional recebida pelo intelecto que possui informações
ainda confusas e implícitas acerca da essência do objeto; já o conceito é uma
forma intencional produzida e proferida pelo intelecto (verbum mental) que
apresenta clara e explicitamente as informações antes confusas e obscuras
contidas na espécie inteligível. O problema desta explicação é que, se a unirmos
com as intuições apresentadas no capítulo 2 sobre a relação entre as espécies
inteligíveis e os fantasmas, chegaremos à conclusão de que as espécies
representam os acidentes ligados à essência do objeto, e não a sua essência.
Como consequência, o conceito será uma representação clara e explícita destes
acidentes, mas não da essência.
O último assunto relevante dos capítulos 3 e 4 diz respeito à discussão
sobre o modelo de conhecimento em Tomás de Aquino. Alguns pensadores,
8 Por exemplo, In Sent., I, d. 27, q. 2, art. 2, qla. 1. 9 Por exemplo, Cont. Gent., I, 53; IV, 11; De Pot., q. 8, art. 1. 10 Amerini indica PASNAU, Theories of Cognition in the Later Middle Ages, 1997, pp. 195ss.
31AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
como Claude Panaccio,11 põem-no entre os representacionalistas; outros, como
Étienne Gilson,12 entre os realistas. Amerini, particularmente, tende a ver as duas
posturas como possíveis e, por isso, mostra em que medida o filósofo medieval
está em uma ou noutra classificação.
Esta postura, deveras interessante, é apresentada de maneira mais clara
na conclusão e, por isso, a seguiremos neste momento (pp. 212-219). Tomás é
um representacionalista se por esta etiqueta se entender que a representação é
crucial e indispensável em sua teoria do conhecimento, ainda que tal
representação não seja o objeto primeiro do conhecimento intelectual, mas
antes a coisa externa. Nesta versão simples do representacionalismo, o filósofo
medieval defenderia que há descontinuidade entre o mundo externo material e o
intelecto imaterial, de modo que o intelecto agente deve formar uma
representação da coisa capaz de estar no intelecto possível. Ao contrário, ele é
um realista direto se por esta classificação se entender que a coisa externa é
conhecida por meio da representação e que esta não é conhecida anteriormente
à coisa e nem do mesmo modo que ela. Tomás defenderia, assim, um realismo
direto modificado, no qual se prega que o objeto não pode estar na mente tal
como existe fora dela e que há semelhança entre a forma presente na coisa e a
presente no intelecto.
O quinto e último capítulo visa tratar da natureza linguística da operação
intelectual e da relação entre linguagem e intencionalidade. Nele, Amerini é mais
conjectural e discute com autores que negam a concepção de linguagem mental
em Tomás de Aquino, especialmente Robert Pasnau. Nossa ênfase será em sua
disputa com Pasnau e na hipótese de Amerini.
De acordo com Pasnau, não é possível dizer que, para Tomás, o
pensamento tem estrutura linguística, porque ele só se organiza desta maneira
11 Amerini indica PANACCIO, Claude. “Aquinas on Intellectual Representation” In: PERLER, Dominik (ed.). Ancient and Medieval Theories of Intentionality. Leiden/Boston/Köln: Brill, 2001, pp. 185-201. 12 O comentador indica GILSON, Étienne. Réalisme thomiste et critique de la connaissance. Paris: Vrin, 1939.
32AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
depois que o sujeito aprende uma determinada língua.13 Uma das dificuldades da
tese de Pasnau, segundo Amerini, é deixar sem explicação o fato de o primeiro
falante, antes de qualquer registro oral e escrito, conseguir passar do
pensamento à linguagem oral e escrita sem antes ter aprendido uma língua. Por
isso, diferente do que Pasnau pensa, o autor afirma que “Tomás estaria disposto
a aceitar que a simples posse de conceitos (junto com a admissão da capacidade
de nossa mente de poder exercitar operações sobre estes) seria condição
suficiente, além de necessária, para poder introduzir e falar uma linguagem com
sucesso” (p. 191).14
Tal hipótese, no entanto, não é apresentada de modo sistemático pelo
filósofo medieval. Seguindo o capítulo, poderíamos enumerar algumas intuições
que Amerini percebe em Tomás e que favorecem a sua posição. Em primeiro
lugar, os conceitos são encarados como definições e proposições mentais,
denotando a existência de definições e proposições na linguagem. Segundo,
mesmo que a linguagem oral/escrita seja algo com o qual o homem entra em
contato antes de atribuir estrutura linguística ao pensamento, é o mecanismo
linguístico presente no pensamento que fornece as categorias necessárias para a
formação da linguagem oral/escrita. Terceiro, as partículas de ligação presentes
na linguagem oral/escrita (conectivos e quantificadores) não representam
aspectos da realidade externa, mas sim composições, feitas pelo intelecto, entre
conceitos simples. Portanto, a atividade intelectual e as formas intencionais são
naturalmente linguísticas, porque são expressas pela linguagem falada e escrita e
também porque se referem à realidade externa e funcionam de modo
tipicamente linguístico. Enquanto hipótese, a postura de Amerini é
argumentativamente bem elaborada e interessante, espelhando uma tentativa, já
feita em outro texto seu, de mostrar que, sobre o tema da linguagem mental,
Ockham retomou certas teses tradicionais e presentes implicitamente em
13 O autor indica PASNAU, Robert. “Aquinas on Thought’s Linguistic Nature”, The Monist 4 (1997), pp. 558-575. 14 “Tommaso sarebbe stato disposto ad accettare che il semplice possesso dei concetti (insieme con l’ammissione della capacita della nostra mente di poter esercitare operazioni su di essi) sia una condizione sufficiente oltre che necessaria per poter introdurre e parlare un linguaggio con successo”.
33AMERINI,F.Tommasod’Aquinoel’intenzionalità
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
Tomás.15 No entanto, o fato de ser um tema tratado de maneira imprecisa e
pouco orgânica pelo Aquinate dificulta a avaliação tanto da interpretação de
Amerini quanto da de Pasnau.
Concluindo, percebemos que Tommaso d’Aquino e l’intenzionalità prima
pela clareza, pelo rigor científico e, especialmente, pela exposição didática dos
assuntos. Chama atenção a capacidade do autor em ser detalhista no tratamento
de cada tema e em conciliar análise textual com discussão bibliográfica. Ademais,
salta aos olhos sua segurança em comparar autores medievais, percebendo,
especialmente entre Tomás, Ockham e Scotus, certas semelhanças no tocante à
teoria do conhecimento e à noção de linguagem mental. Finalmente, outra
qualidade do livro é a constante e abundante remissão às obras de Tomás de
Aquino e à bibliografia secundária.
15 Cf. AMERINI, Fabrizio. “Thomas Aquinas on Mental Language”, Medioevo XXXVIII (2013), pp. 77-110.
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
AREZZO, A. Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto
scientifico della teologia. Bari: Edizioni di Pagina, 2014, 246 p. – e-
book (Biblioteca filosofica di Quaestio 21)
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________
I.
No último volume deste caderno, a resenha da coletânea de artigos
L’aristotélisme exposé 1 nos deu a ocasião de discutir, entre outros temas
suscitados pela interessante obra, a relação entre filosofia e teologia no
pensamento de Henrique de Gand. Nesse âmbito, um problema fundamental que
emerge da contribuição de Catherine König-Pralong ao referido volume2 é o da
relação entre [i] a necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento da
verdade da coisa (tese defendida pelo Doutor Solene em Suma, art. 1, qq. 1-33) e
[ii] a necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento científico
teológico (doutrina formulada, por exemplo, em Suma, art. 64). Em face dessas
duas teses, o problema enfrentado pelo leitor de Henrique é: seriam essas duas
iluminações a mesma ou não? Caso sejam, é preciso admitir que somente a
teologia conhece a verdade das coisas, sendo a filosofia excluída de tal
conhecimento. Como esse não parece ser o caso para Henrique5, talvez se deva
* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. 1 CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé. Aspects du débat philosophique entre Henri de Gand et Gilles de Rome. Fribourg: Academic Press Fribourg, 2014. A resenha a que me refiro é: PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotélisme exposé..., 2014”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 7 (2015), pp. 24-41. 2 KÖNIG-PRALONG, C. “Le désir naturel de connaître. Autour des Questions métaphysiques attribuées à Gilles de Rome”. In: CORDONIER, V., SUAREZ-NANI, T. (éds.). L’aristotelisme exposé, 2014, pp. 1-28. 3 Henrique de Gand, Suma, art. 1, qq. 1-3 (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 5-90). 4 Henrique de Gand, Suma, art. 6, q. 1, co. (ed. 1642-6, pp. 106b-107a, nn. 7-9). Cf. tb. Henrique de Gand, Suma, art. 1, q. 8, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 150-2), Suma, art. 5, q. 3, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 328-30); e Suma, art. 13 (ed. 1642-6, pp. 225-47). 5 O Doutor Solene afirma explicitamente que tanto a filosofia como a teologia são ciências. Nesse sentido, ambas (ainda que diferentemente) devem dizer respeito à verdade acerca de seus respectivos objetos: “Stricte vero appellatur scientia, non quaecunque certa notitia, sed solummodo eorum, quorum veritas intellectui ex rei evidentia apparet <...> scientia proprie dicta
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
35
adotar uma resposta negativa à pergunta formulada acima. Mas, então, somos
levados a afirmar uma multiplicidade de iluminações divinas (uma geral, outra do
conhecimento da verdade filosófica, outra própria da teologia, outra própria da
fé, outra própria da glória etc.). Isso parece multiplicar ao extremo as ações
diretas de Deus sobre o intelecto humano – algo que, ainda que não se possa de
saída descartar, parece dificilmente defensável em uma filosofia que assevera a
possibilidade de um conhecimento científico para homem6.
Retornando à pergunta feita há pouco, as duas respostas possíveis – isto
é, a positiva e a negativa – já foram formuladas por leitores de Henrique de
Gand. A supracitada König-Pralong parece tender a identificar as iluminações [i]
e [ii], quando afirma que “[s]egundo os primeiros artigos da Suma, a infusão de
uma iluminação habitual é requerida em todo conhecimento”7 e que, ao mesmo
tempo, “Henrique estabelece, com efeito, as condições de uma teologia racional
que permite ler verdadeiramente e exaustivamente a metafísica e a ética de
Aristóteles enquanto teólogo <...>”8. A comentadora, destarte, parece relacionar
a defesa da necessidade de uma iluminação divina para o conhecimento humano
com a defesa de uma necessária complementaridade da filosofia pela teologia. Em
outras palavras, para König-Pralong, a exigência de uma elevação das forças
naturais pela luz divina e de uma elevação da filosofia pela teologia seriam um
mesmo movimento no pensamento de Henrique. Essa interpretação é criticada
por Pickavé, que afirma a necessidade de distinguir os casos [i] e [ii] de est duplex <...>. Primo modo habetur intellectus de rebus naturalibus in scientiis philosophicis. Secundo autem modo habetur de rebus supernaturalibus in ista scientia <i.e. a teologia>” – Henrique de Gand, Suma, art. 6, q. 1, co. (ed. 1642-6, p. 107a, nn. 8-9). 6 A defesa da possibilidade do conhecimento científico para o homem é justamente o tema do primeiro artigo da Suma de questões ordinárias de Henrique de Gand (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 4-199). Portanto, que o conhecimento científico seja possível para o homem é um elemento basilar no pensamento do Doutor Solene. Todo problema está em saber, para retomar termos utilizados por Martin Pickavé, quais seriam o alcance (Reichweite) e o limite (Begrenztheit) de um conhecimento estritamente natural (cf. PICKAVÉ, M. Heinrich von Gent über Metaphysik als erste Wissenschaft. Studien zu einem Metaphysikentwurf aus dem letzten Viertel des 13. Jahrhunderts. Leiden-Boston: Brill, 2007, pp. 46-9). Uma possível distinção entre iluminações divinas diversas atuantes, respectivamente, nos conhecimentos filosófico e teológico só adiciona mais uma dificuldade à temática. 7 KÖNIG-PRALONG, “Le désir naturel de connaître...”, 2014, p. 20: “Selon les premiers articles de la Summa, l’infusion d’une illumination habituelle est requise dans toute connaissance”. 8 KÖNIG-PRALONG, “Le désir naturel de connaître...”, 2014, p. 23: “Henri établit en effet les conditions d’une théologie rationnelle qui permette de lire véritablement et exhaustivement la métaphysique et l’éthique d’Aristote en théologien <...>”.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
36
iluminação. Em sua resenha do artigo de König-Pralong, ele nos diz: “tenho a
impressão de que ela não distingue o suficiente entre as diferentes iluminações
de que Henrique fala no começo de sua Summa quaestionum ordinariarum: a luz
que é tema em Suma, art. 1, q. 2, não é a mesma que o, assim chamado, lumen
theologicum (ou lumen medium), de que supostamente o teólogo se beneficia”9.
Enfim, a discussão sobre a unidade da doutrina da iluminação desenvolvida por
Henrique de Gand nos primeiros artigos de sua Suma (mais precisamente, em
Suma, arts. 1-20) está entre os temas mais complexos para seus leitores atuais.
Por isso mesmo, é extremamente bem-vinda uma contribuição como o
livro Lumen medium. Enrico di Gand e il dibattito sullo statuto scientifico della teologia,
de autoria de Anna Arezzo10. Nessa obra, a autora considera a noção de teologia
desenvolvida por Henrique de Gand principalmente desde o ponto de vista de
toda a problemática que envolve a caracterização da teologia como ciência. É
justamente nesse contexto, como ficará claro, que surge a necessidade da
afirmação de uma iluminação típica do teólogo, a qual eleva seu conhecimento
para além daquele das ciências estritamente filosóficas. A seguir, pretendo
apresentar sucintamente o caminho seguido e as posições adotadas por Arezzo
em seu livro.
II.
O livro Lumen medium é dividido em duas partes principais. A primeira contém a
principal etapa da obra, pois lida com “a teologia como ciência em Henrique de
Gand [La teologia come scienza in Enrico di Gand]” (pp. 37-96). Já a segunda parte
se apresenta como uma tentativa de reconstrução da “controversa fortuna do
lumen medium [La controversa fortuna del lumen medium]” (pp. 97-204). Para ser 9 PICKAVÉ, M. “A new book on Giles of Rome and Henry of Ghent. Critical Study of V. Cordonnier – T. Suarez-Nani (eds.), L’aristotélisme exposée...”. Recherches de Théologie et Philosophie Médiévales 81.2 (2014), pp. 387-98 (esp. p. 390): “<…> I have the impression that she does not distinguish enough between the different illuminations of which Henry speaks at the beginning of his Summa quaestionum ordinariarum: the light that is issue in Summa art. 1, q. 2 is not the same as the so-called lumen theologicum (or lumen medium), of which the theologian is supposedly benefitting”. 10 Como explicado no prefácio (p. 7), o livro ora resenhado é fruto da tese de doutorado AREZZO, A. I dibattiti sullo statuto scientifico della teologia tra XIII e XIV secolo: l’eredità di Enrico di Gand. Tesi di dottorato. Università degli Studi di Salerno, Dipartimento di Latinità e Medioevo. Anno accademico 2009-2010.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
37
mais preciso, nessa segunda etapa do trabalho, a comentadora se debruça sobre
diversos autores que, em fins do século XIII e começos do XIV, discorreram
criticamente acerca da noção de teologia – e, mais pontualmente, da concepção
de cientificidade da teologia – defendida por Henrique de Gand. Na conclusão
(pp. 205-9), Arezzo busca derivar de seu estudo uma impressão geral no que diz
respeito à recepção imediata da acepção de teologia formulada pelo Doutor
Solene (recepção, diga-se, amplamente negativa). Ainda na conclusão, busca-se
sugerir os limites do trabalho realizado no livro – em particular, a necessária
incompletude da lista de autores estudados, sendo destacada a ausência, no
estudo, de mestres como Guilherme Pedro de Godino ou Henrique Harclay (pp.
207-9). Antes de todas essas etapas, porém, a autora dedica a introdução de seu
livro ao estudo da “teologia como ciência antes de Henrique de Gand [La teologia
come scienza prima di Enrico di Gand. Cenni storici e storiografici]” (pp. 9-35).
Podemos dizer que o trecho central do livro é constituído pela parte 1,
onde há um esforço de compreensão da concepção de teologia elaborada por
Henrique de Gand, no qual tomam-se por base diversos excertos da obra deste
– em especial, os já mencionados primeiros artigos da Suma de questões
ordinárias. Essa parte 1, porém, é antecedida e sucedida por trechos nos quais se
procura localizar historicamente a posição do Doutor Solene com respeito a
autores que o precederam (na introdução) e àqueles que a ele se seguiram
imediatamente (na parte 2 e na conclusão). Isso faz com que a parte 1 seja não
somente a etapa central da exposição de Arezzo, mas também aquela mais
densa, sendo dedicada ao estudo acurado da posição de um único autor sobre
um determinado tema. As demais etapas da obra ganham pelo interesse da
narrativa histórico-filosófica proposta pela autora, mas perdem por parecerem
um tanto superficiais quando comparadas à parte 1, uma vez que buscam expor
em um pequeno espaço as posições dos mais diversos pensadores dos séculos
XIII e XIV acerca de uma temática tão central quanto a relação entre filosofia e
teologia. Nas próximas páginas, buscarei destacar as principais posições
propostas por Arezzo, dando especial atenção à parte 1 do livro, dada a sua já
mencionada centralidade na obra.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
38
II.I. Tendo por temática central a discussão sobre a cientificidade da teologia
entre os século XIII e XIV, a introdução de Lumen medium não coloca o
problema do surgimento de uma noção de teologia tout court. Antes, partindo já
do pressuposto de que havia no século XIII um campo de saber teológico, a
autora se pergunta sobre a origem da caracterização desse campo de saber
como ‘científico’. Em poucas palavras, a origem de tal caracterização estaria na
associação entre a sacra doctrina de inícios dos duzentos e a recepção dos
Analíticos posteriores, contexto no qual os teólogos foram “chamados a confrontar
sua ‘ciência’, a sacra doctrina, com aquela descrita pelo Estagirita, nos Segundos
Analíticos, como um conhecimento de causas que procede per demonstrationem, a
partir de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas,
anteriores, que são as razões da conclusão e os princípios da demonstração”11
(pp. 9-10). O problema do historiador da filosofia passa a ser, portanto, mapear
as reações a essa confrontação entre a noção de sacra doctrina e aquela de
ciência silogística. Tomando por base um artigo de Dominique Demange12,
Arezzo propõe que distingamos três reações típicas adotadas por mestres de
teologia em meados do século XIII (p. 15): 1. identificação entre teologia e
sabedoria; 2. uma busca de “compromisso entre o ideal agostiniano e aquele
aristotélico de ciência [compromesso tra l’ideale agostiniano e quello aristotelico di
scienza]”13 (p. 15); 3. a recusa de tal compromisso, com a consequente negação
da cientificidade da teologia. Como a última alternativa é adotada por Godofredo
de Fontaines em face da posição de Henrique de Gand (ao que voltaremos
adiante), Arezzo se dedica somente às duas primeiras soluções na introdução,
uma vez que esta, como mencionado, pretende descrever a discussão acerca da
cientificidade da teologia que antecede a intervenção do Doutor Solene. 11 “<...> i teologi, chiamati a confrontare la loro ‘scienza’, la sacra doctrina, con quella descritta dallo Stagirita, negli Analitici secondi, come una conoscenza di cause che procede per demonstrationem, a partire da premesse vere, prime, immediate, più note, anteriori, che sono le ragioni della conclusione e i principî della dimostrazione” (grifos no orig.). 12 DEMANGE, D. “La théologie est-elle une science? La réponse de Duns Scot à Godefroid de Fontaines dans le prologue des Reportata Parisiensia”. Documenti e studi sulla tradizione filosofia medievale 20 (2009), pp. 547-72 (cf. esp. p. 549). 13 No francês de Demange: “Solutions de compromis entre l’idéal augustinien et l’idéal aristotélicien de la science” (DEMANGE, “La théologie est-elle une science?...”, 2009, p. 549).
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
39
Pois bem, se uma concepção (1) de teologia como sabedoria enfatiza
principalmente “uma dimensão prático-afetiva [una dimensione pratico-affettiva]”
(p. 16) da teologia – como seria o caso, entre outros, de Alberto Magno (pp. 16-
21) –, uma reflexão (2) na qual se busca aproximar a sacra doctrina e a noção de
‘ciência’ que lemos nos Analíticos posteriores tende, por sua vez, a permitir uma
concepção de teologia enquanto ciência silogística. Essa última posição será o
terreno no qual se desenvolverá a compreensão de teologia do próprio
Henrique de Gand. E, se os defensores de uma ‘teologia como ciência’
destacados por Arezzo também incluem Odão Rigaldo e Boaventura, Tomás de
Aquino se torna o pensador mais marcante para o Doutor Solene, seja por [i]
caracterizar a teologia principalmente como ciência especulativa, seja por [ii]
inseri-la num complexo esquema de subalternação das ciências (pp. 21-35). Essas
duas teses marcarão a discussão sobre a cientificidade da teologia em Henrique
de Gand.
II.II. Nesse ponto chegamos à parte 1, isto é, à etapa na qual a concepção de
ciência teológica proposta pelo Doutor Solene é exposta. Após uma pequena
introdução à biografia intelectual e institucional de Henrique de Gand, bem como
à problemática que envolve o estabelecimento crítico de sua obra (pp. 39-44),
Arezzo destaca, com base na leitura de A. J. Minnis14, o cuidadoso trabalho de
introdução (accessus) à teologia elaborado pelo gandavense em Suma, arts. 6-20,
frisando igualmente sua preferência pelo vocábulo theologia em detrimento da
expressão sacra doctrina (pp. 45-6). Como, porém, a discussão introdutória de
Henrique de Gand é antecedida por um estudo do conhecimento humano na
Suma (arts. 1-5), a comentadora igualmente inicia sua apresentação pelos
“pressupostos gnoseológicos [pressuposti gnoseologici]” (p. 46) da teologia na
Suma e, em particular, pela consideração da necessidade, segundo o Doutor
Solene, de uma iluminação divina para o conhecimento natural da verdade pelo
homem (pp. 46-60). Logo em seguida, porém, a autora mostra a insuficiência
14 MINNIS, A. J. “The Acessus Extended: Henry of Ghent on the Transmission and Reception of Theology”. In: JORDAN, M. D., EMERY Jr., K. (eds.). Ad litteram. Authoritative Texts and Their Medieval Readers. Notre Dame – London: University of Notre Dame, 1992, pp. 275-326.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
40
dessa iluminação divina. Com efeito, se tal iluminação (junto à atividade das
potências naturais do homem) garante um conhecimento de verdades acerca do
que é natural, ela não possibilita ao homem o conhecimento acerca do
sobrenatural que é igualmente objeto de seu desejo natural de conhecer. Assim,
para além daquela iluminação divina que possibilita um conhecimento da verdade
das coisas naturais, o apetite do homem por conhecimento termina por exigir
uma iluminação ‘mais especial’ (specialior)15, que permita um conhecimento de
objetos que estão para além das coisas naturais. Destarte, faz todo sentido que a
autora, após considerar a doutrina da iluminação divina de Henrique de Gand,
estude a temática do apetite pelo conhecimento (pp. 60-5), desenvolvida com
especial atenção em Suma, art. 4. Com efeito, é esse apetite por um
conhecimento não somente de coisas naturais, mas também sobrenaturais que
torna necessário que haja um meio de se alcançar uma intelecção acerca do
sobrenatural. Sendo o sobrenatural a finalidade, o estudo – considerado em
Suma, art. 5 – deve passar pelas ciências acerca do natural, mas deve almejar para
além disso, o conhecimento do sobrenatural (pp. 65-9). Em outras palavras, o
estudo, em consonância com o apetite de conhecimento, deve tender ao
sobrenatural. Este, entretanto, não pode ser conhecido pelo homem sem algum
auxílio (de fato, nem mesmo a verdade sobre objetos naturais podia ser
conhecida sem auxílio superior). Nesse ponto, abre-se espaço na argumentação
para a defesa de uma iluminação especial reclamada pelo teólogo.
A etapa seguinte dessa primeira parte do livro de Arezzo será,
precisamente, voltada para a elucidação do que seria essa luz própria ao teólogo
(pp. 69-78). Em primeiro lugar, a autora caracteriza com base em Suma, art. 1, q.
8 e Suma, art. 5, q. 316, o conhecimento típico do teólogo. Nas suas palavras, tal
conhecimento é intermediário entre a filosofia e a visão beatífica: “[n]a q. 3 do
art. V Henrique distingue novamente <i.e., como fizera em Suma, art. 1, q. 8> as
três formas de conhecimento: uma natural, que procede segundo um modo
15 Henrique de Gand, Suma, art. 1, q. 2, ad 2 (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 21, pp. 68-9): “Naturali enim appetitu bene desiderat homo scire etiam illa quae sunt supernaturaliter cognoscenda, quae tamen secundum communem illustrationem a divino exemplari sine illustratione specialiori non posset attingere <...>”. Citado por Arezzo (p. 60). 16 Para as citações precisas, cf. a nota 4, acima.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
41
natural; outra sobrenatural, que procede segundo um modo igualmente
sobrenatural; e uma intermediária: sobrenatural, mas que procede segundo um
modus natural. Dessa vez, porém, ele precisa que a primeira forma de
conhecimento coincide com a filosofia, a segunda com a visão beatífica
ultraterrena e a terceira com uma notitia que deriva de uma luz sobrenatural, mas
que alcança a consideração das realidades divinas através da mediação daquelas
sensíveis <...>”17 (p. 70). Esse último conhecimento é, justamente, a teologia que,
pela mediação das coisas sensíveis, chega ao sobrenatural. O grande problema
está na passagem do sensível ao sobrenatural. Ora, tal como “no plano da
cognitio naturalis, para conhecer a sincera veritas ocorre a iluminação divina,
também naquele da cognitio supernaturalis, para conhecer a veritas dos credibilia, é
necessário um lumen divino <...>” 18 (p. 72). Assim como o conhecimento
teológico é intermediário entre um conhecimento natural como a filosofia e o
conhecimento estritamente sobrenatural, também a iluminação teológica será
intermediária entre a luz da fé e a luz da visão beatífica. Assim, temos que a
teologia se põe como um conhecimento sobrenatural inferior à visão beatífica,
mas superior à filosofia, como vimos, e também à fé: “[e]ntre a obscuridade
daquilo que é crido pela fé e a evidência daquilo que se conhece diretamente na
visão beatífica, de fato, Henrique põe uma evidência ‘intermediária’, que se funda
em uma ratio que é veridica, porque conhece os credibilia com o auxílio de um
lumen supernaturale”19 (p. 77). Portanto, para o Doutor Solene, esse lumen
teológico garante um conhecimento intelectivo da verdade dos credibilia –
superior à fé, mesmo que não tão claro como aquele da visão beatífica – e, assim,
17 “Nella q. 3 dell’art. V Enrico distingue ancora le tre forme di conoscenza: una naturale, che procede secondo un modo naturale; un’altra sovrannaturale, che procede secondo un modo altrettanto sovrannaturale; ed una intermedia: sovrannaturale, ma che procede secondo un modus naturale. Questa volta, però, egli precisa che la prima forma di conoscenza coincide con la filosofia, la seconda con la visione beatifica ultraterrena e la terza con una notitia che deriva da una luce sovrannaturale, ma che perviene alla considerazione delle realtà divine attraverso la mediazione di quelle sensibili <…>” (grifo no orig.). 18 “Come sul piano della cognitio naturalis, per conoscere la sincera veritas, occorre l’illuminazione divina, anche su quello della cognitio supernaturalis, per conoscere la veritas dei credibilia, è necessario un lumen divino <…>” (grifos no orig.). 19 “Tra l’oscurità di ciò che viene creduto per fede e l’evidenza di ciò che si conosce direttamente nella visione beatifica, infatti, Enrico pone un’evidenza ‘intermedia’, che si fonda su una ratio che è veridica, perché conosce i credibilia con l’aiuto di un lumen supernaturale” (grifos no orig.).
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
42
a teologia se torna “uma ciência verdadeira e própria, pois os credibilia podem se
tornar intelligibilia por meio de uma illustratio superior com respeito àquela da fé e
da razão”20 (p. 78).
Ora, se a iluminação teológica é superior tanto àquela da fé como àquela
envolvida no conhecimento da verdade natural, resta que a teologia seja
igualmente superior à fé e, também, às ciências filosóficas, que lidam com as
coisas naturais – é o que se mostra na terceira etapa da primeira parte do livro
(pp. 78-87). Em poucas palavras, a “teologia não é, com efeito, segundo
Henrique, somente uma ciência verdadeira e própria segundo os cânones da
epistemologia aristotélica, mas a ciência mais certa (mesmo do que a
matemática), mais universal (mesmo do que a metafísica), subalternante com
respeito a todas as outras disciplinas e não subalternada por nenhuma outra
(nem mesmo por aquela divina), primeira”21 (p. 87). Ao que parece, para Arezzo,
isto é o fundamental na caracterização da teologia para Henrique de Gand: ela é
uma ciência não subalternada, uma vez que seus princípios são evidentes não por
alguma ciência superior, mas pelo lumen teológico que possibilita ao intelecto
humano o conhecimento da evidência desses princípios. Como aponta Arezzo, a
defesa da não-subalternação da teologia surge em Henrique “em polêmica com
Egídio Romano, mais do que com Tomás [in polemica con Egidio Romano più che
con Tommaso]” (p. 81) de Aquino. Em todo caso, a exposição da comentadora
parece deixar clara a relação existente, na noção de teologia do Doutor Solene,
entre [i] a afirmação de um lumem teológico, [ii] a defesa de uma não-
subalternação da teologia e [iii] a concepção de teologia como ciência superior.
Disso tudo, deriva o cuidado de Henrique ao caracterizar o doctor
theologiae, visto ser o professor de teologia precisamente aquele a receber a
iluminação que fundamenta a teologia como ciência superior às ciências
filosóficas. Por isso mesmo, parece-me, Arezzo dedica a derradeira etapa de seu
20 “L’originale tesi di Enrico in merito allo statuto della teologia è, dunque, questa: essa è una scienza vera e propria, perché i credibilia possono diventare intelligibilia per via di una illustratio superior rispetto a quella della fede e della ragione” (grifos no orig.). 21 “La teologia non è infatti, secondo Enrico, solo una scienza vera e propria secondo i canoni dell’epistemologia aristotelica, ma la scienza più certa (anche della matematica), più universale (perfino della metafisica), subalternante rispetto a tutte le altre discipline e non subalternata a nessun’altra (nemmeno a quella divina), prima” (grifos no orig.).
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
43
estudo sobre a teologia em Henrique de Gand à caracterização, por parte deste
último, do doctor desta ciência (pp. 88-96). Ao fim, temos que o professor de
teologia se caracteriza por um “modo de ser, de conhecer e de viver que, por
meio do lumen speciale, excede as próprias capacidades naturais de todos os
outros homens <...> [un modo di essere, di conoscere e di vivere che, per via del
lumen speciale, eccede le stesse capacità naturali di tutti gli altri uomini]” (p. 96 –
grifo no orig.). Estaríamos, portanto, em face de um “elitismo teológico
[elitarismo teologico]”, que seria a resposta do Doutor Solene ao “elitismo
filosófico [elitarismo filosofico]” almejado pelos artistae condenados em 1277 (p.
96).
A caracterização da teologia proposta por Henrique de Gand parte da
constatação de que o homem almeja mais do que pode obter de maneira
estritamente natural. Isso é válido para a filosofia, na qual a verdade da coisa
natural só pode ser conhecida por iluminação divina. Porém, é mais verdadeiro
ainda no caso da teologia, onde o objeto que apetece ao intelecto é, ele próprio,
sobrenatural. Esse apetite por um conhecimento sobrenatural mostra que toda
ciência sobre coisas naturais deve ser obtida com o fim de conhecer o
sobrenatural. Esse fim, porém, só pode ser alcançado com um auxílio divino que
permita ao nosso intelecto conhecer, a partir do natural, o sobrenatural,
tornando o que era apenas crível algo inteligível e científico para o homem (cf. p.
75). Mas, se por esse conhecimento intelectual e, assim, científico, conhecemos o
sobrenatural, segue-se que essa ciência será superior àquelas que dizem respeito
a objetos naturais. Da mesma maneira, o doctor dessa ciência será superior
àqueles das ciências filosóficas. Essa é, fundamentalmente, ao que me parece, a
interpretação de Arezzo acerca da concepção de teologia elaborada por
Henrique de Gand. Do meu ponto de vista, o que mais chama a atenção aqui é o
modo como a autora consegue agregar e ordenar elegante e coerentemente os
diversos aspectos da discussão sobre teologia desenvolvida nos primeiros artigos
da Suma como um preâmbulo ao trabalho teológico apresentado a partir de
Suma, art. 21.
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
44
II.III. Como já notado acima, após esse cuidadoso e aprofundado estudo da
concepção de teologia desenvolvida por Henrique de Gand, o restante de Lumen
medium recai em uma narrativa de caráter generalizante (aparentada, portanto, à
da introdução ao livro) acerca da recepção daquela posição que a comentadora
lê no Doutor Solene. Mais precisamente, Arezzo busca, nessa segunda parte de
seu livro, expor o modo como a concepção de ciência teológica de Henrique foi
“duramente criticada, por exemplo, pelo mestre secular Godofredo de
Fontaines, pelos dominicanos João Quidort de Paris, Tiago de Metz, Herveu
Natal e Durando de São Porciano, pelos franciscanos João Duns Escoto e Pedro
Auriol e pelo primeiro mestre carmelita Gerardo de Bologna”22 (p. 99). Ou seja,
o período coberto pela autora compreende a passagem do século XIII para o
XIV, bem como as primeiras décadas deste último. Sendo assim – dada tamanha
amplitude cronológica da narrativa –, seria vão tentar expor em detalhes os
meandros da argumentação de Arezzo. Por outro lado, poderemos recorrer à
conclusão do livro para uma formulação geral das posições da comentadora
nesta segunda parte de sua obra. Antes disso, porém, notemos rapidamente o
modo de exposição adotado neste trecho de Lumen medium. Essa parte 2 do
livro é divida em oito itens, cada qual dedicado a um dos autores mencionados
na última passagem citada. A cada etapa, Arezzo busca fornecer informações
introdutórias sobre a biografia intelectual e a situação atual de estabelecimento
das obras de cada autor. Em seguida, há em todos os casos um esforço por
analisar textos precisos onde tais autores se posicionem com respeito àquelas
teses acerca da cientificidade da teologia que líamos em Henrique de Gand.
Dito isso, é interessante notar que, muito embora no decorrer da parte 2
os autores supracitados sejam estudados em ordem cronológica, ao sumarizar os
resultados de sua pesquisa, já na conclusão, a comentadora prefere separá-los de
acordo com os grupos eclesiásticos a que estavam institucionalmente associados.
Assim, Godofredo de Fontaines – único secular da listagem – surge como aquele
22 “La dottrina enrichiana del lumen medium <…>, tra il XIII e il XIV secolo, è stata aspramente criticata, ad esempio, dal maestro secolare Goffredo di Fontaines, dai domenicani Giovanni Quidort di Parigi, Giacomo di Metz, Erveo di Nédellec e Durando di San Porziano, dai francescani Giovanni Duns Scoto e Pietro Aureolo e dal primo maestro carmelitano Gerardo di Bologna” (grifo no orig.).
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
45
para quem “a teologia não é uma ciência proprie, sobretudo porque lhe falta a
certitudo evidentiae [la teologia non è una scienza proprie soprattutto perché le
manca la certitudo evidentiae]” (p. 206 – grifos no orig.). Tiago de Metz, Herveu
Natal e Durando de São Porciano são descritos como dominicanos que
entendem a teologia como “uma scientia que é tal somente ‘em sentido amplo’ e
que igualmente ‘em sentido amplo’ pode ser considerada subalternada àquela
divina”23 (p. 206). João Quidort seria uma exceção entre os dominicanos ao, não
obstante recusar a doutrina do lumem teológico, “considerar que a teologia é
uma ciência verdadeira e própria [ritenere che la teologia sia una scienza vera e
propria]” (p. 206). Gerardo de Bologna, por sua vez, único carmelita da listagem
acima, considera que a teologia “não seja de maneira alguma científica [non sia
affatto scientifica]” (p. 206); porém, ainda que se afaste de Henrique neste ponto
doutrinário, “nas primeiras doze questões de sua Suma, Gerardo” segue “o
modelo daquela henriquina retomando dela o novo esquema de accessus à
teologia <...>”24 (p. 207). Por fim, os dois franciscanos, João Duns Escoto e Pedro
Auriol, recusam a noção de lumen teológico tal como proposta por Henrique de
Gand, mas admitem a possibilidade de um conhecimento científico, superior à fé,
sobre Deus na vida presente (p. 207). Ao cabo, após a avaliação da recepção
crítica da concepção de teologia defendida pelo Doutor Solene, Arezzo crê
poder resumir a duas as dificuldades que levaram à recusa da posição por ele
formulada: “1) a oposição entre ciência e fé entendidas como actus; 2) a
impossibilidade de conhecer com evidência os credibilia nesta vida”25 (p. 206). Em
outras palavras, um lumen que permita a passagem da fé para a ciência ou de
credibilia a intelligibilia parece improvável devido à própria oposição extrema entre
fé e ciência, crível e inteligível. 23 “Sulla base di tali argomentazioni, i domenicani Giacomo di Metz, Erveo di Nédellec e Durando di San Porziano oppongono al modello enrichiano di teologia come super-scienza quello di una scientia che è tale solo ‘in senso largo’ e che, altrettanto ‘in senso largo’, può essere considerata subalternata a quella divina <…>” (grifo no orig.). 24 “Nonostante, nelle prime dodici questioni della sua Summa, Gerardo segua il modello di quella enrichiana riproponendone il nuovo schema di accessus alla teologia, le argomentazioni e in alcuni casi perfino gli esempi, egli non ne condivide l’ideale di scienza teologica” (grifo no orig.). 25 “Le tesi di fondo che conducono molti maestri a criticare il lumen medium, come si è visto, sono in pratica due: 1) l’opposizione tra scienza e fede, intesi come actus; 2) l’impossibilità di conoscere con evidenza i credibilia in questa vita” (grifos no orig.).
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
46
Sem dúvida, a rapidez com que formulamos as posições adotadas por
Arezzo na parte 2 de Lumen medium não faz jus ao cuidado com que ela se
dedica ao estudo dos autores elencados. Por outro lado, fica bem clara, na
transição da primeira para a segunda parte de seu livro, a diferença de
abordagem necessária quando se passa do estudo aprofundado e pontual de um
tema em um único autor – no caso, Henrique de Gand – para o estudo do
mesmo tema em um série de autores cujos trabalhos foram desenvolvidos no
decorrer de anos ou décadas. Decerto, o estudo buscado na introdução ou na
parte 2 de Lumen medium é importante pela contextualização histórica da
temática pesquisada em Henrique de Gand. Há nele, porém, o perigo de
simplificação das posições que lemos nos autores estudados ao se deixar de lado
o contexto filosófico interno à obra de cada autor na qual elas se desenvolvem.
Arezzo parece tentar escapar a esse problema ao buscar sempre oferecer uma
ampla bibliografia a respeito de cada pensador abordado, o que é, sem dúvida, de
grande valia para seu leitor.
III.
Seguido o percurso de Lumen medium, vemos que Arezzo se posiciona muito
claramente com respeito à dificuldade que colocávamos ao início desta resenha.
Para ela, no pensamento de Henrique de Gand, a [i] iluminação divina que diz
respeito ao conhecimento da verdade da coisa e a [ii] iluminação divina que diz
respeito ao conhecimento teológico são certamente distintas. Há, porém, um
paralelismo entre elas, pois tal como [i] o conhecimento da verdade filosófica
acerca de coisas naturais exige uma determinada iluminação divina, também [ii] o
conhecimento dos credibilia como evidentes exige uma iluminação mais especial,
a saber, aquela típica da teologia. Esse paralelismo é quebrado somente pelo fato
de que a iluminação teológica proporciona um conhecimento superior ao
conhecimento filosófico, sendo este último subordinado àquele.
Com efeito, parece-me que Arezzo propõe uma resposta elegante,
cuidadosa e textualmente bem fundamentada para um dos problemas centrais no
estudo da concepção de ciência – e, em geral, de conhecimento humano – em
AREZZO,A.Lumenmedium
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
47
Henrique de Gand. Já por esse aspecto, o livro resenhado se apresenta como
uma importante contribuição ao estudo desse autor. A isso se adiciona o fato de
a obrar ser rica em referências bibliográficas sobre os diversos temas abordados.
Por fim, Lumen medium se mostra também uma instigante introdução à discussão
acerca da cientificidade da teologia na passagem do século XIII para o XIV. Ainda
que por vezes certos autores sejam abordados mais rapidamente, há sem dúvida
material suficiente no texto para que o leitor possa complementar por si mesmo
os comentários ali propostos.
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
CROSS, R. Duns Scotus’s Theory of Cognition. Oxford: Oxford University Press, 2014, xiv + 224 p.
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________
I.
Nas palavras do próprio Richard Cross, esse livro representa uma novidade em
sua abordagem da filosofia medieval e, em particular, do pensamento de João
Duns Escoto. Segundo o autor, Duns Scotus’s Theory of Cognition é sua primeira
tentativa de “escrever um livro que seja puramente filosófico, em vez de um
<livro> que ocupe o penumbroso espaço entre as duas disciplinas”1 (p. vii), isto
é, teologia e filosofia. Com efeito, muito do importante trabalho realizado por
Cross tem o valor de circular muito bem entre a teologia e a filosofia
escolásticas 2 – um valor que, muitas vezes, não se encontra em outros
comentadores, que buscam em mestres de teologia medievais um pensamento
estritamente filosófico. Na presente obra, porém, o objetivo de Cross é
justamente o oposto, ou seja, buscar uma expressão o mais filosófica possível da
noção de conhecimento em Duns Escoto. Se tal abordagem é
metodologicamente nova quando comparada aos demais comentários
produzidos pelo próprio Cross, não parece possível compartilhar tão
prontamente de seu juízo, segundo o qual não haveria “em inglês – ou,
provavelmente, em qualquer outra língua – um amplo estudo do tema”3 (p. vii)
com que ele lida aqui. Pelo contrário, parece-me que seu livro forma um
precioso par com aquele de Dominique Demange, Jean Duns Scot. La théorie du
* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. 1 “<...> I felt it rather incumbent upon myself to write a book that was purely philosophical, rather than one occupying the penumbral space between the two disciplines, where much (though not all) of my previous work had been”. 2 Como exemplo disso, destaque-se, antes de tudo: CROSS, R. Duns Scotus. New York-Oxford: Oxford University Press, 1999. Outro exemplo de trabalho tributário da mesma linha interpretativa é CROSS, R. “Where Angels Fear to Tread’: Duns Scotus and Radical Orthodoxy”. Antonianum. 76 (2001), pp. 7-41. 3 “<...> since there is in English – and arguably in any other language – no comprehensive account of the subject <...>”.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
49
savoir, lançado em 2007, e já resenhado neste mesmo caderno4. Ainda que Cross
se utilize da obra de Demange (e.g., pp. 78-80), ele não parece discutir alguns de
seus principais aspectos, ao que voltarei adiante.
Pois bem, uma vez que a noção de conhecimento é um dos temas mais
candentes na recepção contemporânea da obra de Duns Escoto e Richard Cross
tem sido uma das principais referências na interpretação desse pensador
medieval, não impressiona que Duns Scotus’s Theory of Cognition já tenha recebido
bastante atenção. De fato, muitas foram as resenhas dedicadas a ele
recentemente, de maneira que não se faz necessário apresentar um resumo
ordenado do conteúdo do livro – tal resumo pode ser lido em outras avaliações
da obra5. Por isso mesmo, a seguir, contento-me em apresentar rapidamente e
de modo esboçado o caminho seguido por Cross em seu estudo. Isso nos
permitirá dedicar maior cuidado à consideração de elementos precisos de sua
interpretação de Duns Escoto.
II.
No livro ora resenhado, a discussão sobre a noção de conhecimento em Duns
Escoto é distribuída por dez capítulos. Estes são antecedidos por uma introdução
(pp.1-17) na qual são apresentados o estado atual das pesquisas sobre as obras
do Doutor Sutil, o pano de fundo filosófico e (em menor medida) teológico
sobre o qual ele desenvolve sua concepção de conhecimento e, finalmente, os
pressupostos metafísicos que antecedem e determinam a discussão sobre o
conhecimento em sua obra. Ainda ao fim da introdução, Cross nos faz um rápido
alerta metodológico, lembrando que “Escoto não oferece um tratamento
sistemático desses temas <i.e., relativos à noção de conhecimento> e suas
observações estão espalhadas em toda parte por sua razoavelmente extensa 4 STORCK, A. “Resenha de: DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et non”, 2007, 474p”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 1 (2009), pp. 16-21. 5 As resenhas a que tive acesso são aqueles de autoria de Robert Andrews (Journal of the History of Philosophy 53.3 (2015), pp. 548-9), Mário Correia (Filosofia. Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Porto 32 (2015), pp. 219-26), Oleg V. Bychkov (Franciscan Studies 74 (2016), pp. 392-401), Therese Scarpelli Cory (Vivarium 54 (2016), pp. 117-21), Henrik Lagerlund (Notre Dame Philosophical Reviews (March 07, 2016), http://ndpr.nd.edu/news/duns-scotuss-theory-of-cogniti on/).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
50
produção filosófica e teológica”6 (p. 16). Por isso mesmo, o livro se produz como
uma colagem de excertos (cujas edições disponíveis surgem, por vezes,
corrigidas com base em manuscritos) das mais diversas obras de Duns Escoto.
Por meio de tal colagem, almeja-se a apresentação de uma posição filosófica una
e coerente, ainda que sujeita a mudanças desde um ponto de vista diacrônico.
Assim, como era explicado no prefácio, Cross busca em seu livro “notar algo do
desenvolvimento do pensamento de Escoto sobre o tema”, apresentando aquilo
que ele crê ser “uma visão geral sintética que representa, de forma mais ou
menos acurada, o pensamento de Escoto no momento de sua morte”7 (p. vii).
Após a introdução, seguem-se os dez capítulos supracitados.
Basicamente, nos caps. 1-7 estudam-se o mecanismo de produção causal do
conhecimento – seja tal conhecimento sensível (cap. 1), intelectual intuitivo (cap.
2) ou intelectual abstrativo (caps. 3-4) –, a classificação categorial do ato de
conhecimento (cap. 5) e as potências ativas e passivas envolvidas na produção do
conhecimento intelectual (caps. 6-7). Já os caps. 8-10 se voltam para a
caracterização do próprio conhecimento em termos de intencionalidade (cap. 8),
para a descrição do pensamento como verbo e linguagem mental (cap. 9) e para
a caracterização metafísica do objeto como esse inteligibile (cap. 10). Em resumo,
os “[c]apítulos 1 a 7 tratam do nível do real; os três capítulos restantes
examinam temas que dizem respeito à intencionalidade e ao conteúdo
conceitual”8 (p. 16). A isso segue-se uma conclusão (pp. 200-3) na qual Cross
resume em poucas palavras os ganhos que ele considera ter obtido em seu livro
no que tange à interpretação da noção de conhecimento em Duns Escoto e, por
6 “A brief note on method. As I have indicated, Scotus offers no systematic treatment of these issues, and his remarks are scattered far and wide throughout his rather extensive philosophical and theological output”. 7 “He <i.e. Duns Escoto> provided no truly systematic discussion of the whole area; his views on the topics I examine were to some extent in a state of flux; and he never managed to synthesize his various attempts at systematization into one consistent whole. I attempt here to note something of the development in Scotus’s thinking on the matter, and also to present what I believe is a synthetic overview that represents, more or less accurately, Scotus’s thinking at the time of his death”. 8 “Chapters 1 to 7 deal with the level of the real; the remaining three chapters examine issues surrounding intentionality and conceptual content <...>” (grifos no original). Note-se que a resenha de Mário Correia (cf., acima, nota 5) apresenta um resumo bem detalhado, etapa por etapa, do conteúdo do livro de Cross.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
51
fim, compara este último a Guilherme de Ockham, buscando mostrar o Doutor
Sutil como um pensador de transição, “adotando muitos aspectos da psicologia
do século XIII e, ao mesmo tempo, inventando ou antecipando muitos aspectos
da psicologia do século XIV”9 (p. 203).
Feito esse rápido resumo do livro, não será meu objetivo aqui (como,
ademais, já foi mencionado) expor detalhadamente cada capítulo. Antes,
pretendo a seguir comentar rapidamente alguns poucos elementos do livro de
Cross dentre os vários que, a meu ver, merecem destaque.
II.I. Um tema enfatizado por Cross em sua intepretação da noção de
conhecimento de Duns Escoto é a distinção entre processos mentais conscientes
e inconscientes. Lemos, por exemplo, que “o processo abstrativo é automático e
inconsciente [unconscious]”10 (p. 68), enquanto que “formar definições de tipos
requer uma boa dose de trabalho intelectual consciente [conscious]”11 (p. 70) –
esse trabalho consciente, descobrimos algumas páginas depois, é associado ao
controle que a vontade exerce sobre o intelecto (pp. 134-7). A meu ver, o
problema fundamental dessa interpretação é a releitura da distinção [i] entre
intelecto e vontade como uma distinção [ii] entre inconsciente e consciente. A
primeira dificuldade aqui é o fato de que a noção de conscientia possui um
estabelecido uso técnico na ética de Duns Escoto, onde ela mais diretamente se
associa ao intelecto do que à vontade12. De outra parte, a leitura de Cross se
justificaria caso o próprio Duns Escoto não oferecesse uma alternativa de
9 “<...> Scotus represents something of a transition position, adopting many aspects of thirteenth-century psychology while at the same time inventing, or anticipating, many aspects of fourteenth-century psychology”. A bem dizer, parece-me bem pouco claro o que seria descrever um autor como estando em posição de ‘transição’. Isso soa como a negação da possibilidade de um leitura interna da obra de tal autor – ou seja, daquilo mesmo que Cross busca em seu livro. Tal classificação me parece tão problemática quanto aquela de ‘pensador intermediário’, rejeitada veementemente por Pasquale Porro no contexto do estudo de Henrique de Gand – cf. PORRO, P. “Metaphysics and Theology in the Last Quarter of the Thirteenth Century: Henry of Ghent Reconsidered”. In: AERTSEN, J. A., SPEER, A. (Hrsg.). Geistesleben im 13. Jahrhundert. Berlin – New York: De Gruyter, 2000, pp. 265-282 (esp. p. 267). 10 “First, the abstractive process is automatic and unconscious <...>”. 11 “He righlty holds that forming definitions of kinds requires a great deal of conscious intellectual work”. 12 Cf. e.g. KANTOLA, I. Probability and Moral Uncertainty in Late Medieval and Early Modern Times. Helsinki: Luther-Agricola-Society, 1994, pp. 95-102.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
52
distinção entre operações puramente intelectuais e operações volitivas.
Entretanto, o Doutor Sutil justamente se volta para tal distinção em Qq. super
Metaph. IX, q. 15, onde nos é dito que “a primeira divisão dos princípios ativos é
em natureza e vontade [prima divisio principiorum activorum est in naturam et
voluntatem]” 13 – nas clássicas palavras de Étienne Gilson, “<d>uas forças
dominam o domínio do ser e partilham seu império, a natureza e a vontade”14.
Ainda na mesma questão, Duns Escoto explica que o intelecto diz respeito à
natureza (isto é, possui uma determinação natural para um único)15, enquanto
que a vontade é, precisamente, indeterminada quanto a opostos16. Nesse caso, a
tentativa de Cross de explicar a oposição entre processos intelectivos e
processos volitivos por uma distinção entre consciente e inconsciente não se
mostra necessária, uma vez que o próprio Doutor Sutil fornece uma chave de
leitura para aquela oposição, a saber, a distinção mais geral entre natureza e
vontade como princípios ativos primários. Além disso, ao tomar por base a
distinção proposta em Qq. super Metaph. IX, q. 15, o comentador evitaria a
utilização do termo ‘consciência’ em um contexto alheio àquele em que tal
termo de fato surge na obra de Duns Escoto.
II.II. Como já mencionado acima, o cap. 2 do livro de Cross é estritamente
voltado para o conhecimento intuitivo na obra do Doutor Sutil. A bem dizer, a
noção de conhecimento intuitivo surge ainda no capítulo anterior, quando nos é
lembrado que a própria sensação é intuitiva: “[s]ensação é um caso padrão de
13 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 23 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 681). A primordialidade de tal divisão fica clara no próprio fato de não se poder apontar sua causa (cf., adiante, nota 16). 14 GILSON, É. Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 20052 [1952], p. 574: “Deux forces dominent le domaine de l’être et s’en partagent l’empire, la nature et la volonté”. 15 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 36 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 684): “Et sic intellectus cadit sub natura. Est enim ex se determinatus ad intelligendum <...>”. 16 Duns Escoto, Qq. super Metaph. IX, q. 15, n. 24 (ed. St. Bonaventure, 1997, p. 681): “Si ergo huius differentiae quaeritur causa, quare scilicet natura est tantum unius (hoc est – cuiuscumque vel quorumcumque sit – determinate ex se illius vel illorum), voluntas autem est oppositorum (id est, ex se indeterminate huius actionis vel oppositae, seu actionis vel non actionis), dici potest quod huius nulla est causa”.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
53
percepção (aquilo que Escoto denomina ‘conhecimento intuitivo’) <...>”17 (p. 22).
Por outro lado, tal sensação intuitiva não é capaz de conhecer a própria
singularidade da coisa, dizendo respeito antes à sua natureza comum enquanto
existente: “[n]ós conhecemos [cognize] não somente o singular mas também a
natureza comum; mas tal como a natureza comum não existe sem singularidade,
assim também não conhecemos [cognize] intuitivamente a natureza, existente e
presente, sem singularidade. O que não podemos conhecer [know], decerto, é a
haecceidade <...>”18 (p. 22). Em outras palavras, a sensação conhece as naturezas
existentes e presentes enquanto existentes e presentes, de tal maneira a
conhecê-las enquanto singulares (mas não em sua singularidade – isto é, naquilo
pelo que cada qual é um tal singular). O grande problema está em transferir essa
doutrina dos sentidos para o intelecto – precisamente aquilo que Duns Escoto
pretende fazer. O próprio Cross nos alerta a respeito das dificuldades, agora já
tratando do conhecimento intuitivo intelectual: “há diversos debates a respeito da
natureza precisa e do escopo do conhecimento intuitivo na visão de Escoto. É
possível, em nosso estado atual, ter conhecimento intuitivo de objetos
extramentais? E, se for, tal conhecimento deve contar como uma variedade de
percepção extrassensorial (PES) ou ele envolve em algum sentido espécies
intermediárias?”19 (p. 45).
A convicção de Cross é que “Escoto, pelo menos em seu trabalho tardio,
vem a aceitar que o conhecimento intuitivo de objetos extramentais é, de fato,
possível e que ele sempre requer algum tipo de espécie (sensível)”20 (p. 45).
Além disso, em um longo desenvolvimento neste cap. 2, o comentador conclui
17 “Sensation is standardly a case of perception (what Scotus calls ‘intuitive cognition’) <...>” (grifo no orig.). 18 “We cognize not merely the singular but also the common nature; but just as the common nature does not exist without singularity, so too we do not intuitively cognize the nature, existent and present, without singularity. What we cannot know, of course, is the haecceity <...>” (grifo no orig.). 19 “There are a number of debates about the precise nature and scope of intuitive cognition in Scotus’s view. Is it possible in our current state to have intuitive cogntion of extramental objects? And if it is, should such cognition count as a variety of extrasensory perception (ESP), or does it involve in any sense intermediary species?”. 20 “Here, I argue that Scotus, at least in his later work, comes to accept that intuitive cognition of extramental objects is indeed possible, and that it always requires some kind of (sensible) species”.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
54
que, nessa posição tardia, não se poderia envolver o fantasma na intelecção
intuitiva (p. 56). Ou seja, resta que a espécie sensível a que o intelecto recorreria
para o conhecimento intuitivo seria aquela dos sentidos externos: “Camille
Bérubé afirma a possibilidade do conhecimento intuitivo dos objetos particulares
por meio [via] dos sentidos. Ele insiste que a sensação (com suas várias espécies)
é em algum sentido um intermediário causal, mas insiste que, não obstante, esse
conhecimento é direto: o ato de sensação não é, ele próprio, o objeto de
intuição nesses casos e o conhecimento intuitivo fornece informação sobre os
objetos enquanto presentes. Parece-me que Bérubé está exatamente correto”21
(pp. 51-2).
Dito isso, é interessante notar como essa interpretação da doutrina da
intuição tardia de Duns Escoto, na qual intelecção intuitiva surge estreitamente
associada à sensação ao mesmo tempo em que exclui qualquer referência à
imaginação, nos remete à noção de conhecimento intelectual do singular
elaborada por Vital de Furno. Nas palavras de John E. Lynch, o “intelecto, Vital
de Furno conclui, conhece o ente [being] singular em sua existência ao conhecer
a sensação que tem lugar em um dos órgãos dos sentidos”22. Como Bérubé
igualmente destacava, para Vital, “nesta e por esta sensação, o intelecto conhece
a atualidade da coisa, não ao lançar seu olhar (aspectus) para fora, por um certo
contato, sobre esta atualidade da coisa enquanto é exterior ao sujeito, mas
somente enquanto ela é no sentido”23. Com efeito, nas Questões disputadas sobre
o conhecimento de Vital de Furno, lemos que “o intelecto conjugado, quando
existe um ato do sentido particular, atinge por apreensão a atualidade da
21 “Camille Bérubé affirms the possibility of intuitive cognition of extramental objects via the senses. He insists that sensation (with its various species) is in some sense a causal intermediary, but insists that, nevertheless, this cognition is direct: the act of sensation is not itself the object of intuition in such cases, and intuitive cognition gives information about objects as present. Bérubé seems to me to be exactly right” (grifos no orig.). Em nota, Cross remete a BÉRUBÉ, C. La connaissance de l’individuel au moyen âge. Préface de P. Vignaux. Montréal – Paris: Presses de l’Université de Montréal – PUF, 1964, p. 201. 22 LYNCH, J. E. The Theory of Knowledge of Vital du Four. St. Bonaventure: The Franciscan Institute, 1972, p. 60: “The intellect, Vital du Four concludes, knows a singular being in its existence by knowing the sensation that takes place in one of the sense organs”. 23 BÉRUBÉ, La connaissance de l’individuel..., 1964, p. 119: “Et dans et par cette sensation, l’intellect connaît l’actualité de la chose, non en portant son regard (aspectus) au dehors, par un certain contact, sur cette actualité de la chose en tant qu’exterieure au sujet, mais seulement en tant qu’elle est dans le sens” (grifos no orig.).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
55
existência de qualquer coisa sensível singular ou, pelo menos, pode atingir, se se
converter”24. Aqui, afirma-se a necessidade e anterioridade do ato do sentido
com respeito ao ato de conhecimento do singular pelo intelecto. Mais adiante,
Vital descreve com mais detalhes a relação entre essas duas potências
cognoscitivas neste caso de conhecimento: “o intelecto, porém, atinge
diretamente a mesma atualidade tal como é no sentido, uma vez que apreende
diretamente a própria sensação ou o movimento que o sensível faz enquanto
presente e existente em ato no sentido particular <...>; ele, porém, não estende
seu olhar como que de modo tátil [quasi modo tactivo] sobre uma tal atualidade
sensível como é fora enquanto é fora, mas somente enquanto é no próprio ato
do sentidos <...>”25.
Note-se como, para Vital, o conhecimento intelectual do singular diz
respeito à existência e presença da coisa já conhecida presentemente em ato pelo
sentido. A meu ver, esse estreitamento, em Vital, da relação entre intelecto e
sentido externo sem necessidade da intermediação do fantasma é algo próximo
da doutrina da intelecção intuitiva que Cross lê em Duns Escoto. De outra parte,
parece haver um claro afastamento entre os dois mestres escolásticos: se para
Vital o intelecto conhece o singular somente enquanto este é no sentido, para
Duns Escoto, sempre lendo-o com Cross, o sentido é somente um meio para que
o intelecto chegue ao próprio singular em si mesmo, em sua existência própria.
Essa dissensão fica muito clara quando atentamos para os vocabulários de cada
autor: para Vital, o intelecto não se estende “de modo tátil [modo tactivo]” para
além do sentido, enquanto para Duns Escoto a intelecção intuitiva justamente
possui uma relação pela qual atinge (attingit) a coisa enquanto existente (“relatio
attingentiae alterius ut termini”)26. De fato, o caráter fundamental dessa relação
24 Vital de Furno, Qq. de cognitione, q. 1, co. (ed. Delorme, AHDLMA 1927, p. 179): “<...> dico quod intellectus coniunctus, actu existente sensus particularis, apprehensione attingit actualitatem existentiae cuiuslibet rei sensibilis singularis vel saltem, si convertat se, attingere potest”. 25 Vital de Furno, Qq. de cognitione, q. 1, co. (ed. Delorme, AHDLMA 1927, p. 179): “Intellectus autem directe eamdem actualitatem, ut est in sensu, attingit, pro eo quod apprehendit directe ipsam sensationem seu motionem quam facit sensibile ut praesens et actu existens in sensu particulari <...>; non tamen extendit aspectum quasi modo tactivo supra huiusmodi illam actualitatem sensibilis ut est extra secundum quod est extra, sed solum secundum quod est in ipso actu sensus <...>”. 26 Duns Escoto, Quodl., q. 13, nn. 34-36 [11] (ed. Alluntis, 1968, pp. 458-9).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
56
para a caracterização da intuição intelectual no Doutor Sutil é destacado por
Cross no cap. 8 (pp. 150-70). Em todo caso, seja por dissensões ou
concordâncias, a leitura de Cross parece aproximar a doutrina do conhecimento
intelectual do singular desenvolvida por Duns Escoto daquela elaborada por Vital
de Furno. A relação entre esses dois autores nesse campo é algo que ainda se
está por explorar mais profundamente.
II.III. Um dos aspectos mais polêmicos do livro de Cross é, possivelmente, sua
defesa de que haveria uma concepção de ‘linguagem mental’ (mental language) na
filosofia de Duns Escoto: “<...> eu afirmo que Escoto possui a descrição de uma
linguagem mental que, embora não particularmente similar à de Ockham,
claramente antecipa aspectos da teoria do próprio Ockham”27 (p. 201). Essa tese,
como já mencionado, é desenvolvida no cap. 9. Aí lemos que, para Cross, a
maneira como Duns Escoto associa verdade e pensamento em sua obra termina
por exigir algum modo de complexidade ou estrutura sintática nos conceitos do
intelecto: “[m]inha impressão é que Escoto está tentando encontrar um modo
de falar a respeito do fato de que (no que, creio, ele acredita) pensamentos são
os portadores fundamentais de valores de verdade e que isso exige que alguns
deles possuam algum tipo de estrutura sintática”28 (p. 181). Não pretendo aqui
discutir a proposta de que haveria uma linguagem mental (sintaticamente
estruturada) na filosofia de Duns Escoto. Antes, interessa-me apenas destacar um
elemento da argumentação de Cross.
Ao buscar ilustrar mais claramente como ocorreria, para o Doutor Sutil,
a composição de estruturas sintáticas a partir de conceitos simples, o
comentador recorre a um dos textos mais pesquisados por aqueles interessados
na concepção de linguagem em Duns Escoto, a saber, Ord. IV, d. 8, q. 2. Nessa
questão, estuda-se a fórmula da eucaristia e o seu papel na produção do
sacramento. Em determinado momento da argumentação, torna-se necessário
27 “So too, I maintain that Scotus has an account of mental language, that, while not particularly like Ockham’s, clearly anticipates aspects of Ockham’s own theory”. 28 “My impression is that Scotus is trying to find a way to talk about the fact that (as I think he believes) thoughts are the fundamental bearers of truth-values, and that this requires some of them to have some kind of syntactic structure” (grifo no orig.).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
57
explicar mais precisamente como um ouvinte pode, a partir de palavras ouvidas,
formar o conceito de uma proposição. Nesse ponto, lemos os trechos que
interessam a Cross: [i] “o intelecto, no último instante <sc. da enunciação>,
causa por sua colação [per suam collationem] o intelecto ou o conceito do
todo”29; e [ii] “<...> aquela significação <sc. da parte da oração> não é a razão
formal de que se cause aquele conceito no ouvinte, mas é uma disposição
anterior à qual se segue, pela colação do intelecto, a causação do conceito todo
a partir dos conceitos causados pelas partes”30. Assim Cross interpreta tal
posição: a “ideia é que as partes da enunciação são mantidas como ‘disposições’,
que o intelecto combina na conclusão da enunciação – e, suponho, de maneiras
que espelham a estrutura sintática da enunciação falada”31 (p. 177). Destarte,
nessa leitura, o conceito do todo formado pelo intelecto do ouvinte ao fim do
enunciado será sintaticamente semelhante ao próprio enunciado – isto é, será
uma estrutura sintática conceitual que espelha a estrutura sintática da oração
pronunciada. Porém, uma vez que o intelecto, antes de produzir o conceito do
todo deve produzir o conceito de cada parte à medida que as partes do
enunciado são pronunciadas, é preciso explicar de que maneira o intelecto
conheceria, ao fim do enunciado, o papel sintático de cada uma das partes. A
meu ver, é por essa razão que Cross acrescenta: “suponho que os conceitos
causados pelas partes vêm com marcadores sintáticos de algum tipo”32 (p. 178).
Em poucas palavras, o intelecto produziria diversos conceitos no decorrer da
pronúncia do enunciado, cada qual com um marcador sintático que permitiria, ao
29 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 108 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “<...> intellectus in ultimo instanti <sc. prolationis> per collationem suam causat intellectum vel conceptum totius”. Na tradução de Cross: “The intellect, in the final instant of [the utterance], causes, by means of its combining (collationem), the understanding or concept of the whole” (p. 177). 30 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 109 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “<...> significatio illa non est ratio formalis causandi illum conceptum in audiente, sed est quaedam dispositio praeambula, ad quam – per collationem intellectus – sequitur causatio totius conceptus ex conceptibus per partes causatis”. Na tradução de Cross: “The signification [of the parts of the utterance] is not the formal grounds for causing the concept [of the whole utterance] in the hearer, but is a kind of preliminary disposition (dispositio praeambula) from which follows, through the intellect’s combination, the causation of the whole concept from the concepts caused by the parts” (p. 178, grifos no orig.). 31 “The idea is that the parts of the utterance are kept as ‘dispositions’, which the intellect combines at the conclusion of the utterance – and, I assume, in ways that mirror the syntactic structure of the spoken utterance”. 32 “I assume the concepts caused by the parts come with syntactic markers of some kind”.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
58
fim de tal pronúncia, a combinação correta de tais conceitos e, assim, a formação
de um único conceito do todo sintaticamente estruturado de acordo com o
enunciado ouvido.
O principal problema em tal interpretação é, parece-me, a ausência de
referência à imaginação na descrição da comunicação. Com efeito, se atentarmos
para as linhas anteriores ao trecho [i] citado por Cross, colocando tal passagem
em contexto, lemos: [iii] “<...> embora o conceito seja feito no intelecto no
instante após o enunciado da oração ou da palavra, não é feito por ela <...>, mas
no fim do enunciado de qualquer palavra [dictionis], por algo causado na fantasia
pela palavra, por cuja razão – enquanto <ela> era enunciada –, o intelecto causa
em si um conceito da palavra. Ou, mais quanto ao proposto, o intelecto, no
último instante, causa por sua colação [per suam collationem] o intelecto ou o
conceito do todo por aquilo que foi deixado por cada palavra [per aliqua derelicta
a singulis dictionibus] enquanto era enunciada”33. Isso que é deixado por cada
palavra não pode ser algo no intelecto, pois Duns Escoto justamente argumenta
no início deste trecho que a palavra nada causa diretamente no intelecto, mas
antes o intelecto causa em si algo a partir daquilo que a palavra deixou na
fantasia ou imaginação. Ou seja, a imaginação surge aqui como um importante
intermediário entre a palavra ou oração enunciada e o conceito desta palavra ou
oração. A pergunta é: isso afeta em alguma medida a interpretação proposta por
Cross?
A resposta a essa questão depende de como entendemos a collatio a que
Duns Escoto se refere nos textos [i], [ii] e [iii] aqui citados. Cross traduz collatio
pelo inglês “combining / combination”34. Tal tradução favorece sua interpretação,
uma vez que, nessa leitura, o intelecto já possui certos conceitos que ele, em
seguida, combina sintaticamente. No entanto, o mesmo collatio pode ser tomado
como a ação de ‘coletar’ ou ‘coligir’. Nesse caso – e, agora, reintroduzindo a
33 Duns Escoto, Ord. IV, d. 8, q. 2, n. 108 (ed. Vaticana, vol. 12, p. 26): “Ideo dico: cum conceptus fiat in intellectu in instanti post prolationem orationis vel dictionis, non fit per illam, quia illa non est sicut arguitur, sed in fine prolationis cuiuscumque dictionis, per aliquid causatum in phantasia a dictione, cuius ratione – dum fuit in prolatione – intellectus causat in se conceptum aliquem dictionis. Vel ad propositum magis, per aliqua derelicta a singulis dictionibus, dum proferebantur, intellectus in ultimo instanti per collationem suam causat intellectum vel conceptum totius”. 34 Cf. notas 29 e 30, acima.
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
59
imaginação ou fantasia como intermediário entre a enunciação e a intelecção –,
podemos entender que o intelecto, a cada passo da enunciação, forma um
conceito em si a partir da imagem produzida pela palavra na imaginação e, além
disso, ao fim da enunciação, se volta para todas essas imagens (na fantasia) das
diversas palavras enunciadas, formando para si um único conceito do todo.
Nesta última intepretação, a collatio não seria a ‘combinação’ de conceitos já
possuídos, mas o ato pelo qual o intelecto ‘colige’ ordenadamente os efeitos
ordenados das diversas palavras sobre a fantasia, isto é, as imagens. Esta última
parece ser a interpretação de Alain de Libera e Irène Rosier-Catach quando
dizem que “[p]or aquilo que é deixado, depositado, por cada uma das palavras da
fórmula sucessivamente pronunciadas, o intelecto, voltando-se sobre si ao
recapitular ou agrupar essas diferentes imagens por um processo de collatio,
causa o conceito total da frase”35. Deste ponto de vista, a collatio é certamente
uma atividade do intelecto – um voltar-se do intelecto sobre si –, mas que diz
respeito às imagens, isto é, àquilo que as palavras e, ao cabo, a oração deixaram
para trás na fantasia. Agora, a referência a uma collatio por parte do intelecto não
mais remete ou pressupõe uma estrutura sintática conceitual no intelecto, mas
simplesmente uma série sucessiva e ordenada de efeitos sensíveis das palavras
sobre a imaginação. A partir dessa série – ou melhor, coligindo as etapas dessa
série –, o intelecto pode formar para si um conceito único do todo da oração
que, enquanto enunciado, deve ser composto de diversas partes ordenadas
gramaticalmente. Em suma, ao não enfatizar o papel da fantasia na concepção de
comunicação proposta por Duns Escoto em Ord. IV, d. 8, q. 2, Cross termina por
desconsiderar uma possível interpretação desse trecho que prescindiria do
recurso a uma hipotética estrutura sintática dos conceitos do intelecto.
35 LIBERA, A. de, ROSIER-CATACH, I. “L’analyse scotiste de la formule de la consécration eucharistique”. In: MARMO, C. (ed.). Vestigia, imagines, verba. Semiotics and Logic in Medieval Theological Texts (XIIth-XIVth century). Turnhout: Brepols, 1997, pp. 171-102 (cf. p. 181): “Par ce qui est laissé, déposé, par chacun des mots de la formule successivement prononcés, l’intellect, retournant en lui-même en récapitulant ou regroupant ces différentes images par un processus de collatio, cause le concept total de la phrase”. Cf. tb. ROSIER-CATACH, I. La parole efficace. Signe, rituel, sacré. Paris: Éditions du Seuil, 2004, pp. 437-8. O próprio Cross remete a este último texto (p. 178, nt. 27).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
60
II.IV. Um último ponto que desejo sublinhar diz respeito àquilo que Cross
denomina, no cap. 10, ‘estatuto ontológico do conteúdo mental’ (“ontological
status of mental content”, p. 182) ou, melhor, à relação entre esse tema e o
problema da intencionalidade em Duns Escoto, estudado no cap. 8. Centrais para
o tratamento que Cross devota às duas temáticas são, respectivamente, a noção
de esse intelligibile e a caracterização relacional do conhecimento intelectual
formulada – não somente, mas principalmente – em Quodl., q. 13, nn. 35 [11] (ed.
Alluntis, 1968, p. 459), trecho lido atentamente pelo comentador (p. 153). Em
particular, interessa-me aqui destacar a consideração acerca da primeira relação
que Duns Escoto atribui ao ato de intelecção no referido trecho, a saber, a
relação “do mensurável à medida [mensurabilis ad mensuram]”. Dada a
importância dessa relação para a caracterização da intelecção – mormente, da
intelecção abstrativa – em Duns Escoto, Cross dedica razoável espaço a seu
estudo. Na tentativa de esclarecer o que seria a ‘medida’ a que o Doutor Sutil se
refere aqui, Cross se volta, entre outros, para um excerto do mesmo Quodl., q.
13, onde lemos que uma operação como a intelecção em ato “é algo mensurável
por um objeto, isto é, naturalmente apto a depender em sua entidade do objeto
e isso naquela dependência especial que é daquilo que é similitude por imitação
ou participação para com aquilo de que é similitude”36. Nessa passagem, Duns
Escoto parece pretender explicar a relação ‘do mensurável à medida’ na
intelecção humana como algum tipo de participação, a qual o Doutor Sutil busca
esclarecer algumas linhas antes por comparação à relação entre o intelecto
divino e a ideia conhecida37. Em face desse discurso sobre uma relação de
36 Duns Escoto, Quodl., q. 13, n. 41 [13] (ed. Alluntis, 1968, p. 462): “<...> operatio est huiusmodi, quia est aliquid mensurabile per obiectum, hoc est, aptum natum in entitate sua dependere ad obiectum, hoc in speciali tali dependentia qualis est eius quod est similitudo per imitationem vel participationem ad illud cuius est similitudo”. Na tradução de Cross: “[An act of cognition] is something that is measurable by an object, that is, is naturally apt in its entity to depend on an object with that special dependence which is its, which is likeness (similitudo) by imitation [of] or participation in that thing of which it is a likeness” (p.154, grifos no orig.). 37 Duns Escoto, Quodl., q. 13, n. 39 [12] (ed. Alluntis, 1968, p. 461): “Cum aliquid possit multipliciter participare perfectionem ab alio, actus cognoscendi sic participative se habet respectu obiecti sicut similitudo respectu cuius est. Non dico similitudo per communicationem eiusdem formae, sicut est albi ad album, sed similitudo per imitationem, sicut est ideati ad ideatum”. Na tradução de Cross: “When something can participate in many ways in the perfection of another, so the act of knowing is related to the object by participation, just as a likeness is to that of which it is a likeness. I do not mean a likeness through communication of the
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
61
participação entre objeto e intelecto, a qual poderia ser explicada por uma
aproximação dos casos do conhecimento divino e do conhecimento humano,
Cross afirma o seguinte: “<...> nós não possuímos compreensão da primeira
relação – o modo no qual o ideado é medido por uma ideia divina. Então, a lição
aqui é que há simplesmente uma relação de participar (do modo relevante), ser
(relevantemente) como ou imitar, a qual não admite análise conceitual ulterior”38
(p. 155). Em outras palavras, o máximo a que chegamos na tentativa de
esclarecer o que seria a relação ‘do mensurável à medida’ envolvida na intelecção
é sua caracterização como algum tipo de ‘participação’.
É nesse momento, parece-me, que está a falha na interpretação de Cross.
Como mostrado por Dominique Demange39, a caracterização do conhecimento
intelectual como relação ‘do mensurável à medida’ diz respeito principalmente
(não a uma doutrina da participação, como quereria o autor do livro ora
resenhado, mas) à noção de ‘quantidade virtual’ desenvolvida por Duns Escoto
em etapas do seu trabalho. Com efeito, há textos em que o Doutor Sutil se
refere a uma quantidade – não categorial, mas transcendente e, assim,
conveniente a todo e cada ente – que caracterizaria cada ente localizando-o na
ordem do universo40. Essa noção transcendente de quantitas pode ser uma chave
de leitura para a concepção do conhecimento como relação ‘do mensurável à
medida’, uma concepção que surge não somente no Quodlibet de Duns Escoto,
mas também em suas Questões sobre a Metafísica41. Justamente ao estudar a
temática do conhecimento como relação ‘do mensurável à medida’ com base em
Quodl., q. 13, Demange afirma que a “verdade do conhecimento consiste em uma
same form, as in the case of a likeness between two white objects, but a likeness through imitation, as in the case of the likeness of what is ideated to an idea” (p. 154). 38 “Now, this is, of course, wholly uninformative, because we have non grasp of the first relation – the way in which the ideated is measured by a divine idea. So the lesson is that there is simply a relation, of participating (in the relevant sort of way), or being (relevantly) like, or imitating, that does not admit of further conceptual analysis” (grifos no orig.). 39 DEMANGE, D. “‘Objet premier d’inclusion virtuelle’. Introduction à la théorie de la science de Jean Duns Scot”. In: BOULNOIS, O., KARGER, E., SOLÈRE, J.-L., SONDAG, R. (eds.). Duns Scot à Paris. Actes du colloque de Paris, 2-4 septembre 2002. Turnhout: Brepols, 2004, pp. 89-116 (esp. pp. 105-9); e DEMANGE, Jean Duns Scot. La théorie..., 2007, pp. 236-40. 40 Cf. Duns Escoto, Quodl., q. 6, n. 13 [5] (ed. Alluntis, 1968, pp. 209-10); e Rep. I-A, d. 31, q. 1-3, n. 58 (ed. Wolter & Bychkov, 2008, p. 285). 41 Duns Escoto, Qq. super Metaph. VI, q. 3 (ed. St. Bonaventure, 1997, pp. 57-84). Cf. tb. Qq. super Metaph. V, q. 12-14, nn. 94-9 (ed. St. Bonaventure, 1997, pp. 637-8).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
62
medida da entidade, quer dizer, em uma relação [rapport] de quantitas virtualis”42.
Nesse sentido, talvez se possa dizer que a intelecção é medida pela quantidade
transcendente típica de cada objeto seu – um ato de intelecção é sobre algo
enquanto toma por medida a quantidade virtual deste algo.
Dito isso, parece-me que a atenção a essa noção de quantitas
desenvolvida por Duns Escoto poderia ter contribuído para a argumentação de
Cross, não somente no cap. 8 (onde é estudada a relação ‘do mensurável à
medida’), mas também no cap. 10. Aí, o comentador defende que o esse
intelligibile a que o Doutor Sutil tantas vezes se refere ao caracterizar o
conhecimento não seria algo distinto do próprio acidente real que é a intelecção
em ato. Esse ser intencional seria realmente idêntico ao ato de intelecção que é,
por sua vez, um acidente na alma: “é simplesmente a estrutura real do item
representacional que explica o conteúdo”43 (p. 195). Na terminologia de Cross,
esse ‘ser inteligível’ é algo intencionalR, isto é, algo real com caráter intencional e
que remete a algo realR ou, dito mais simplesmente, a uma forma natural
estritamente real (não havendo na ontologia de Duns Escoto, para Cross, um
item intencionalI, ou seja, exclusivamente intencional – cf. pp. 35-6, 195). Uma
possibilidade para a compreensão dessa ‘estrutura real do item representacional’,
da qual provém o conteúdo, seria buscar associá-la à noção transcendente de
quantitas desenvolvida pelo Doutor Sutil. Quiçá, poderíamos dizer que o ato de
intelecção (um acidente real) remete a um objeto porque tal ato, de algum
modo, possui uma quantidade essencial proporcional àquela do objeto
conhecido. Destarte, parece-me que a discussão desenvolvida por Cross acerca
do estatuto ontológico do conceito e de seu caráter relacional poderia ser muito
enriquecida pela consideração dessa noção transcendente de ‘quantidade’ que
Demange busca destacar no pensamento de Duns Escoto.
42 DEMANGE, “‘Objet premier d’inclusion virtuelle’”, 2007, p. 109: “La vérité de la connaissance consiste dans une mesure de l’entité, c’est-à-dire dans un rapport de quantitas virtualis” (grifo no orig.).43 “<...> it is simply the real structure of the representational item that explains content <...>” (grifo no orig.).
CROSS,R.DunsScotus’sTheoryofCognition
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
63
III.
Como dito anteriormente, estes são alguns poucos temas dentre os diversos que
merecem discussão no livro de Cross – e que, como mencionado, já foram
abordados em diversas resenhas. Pareceu-me, porém, interessante ressaltá-los
por serem temas centrais para a filosofia de Duns Escoto, sendo a discussão
deles claramente suscitada pela obra ora resenhada. Temáticas como (II.I.) a
distinção entre intelecto e vontade, (II.II.) aquela entre intuição e abstração,
(II.III.) a noção de comunicação associada à temática teológica dos sacramentos e
(II.IV.) a discussão sobre o ser típico do objeto de intelecção são, dentre outros,
elementos fundamentais na filosofia do Doutor Sutil. De fato, uma virtude do
texto de Cross é justamente mostrar a diversidade de temas que está associada
à doutrina da intelecção – e, em geral, do conhecimento – desenvolvida por João
Duns Escoto. Que se busquem aqui interpretações alternativas a algumas
daquelas propostas por Cross em Duns Scotus’s Theory of Cognition mostra
somente o quão proveitosa pode ser sua leitura para o estudioso das obras do
Doutor Sutil.