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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 6 (2014) - 01 - CALMA, D. Le poids de la citation: étude sur les sources arabes et grecques dans l'oeuvre de Dietrich de Freiberg (M. B. P. de Oliveira) - 08 - HENRI DE GAND. Sur la possibilité de la connaissance humaine (G. B. Vilhena de Paiva) - 19 - TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent (G. B. Vilhena de Paiva) - 31 - NOVOTNÝ, D. D. Ens rationis from Suárez to Caramuel: a Study in Scholasticism of the Baroque Era (P. F. Pricladnitzky) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG) Revisão: Gustavo Paiva

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 6 (2014)

- 01 -

CALMA, D. Le poids de la citation: étude sur les sources arabes et grecques dans l'oeuvre

de Dietrich de Freiberg (M. B. P. de Oliveira)

- 08 -

HENRI DE GAND. Sur la possibilité de la connaissance humaine

(G. B. Vilhena de Paiva)

- 19 -

TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent (G. B. Vilhena de Paiva)

- 31 -

NOVOTNÝ, D. D. Ens rationis from Suárez to Caramuel: a Study in Scholasticism of the

Baroque Era (P. F. Pricladnitzky)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu

Mazzola Verza (UFMG)

Revisão: Gustavo Paiva

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CALMA, D. Le poids de la citation: étude sur les sources arabes et

grecques dans l'oeuvre de Dietrich de Freiberg, Fribourg CH:

Academic Press Fribourg, 2010, 386 p.

Matheus B. Pazos de Oliveira* ___________________________________________

Os autores medievais possuem, dentre outras características, uma marca comum

em seus textos, qual seja: a presença constante de citações de outrem.

Poderíamos afirmar que o modo peculiar com o qual essas citações são

mobilizadas explicitam a importância atribuída por esses autores às autoridades,

isto é, às fontes que os precederam e que formam a base segundo a qual o

desenvolvimento de todo saber constituído nesse período histórico deveria se

fundamentar. A partir desse aspecto comum, caberia ao medievista analisar o

conteúdo da citação escolhida e, sobretudo, examinar a importância dessa

escolha no conjunto do argumento apresentado ou mesmo do conjunto da obra

a ser estudada. Entretanto, o livro de Dragos Calma, intitulado O peso da citação:

estudo sobre as fontes árabes e gregas na obra de Dietrich de Freiberg, acena para

outro aspecto comumente ignorado por aqueles que se debruçam em textos

medievais repletos de citações.

Resultado de uma pesquisa realizada em Londres e que complementa seu

estudo de doutorado, realizado em Paris, Calma tem por objetivo analisar os

aspectos formais das citações de fontes árabes e gregas na obra de Dietrich de

Freiberg (c.1250 - c.1310). Para justificar sua tarefa, constata, por exemplo, erros

notórios na atribuição de citações na obra de Dietrich encontrados no Index

Auctoritatum da edição crítica deste autor,1 bem como num artigo que também se

                                                                                                                         * Doutorando em filosofia na Universidade Estadual de Campinas, bolsista da FAPESP. 1 A edição crítica de Dietrich de Freiberg faz parte do Corpus Philosophorum Teutonicorum Medii Aevi e é composta por quatro volumes: DIETRICH VON FREIBERG. Opera Omnia, t. I-IV, Veröffentlicht unter Leitung von Kurt Flash. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1977-1985. Loris Sturlese organizou o Index Auctoritatum acima mencionado e que se encontra no IV volume da edição crítica, pp. 311-339.

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2  CALMA,  D.  Le  poids  de  la  citation  

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propunha a traçar uma espécie de taxinomia das citações de autores árabes na

obra de Dietrich.2

Ainda no que diz respeito ao objetivo geral de seu livro, Calma estabelece

alguns critérios a partir dos quais analisará o uso das citações árabes e gregas na

obra de Dietrich. Em primeiro lugar, apresenta uma reconstrução do verbo

‘citar’ a partir do remoto sentido que este verbo possuía em escritos gregos,

bem como na origem deste verbo no contexto latino, seja em sua acepção

jurídica, seja no que concerne aos contextos literário e filosófico (cf. pp. XVIII-

XXVI). A partir disso, Calma especifica três níveis de citação dos quais Dietrich e

autores próximos ao seu contexto histórico se valiam como recurso

argumentativo (cf. pp. 3-6).

O primeiro nível de citação consiste na transcrição atenta do trecho citado

(citação ad litteram) e pode ser identificado na obra de Dietrich quando este

utiliza expressões como unde Philosophus..., ubi dicit..., loquendo de hoc dicit...,

deinde dicit... etc. Combinada a essas expressões, ocorre a citação direta da obra

de outrem e, para Calma, esse nível de citação denota, na maioria dos casos, um

conhecimento preciso e direto do texto da autoridade que o autor procura

destacar. O segundo nível de citação, por sua vez, consiste na apresentação

aproximada do texto citado (citação ad sensum). Neste nível, o autor resume o

texto mencionado ou mesmo modifica alguns conceitos sem, no entanto, se

distanciar do sentido presente no texto citado. Na obra de Dietrich, esse nível

pode ser reconhecido, por exemplo, na utilização das seguintes expressões: hoc

idem dicit Commentator scilicet..., et hoc expresse dicit scilicet quod... e ubi ponit

exemplum. Com efeito, nesse nível de citação, é possível estabelecer que o autor

conhece diretamente o texto citado e, dado esse conhecimento, pretende

resumir ou citar por memória, mas também, dada a adaptação empreendida,

pode-se afirmar que o autor cita deste modo porque só conhecera o texto

mediante uma fonte intermediária ou, mesmo, porque parte do pressuposto de

que a fonte citada já é suficientemente conhecida por seus leitores, dispensando,

                                                                                                                         2 KANDLER, K.-H. Dietrich von Freiberg und die arabische Philosophie. In: Neue Zeitschrift für systematische Theologie und Religionsphilosophie, 48, 2006, pp. 99-108.

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portanto, a citação literal. O terceiro nível consiste, enfim, no distanciamento

daquilo que foi citado pelo autor, não encontrando sequer uma aproximação de

sentido com o texto da autoridade. Segundo Calma, tais casos de citação se

devem ao fato de que o texto citado provém de uma fonte ruim ou de que o

autor visa modificar deliberadamente o texto citado. As ocorrências desse nível

de citação na obra de Dietrich costumam ser acompanhadas pelas seguintes

expressões: in schola Peripateticorum dicitur ou Avicenna, Algazel, Averroes dicunt.

Nesse nível, torna-se notória a dificuldade em atribuir, como nos dois níveis

acima mencionados, uma fidelidade ou proximidade à citação, na medida em que

conjuga um número diverso de fontes distintas e procura com isso apresentar ao

leitor uma opinião, mediante o recurso da citação, que corresponda a todas

fontes citadas de modo unívoco.

Ao estabelecer os três níveis de citação presentes na obra de Dietrich,

Calma tipifica quatro categorias formais das citações, a saber: (1) o gênero da

evocação com ou sem referência; (2) a exatidão da evocação; (3) a finalidade

formal da evocação e (4) a qualidade da evocação.3 Com isso, tem por intento

demarcar o método utilizado na análise das citações, bem como justificar a

escolha por citações que permitam ao intérprete julgar o alcance do

conhecimento que Dietrich possuía das fontes citadas (cf. pp. 6-14).

O exame comparativo das citações é levado à exaustão no restante do

livro. Assim, Calma apresenta quadros pelos quais o leitor pode acompanhar,

detalhadamente, o confronto entre a fonte e o resultado da citação na obra de

Dietrich. Para tanto, os capítulos que se seguem à introdução metodológica são

divididos a partir de cada fonte a ser analisada. Nesses capítulos, o leitor pode

visualizar a presença na obra de Dietrich das citações de Averróis, Liber de

Causis, Proclo, Avicena e reunidas no último capítulo: Alexandre de Afrodísia, Al-

Farabi, Avempace e Al-Gazali.

A divisão interna dos capítulos segue a mesma estrutura. Em primeiro

lugar, Calma investiga a presença da fonte na obra de Dietrich por meio da

                                                                                                                         3 A partir dessas quatro categorias de análise, Calma especifica treze grupos que constituem a tabela sinóptica para o estudo de cada citação no decorrer do livro (cf. pp. 9-14).

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exposição de cada citação, priorizando o exame do texto fonte citado. A cada

citação exposta em quadros comparativos, se segue um pequeno comentário de

Calma, destacando, por um lado, o grau de conhecimento textual de Dietrich da

fonte citada e, por outro lado, o interesse subjacente à escolha por Dietrich

daquela passagem citada. Num segundo momento, estabelece uma sinopse das

citações apresentadas na primeira parte do capítulo, enunciando a proveniência

de cada citação. Posteriormente, anuncia uma conclusão provisória do material

analisado, ressaltando sucintamente o progresso alcançado pela comparação das

fontes, seja no que diz respeito ao conhecimento textual disponível a Dietrich

quando redigira suas obras, seja quanto à interpretação da doutrina do

dominicano alemão. Enfim, Calma inverte a prioridade de análise e, na última

seção de cada capítulo, apresenta uma etapa intitulada Dietrich de Freiberg, leitor

de X. Esta última serve como prova final de que é possível visualizar a articulação

meticulosa das citações no interior da obra de Dietrich e, principalmente, aponta

brevemente a estratégia argumentativa utilizada pelo autor com relação às suas

fontes.

Após expor uma cuidadosa análise de cada citação no conjunto dos

capítulos, Calma conclui:

A distribuição dessas autoridades nas 34 obras da pluma de Dietrich é a

seguinte: Averróis é citado em 28 textos, o Liber de Causis em 13, Proclo

em 8, Avicena em 7, Alexandre de Afrodísia e Al-Farabi em 2, Avempace e Al-Gazali, cada um, em 1 texto. Nota-se que as obras da trilogia

comportam, em todos os casos analisados, um número grande de

referências: De animatione caeli utiliza 9 vezes Averróis, 6 vezes Proclo, 4

vezes Liber de Causis e 1 vez Avicena; De visione beatifica se utiliza 18 vezes

de Averróis, 10 vezes de Proclo, 8 vezes do Liber de Causis, 3 vezes de Alexandre de Afrodísia e Al-Farabi e 2 vezes de Avicena; De accidentibus se

refere 9 vezes a Averróis e 2 vezes ao Liber de Causis. Outras três obras se

utilizam de uma ou outra dessas autoridades de uma maneira importante:

De origine rerum praedicamentalium inclui 19 ocorrências de Averróis, 2 de Avicena e 1 apenas do Liber de Causis (nenhuma de Proclo). Um caso

particularmente importante parece ser o De intellectu et intelligibili, onde

Proclo é utilizado 20 vezes, o Liber de Causis 17 vezes, Averróis 7 vezes (+ 4

simples menções), Avicena 2 vezes, Alexandre de Afrodísia e Al-Farabi 2

vezes; a presença explícita de 37 ocorrências neoplatônicas e de 11

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ocorrências peripatéticas no De intellectu et intelligibili parece particularmente reveladora da etapa teórica e da finalidade desse tratado:

uma descrição atenta da essência e da operação do intelecto agente, bem

como do intelecto por essência. Em De visione beatifica, o balanço entre as

ocorrências peripatéticas – 18 – e neoplatônicas – 23 – é bem equilibrado:

as primeiras têm o papel de apoiar a argumentação sobre a conversão do intelecto agente a Deus e a união com Ele; as segundas têm o papel de

explicar a superioridade do intelecto agente com relação ao intelecto

possível. O De cognitione entium separatorum et maxime animarum

separatarum se apoia, sem surpresa, sob um grande número de ocorrências

neoplatônicas: 36 vezes o Liber de Causis e 18 vezes o Elementatio, que representa nesse texto unicamente 32% de todas as ocorrências das duas

autoridades consideradas em conjunto. (p. 370)

A partir da passagem supracitada, poderíamos perguntar se a conclusão de

Calma não se restringe à correção numérica das citações na obra de Dietrich.

De fato, uma das motivações iniciais do livro consiste em apontar erros

identificados em outros trabalhos que se propuseram ao mesmo ‘cálculo’.

Contudo, Calma destaca, na conclusão de seu livro, uma consequência

interpretativa advinda desse trabalho técnico que precede o exame

propriamente doutrinário da obra de Dietrich. Nesse sentido, a investigação

técnica das citações pode, por exemplo, contribuir para o debate sobre a

influência neoplatônica na obra de Dietrich, bem como estabelecer o

conhecimento textual que este e outros autores medievais contemporâneos a

ele possuíam da obra de Proclo e do Liber de Causis. A partir disso, Calma

descreve brevemente uma comparação entre a influência neoplatônica na obra

de Dietrich e naquela de Mestre Eckhart, visando desconstruir a classificação

atribuída aos autores medievais ligados, sob certos aspectos, ao pensamento de

Alberto Magno e que são denominados comumente, pela historiografia, como

membros da “Escola dominicana alemã”.4

                                                                                                                         4 Sobre a problematização dessa classificação, consultar LARGIER, Niklaus. Die ,deutsche Dominikanerschule': Zur Problematik eines historiographischen Konzepts. In: AERTSEN, J.; SPEER, A. (eds.). Geistesleben im 13 Jahrhundert. (Miscellanea Mediaevalia 27). Berlin; New York: De Gruyter, 2000, pp. 202-213. Sobre uma interpretação recente que ressalta a influência neoplatônica em Alberto Magno e Dietrich, consultar ANZULEWICZ, Henryk. Hervorgang – Verwirklichung – Rückkehr: Eine neuplatonische Struktur in Denken Alberts des Großen und

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Com efeito, Calma reconhece que seu livro deve ser tomado como um

trabalho técnico que auxilia o intérprete na aquisição de um conhecimento mais

aproximado das fontes utilizadas por Dietrich. Esse reconhecimento, no entanto,

não o impede de sustentar a forte influência de Averróis, bem como o alcance

que o neoplatonismo possui na obra desse dominicano alemão. Assim, o texto

de Calma representa um avanço no que diz respeito ao modo pelo qual as

citações podem ser analisadas no conjunto de uma obra medieval e,

indubitavelmente, atesta o ganho técnico que tal exame prévio das citações pode

garantir ao intérprete da obra de Dietrich.

A despeito de tais qualidades, é importante destacar dois aspectos do livro

que podem ser questionados. O primeiro aspecto consiste na ausência de uma

análise mais robusta das características propriamente doutrinárias das citações.

Apesar de fixar o escopo do livro no tratamento técnico das citações, Calma

menciona que o capítulo sobre Averróis é uma adaptação de um dos capítulos de

sua tese de doutorado intitulada Citações, verdade, milagres. Estudo sobre a

presença de Averróis na obra de Dietrich de Freiberg (2008). Seria interessante para

o leitor ter acesso ao trabalho técnico sobre as citações aliado a uma análise

sistemática da influência das fontes na obra de Dietrich. Isso, certamente,

contribuiria para fortalecer a necessidade desse trabalho prévio com as citações,

bem como deixaria mais evidentes para o leitor as conquistas interpretativas

advindas desse método de enumeração. O segundo aspecto diz respeito à

sugestão de Calma para que seu trabalho suscite a análise similar das autoridades

citadas por Godofredo de Fontaines, Henrique de Gand, Durando de St.

Pourçain e Raimundo Lúlio (cf. p. 17). O real interesse nessa pequena lista de

sugestões consiste na apreciação do modo pelo qual as citações eram utilizadas

no período conturbado de 1270-1277. Com isso, Calma destaca a importância

de se discutir a utilização de fontes árabes e gregas no contexto da condenação

parisiense empreendida por Estêvão Tempier e o modo como tal condenação

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             Dietrichs von Freiberg. In: KANDLER, Karl-Hermann; MOJSISCH, Burkhard; POHL, Norman (hrsg.). Die Gedankenwelt Dietrichs von Freiberg im Kontext seiner Zeitgenossen. Freiberg: Technische Universität Bergakademie Freiberg, 2013, pp. 229-244.  

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influenciou o tratamento das autoridades nos textos medievais desse período.5

Essa escolha de aplicação do método de enumeração e análise das citações não

deixa de ser interessante. Contudo, parece-nos que as estratégias de citação ou

o modo mais crítico de recepcionar as autoridades árabes e gregas já podem ser

atestados em autores que precedem o período sugerido por Calma. Seria,

portanto, interessante ampliar o interesse de aplicação do método empreendido

em seu livro para outros autores medievais, como, por exemplo, Alberto

Magno6, Tomás de Aquino e Duns Scotus.

Em suma, o livro de Calma representa um importante trabalho para os

estudos medievais, principalmente por mostrar que é adequado estabelecer uma

sinopse de citações para, com isso, ampliar o conhecimento que possuímos dos

textos que nos servem de matéria prima para nossas análises sistemáticas. Enfim,

por meio desse método de enumeração e análise técnica, somos levados a

perceber as estratégias, limitações e, sobremaneira, as escolhas que motivaram

Dietrich de Freiberg na redação de suas obras.

                                                                                                                         5 Esse interesse investigativo torna-se mais evidente em CALMA, D. Du bon usage des grecs et des arabes. Remarques sur la censure médiévale. In: BIANCHI, L. (éd.). Christian readings of Aristotle from the Middle Ages to the Renaissance. Actes du Colloque de l’Università del Piemonte Orientale – Vercelli, 18-19 juillet 2009. Turnhout: Brepols (coll. Studia Artistarum, 28), 2011, pp. 51-100. 6 Faz-se necessário lembrar que, em se tratando de Alberto Magno, Bertolacci produzira um trabalho de análise das citações avicenianas utilizadas por Alberto, embora restringindo seu objeto de estudo às citações do Liber de Philosophia prima, de Avicena, no Comentário à Metafísica, de Alberto, cf. BERTOLACCI, Amos. Subtilius speculando: Le citazioni della Philosophia Prima di Avicenna nel Commento alla Metafisica di Alberto Magno. Documenti e Studi sulla Tradizione Filosofica Medievale, 9, 1998, pp. 261-339; idem. Le citazioni implicite testuali della Philosophia prima di Avicenna nel Commento alla Metafisica di Alberto Magno: analisi tipologica. Documenti e Studi sulla Tradizione Filosofica Medievale, 12, 2001, pp. 179-274. Em todo caso, seria interessante realizar esse tipo de trabalho com relação às demais fontes utilizadas por Alberto em sua vasta obra, bem como ampliar as pesquisas em torno do método de enumeração e análise das citações para além do círculo de autores da já mencionada ‘Escola dominicana alemã’.  

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HENRI DE GAND. Sur la possibilité de la connaissance humaine. Textes

latins introduits, traduits et annotés par Dominique Demange.

Paris: Vrin, 2013, 256 p. (Translatio. Philosophies Médiévales).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

1.

O novo volume da coleção Translatio da editora Vrin vem acrescentar Henrique

de Gand ao cada vez mais abrangente elenco de autores medievais traduzidos

nos livros da série (um dos quais, aliás, tive a oportunidade de resenhar em um

número anterior deste caderno).1 Além disso, com essa publicação, Dominique

Demange, já autor de um importante livro sobre João Duns Escoto também

resenhado aqui em um número anterior,2 contribui para a discussão sobre um

dos trechos mais complexos e fundamentais da obra do Doutor Solene, a saber,

as primeiras questões do primeiro artigo da sua Suma de questões ordinárias. Mais

precisamente, Demange apresenta aqui uma tradução francesa em edição

bilíngue, com introdução e notas, de Suma, art. 1, qq. 1-3. Até onde pude

verificar, esse texto conta com mais duas traduções, ambas para o inglês: a

primeira, publicada por Robert Pasnau em 2002,3 de Suma, art. 1, qq. 1-2, e a

segunda publicada por Roland J. Teske em 2008,4 com todas as doze questões do

artigo 1 da Suma. Dito isso, está claro que simplesmente por apresentar uma                                                                                                                          * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: JACQUES DE VITERBE. L’âme, l’intellect et la volonté. Textes latins introduits, traduits et annotés par Antoine Coté. Paris: Vrin (Translatio. Philosophies Médiévales), 2010, 238 p.”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 3 (2011), pp. 14-24. 2 STORCK, A. “Resenha de: DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et non”, 2007, 474p.”. Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 1 (2009), pp. 16-21. 3 PASNAU, R. (ed.). The Cambridge Translation of Medieval Philosophical Texts. Vol. 3: Mind and Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 93-135. 4 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Article One: On the Possibility of Human Knowledge. Translated and edited by Roland J. Teske. South Bent: St. Augustine’s Press, 2008. Sobre R. J. Teske, cf., neste mesmo volume do caderno, a resenha de “TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. Milwaukee: Marquette University Press, 2012, 275 p. (Marquette Studies in Philosophy, n. 76)”.

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9  HENRI  DE  GAND.  Sur  la  possibilité  de  la  connaissance  humaine  

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nova tradução, desta vez para o francês, Demange já merece crédito pelo

trabalho.

Porém, tão importante quanto a tradução dada a público é a referida

introdução que a acompanha no volume. Mais do que um simples resumo do

texto apresentado em seguida, Demange desenvolve na introdução toda uma

complexa interpretação da doutrina da intelecção defendida nesse início da Suma

por Henrique. De fato, o próprio texto traduzido reclama um tal esmero

interpretativo de seu leitor e, principalmente, de alguém que se proponha a

vertê-lo, dado o seu caráter basilar para o desenvolvimento de todo o restante

da Suma – isto é, dos seus longos 74 artigos seguintes. É precisamente nessas

primeiras páginas da obra que o Doutor Solene fornece a mais completa

exposição da sua doutrina da intelecção. E, além dos vários problemas que essa

própria doutrina já traz consigo, uma decisão em particular na sua exposição se

mostrou vexatória para seu leitores tardios, entre os quais nós mesmos: ele

inicia a Suma rechaçando a possibilidade de se negar o conhecimento. Com

alguma liberdade e um certo anacronismo, poderíamos dizer que ele parte de

uma refutação do ceticismo 5 para, a partir dela, apresentar sua defesa da

‘possibilidade de se ter ciência’ – esse é, ademais, o próprio título do artigo 1 da

Suma, de possibilitate sciendi. As perguntas que ficam são, então: donde provém

esse ceticismo refutado? Qual é o papel dessa refutação no desenvolvimento da

doutrina da intelecção de Henrique?

Ao que parece, é a perguntas deste tipo que Demange pretende

responder na introdução à sua tradução. Sendo assim – e acompanhando a

própria organização do livro –, pretendo a seguir discutir esse ensaio

introdutório. Em um segundo momento, destacaremos alguns temas

relacionados à tradução apresentada no volume.

                                                                                                                         5 O próprio Henrique de Gand não se utilizaria de um termo semelhante a ‘ceticismo’ como denominação da posição por ele combatida. Talvez um termo mais fiel ao texto do Doutor Solene fosse uma expressão como “aqueles que negam qualquer ciência” ou algo assim. Entretanto, seguirei aqui Demange no uso do termo ‘ceticismo’ que, não obstante anacrônico, se mostra simplesmente mais prático e fiel ao comentador resenhado.

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II.

A dificuldade mais patente em abordar o problema do ceticismo na obra de

Henrique de Gand é a sua complexa recepção pelos seus leitores

contemporâneos. Um mérito de Demange é, justamente, haver levado em

consideração uma boa parte dessa bibliografia auxiliar existente atualmente, que

é por ele enumerada ao final do volume resenhado (pp. 251-253). Se, por um

lado, essa bibliografia razoavelmente vasta permite uma abordagem aprofundada

do tema, por outro, ela gera a necessidade de uma cuidadosa reflexão por parte

daquele que deseje contribuir para a discussão nesse campo dos estudos sobre a

obra do Doutor Solene.

O primeiro passo de Demange, após uma rápida apresentação da vida,

produção e relevância histórica de Henrique de Gand (pp. 7-8), é introduzir o

problema que aflige este último no início da Suma – a saber, a sua já referida

pesquisa de possibilitate sciendi, isto é, sobre “la possibilité du savoir” (pp. 9-12).

Nesse trecho, busca-se mostrar como a doutrina da intelecção aí desenvolvida se

insere no contexto das discussões filosóficas do século XIII acerca do

conhecimento intelectual e, em geral, do conhecimento verdadeiro. De certo

modo, a concepção de intelecção apresentada por Henrique surge aqui como o

resultado de um longo processo de especulação acerca da verdade enquanto

intelecção divina e da relação desta com a verdade tal como concebida pelo

homem. Nessa contraposição, ocorre o embate entre a noção de abstração (que

pressupõe um conhecimento intelectual originário dos sentidos) e o

exemplarismo (que exige, de algum maneira, um acesso à verdade tal como ela é

no próprio intelecto divino). Segundo Demange, esse embate se cristaliza na

obra do Doutor Solene como a oposição entre a iluminação geral de Deus (que

permite ao homem a abstração intelectual) e a iluminação especial (que dá ao

homem acesso à verdade eterna): “a necessidade da ‘iluminação especial’ que

vem completar (como?) a iluminação geral de Deus no conhecimento humano

encontra sua origem na convicção de que o julgamento racional não pode

encontrar no processo aristotélico de abstração um fundamento suficiente” (p.

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12).6 É essa oposição entre ‘iluminação especial’ e ‘iluminação geral’ que torna,

necessariamente, questionável a possibilidade de conhecimento verdadeiro, pois,

como Demange destaca neste excerto: como poderia ocorrer esse necessário

complemento da iluminação geral pela iluminação especial? É nesse contexto que

surge o ceticismo como problema na Suma de Henrique, pois se tal

complemento não puder ter lugar, torna-se impossível o conhecimento

verdadeiro – o ‘ter ciência’, scire, ‘savoir’ (no francês de Demange) – para o

homem.

Agora, portanto, o autor se encontra em posição de estudar como o

Doutor Solene aborda o desafio cético (pp. 12-16). O contexto da Suma em que

esse tema surge é a necessária defesa da possibilidade do conhecimento

verdadeiro (científico) para que, em seguida, seja possível defender que há uma

teologia enquanto ciência (pp. 12-13). Notando que “[i]l n’y a pas des sceptiques

au Moyên Âge” (p. 13), o autor buscar explicar esse interesse de Henrique pelo

ceticismo por meio de um acontecimento contemporâneo à produção do início

da Suma, a saber, as famosas condenações de 1277, fruto do estabelecimento de

uma comissão pelo bispo Estêvão Tempier, a qual era composta, entre outros,

precisamente pelo próprio Doutor Solene.7 Sendo uma tentativa de oposição

teológica a qualquer especulação filosófica que se pretendesse independente da

teologia, a condenação de 1277 teria ganhado uma “version théorique et

doctrinale” (p. 15) nas questões iniciais da Suma de Henrique. Dessa maneira, o

texto em tradução surge não como uma refutação do ceticismo, mas como um

ataque a qualquer pretensão de autonomia da filosofia com relação à teologia,

pois (e esse é o ponto crucial) a filosofia por si só está sujeita ao ceticismo e dele

só escapa pela “lumière théologique” (pp. 14-15).

Ora, não havendo céticos em sua própria época, Henrique teve que

                                                                                                                         6 “La nécessité d’une « illumination spéciale » qui vienne compléter (comment ?) l’illumination générale de Dieu dans la connaissance humaine trouve son origine dans la conviction que le jugement rationnel ne peut trouver dans le processus aristotélicien d’abstraction un fondement suffisant”. 7 Cf. PORRO, P. “An Historiographical Image of Henry of Ghent”. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the Occasion of the 700th Anniversary of his Death (1293). Leuven University Press, Leuven, 1996, pp. 373-403.

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buscar o material para tal discussão em escritos antigos, donde o interesse pelo

estudo das fontes desse ceticismo descrito pelo Doutor Solene, que surge como

um excurso de Demange sobre a história do ceticismo (pp. 16-27). Muito

embora possa servir como uma introdução ao tema para um leitor com menos

conhecimento sobre a história do ceticismo antigo e tardo-antigo, o mais

importante nessa passagem é a própria descrição das fontes utilizadas por

Henrique – e elas não deixam de surpreender. Enquanto o uso dos diálogos

Acadêmicos de Cícero (mais precisamente, do Lucullus ou Academica priora) e do

Contra acadêmicos de Agostinho não parece inesperado, a utilização da Metafísica

de Aristóteles, por outro lado, merece explicações. O uso conjunto dessas três

obras como fontes para descrição dos argumentos céticos se deve ao fato de

que, para Henrique, os acadêmicos negavam a possibilidade de se ter ciência tal

como certos pré-socráticos8 o faziam (pp. 16-17). Assim, se Cícero e Agostinho

são ótimas fontes para a doutrina dos acadêmicos, Aristóteles o é no que diz

respeito àquelas dos pré-socráticos. Como se pode ver, por outro lado, não há

qualquer fonte pirrônica que seja utilizada por Henrique.

Em um segundo momento do estudo das fontes do Doutor Solene,

Demange se volta para autores do século XIII que tenham relacionado aquele

exemplarismo de que ele já falara antes e a problemática cética. Nesse ponto,

surge Boaventura de Bagnoregio que busca, nas suas Questões disputadas sobre a

ciência de Cristo, um compromisso entre a influência especial (que pode levar ao

ceticismo pela atribuição de todo conhecimento somente a Deus) e a influência

geral de Deus quanto ao conhecimento humano – um projeto de compromisso

semelhante àquele mesmo que Henrique pretenderá defender (pp. 27-33). Ou

seja, está claro que se, como quer Henrique, o ceticismo surge ao confiarmos

unicamente na razão natural, ele também advém quando buscamos atribuir todo

conhecimento unicamente a Deus como sua origem, como mostra Boaventura.

Henrique pretende fugir de ambas as consequências na sua proposta de

compromisso entre abstracionismo e exemplarismo (pp. 31-32). E é para ela que

                                                                                                                         8 Mais uma vez, sigo Demange na utilização de um vocabulário anacrônico, mas útil didática e expositivamente.

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Demange se volta a seguir.

Ele começa por lembrar que tal proposta – “uma síntese original, e

particularmente sofisticada, entre as teorias do conhecimento de Aristóteles e

de santo Agostinho” (p. 33)9 – está expressa pelo Doutor Solene em uma

estrutura argumentativa organizada em torno de questões. A primeira – “utrum

contingat hominem aliquid scire” ou “s’il est possible à l’homme de savoir quelque

chose”, na sua tradução (pp. 60-61) – é dedicada à refutação dos argumentos

céticos e ao estabelecimento da possibilidade de se ter ciência (scire). Porém,

essa resposta é matizada quando, na segunda questão – “utrum contigat hominem

aliquid scire sine divina illustratione” ou, no francês, “s’il est possible à l’homme de

savoir quelque chose sans illumination divine” (pp. 112-113) –, Henrique afirma

que, embora possamos ter ciência naturalmente (ex puris naturalibus ou ‘par les

seuls moyens naturels’), a ciência da verdade da coisa (veritas rei ou ‘vérité de

cette chose’), isto é, da verdade sincera (sincera veritas ou ‘vérité authentique’) só

é possível por uma iluminação divina (pp. 33-40). Dessa doutrina se deriva uma

das mais polêmicas afirmações do Doutor Solene, há saber, que há uma duplex

veritas (“une double vérité”): uma é um conhecimento estritamente filosófico e

natural (lido em Aristóteles), portanto falho; outra é o conhecimento teológico,

de origem sensível e abstraída, mas elevado à verdade sincera pela luz divina (lido

em Agostinho e Platão). Como Demange nos lembra, essa doutrina da dupla

verdade possui um desenvolvimento complexo na história da filosofia e um

polêmico auge em fins do século XIII. Em referência a esse desenvolvimento

histórico da doutrina, somos remetidos na nota 2 da p. 40 do livro resenhado,

entre outros textos, à obra recente de Luca Bianchi sobre o tema (pp. 40-43).10

Não deixa de ser curioso o fato de que, após essa descrição das questões

1 e 2 do artigo 1 da Suma, Demange deixe de lado a questão 3 e encerre sua

introdução por uma reflexão sobre a posteridade das posições expostas por

Henrique (pp. 43-48). Ora, Suma, art. 1, q. 3 – “utrum homo cognoscat lucem                                                                                                                          9 “A cet égard, les premières questions de la Summa d’Henri de Gand proposent une synthèse originale, et particulièrement sophistiquée, entre les théories de la connaissance d’Aristote et de saint Augustin”. 10 Cf. BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”. Paris: Vrin, 2008. (Conférences Pierre Abélard).

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divinam qua cognoscit alia” ou, no francês de Demange, “si l’homme connaît la

lumière divine par laquelle il connaît les autres choses” (pp. 200-201) – é de

extrema importância para a economia desse começo da Suma, porque é

justamente aqui que se resolve aquele problema posto por Boaventura, a saber:

como se pode atribuir o conhecimento a uma influência especial sem concluir

que ele provém unicamente de Deus? Pior: como podemos dizer que os homens

veem a luz divina sem afirmar que eles sejam beatos ainda nesta vida? Esses

problemas só podem ser resolvidos pelo Doutor Solene através de uma

cuidadosa descrição de um processo de intelecção que agregue abstração e

iluminação como partes igualmente fundamentais do conhecimento intelectual da

verdade. Isso é, precisamente, o que Henrique de Gand busca fazer na terceira

questão da Suma. Por alguma razão, Demange deixa de lado todo esse texto em

sua introdução de maneira que esta última, tão interessante quanto seja, é

deixada incompleta enquanto estudo da tradução que a segue.

III.

Como é padrão em todos os volumes da coleção Translatio editada pela Vrin, a

edição resenhada é bilíngue. O texto francês é apresentado à direita, ao lado do

texto latino na página oposta. Tendo por base a edição crítica latina de Gordon

A. Wilson, tanto a paginação da edição crítica11 como aquela da edição de 152012

são apresentadas à margem dos textos francês e latino. O tradutor inseriu uma

numeração de parágrafos nos textos latino e francês, a qual está ausente das

edições latinas. Além disso, ele seguiu os subtítulos que os editores

contemporâneos haviam inserido no texto para demarcar elementos estruturais

da questão, como “solutio” etc. (nesse caso, tais subtítulos aparecem igualmente

no texto latino e na versão francesa), mas adicionou outros subtítulos,

descritivos também (mas não só) de conteúdos abordados em cada etapa (estes

surgem somente no texto francês). Por fim, o tradutor tomou por base as                                                                                                                          11 HENRICUS DE GANDAVO. Summa (Quaestiones ordinariae), art. I-V. Edidit G. A. Wilson. Leuven: Leuven University Press, 2005. (De Wulf-Mansion Centre, series 2 – Henrici de Gandavo Opera Omnia 21). 12 HENRICUS A GANDAVO. Summae Quaestionum Ordinariarum <...>. 2 vols. Parisiis: in aedibus Iodoci Badii Ascensi, 1520 (reprint St. Bonaventure: The Franciscan Institute, 1953).

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referências bibliográficas fornecidas pelos editores no aparato de fontes e

citações para elaborar um conjunto de notas à versão francesa mais facilmente

consultável pelo leitor (especialmente, pelo leitor de língua francesa, uma vez que

muitas das referências são, nesta tradução, às versões francesas dos autores

citados). Muitas dessas decisões editoriais são descritas cuidadosamente nas pp.

49-51 do livro resenhado.

No que diz respeito à própria tradução, pretendo atentar rapidamente

para alguns elementos mais problemáticos para qualquer um que se proponha a

traduzir esses textos de Henrique. Para tanto, utilizarei, também, aquelas

traduções elencadas no início da resenha.13

A meu ver, o grande problema na tradução desse texto são algumas

expressões ou palavras-chave utilizadas tecnicamente por Henrique de Gand no

decorrer de toda sua abordagem da doutrina da intelecção em Suma, art. 1, qq.

1-3. Um conjunto de difícil tradução – apesar de sua aparente facilidade – é scire-

cognoscere-intelligere e termos associados (como scientia, cognitio, intellectio,

intelligentia, notitia). Para scire, Demange utiliza ‘savoir’ (e.g. p. 73), enquanto

Teske e Pasnau se servem de ‘to know’ (ou ‘knowing’). Nesse ponto, a escolha

de Demange parece mais interessante, pois ele poderia evitar problemas no

momento em que Henrique contrapuser scire e cognoscere, que em francês serão

‘savoir’ e ‘connaître’ (p. 129), enquanto Teske, no mesmo excerto, recorre à

oposição ‘apprehending-knowing’ (o que lhe causa embaraço ainda no mesmo

parágrafo, uma vez que o mesmo ‘apprehending’ surge também como tradução

do latim apprehendere) e Pasnau encontra uma solução melhor do que a deste

último pela oposição ‘cognizing-knowing’. Por outro lado, o próprio Demange

deixa escapar essa chance de manter uma coerência na tradução ao verter, em

uma mesma passagem, scibile - modum sciendi - sciri por ‘connaissable - mode de

connaissance - connaître’ (pp. 120-121). Ou seja, ‘connaître’ termina sendo

utilizado por Demange para traduzir tanto scire como cognoscere, termos

claramente distintos em Henrique de Gand. Além disso, ‘connaître’ ainda surge

como tradução para notitia, sem bem que nesse caso o termo latino seja

                                                                                                                         13 Cf. notas 3 e 4, acima.

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apresentado entre parênteses e em itálico ao lado da tradução (p. 129). Para

intelligere e seus derivados, Demange reserva o francês ‘intelliger’ e suas

modificações (e.g. pp. 130-133).

Outra expressão de difícil tradução – agora, não pela variedade de

vocabulário, mas pelo próprio caráter um tanto sintético ou, mesmo, lacônico do

latim escolástico – é “ex puris naturalibus”, usada frequentemente por Henrique

em oposição ao conhecimento por iluminação, influência ou auxílio divino. Não

parece haver muito a fazer ao traduzir tal expressão, senão adicionar alguma

palavra que seja caracterizada por ‘puris naturalibus’. Os três tradutores, nesse

caso, concordam em adicionar o termo ‘meios’ à expressão. Assim, Demange

usa ‘par les seuls moyens naturels’ (p. 185), enquanto Pasnau e Teske utilizam ‘by

purely natural means’, na mesma passagem. Nesse ponto, as traduções inglesas

têm a vantagem de conservarem o ‘purely’ como reminiscência do ‘puris’ latino,

algo que a tradução francesa não faz.

Para terminar, desejo somente chamar a atenção para um elemento

constante que parece impor alguns limites à tradução de textos escolásticos

latinos para línguas contemporâneas, a saber, o uso do neutro latino. Em geral, é

muito comum se utilizar do termo ‘coisa’ para a tradução de alguns usos do

neutro. Assim, ‘aliquid scire’ poderia ser traduzido por ‘conhecer (ter ciência de)

alguma coisa’. Com isso, terminamos inserindo um importante termo técnico,

fundamental para a metafísica escolástica, em uma passagem na qual ele

originalmente não surgia (isto é, a passagem original era ‘aliquid scire’ e não

‘aliquam rem scire’). Porém, em línguas com partículas remanescentes do neutro

latino – como ‘algo’ em espanhol e português – é possível, igualmente, traduzir

essa expressão por ‘conhecer (ter ciência de) algo’. No caso do inglês e do

francês, a tradução de expressões daquele tipo se torna mais problemática, pois

deverão ser utilizados, respectivamente, ‘something’ ou ‘anything’ e ‘quelque

chose’, como traduções de aliquid. Ou seja, ao que parece, necessariamente

deveremos introduzir uma res (‘thing’ ou ‘chose’) em um contexto em que ela

não surge. Essa dificuldade se torna patente nas formulações das questões 1 e 2

de Henrique, seja em Demange (pp. 60-61; 112-113) ou em Teske (que prefere

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‘something’) e Pasnau (que utiliza ‘anything’). O caso da terceira questão é

interessante, pois não surge aqui um aliquid, mas um alia (“utrum homo cognoscat

lucem divinam qua cognoscit alia”). Mesmo aqui, onde o francês e o inglês

poderiam dispensar uma referência a ‘coisa’, Demange traduz alia por “les autres

choses” (p. 200-201) e Teske por “other things”, quiçá para manter uma

coerência com as formulações das outras questões.

Com essas últimas observações, não pretendo criticar as traduções

referidas aqui ou aquela de Demange em particular. Quero somente apontar

para o quão limitadas podem ser, por vezes, as versões traduzidas de textos

escolásticos com respeito ao original latino, simplesmente porque muitos dos

recursos de que os autores medievais se valiam para expressar sua filosofia são

recursos próprios à língua latina. Assim, era possível em latim generalizar certas

afirmações sem a utilização do termo res, que fica reservado para um uso técnico

muito preciso. Em traduções contemporâneas, por outro lado, é comum se

utilizar ‘coisa’, ‘cosa’, ‘thing’, ‘chose’ para verter certas expressões generalizantes.

É parte do interessante exercício de tradução tentar driblar certos limites e, com

alguma criatividade, utilizar recursos de uma língua para expressar nela recursos

diferentes que uma outra língua possuía.

IV.

Para concluir, o volume publicado por Demange certamente enriquece a

bibliografia acerca de Henrique de Gand e, em particular, o pequeno conjunto de

traduções de suas obras que está disponível. Além disso, a introdução ao volume

é de grande valor para o leitor do início da Suma do Doutor Solene. Por isso

mesmo, é de se lamentar que não se tenha completado o estudo introdutório

por uma exposição de Suma, art. 1, q. 3, também traduzido no volume, como

vimos. Ademais, seria interessante que houvesse na introdução algumas

observações sobre eventuais decisões terminológicas mais complexas que

tenham ocorrido no processo de tradução. Como vimos nestes últimos

parágrafos, várias são as dificuldades implicadas na passagem do latim de

Henrique para o francês (inglês, português etc.). Essas dificuldades, deve-se

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destacar, não são fortuitas, mas são a expressão dos complexos recursos

linguísticos necessários para a expressão de certos conteúdos filosóficos. Dessa

maneira, tais problemas de tradução se mostram, por si mesmos, ótimas

ocasiões para a discussão da filosofia ou teologia do autor traduzido e da

intepretação que o tradutor possui acerca delas. Por um lado, o estudo

introdutório de Demange é empobrecido pela ausência de uma tal discussão. Por

outro, ele se torna interessante ao se voltar para um tema polêmico na atual

recepção filosófico-historiográfica de Henrique de Gand, a saber: a sua complexa

relação com o que se caracterizaria hoje como ceticismo e a importância deste

último para a formação do seu pensamento tal como exposto na Suma.

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TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. Milwaukee:

Marquette University Press, 2012, 275 p. (Marquette Studies in

Philosophy 76).

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

Roland J. Teske tem sido, desde de inícios da década de 1990, um dos autores

que mais contribuíram para a recente recepção historiográfica da obra de

Henrique de Gand. Uma boa parte de suas contribuições se compõe de

numerosas e cuidadosas traduções de trechos das duas principais obras do

Doutor Solene: a Suma das questões ordinárias e as Questões quodlibetais. De fato,

como o autor nos narra no livro que ora resenhamos, seu interesse por

Henrique foi incentivado, incialmente, pelo hoje já falecido Raymond Macken

(provavelmente, o mais importante estudioso do gandavense entre a metade do

século XX e o início do XXI) que, nas palavras do autor, o “persuadiu a traduzir

algumas das Questões quodlibetais de Henrique sobre a natureza da liberdade

humana” (pp. 7-8), em uma época em que Teske já era reconhecido por seu

trabalho acerca de Agostinho de Hipona e Guilherme de Auvergne. 1 Esse

impulso inicial rendeu bons frutos, pois Teske continua a publicar suas traduções

ainda hoje, embora seu interesse inicial pela noção de liberdade tenha aberto

espaço para a consideração de outros temas na obra de Henrique.

Se esse primeiro conjunto de traduções foi publicado ainda em 1993,2 os

                                                                                                                         * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 “I came to Henry late in my scholarly career after many years with Augustine and William of Auvergne largely through the initial influence of Raymond Macken, O.F.M., who persuaded me to translate some of Henry’s Quodlibetal Questions on the nature of human freedom”. Aproveito para esclarecer que as páginas da obra resenhada serão citadas, sem maiores dados de referência, entre parênteses – seja no corpo do texto ou nas notas de rodapé. Demais obras serão citadas pelo formato costumeiro. 2 HENRY OF GHENT. Quodlibetal questions on free will. Translated from the Latin with an Introduction and Notes by Roland J. Teske. Milwaukee: Marquette University Press, 1993. (Mediaeval Philosophical Texts in Translation 32).

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20  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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volumes seguintes teriam que esperar mais de dez anos para serem produzidos.

Assim, o ano de 2005 viu a publicação de um volume com traduções de Questões

quodlibetais sobre problemas morais (no qual, como vemos, Teske continua no

campo da ética),3 mas também de um volume em coautoria com Jos Decorte

onde se vertem os artigos da Suma sobre a existência e a essência de Deus.4 No

ano seguinte, foi publicada a continuação do volume anterior, agora de autoria

unicamente de Teske, com os artigos imediatamente subsequentes da Suma,

sobre a unidade, a vida e a simplicidade de Deus.5 Passados dois anos, em 2008,

surgiu mais um volume em que se traduzia o primeiro artigo da Suma, sobre a

possibilidade do conhecimento humano,6 o qual foi seguido três anos depois pela

tradução dos artigos 6 a 10 da Suma, parte da longa discussão produzida entre os

artigos 6 e 19 sobre a teologia enquanto ciência.7 No ano seguinte, em 2012, foi

publicada a continuação do volume de 2006, com a tradução dos artigos 31 e 32

da Suma, sobre a eternidade de Deus e os atributos divinos.8 Finalmente, este

volume foi seguido, em 2013, por uma seleção de artigos da Suma acerca das

                                                                                                                         3 HENRY OF GHENT. Quodlibetal questions on moral problems. Translated from the Latin with an Introduction and Notes by Roland J. Teske. Milwaukee: Marquette University Press, 2005. (Mediaeval Philosophical Texts in Translation 41). No volume aqui resenhado, Teske nos conta que, como ocorreu na sua primeira tradução, também dessa vez seu trabalho foi incentivado por Raymond Macken – de fato, este chegou até mesmo a selecionar as questões traduzidas (p. 8; cf. tb. HENRY OF GHENT. Quodlibetal questions on moral problems, 2005, p. 9). 4 HENRY OF GHENT. Summa. The Questions on God’s Existence and Essence (Articles 21-24). Translation by Jos Decorte and Roland J. Teske. Latin text, Introduction and Notes by Roland J. Teske. Paris – Leuven – Dedley: Peeters, 2005. (Dallas Medieval Texts and Translations 5). Na introdução ao volume, nos é esclarecido que essa tradução já havia sido iniciada por Jos Decorte e foi deixada inacabada quando de seu falecimento, após o que pediram a Teske que completasse o projeto (HENRY OF GHENT. Summa, 2005, p. 35). No livro que ora resenhamos, Teske esclarece que esse pedido foi feito por Philip W. Rosemann (p. 8), editor da coleção Dallas Medieval Texts and Translations. 5 HENRY OF GHENT. Summa. The Questions on God’s Unity and Simplicity (Articles 25-30). Latin Text, Introduction, Translation and Notes by Roland J. Teske. Paris/Leuven/Dudley: Peeters, 2006. (Dallas Medieval Texts and Translations 6). 6 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Article One: On the Possibility of Human Knowledge. Translated and edited by Roland J. Teske. South Bent: St. Augustine’s Press, 2008. 7 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Articles six to ten on Theology. Translated and with an Introduction by Roland J. Teske. Milwaukee: Marquette University Press, 2011. (Mediaeval Philosophical Texts in Translation 48). 8 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Articles Thirty-One and Thirty-Two on God’s Eternity and the Divine Attributes in General. Translated and with and Introduction by Roland J. Teske. Milwaukee: Marquette University Press, 2012. (Mediaeval Philosophical Texts in Translation 49).

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21  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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potências intelectiva e volitiva de Deus.9 Ou seja, de certo modo, suas traduções

completam um ciclo de interesses: tendo partido de textos sobre ética e

liberdade humana, passado por temas de metafísica e teologia (como o ser de

Deus) ou doutrina da intelecção (como a possibilidade de conhecimento ou a

cientificidade da teologia), para ao fim retornar à vontade (agora, divina).

Esses volumes traduzidos por Teske são caracterizados por uma clara

preocupação com a correção conceitual, que certamente só se torna possível

devido ao cuidadoso trabalho acadêmico do autor, que é patente não somente

em suas traduções, mas também nas introduções a elas (de grande ajuda para o

leitor, que só com dificuldade consegue se localizar na longa cadeia

argumentativa não só de toda a Suma como de cada questão) e, principalmente,

nos artigos que Teske veio publicando no decorrer desse período. Com efeito, o

mais interessante em observar aquele percurso temático de suas traduções é

notar que esse percurso, de certa maneira, se refletiu nos igualmente

interessantes e importantes artigos publicados pelo autor acerca de Henrique de

Gand nesse período. Assim, a publicação desses artigos em um só volume – este

que ora resenhamos – foi certamente uma iniciativa de grande valia para o

contemporâneo leitor de Henrique, pois podemos ver a uma só vez o longo

percurso de trabalho seguido por um de seus principais comentadores em

atividade.

II.

Quanto às características editoriais do volume, podemos dizer que elas em nada

indicam a importância do conteúdo apresentado. Isso é notável quando

atentamos para os numerosos erros de digitação, principalmente de termos e

expressões latinas (basilares em um trabalho deste tipo), os quais foram

apontados mais cuidadosamente por Pasquale Porro em sua resenha do livro.10

                                                                                                                         9 HENRY OF GHENT. Summa of Ordinary Questions. Articles 35, 36, 42, and 45. Translated with an Introduction and Notes by Roland J. Teske. Milwaukee: Marquette University Press, 2013. (Mediaeval Philosophical Texts in Translation 50). 10 PORRO, P. “Review of: TESKE, R. J. Essays on the Philosophy of Henry of Ghent. [...]”. Notre Dame Philosophical Reviews. May 19, 2013. Online: http://ndpr.nd.edu/news/40083-essays-on-the-philosophy-of-henry-of-ghent/ (consultado em 08/05/2014). O trecho a que me refiro está no

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22  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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Por outro lado, é preciso dizer que a organização dos artigos proposta

por Teske, apesar da simplicidade, é de enorme utilidade para o leitor. Com

efeito, o volume se inicia por uma curta introdução de duas páginas em que o

autor explica em poucas palavras quem foi Henrique de Gand, donde proveio

seu interesse por ele e como suas traduções o levaram a produzir muitos dos

estudos apresentados (p. 7-8). Em seguida, todos os artigos que Teske escreveu

sobre o Doutor Solene (onze no total, os dois últimos ainda inéditos quando da

publicação do volume) são apresentados na ordem cronológica em que foram

confeccionados, cada um dos quais possuindo uma pequena introdução de

poucas linhas que o contextualiza com respeito à atividade acadêmica e aos

interesses do autor na época em que foi escrito. Com essa organização dos

textos, torna-se facilmente possível acompanhar a evolução da leitura de Teske

sobre a obra de Henrique, relacionando-a com a produção e publicação de suas

traduções – o que ele próprio, na introdução, sugere que se deva fazer, como foi

dito. Feitas essas observações preliminares, vejamos mais atentamente o caminho

seguido por Teske.

O primeiro artigo do volume, apresentado em um colóquio ocorrido em

Louvain em 1993, trata da rejeição do princípio omne quod movetur ab alio

movetur por Henrique de Gand (pp. 9-40).11 Mais do que na física de fins do

século XIII, esse tema foi fundamental na polêmica discussão sobre a liberdade da

vontade humana que ocorria na época. Isso torna claro o porquê de o primeiro

artigo de Teske ser dedicado a esse problema – ora, como ele próprio explica

(p. 9), os textos de Henrique sobre a liberdade da vontade eram aqueles com os

quais ele mais estava familiarizado em inícios de 1990, uma vez que estava

produzindo o seu primeiro volume de traduções que, como vimos, foi voltado

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             último parágrafo do texto. Agradeço ao prof. Rodrigo Guerizoli (UFRJ) por haver chamado minha atenção para essa resenha publicada por P. Porro. Voltarei a ela mais adiante. 11 O texto foi, originalmente, publicado nas atas desse colóquio: TESKE, R. J. “Henry of Ghent’s Rejection of the Principle: “Omne quod movetur ab alio movertur”. In: VANHAMEL, W. (ed.). Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the Occasion of the 700th Anniversary of his Death (1293). Leuven: Leuven University Press, 1996, pp. 279-308. As referências às versões originais dos artigos podem ser encontradas na própria obra resenhada (p. 6). Reproduzo-as aqui em notas simplesmente para remeter aos anos e contextos das publicações dos artigos de Teske.

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precisamente para essa temática.12 Pois bem, tomando por base uma série de

Questões quodlibetais de vários períodos da carreira de Henrique (algumas das

quais ele estava traduzindo à época), Teske mostra como a defesa da liberdade

da vontade feita pelo Doutor Solene exige uma complexa abordagem de um

princípio da física e da metafísica escolásticas, a saber: ‘tudo que se move se

move por outro’. Tratando a liberdade da vontade desse ponto vista, Henrique

insere a potência volitiva da alma humana em uma hierarquia de seres que

movem a si mesmos, muito embora cada um o faça diferentemente. Ou seja, ao

que parece, apesar de seus patentes interesses éticos, a liberdade da vontade é

defendida de um ponto de vista metafísico que, ao estabelecer a independência

de atuação da vontade até mesmo com respeito a Deus (que não a move senão

enquanto conserva o mundo), nega aquele princípio outrora tido por

fundamental. Isso, curiosamente, termina por impossibilitar qualquer prova da

existência de Deus por cadeias causais de movimento. Enfim, salvando a

liberdade ética, torna-se necessário buscar uma outra saída para provar a

existência de Deus.

Por isso, não é de maneira alguma inesperado que os dois textos

seguintes de Teske tenham se voltado, precisamente, para as provas da

existência de Deus produzidas por Henrique de Gand. Certamente, eles são bem

mais tardios – escritos e publicados entre 2004 e 2005 –, mas sua data

corresponde ao período exato em que Teske recebeu a incumbência de

completar a tradução de Decorte e resolveu complementá-la com um volume a

mais.13 Ora, os artigos da Suma apresentados nessas traduções são precisamente

aqueles onde Henrique aborda as possíveis provas da existência de Deus, para as

quais Teske se volta cuidadosamente nesses seus dois textos subsequentes. No

primeiro deles (o segundo da coletânea), apresentado em 2004 e publicado em

2005,14 o autor se volta para as críticas de Henrique de Gand aos argumentos

ditos aristotélicos em favor da existência de Deus (pp. 41-64). Ao que parece, a

                                                                                                                         12 Cf. nota 2, acima. 13 Cf. notas 4 e 5, acima. 14 TESKE, R. J. “Henry of Ghent’s Criticism of the Aristotelian Argument for God’s Existence”. The Modern Schoolman 82 (2005), pp. 83-99.

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24  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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principal crítica de Henrique a esses argumentos é o fato de que eles, ainda que

provem que há um Deus, não são capazes de estabelecer que há um único Deus

– isto é, eles provam seu ser, mas não sua unidade. Teske nos mostra que, para

o Doutor Solene, provas da existência de Deus como aquelas, que derivam seu

ser de uma cadeia causal de movimentos, são insuficientes para garantir a

necessidade de um Deus uno. Estudada essa posição de Henrique, Teske se

volta, no terceiro artigo da coletânea, de 2005,15 para aquela prova da existência

de Deus que o gandavense considerava a mais completa, a saber, o argumento

metafísico pela existência de Deus (pp. 65-91). Por esse argumento (o famoso

argumento pela via das proposições universais), com base em uma leitura

conjunta de Agostinho e Avicena, Henrique acredita poder derivar, sem qualquer

referência aos sentidos além da abstração dos conceitos simples, o

conhecimento da existência de Deus como necessariamente o único ser

sumamente simples e no qual há identidade entre ser e essência. Sendo assim,

essa seria uma prova da existência de Deus que supriria as faltas daquelas

aristotélicas, estudadas no artigo anterior da coletânea.

O quarto texto (pp. 93-115), de 2006,16 se volta ainda para um tema

desenvolvido, em grande parte, em Suma, art. 27, traduzido por Teske no

volume publicado no mesmo ano.17 Aqui, o autor busca esclarecer a noção de

distinção desenvolvida por Henrique de Gand, tomando por base a leitura do

referido artigo da Suma em conjunto com Quodlibet 5, q. 6. Com efeito, o foco

do artigo é a tentativa de obter uma melhor compreensão do que seriam os três

casos de distinção elencados por Henrique, a saber: a distinção real, a distinção

de razão e a distinção intencional. O interessante resultado é mostrar que, muito

embora esta última tenha sido tida por característica unicamente da filosofia de

Henrique e, portanto, como particularmente problemática, as maiores

dificuldades surgem no estudo da distinção real. Isso ocorre, nos diz Teske com

base em diversos comentadores, devido ao complexo caráter de res que a                                                                                                                          15 TESKE, R. J. “Henry of Ghent’s Metaphysical Argument for the Existence of God”. The Modern Schoolman 83 (2005), pp. 19-38. 16 TESKE, R. J. “Distinctions in the Metaphysics of Henry of Ghent”. Traditio 61 (2006), pp. 227-245. 17 Cf., mais uma vez, nota 5, acima.

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25  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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essência adquire na metafísica de Henrique. A bem dizer, a distinção real surge

na obra de Henrique de Gand como problematicamente independente de

qualquer remissão à existência atual das essências reais que sejam membros de

tal distinção.

Continuando seu estudo da metafísica do Doutor Solene, Teske se volta,

no quinto texto da coletânea (pp. 117-143), publicado em 2007,18 para um

estudo da influência de Avicena sobre Henrique. Esse texto, de fato, se apresenta

como um aprofundamento dos trabalhos anteriores, visto que os três campos de

influência selecionados pelo autor são: [i] o argumento metafísico da existência

de Deus (pp. 119-126); [ii] a distinção intencional entre essência e existência (pp.

126-134), que havia sido considerada de passagem no artigo anterior no

contexto do estudo das distinções (pp. 96-104); e [iii] a impossibilidade de que

haja mais de um Deus (pp. 134-143) – um tema que, como vimos, está

estreitamente ligado às provas da existência de Deus na obra de Henrique. Em

outras palavras, Teske se encontra ainda no âmbito das pesquisas derivadas de

sua tradução dos artigos 21 a 30 da Suma.19 E, com efeito, continuamos no

mesmo contexto de discussão no trabalho seguinte – o sexto da coletânea (pp.

145-164) – produzido em 2009.20 Aqui se busca discutir um tema polêmico entre

os comentadores das provas da existência de Deus de Henrique, a saber, qual

seria a interpretação dada por este último ao argumento ontológico de Anselmo

da Cantuária. Em poucas palavras, o que Teske faz nesse artigo é mostrar como

o argumento metafísico de Henrique pela existência de Deus pode ser

conciliado, por meio do estudo de sua concepção das ‘proposições evidentes por

si’, com a interpretação que o próprio Doutor Solene fornece do argumento de

Anselmo.

No sétimo artigo do volume (pp. 165-189), publicado em 2010, 21

                                                                                                                         18 TESKE, R. J. “Some Aspects of Henry of Ghent’s Debt to Avicenna’s Metaphysics”. The Modern Schoolman 85 (2007), pp. 51-70. 19 Cf. as já referidas notas 4 e 5. 20 TESKE, R. J. “Henry of Ghent and Anselm’s Proslogion Argument”. Traditio 4 (2009), pp. 213-228. 21 TESKE, R. J. “Augustine’s Influence on the Philosophy of Henry of Ghent”. In: CARY, P., DOODY, J., PAFFENROTH, K. (eds.). Augustine and Philosophy. Lanham: Lexington Books, 2010, pp. 197-218.

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26  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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começamos a nos aproximar de um campo de interesse distinto, que se reflete

na tradução publicada por Teske, em 2008, do primeiro artigo da Suma.22 Agora,

ele se volta para a influência de Agostinho sobre Henrique, mas o mais

interessante no trabalho são os temas por ele escolhidos para explorar o

assunto. O primeiro tema [i] é a rejeição do ceticismo que surge ainda na

primeira questão daquele primeiro artigo da Suma (pp. 166-170). Ele é seguido

[ii] pelo estudo da explicação do conhecimento humano fornecida nas questões

2 a 5 desse mesmo artigo inicial (pp. 170-178). Essas são passagens da obra de

Henrique reconhecidamente influenciadas em profundidade por Agostinho, que é

aí repetidamente e longamente citado. Além disso, esses trechos estão

diretamente associados ao texto traduzido e publicado por Teske em 2008. Por

outro lado, o terceiro tema onde surge claramente a influência do bispo de

Hipona é, mais uma vez, [iii] o problema do conhecimento de Deus (pp. 178-

188). Agora, Teske nos mostra como uma passagem do De trinitate se torna

fundamental para todo o argumento metafísico da existência de Deus proposto

por Henrique. Sendo voltado para este mesmo tema, o curto oitavo trabalho da

coletânea (pp. 191-197) é o discurso de Teske por ocasião do recebimento da

medalha Aquinas pela American Catholic Philosophical Association, em 2009.23 De

fato, ele retorna aqui à referida passagem do De trinitate e expressa toda a sua

admiração pelo fato de Agostinho propor um conhecimento de Deus a partir da

consideração de algo particular como ‘este bem’ ou ‘aquele bem’. Essa abstração

em direção ao divino surge aqui como um “augustinian enigma”, que influenciou

profundamente, entre outros, Henrique de Gand em seu argumento metafísico

pela existência de Deus.

O artigo seguinte – nono da coletânea (pp. 199-220) – foi originalmente

publicado em A Companion to Henry of Ghent, dado a público em 2011 pela

editora Brill.24 Nesse texto, Teske retorna, dezoito anos depois, ao problema da

vontade em Henrique de Gand. Agora, porém, ele se volta não mais para os                                                                                                                          22 Cf. nota 6, acima. 23 TESKE, R. J. “An Augustinian Enigma”. The Proceedings of the American Catholic Philosophical Association 83 (2009), pp. 19-24. 24 TESKE, R. J. “Henry of Ghent on Freedom of the Human Will”. In: WILSON, G. A. (ed.). A companion to Henry of Ghent. Leiden/Boston: Brill, 2011, pp. 315-335.

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27  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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textos das Questões quodlibetais, que ele então traduzia em 1993, mas para Suma,

art. 45, onde se estuda a vontade divina e, consequentemente, a vontade humana

a partir da qual podemos conhecer aquela superior. Ora, esse artigo da Suma é

exatamente aquele cuja tradução será publicada por Teske dois anos depois, em

2013.25 Com isso, vemos que seu renovado interesse pela noção de vontade

resultou não somente naquela última coletânea de traduções de textos do

Doutor Solene publicada até agora por Teske, mas também nesse trabalho

republicado no volume. Neste, seguindo bem de perto o caminho de Henrique

em Suma, art. 45, busca-se decifrar sua concepção de vontade livre no contexto

em que ele aí a aborda, a saber, por um estudo teológico de base filosófica

acerca da vontade divina e sua liberdade.

Por fim, chegamos aos dois artigos inéditos com os quais se encerra a

coletânea. Eles formam um conjunto coerente, uma vez que dissertam sobre dois

aspectos distintos da apreensão que possuímos de Deus, tal como Henrique de

Gand a compreende. Assim, o décimo artigo da coletânea (pp. 221-246) trata do

pretenso apofaticismo de sua teologia e resulta, como o próprio Teske declara

(p. 221), de sua experiência ao produzir a tradução do artigo 32 da Suma,

publicada em 2012.26 Aqui, tenta-se mostrar como o Doutor Solene compreende

que seja possível predicar atributos de Deus. Como resultado, vemos que a

significação de Deus por seus atributos ocorre negativa e/ou relativamente, mas

jamais positivamente. Nosso conhecimento de Deus é, de certo modo, resultado

da negação daquilo que conhecemos das criaturas pelos sentidos. Essa tese é

ressaltada no subsequente e último texto da coletânea (pp. 247-263), onde

Teske estuda a noção de ‘ente’ desenvolvida por Henrique e sua complexa

caracterização como ‘análoga’ em Suma, art. 21 (voltamos, portanto, mais uma

vez à tradução publicada por Teske em 2005).27 Nesse texto final, se considera

cuidadosamente a dificuldade causada por duas afirmações do Doutor Solene: [i]

que não há nada realmente comum entre as criaturas e Deus e [ii] que é possível

conhecer o ser de Deus a partir do ser das criaturas, uma vez que o ‘ente’ é uma                                                                                                                          25 Cf. nota 9, acima. 26 Cf. nota 8, acima. 27 Cf. nota 4, acima.

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28  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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noção análoga. Ao fim, Teske parece sugerir que a saída para a compreensão

conjunta dessas duas asserções é a consideração da doutrina metafísica das

relações proposta por Henrique, já que aquela analogia teria por base a relação

de imitação da criatura para com o criador e nenhuma relação é entendida pelo

Doutor Solene como algo real, isto é, como uma res. Ou seja, há uma analogia e

ela possui uma base metafísica, mas não real (pp. 257; 261-263).

Pois bem, tendo seguido o caminho de Teske até aqui, podemos ver o

quão interessante o volume resenhado se mostra para o leitor de Henrique de

Gand e isso, acredito, por três razões. Em primeiro lugar, Teske abrange em

seus textos um vasto campo de temáticas na obra do Doutor Solene, as expõe e

estuda com o cuidado e a atenção típicos de um comentador versado no tema, o

que por si só já demonstra a relevância do volume resenhado. Em segundo lugar,

é muito interessante poder acompanhar as contínuas (e, por vezes, tácitas)

relações entre os artigos e as traduções de Teske, pois ambos se mostram um

exercício de leitura – os primeiros, enquanto comentário explicativo, os

segundos enquanto tentativa de reinterpretação do texto latino medieval em

inglês contemporâneo. Por fim (e em consequência dos dois pontos anteriores),

o volume é particularmente proveitoso por nos permitir seguir o

desenvolvimento, por um período de mais de 20 anos, da interpretação e da

leitura de Henrique de Gand perpetradas por Roland Teske. Muitas vezes, tão

importante quanto compreender o pensamento de um autor e sua evolução é

compreender o pensamento de seu comentador e sua evolução. Esse volume

(junto às traduções de Henrique supracitadas) nos permite fazer exatamente isso

no que diz respeito à atividade de Teske como comentador do Doutor Solene.

III.

Para concluir, gostaria somente de fazer referência a um problema levantado por

Porro na sua, já citada, resenha do mesmo livro. Em certo momento de sua

avaliação, quase já no fim, ele afirma que o livro de Teske falha por não se

dedicar a uma comparação minuciosa entre Henrique de Gand e seus demais

contemporâneos, pois “teria sido útil considerar o pensamento de Henrique

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29  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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menos em isolamento, colocá-lo em relação especialmente com mestres

contemporâneos (Egídio Romano, Godofredo de Fontaines, Ricardo de

Mediavilla)”.28

Ao mesmo tempo em que compreendo a crítica de Porro, ela não deixa

de trazer à minha mente o clássico artigo “Tempo histórico e tempo lógico na

interpretação dos sistemas filosóficos” de Victor Goldschmidt 29 (no que,

provavelmente, traio minha origem acadêmica...). Não importa o quão antigo seja

esse texto (e o quão ultrapassadas sejam hoje as pretensões de qualquer forma

de estruturalismo), parecem-me ainda válidos, pelo menos como pressupostos

metodológicos, os dois tipos de estudo aí descritos. De fato, não se deve

confundir o estudo interno da obra de um autor e o estudo histórico dessa

mesma obra. A meu ver, um não exclui o outro – pelo contrário, o segundo só

possível após o primeiro. Isto é, só é possível comparar, por exemplo, Henrique

de Gand e Egídio Romano, uma vez que tenhamos cuidadosamente lido, por si

mesmas, as obras de cada um. Caso contrário, corremos o risco de confundir

aquilo que Egídio Romano afirma em seus textos com aquilo que Henrique de

Gand afirma ler nele ou vice-versa. Ou seja, parece-me que o estudo interno da

obra de Henrique não deve abranger mais do que os autores que ele claramente

cita e a interpretação que ele claramente fornece dessas citações. Somente em

um segundo momento, quando nos voltarmos para uma narrativa da história da

filosofia que inclua a obra do Doutor Solene entre outras, é que poderemos

comparar sua produção à de seus contemporâneos. Isso, porém, só me parece

poder ser feito após lermos cada um desses contemporâneos por si mesmos,

internamente.

Enfim, o livro de Teske e os artigos que o compõem parecem se localizar

                                                                                                                         28 PORRO, “Review...”, 2013, penúltimo parágrafo: “However, it would have been useful to consider Henry's thinking less in isolation, to place him in relation especially to contemporary masters (Giles of Rome, Godfrey of Fontaines, Richard of Mediavilla). Henry never ceased to confront them himself, to differ or to enter into dialogue with them and, as a consequence, sometimes to modify his own position. Adding this dimension would have made it easier for the reader to better understand some of Henry's theoretical choices”. 29 GOLDSCHMIDT, V. “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. In: Idem. A religião de Platão. Prefácio introdutório de Oswaldo Porchat Pereira. Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 19702, pp. 139-147. A publicação do artigo original, em francês, foi em 1953.

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30  TESKE,  R.  J.  Essays  on  the  Philosophy  of  Henry  of  Ghent  

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claramente no primeiro caso de estudo – a saber, eles são estudos lógicos ou

internos da obra do Doutor Solene, os quais, diga-se de passagem, têm o grande

mérito de pouco se afastarem de suas bases textuais. Eles são históricos na

medida em que são um necessário primeiro passo para o estabelecimento de

uma história da filosofia, embora não sejam eles próprios narrativas históricas.

Sendo assim, acredito ser extremamente injusta a crítica dirigida por Porro a

Teske, uma vez que este último, mais do que narrar uma história da filosofia em

fins do século XIII, está ajudando a construir as bases sobre as quais ela, um dia,

poderá ser mais corretamente narrada.

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NOVOTNÝ, D. D. Ens rationis from Suárez to Caramuel: a Study in

Scholasticism of the Baroque Era, New York: Fordham University

Press, 2013, 320 p.

Pedro Falcão Pricladnitzky* ___________________________________________

A preocupação com a natureza do não-ser e do sentido de conceitos que

procuram descrever entidades ficcionais e impossíveis é clássica na história da

filosofia. Nos deparamos com tal dificuldade desde o momento em que tentamos

definir a natureza e o escopo de investigação da metafísica ou ontologia. É

costumeiro definirmos tal disciplina como a ciência que busca compreender a

natureza daquilo que é mais fundamental na realidade, os princípios do ser; ou

ainda, como a disciplina que investiga o ser enquanto ser. Assim, parece não

problemático assumirmos que a metafísica é dedicada às coisas que existem;

aquilo que é real. Entretanto, as expressões ‘aquilo que existe’ ou ‘aquilo que é

real’ são capazes de descrever a natureza da disciplina?

Sem dúvida, é necessário, para sermos capazes de fornecer uma resposta

adequada, esclarecer os significados dos conceitos que estamos utilizando.

Contudo, podemos dizer que, em certo sentido, tais definições já parecem

excluir de antemão a pertinência do não-ser como um material digno de

investigação. A dificuldade nessa atitude é estabelecer como devemos entender e

empregar conceitos de entidades ficcionais, irreais e quiçá impossíveis. Quimeras,

cavalos-alados e demais criaturas da imaginação humana fazem parte do léxico

comum e possuem um emprego claro na linguagem. Possibilidades contrafactuais

também são uma forma de fatos ou fenômenos que não são, mas também

descrevem significativamente possíveis eventos ou fenômenos. Entidades

abstratas, de uma forma geral, podem não existir como entidades independentes

da mente humana, mas disto não se segue que elas não causem certos eventos e

                                                                                                                         * Doutorando em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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32  NOVOTNY,  D.  D.  Ens  Rationis  from  Suárez  to  Caramuel  

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fenômenos no mundo. Devem tais entidades ser parte do campo de investigação

da metafísica? Se sim, a metafísica estaria lidando com objetos que não existem?

Ou eles existem de modo peculiar? De qualquer forma, até aqueles que

pretendem erradicar completamente seres ficcionais, seres de razão, do cenário

da ontologia precisam apresentar fortes razões para sua exclusão. Isso denota o

quão arraigada essa questão está na história da filosofia.

O período escolástico, que pode ser retraçado desde o final do século XII,

não foi alheio a essa questão. A investigação acerca da natureza do não-ser foi,

em certos aspectos, abordada pelo intenso debate sobre a função dos seres de

razão (entia rationis). Tal debate não estava focado no problema da referência em

contextos peculiares da proposição,1 mas na referência e sentido dos termos de

um modo geral. Nesse contexto histórico, encontramos a seguinte distinção:

seres reais e seres de razão. Seres reais eram subdivididos nas categorias

aristotélicas: a substância e os nove tipos de acidentes. Em relação aos seres de

razão, podemos dizer que não há uma unanimidade no que diz respeito às

entidades que devem cair sob o seu conceito. Entretanto, alguns itens

recorrentes são: negação, privação, relações lógicas e predicações de segunda

intenção (conceitos que operam como gênero e espécie e que qualificam e

caracterizam conceitos de primeira ordem). Outra característica amplamente

aceita acerca da natureza dos seres de razão é que eles são entidades que só

possuem algum grau de realidade na medida em que são um produto da mente

humana. O que parece uma questão não resolvida, porém, é se essa operação da

mente possui ou não algum fundamento em um ser real. A expressão ‘não-ser’,

por exemplo, possui seu sentido vinculado à ideia de negação. ‘Surdez’, por sua

vez, vincula-se à ideia de uma privação, a ausência de uma característica que algo

deveria ter, mas não possui. Estritamente falando, negações e privações não

podem ser parte da realidade. Se elas são alguma coisa, devem derivar o seu ser

do fato de serem entidades conceituais que possuem algum papel nas operações

mentais humanas. Humanidade e animalidade (termos que designam espécie e                                                                                                                          1 Os problemas de referência das proposições e juízos serão examinados em detalhe na tradição analítica.

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gênero) costumam ser tratados como universais que são abstraídos de

características concretas em objetos na realidade. Existe, com isso, a dificuldade

de entender a natureza de tais entidades e se elas possuem alguma relação com

alguma coisa na realidade.

O livro de Daniel Novotny, Ens rationis from Suárez to Caramuel, oferece

uma reconstrução detalhada dessa questão em um período histórico que ele

define como escolástica barroca. Paralelamente ao início do que

costumeiramente chamamos de filosofia moderna, desde o final do século XVI

expandindo-se através do século XVII, existiu uma tradição filosófica fortemente

vinculada às universidades que mantinha em certos aspectos o modelo de

investigação filosófica consagrado pela escolástica medieval. Nesse pano de fundo

histórico, um período de transição entre o apogeu da filosofia escolástica e o

domínio de linhas de pensamento racionalistas e empiristas, surgem figuras como

o jesuíta Francisco Suárez (1548-1617). Sua obra Disputationes metaphysicae

(1597) é, segundo Novotny, o paradigma de um texto filosófico barroco.

Claramente influenciado pelo modelo escolástico e pela autoridade de

Aristóteles,2 mas também capaz de propor diferentes alternativas e, de certo

modo, se desprender das estruturas e temas de pesquisa já consagrados, Suárez

dedica a última seção de sua obra, a disputa 54, ao exame dos seres de razão ou,

como ele também os define, seres intencionais necessariamente não existentes.

Partindo de uma análise crítica da teoria dos seres de razão em Francisco

Suárez e passando para um exame comparativo de autores como Hurtado,

Mastri, Belluto e Caramuel, Novotny defende claramente a sua posição de que

tais autores têm contribuições importantes para o entendimento adequado do

desenvolvimento da discussão acerca do não-ser ao longo da história da filosofia.

Dessa maneira, ignorá-los ou não reconhecer a influência de tal período,

denominemo-lo como quisermos, não é mais possível para o historiador da

filosofia.

                                                                                                                         2 Não apenas dos textos e traduções de Aristóteles, mas também por toda tradição de comentários da sua obra que permearam o período medieval.

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Antes de prosseguir para a análise detalhada das posições específicas de

cada autor, Novotny sugere uma apresentação geral e, na medida do possível,

neutra da questão dos seres de razão.

Partimos da seguinte definição: entes de razão são objetos intencionais que

dependem unicamente da mente. X é um ente de razão quando um sujeito P tem

o pensamento de X, isto é, toma X como um objeto de pensamento e não há

uma entidade existente independentemente da mente que dê suporte para X.

Neste caso, X não possui nenhum tipo de ser além do fato de estar presente na

mente de P como um dos seus objetos de pensamento (p. 27). Assim, ente de

razão é aquilo que, por sua natureza, é apenas uma entidade objetual ou

intencional do pensamento.

Ao analisarmos os textos consagrados à ideia de um ser de razão, notamos

que a natureza do não-ser e de outros conceitos que giram em seu entorno é

explicitamente parte integrante da investigação. Além disso, ser de razão surge

como ferramenta conceitual empregada por filósofos para dar conta de várias

dificuldades conceituais como, por exemplo, a intencionalidade dos atos mentais

(p. 30s.). Como aponta Novotny, pensamento e linguagem nos levam a

considerar objetos que claramente não existem independentemente da mente

(do fato de serem pensados) ou com relação aos quais tal independência é ao

menos questionável. A presença quase constante de tais casos leva a

considerações do tipo: qual é o estatuto de tais entidades? Podemos dizer que

eles possuem alguma forma de existência independente, mesmo que seja menos

real do que aquela dos objetos explicitamente independentes da mente? O seu

alcance é sobre objetos no tempo (passados ou futuros), entidades possíveis,

impossíveis ou fictícias? No que diz respeito ao período e autores que são o foco

principal do livro de Novotny, a ideia de não-ser e dos seres de razão foi

empregada também para dar conta de estruturas predicativas, como no caso das

segundas intenções, conceitos que não são aplicados diretamente a um sujeito,

mas a características já atribuídas a tais sujeitos. Conceitos autocontraditórios,

como círculos quadrados, também eram referidos como entes de razão pelos

filósofos da escolástica barroca.

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O pensamento, por ser uma atividade transitiva, supõe um objeto como o

foco da sua atividade. Todo pensamento é pensamento de ou sobre alguma coisa.

Contudo, frequentemente pensamentos não possuem um correlato

independente da atividade de pensar. Nesses casos, ou bem se recusa o estatuto

de pensamento a tais fenômenos ou se reinterpreta a estrutura do pensamento,

fornecendo algum tipo de realidade ou existência aos objetos necessários

postulados por qualquer atividade mental. Desse modo, a questão do não ser

toma a seguinte configuração: o que é um ser intencional? Que espécie de

existência ele possui? De que modo ele está relacionado com a questão acerca

da natureza geral do não-ser?

Existem muitas estratégias para lidar com essas dificuldades e encontramos

um enorme leque de opções na história da filosofia desde o poema de

Parmênides até os dias atuais. A maneira mais radical de lidar com a questão do

não-ser é simplesmente recusar o sentido de expressões e sentenças que

envolvam entitades inexistentes e consequentemente rejeitar qualquer nível ou

grau de ser ou realidade do não-ser. Existem diversos exemplos de atitudes

menos radicais reconhecendo maiores ou menores graus de realidade para tais

entidades. Novotny aponta os exemplos das teorias de Meinong e Findlay (p. 30).

Como especificamente os filósofos escolhidos por Novotny respondem às

dificuldades do conceito de não-ser, dos seres de razão, objetos intencionais

necessariamente inexistentes? Do terceiro ao quinto capítulo, temos uma análise

minuciosa da questão em Suárez. No sexto capítulo, encontramos a

apresentação da posição de Hurtado e a sua tese falibilista a respeito dos seres

de razão. No sétimo, o objetualismo modificado compartilhado por Mastri e

Belluto. E, no oitavo, o eliminativismo do Caramuel.

As Disputationes metaphysicae, sugere Novotny, marcam o início de um

longo e frutífero debate acerca do estatuto ontológico dos seres de razão no

período barroco. O autor procura demonstrar que os filósofos do período

reagem à posição suareziana. Isso ocorre através ou bem de uma modificação da

teoria, uma versão considerada melhorada; ou bem por um completo abandono,

através da proposição de uma teoria diferente.

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A teoria suareziana acerca dos entes de razão é, segundo Novotny, uma

forma de objetualismo, uma teoria que afirma que entes de razão são

essencialmente objetos do pensamento, dependentes de um ato de pensamento

que os engendra. Nesse sentido, seres de razão não podem existir fora do

pensamento, isto é, existir no mundo em um sentido ordinário de ‘existir’. Ou

seja, seres de razão existem, mas o seu modo de existir não é o mesmo que o de

seres reais que existem. Eles são totalmente dependentes de atos mentais, são

apenas objetivamente no intelecto. Ser de razão é algo que não possui ser em si,

mas é concebido à maneira de um ser. Para sustentar essa posição acerca da

existência peculiar dos seres de razão, Suárez procura esclarecer o papel que tais

entidades ocupam em uma ontologia, as razões e causas que fazem necessária a

sua postulação, para então reinterpretar a sua definição e oferecer um sentido

abrangente de existir que abarque o seres de razão.

Na abordagem suareziana dos seres de razão, indica Novotny, observamos

uma tentativa de articular diversas posições escolásticas a respeito do tema em

uma argumentação unificada. Ainda que essa estratégia seja de grande benefício

para compreender a evolução e história da discussão, tal tarefa padece do

problema de unir teses e posições aparentemente incongruentes.

Para ilustrar a dificuldade gerada pela posição de Suárez, cabe analisar o

seguinte exemplo: ele tanto defende (1) que os objetos próprios da metafísica

são seres reais e que seres de razão não são seres reais, como (2) que o estudo

dos seres de razão é útil de várias formas para a metafísica e inclusive para a

compreensão dos seres reais. O objeto próprio de estudo da metafísica não fica

claro se tomarmos em conjunto essas duas afirmações. Na primeira temos os

objetos reais como o cerne da metafísica e na segunda a investigação dos seres

reais parece estar atrelada à investigação dos seres de razão.

Algumas afirmações acerca da natureza dos seres de razão nos levam a

concluir que há uma analogia entre os modos de existência dos seres de razão e

os seres reais. Isso fica claro quando Suárez sustenta que um ser de razão apenas

possui ser objetivo no intelecto e que um ser de razão é algo pensado como um

ser mesmo que não possua ser em si ou por si. Ainda que não seja

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explicitamente claro o significado de ‘existência objetiva’, devemos dizer que ela

se diferencia do ser real, pois, pela primeira afirmação, seres de razão não

possuem ser real. Ambos os tipos de entidades existem para Suárez. A diferença

é que elas existem de maneiras diferentes. Entretanto, é obscuro como a

compreensão equivocada de algo como um ser real, quando de fato é algo que

apenas possui ser objetivo, pode ser útil para compreensão dos seres reais. Esses

são apenas alguns exemplos da minuciosa análise promovida por Novotny acerca

da teoria de Suárez. Os argumentos apresentados pela sua reconstrução são

bastante claros e parecem seguir de perto a estrutura original do texto das

Disputationes, sendo de um grande valor para os pesquisadores da obra de Suárez

e sua influência no desenvolvimento da metafísica barroca e moderna.

Também de formação jesuíta, Pedro Hurtado de Mendoza (1578-1641)

dedicou-se a investigar o estatuto ontológico dos seres de razão. Como aponta

Novotny, Hurtado afirma que existem seres de razão. No entanto, eles são

apenas seres na medida em que são objetos do intelecto. Assim, são

completamente dependentes de atos mentais. Hurtado afirma que eles são uma

proposição falsa julgada como verdadeira. Novotny apresenta uma cuidadosa

reconstrução da posição de Hurtado – aqui cabe apenas reproduzir as suas

conclusões. E, a este respeito, talvez o mais interessante seja a maneira como

Hurtado se afasta da posição defendida por Suárez. Diferentemente de Suárez,

Hurtado aceita apenas seres de razão proposicionais; apenas sentenças ou

proposições que são falsas podem ser tomadas como possíveis objetos do

intelecto, não conceitos isoladamente. Ainda que aceite e reitere a definição

proposta por Suárez de que ser de razão é aquilo que é apenas como objeto do

intelecto não possuindo ser fora dessa relação, tais seres são engendrados

apenas por erros. Na ocorrência de uma falha da capacidade judicativa do

intelecto humano, se produz um objeto, por definição, irreal para dar conta da

transivitidade da intencionalidade do pensamento. Suárez, no entanto, não toma

seres de razão como algo relacionado apenas a casos de erro judicativo. Seres de

razão, para ele, podem existir independentemente disso e são utéis para a

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obtenção de conhecimento, pois através deles podemos pensar sobre privações

e negações, duas importantes operações lógicas.

Bartolomeo Mastri (1602-73) e Bonaventura Belluto (1600-76), filósofos

italianos e de formação franciscana, fortemente influenciados por Duns Scotus,

também apresentaram sua versão para a função e natureza dos seres de razão.

Em duas obras produzidas conjuntamente, Disputationes in Organum Aristotelis

(1628) e Disputationes in XII Aristotelis stagiritæ libros Metaphysicorum (1646), eles

defendem o que Novotny nomeia de objetualismo modificado, um

desenvolvimento do objetualismo defendido por Suárez. Nesse sentido, também

sustentam que tais entidades existem de algum modo. Contudo, diferentemente

de Suárez, eles sustentam que elas existem potencialmente ou virtualmente,

como objetos do intelecto. Disso não se segue que essencialmente seres de

razão sejam independentes de atos mentais, apenas que os seres de razão

surgem ou se tornam objetos somente quando pensados. Eles são, no que diz

respeito tanto à sua existência quanto à sua essência, dependentes de atos

mentais. Antes de serem atualizados como objetos do pensamento, seres de

razão são apenas potencialmente no intelecto. Ao fazerem essa explícita

distinção entre ato e potência em relação aos seres de razão, Novotny acredita

que Mastri e Belluto desenvolvem um aspecto da teoria não abordado por

Suárez a respeito da origem e causa da existência dos seres de razão como

ferramenta do intelecto humano. Eles tentam manter a tese da total dependência

dos seres de razão para com atos mentais, mas também tentam reconhecer que

de certa forma tais entidades já existiam antes em potência. Desse modo,

procuram dar conta da tese tradicional ‘tudo que é em ato é antes em potência’;

tese que não teria sido abordada por Suárez.

O último capítulo do livro é dedicado ao pensador Juan Caramuel y

Lobkowitz (1606-82). Mais conhecido como Caramuel, ele discute a questão dos

seres de razão em diversos momentos de sua obra, mais notadamente em um

ensaio intitulado Leptotatos (1681). Diferentemente dos outros autores

analisados no livro, Caramuel não busca apresentar uma tese positiva acerca dos

seres de razão. Ao contrário, pretende através de uma desconstrução do sentido

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39  NOVOTNY,  D.  D.  Ens  Rationis  from  Suárez  to  Caramuel  

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do conceito ‘ser de razão’ defender a tese de que qualquer possibilidade de

afirmar a existência de seres de razão incorre em contradição e deve ser

afastada de uma ontologia. Partindo da tese de que todo ser é um ser real e de

que a definição adequada de ser de razão é que ele é algo que existe meramente

objetivamente (uma entidade impossível de ter existência fora do pensamento e

que pode ser alguma coisa apenas como um conteúdo de pensamento), procura

concluir que ser de razão não é e não pode ser algo real. Portanto, não pode

sequer ser considerado um ser em um sentido unívoco. Em outras palavras, ao

admitir a existência de entidades não existentes e que as concebemos como se

tivessem existido, também deveríamos admitir que entidades existentes possam

ser concebidas como não existentes. E, afirma Caramuel, se a segunda afirmação

é absurda, também o é a primeira.

A leitura de Ens rationis from Suárez to Caramuel propicia de fato uma

imersão em um período ainda pouco estudado da história da filosofia e, através

da cuidadosa e bem argumentada interpretação de Novotny, estabelece a

importância e influência que os autores estudados têm na transição do período

medieval para o período moderno. Juntam-se a Suárez, como autores que devem

ser estudados para uma adequada compreensão desse período, autores como

Hurtado, Mastri, Belluto e Caramuel. Assim, o estudo desenvolvido por Novotny

é mais uma evidência de que autores como Descartes, Locke, Leibniz, Berkeley,

Malebranche e Kant desenvolvem as suas teorias de uma maneira menos

revolucionária do que já se imaginou. Não vemos a divisão radical, o suposto

abismo, entre modernidade e idade média. Observamos cada vez mais

detalhadamente um período de transição onde intensa e profunda investigação

filosófica foi realizada.