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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 3 (2011) - 01 - GOUGUENHEIM, S. Aristote au Mont Saint-Michel : les racines grecques de l’Europe chrétienne (A. Rieger Schmidt) - 07 - BÜTTGEN, Ph., DE LIBERA, A., RASHED, M., ROSIER-CATACH, I. (dir.). Les Grecs, les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie savante (A. Rieger Schmidt) - 14 - JACQUES DE VITERBE. L’âme, l’intellect et la volonté (G. B. Vilhena de Paiva) - 25 - HALL, A. Thomas Aquinas and John Duns Scotus. Natural theology in the High Middle Ages (M. Klemz Guerrero) - 35 - AZADPUR, M. Reason unbound: on spiritual practice in Islamic peripatetic philosophy (A. Madalena) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCAR) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (CUSC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG)

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 3 (2011)

- 01 -

GOUGUENHEIM, S. Aristote au Mont Saint-Michel : les racines grecques de l’Europe

chrétienne (A. Rieger Schmidt)

- 07 -

BÜTTGEN, Ph., DE LIBERA, A., RASHED, M., ROSIER-CATACH, I. (dir.). Les Grecs,

les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie savante (A. Rieger Schmidt)

- 14 -

JACQUES DE VITERBE. L’âme, l’intellect et la volonté (G. B. Vilhena de Paiva)

- 25 -

HALL, A. Thomas Aquinas and John Duns Scotus. Natural theology in the High Middle

Ages (M. Klemz Guerrero)

- 35 -

AZADPUR, M. Reason unbound: on spiritual practice in Islamic peripatetic philosophy

(A. Madalena)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCAR) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (CUSC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG)

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Translatio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN  2176-­‐8765  Vol.  3  (2011)  

GOUGUENHEIM, S. Aristote au Mont Saint-Michel : les racines grecques

de l’Europe chrétienne, Paris: Seuil, 2008, 277p.

Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________

Sylvain Gouguenheim quer combater a “opinião comum” segundo a qual o

ocidente tem uma “dívida” em relação ao Islã. Sabe-se bem que a Europa

medieval recebeu uma parte importantíssima dos textos gregos graças à tradução

(e também à leitura e aos comentários) feitos do grego para o árabe, em um

primeiro momento, e em seguida do árabe para o latim, num processo de

“transmissão de saberes” da Grécia para Bizâncio (para o siríaco e depois para o

árabe) e em seguida para a Europa latina, chamado de translatio studiorum.

Contrariamente, o autor procura mostrar que o saber científico e filosófico

grego transitou minimamente pelo mundo árabo-muçulmano antes de chegar à

Europa latina que, por sua vez, se apropriou diretamente da herança dos antigos.

O livro ultrapassa claramente a pura expressão de argumentos históricos e leva a

França a conhecer uma das mais vivas polêmicas intelectuais dos últimos anos.1

Podemos identificar no texto de Gouguenheim três bases de

argumentação: a) a presença de elementos de continuidade do saber antigo no

ocidente medieval; b) a existência de traduções feitas diretamente do grego para

o latim já no século XII (antes das traduções feitas a partir do árabe) e c) a

helenização superficial do mundo árabo-muçulmano. Como método, vemos i) o

uso estratégico da noção de civilização para cunhar as identidades da Europa e

do Islã, o que lhe permite compará-las (e opô-las); ii) a distinção entre cultura e

religião islâmica de um lado, e o saber escrito em árabe de outro. Em diversos

momentos o autor insiste sobre a distinção entre a sociedade muçulmana (Islã), a

                                                                                                                         * Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne. 1 Cf., nesse volume de Translatio, a resenha de Philippe Büttgen, Alain de Libera, Marwan Rashed, Irène Rosier-Catach (dir.), Les Grecs, les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie savante, Paris: Fayard, 2009, escrito em resposta ao livro de Gouguenheim.

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religião muçulmana (islã) e os sábios de língua árabe, afirmando ainda que o saber

produzido por um punhado de intelectuais não reflete o progresso científico e

humano de uma civilização (p. 22). Seu objetivo é o de isolar os eruditos de

língua árabe de seu contexto muçulmano, para, assim, poder enfraquecer o

“argumento da dívida” da Europa em relação ao Islã.

Para facilitar sua tarefa, Sylvain Gouguenheim declara curiosamente que seu

estudo tratará da primeira parte da Idade Média, aquela que se estende do século

VI ao século XII – deixando de fora justamente os séculos XIII e XIV (essenciais

para a compreensão da translatio studiorum!), alegando que os “fatos já estão

muito bem estabelecidos para que valha a pena retomá-los” (p. 12) . Em segundo

lugar, ele apresenta uma verdadeira caricatura da posição atualmente defendida

pelos pesquisadores, reduzindo-a à afirmação de que o mundo árabo-muçulmano

é o único responsável pela transmissão da totalidade do saber e racionalismo

gregos ao ocidente, opondo um “Islã esclarecido, refinado e espiritual a um

ocidente brutal, guerreiro e conquistador” (p. 17), um “Islã do Iluminismo” à

“idade das trevas” cristã (p. 12) – ao ponto de identificar um “etnocentrismo

oriental”!

Um elo direto entre Bizâncio e Europa

Segundo o autor, contrariamente às ideias vinculadas ao cliché “idade das

trevas”, a Europa medieval não presenciou uma ruptura radical com a

antiguidade. Gouguenheim defende uma permanência do interesse e curiosidade

pelo saber grego no ocidente. Estudos recentes apontariam para uma série de

elementos de continuidade, ainda que em meios isolados: a presença de núcleos

helenófonos (em grande parte formados por refugiados cristãos das conquistas

árabes) sobretudo em Roma, na Sicília e no sul da Itália (mas também na

Catalunha e Irlanda), entre os séculos VII e XI. Estes núcleos teriam se tornado

centros de difusão da cultura grega na Europa latina, cujos arquivos revelam

manuscritos de medicina, gramáticas gregas e comentários ao Organon de

Aristóteles (p. 41). O autor discorre ainda sobre os esforços de tradução de

uma série de textos científicos e filosóficos realizados por eruditos como

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Hunayn ibn Ishaq (tratados médicos), Tiago de Veneza (quase totalidade da obra

de Aristóteles), Burgundio de Pisa (direito, matemática e filosofia), e ainda

Herman de Carinthie e Abelardo de Bath. Adicione-se a isso a importante

biblioteca de Latrão, alimentada por uma sucessão de papas, a qual tem um papel

capital na conservação de manuscritos gregos de todas as disciplinas.

“Paradoxalmente, conclui Gouguenheim, o Islã transmitiu em um primeiro

momento a cultura grega ao ocidente ao provocar o exílio daqueles que

recusavam a sua dominação” (p. 34). Teríamos aí um elo duradouro com

Bizâncio, oásis da herança grega, que motivará uma série de “renascenças”

medievais. Nessa “prosperidade do humanismo cristão”, vemos o acordo entre a

fé cristã e o saber antigo, revelando o cristianismo como uma religião

naturalmente amiga da razão.

O segundo capítulo é dedicado às traduções de textos gregos para o árabe

por intermédio do siríaco feitas pelos cristãos orientais a partir do século IV.

Gouguenheim insiste sobre o fato que as províncias do império bizantino,

responsáveis pela preservação da cultura grega, não faziam parte do mundo

muçulmano, mas eram majoritariamente siríacas e cristãs. Mesmo à medida em

que o árabe era imposto como língua administrativa nos territórios conquistados

e os cristãos foram lentamente se arabizando, isso não implicou a sua conversão

ao islã.

O siríaco (língua derivada do aramaico, falada na região de Edessa) era a

língua dos cristãos dos impérios persa e bizantino. Próxima do hebreu e do

árabe, essa língua – e seu povo – serão os intermediários essenciais na

transmissão árabe do saber grego. Sem as traduções siríacas os eruditos árabes

não teriam tido acesso ao pensamento antigo: Al-Farabi, Avicena e Averróis,

denuncia Gouguenheim, nunca aprenderam o grego (note-se que a mesma crítica

não é feita aos filósofos latinos, tais como Tomás de Aquino, que muito menos o

conheciam!). No processo das traduções dos textos gregos para o árabe, esses

mesmos cristãos se viram obrigados a cunhar a quase totalidade do vocabulário

científico, até então praticamente inexistente na língua árabe.

O protagonista do terceiro capítulo (que está aliás na origem do título do

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livro mas representa o capítulo mais curto: apenas 20 páginas) é Tiago de

Veneza, personalidade supostamente ignorada pelos historiadores, ainda que

conhecida pelos filósofos graças ao trabalho de Lorenzo Minio-Paluello,

coordenador das edições do Aristoteles Latinus. Clérigo italiano, ele teria vivido

em Constantinopla para depois trabalhar no scriptorium da abadia do Monte-

Saint-Michel. Ali, em pleno século XII, ele teria traduzido (de 1127 a 1150) a

quase totalidade das obras de Aristóteles diretamente do grego para o latim

décadas antes que as traduções a partir do árabe tivessem sido feitas em Toledo.

Até então conhecia-se apenas parte do Organon – a logica vetus – traduzida por

Boécio no século V; lembrando-se que a Europa descobre somente no século

XIII, através das traduções feitas a partir do grego por Guilherme de Moerbeke,

os tratados políticos e morais de Aristóteles (Política e Ética a Nicômaco) –

segundo Gouguenheim ignorados pelo mundo muçulmano por serem

incompatíveis com o Corão (p. 104).

Devemos a Tiago de Veneza a primeira tradução integral dos Segundos

Analíticos (cerca de 1128), dos tratados De Anima e De memoria, de grande parte

dos Parva naturalia, das Refutações Sofísticas, da Física (cerca de 1140), dos Tópicos,

do De longitudine et brevitate vitae, De generatione et corruptione, dos livros II e III

da Ética a Nicômaco (Ethica vetus) e da Metafísica (ainda que apenas os livros I-IV

tenham sido conservados).

A circulação dessas traduções teria sido enorme: encontramos cópias no

norte da França, na Inglaterra e na Alemanha. Mais de cem de manuscritos da

Física de Aristóteles são difundidos por toda a Europa, principalmente na França

e na Inglaterra; encontramos três manuscritos da Metafisica no século XII

(encontrados em Avranches, Bolonha e Oxford) e mais 39 do século XIII;

encontramos ainda o impressionante número de 289 cópias dos Segundos

Analíticos feitas apenas no século XIII.

A abadia do Monte-Saint-Michel é, assim, o lar de um dos ateliês de cópia

mais ativos do ocidente, abrindo uma via de acesso direto ao saber grego.

Gouguenheim confunde, todavia, a presença de manuscritos em um local com a

sua respectiva produção. Nada o autoriza a concluir que Tiago de Veneza tenha

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efetivamente vivido na dita abadia...

O filtro islâmico

O restante do livro se concentra sobre a incompatibilidade entre o pensamento

grego e o mundo islâmico, este último incapaz de absorver o primeiro. A visão

de Gouguenheim vai de encontro à visão segundo a qual o Islã medieval, ávido de

conhecimento, teria acolhido o saber antigo e em resultado se transformado

positivamente. O núcleo da sua argumentação consiste na ideia de que a Grécia

representava um mundo completamente estrangeiro ao Islã, seja por razões

políticas (as disputas com o Império Bizantino), religiosas (conflito com o Corão)

e mesmo linguísticas.

Segundo o autor, o mundo muçulmano teria se interessado somente pela

parte do saber grego que não apresenta tensão com os princípios do Corão. Isso

quer dizer que os textos lógicos e matemáticos foram rapidamente difundidos;

por outro lado, os textos astronômicos e filosóficos (como a Física e a Metafísica

de Aristóteles, cujo argumento do primeiro motor ia de encontro à astronomia,

ou melhor, à astrologia muçulmana) passaram por um verdadeiro “filtro” –

qualquer acolhimento por parte de Al-Farabi, Avicena ou Averróis

representando uma exceção. O pensamento muçulmano, intimamente ligado ao

Corão, se mostra de um modo geral incompatível com a “razão grega”; o que

podemos chamar hoje de “racionalismo” não teria, para o autor, correspondente

no Islã medieval (p. 165). O conflito filosofia-religião é sempre apresentado como

um problema exclusivamente islâmico, como se houvesse um casamento perfeito

entre cristianismo e Aristóteles...

Gouguenheim insiste ainda sobre a impossibilidade de traduzir, sem perdas

significativas, um texto de uma língua indo-europeia em uma língua semítica, já

que elas não compartilham a mesma estrutura. Não basta, para que uma

tradução seja considerada fiel, a mera transposição dos sentidos de cada palavra,

mas a transferência de uma “estrutura de pensamento” (p. 136). Enquanto a

língua árabe se presta bem à poesia, as línguas indo-europeias são as mais

apropriadas para a expressão filosófica. Desta forma, Gouguenheim procura

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invalidar o processo de transmissão textual e cultural para o ocidente

questionando o valor das traduções árabes.

O resultado de todas estas barreiras está na helenização limitada do Islã:

este teria se “helenizado” tanto quando o ocidente teria se “islamizado” (p. 164).

A noção identitária de civilização

Em seu capítulo final, Gouguenheim demonstra claramente os juízos de valor que

alimentaram a polêmica ao redor do livro. O mediterrâneo medieval é

apresentado como o encontro de duas civilizações com identidades conflitantes:

de um lado, o Islã expansionista, violento e desinteressado pelas culturas alheias;

de outro, a Europa cristã, pacífica e acolhedora. Vemos sobretudo nestes dois

últimos capítulos uma característica recorrente do discurso de Gouguenheim (e

grande alvo de críticas): o essencialismo. Mesmo que ele identifique o

essencialismo e seu consequente anacronismo como os maiores perigos da

pesquisa historiográfica (p. 168), o “cristianismo” e o “islã” são sistematicamente

apresentados como entidades históricas coerentes, unas e imutáveis – e, bem

entendido, necessariamente opostas.

A identidade de uma civilização seria constituída pelo “amálgama entre

aquilo que ela produziu, aquilo que ela recebeu e aquilo que ela aceitou (ou

refusou) do exterior” (p. 195). Ao introduzir as ideias de continuidade e

descontinuidade de civilizações, Gouguenheim pode apresentar a ideia de

origem, de raízes de uma civilização, para finalmente concluir que as raízes da

Europa cristã se encontra na Grécia antiga, em detrimento das trocas com o

mundo árabo-muçulmano – “a Europa teria seguido um caminho idêntico mesmo

na ausência de todo contato com o mundo islâmico” (p. 198-199).

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BÜTTGEN, Ph., DE LIBERA, A., RASHED, M., ROSIER-CATACH, I.

(dir.). Les Grecs, les Arabes et nous : enquête sur l’islamophobie

savante, Paris: Fayard, 2009, 372p.

Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________

“Os Gregos, os Árabes e nós: investigação sobre a islamofobia erudita” é um

conjunto de artigos escritos em resposta ao livro de Sylvain Gouguenheim

“Aristóteles no Monte-Saint-Michel: as raízes gregas da europa cristã” (Aristote au

Mont-Saint-Michel : les racines grecques de l’europe chrétienne).1

Gouguenheim procura desvalorizar o papel da transmissão dos textos

científicos e filosóficos gregos para o ocidente através das traduções árabes. Para

tanto, ele pretende mostrar que, por uma lado, o ocidente cristão nunca teria

rompido os laços com Bizâncio, mas na verdade muitos textos circulavam e eram

traduzidos (sobretudo na abadia do Monte-Saint-Michel) diretamente do grego

para o latim, sem o “intermediário árabe”; por outro, a helenização do mundo

islâmico foi extremamente superficial – seja pela sua incapacidade de traduzir e

compreender plenamente esses textos, seja pelo “filtro religioso” ao qual eles

foram submetidos.

As motivações por detrás destas teses incluem Gouguenheim numa

tendência particular de islamofobia, que os autores chamam de “islamofobia

erudita” (islamophobie savante). O livro desencadeou uma intensa discussão e foi

muito comentado pelos principais veículos da imprensa francesa (e também por

sites extremistas). Tanto Aristote au Mont-Saint-Michel como Les Grecs, les Arabes

et nous se inscrevem em um debate intelectual e político atual: uma das formas

que assume a atualidade da filosofia medieval.

No primeiro capítulo, Irène Rosier-Catach (Qui connaît Jacques de Venise ?

Une revue de presse) se encarrega de chamar a atenção para o grande número de

                                                                                                                         * Bolsista CAPES e doutoranda em filosofia medieval pela Université de Paris IV-Sorbonne. 1 Ver nossa resenha nesse mesmo volume.

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8  BÜTTGEN,  Ph.  et  al.  (dir.).  Les  Grecs,  les  Arabes  et  nous  

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resenhas positivas que o livro de Gouguenheim motivou após sua publicação,

formando um extenso debate que, apesar de seu conteúdo aparentemente

histórico, vai além das fronteiras acadêmicas. Ela apresenta uma cronologia das

reações mais importantes: entre elas, a resenha positiva de Roger-Pol Droit em

Le Monde des livres (4 de abril de 2008)2 e outra de Stéphane Boiron em Le Figaro

littéraire (17 de abril de 2008).3 Nos dias 28 e 29 de abril de 2008, Télérama

publica em seu site o texto enfurecido Landernau, terre d’Islam, de Alain de

Libera4 e uma petição de pesquisadores da École Normale Supérieure de Lettres et

Sciences Humaines de Lyon,5 onde Sylvain Gouguenheim é professor. Ainda no dia

29, o jornal Libération publica uma resenha positiva de Jean-Yves Grenier

(“Aristote au Mont-Saint-Michel", savant et ambiguë).6 No dia seguinte, o mesmo

jornal publica um texto assinado por 56 pesquisadores em história e em filosofia

mediaval intitulado “Sim, o ocidente deve ao mundo islâmico” (Oui, l’Occident

chrétien est redevable au monde islamique).7 Deve-se contar ainda o volume

conjunto editado por Max Lejbowicz (L'islam médiéval en terres chrétiennes: science

et idéologie, Villeneuve d'Ascq: Septentrion, 2008), em resposta às teses de

Gouguenheim.

Rosier-Catach chama a atenção para uma característica frequente do

debate em torno do livro de Gouguenheim: a simplificação que leva à oposição

do bloco europeu-cristão contra o bloco árabe-islâmico, como se estes

constituíssem duas entidades idênticas a si mesmas e separadas desde o princípio

– o que leva a formulações essencialistas na forma de clichés repetidos e

exagerados sem nenhum senso crítico.

Luca Bianchi (Deux poids, deux mesures) acusa Gouguenheim de aplicar

                                                                                                                         2 Disponível para assinantes do Le Monde em <http://www.lemonde.fr/cgi-bin/ACHATS/acheter.cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=1031224>. 3 Disponível em <http://www.lefigaro.fr/livres/2008/04/17/03005-20080417ARTFIG00491-les-tribulations-des-auteurs-grecs-dans-le-monde-chretien-.php>. 4 Disponível em <http://www.telerama.fr/idees/landerneau-terre-d-islam-par-alain-de-libera,28252.php>. 5 Disponível em <http://www.telerama.fr/idees/petition-de-l-ecole-normale-superieure-lettres-et-sciences-humaines,28371.php>. 6 Não pudemos localizar o artigo referido no site do jornal Libération, entretanto, ele foi reproduzido por outros sites e pode ser facilmente encontrado pelos mecanismos de busca. 7 Disponível em <http://www.liberation.fr/tribune/010179795-oui-l-occident-chretien-est-redevable-au-monde-islamique>.

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9  BÜTTGEN,  Ph.  et  al.  (dir.).  Les  Grecs,  les  Arabes  et  nous  

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“dois pesos e duas medidas” ao apresentar um ocidente ingenuamente pacífico e

racional, ocultando os eventos que mostram as tensões internas e a hostilidade

do ocidente contra os textos gregos, sem levar em conta toda a série de

censuras, de tratados contra os “erros dos filósofos”, de condenações e o

montante de obras queimadas pelas autoridades eclesiásticas. Gouguenheim

afirma que “o Islã transmitiu em um primeiro momento a cultura grega ao

ocidente ao provocar o exílio daqueles que recusavam a sua dominação” (AMSM,

p. 34), sem mencionar o fechamento da escola de Atenas pelo imperador

romano (e cristão) Justiniano. Outro episódio “esquecido” por Gouguenheim é

curiosamente aquele de Galileu, que sequer é citado nas páginas que tratam da

revolução científica moderna – uma falta astuta, pois mencioná-lo seria relembrar

sua condenação pelo santo ofício em 1633.

Hélène Bellosta (Science arabe et science tout court) critica a tese de

Gouguenheim segundo a qual o mundo árabo-muçulmano estaria duplamente

excluído do saber científico: por um lado, por causa da estrutura da língua árabe

– imprópria à expressão da filosofia e da ciência; por outro, por causa do islã

que, contrariamente ao cristianismo, é essencialmente contrário à razão. Sem

tecer um quadro exaustivo da ciência árabe na Idade Média, a autora procura

mostrar o “absurdo que há na tentativa de isolar artificialmente os sábio cristãos

do meio sócio-cultural no qual eles viveram e trabalharam, ignorando

deliberadamente os trabalhos de outros” (p. 76).

Bellosta relembra que a partir do século XIII o mundo árabo-muçulmano

presenciou uma intensa atividade científica e filosófica – em língua árabe. Mesmo

no século X, onde, segundo a autora, vemos o renascimento do persa como

língua literária, os tratados científicos continuam a ser escritos em árabe: al-

Birûnî, cuja língua materna é o persa, escreve seu tratado matemático em árabe;

Ibn Sinâ (Avicena), que também falava persa, escreve sua suma filosófica al-Shifa’

igualmente em árabe; o filósofo judeu Maimônides escreve o Guia dos Perplexos

também em árabe. “O papel do árabe foi absolutamente análogo àquele que

cumpre, na Europa medieval, o latim” (p. 61). Ela insiste sobre os laços estreitos

entre tradução e pesquisa (p. 63), pois revelam um interesse legítimo e um

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10  BÜTTGEN,  Ph.  et  al.  (dir.).  Les  Grecs,  les  Arabes  et  nous  

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esforço imenso no estudo da gramática, da linguística e da hermenêutica nas

escolas de Bagadá e Barsa.

Vimos que Gouguenheim procura estabelecer uma “barreira qualitativa”

entre as línguas semíticas e as línguas indo-europeias, de modo a desqualificar a

tradução dos textos científicos e filosóficos de uma para a outra. Djamel

Kouloughli (Langues sémitiques et traduction : critique de quelques vieux mythes)

mostra que os argumentos de Gouguenheim se aliam às teses já conhecidas (e

sem fundamento) de Ernest Renan (1823-1892) segundo os quais a língua árabe

implica uma estrutura mental essencialmente religiosa e portanto incompatível

com a mentalidade grega (entenda-se, racional).

Kouloughli nota que Gouguenheim se vale em diversos momentos de

conceitos como “concepção de mundo” (AMSM, p. 21), “espírito” (AMSM, p.

164), “estruturas do pensamento” (AMSM, p. 136) e “estruturas mentais”

(AMSM, p. 137) presentes nos textos gregos, como se estes contituíssem

“avatares de Sprachgeist ou de Kulturgeist” (p. 96), revelando uma espécie de

relativismo linguístico radical – uma hipótese problemática do ponto de vista

linguístico.

Contrariamente à afirmação de Gouguenheim segundo a qual os árabes

teriam recebido passivamente o saber grego sem assimilá-lo, Marwan Rashed (Les

débuts de la philosophie moderne : VIIe-IXe siècle) oferece um verdadeiro panorama

da filosofia árabo-islâmica, mostrando que o uso dos textos gregos neste

contexto era feito com vistas à responder a uma agenda própria de problemas

filosóficos e teológicos.

Dentre os diversos casos expostos por Rashad, está o de Al-Farabi, que

comenta Aristóteles não simplesmente por comentá-lo, mas procura em seus

tratados lógicos respostas para problemas surgidos na sua própria filosofia. Ele lê,

por exemplo, o De Interpretatione visando dissociar presciência de

predeterminação (p. 135) . No campo da física, os textos sobre o atomismo

geraram um debate particularmente importante no cerne da teologia racional

(Kalâm), chegando a dar origem a uma forma de atomismo nunca vista na

antiguidade: os átomos são não-corporais, sem extensão e indiscerníveis senão

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11  BÜTTGEN,  Ph.  et  al.  (dir.).  Les  Grecs,  les  Arabes  et  nous  

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pela sua posição (p. 139).

Alain de Libera (Les Latins parlent aux Latins) – cujo trabalho é diretamente

criticado por Gouguenheim (AMSM, p. 16 e 140) – se pergunta quem são, para

os latinos, os gregos e os árabes. Ele mostra como interpretar a tríade presente

no título do livro (os gregos, os árabes e nós) pode ser problemático, uma vez

que estes termos são equívocos no discurso dos latinos. Para Tomás de Aquino,

por exemplo, “os gregos” dos quais ele fala quando escreve o Contra errores

Graecorum (1263) são cristãos (“outros cristãos”) – que não são os mesmos

gregos dos quais fala Crasso no diálogo de Cícero Do Orador. O mesmo termo

pode se referir tanto a cristãos como a pagãos, seja com vistas a criticá-los ou a

defendê-los, de modo que, conclui De Libera, “falar de raízes gregas da Europa

cristã não faria nenhum sentido para um escolástico” (p. 175). Trata-se de uma de

suas premissas metodológicas: o problema da história da filosofia está em saber

como os latinos viam a si mesmos e entendiam as suas próprias origens, antes de

impor nossas definições, por si mesmas já demasiado problemáticas e anacrônicas.

Contrariamente, Gouguenheim supõe um continuísmo histórico e trata os

conceitos em jogo – “gregos”, “árabes”, “Europa”, etc. – como eternos e a-

históricos.

Ruedi Imbach (« … en l’absence de tout lien avec le monde islamique »)

demonstra a sua surpresa ao ler a afirmação “a Europa teria seguido um caminho

idêntico, mesmo na ausência de todo laço com o mundo islâmico” (AMSM, p.

199). Em sentido contrário, ele invoca o caso de Tomás de Aquino – “pilar” do

mesmo “ocidente cristão” defendido por Gouguenheim – que em diversos

pontos essenciais de sua doutrina “avança na descoberta do que ele considera

como a verdade discutindo com Averróis, Avicena e Maimônides” (p. 208). Em

diversos pontos da sua obra, tendo à sua frente os texto do “Comentador”,

Tomás se viu obrigado a reformular sua posição. Ao menos no caso do Doutor

Angélico, podemos seguramente dizer que a sua teologia e filosofia não seriam as

mesmas sem a presença dos filósofos árabes.

Jean-Christophe Attias (Judaïsme : le tiers exclu de l’« Europe chrétienne »)

denuncia o “silêncio quase absoluto” de Gouguenheim a respeito do judaísmo e

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dos judeus: nem uma única palavra foi dita sobre os judeus de Bizâncio, ou

mesmo do norte da França e da Alemanha. Maimônides é citado somente uma

vez, segundo Attias, com vistas a criticá-lo por aderir às “superstições”

astrológicas de seus contemporâneos judeus e muçulmanos (AMSM, p. 145).

Christian Förstel (Les Grecs sans Byzance) nos fala da recepção da língua e

da literatura gregas no ocidente pelos humanistas italianos na primeira metade

do século XV graças à criação de um sistema de ensino do grego clássico em

Florença. Os principais protagonistas desta nova aliança com Bizâncio são Manuel

Chrysoloras e Leonardo Bruni.

Philippe Büttgen (Avicenne à Ratisbonne : introduction à la théologie

comparative) compara a “islamofobia erudita” ao polêmico discurso de Bento XVI

na universidade de Regensburg (12 de setembro de 2006), o qual estabelecia,

ainda que não abertamente, um vínculo entre Islã e violência. O autor identifica

no livro de Gouguenheim e na vontade de “diálogo” inter-religioso do discurso

de Bento XVI a defesa de uma espécie de “teologia comparativa”: uma nova

ciência que compara diretamente o cristianismo e o islã, o “choque Jesus-

Maomé”. Enquanto o Papa contrapõe o cristianismo essencialmente pacífico ao

islã essencialmente violento, Gouguenheim contrapõe o cristianismo amigo da

razão (AMSM, p. 72-73) ao universo muçulmano impregnado de religião, mais

espiritualista que científico (AMSM, p. 165 e 146).

O debate ao redor do Islã “nunca foi tão presente na sociedade francesa”

nota Annliese Nef (Enseigner l’histoire de l’Islam médiéval : entre soupçon et

contradiction), que coloca a questão do ensino da história do Islã medieval na

França, através de uma análise de programas escolares. Com o objetivo de evitar

uma instrumentalização ideológica deste período, Nef apresenta uma série de

metas, dentre elas, a necessidade de criticar as noções de civilização e de

identidade – ambas não-históricas – e o reconhecimento de que a noção de

“dívida” entre civilizações é “desprovida de sentido” (p. 279). Deve-se, ao

contrário, insistir sobre a evolução permanente do islã (posição não-

essencialista), sem aplicar os qualitativos “apogeu” e “declínio”, tão

frequentemente utilizados na representação da história do islã medieval (p. 279).

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As referências de Gouguenheim a Braudel revelam uma estratégia

metodológica: por um lado, opor o mundo árabo-muçulmano ao mundo cristão

ocidental; por outro, realizar uma leitura historiográfica fundada no conceito de

civilização – o que leva Blaise Dufal (Faire et défaire l’histoire des civilisations) a

reexplorar as concepções braudelianas. Segundo o autor, Gouguenheim se vale

do conceito de civilização para definir a “identidade cristã do mundo ocidental”

(AMSM, p. 9), caracterizada, como já visto, por um racionalismo. As essências

das civilizações em questão são definidas pelos seus respectivos textos sagrados:

a Bíblia e o Corão, sendo os eventos históricos uma consequência direta de seus

conteúdos (AMSM, p. 200). Ainda, segundo Dufal, citar Braudel é ao mesmo

tempo uma suposta garantia de cientificidade, dada a sua importância nas ciências

sociais na França: seu livro intitulado Gramática das Civilizações (Grammaire des

civilisations) se tornou um verdadeiro clássico da disciplina.

No capítulo final, Alain Boureau (L’astérisque gaulois : la discipline historique

aux affaires indigènes) se concentra sobre a noção de “origem” presente no

objetivo de Gouguenheim em retraçar as origens gregas da Europa, mostrando

como ela pode ser um instrumento ideológico, a despeito dos princípios que

estão da base da atividade do historiador. São eles: i) a imanência das causas

históricas que produzem uma secessão de estados de coisas; ii) uma

descontinuidade destes estados que rejeita todo recurso a uma origem primeira

e iii) uma mobilidade de hierarquias causais. Segundo Boureau, Gouguenheim faz

de conta que se conforma a esses axiomas, ao mesmo tempo em que os

desrespeita.

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JACQUES DE VITERBE. L’âme, l’intellect et la volonté. Textes latins

introduits, traduits et annotés par Antoine Côté, Paris: Vrin,

“Translatio. Philosophies Médiévales”, 2010, 238 p.

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

I.

Ainda hoje se mostra válida a fórmula de Paul Vignaux: “o historiador que

recebeu uma formação filosófica deve ter receio de unificar demais, de

sistematizar; é preciso que ele deixe ver a diversidade rebelde”.1 Com essa

afirmação, Vignaux se opunha frontalmente a qualquer tentativa de

sistematização da história da filosofia e, em particular, da história da filosofia

medieval. Assim, ele fazia a sua própria concepção de história da filosofia

escolástica ir de encontro àquela que se podia ler, por exemplo, nos textos de

Étienne Gilson, onde todo o desenrolar histórico da filosofia medieval parecia

estar centrado na obra de Tomás de Aquino, já que este último representava o

próprio apogeu da escolástica – ele era aquele que “ia pondo tudo em seu

devido lugar”.2 De fato, essa centralização da história da filosofia medieval em

torno de Tomás de Aquino surge em diversos momentos da obra de Gilson.

Como exemplo, temos a introdução ao seu Jean Duns Scot, na qual, logo após

reconhecer quase que a contragosto a influência de Henrique de Gand sobre

Duns Escoto, Gilson rapidamente passa a ignorá-la e defender que o Doutor

Sutil se compreende melhor por comparação ao Doutor Angélico do que ao

Doutor Solene, visto que a relação que se pode estabelecer entre Duns Escoto e

Tomás de Aquino é mais importante em si e para nós do que aquela entre Duns

                                                                                                                         * Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 VIGNAUX, P. Philosophie au Moyen Âge précédé d’une Introduction nouvelle et suivi de Lire Duns Scot aujourd’hui, Albeuve: Éditions Castella, 1987 (1958), p. 64. 2 GILSON, É. The Unity of Philosophical Experience, San Francisco: Ignatius Press, 1999 (1937), p. 49.

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Escoto e Henrique de Gand.3 É justamente a essa concepção de filosofia medieval

que Vignaux contrapõe a sua fórmula descritiva do trabalho do historiador da

filosofia medieval. Atualmente, acredito que estamos ainda em um processo de

crítica a Étienne Gilson que toma por base aquela fórmula de Paul Vignaux.

O quão nova é essa concepção descentralizadora de história da filosofia

medieval que aparece em Paul Vignaux é mostrado pelo fato de que, mesmo

hoje, os textos que surgem a cada ano sobre autores escolásticos outros que

não aqueles mais estudados – como Tomás de Aquino, João Duns Escoto ou

Guilherme de Ockham – continuam a trazer consigo um ar de novidade.

Recentemente, esse foi o caso com o livro Un franciscain à Paris de Sophie

Delmas, que propõe uma biografia intelectual de Eustáquio de Arras, um

contemporâneo de Tomás de Aquino e de Boaventura, hoje pouco estudado e

lido, não obstante a grande importância que lhe foi dispensada em sua própria

época.4 Esse é o caso novamente com o livro L’âme, l’intellect et la volonté, que

apresenta diversas questões quodlibetais de Tiago de Viterbo traduzidas do latim

para o francês e introduzidas por Antoine Côté. Assim como o livro de Delmas,

o de Côté se volta para um autor cuja obra se desenvolveu na segunda metade

do século XIII e foi, desde então, eclipsada pelos textos de outros pensadores da

mesma época que, posteriormente, alcançaram um lugar de maior destaque na

história da filosofia – no caso de Eustáquio de Arras, autor de meados do século

XIII, a rejeição se deu em favor de Boaventura ou Tomás de Aquino; no caso de

Tiago de Viterbo, em atividade entre a última década do século XIII e a primeira

do XIV, a preferência foi dada a autores como Henrique de Gand ou Godofredo

de Fontaines. Daí o mérito de ambos, Delmas e Côté.

Tendo me voltado para o livro de Delmas no último número do presente

caderno,5 meu interesse aqui é ressaltar alguns aspectos mais relevantes de

                                                                                                                         3 GILSON, É. Jean Duns Scot. Introduction à ses positions fondamentales. Paris: Vrin, 2005 (1952), p. 10. 4 DELMAS, S. Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle. Le maître en théologie Eustache d’Arras, Paris: Les Éditions du Cerf, 2010. 5 PAIVA, G. B. V. de. “Resenha de: DELMAS, S. Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle (...)”. Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga 2 (2010), pp. 21-9.

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L’âme, l’intellect et la volonté de Tiago de Viterbo, traduzido e introduzido por

Côté. Dito isso, a estrutura do comentário a seguir será aquela sugerida pelo

próprio livro resenhado: assim como ele se compõe da tradução dos textos de

Tiago de Viterbo antecedida pela introdução de Côté sobre as posições

filosóficas do autor, primeiro estudaremos o texto introdutório do tradutor

contemporâneo e, depois, nos voltaremos para a consideração das próprias

traduções do autor escolástico. Como é de se esperar, esses dois aspectos do

livro ora resenhado se entrecruzam, de maneira que a dificuldade da tradução de

Côté corresponde à complexidade filosófica do texto de Tiago de Viterbo.

Nesse sentido, traduzir o texto de Tiago de Viterbo é um excelente exercício

filosófico, devido ao uso extremamente próprio que ele faz de certos termos

técnicos da filosofia escolástica. Com efeito, a própria tradução de Côté é

principalmente um trabalho de interpretação do texto de Tiago de Viterbo – o

que ocorre, aliás, com toda tradução de interesse filosófico.

II.

Como se dizia, o L’âme, l’intellect et la vonlonté se inicia pelo estudo introdutório

de Côté (pp. 7-59),6 onde são feitas algumas observações biográficas sobre Tiago

de Viterbo. Mais do que isso, porém, esse estudo consiste principalmente na

análise da doutrina mais característica da filosofia deste último, que é por ele

descrita longamente nos textos traduzidos no volume ora resenhado, a saber, a

“doutrina das idoneitates” – voltaremos a ela mais à frente. Agora, o interessante

é notar que, muito embora as informações biográficas que Côté nos oferece não

sejam particularmente determinantes para a compreensão da filosofia de Tiago

de Viterbo, elas são, no entanto, muito importantes por remeter a um problema

próprio da historiografia atual da filosofia medieval. Como é mostrado por Côté,

Tiago de Viterbo discute, em sua obra, os autores mais importantes em atividade

em sua própria época e imediatamente antes dele, como: Henrique de Gand,

                                                                                                                         6 As páginas da introdução de Côté a que nos referirmos serão sempre citadas, entre parênteses, no corpo do texto. Quando se tratar, porém, de citações do texto latino de Tiago de Viterbo, estas serão fornecidas em notas com as referências apropriadas, inclusive a paragrafação e a paginação utilizadas no livro ora resenhado.

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Godofredo de Fontaines,7 Egídio de Roma e Tomás de Aquino (p. 8). Além disso,

os seus textos foram lidos e criticados por seus contemporâneos, como

Bernardo de Auvergne, e, mesmo, por autores mais tardios do século XIV, como

Afonso Vargas de Toledo (p. 9, nota 1). Como se vê, Tiago não somente estava a

par das obras mais relevantes em seu período de atividade, mas também foi

considerado ele próprio um autor importante pelos estudiosos que o sucederam

nas décadas seguintes. A meu ver, isso aponta para um dos princípios centrais

para um historiador da filosofia medieval que queira se guiar pela fórmula de Paul

Vignaux: a importância atribuída atualmente a um autor escolástico pouco diz

sobre o lugar que lhe era reservado nas discussões pelos seus próprios

contemporâneos. Com efeito, ainda que Tiago de Viterbo seja hoje pouco lido

ou, mesmo, conhecido, ele estabeleceu um diálogo com os seus mais ilustres

contemporâneos, era conhecedor das obras de seus antecessores e foi, sem

dúvida, lido pelos seus sucessores. Portanto, mais do que dizer qualquer coisa

sobre a própria obra de Tiago de Viterbo, o fato de a contemporânea

historiografia da filosofia medieval quase o ignorar mostra, unicamente, o quão

incompletos são, ainda, os nossos estudos sobre as discussões filosóficas

desenvolvidas durante a escolástica. Mas, para ser lido pelos seus sucessores, é

necessário mais do que meramente dialogar com autores proeminentes – é

preciso apresentar e desenvolver teses próprias que se proponham como

alternativas viáveis para a solução de problemas relevantes de sua época; mesmo

que, com o tempo, tais alternativas se mostrem mais um objeto de rejeição do

que de aceitação. Ora, isso é exatamente o que ocorre com Tiago de Viterbo.

Com efeito, o elemento mais característico da sua filosofia é a já citada

“doutrina das idoneitates” ou, como Côté diz em francês, “la doctrine des

idonéités” (p. 9) – “a doutrina das idoneidades” –, que é o próprio objeto do

estudo introdutório de autoria do tradutor. Nas palavras de Côté, essa

idoneidade a que Tiago de Viterbo se refere é uma “aptidão natural” – uma

                                                                                                                         7 A relação entre Tiago de Viterbo e Godofredo de Fontaines foi estudada por Antoine Côté em: CÔTÉ, A. “Le progrès à l’infini des perfections créées selon Godefroid de Fontaines et Jacques de Viterbe”. Les études philosophiques 91 (2009), pp. 505-30.

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“aptitude naturelle” (ibidem). Ora, não sendo essa mera substituição de termos

uma explicação suficiente, Côté se volta justamente para o estudo detalhado da

doutrina das idoneidades, a qual é desenvolvida por Tiago principalmente nas

questões quodlibetais que são traduzidas no volume. Primeiramente, é mostrado

que a noção de idoneitas tem uma origem bem clara: o Comentário às Categorias

de Aristóteles feito por Simplício. De fato, esse débito de Tiago com relação a

Simplício já havia sido demonstrado por Côté em um artigo8 e é retomado, mais

brevemente, no volume que estamos resenhando (pp. 9-14). O Comentário às

Categorias de Simplício foi traduzido por Guilherme de Moerbecke em 1266 e,

ainda que tenha sido utilizado por outros autores escolásticos – como Tomás de

Aquino –, são próprias de Tiago de Viterbo, segundo Côté, “a freqüência e a

abundância de suas referências a esse comentário” (p. 10, nota 1). Em poucas

palavras, Tiago se utiliza da noção de qualidade desenvolvida por Simplício – mais

particularmente, da enumeração das quatro espécies de qualidade feita por este

último – para explicitar a sua própria noção de idoneitas. Para ele, uma

idoneidade “convém a tudo que, de qualquer maneira, seja aperfeiçoado. De fato,

algo não procede do totalmente imperfeito ao perfeito, sem que haja uma

potência média que lhe adicione algo que falta para a perfeição”; essa potência

média é “o que conduz entre os extremos, mostra o caminho desde os piores

até os melhores e impõe uma preparação e um início para a perfeição”. Segundo

Tiago, é por isso que, para Simplício, “essa potência é uma aptidão, uma

idoneidade e um início de uma perfeição ulterior do homem para as ciências e as

virtudes”.9 Enfim, a idoneidade é, para Tiago, uma potência intermediária entre a

                                                                                                                         8 CÔTÉ, A. “Simplicius and James of Viterbo on propensities”. Vivarium 47 (2009), pp. 24-53. 9 TIAGO DE VITERBO, Quodl. I, q. 7, n. 20 (pp. 74-7): “(...) cum nomen potentiae multa significet, potentia, quae pertinet ad hanc speciem qualitatis, est idoneitas naturalis, non simpliciter sed secundum exordium quoddam considerata, et sicut dicit, hoc genus potentiae conveniens est omnibus quae qualitercumque perficiuntur. Non enim totaliter ab imperfecto ad perfectum procedit aliquid, nisi potentia media affuerit addens quid, quod deficit ad perfectum, suscipiens autem completionem a perfectissimo. Est igitur conductiva extremorum et viam exhibet a deterioribus ad meliora et praeparationem imponit et exordium ad perfectionem. Unde, ut ait, huiusmodi potentia est aptitudo et idoneitas et exordium quoddam ulterioris perfectionis hominis ad scientias et virtutes”. Na tradução de Côté: “(...) du fait que le nom de puissance a plusieurs significations, la puissance qui concerne cette espèce de qualité est une idonéité naturelle, non pas au sens absolu, mais considérée d’après un certain commencement. Ce genre

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potência absoluta para um ato e a própria atualidade dessa potência – por essa

razão ela é como que o início ou uma aptidão para o ato, uma vez que ela não é

o próprio ato, mas é uma preparação para ele. Por fim, ainda na passagem acima,

pode-se observar também os dois contextos principais nos quais Tiago se utiliza

dessa noção: a atualização do conhecimento e das virtudes na alma humana, isto

é, os atos do nosso intelecto e da nossa vontade.

A bem dizer, a doutrina das idoneidades é igualmente relevante em outro

campo de interesse de Tiago de Viterbo, nomeadamente, a discussão acerca das

mudanças naturais (p. 14), onde a noção de idoneidade se faz necessária para a

explicação da doutrina das razões seminais.10 Mesmo assim, aqui será dada

atenção somente ao uso da noção de idoneidade nas doutrinas da intelecção e da

vontade de Tiago de Viterbo, pois é nesse contexto preciso que elas são

apresentadas por este último nos textos traduzidos no volume em estudo. Com

efeito, Côté nos oferece as versões em francês – lado a lado com o original

latino – das questões 7, 12 e 13 do Quodlibet I de Tiago de Viterbo. Juntas, elas

compõem um apanhado da doutrina das idoneidades desenvolvida pelo pensador

escolástico, porém cada uma se volta para um aspecto, ou melhor, uma situação

de uso dessa doutrina. Assim, a questão 7 procura responder se a vontade se

move por si ou não, ou melhor, ela se pergunta se “o movimento da vontade em

direção ao fim é um ato da vontade ou do intelecto” (pp. 62-107).11 Passando da

investigação acerca da vontade para o estudo do intelecto, a questão 12 pergunta

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             de puissance, comme il le dit, convient à tout ce qui est suscetible d’être parachevé de quelque manière que ce soit. Car rien ne procède totalement de l’imparfait au parfait sans une puissance moyenne lui apportant quelque chose qui lui fait défaut en vue du parfait et qui reçoit son accomplissement du plus parfait. [Cette puissance] réunit les extrêmes, en montrant la voie du plus mauvais au meilleur, conférant une préparation et un commencement en vue de la perfection. Ainsi, comme il le dit, cette sorte de puissance est une aptitude et une idonéité et un certain commencement de la perfection ultérieure de l’homme relativement aux sciences et aux vertus”. Sobre a versão latina utilizada por Côté e a sua tradução, ver a seção III desta resenha, mais adiante. 10 CÔTÉ, A. “Simplicius and James of Viterbo on propensities”, op. cit., pp. 46-52. 11 TIAGO DE VITERBO, Quodl. I, q. 7, n. 1 (pp. 62-3): “Est igitur prima dubitatio circa hoc quod dictum est: voluntatem moveri ex se”. Na tradução francesa: “Il y a donc un premier doute à propôs de ce qui a été dit, à savoir que la volonté est mue de soi”. Assim Côté enuncia a questão: “Le mouvement de la volonté vers la fin est-il un acte de la volonté ou de l’intellect?”.

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“se o intelecto agente é algo da alma” (pp. 108-89),12 enquanto que a questão 13

determina “se a alma aqui nesta vida (in via) intelige a substância por uma espécie

própria da substância mesma” (pp. 190-221).13 Sem penetrar nos detalhes das

doutrinas filosóficas formuladas nessas três questões, para nós basta dizer que,

em todas elas, a resposta definitiva só é encontrada por Tiago de Viterbo pelo

uso da sua doutrina das idoneidades. Nos três casos, ele mostra que aquilo que

possibilita a passagem das potências volitiva e intelectiva da potência ao ato é o

fato de que há naturalmente nelas idoneidades que podem ser aperfeiçoadas para

o ato14 quando a potência na qual elas estão é excitada ou inclinada para um tal

ato (pp. 36-7) – por exemplo, o intelecto pode ser inclinado para o ato acerca de

um objeto pela imagem correspondente deste objeto, assim como, de maneira

similar, a vontade é inclinada para o seu ato pela intelecção. Em ambos os casos,

essa inclinação não é uma ação transitiva pela qual os sentidos causem uma

intelecção ou esta última cause um ato de vontade, mas é a excitação, por outras

potências da alma, para que as próprias potências intelectiva e volitiva atualizem,

por uma ação imanente, uma de suas idoneidades (p. 34). Para ser mais exato,

deve-se dizer não somente que há uma idoneidade para cada objeto acerca do

qual uma potência pode se atualizar, mas, além disso, cada potência é ela própria

uma idoneidade – ou seja, a potência intelectiva é uma idoneidade e a volitiva

igualmente –, pois elas, da mesma maneira, passam da potência ao ato ao serem

inclinadas para tanto. Sendo assim, há toda uma distinção entre idoneidades mais

gerais e mais específicas, que termina por formar o que Côté denomina de

“estratos” (“strates”) de idoneidades (p. 19), sendo as mais gerais as próprias

potências cognoscitivas e volitivas e as mais específicas as potências que cada

                                                                                                                         12 Op. cit., q. 12, n. 65 (pp. 108-9): “Duodecimo quaeritur: Utrum intellectus agens sit aliquid animae”. Na versão francesa: “Douzième question: l’intellect agent est-il quelque chose qui appartienne à l’âme?”. 13 Op. cit., q. 13, n. 161 (pp. 190-1): “Tertiodecimo quaeritur: Utrum anima hic in via intelligat substantiam per propriam speciem ipsius substantiae”. Em francês: “Treizième question. On demande si l’âme dans cette vie pense la substance par une espèce propre à cette substance”. 14 Op. cit., q. 7, n. 19 (pp. 74-5): “Et est huiusmodi idoneitas animae connaturalis et naturaliter indita, ideoque et semper in ipsa manens; sed quandoque imperfecta, quandoque vero perfecta per actus”. No francês: “Et cette sorte d’idonéité est connaturelle à l’âme et mise en elle naturellement; par conséquent, elle demeure toujours en elle, parfois [en tant qu’]imparfaite, parfois [en tant que] parachevée par l’acte”.

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uma daquelas potências mais gerais possui acerca de cada um de seus objetos.

Como se pôde notar por esse rápido comentário, ao cabo das três

questões apresentadas no volume, Tiago de Viterbo terá desenvolvido toda uma

doutrina da intelecção e da vontade tomando por base, quase que

exclusivamente, a sua doutrina das idoneidades. Ao menos essa é a interpretação

fornecida por Côté no ensaio introdutório ao seu volume, a qual, a nosso ver,

condiz claramente com o texto por ele analisado e, em seguida, traduzido. Nesse

caso, as três questões de Tiago de Viterbo a que se dedica o livro em estudo são

de grande interesse, tanto para a compreensão da obra do pensador escolástico,

como, em geral, para a pesquisa sobre a filosofia medieval, já que nelas é

desenvolvida essa doutrina tão característica da filosofia de Tiago no contexto da

discussão acerca do conhecimento intelectual e da vontade humana, dois dos

temas mais debatidos nos séculos XIII e XIV. Dito isso, estamos em posição de

nos voltarmos para alguns comentários acerca da própria tradução do texto de

Tiago fornecida por Côté.

III.

Foi dito há pouco que Côté nos apresenta em seu livro não somente a sua

tradução francesa das questões 7, 12 e 13 do primeiro Quodlibet de Tiago de

Viterbo, mas também o texto latino original. Para ser preciso, o texto latino

constante do volume em estudo é aquele que se encontra na edição crítica do

Quodlibet I de Tiago realizada por Eelcko Ypma.15 Ambos os textos são

apresentados no modelo padrão utilizado para edições bilíngues: o original latino

(sem aparato crítico) é fornecido nas páginas pares e a tradução francesa

correspondente nas páginas ímpares. Além disso, à edição crítica, essa edição

bilíngue adiciona uma paragrafação própria e títulos temáticos fornecidos entre

colchetes no texto francês (pp. 58-9). Enfim, esses são alguns detalhes editoriais

                                                                                                                         15 IACOBUS DE VITERBIO. Disputatio prima de quolibet. Ed. E. Ypma. Würzburg: Augustinus-Verlag, 1968. Sobre esta edição, ver: HISSETTE, R. “Jacobi de Viterbio O.E.S.A., Disputatio prima de quolibet quam edendam curavit Dr. Eelcko Ypma eiusdem Ordinis; Jacobi de Viterbio O.E.S.A., Disputatio secunda de quolibet quam edendam curavit Dr. Eelcko Ypma eiusdem Ordinis”. Revue Philosophique de Louvain 70, 7 (1972), pp. 442-443.

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relacionados ao volume. Porém, o que nos interessa aqui são, antes de tudo, as

características do próprio trabalho de tradução e, principalmente, as dificuldades

inerentes a esse trabalho. Como dizíamos no início, em toda boa tradução de um

texto filosófico, os problemas de tradução apontam para as dificuldades

filosóficas próprias do texto original que se traduz – ora, esse é exatamente o

caso com a versão francesa do texto de Tiago de Viterbo fornecida por Côté.

Decerto, vários poderiam ser os exemplos aduzidos para ilustrar o quanto são

relevantes as decisões do tradutor contemporâneo em face da tecnicidade do

texto de Tiago. No caso de Côté, algumas opções parecem ser mais satisfatórias

do que outras: o termo ‘intelligere’ é traduzido muitas vezes por ‘connaître’, que,

não obstante tenha a vantagem de conservar a coloquialidade em detrimento de

uma opção que fuja ao padrão corrente da língua francesa, pode resultar em uma

ambiguidade decorrente da distinção técnica latina entre ‘cognoscere’ e ‘intelligere’.

Por outro lado, é louvável a distinção proposta por Côté entre ‘motion’ e

‘mouvement’ para traduzir, respectivamente, ‘motio’ e ‘motus’, haja vista a

profunda discussão acerca do movimento tanto da vontade como dos sólidos

desenvolvida por Tiago de Viterbo nos textos traduzidos.16 Entretanto, acredito

que o caso mais interessante de tradução é o daquele termo mais característico

que surge nas três questões de Tiago vertidas por Côté, a saber, a própria noção

de ‘idoneitas’.

Já pudemos notar que a opção de tradução para o francês de ‘idoneitas’

proposta por Côté é ‘idonéité’; de fato, seguindo essa decisão, nós mesmos o

vertemos aqui pelo português ‘idoneidade’. A opção pelo termo ‘idonéité’

apresenta como vantagem o fato de que, em francês, ele nomeia algo como a

“qualidade de ser idôneo (idoine)” ou, para ser mais claro, “a qualidade de ser

apto para algo” ou “a aptidão para algo”. Com efeito, como vimos acima, Tiago

de Viterbo utiliza ‘idoneitas’ justamente para se referir a uma certa aptidão, de

maneira que o vocábulo francês ‘idonéité’ parece conveniente para traduzir o

latim escolástico ‘idoneitas’. Ademais, ‘idonéité’ é, como está claro,

                                                                                                                         16 TIAGO DE VITERBO, Quodl. I, q. 7, nn. 44-9 (pp. 90-7).

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etimologicamente originário do seu equivalente latino que está sendo traduzindo,

de maneira que o uso deste termo francês em particular garante uma maior

proximidade entre a tradução francesa e o texto latino original. Agora, é

igualmente interessante observar casos nos quais Côté não pôde encontrar uma

tradução direta de ‘idoneitas’ – isto é, aqueles casos nos quais não foi possível

utilizar um termo na língua de chegada da tradução que possuísse relação

etimológica com o termo traduzido da língua de partida. Isso é o que ocorre

quando Côté, em um artigo já citado, disserta, em inglês, sobre a interpretação

que Tiago de Viterbo oferece dos Comentários às Categorias de Simplício para

formular a sua concepção de idoneidade. Nesse texto, Côté precisa traduzir o

latim ‘idoneitas’ não para o francês, mas para o inglês e, então, em lugar de

‘idonéité’ encontramos ‘propensity’ que, em inglês, significa “a tendência para

algo”.17 Enfim, como é de se esperar, as dificuldades de tradução surgem não

somente em razão da língua de origem do texto, mas também provêm da língua

de chegada da tradução. Em inglês, como em francês, acredito que Côté oferece

alternativas interessantes para verter o termo ‘idoneitas’ que, para além do seu

significado comum em latim medieval, assume, na obra de Tiago de Viterbo, um

uso filosófico técnico bem particular e que precisa ser conservado na tradução.

IV.

No que diz respeito a esses aspectos propriamente filosóficos da tradução,

acredito que Côté responde com soluções interessantes ao desafio, mesmo que

a sua tradução possua um ou outro elemento mais problemático (como é o caso

da tradução de ‘intelligere’ por ‘connaître’). Isso é o que ocorre, ademais, com

qualquer tradução – mesmo as melhores! Não devemos nos esquecer de que os

próprios autores escolásticos baseavam uma grande parte de seu trabalho em

traduções greco-latinas e arabo-latinas que, assim como as traduções

contemporâneas, possuíam grandes dificuldades e problemas. Mais do que um

defeito, entretanto, essas dificuldades eram, antes de tudo, uma ocasião para um

                                                                                                                         17 CÔTÉ, A. “Simplicius and James of Viterbo on propensities”, op. cit., pp. 28-9, nota 19.

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trabalho apurado de interpretação do texto e são, para o historiador da filosofia

escolástica, uma ótima fonte para o estudo do surgimento e do desenvolvimento

de várias noções relevantes para o curso da filosofia medieval.18 Voltando à

atualidade, nenhuma boa tradução filosófica de um texto escolástico está livre de

problemas. O que indica a qualidade da tradução é o quanto essas dificuldades na

passagem do texto de uma língua para outra refletem a complexidade filosófica

do próprio texto traduzido de maneira a ressaltá-la e, assim, chamar a atenção

dos leitores para a necessidade de discussões aprofundadas sobre determinados

tópicos mais problemáticos do texto que é objeto da tradução. Se esta última

vier acompanhada de uma sólida introdução que aponte claramente os principais

temas que estão em jogo naquele texto e a maneira como nele eles são

desenvolvidos, tanto melhor. Esse é, a meu ver, o caso com a tradução proposta

por Antoine Côté das questões 7, 12 e 13 do Quodlibet I de Tiago de Viterbo.

Mas, para além disso, o livro L’âme, l’intellect et la volonté possui ainda mais um

interesse: ao se voltar para a obra de um autor pouco considerado, estudado ou,

mesmo, conhecido hoje em dia – muito embora, claramente inserido nos

principais debates de sua própria época –, o volume resenhado se introduz num

movimento próprio da historiografia contemporânea da filosofia medieval, a

saber, o estudo, inspirado por aquela fórmula de Paul Vignaux, não somente dos

autores tidos como centrais na escolástica, mas também daqueles autores que,

não sendo considerados importantes até há pouco, começam a tomar hoje o seu

merecido relevo na história da filosofia. Isso é exatamente o que acontece com

Tiago de Viterbo. Nesse sentido, a iniciativa por parte de Côté de traduzir e

introduzir esses trechos da obra de Tiago, ao se mostrar coerente com a atual

historiografia da filosofia escolástica, contribui de maneira patente para o

estabelecimento contemporâneo de uma história da filosofia medieval que possa,

legitimamente, reclamar para si a máxima de Paul Vignaux.

                                                                                                                         18 Como exemplo, ver: MAURER, A. “Ens Diminutum: a Note on its Origin and Meaning”. Mediaeval Studies 12 (1950), pp. 216-22.

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HALL, A. Thomas Aquinas and John Duns Scotus. Natural theology in the

High Middle Ages, Londres: Continuum, “Continuum Studies in

Philosophy”, 2007, xvi + 170p.

Markos Klemz Guerrero* ___________________________________________

A desmedida diferença ontológica que presumivelmente separa criador de

criaturas – quer tendo-se em vista artigos de fé, quer tendo-se em vista as

peculiaridades de quadros conceituais dotados de um “deus filosófico” – é um

permanente desafio à significatividade do discurso sobre esse tipo de ente,

usualmente tido por perfeitíssimo e incondicionado em todos os aspectos. Seria

possível provar sua existência e possibilidade reais, conhecê-lo ou mesmo

significá-lo em alguma medida? Sua suposta transcendência parece entrar em

conflito com sua realidade enquanto objeto de cognição, o que, por sua vez,

paradoxalmente ameaça a própria relevância e sentido de atribuir-lhe

transcendência. Tratar desse conjunto de questões é tarefa prioritária de quem

quer que se interesse por teologia, seja aquela que é válida e praticável dentro

das fronteiras de uma religião, seja a que é válida dentro dos limites da

argumentação racional. Como é bem sabido, a escolástica comportou o auge de

ambas as teologias, revelada e natural. E, dentro desse auge, apresentam-se com

inegável e acentuado destaque Tomás de Aquino e Duns Scotus. O objetivo do

livro em exame é realizar uma análise comparativa da teologia natural do ponto

de vista de cada um desses dois pensadores. Se na escolha do tema pode-se dizer

que o autor foi muito feliz, o mesmo não pode ser dito de boa parte do resto do

livro, com exceção do correto capítulo introdutório.

Antes de percorrer suas páginas, convém adiantarmos sua conclusão, para

melhor compreendermos o espírito e direção que norteiam o pequeno livro. Aí,

                                                                                                                         * Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e doutorando no Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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podemos encontrar, por exemplo, numa mesma frase, as afirmações de que

“ambos [Tomás e Scotus] acreditam que a unidade na diversidade de Deus

impede nossa habilidade em conhecer sua essência acuradamente” e de que

“apesar de impedido, nosso conhecimento da essência de Deus não é inacurado”

(p. 120). Essa manifesta e descuidada contradição expressa confusamente a

unidade trivial que o autor encontra entre os dois quadros conceituais que

analisa e compara. Segundo o autor, esses quadros se assemelham na medida em

que, em primeiro lugar, reconhecem a possibilidade de um certo tipo de

conhecimento deficitário de Deus; e, em segundo lugar, porque constroem esse

nível de conhecimento respeitando o lema aristotélico de que todo

conhecimento (natural) tem origem e matéria nos sentidos, ao menos no caso da

intelecção humana. A primeira característica é compartilhada, de acordo com

diversos graus, por praticamente qualquer pensador que se disponha a dedicar-se

construtivamente à teologia natural. A segunda característica, por sua vez,

prescinde de justificativa ou comprovação: a mera constatação de que ambos os

pensadores partilham em maior ou menor grau da herança aristotélica bastaria

para atestá-la. O resultado inócuo que o autor alega ter atingido revela o

verdadeiro caráter de seu estudo. Como teremos a ocasião de notar mais

algumas vezes, não se trata genuinamente de uma análise comparativa, mas da

sobreposição de dois estudos superficiais acerca de um mesmo tema no

contexto de dois diferentes autores. É a despeito dessa insuficiência que o

primeiro capítulo do livro prepara seu objeto de análise.

A pretensão de legitimar e construir uma teologia natural é uma das

expressões intelectuais do lugar comum inevitável que é o conflito entre fé e

razão na Idade Média. Outra dessas expressões é a relação entre religião, a

filosofia platônica que está na raiz do pensamento medieval e a recepção, por

parte desse último, da filosofia aristotélica. Situando aquela pretensão no

contexto das tensões que marcam, em idas e vindas, o encontro da dúplice

herança grega com as exigências cristãs, o autor tem a oportunidade de

apresentar o tema e os autores que tem em foco do ponto de vista de um único

fio condutor, como convém à introdução de um estudo comparativo. Assim,

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Tomás e Scotus aparecem como representantes privilegiados da corrente

predominantemente aristotélica, ou de viés “empirista”, conforme o autor, na

teologia natural. Nesse sentido, Tomás, de sua parte, usa a analogia de atribuição

construída a partir dos efeitos criados por Deus e constatados na experiência

para contrabalançar e complementar as restrições que marcam uma teologia

negativa de matiz platônico. Scotus, por sua vez, combate a noção de analogia tal

como compreendida por Henrique de Gand, ou seja, construída como

dependendo de uma iluminação divina sobrenatural que forneça um conceito da

natureza divina que não pode ser dado na experiência (ainda que tenha certa

relação com ela), propondo em seu lugar uma doutrina da univocidade dos

termos transcendentais que permite um conhecimento confuso mas estritamente

natural de Deus. Já neste ponto, a relação entre as posições tomista e scotista

começa a tornar-se tênue, sendo cada uma delas tratada em separado. O único

ponto de contato relevante apontado pelo autor é a constatação de que as

críticas de Scotus à analogia não se dirigem à compreensão que Tomás tem dela,

mas à concepção de Henrique de Gand, o que, supostamente, garantiria não

haver uma ruptura radical entre os dois filósofos que protagonizam o livro. O

resto da obra divide-se em duas partes isoladas nas quais o autor procura

mostrar que cada um dos filósofos em questão pretende que o conhecimento

acerca de Deus, embora deficitário, cumpra suficientemente parâmetros de

cientificidade. Para isso, em cada uma das partes de seu estudo, ou em cada um

dos estudos que compõem o volume, o autor começa por investigar o que

caracteriza um conhecimento científico, mostrando, em seguida, como o

conhecimento acerca de Deus preenche esses critérios. A divisão é equânime: o

estudo dedicado a Tomás de Aquino ocupa as cerca de 46 páginas que

constituem os capítulos 2 e 3, ao passo que os capítulos 4, 5, 6 e 7 são dedicados

a Scotus, num total de 45 páginas.

No capítulo 2, a compreensão dos parâmetros que, de acordo com Tomás,

caracterizam um conhecimento científico é analisada exclusivamente no contexto

do Comentário aos Analíticos Posteriores. Mesmo que se admita que Tomás é

aristotélico o suficiente para que considerações feitas nos comentários possam

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ser integralmente importadas para o contexto de seu pensamento pessoal, a

ausência completa de contribuições vindas de outros gêneros de obras, em

especial dos tratados teológicos, é no mínimo surpreendente, ainda mais

levando-se em conta que o capítulo seguinte será dedicado a uma

esquematização científica das cinco vias. Esse ponto fraco é realçado pelo

possível descompasso entre a concepção “compartimentada” de ciência típica

dos Analíticos Posteriores, condicionada e limitada pela univocidade dos gêneros de

objetos de conhecimento, e a ciência geral do ser que é proposta por Tomás,

com o auxílio da analogia, no seu projeto metafísico. No que diz respeito à

contribuição positiva que o capítulo tem a dar, trata-se de uma exposição dos

requisitos de um silogismo que veicule conhecimento científico. Essa exposição é

feita através da citação e explicação de textos do comentário e da obra

comentada. De um modo geral, pouco parece se aproveitar da relação entre o

texto de Aristóteles e o comentário de Tomás. Embora as explicações concisas

do autor mal elucidem os trechos citados, trata-se ao menos de uma seleção

apropriada de textos, que cumpre a função de estabelecer um paradigma de

silogismo científico a ser usado no capítulo seguinte. Como resultado, sabe-se

que um silogismo científico é constituído de premissas e conclusão per se: a

premissa maior afirma alguma conexão necessária entre o predicado e seu

sujeito, devida àquilo em que consiste tal sujeito; na premissa menor, o

predicado define real ou nominalmente seu sujeito; e na conclusão um acidente

próprio é afirmado do sujeito.

O capítulo 3 é um esforço por enquadrar cada uma das cinco vias de

demonstração da existência de Deus no esquema silogístico obtido no capítulo

anterior. Para isso, em primeiro lugar, é fornecida uma sinopse de cada uma

delas, que não é nem mais clara nem mais aprofundada que a maior parte da

literatura secundária dedicada a essas demonstrações. Essa sinopse é seguida de

sua esquematização silogística, que se apresenta como a contribuição mais

original e problemática do estudo. Por fim, é feita uma breve aplicação da noção

de analogia como modo de viabilizar a atribuição a Deus de predicados cujos

sentidos são tomados da experiência sensível e tornar plausível que se interprete

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uma predicação acerca de Deus como envolvendo a atribuição de um acidente

próprio a Ele. Esse procedimento é aplicado da forma mais detalhada à primeira

via, que, como todos sabem, busca provar a existência de Deus a partir da

existência do movimento que é atestada pelos sentidos, descrevendo-O como o

primeiro motor imóvel. Nas demais vias, o tratamento vai se tornando

progressivamente mais sucinto, o que é plenamente justificado pelo fato de que o

autor efetivamente não tem muito mais ideias a acrescentar. De fato, é uma

constante ao longo das reconstruções o uso da noção de Deus como pura

atualidade e sua correlação com outros atributos divinos como simplicidade,

perfeição, imaterialidade etc. Na verdade, esse tipo de aparato conceitual serve

mais ao fim de conferir uma unidade argumentativa entre as cinco vias, já

tomadas enquanto demonstrações completas e alternativas da existência de seu

objeto. Apesar disso, esses conceitos fundam o próprio status científico das

cinco vias, na perspectiva do autor. Tendo isso em vista, basta que dirijamos

nossa atenção ao que é dito sobre a primeira via, cujos defeitos se estendem a

todas as demais em maior ou menor grau. Vejamos sua esquematização:

“A causa última de movimento existe.

O primeiro motor é a causa última de movimento.

Portanto, o primeiro motor existe.” (p. 55)

Não é claro se essa esquematização seria uma pretensa “tradução” da

primeira via ou uma mera complementação da mesma. Na segunda hipótese, a

esquematização obviamente não cumpriria o papel de estabelecer a cientificidade

dessa via, pois as propriedades lógicas de um argumento não podem ser supridas

por aquilo que se segue ou depende dele. No entanto, quando o autor procura

mostrar que a primeira premissa é uma predicação per se, ele se baseia numa

tese pela qual manifesta insistente apreço, segundo a qual Deus é pura atualidade

– tese que, por sua vez, é obtida por Tomás como um corolário que supõe a

demonstração da existência de Deus. Na primeira hipótese, a mais provável, é

incompreensível a ausência da premissa empírica que afirma a existência do

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movimento, bem como dos diversos passos intermediários que conduzem à

conclusão de que é necessário afirmar a existência de uma causa última para esse

movimento. Esse dilema entre uma reconstrução infiel da demonstração e uma

complementação posterior e inútil da mesma talvez pudesse ter sido superado

caso o autor tivesse tentado reconstruir mais detalhadamente o argumento

inteiro sob a forma de uma demonstração silogística, para só então verificar se

cada uma das premissas se comporta do modo adequado para a produção de um

raciocínio científico nos moldes dos Analíticos Posteriores. Ao invés disso, ele

parece tentar dobrar a argumentação de Tomás a uma hipótese interpretativa

pré-moldada, obtendo um resultado infrutífero e confuso.

Como já havíamos mencionado, após essa esquematização, entra em cena a

noção de analogia, de acordo com a qual um termo é aplicado analogicamente de

Deus caso Deus seja a causa de as criaturas receberem essa denominação

derivativamente, do ponto de vista ontológico. Seu uso é razoavelmente bem

sucedido no que diz respeito a estabelecer que “causa de movimento” é aplicável

analogicamente a Deus – na medida em que é em virtude de sua atividade que

outras entidades chegam a exercer, em menor grau, a função de motores. No

entanto, um dos requisitos enumerados para que haja a aplicação analógica de

um termo a Deus e criaturas apresenta um problema semelhante ao da

esquematização que examinamos. Segundo esse requisito, Deus deve ser

idêntico ao atributo que se aplica a ele analogicamente. Mas tal identidade só se

pode provar por meio da simplicidade e unidade divinas que supõem os atributos

descobertos ao longo das cinco vias. Assim, se a validade de cada uma das vias

dependesse da validade da predicação analógica em questão, do modo

compreendido pelo autor, a validade das cinco vias dependeria daquilo que as

supõe. Felizmente, porém, não parece haver um bom motivo para que essa

relação de identidade entre Deus e seus atributos seja uma condição da aplicação

analógica dos conceitos relevantes nas cinco vias. Finalmente, o problema de

compreender em que sentido Deus pode ser sujeito de predicações em que se

lhe é atribuído um acidente próprio é tratado ligeiramente. Três citações

“decisivas” em prol da conveniência dessa interpretação são oferecidas, de tal

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modo que, por exemplo, “Deus sozinho tem todo tipo de perfeição por sua

própria essência” (p. 57) seria uma manifestação explícita de que Tomás aceita

que Deus, em algum sentido, exerce causalidade em relação a si mesmo. De

todo modo, há pelo menos uma diferença fundamental entre o comportamento

dos atributos mediante os quais Deus é conhecido a partir das criaturas e o

comportamento dos acidentes próprios em relação a um sujeito, diferença essa

que não é percebida pelo autor. Não basta que Deus seja aquilo que ele é para

que tenha o atributo de mover ou causar todas as coisas, do modo como basta

um homem ser aquilo que ele é para ser dotado de intelecção. 'O primeiro

motor imóvel existe' é um enunciado contingente, que poderia ser falso caso

Deus tivesse decidido livremente nada criar e nada mover.

Após passar por todas as cinco vias, encerra-se o malfadado estudo acerca

da teologia natural de Tomás de Aquino e tem início o estudo acerca desse tema

no contexto do pensamento de Duns Scotus. Nenhum paralelismo estrutural se

pode esperar desse segundo estudo em relação ao primeiro; não se oferece a

oportunidade de examinar sequer um dos argumentos oferecidos por Scotus em

prol da existência de Deus. Apesar disso, deve-se notar que é apresentada, no

final do capítulo introdutório, uma tese que serviria de gancho entre a primeira e

segunda partes do livro. Scotus seria mais circunspecto que Tomás no que diz

respeito ao alcance da teologia natural. Esse perfil psicológico do contraste entre

as teorias não chega a ser desdobrado conceitualmente, mas poderemos

especular a esse respeito após examinarmos o conteúdo do capítulo 4, ao fim do

qual, segundo o autor (p. 26), veríamos precisamente em que sentido se põe tal

circunspecção relativa. Nesse capítulo, dois grandes tipos de conhecimento

científico são apresentados, aquele que consiste no conhecimento de princípios

evidentes por si mesmos e as respectivas conclusões, e aquele que é tirado da

experiência obedecendo ao princípio da regularidade da natureza. O primeiro

tipo é científico num mais alto grau que o segundo, na medida em que independe

dos dados duvidosos que nos são fornecidos pelos sentidos. É preciso notar,

porém, que não basta que uma predicação contenha termos que são tirados, em

última instância, da experiência sensível para que se trate de um conhecimento

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científico do segundo tipo; é preciso que a própria relação entre os termos seja

baseada na experiência. Desse modo, ainda que na predicação 'O todo é maior

do que a parte', os termos 'todo' e 'parte' tenham sido obtidos por meio da

experiência, trata-se de uma predicação do primeiro tipo na medida em que

bastam os conteúdos dos termos já estabelecidos para que se constate a verdade

da predicação. Após essa divisão entre tipos de conhecimento científico, conclui-

se imediatamente que Scotus considera que as predicações acerca de Deus

pertencem ao segundo tipo e, enquanto tal, são, de certo modo, uma ciência de

segunda classe. Como o autor reconhece, não há qualquer indício textual para

essa classificação; nem tampouco se oferecem indícios sistemáticos, de modo

que não fica claro exatamente em que medida o princípio da regularidade da

natureza teria papel no conhecimento de Deus. A prometida comparação com o

pensamento de Tomás tampouco ocorre, restando ao leitor supor que a tese de

Scotus é mais “circunspecta” que a de Tomás porque o primeiro considera que a

teologia natural, ao depender de dados sensíveis, não é uma ciência no mais alto

grau. É difícil determinar a procedência dessa comparação pelo simples fato de

que o apelo à experiência sensível necessário ao longo das cinco vias

simplesmente não é tematizado. Ainda que de fato a teoria de Scotus seja mais

circunspecta do que a de Tomás no que diz respeito ao nível de certeza que

pode ser atingido, seria digno de nota que a teoria do último é mais circunspecta

que a do primeiro na medida em que não admite nenhum conhecimento

quididativo de Deus, em nível algum.

Os capítulos 5, 6 e 7 dão continuidade à análise das peculiaridades da

teologia natural scotista, mostrando quais mecanismos semânticos e cognitivos

permitem o conhecimento de Deus e em que medida esses mecanismos limitam

esse conhecimento. Apesar de continuar a padecer de uma certa pressa e

consequente superficialidade em encaminhar alguns de seus principais conceitos,

constituindo-se como uma análise mais textual que o desejável, essa parte do

livro traz proveito ao leitor, servindo como uma introdução episódica a alguns

pontos da teoria do conhecimento e metafísica de Scotus.

No capítulo 5, as críticas à posição de Henrique de Gand quanto a

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nomeação de Deus são apresentadas, seguidas pela alternativa oferecida por

Scotus. Assim, segundo ele, se a transcendência de Deus em relação às criaturas

impede um conhecimento completo de Sua essência, o fato de que somos

capazes de ter ao menos um conhecimento relacional acerca Dele garante que

tenhamos algum conceito quididativo mediante o qual seja possível fazer

referência a ele. Esse conhecimento quididativo é meramente confuso, do modo

como o é conhecer uma espécie apenas de acordo com seu gênero. Em outras

palavras, nosso conhecimento quididativo de Deus dá-se por meio de conceitos

que ainda não se referem particularmente à essência divina, como o conceito de

ente. Essa deficiência referencial é compensada pela adição do conceito de

infinitude, que, de acordo com o autor, teria uma importância “mais regulativa

do que informativa” (p. 99). Embora seja possível entrever o sentido dessa

ressalva, mais uma vez ela acaba por permanecer como uma sugestão.

No capítulo 6, uma dificuldade da teoria é levantada e começa a ser

discutida. Trata-se do sutil limite lógico entre conceitos unívocos

transcendentais, como ente, e conceitos unívocos genéricos, como animal. A

determinação referencial provida pelo conceito de infinitude a um conceito

transcendental correria o risco de ser interpretada como uma diferença

específica, o que acarretaria, inaceitavelmente, que um transcendental se

comportasse como um gênero. Isso constitui-se não só como um problema

lógico, mas como uma ameaça à absoluta transcendência divina, que poderia ser

reduzida a uma mera diferença entre criador e criaturas. Para enfrentar tal risco,

a noção de distinção modal é introduzida. A distinção modal é a distinção entre

uma natureza e o seu grau de intensidade, que não implica composição real.

Como Deus e criaturas se distinguem em virtude de terem graus distintos e

incomensuráveis de ser, e como esse ser não é distinto do próprio Deus nem

das criaturas, não há nenhuma parte realmente comum entre Deus e criaturas,

embora haja um conceito intencionalmente comum – e por isso mesmo

imperfeito e inadequado à coisa – Deste e daquelas. No último capítulo, a

referida distinção de grau é desenvolvida mediante uma comparação entre o

infinito quantitativo e o infinito entitativo, onde o infinito acaba por ser

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compreendido negativamente como “aquilo a que nada mais se pode adicionar”.

Esse ponto talvez pudesse dar ensejo a uma comparação com o papel da teologia

negativa em Tomás, mas a oportunidade de tornar mais substancial sua conclusão

acerca das proximidades e diferenças entre os dois filósofos não é aproveitada. A

constatação da incomensurabilidade entre o grau de ser de Deus e o das

criaturas torna impossível que qualquer uma destas sirva como veículo perfeito

de transmissão de conhecimento acerca Dele – o que, em conjunto com o

“empirismo aristotélico” de Scotus, acarreta a deficiência do aparato cognitivo

natural das criaturas no que tange à natureza divina. Por fim, a conclusão que

mencionamos no início de nossa resenha é oferecida, ou seja, Tomás e Scotus

são tomados como próximos porque ambos impõem limitações à nossa ciência

de Deus ao mesmo tempo em que constroem a possibilidade de que ela se dê de

modo estritamente natural, a partir dos sentidos.

A obra atesta que seu autor tem uma sólida familiaridade com diversos

aspectos importantes ligados ao seu tema, além de habilidade para fazer relações

conceituais interessantes. Alguns insights são esboçados, mas infelizmente não

atingem grande efetividade elucidativa. O texto é estruturado segundo fios

condutores razoavelmente nítidos, mas esses fios ora impõem-se demasiado

rigidamente às teorias a que se aplicam, ora não são seguidos com aplicação

suficiente. Esses defeitos comprometem embora não anulem o interesse de um

estudo que poderia ter sido melhor com o mesmo autor, o mesmo tema e

algumas das mesmas ideias.

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AZADPUR, M. Reason unbound: on spiritual practice in Islamic

peripatetic philosophy, Nova Iorque: Suny Press, 2011, 180 p.

Antônio Madalena* ___________________________________________

Esta obra de Azadpur desperta a atenção já pelo título, que define o escopo da

mesma e revela, além da capacidade teórica do autor, sua coragem em propor

um tema em si mesmo potencialmente polêmico, as relações entre filosofia e

espiritualidade. Não bastasse o próprio título em si colocar em discussão, no

mínimo, uma já solida tradição na filosofia ocidental, os cânones de uma

epistemologia estabelecida por Kant sobre a razão e seus limites, a introdução

aos seis capítulos da obra dá bem o enquadramento a partir do qual o autor vai

desenvolver sua argumentação. Com o título de “Islamic philosophy and the crisis

of modern rationalism” Azadpur demonstra não querer fazer apenas um estudo

histórico e sim mostrar a validade e, digamos, atualidade da filosofia islâmica

peripatética para tratar do que denomina de crise da razão moderna.

Na introdução, o autor faz referência a um ensaio do filósofo político

Muhsin Mahdi que endossa e estende ao mundo acadêmico, no que diz respeito à

abordagem da filosofia islâmica, aquilo que Edward Said denominou de

Orientalismo. Assim como, sistematicamente, o Oriente foi e tem sido

distorcido na representação que dele faz o Ocidente, do mesmo modo a

recepção da filosofia islâmica no mundo acadêmico ocidental estaria sujeita a

esse problema. Em Orientalismo, Said perguntava se de fato pode haver

representação verdadeira de algo e respondia que não, que o melhor que

podemos fazer é estar atentos para tudo que está envolvido na questão da

‘verdade’ na representação de qualquer coisa.

Os principais filósofos estudados são Alfarabi e Avicena e a tese que o

autor procura explicitar é a de que para estes a filosofia não é apenas a

                                                                                                                         * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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elaboração de um discurso racional, mas, na esteira do que Pierre Hadot

defende, a prática de exercícios espirituais. Aquilo que este último tem em vista

pensando na tradição grega, Azadpur endossa tendo como foco os islâmicos. O

autor acredita também que a filosofia islâmica peripatética tenha a eficácia de

contribuir para enfraquecer ou dirimir a força de falsos dualismos que

caracterizam a contemporaneidade, particularmente a filosofia, dualismos tais

como razão x natureza, razão x espiritualidade e razão x imaginação (p. 2). E,

como afirma na página seguinte, seu objetivo é mostrar a importância do

Peripatetismo Islâmico como antídoto a esses dualismos.

Sendo esse o propósito, o capítulo 1, “Beyond orientalism and academic

rationalism” aborda a recepção padrão da filosofia islâmica, em busca de uma

visão que melhor represente essa tradição e possa, como diz o autor, responder

à intenção central do livro, a elaboração de uma filosofia genuína e autônoma (p.

7). O argumento do autor é de que a interpretação padrão do que os

muçulmanos herdaram dos gregos envolve uma básica incompreensão. Essa visão

padrão diz que o que foi herdado dos gregos foram sistemas de conhecimento

racional, a partir de diferentes escolas de pensamento. O autor adota a tese de

Pierre Hadot de que subjacente a esses sistemas racionais estaria enraizada uma

visão da filosofia como uma prática de exercícios espirituais voltados para a

transformação do self como condição para obtenção da sabedoria. Como

podemos ver, para além da consistência interna de sistemas racionais de

pensamentos, que se traduzem em argumentos, sua consistência e validade, o

autor propõe uma outra leitura, que engloba o conjunto da filosofia peripapética

islâmica. Estamos no âmbito justamente daquilo que Said observou, a questão da

representação. E uma vez que o próprio Said disse da impossibilidade da

representação verdadeira de qualquer coisa, o que cabe é avaliar em que pontos

Azadpur pode estar chamando a atenção para questões importantes na recepção

e estudo da filosofia peripatética islâmica. Pois, justamente, depois de ter

invocado o pertinente estudo de Said, parece no mínimo estranho propor algo

como a elaboração de uma filosofia autônoma e genuína.

A tese do autor, portanto, é a de que é na forma de exercícios espirituais,

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antes e acima de tudo, o modo como os filósofos peripatéticos islâmicos

receberam sua herança do mundo grego. Não fosse isso já bastante, o autor

avança e destaca que o que faz a singularidade da filosofia peripatética islâmica é

o enxerto dessa tradição grega, entendida como prática de exercícios espirituais,

no legado da profetologia islâmica. A visão de Hadot da filosofia como um modo

de vida é então encaixada no contexto da revelação muçulmana. Uma tese que

envolve um enorme compromisso, pois propõe um outro modo de interpretar

essa filosofia e sua relação com sua fonte grega. A ética, o cultivo da virtude e a

realização plena do caráter são vistos como condição para o desenvolvimento

teórico da filosofia. Os exercícios espirituais, portanto, dizem respeito a essa

performance do caráter em sua plenitude, o intelecto prático permitindo, então,

que o intelecto teórico realize a sabedoria, alcançando a visão de como o

universo é, uma prerrogativa da alma humana.

O capítulo 2, “To the things themselves: Corbin and Heidegger on

Phenomenological Access”, traz uma das fontes do trabalho, a obra de Corbin e,

sobretudo, toma a analítica existencial de Heidegger como o parâmetro com o

qual estabelecer uma comparação entre a filosofia contemporânea e a filosofia

islâmica peripatética para mostrar que esta última tinha uma eficácia maior no

desvelamento da realidade do mundo. Se em si mesma a fenomenologia

heideggeriana constitui-se como uma crítica ao pensamento moderno, o ponto

aqui é que essas duas filosofias falam de uma preparação ética para se ter acesso

às coisas mesmas, um cultivo que prepara para o desvelamento do mundo como

uma prerrogativa do ser humano. Enquanto em Heidegger essa proposta se

encerra em um ser-para-a-morte, na filosofia peripatética islâmica esse

desvelamento é mais completo, uma vez que o horizonte se abre para uma

transcendência não presente em Heidegger. O horizonte se estende aqui, para

usar uma expressão que o autor empresta de Corbin, para um ser-para-além-da-

morte. Além de uma preparação ética, o cultivo do intelecto teórico abriria

novas regiões para a própria compreensão da experiência humana, propriamente

o que o autor denomina de espiritualidade filosófica. Modos de ser diriam

respeito ao caráter do conhecedor, de modo que ter acesso às coisas mesmas

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pressupõe uma educação, um refinamento, o que os exercícios espirituais

filosóficos constituintes da filosofia peripatética islâmica permitiriam realizar.

Com o livro abordando a dimensão profética presente na filosofia

peripatética islâmica, o capítulo 3, “From the things themselves to prophecy” é

central ao argumento. Como o autor afirma, ele se volta aos peripatéticos

islâmicos no intuito de mostrar que não apenas eles pressupõem o cultivo

prático da alma como condição para o exercício da filosofia, mas também a

maneira como o cultivo dos exercícios espirituais é condição para o

desenvolvimento do intelecto teórico. Para fundar seu argumento, do primado

da prática de exercícios espirituais, o autor se baseia em Alfarabi e cita um

trecho de The Attainment of Happiness, em que é feita a distinção entre o filósofo

verdadeiro, aquele que tem a posse da virtude ética como condição para a

investigação teórica, do filósofo vão e falso. Também nesse capítulo o autor

endossa a posição de Alfarabi de que filosofia e religião teriam uma relação em

que as mesmas verdades buscadas pelo filósofo são apresentadas pela religião, de

forma mais superficial, colorida pela imaginação, para o público geral. A religião

tornaria acessíveis para a multidão as verdades da filosofia que não estariam

disponíveis a todos, uma vez que a filosofia exige condições tanto na dimensão

prática quanto teórica do intelecto que as massas, a multidão, não estão em

condições de realizar com sucesso. Não chega a ser problemático aceitar que a

investigação filosófica esteja fundada em um pressuposto de preparação ética,

nem chega a ser estranha a posição de Alfarabi na distinção entre filósofo

verdadeiro e falso. E que, no contexto islâmico, Alfarabi tenha desenhado essa

relação entre filosofia e religião, é aceitável. Mas fica difícil de assimilar que o

autor pretenda sua validade atual. O filósofo é assim o protótipo do homem

perfeito e a maior felicidade buscada pelo filósofo consiste na sua união com o

Intelecto Agente. Se essa união se dá com uma imaginação desenvolvida à

perfeição, então o filósofo é também profeta. Por mais que o livro de Azadpur

mostre um grande domínio da literatura e traga uma série de questões

interessantes, fica difícil aceitar (e deixando de fora os filósofos) que o público

em geral do planeta aceite coisas como Intelecto Agente e profecia.

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O capítulo 4, “Disciplining the imagination” aborda a visão da imaginação na

filosofia peripatética islâmica e suas possibilidades espirituais. Segundo o autor, os

peripatéticos islâmicos teriam dado uma dimensão única à imaginação quanto a

sua função criativa que requer um treino supervisionado pelo intelecto e que, no

seu grau máximo, conduz à experiência da profecia. O capítulo desenvolve uma

tese difícil e estranha para a filosofia ocidental, qual seja, as relações entre

intelecto agente e profecia. O autor defende a ideia de que o ponto mais

importante da profecia em Alfarabi e Avicena diz respeito à faculdade da

imaginação e assim o capítulo se volta para o cuidado com essa faculdade entre

os peripatéticos islâmicos e os exercícios espirituais para o seu desenvolvimento.

O autor entende que para Alfarabi a profecia poética é um reflexo e uma

preparação para a vida intelectual da pessoa.

O capítulo 5, “The theologian’s dream” é focado na reação de Al Ghazali ao

peripatetismo islâmico, ao separar a revelação da filosofia, entendendo que essa

combinação enfraquecia a religião e resultava em heresia. De acordo com o

autor, Al Ghazali viu a filosofia apenas como produção de um conhecimento

racional, de um discurso que não dava conta da revelação e a diminuía. O

problema com Al Ghazali, assim como com todos os teólogos tanto cristãos

quanto muçulmanos que criticaram o peripatetismo islâmico, é o de não terem

visto o verdadeiro alcance espiritual da filosofia. O autor mostra que, de modo

perene, a filosofia peripatética islâmica tem essa abertura de uma razão que tem

acesso ao mundo e, além disso, como filosofia, é portadora de uma

espiritualidade, que, como foi dito antes, desvela esse mundo através da perfeita

conjunção com o Intelecto Agente. Um dos problemas com essa interpretação,

no mínimo, é o de colocar tanto a religião, como particularmente a revelação,

em um plano de subordinação à filosofia. Algo que, além de questões no âmbito

teórico, traz consequências político institucionais.

O último capítulo, “On human finitute, conscience and exemplarity” faz uma

comparação entre o peripatetismo islâmico e a fenomenologia heideggeriana,

retomando e ampliando as criticas a analítica existencial do capítulo 2. A crítica

toda se centra na noção de Dasein como um ser-para-a-morte, em Ser e tempo,

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ignorando a dimensão espiritual do homem, que é descortinada justamente

através da prática de exercícios espirituais que constituem a filosofia. De acordo

com Corbin, o autor defende a ideia de que a filosofia islâmica apresenta uma

noção do ser do humano como um ser-para-além-da-morte. Essa dimensão da

filosofia islâmica estaria explicitada na psicologia de Avicena, particularmente no

argumento do Homem Voador, com a noção de uma alma com existência

separada do corpo e a sua imortalidade. Para o autor, o processo de atenção

presente na alegoria do Homem Voador envolveria uma complexidade maior do

que a habitualmente compreendida (por exemplo, por Michael Marmura no seu

artigo “Avicenna’s ‘Flying Man’ in Context”), dizendo justamente respeito à filosofia

como prática de exercícios espirituais.

O autor, então, procura mostrar a apropriação e desenvolvimento do

legado islâmico peripatético pelo filósofo e mestre sufi Suhrawardi. A filosofia

Iluminacionista deste teria preservado e expandido o núcleo central daquele

legado, entendido este como exercícios espirituais, preparando as bases para seu

renascimento na escola de Isfahan.

Há questões interessantes que surgem da leitura da obra de Azadpur, a

começar pela questão sempre aberta da recepção e leituras possíveis do legado

da filosofia islâmica peripatética. A referência a Said é sem dúvida fundamental.

Sua recomendação de atenção em tudo que diz respeito ao âmbito da

representação de qualquer esfera da realidade é de extrema pertinência. A

especificidade da relação entre filosofia e religião no mundo islâmico,

principalmente no período estudado pelo autor, é algo que demanda constante

cuidado e maiores investigações. Principalmente quando retornamos o foco para

nós, pesquisadores ocidentais, inseridos em um quadro cultural que desde o

Iluminismo e, no plano político, a Revolução Francesa, vive um ambiente secular

em que filosofia e religião foram colocadas em diametral oposição. Mas, é

justamente com Said que se pode estabelecer a primeira crítica geral, na medida

em que o autor, ao fazer uma crítica ao padrão geral de leitura desse legado,

acaba colocando em seu lugar uma leitura que se propõe como a correta e, mais

que isso, estabelecendo a genuína filosofia.

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Não fica claro tampouco qual o sentido exato dado pelo autor ao que

denomina de exercícios espirituais. Para além do sentido geral de que o cultivo

ético do indivíduo é em si um exercício espiritual, precisaria ser especificado e

definido o que são, quais são e como são esses exercícios. E, por último, se

podem ser reavaliadas as relações entre filosofia e religião, de qualquer forma

fica muito difícil aceitar que uma noção como a de Intelecto Agente possa ter

efetividade nos dias de hoje. Sem dúvida, se comparada à analítica existencial em

Heidegger e o desvelamento, os peripatéticos islâmicos abrem um horizonte

mais amplo, em que tem lugar a transcendência. Por último, não me parece que

necessariamente precisa haver uma separação radical entre os dois modos de ver

a filosofia apontados pelo autor. Supondo-se um filósofo plenamente abraçado à

noção da filosofia como prática de exercícios espirituais, isto não implicaria no

abandono por este do uso da razão como ela se constitui quando a filosofia se

apresenta como um sistema racional de conhecimentos.