trajetÓrias de bolivianas imigrantes: entre a … · universo da costura eles adquirem novos...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
TRAJETÓRIAS DE BOLIVIANAS IMIGRANTES: ENTRE A AUTONOMIA
E A VIOLÊNCIA
Clara Lemme Ribeiro1
Resumo: Desde os anos 1990, vem se consolidando um processo migratório de bolivianos para a
Região Metropolitana de São Paulo para trabalho em pequenas oficinas de costura que abastecem o
comércio formal e informal de roupas. Nesse cenário, as mulheres podem migrar sozinhas ou
acompanhadas dos companheiros e/ou da família, para trabalhar como cozinheiras, faxineiras ou
costureiras nas oficinas. Este artigo tem como objetivo caracterizar as trajetórias de bolivianas
imigrantes, a partir das transformações ocorridas nas suas percepções subjetivas sobre
independência e autonomia. Para isso, realizamos entrevistas com cinco migrantes residentes em
São Paulo. A experiência dessas mulheres na sociedade paulistana define-se por marcadores sociais
da diferença de gênero, etnicidade e nacionalidade, inclusive nas suas possibilidades de inserção
laboral na indústria da confecção. Elas relatam um ganho de independência e autonomia – em
relação à família e/ou aos companheiros – por obterem acesso ao trabalho e ao dinheiro. Por outro
lado, os marcadores que carregam justificam as formas de violência a que estão expostas: a
superexploração do trabalho, a violência sexual nas oficinas de costura, o xenorracismo vivido nas
ruas. Assim, entendemos que, no caso das bolivianas migrantes em São Paulo, o ganho de
autonomia e a exposição a formas renovadas de violência econômica, sexual e xenorracista são duas
faces do mesmo processo migratório.
Palavras-chave: migração boliviana, gênero, autonomia, violência.
A partir dos anos 1990, torna-se notável na cidade de São Paulo a presença de um novo
grupo migratório: os bolivianos. Apesar dessa migração ter iniciado ainda nos anos 1950, inclusive
com acordos de imigração e intercâmbio entre os dois países (Freitas, 2010), é apenas em período
mais recente que ela adquire importância numérica e passa a compor a paisagem urbana. A
intensificação do processo migratório boliviano relaciona-se fundamentalmente à sua inserção na
indústria de confecção paulistana em pequenas oficinas de costura espalhadas, atualmente, por
diferentes municípios da região metropolitana, que alimentam o comércio formal e informal de
roupas.
O perfil das bolivianas que migram para e moram hoje em São Paulo é muito diverso em
relação a idade, nível de educação, origem urbana ou rural e estado civil. Há mulheres que migram
sozinhas, acompanhadas apenas dos filhos, com os seus companheiros ou ainda em contextos
familiares, podendo ocupar diversas posições: mães, filhas, irmãs, sobrinhas, primas, cunhadas etc.,
dependendo de quem as acompanha ou as espera no Brasil. No caso da costura, homens e mulheres 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (PPGH-
USP), São Paulo/SP, Brasil.
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desempenham, de maneira geral, as mesmas funções como costureiros; no entanto, elas podem
também ser cozinheiras, faxineiras ou babás, muitas vezes acumulando as tarefas de trabalho e de
reprodução. Isso porque os costureiros moram nas oficinas onde trabalham.
Um dos campos de transformação durante o processo migratório, conforme relatado por
essas mulheres, diz respeito à autonomia. É durante tal processo que muitas conseguem sair debaixo
do controle familiar dos pais, irmãos e (ex-)maridos. Ao mesmo tempo, ele envolve também a
exposição a formas renovadas de violência. Renovadas porque, em seus lugares de origem, as
bolivianas também estão sujeitas ao racismo e à violência de gênero, mas em São Paulo e no
universo da costura eles adquirem novos significados. Assim, elas se deparam nas oficinas com a
violência sexual e doméstica, com o xenorracismo2 – que aparecem também nas ruas da cidade – e
com condições degradantes de trabalho: longas jornadas e ambientes insalubres, que levam à
deterioração de seus corpos por lesões por esforço repetitivo e doenças respiratórias e, em certos
casos, à morte por doenças ou incêndios nas instalações elétricas precárias.
O objetivo deste artigo é caracterizar as trajetórias de migração de mulheres bolivianas, a
partir das suas percepções subjetivas sobre o ganho ou a perda de autonomia e sobre as formas de
violência vividas em São Paulo. Para isso, mobilizamos os relatos de cinco migrantes obtidos a
partir de entrevistas qualitativas.
Trajetórias
A seguir, apresentamos os relatos de cinco bolivianas residentes na cidade de São Paulo,
todas inseridas na indústria de confeccao como ajudantes, costureiras ou donas de oficina: Carmen,
Denise, Brenda, Jéssica e Jimena3, que representam a diversidade no perfil das mulheres deste
contexto.
Carmen nasceu na cidade de La Paz, Bolívia, e veio para São Paulo aos 32 anos, em 2012.
Em seu país, havia se separado do marido e cuidava sozinha da filha, que na época tinha 8 anos. Sua
maior dificuldade, porém, era justamente conseguir trabalhar e cuidar da criança, já que não tinha
2 Aceitamos a provocação de Verena Stolcke (1991) e dos movimentos sociais contemporâneos de migrantes
que insistem que a xenofobia não acontece contra quaisquer imigrantes, passando ao largo de estrangeiros europeus, por
exemplo; e que a escolha dos migrantes indesejados traz em si uma marca de racismo. O termo xenorracismo reuniria,
assim as duas dimensões: ser estrangeiro e não-branco.
3 Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar as suas identidades. Todas as entrevistas foram
realizadas pela autora deste artigo, entre os anos de 2015 e 2016, na cidade de São Paulo/SP.
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com quem deixá-la durante o dia. Foi para São Paulo primeiro sem a filha, para ver como eram as
condições de vida e de trabalho, enquanto esta ficou morando com a avó. Quando sentiu que era o
momento correto, trouxe a criança da Bolívia e mudou-se para uma oficina que fosse perto de uma
escola. À época da entrevista, morava e trabalhava nesse mesmo lugar; queixava-se de trabalhar
muito, estar sempre cansada e ter pouco tempo para estar com a filha, além de ganhar pouco
dinheiro. Por outro lado, preferia trabalhar como costureira que voltar à Bolívia, já que quando a
filha não estava na escola ficava em seu quarto na oficina, e Carmen podia fazer pequenos
intervalos para vê-la e estar um pouco com ela. Assim, conseguia de alguma maneira conciliar o
trabalho com o cuidado com a criança.
Denise nasceu na cidade de El Alto, vizinha a La Paz. Lá, trabalhava em uma fotocopiadora
e fazia faculdade de agronomia mas havia reprovado de ano, e lhe faltava dinheiro para seguir
estudando. Por isso, aos 22, decidiu migrar para São Paulo para trabalhar na oficina de costura dos
tios durante dois anos. Ao chegar, começou a trabalhar como ajudante e faxineira, porque não tinha
vaga para costureiros. Por isso, ela se mudou a uma outra oficina, onde começou a costurar; porém,
sofreu um inchaço nos rins que a impediu de seguir costurando e voltou para o lugar de seus tios.
Aí, além de ajudante, tornou-se também vendedora na pequena loja que mantinham no bairro do
Brás. Apesar de estar com seus parentes, sentia-se muito sozinha e pouco cuidada pelos tios, além
de considerar o trabalho extremamente cansativo.
Brenda é amiga de Denise da Igreja Evangélica que frequentam. Ela é filha de mineiro e
morava em um pequeno povoado a uma hora de distância da cidade de Oruro. O pai proibia que as
filhas trabalhassem; podiam apenas ajudar a mãe no pequeno negócio que ela tinha. Por isso,
Brenda não tinha dinheiro para pagar passagem e materiais para frequentar a universidade, e teve
que deixá-la. Seu irmão, que já morava em São Paulo, pediu ao pai que mandasse Brenda para a
cidade, porque precisava de mais pessoas para trabalhar em sua oficina, o que então foi permitido.
Jéssica nasceu na cidade de Cochabamba mas morava na cidade de La Paz, onde formou-se
dentista. Seu irmão mora em São Paulo há mais de vinte anos e é dono de oficina. Havia mais de
dez anos que tinha ido para o Brasil pela primeira vez; após sofrer um estupro na Bolívia, os irmãos
“a levaram” para protegê-la. Cinco anos depois, morou em São Paulo por dois anos, quando
conheceu o pai de seu filho. Depois disso, quando fazia faculdade, vinha a São Paulo nos meses de
férias, que coincidiam com a alta temporada da costura, e juntava dinheiro para seguir estudando
durante o resto do ano.
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Na época da entrevista, havia voltado a São Paulo porque queria apresentar seu filho ao pai,
que não o conhecia, e porque queria fazer na cidade uma especialização e trabalhar como dentista;
segundo ela, era melhor do que na Bolívia. Morava com o irmão, em sua oficina, e costurava uma
parte do dia para pagar sua parte do aluguel e das contas, ao mesmo tempo em que era ajudante de
um odontólogo boliviano. Em 2015, seu filho faleceu após uma doença não identificada pelos
médicos.
Jimena nasceu na cidade de El Alto e veio para São Paulo enquanto cursava faculdade de
enfermagem, para trabalhar na oficina do irmão. Lá, conheceu o seu marido, com quem montou a
própria oficina depois de algum tempo. Após a queda nos preços da costura e na quantidade de
trabalho, ficou sobrecarregada, sendo responsável por limpar a oficina e cozinhar para os
costureiros, além de também costurar. Queixava-se de trabalhar muito e ganhar pouco sobretudo
naquele momento.
O conceito de marcadores sociais da diferença (Moutinho, 2014) reconhece que não há um
ser humano universal: somos todos identificados perante nós mesmos e os outros através de
critérios como gênero, raça/etnicidade, classe, nacionalidade, entre outros. Tais critérios, os
chamados marcadores sociais da diferença, definem lugares sociais e as experiências possíveis para
os seus portadores.
No caso das bolivianas, isso define os lugares que elas ocupam na indústria da costura;
mesmo quando passam a outros ramos de trabalho, continuam sendo enquadradas sob tais critérios.
Isso porque eles criam estereótipos e articulam formas de violência: são camponesas, indígenas4,
portanto atrasadas, burras, sujas.
Porém, a palavra “diferença” sugere, contraditoriamente, que existe algum universal do qual
outros podem se “diferenciar”; no caso, um universal masculino, branco, ocidental que estabelece
critérios de “diferença” em relação a todos os seus outros. Ao deslizar-se por tal procedimento, a
análise sob o conceito de marcadores sociais da diferença acaba, por sua vez, ocultando uma
pergunta possível sobre a formação desse par universal/diferente, porque já o tem como
pressuposto.
4 A relação entre o que se denomina o camponês e o indígena na Bolívia é extremamente complexa e não
poderá ser abordada aqui. Gostaríamos apenas de ressaltar que o imaginário de uma origem rural que leva a concepções
sobre o “atraso” dessas mulheres. Para ver uma análise sobre o tema de um ponto de vista da questão de gênero, cf.
CUSICANQUI, Silvia. Ser mujer indigena, chola o birlocha en la Bolivia postcolonial de los anos 90. La Paz:
Ministerio del Desarrollo Humano, 1996.
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Autonomia
Atualmente, há em São Paulo uma grande quantidade de ONGs e grupos de ativismo que se
ocupam da questão das migrações e, especialmente, da migração boliviana, dada a sua importância
quantitativa. Dentre esses grupos, a migração feminina e as particularidades das experiências de
mulheres foi ganhando cada vez espaço, o que passou a conformar um novo campo de discurso
sobre a migração de bolivianas e o seu trabalho na costura. Nessas falas, passou-se a elogiar o
processo migratório como um momento de emancipação feminina, já que muitas delas vinham
sozinhas e não acompanhando o marido ou o núcleo familiar, conseguindo tornar-se independentes
e liberar-se do controle familiar sobretudo paterno. O que se chama de autonomia, nesses discursos,
é a independência financeira e da tutela da família. A migração feminina foi assumida então como
um sinônimo de ganho de autonomia a partir do acesso ao trabalho e ao dinheiro por mulheres que
antes não o tinham.
Como indica Magliano (2008), na teoria social que lida com a questão feminina na
migração, existe um largo debate – que não teremos condições de apresentar aqui – sobre as
condições em que processos migratórios internacionais podem transformar relações de gênero e
garantir às mulheres independência financeira, autonomia e mobilidade social ou reforçar e manter
os papeis tradicionais de gênero. A análise adiante busca contribuir para essa discussão no que
concerne o processo migratório de bolivianas para o trabalho na costura em São Paulo, partindo das
experiências das próprias mulheres.
No caso de Brenda, apenas com a migração o pai permitiu que ela e a irmã trabalhassem, e
porque elas iriam ajudar o irmão. Antes, na Bolívia, elas estavam proibidas:
A mi papa no le gusta que nosotras trabajemos. El lo veia feo. Yo quise trabajar. Por ser
mulher? Ou não? No por ser mujer, sino por la gente, no se, a mi papa no le gusta eso. Os
filhos dele? Todos? Las mujeres, solo mujeres. Os homens tudo bem trabalhar. Tudo bem.
Solo mujeres, a el no le gustaba. Entonces yo busque trabajo pero el no quiso. (Brenda)
Denise também afirma que os pais somente lhe permitiram migrar sozinha porque iria
trabalhar com os tios. Ambas contam que passaram a valorizar o trabalho e o sacrifício de seus pais,
e que aprenderam a lidar com o orçamento e as contas; assim, consideram que há um ganho de
independência em ter o próprio dinheiro e tomar decisões sobre os gastos:
Que diferença faz para voces ganhar o proprio salario, cuidar dos proprios gastos?
Brenda “Una es ser autonoma, independiente. Pero tambien, ver las preocupaciones,
porque, suponiendo, si no hay en casa leche, el dinero se esta acabando, y falta a que llegue
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el otro mes, el dia que cumples para que te paguen el pagamento, ver de donde sacar o cual
gasto minimizar y cual gasto sustituir. O suponiendo si tienes para el pasaje ver que cosa
vas a comer hoydia. Suponiendo si tomabamos un cafe con leche de R$1,50, ahora vamos a
tomar un cafe con leche de un real, para minimizar el gasto. Ver las cosas que te faltan
realmente y ver las cosas que puedes comprar despues. Yo lo veo asi”. Denise: “Tipo asi,
mas que todo, es lo ella dijo, ya nosotras comenzamos a hacernos nuestros propios gastos.
Por mi es, voy a gastar R$150, entonces voy a gastar en esto, esto y esto, y me va a quedar
esto. Comenzamos a guardar, no es como antes. En Bolivia, nos acostubramos y decimos
'papi, necesito para el otro', antes estiramos la mano y nada mas [Brenda concorda]. Claro,
y tu no sabias de donde venias, porque alla, cuando eres la menor, la hija, la ultima, tus
papas dicen 'Vas a trabajar? Pero tienes que tener cuidado', eso te van decir, que eres la
ultima hija, ya te dicen 'Te daremos', dicen. Yo ahora lo que gano lo divido, esto va a ser
para esto, esto va a ser para el otro, pero algunas veces...”. Brenda: “Se excede” [risos].
Denise: “Si, se excede, porque es asi, aqui en Bras mas que todo, porque yo soy viciada en
las compras, tipo hay un pantalon de oferta, agarro! Y tipo, 'Ay, no, esto es R$150', entonces
para el proximo mes compro. Es tipo asi... Compramos en atacado, tres shampoos, papel
higienico con tres pacotes. Entonces en un mes, para mi, se me va todo mi salario... Casi.
La mitad, porque yo, a mi me gusta comprar, en lo que gasto R$150 en um mes, y lo resto
asi, para mis gastos”.
A narrativa de Brenda e de Denise é de ganho de autonomia a partir do dinheiro; sua
independência é decidir como usá-lo e aprender as consequências de fazê-lo. Há casos, por outro
lado, de mulheres que, sem acesso ao dinheiro necessário para garantir sua autonomia, submetem-se
ao controle familiar mesmo após a migração. Jimena gostaria de retornar a Bolívia para terminar a
faculdade de enfermagem que havia começado, e assim ter a oportunidade de trabalhar menos e
ganhar mais, porém é proibida pelo marido que tem medo de que assim ela conheça outro homem.
Como depende do marido para garantir seu trabalho como costureira e cuidar de seu filho, não pode
contrária-lo. Jéssica, por outro lado, depende do seu irmão pelo mesmo motivo, e mora como ele
por não ter como pagar um aluguel sozinha em São Paulo. E sente que isso tolhe a sua
independência:
Você se sente mais independente em São Paulo? Não. Você era mais independente na
Bolívia? Allá que acá. Acá eu estou morando com mi irmão. Se eu morasse sozinha, aí ia
ser muito diferente. Se eu tivesse que pagar conta sozinha, se eu tivesse que pagar a minha
comida sozinha, tudo eu teria que fazer, pagar. Mas do jeito que eu vivo hoje, meu irmão
está atrás de mim. Tudo que eu faço ele vê: “que Jéssica não está comendo direito, que
Jéssica não está indo dormir”. Eu sou menina de casa e não gosto! De novo eu gané um pai,
eu não gosto. Eu fazia tudo sozinha allá no meu país, vivia tudo sozinha. Mas eu vine pra
casa dele, eu vine pra ganar um pai, eu não gosto. Você tem vontade de se mudar? É, eu vou
mudar. Al año eu vou viajar para a Bolívia. Eu tengo una percepción de vida: hoje não dá
pra pagar aluguel. Eu tenho casa lá, eu quero ir a hipotecar essa casa e comprar una casa pra
cá. (Jéssica)
Em Brenda e Denise esse ganho de autonomia também é condicional em função do acesso
ao dinheiro que elas tem trabalhando na costura, como não tinham antes. Cabe a pergunta: qual o
limite de uma autonomia a partir desse acesso ao trabalho e ao dinheiro? Qual o limite de uma
autonomia que apenas pode acontecer pela submissão à exploração e à violência do trabalho?
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Carmen também identifica em sua trajetória um ganho de autonomia a partir do processo
migratório, já que consegue por fim cuidar sozinha da filha e mantê-las com seu próprio trabalho,
sem depender de um apoio que, na Bolívia, ela sequer tinha. Porém, isso também significa que ela
é, ao mesmo tempo, a única responsável pelo trabalho e pela reprodução dentro do seu núcleo
familiar. A migração de mulheres que precisam, sozinhas, cuidar de si e seus filhos, expressa o
acirramento contemporâneo da condição feminina “duplamente socializada”, ou seja, responsável
ao mesmo tempo pelo âmbito do trabalho e da reproducao familiar, com ou sem “apoio” masculino.
O que está por trás desse “protagonismo feminino” das migrações, nova tendência do século XX, é
um ganho de autonomia real ou o acirramento da condição feminina contemporânea?
Violência
Os relatos das migrantes bolivianas incluem dois tipos distintos de violência: em primeiro
lugar, aquela vivida através do trabalho; em segundo lugar, aquela que se dá a partir do que se
chamou de “marcadores sociais da diferença” (violência de gênero – doméstica e sexual –,
xenorracismo, entre outras). Esse segundo tipo tem inúmeras formas e conteúdos particulares,
podendo acontecer nas ruas de São Paulo ou dentro das próprias oficinas.
É muito marcada a violência do trabalho que sofrem. As jornadas de trabalho costumam ser
de 7h a 22h, de segunda a sexta, e até 12h ou 13h no sábado, com folga aos domingos. As longas
horas de trabalho são motivadas pelo ganho por produtividade, que determina o salário a partir de
um preço por peça, extremamente variável em função da máquina, do tipo de serviço e do tipo de
roupa a ser costurada. Na média, o pagamento mensal fica na faixa de R$1000 a 12005. Além disso,
as oficinas são obrigadas a lidar com prazos apertados que exigem dos costureiros um cumprimento
rápido dos pedidos. Vale lembrar que, mesmo com gravidez avançada e no pós-parto, inclusive
amamentando, as mulheres não deixam de trabalhar. As condições insalubres das oficinas de costura
deterioram o corpo dos costureiros, na forma de lesões por esforço repetitivo ou doenças
respiratórias. Tais doenças, como a tuberculose, e incêndios provocados por instalações elétricas
precárias levam à morte dos trabalhadores e seus filhos.
5 Salvo raras exceções, faz parte do acordo das oficinas de costura oferecer aos trabalhadores moradia (na
própria oficina) e alimentação, para os períodos de trabalho. Os gastos médios dos costureiros incluem a alimentação
fora do horário de trabalho, passagens de transporte coletivo para feiras e eventos, roupas, cuidados com filhos,
documentação etc. Além disso, muitos enviam remessas de dinheiro à Bolívia. O plano da maioria dos imigrantes é
juntar dinheiro e retornar para abrir um negócio próprio ou terminar os estudos universitários.
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Quando perguntamos às migrantes se elas haviam sofrido alguma forma de violência após a
chegada a São Paulo, muitas responderam que não, mas que haviam visto ou ouvido falar. Brenda
comentou que ouvia a irma falar de brigas entre casais nas oficinas, em que o homem batia na
mulher. A violência doméstica, segundo agentes de saúde que fazem atendimento nas oficinas, é
bastante comum, embora nenhuma das migrantes tenha comentado o tema. Mas a violência sexual
sofrida pelas mulheres nas oficinas foi relatada em diversas entrevistas.
Eu tenho certeza que muitas mulheres que vao trabalhar nas oficinas de costura sempre por
los donos sao violadas. Eso sempre escute, sempre. Por meninas que falam pra mim... (...)
eu conheci muito boliviano que en lugar delas, en casa que elas viviam, el dueno de oficina
violava elas. Isso eu vi muito... Meninas, hasta filha deles violavam, costureiros, pais, tios,
eu vi muito de eso. Eu falei: “Poxa, eu estou num lugar muito triste”. (Jessica)
Denise conta, por sua vez, duas histórias que presenciou e que são muito interessantes para
pensar a percepcao dela sobre o que caracteriza violência:
Tipo, en la oficina donde yo trabajo tenía que hacer la limpieza todo el mundo, pero como...
Es así, hubo una violencia en donde que, era la esposa del cortador, tenía que... Ella era de
pollera6, era humilde y, por ser nueva, le han hecho limpiar toda la oficina, toda vez, toda
vez, toda vez. Le dijeron así: “ay, Emilia, porque vos no limpias”, tipo, los otros le han
reclamado, “ah, eres muy lenta”, así tipo que le han querido, así, contra ella. No ha sido
somente ella, tipo, en otra oficina, de mis tíos, han traído allá de Bolivia una de
Cochabamba, casi de veinte años. Allá era costurera, era overloquista y rendía bien. Mi tío
trabajaba com cuatro casales y un hombre, soltero no, era divorciado, tenía su mujer en
Bolivia. Quien había comenzado la pelea era él. Tipo, que él le hablaba a la chica, pero la
chica no le hablaba. Entonces él comenzaba a decir a la oficina: “ah, ella es así, es así” y
toda la oficina, hasta las mujeres, no le han hablado, porque el hombre há hecho mala
reputación, ha dicho que ella era una cualquiera, que “ella me ha querido molestar, ha
querido entrar a mi cuarto”. Tipo así, los otros como eran casales no sabían, como vivían en
un cuarto a parte, no lo veían. La chica sola, el chico solo, otros se podrían juntar, entonces
a la chica le han querido... La misma boliviana le hecho a un lado, le ha dicho: “ah, tú
quieres estar con mi marido”, tipo así. Es feo cuando el boliviano le hace al boliviano. Mi
tío la había contratado porque ya era costurera mismo en Bolivia, entonces rendía más en
over, y el hombre había dicho: “ah, ella nos va a quitar el trabajo, mira, es así, es así”. Ella
limpiaba y daba todo su trabajo, pero ella lo hacía de horario en horario, no pasaba su
horario. Tipo, si ella tenía que trabajar de siete, entraba siete, tenía que salir once, salía
once. Mientras los otros trabajaban [até] doce. Ella no les convenía, pero ella botaba
[produzia], pero a ellos no les ha gustado. Ahí es donde yo he escuchado y también la
señora de pollera, que por ser de pollera le han dicho “nos vas a limpiar” y por ser mujer, y
“porque además te pagan eso, no haces nada en la oficina, solo estás ahí abotonando, o solo
te estás despiquetando [cortando os fios que ficam soltos na costura], no haces nada y tienes
que limpiar”, tipo que ellos no eran el patrón, eran otros funcionarios. Ahí he visto que el
boliviano ha vuelto a discriminar al mismo boliviano. (Denise)
As duas histórias mostram o forte clima de concorrência que impera dentro das oficinas. Aí,
são percebidas como violência formas de humilhação particulares contra indígenas e mulheres: a
acusação de burrice e incapacidade, a obrigação sobre as atividades de reprodução e o uso do
6 Ou seja, vestia-se com os trajes indígenas tradicionais, também associados à zona rural, podendo ser chamada
também de chola; para uma análise, cf. CUSICANQUI, 1996.
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julgamento moral sobre a sexualidade feminina. Nos espaços públicos de São Paulo, existem outras
formas de xenorracismo contra bolivianos. Jimena relatou como violência o atendimento que teve
na Unidade Básica de Saúde do bairro da Móoca:
[No Belém, ela conta que o posto era bom, que era muito bem atendida] Cuando me mudé
para Moóca, o [cartão do] SUS saqué aqui en Belém, pero en Belém me decían “como ya
estás en Moóca, tienes que ir a Moóca, al posto da Moóca”. Pero allá son racistas, no me
querían atender. A los bolivianos, como son racistas, les gritan no más, porque tienen
miedo. Cuando están por morir o están bien graves, les dicen para ir al hospital de
emergencias. Sólo vienen cuando ya está bien grave, cuando ya no hay solución. (Jimena)
Os chamados “marcadores sociais da diferença”, portanto, “justificariam” tais formas de
violência, no sentido de que acontecem contra mulheres, bolivianas, indígenas, pobres. Assim,
vivem a exploração do trabalho nas oficinas de costura e as suas condições insalubres, os estupros e
formas variadas de xenorracismo. É o outro lado do processo migratório: pode haver um ganho de
autonomia no acesso ao dinheiro e ao trabalho que a migração lhes permite, mas dele fazem parte
também tais formas de violência. Retomamos a pergunta: qual o nexo por trás dessas “diferenças” e
da agressão contra o “diferente”?
Os limites da autonomia como forma de violência
Nas trajetórias das migrantes bolivianas que residem em São Paulo e trabalham na indústria
da confeccao, como vimos, a autonomia e a violência são dois momentos do mesmo processo
migratório. Resta ver como se entrelaçam tais momentos que podem parecer, à primeira vista,
contraditórios. Heidemann (2004), ao pensar sobre as migrações internacionais do século XXI,
chama de “humilhação secundária” o sofrimento de migrantes e refugiados. E no que consiste a
“humilhação primeira” a que estiveram submetidos?
Segundo Marx (1985), o processo chamado por ele de “acumulação primitiva” marca a
imposição do trabalho à população europeia que antes se reproduzia a partir de outras formas de
mediação social. É por meio do cercamento das terras e da legislação contra a vagabundagem que
se forma historicamente o trabalho abstrato como mediação social necessária, a força de trabalho
como única propriedade dos expropriados do campo e a mobilidade do trabalho (Gaudemar, 1977)
como sua característica fundamental. Tornam-se os homens duplamente e contraditoriamente livres:
livres dos meios de produção, livres para vender sua força de trabalho onde e a quem quiserem,
porém obrigados a vendê-la como única forma possível de garantir a sua reprodução. É também
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nesse momento de formação do trabalho abstrato que este se cinde das outras esferas da vida e,
especialmente, da reprodução doméstica (o cuidado com o lar e a família). Nesse processo, o
homem e a mulher personificam as esferas cindidas do trabalho e da reprodução doméstica,
respectivamente.
Por outro lado, a imposição do trabalho sobre os outros povos se deu pela violência da
colonização nos continentes “além-mar”, submetendo o que hoje chamamos de populações negras e
indígenas em contextos diversos. Assim, forma-se um homem universal que personifica o trabalho,
um Macho Branco Ocidental (MBO) (Scholz, 2004), que dissocia de si mesmo todos aqueles que
dele se diferenciam, considerando-os inaptos ao trabalho: seja pela preguiça, pela burrice ou pela
emotividade. Daí surgirem formas de violência contra o conjunto dos dissociados que aparecem
como “de gênero”, “raciais” etc. e que tem o seu fundamento na imposição violenta do trabalho.
Agora, o trabalho alcança o seu limite histórico: o desenvolvimento das forças produtivas,
impulsionado nas últimas décadas pelo advento da micro-eletrônica, torna obsoleto o trabalho
humano e supérfluos os trabalhadores, que disputam entre si os poucos e precários empregos
sobrantes. Assiste-se a um acirramento da concorrência que se manifesta concretamente, entre
outras formas, como violência contra os dissociados, contra os outros, como mostram as histórias
narradas por Denise. Para as mulheres esse acirramento aparece como a sua socialização nas esferas
do trabalho e da reproducao: entrada no mercado de trabalho, dissolução da família tradicional,
protagonismo nas migrações. São momentos também considerados como ganho de autonomia que a
expressam como a liberdade contraditória feminina.
As migrantes bolivianas sofrem com formas diversas de humilhação secundária. O seu
ganho de autonomia possível apenas pelo acesso ao dinheiro pode ser negativamente lido como
imposição da socialização pelo trabalho abstrato como forma necessária. O limite da autonomia
como acesso ao dinheiro é portanto a forma de ser da humilhação primária, dessa violência
primeira. A sua autonomia pode ser entendida contraditoriamente nos termos da dupla liberdade:
liberadas do controle familiar pelo trabalho, obrigadas a relacionar-se através dele.
Ainda nesses termos, entende-se que há um duplo, nas trajetórias de mulheres migrantes
como as aqui analisadas, de libertação do controle familiar e acirramento da sua condição feminina
duplamente socializada, ou seja, duplamente responsável pelo trabalho abstrato e pela reproducao.
Condição essa que é independente de uma presença masculina ou de filhos; atravessa, hoje, a
experiência de todas as mulheres que necessariamente assumem responsabilidade sobre a
reproducao doméstica ou a delegam a outras mulheres como trabalho doméstico.
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Assim, consideramos que autonomia e violência são dois momentos do mesmo processo,
presentes como experiências subjetivas na vida de mulheres com trajetórias de migração, porém
entrelaçadas no mesmo caminho histórico de formação de trabalhadores e trabalhadoras
contraditoriamente livres. Os processos migratórios contemporâneos, que hoje manifestam um
aumento do “protagonismo feminino”, estão no centro do acirramento.
Referências
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circuito de subcontratação de imigrantes bolivianos para o trabalho em oficinas de costura na cidade
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Trajectories of Bolivian immigrant women: between autonomy and violence
Astract: Since the 1990s, a migratory process of Bolivians to the Metropolitan Area of São Paulo
for work in sweatshops that supply formal and informal clothing markets has consolidated itself. In
such a scenery, women might migrate alone or accompanied by their partners and/or family, mainly
to work as cooks, cleaners or seamstresses in the sweatshops. This paper aims to characterize the
trajectories of immigrant Bolivian women, regarding changes that may occur in their subjective
perceptions about independence and autonomy. Five Bolivian women living in São Paulo have been
interviewed. These women's experiences regarding the society of São Paulo is defined by the social
markers of difference such as gender, ethnicity and nationality, including their possibility of labor
insertion in the clothing industry. They report a gain of autonomy and independence – regarding
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family and/or partners – because they access money and work. On the other hand, the markers they
carry justify the types of violence to which they are exposed: overexploitation of labor, sexual
violence in the sweatshops, xenoracism in the streets. Therefore, considering immigrant Bolivian
women in São Paulo, autonomy gain and exposure to renewed types of violence are considered to
be two sides of the same migratory process.
Keywords: Bolivian migration, gender, autonomy, violence.